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POLÍTICAS DE TRANSPORTE COLETIVO:

REGULAMENTAÇÃO, EXCLUSÃO SOCIAL E


DESMERCANTILIZAÇÃO
Nesse artigo, apresento um panorama geral das discussões que pautam o setor dos
transportes públicos no Brasil desde meados dos anos 1990. Nesse período, a demanda
por transporte coletivo começa a cair, tendo em vista a precariedade dos serviços e o
crescente acesso a veículos particulares, configurando grave crise para o setor. Assim,
inicio o trabalho analisando os elementos dessa crise para, em seguida, apresentar as
soluções propostas pelos teóricos do setor. Em um primeiro momento, proliferam
trabalhos que defendem mudanças na regulamentação dos serviços de transporte,
pregando maior abertura ao mercado e incentivos à competição. A partir dos anos 2000,
uma nova leva de estudos passa a incorporar questões referentes à pobreza e exclusão
social nas discussões sobre transporte e, eventualmente, passa-se a discutir mobilidade
urbana como esfera mais ampla de atuação do poder público e de análise técnica. Para
esses autores, a solução para a crise da mobilidade passaria por transformações nos
mecanismos de financiamento do setor de transportes. Ambas as perspectivas são
rejeitadas por uma produção acadêmica não-hegemônica, que se aproxima dos
movimentos sociais para colocar a mercantilização dos serviços de transporte como o
cerne dos problemas de mobilidade. Termino o artigo apresentando essa terceira
perspectiva, que desloca a discussão do campo técnico para o político, evidenciando as
contradições que permeiam o debate.
mobilidade urbana, transportes, exclusão social, desmercantilização, regulamentação.
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INTRODUÇÃO

Nesse artigo, busco dialogar com a produção técnica e acadêmica acerca da


mobilidade urbana e do setor de transportes, tanto em sua abordagem mais sociológica,
quanto naquela ancorada nas engenharias. Apesar de distintas, ambas as perspectivas
atestam a existência de uma crise na mobilidade urbana. A crise, que não é recente,
aparece sob diferentes pontos de vista: os poderes públicos afirmam não possuir verbas
para investimento no setor; as empresas operadoras dos serviços de transporte alegam a
necessidade de subir tarifas para cobrir seus custos; as classes de alta renda, em seus
automóveis particulares, se veem presas em congestionamentos cada vez maiores;
pedestres e ciclistas se encontram cada dia mais vulneráveis em meio à circulação
acelerada dos veículos motorizados; aumenta o número de acidentes entre os
motociclistas; e aqueles que dependem dos transportes coletivos estão diante de
passagens cada vez mais caras e veículos superlotados.
Diante dessa constatação, apresento um panorama geral do debate sobre os
transportes urbanos desde meados dos anos 1990, momento em que a crise da
mobilidade atinge de maneira direta não apenas aqueles que circulam pela cidade, mas
também as próprias empresas responsáveis pela operação dos serviços de transporte.
Nesse período, proliferam artigos e publicações defendendo mudanças na
regulamentação do setor de transportes, aliando-se ao novo arcabouço legal que entra
em vigor após a redemocratização. As teorias produzidas se alinham também aos ideais
de neoliberalização que balizam decisões políticas da época, incentivando a abertura do
mercado e reformas no Estado. Essa produção teórica atua de forma determinante nas
mudanças institucionais do setor de transportes e afetam diretamente a mobilidade
urbana como um todo. O segundo momento do debate pode ser demarcado a partir dos
anos 2000, quando elementos de justiça social e equidade passam a ser incorporados nas
discussões sobre o transporte. Essa nova leva de estudos traz para o campo acadêmico
questões referentes à pobreza e exclusão social e, eventualmente, passa-se a discutir
mobilidade urbana, como esfera mais ampla de atuação do poder público e de análise
técnica. Novas soluções são apresentadas pelos autores, que permanecem, no entanto,
ancorados na lógica de mercantilização dos deslocamentos urbanos.
Assim, embora distintas, as duas fases da produção teórica sobre transportes
públicos e mobilidade urbana deixam intocada a premissa de que o transporte deve ser
tratado como mercadoria e operado a partir de concessões públicas ao setor privado.
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Após apresentar esses dois conjuntos de abordagens teóricas, finalizo o trabalho com o
seu contraponto: as perspectivas trazidas pelos movimentos sociais e abordagens
acadêmicas não-hegemônicas que apontam as principais contradições do discurso
técnico e reforçam o aspecto político dos problemas de mobilidade.

RODOVIARISMO E TRANSPORTE INDIVIDUAL: ELEMENTOS DA CRISE


O uso do termo mobilidade (às vezes acompanhado por urbana, ou ainda urbana
sustentável) para designar os movimentos pela cidade e a forma com que esses
deslocamentos se dão é relativamente recente. Na esfera acadêmica e institucional, até o
início dos anos 2000, essas discussões eram abarcadas pelos estudos sobre Transporte e
Trânsito, de viés mais técnico, realizada no âmbito das engenharias. Assim, se, em
1975, foi criado um sistema nacional visando implantar uma Política Nacional dos
Transportes Urbanos, em 2012, é promulgada lei que institui as diretrizes da Política
Nacional de Mobilidade Urbana. A lei determina que municípios com população maior
que 20 mil habitantes devem elaborar Planos de Mobilidade Urbana, integrados aos
seus Planos Diretores. Na década de 1970, por sua vez, elaboravam-se planos de
Transporte e Trânsito. Há, portanto, uma clara transição terminológica, que não se
limita à esfera legal ou da política pública. O termo mobilidade urbana passa a ser
utilizado para se referir aos deslocamentos e às possibilidades de se mover de maneira
mais ampla, diminuindo, assim, o foco sobre os meios utilizados para esses
movimentos.
Obviamente, não se pode pensar na mobilidade pelo espaço urbano sem
considerar os diversos modos de transporte – mas há um entendimento de que as
políticas voltadas para a mobilidade devam tratar também, por exemplo, da circulação
que envolve pedestres e ciclistas, das condições desses movimentos, da sua intensidade
e frequência. Assim, a Lei 12.587 de 2012 determina como objetivo da Política
Nacional de Mobilidade Urbana “contribuir para o acesso universal à cidade” e define
mobilidade urbana como “condição em que se realizam os deslocamentos de pessoas e
cargas no espaço urbano” (Brasil, 2012). O transporte urbano, por sua vez, é
conceituado como o conjunto de modos e serviços utilizados para esses deslocamentos,
o que evidencia como “transporte” passa a ser incorporado à noção maior de
“mobilidade”. Acompanhando a transição, esse trabalho não deixa de falar sobre
mobilidade urbana, tratando, portanto, dos deslocamentos nas cidades de uma maneira
mais abrangente. No entanto, continua imprescindível discutir a situação dos meios
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coletivos de transporte, uma vez que permanecem essenciais para a efetivação do acesso
universal à cidade.
Na virada do século XIX para o século XX, quando as cidades brasileiras
cresciam em sua importância e os automóveis eram ainda incipientes em todo o mundo,
predominavam os modos coletivos de transportes sobre trilhos, os bondes e trens. Ao
longo do século passado, dois processos foram se consolidando: a decadência do
transporte sobre trilhos, em primeiro lugar e, em seguida, a hegemonia do transporte
individual sobre o coletivo. Ambos os processos se relacionam aos atuais problemas de
mobilidade nas cidades. O crescimento e consolidação das grandes metrópoles tiveram
como consequência a necessidade de grandes fluxos de deslocamento que só podem ser
satisfatoriamente atendidos por sistemas de transporte coletivo de alta capacidade, ou
seja, trens e metrôs. A opção pelo transporte rodoviário, portanto, deixa a cargo dos
nossos modestos sistemas de ônibus o deslocamento diário de milhões de trabalhadores
nos grandes centros urbanos. Esses fluxos, crescentes, aliados ao modelo rodoviarista,
implicam em níveis de congestionamento também elevados, o que significa diminuição
da mobilidade como um todo.
Desde o seu surgimento, as companhias de ônibus prosperavam e cresciam de
maneira progressiva nas cidades brasileiras. A partir da década de 1990, no entanto, a
situação começa a se alterar, configurando um período de clara inflexão para o setor.
Até ali, as cidades se expandiam de maneira acelerada, a demanda por transportes
coletivos aumentava continuamente e, junto a ela, cresciam as principais empresas
prestadoras do serviço. A partir de meados dos anos 1990, no entanto, o número de
passageiros do transporte coletivo começa a cair vertiginosamente, em um quadro de
crise que afeta também as empresas de ônibus. Em sua avaliação sobre a crise,
Brasileiro et al (2000, p. 164) identificam as mudanças no arcabouço jurídico
(promulgação da Lei de Licitações 8.666, em 1993, e da Lei dos Serviços Públicos
8.789, em 1995), a redução da atuação do Governo Federal nas políticas de transporte e
a intensificação do processo de metropolização (que gerava a necessidade de conectar
maiores distâncias, além de problemas de ordem federativa) como alguns dos elementos
centrais para essa inflexão. Além disso, nesse período, ampliava-se o uso dos
automóveis, o que levava, consequentemente, à redução dos usuários de ônibus,
aumento de congestionamento e diminuição da fluidez dos veículos coletivos. É ainda
nesse momento que os chamados ‘perueiros’ se multiplicam nos centros urbanos,
levando, novamente, à diminuição dos usuários de ônibus. A queda expressiva da
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demanda pelo transporte regular, por sua vez, leva a elevações tarifárias e deterioração
dos serviços – o que gera nova diminuição dos usuários, realimentando o círculo
vicioso.
É nesse contexto, portanto, que uma ampla produção acadêmica elabora
possíveis soluções para a crise, a partir de um viés técnico e com foco em questões de
ordem econômica. Na seção seguinte, apresento os parâmetros gerais desses trabalhos,
que pregam a re-regulamentação do setor de transportes e enxergam nas licitações
competitivas a solução para os problemas diagnosticados.

NEOLIBERALIZAÇÃO E COMPETIÇÃO NO SETOR DE TRANSPORTES


No Brasil, desde o final dos anos 1980, a força do neoliberalismo se fez presente
nos paradigmas do planejamento urbano, de modo geral, e na estruturação do setor dos
transportes. O enfraquecimento das instâncias de planejamento metropolitano, criadas
de modo autoritário e centralizado durante o regime militar, a ausência de políticas
nacionais para o setor de transportes e a municipalização da gestão dos serviços acabam
indo ao encontro da perspectiva neoliberal que passa a dominar o cenário político desde
então. Em todo o mundo ecoam defesas à re-regulamentação do setor de transportes,
com ênfase em uma suposta incapacidade gerencial do poder público e na primazia pela
eficiência econômica, que seria alcançada através do mercado e da competição. Como
destaca Veloso (2015), essa perspectiva se tornou central nos novos marcos
regulatórios, processos licitatórios e concessões na área dos transportes. Os
instrumentos de controle público são transferidos para o setor privado e as empresas de
ônibus consolidam uma hegemonia em escala nacional.
Nesse período, é abundante a produção acadêmica que constata a crise dos
transportes e se propõe a apresentar soluções para os problemas (ver Santos & Aragão,
2000; Brasileiro et al, 2000; Orrico Filho et al, 1996). Escrevendo nesse momento,
Brasileiro et al (2000) afirmam que “são justamente os momentos de crise que forjam a
ruptura e a emergência de novos arcabouços institucionais, definidas por novas
estruturas organizativas e novos aparatos regulatórios” (p. 166). Ao contrário do que
ocorreu em alguns lugares, como na Inglaterra (com a exceção de Londres) e no Chile
(e, em grande parte, devido ao fracasso dessas experiências), os autores do campo não
defendem a total desregulamentação do setor de transportes. Há um consenso entre eles
de que a intervenção estatal é sim necessária devido às especificidades do serviço
enquanto atividade econômica. Mas atribuem ao Estado um papel bastante específico e
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limitado. Não se trataria, para eles, de retirar o Estado completamente da atividade, mas
de requalificar sua atuação a partir de reformas regulatórias.
Brenner et al (2012) apontam a regulação como aspecto chave para a
compreensão do neoliberalismo, entendido como um fenômeno de abrangência
mundial, ainda que sob formas e intensidades diferentes em contextos geográficos
específicos. Na base desse fenômeno estaria justamente a reorganização regulatória, o
que envolve a transformação dos modos de governança e das relações entre Estado e
economia, com a finalidade de “ampliar ou consolidar formas mercantilizadas e
comodificadas de vida social” (p. 19). As propostas trazidas pela produção acadêmica
brasileira na década de 1990 para o problema da mobilidade se inserem diretamente
nesse contexto global. A década de 1970 havia contado com uma forte presença estatal
no setor dos transportes, através de ações diretas e autoritárias do governo central e
reestruturações dos sistemas de transportes locais, além da municipalização de alguns
serviços e controle público dos recursos do setor. Entretanto, o esgotamento do modelo
econômico vigente durante o regime militar e a consequente crise fiscal do Estado
serviram de justificativa para argumentos que visavam conter essa presença estatal,
ampliando, em contrapartida, o espaço de atuação da iniciativa privada.
Representativa dessa visão, a obra Transporte em tempos de reforma (Santos &
Aragão, 2000a) apresenta argumentos em prol de mudanças na regulamentação do setor
de transportes, de modo a adequá-lo à lógica do mercado. Como o próprio título aponta,
os autores associam a década de 1990 a um período marcado por reformas
administrativas e por transformações na visão sobre o papel do Estado, uma vez que o
Governo Federal tentava conter o déficit público a partir de medidas austeras. Essas
reformas se expressavam através de “processos de privatização, de desregulamentação,
de abertura dos mercados à competição”, visando “diminuir a presença do Estado”
(Santos & Aragão, 2000b, p. 11), o que deveria ocorrer, inclusive, no setor de
transportes. A abertura ao mercado é tratada pelos autores como “uma exigência política
incontornável” (p. 41) e, ainda que não absoluta, deveria ser feita pelo poder público a
fim de instaurar competitividade ao setor. Na apresentação do livro, os organizadores da
coletânea deixam clara a sua perspectiva, enfatizando que os trabalhos apresentados
“visam a aportar contribuições para a reforma regulatória atualmente em marcha no
setor” e que “reconhecem, em princípio, a validade da lógica de mercado, defendendo
inclusive o seu pleno e consequente desenvolvimento” (p. 31). Os autores partem da
premissa de que o poder público deveria deixar de ser provedor e executor dos serviços,
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para se tornar “o definidor das regras do jogo” e o “articulador dos atores sociais”
(idem), de modo a proteger o mercado através do combate a práticas competitivas
desleais.
Assim, apesar de defenderem a presença estatal no setor, ao Estado é atribuído o
papel de regulador e não de provedor da atividade. Não deixam de acreditar, portanto,
no mercado e na competição como indutores de produtividade e eficiência à atividade, o
que levaria, inevitavelmente, ao atendimento das necessidades sociais dos serviços de
transporte. Dessa forma, uma vez que o mercado apresenta falhas, caberia ao Estado
forjar a competitividade do setor através da execução de licitações que instaurassem a
disputa pela entrada na atividade, pelo direito de operar. Essa perspectiva é defendida
em outros artigos do livro e em inúmeras outras produções acadêmicas da época (ver,
por exemplo, Orrico Filho et al, 1996; Santos, 2000; Gomide, 1998). Não pretendo
detalhar os argumentos econômicos que balizam a ideia, inseridos na perspectiva
neoclássica e em disputas acerca da natureza do mercado dos transportes, sua
contestabilidade ou caráter de monopólio natural (Santos & Orrico Filho, 1996a e
Santos & Orrico Filho, 1996b). No entanto, é importante ressaltar que esses argumentos
levaram à elaboração de uma cartilha para a re-regulamentação do setor que influenciou
a configuração dos atuais sistemas de mobilidade urbana. Segundo essa cartilha, o
Estado deveria se afastar da atividade de transportes, ao menos enquanto provedor
direto do serviço. No entanto, deveria também se manter presente para regular e
controlar a operação dos entes privados, garantindo estabilidade e atuando contra a
competição predatória. Prega-se, portanto, uma atuação estatal em prol do mercado e
não com vistas a contê-lo.
A “cartilha” parte da seguinte cadeia argumentativa, em síntese: 1) o setor de
transportes se encontra em crise; 2) a crise se origina, também, de uma excessiva
presença estatal que impede que haja competitividade no setor; 3) para solucioná-la, o
Estado deve atuar apenas como organizador do mercado, criando as condições
necessárias para a competição entre os operadores; 4) instaurada a concorrência, os
operadores seriam pressionados a atuar de forma eficiente e aumentar a produtividade
do serviço; 5) maior eficiência e produtividade levariam, invariavelmente, a mais
benefícios aos usuários; 6) a principal forma de incentivar a competitividade seria a
realização de licitações para a concessão do direito de operar. A competição é o
elemento central da lógica apresentada e a licitação é apresentada como espécie de
panaceia para os problemas diagnosticados (Matela, 2015). A crença na competição
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pelo mercado como solução para os problemas dos transportes é tão forte, que Aragão
et al (2000) chegam a associar a competição a um “valor moral” (p. 37).
É indiscutível que as reformulações propostas para o setor tiveram influência
sobre as mudanças efetivadas nos sistemas de transportes nos anos seguintes. A crença
na licitação como solução para a crise em que o setor se encontrava fez com que a
prática se disseminasse por todo o país. Obviamente, a reorganização institucional dos
sistemas de transporte e os processos licitatórios responderam também às novas
exigências legais, mencionadas anteriormente. As velhas permissões para operar a título
precário, ou seja, sem prazo para conclusão, eram vistas como sinônimo de ineficiência
e do poderio das empresas sobre as linhas em seu comando. Além disso, a prática de
remuneração por custos, através de planilha pré-estabelecida, era duramente criticada,
prevalecendo a ideia de que índices gerais de reajuste tarifário deveriam ser adotados,
tendo em vista as dificuldades em aferir exatamente os custos dos operadores.
Essas recomendações foram apresentadas em um estudo elaborado pela
Fundação COPPETEC (UFRJ), contratado pela Empresa Brasileira de Planejamento de
Transportes (GEIPOT) em meados dos anos 1990. Pesquisadores de diferentes
instituições acadêmicas desenvolveram o projeto intitulado “Elaboração de um Modelo
de Remuneração dos Serviços e das Empresas de Transporte Público por Ônibus para as
Cidades Brasileiras” que, segundo Santos (1995), “culmina por propor linhas mestras
para uma redefinição do modelo regulatório dos serviços de transporte urbano por
ônibus no Brasil” (p. 110). Apesar da indisponibilidade em acessar o produto final desse
estudo, o modelo apresentado certamente se reproduz nos ensaios compilados no livro
Transporte em tempos de reforma, elaborados pelos mesmos pesquisadores que fizeram
parte da pesquisa contratada pela GEIPOT.
Como lembram Brenner et al (2012), “o processo de neoliberalização tem sido
articulado de maneira desigual em lugares, territórios e escalas” (p. 20). O seu
desenvolvimento é desigual e resulta da colisão entre a lógica de abertura aos mercados
e os arranjos político-institucionais do contexto específico. Assim, os impactos da
cartilha de re-regulamentação se fazem sentir de formas distintas nas diferentes
localidades em que se inseriram. No geral, percebe-se o desaparecimento quase total de
empresas de ônibus estatais (como a CMTC em São Paulo, extinta em 1995) e o
enfraquecimento da atuação do poder público na organização dos transportes, com
maior abertura para a atuação das concessionárias de ônibus. No entanto, a maior parte
dos preceitos presentes na cartilha foi, de alguma forma, ajustado para impedir que os
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efeitos pretendidos fossem alcançados: os procedimentos licitatórios que se seguiram


não levaram a maior competitividade e, se lograram uma operação mais eficiente do
ponto de vista da redução dos custos, não resultaram em benefícios para os usuários. As
tarifas continuaram a subir a taxas maiores que a inflação e a qualidade dos serviços não
melhorou significativamente. Os processos, no entanto, levaram a uma estabilização da
situação das empresas, que passaram a operar com maior segurança e exclusividade,
através de contratos regularizados que retiravam os seus riscos e da garantia de
equilíbrio-financeiro.
Se a crise se arrefeceu para os operadores, o mesmo não pode ser dito para os
usuários, que continuavam enfrentando situações precárias nos seus deslocamentos pelo
espaço urbano. Na seção seguinte, continuo analisando a produção teórica e acadêmica
do campo dos transportes e da mobilidade, que passa a trazer uma nova abordagem para
os problemas e oferece, ainda sob a perspectiva técnica, novas soluções.

INCLUSÃO SOCIAL, MOBILIDADE E FINANCIAMENTO DO


TRANSPORTE PÚBLICO
A partir dos anos 2000, vários trabalhos começam a se atentar de maneira mais
incisiva para as relações entre mobilidade urbana e mobilidade social, pobreza urbana e
exclusão. São marcantes as pesquisas de Gomide (2003, 2006) e do Instituto de
Desenvolvimento e Informação em Transporte (Itrans), em relatório publicado em 2004.
O texto de 2003, publicado pelo IPEA, é resultado de um estudo desenvolvido por
Gomide na Diretoria de Estudos Regionais e Urbanos do instituto, que passa a
investigar as relações entre a provisão adequada de transporte coletivo urbano e o
combate à pobreza urbana. É interessante ressaltar que o autor havia integrado as
discussões sobre a regulamentação dos serviços de transportes, defendendo a realização
de licitações competitivas como solução para os problemas do setor (Gomide, 1998;
Gomide & Orrico Filho, 2000). Nos trabalhos seguintes, portanto, Gomide propõe que
os transportes fossem pensados sob uma nova perspectiva, incorporando seu caráter
social e sua relação com a pobreza urbana e com processos de segregação espacial.
O autor conceitua pobreza e exclusão social como situações de carência
material, baixa renda e acesso escasso a serviços, em que a cidadania e direitos básicos
são negados a grupos sociais. Ambas as condições estariam relacionadas ao padrão de
urbanização das cidades brasileiras, ou seja, aos processos de elitização das áreas
centrais providas de infraestrutura e serviços públicos, associados à expulsão de parcela
da população para áreas periféricas da cidade, carentes de urbanização e de
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equipamentos adequados. Ao mesmo tempo, esse espraiamento urbano intensifica a


necessidade por transporte coletivo, uma vez que os principais locais de emprego
permaneceram nas áreas centrais. Essa necessidade, contudo, tem sido negligenciada e,
como resultado, constata o autor, “tem-se os mais pobres segregados espacialmente e
limitados em suas condições de mobilidade” (Gomide, 2003, p. 8). Ele percebe a
inegável relação existente entre segregação espacial, exclusão social e mobilidade
urbana. A provisão de transporte coletivo de qualidade e acessível seria, portanto, um
direito básico para o cidadão e condição para o próprio acesso à cidade.
A discussão de Gomide passa por três aspectos principais: a importância do
transporte para o acesso a atividades básicas do cotidiano, a relação entre renda e
mobilidade e o impacto do serviço de transporte sobre o emprego e, portanto, sobre a
própria condição de superação da pobreza. Assim, em primeiro lugar, seria importante
perceber a centralidade do transporte urbano no acesso às demais atividades básicas,
como trabalho, educação, saúde e lazer. Sem a provisão adequada desse serviço, limita-
se o acesso a outros serviços essenciais pelas famílias de baixa renda, moradoras das
periferias urbanas e que não possuem veículos particulares. Sem linhas de ônibus
frequentes e acessíveis, não é possível, para uma parcela da população, chegar aos
locais de emprego, aos centros universitários, aos hospitais mais bem equipados, aos
espaços culturais. A privação do acesso a esses serviços acentua uma circunstância
material difícil e agrava a exclusão social de parte dos moradores da cidade.
Outro aspecto a ser considerado é a relação direta entre renda e mobilidade.
Quanto maior a renda das pessoas, mais elas se deslocam, e com fins mais variados. As
famílias de baixa renda, em geral, têm seus deslocamentos restritos aos motivos de
trabalho e escola e, se não estão inseridos no mercado de trabalho formal, tendem a
fazê-los a pé, por não conseguirem arcar com os altos custos dos serviços de ônibus.
Entre 1995 e 1996, o transporte urbano consistia no item principal do orçamento das
famílias com renda mais baixa, o que explica o reduzido número de deslocamentos entre
esses grupos. Assim, os reajustes tarifários afetam diretamente essas famílias e agravam
sua situação financeira. Quem pode pagar mais, se move mais e, normalmente, de
maneira mais confortável. Gomide aponta ainda como o valor das tarifas interfere na
própria possibilidade de uma pessoa desempregada conseguir trabalho: afinal, a procura
por oportunidades de emprego, por si só, exige dispêndio financeiro com o transporte.
Todos esses fatores convergem para a conclusão do autor: a inadequada provisão de
transporte coletivo perpetua uma situação de pobreza, fazendo com que um serviço de
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transporte de qualidade se configure como “importante instrumento de combate à


pobreza urbana e de promoção da inclusão social” (p. 8).
O relatório publicado pelo Itrans em 2004 aponta para a mesma direção. A
pesquisa feita pelo Instituto constatou um nível baixíssimo de mobilidade entre as
camadas de menor renda da população, o que representaria “a privação de atividades
importantes, como as viagens para o trabalho, procura de emprego, saúde, educação e
lazer” (Itrans, 2004, p. 15). Na procura por emprego, três fatores são considerados: a
impossibilidade de arcar com o valor da tarifa no deslocamento; a baixa frequência e
disponibilidade dos serviços existentes e a indisposição do empregador em contratar
pessoas que moram longe e que, portanto, demandam maiores despesas com vale-
transporte. As famílias mais pobres são ainda duramente afetadas pelos valores das
passagens quando estão empregadas e precisam se deslocar para o trabalho. Isso
acontece porque a maior parte delas, no início dos anos 2000, ao menos, não estava
inserida no mercado de trabalho formal, ou seja, não recebiam o benefício do vale-
transporte. Trabalhadores informais ou autônomos, portanto, eram os responsáveis por
arcar integralmente com seus custos do deslocamento e com as tarifas elevadas – o que
afetava diretamente seu orçamento. O relatório destaca ainda os impactos do transporte
sobre o lazer e a integração social. Se os serviços de ônibus já são insuficientes para se
deslocar para o trabalho, eles se tornam ainda mais escassos nos finais de semana e nos
horários noturnos, ou seja, nos períodos de descanso em que as pessoas buscam
atividades de lazer e de convívio social.
Em trabalho posterior, Gomide (2006) sintetiza as questões trazidas pelos
estudos mencionados e conclui de maneira contundente:
a privação do acesso aos serviços de transporte coletivo e as
inadequadas condições de mobilidade urbana dos mais pobres
reforçam o fenômeno da desigualdade de oportunidades e de
segregação espacial, que excluem socialmente as pessoas que moram
longe dos centros das cidades (p. 244).
A partir dessas constatações, Gomide e o Itrans procuram formular propostas para
políticas públicas de transportes, na tentativa de fomentar a provisão adequada dos
serviços para que se concretizem como instrumentos de inclusão social. As sugestões
passam por revisão do modelo de concessão do vale-transporte (para que trabalhadores
informais e desempregados possam ser beneficiados), estabelecimento de critérios de
renda para gratuidades (evitando que sejam concedidas a idosos ou estudantes de alta
renda, por exemplo), investimentos públicos que priorizem o transporte coletivo em
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detrimento do individual e reformulação das formas de financiamento do setor. O


relatório do Itrans ressalta ainda a necessidade de “ajustar os custos e as tarifas do
transporte coletivo urbano às possibilidade de pagamento da população de baixa renda”
e “a importância de melhorar substancialmente a qualidade dos serviços” (p. 36),
incluindo a ampliação da disponibilidade do transporte.
Na última década, e em especial após as manifestações de 2013, crescem as
publicações que passam a tratar da mobilidade e, não mais, simplesmente, dos
transportes urbanos. Esses trabalhos incorporam as relações discutidas anteriormente
entre transportes e exclusão social e tendem a enfatizar o crescimento da utilização do
transporte individual como a grande causa da deterioração das condições de mobilidade
nos centros urbanos. Carvalho & Pereira (2011; 2012) mostram que embora o aumento
de renda tenha proporcionado certa reversão na tendência de queda da demanda de
passageiros dos sistemas de ônibus, ela levou a uma procura ainda mais intensa pelos
modos individuais. Ou seja: o transporte coletivo continua perdendo usuários para os
automóveis e motocicletas. Nesse sentido, os autores atentam para a necessidade de
valorização do transporte coletivo, visando torná-lo mais atrativo para a população em
geral. A mesma constatação é feita por Vasconcellos et al (2011), que argumentam que
os veículos particulares automotores consomem muito mais espaço, energia e recursos
financeiros que os modos coletivos de transporte, gerando externalidades negativas para
o conjunto da população, como congestionamentos, acidentes e poluição. Há, assim,
uma mudança relativa na abordagem acadêmica, antes centrada nos transportes e agora
direcionada à mobilidade urbana em um sentido mais amplo, não mais restrito aos
serviços coletivos. Essa discussão permitiu pensar nos movimentos dentro da cidade de
forma mais abrangente, incorporando, por exemplo, os deslocamentos por modos não
motorizados e enfatizando a importância de se promover também políticas que
beneficiem pedestres e ciclistas.
Assim, os autores trazem novas propostas para solucionar os problemas de
mobilidade. Priorizar o transporte coletivo significa implantar vias exclusivas para
ônibus, melhorar sua confiabilidade e velocidade e restringir o uso de automóveis. No
entanto, as propostas passam também pela arrecadação de recursos extra-tarifários para
subsidiar o transporte público, entre eles, a cobrança de taxas de compensação dos
usuários de automóveis ou do capital imobiliário que se valoriza diante de
investimentos em mobilidade. Carvalho & Gomide (2016) exemplificam essa
perspectiva:
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É no financiamento da operação, porém, que reside um dos grandes


desafios para se melhorar a qualidade e alcançar a modicidade
tarifária. O financiamento da operação baseado exclusivamente nas
receitas geradas pelas tarifas apresenta limitações na capacidade de
pagamento da população, como também representa uma injustiça
distributiva, uma vez que toda a sociedade se beneficia dos serviços de
transporte público (p. 42).
Essa perspectiva é também defendida de maneira contundente em Carvalho et al (2013),
trabalho produzido por equipe do IPEA que apresenta propostas alternativas para o
financiamento dos sistemas de transporte. Entre as possíveis fontes de recurso, os
autores apontam a cobrança de estacionamento em vias públicas, tributos sobre
combustíveis e impostos com base na folha de pagamento de empresas.
De certa forma, percebe-se que alterar o financiamento do setor através de
mecanismos extra-tarifários passa a ser visto como uma nova panaceia para os
problemas do transporte coletivo. Com essa constatação, não quero negar que manter o
financiamento dos sistemas de transportes condicionado à arrecadação tarifária seja um
problema. No entanto, como argumentarei a seguir, a mera adoção de subsídios estatais
para a atividade, mantidos os termos de operação privada, dificilmente será revertida em
benefícios para os usuários, uma vez que a gestão desses recursos permanece sob o
controle das empresas. A tendência é de apropriação das receitas pelas próprias
operadoras, que podem sempre alegar desequilíbrio econômico-financeiro nos seus
contratos, maquiar os seus custos de operação e reivindicar novos aumentos tarifários –
a despeito dos recursos extras. Apesar de apresentarem vantagens em relação ao atual
modelo, as propostas de financiamento extra-tarifário, mantido o caráter mercantil do
serviço de transportes, apresentam grandes limites. Na seção seguinte, apresento
brevemente alguns deles, a partir das discussões trazidas pelos movimentos sociais e
pela produção teórica não-hegemônica do setor.

MERCANTILIZAÇÃO E TARIFA ZERO


Nos anos 1990, postulava-se que os problemas da mobilidade (ainda que não
tratada com esse termo) seriam resolvidos através de licitações competitivas para as
operações dos sistemas de ônibus, ou seja, diretamente pelos mecanismos de mercado,
em um primado pela eficiência econômica da atividade. Na década seguinte, ressaltou-
se a importância social de serviços de transporte acessíveis à população de baixa renda
e, nos anos recentes, defende-se aportes públicos para o financiamento do setor. As
perspectivas abordadas até aqui, apesar de diversas, possuem uma premissa comum: a
de que o transporte coletivo é mercadoria a ser adquirida mediante pagamento
14

individual do usuário. Assim, cada viagem por ônibus ou metrô custa ao usuário um
valor pago através da tarifa, que lhe dá direito de acessar o serviço. Ainda que os custos
de manutenção das linhas de ônibus e metrô sejam parcialmente cobertos por recursos
estatais, como propõem alguns trabalhos mencionados, os autores mantêm a visão de
que a cobrança tarifária é indispensável para a manutenção dos serviços.
Essa visão, no entanto, tem sido abertamente criticada por movimentos sociais
anti-tarifários, que apontam a própria mercantilização do transporte coletivo como
cerne dos problemas de mobilidade. Esses coletivos, que surgiram com maior força a
partir dos anos 2000, após manifestações populares contra os aumentos das passagens
de ônibus em Salvador e Florianópolis têm argumentado a favor da gratuidade do
transporte coletivo e da sua efetivação como direito social. Para Nascimento (2007), o
caráter de serviço público dos transportes tem sido paulatinamente enfraquecido – a
despeito das tendências progressistas dos novos marcos legais aprovados. A Emenda
Constitucional 90, aprovada em 2015, por exemplo, incluiu o transporte no rol dos
direitos sociais, ao lado de educação, saúde, trabalho, moradia e outros. A inserção
formal no âmbito jurídico não garante, é claro, a efetivação do direito, mas representa o
resultado de uma disputa pelo sentido do transporte na sociedade brasileira. A
aprovação da Emenda foi uma das respostas do Congresso às manifestações de junho de
2013, que tiveram os transportes urbanos como primeiro foco de reivindicações. Se
encarado como direito social constitucionalmente assegurado, o transporte deveria ser
algo garantido a todos os cidadãos, com provisão assegurada pelo Estado. A cobrança
tarifária, no entanto, circunscreve o direito àqueles que podem pagar por ele.
Apesar da garantia constitucional, o arcabouço legal brasileiro estabelece que a
provisão dos transportes não precisa ser realizada diretamente pelo Estado, podendo ser
dadas permissões ou concessões de operação ao setor privado. Historicamente, o poder
público tem delegado a operação dos serviços de transporte a empresas privadas,
atrelando o que deveria ser um serviço público ao seu desempenho econômico. As
empresas, portanto, vendem a possibilidade de se deslocar pelos meios coletivos de
transporte e, com as tarifas arrecadadas, cobrem os custos de operação e obtêm retornos
financeiros pelos investimentos feitos. O transporte se torna, assim, não um direito ou
um serviço de caráter universal, mas uma mercadoria como outra qualquer, a ser
adquirida no mercado conforme as possibilidades de pagamento de cada um. Através
dos dispositivos de concessão e permissão, os serviços públicos assumem um caráter
mercantil e podem ser explorados enquanto atividade econômica pela iniciativa privada.
15

A mercantilização do transporte tem, portanto, um significado básico: a atividade deve


se sustentar financeiramente, ou seja, deve ser capaz de gerar rendimentos para sua
manutenção (cobrir custos) e, ainda, remunerar os operadores (propiciar lucro). No caso
de uma concessão, a legislação assegura o direito ao equilíbrio econômico-financeiro da
empresa concessionária ou permissionária, através da revisão do valor das tarifas
cobradas ao usuário.
Como contratos administrativos, ou seja, aqueles firmados com o poder público,
os contratos de concessão supõem uma série de vantagens ao Estado (como, por
exemplo, poder para estabelecer parâmetros de operação, direito unilateral de alterar
cláusulas e extinguir o contrato), estabelece-se, como contrapartida, a garantia de que
qualquer alteração contratual não acarretará prejuízos financeiros aos operadores. É
garantido às empresas que, ao se tornarem prestadores de serviços públicos, não
incorrerão em prejuízos econômicos. A premissa é de que só assim haveria incentivo
necessário para que a iniciativa privada participasse de certas atividades, que exigem,
por exemplo, volumosos investimentos (como produção energética) ou que,
teoricamente, envolvem grandes riscos e baixas taxas de lucro (como os transportes).
Entretanto, como avaliam Diehl et al (2009):
a garantia do equilíbrio econômico-financeiro do contrato por parte da
Administração faz com que haja uma situação de “capitalismo sem
risco” por parte das empresas concessionárias, visto que a estas cabe
apenas vencer a competição instituída pelo processo licitatório
(suscetível, por sinal, a fraudes ou mesmo à sua dispensa indevida,
como é o caso do município de Curitiba), sendo que as eventuais
perdas que deveriam ser assimiladas pelas empresas privadas são
assumidas pela coletividade (p. 9).
Assim, o que deveria ser direito social passa a ser condicionado ao sucesso econômico
da atividade e à sua sustentabilidade financeira. Se uma empresa só entra no mercado
quando há contrapartida econômica, ou seja, possibilidade de obter lucro, a prestação
privada dos serviços pode levar a um conflito entre os interesses da empresa operadora e
a necessidade de cobertura universal das necessidades por transporte independente das
possibilidades de pagamento do cidadão.
Se o sistema de transportes se organiza como atividade econômica, ela só se
torna viável se cobrir custos e gerar lucro – o que se dá mediante cobrança tarifária. As
passagens dos modos coletivos de transporte são definidas, em geral, a partir de dois
fatores: custos de operação (incluindo aí o lucro dos operadores) e número de
passageiros pagantes. De maneira simplificada, o cálculo tarifário é feito a partir da
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divisão dos custos de operação pelo número de usuários que pagam pelo serviço.
Segundo esse modelo, temos duas implicações: se os custos sobem, a tarifa deverá
subir. E, ainda, se o número de passageiros pagantes diminui, a tarifa também deve ser
aumentada. Em geral, ambos os processos ocorrem: qualquer melhoria nos serviços
eleva seus custos de produção. Ao mesmo tempo, como o transporte por ônibus fica
cada vez mais caro, mais pessoas deixam o sistema. No atual modelo, o aumento
tarifário é inevitável, o que leva a nova queda da demanda por transporte coletivo,
configurando um círculo vicioso.
Garantir a acessibilidade dos transportes passa, portanto, por uma quebra do
círculo e modificação na lógica de que o serviço deva gerar rendimentos e, assim,
financiar sua própria execução. Nascimento (2007) argumenta também que, além de
pressões pelo aumento tarifário, os empresários podem, ainda, utilizar outras estratégias
para maximizar seus lucros. Em geral,
reduzem gastos com a manutenção dos veículos (o que aumenta a
ocorrência de quebras de veículos); reduzem a frota em circulação (o
que aumenta o tempo de espera do passageiro nos pontos e também o
Índice de Passageiros por Quilômetro-IPK); não compram ônibus
novos (o que aumenta a idade da frota, com os evidentes problemas de
se usar veículos envelhecidos) (Nascimento, 2007, p. 50).

Em sua análise, Nascimento apresenta as principais contradições provenientes da


mercantilização dos transportes e constata que o transporte coletivo urbano atende a
interesses extremamente conflitantes:
Por um lado, os passageiros, consumidores de transporte coletivo
urbano, pretendem consumi-lo ao menor preço possível, para que o
custo proibitivo de seu deslocamento não restrinja o exercício de seu
direito de ir e vir e para que possam deslocar-se mais vezes com a
menor despesa possível. Por outro lado, a redução das tarifas afeta
diretamente o lucro das empresas de transporte, pois seu produto (o
deslocamento) passaria então a ser vendido a um preço proibitivo para
a viabilidade de seu negócio: não cobriria nem as despesas com
equipamentos e sua manutenção (...), nem as despesas com pessoal
(...) e nem lhes garantiria maximizar seus lucros em curto prazo (p.
53).

Assim, a perpetuação de más condições do transporte coletivo não estaria relacionada


ao modelo de financiamento do setor, mas das contradições provenientes do seu caráter
mercantilizado. Os problemas de mobilidade seriam, portanto, de ordem política, não
técnica, e sua solução passaria pela desmercantilização dos sistemas de transportes.
Em 1990, Lucio Gregori, Secretário de Transportes da Prefeitura de São Paulo,
sob a administração de Luiza Erundina, elabora a proposta de “Tarifa Zero” para o
17

transporte público da cidade (Singer, 1996; Diehl et al, 2009). A proposta consistia no
subsídio total das tarifas por meio do orçamento municipal. Atualmente, movimentos
anti-tarifários defendem a política e argumentam que a provisão dos serviços de
transporte deve ser gratuita e universal, tal qual ocorre com os serviços de saúde e
educação. Schinke (2011) provoca:
Por que você acha normal que deva haver postos de saúde, hospitais e
equipes médicas multidisciplinares de plantão 24 horas por dia? E
tudo gratuito? E por que você acha normal que o transporte público
seja cobrado individualmente a cada viagem e não seja “de graça”,
como é o atendimento do SUS? O seu direito de ir e vir, de desfrutar
da cidade, não é equivalente em valor do seu direito à saúde, à
educação, entre outros serviços prestados pelo Estado? (s/p).

Para garantir a implantação de sistemas “tarifa zero”, ele argumenta que seria necessário
alterar o modelo de concessão privada com a provisão direta do transporte coletivo pelo
Estado, a partir de recursos orçamentários.
Essas propostas visam, portanto, a desmercantilização do transporte público
coletivo e a sua vinculação direta às necessidades de deslocamento da população,
através da eliminação dos obstáculos financeiros ao seu acesso. Além disso, os
defensores da política afirmam que a tarifa zero teria grande potencial em atrair outros
usuários para os sistemas de transporte coletivo, gerando efeitos positivas para o
conjunto da cidade: menos trânsito, acidentes e poluição, por exemplo. A opção política
por um sistema integralmente subsidiado, portanto, seria imprescindível para quebrar os
círculos viciosos perpetuados atualmente e atenuar os processos de segregação
socioespacial vigentes no território urbano. Para isso, seria necessário dotar volumosos
recursos orçamentários para a operação dos serviços, priorizando, de fato, os meios
coletivos de transporte.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os trabalhos analisados não esgotam as discussões dos últimos anos sobre as


principais questões pertinentes à mobilidade urbana e aos sistemas de transporte.
Representam apenas algumas linhas gerais que têm pautado o debate técnico e
acadêmico do campo dos transportes. A mobilidade urbana ou, mais especificamente, a
provisão de transporte coletivo, tem sido uma reivindicação popular constante,
entendida como condição essencial para a própria vida nas cidades. Se evidente nas
revoltas e protestos abertos, a necessidade pelo transporte coletivo se mostra, também,
no cotidiano de qualquer um que circula pela cidade, dentro ou fora dos ônibus. A
18

precariedade do transporte coletivo, principal modo de transporte nas grandes cidades


brasileiras, perpetua uma situação em que, aos cidadãos, nega-se a cidade e a cidadania,
a possibilidade de se mover física e socialmente e o direito de acessar outros direitos.
Nesse artigo, procurei apresentar um panorama geral do debate acadêmico e
técnico acerca dos transportes coletivos e da mobilidade urbana no Brasil, a partir das
produções mapeadas. Nesse processo, foi possível perceber distintas respostas à crise da
mobilidade: a primeira, nos anos 1990, incentivava alterações no marco regulatório da
atividade, visando maior abertura para o mercado; a segunda, a partir da década de
2000, aponta as relações entre transporte e exclusão social e propõe alterações nos
modelos de financiamento do setor de transportes. Os autores contra-hegemônicos, por
sua vez, questionam a visão de que o problema da mobilidade seria decorrente de uma
crise de financiamento ou da falta de competitividade no setor. Novos trabalhos se
aproximam dos movimentos sociais e apontam a própria mercantilização do direito de ir
e vir como o cerne do problema. Nesse contexto, propõem mudanças de ordem política,
com o custeio integral do serviço pelo conjunto da sociedade. Assim, espera-se que o
panorama apresentado possa contribuir para as discussões sobre mobilidade urbana no
cenário atual, fornecendo elementos para os debates acadêmicos e para as decisões
públicas.
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Abstract

Policies in public transit: regulation, social exclusion and


decommodification
In this article, I present a general overview of the technical and academic writings on
public transportation and urban mobility since the 1990s in Brazil. In this period, the
demand for public transportation starts to decrease due to precarious services and
growing access to private cars, leading to a severe crisis on the sector. I begin the article
analyzing some of the elements of this crisis to, subsequently, present the solutions
proposed by the academics of the field. At first, a large number of academic works
propose marked-based solutions for the crisis, seeing the State as a mere regulating
agent. Since the 2000s, a new wave of studies shows the existing connections between
access to transport and social exclusion. Eventually, these authors write about urban
mobility, taking it as a broader sphere for public action and technical analysis. For them,
the solutions for the crisis in mobility are related to transformations in the financing
mechanisms of transit systems. Both perspectives are rejected by a non-hegemonic
academic view which, in dialogue with social movements, put the commodification of
the services of transport as the main issue to be targeted. I end the article presenting this
third perspective, which shift the problems from a strictly technical perspective to a
more political one.
urban mobility, transport, decommodification, regulation, social exclusion.

Políticas de transporte colectivo: exclusion social, regulamentación y


desmercantilización

Nesse artigo, apresento um panorama geral das discussões que pautam o setor dos
transportes públicos no Brasil desde meados dos anos 1990. Nesse período, a demanda
por transporte coletivo começa a cair, tendo em vista a precariedade dos serviços e o
21

crescente acesso a veículos particulares, configurando grave crise para o setor. Assim,
inicio o trabalho analisando os elementos dessa crise para, em seguida, apresentar as
soluções propostas pelos teóricos do setor. Em um primeiro momento, proliferam
trabalhos que defendem mudanças na regulamentação dos serviços de transporte,
pregando maior abertura ao mercado e incentivos à competição. A partir dos anos 2000,
uma nova leva de estudos passa a incorporar questões referentes à pobreza e exclusão
social nas discussões sobre transporte e, eventualmente, passa-se a discutir mobilidade
urbana como esfera mais ampla de atuação do poder público e de análise técnica. Para
esses autores, a solução para a crise da mobilidade passaria por transformações nos
mecanismos de financiamento do setor de transportes. Ambas as perspectivas são
rejeitadas por uma produção acadêmica não-hegemônica, que se aproxima dos
movimentos sociais para colocar a mercantilização dos serviços de transporte como o
cerne dos problemas de mobilidade. Termino o artigo apresentando essa terceira
perspectiva, que desloca a discussão do campo técnico para o político, evidenciando as
contradições que permeiam o debate.
mobilidade urbana, transportes, exclusão social, desmercantilização, regulamentação.

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