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Falar sobre Sérgio Ferro até hoje provoca as mais Após 32 anos de seu afastamento, Sergio Ferro foi

Eternos
diversas reações entre os arquitetos. Sua análise convidado por um grupo de estudantes da FAU
questionamentos
do processo de produção da arquitetura sob o para uma conversa aberta que ocorreu no dia 27
de canto
ponto de vista marxista instiga qualquer um de fevereiro de 2002. Esta publicação, assim como
por denunciar as contradições existentes desde o vídeo, são o registro dessa ‘conversa’, um dos
o poder envolvido na concepção do projeto até poucos ‘testemunhos’ dados por Sérgio desde o
a exploração e a violência existente no canteiro período que deixou de ser professor da escola.
de obras. Este texto é o resultado da transcrição das fitas,
Sua militância durante a ditadura culminou em e na passagem da linguagem falada para a lin-
sua prisão no ano de 1970. Assim, impedido de le- guagem escrita, foram feitos ajustes com o intuito
cionar, é demitido no ano seguinte por“abandono de facilitar a leitura. No entanto, como lembrou o
de cargo”. A demissão é justificada pelo “excesso próprio Sérgio na revisão final:“uma transcrição é
de faltas”, fato até hoje sem retratação oficial por sempre problemática, se corrige muito, soa falso
parte da FAU-USP. demais, e se corrige de menos, revela todas as
Durante o período em que foi professor desta falhas da fala”.
escola, Sergio Ferro teve publicado pelo GFAU Esta é uma contribuição para o resgate de ques-
textos como “Proposta inicial para um debate: tões que permanecem à margem no debate da
possibilidades de atuação” (escrito com Rodri- arquitetura. Em meio a textos de difícil leitura e
go Lefèvre) em 1963, “Casa Popular” em 1972 claras intenções de esquecimento, o debate levan-
e “Arquitetura Nova” em 1975, além de outros tado pelo grupo Arquitetura Nova se encontra no
artigos e entrevistas nas revistas OU... e Cara- ‘canto da página’ perigando cair e até sumir. Uma
melo. É natural que a iniciativa de trazer de novo iniciativa como esta revela a vontade de que tais
Sérgio Ferro para falar na FAU tenha partido dos questões sejam sempre retomadas e debatidas,
estudantes. como eternos questionamentos de canto que
O afastamento de Sergio Ferro não impediu que colocam perguntas para o trabalho do arquiteto
novas propostas levantassem questionamentos e buscam uma outra produção da arquitetura.
próximos aos colocados pela Arquitetura Nova.
Na FAU, a implementação de um canteiro experi-
mental, o surgimento do Laboratório de Habitação Ariane Stolfi, Daniela Gomes Rezende e Tatiana
do Grêmio dos estudantes ou do Laboratório de Morita Nobre – estudantes da FAU USP
Habitação do Departamento de Projeto, são al-
guns exemplos desse tipo de iniciativa.
Conversa com Sérgio Ferro
Sérgio Ferro — Eu peço desculpas a vocês por professor, fui assistente de Flávio Motta2. Na-
duas ou três coisas. A primeira: há 30 anos eu quela época os estudantes faziam arquitetura
ensino em francês, e o meu português de vez muito cedo. Desde o 2º ano de escola eu tinha
em quando capenga por falta de treino. Me des- um escritório3 junto com o Rodrigo Lefèvre4
culpem de antemão. Haverá fatalmente alguns e, mais tarde, com o Flávio Império5. Nós já
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Sergio Ferro ingressa na FAU em 1957, junto com Rodrigo galicismos no meio do que eu disser, alguns fazíamos projetos, às vezes bastante grandes.
Lefèvre. erros de gramática. Segundo: não será uma Neste ano eu fiz vários prédios, por exemplo,
conferência porque me pegaram de surpresa em Brasília. Prédios horrorosos, enormes, que
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Sergio Ferro torna-se professor de Historia da Arte na FAU ontem e disseram “vamos lá” e não tive tempo não estão em nenhum currículo, sempre se-
e assistente de Flávio Motta em 1962.
para preparar nenhuma conferência. Vou falar guindo aqueles gabaritos do Niemeyer.
3
Desde 1959, Sergio Ferro e Rodrigo Lefèvre trabalham con- um pouquinho só e depois pediria que con-
juntamente em diversos projetos. Em 1960, ambos ingressam versássemos realmente, como está no cartaz. Naquele tempo o arquiteto ia bastante ao can-
para o Partido Comunista. Nesta época montam um escritório Uma conversa, né? Não uma conferência com teiro de obras, o papel do arquiteto era muito
na rua Haddock Lobo, que mais tarde irá ser transferido para
a rua Marques de Paranaguá. Flávio Império junta-se a eles
discussões e debates, uma conver-sinha um mais vasto do que é hoje em dia. Em 1958, 59,
em 1961. pouco mais livre. 60, 61 eu ia freqüentemente à Brasília e assisti
um pouco ao nascimento da capital. Não tanto
4
Rodrigo Lefèvre, arquiteto e professor do Departamento de Apesar da história e das origens não explicarem o plano, o desenho do Lúcio, mas o levantar,
História da FAU-USP de 1962 até sua prisão em 1970. muito, vou começar situando o meu trabalho o sair do chão. E saía daqui com a escola, com
em teoria e crítica da arquitetura. Eu fui, como arquitetos cheios de discursos bons para a
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Flávio Império, arquiteto e cenógrafo, professor de Comu-
vocês todos aqui, aluno da FAU1, quando esta sociedade brasileira. Era o período do desen-
nicação Visual da FAU-USP de 1962 até 1977.
ainda era na Rua Maranhão. Logo me tornei volvimentismo: nós havíamos de modificar o
Brasil, construir um Brasil novo, industrializar de fome, de miséria, de comida podre, naquele Tancredo, do Ulisses. Esse pessoal ia muito lá
esse troço aqui. E tudo com uma perspectiva lugar totalmente afastado. Então, para mim, em casa, na casa do meu pai, e eu assistia atrás
social anunciada também muito bonita. Só desde o 2º, 3º ano de escola foi um grande, da porta às reuniões deles — não podia, já era
que, ao chegar em Brasília, via aqueles dese- enorme contraste ver como era produzida a ar- de esquerda. E aí o outro contraste, terrível,
nhos lindos do Niemeyer, perfeitos, brancos, quitetura: o nosso desenho, teoricamente quase entre os discursos íntimos deles, o que eles
puríssimos, mas com uma massa de gente sempre carregado com as melhores intenções, queriam para Brasília, para o Brasil, e o que
ultramiserável, ultra-explorada, construindo intenções sociais abertas e muito bonitas, che- meia hora depois eles iam dizer em rádios, em
aquilo. Um horror as condições de trabalho. gando do outro lado, era realizado nas piores televisões e jornais, um contraste brutal. E eu,
Vinham trabalhadores do Brasil inteiro, que se condições que se possa imaginar. A exploração através de uma espécie de privilégio, fiquei em
agrupavam debaixo daquelas igrejinhas boniti- do trabalho, a miséria dos trabalhadores era cima do muro, vendo de um lado os discursos
nhas do Niemeyer parecidas com um triângulo gigantesca, escandalosa como é até hoje, aliás. do poder, do Juscelino, do Tancredo, do Ulisses,
e ficavam esperando passar ali os caminhões Isso quebrava um pouco o nosso sonho de ar- e, do outro, os reais planos deles. Não os anun-
que os contratavam. Depois os operários iam quiteto, a nossa esperança de arquiteto, o arqui- ciados, mas os reais. E, ainda, sendo arquiteto,
para o canteiro de obras, freqüentemente cer- teto transformando a sociedade, a visão social com aquele sonho maravilhoso de fazer uma
cado, como na Idade Média. As greves eram do arquiteto que, naquele período agitado dos arquitetura para o povo, para a sociedade, mas
reprimidas da maneira mais violenta possível, anos 60, eram constantemente debatidos aqui vendo esse massacre, essa violência embaixo
com mortes, assassinatos. na escola, ou melhor, na rua Maranhão. da produção.
Eu, por outro lado, fazia parte, faço parte ainda
Mais tarde, quando estive preso, alguns operá- de uma família burguesa, paulistana, aquela
rios que participaram da construção de Brasília coisa toda. O meu pai fazia política e era do 6
PSD, Partido Social Democrático, criado por Getúlio Vargas
me contaram os problemas da vida cotidiana PSD6 na época, isto é, aliado do Juscelino, do em 1945.
dominando. O processo de produção é sim-
A partir desse período nós começamos, sobre- plíssimo, são dez a doze tipos de qualificação
tudo Rodrigo e eu, a nos inquietar um pouco do trabalho: pedreiro, marceneiro, pintor, etc.
com essa dualidade, com essa impossibilidade Estes operários executam tarefas no limite
quase que humana de suportar a contradição bastante simples, realizáveis com instrumentos
entre o discurso cheio de boas intenções e a que- primários e com conhecimentos facilmente
da dessas intenções numa realidade das mais disponíveis. Sem falar em obras muito com-
difíceis. Desde aquele tempo até hoje, não só plicadas é possível sempre fazer arquitetura de
no Brasil, mas na Europa também, o canteiro uma maneira simples. Entretanto, para que o
de obras é um dos lugares privilegiados da ex- capital possa explorar o setor da construção é
ploração, da violência. Os operários até hoje preciso exatamente redobrar a violência direta
têm os menores salários, as maiores jornadas e redobrar as sofisticações intelectuais de do-
de trabalho, as piores doenças do mundo do minação. E aí começava uma dorzinha maior
trabalho (a silicose, que vem do cimento, por para nós, os arquitetos, vendo que o desenho de
exemplo), a maior quantidade de acidentes. arquitetura, o projeto de arquitetura faz parte
Isto continua e é válido praticamente no mun- desses instrumentos de dominação.
do inteiro até hoje. A violência social é bastante
grande neste setor: difícil explicar porque ela se Eu vou contar outras historinhas porque fica
concentrava tanto no nosso domínio. Há outras mais simples. Brunelleschi, já mesmo no fim
produções, há outros campos de realizações, do período gótico, na Itália, começa a instalar
mas isso ela se concentra de maneira específica a manufatura da construção civil. Ele foi um
na arquitetura. dos primeiros, estou dando nomes para situar,
evidentemente. O que ele faz? Qual a primeira
Estudando O Capital, Marx, pouco a pouco medida dele diante do mundo do trabalho?
fomos vendo que, no fundo, a arquitetura é Ele tinha trabalhadores magníficos, artesãos
produzida de uma maneira bastante elementar, da maior capacidade que tinham feito, prati-
uma manufatura cuja lógica data do século XV camente sem arquiteto, as igrejas românicas,
na Europa, mas que até hoje se mantêm sem as primeiras igrejas góticas. Existia então uma
grandes transformações, apesar dos esforços figura, um proto-arquiteto, que era uma espécie
dos que procuram a industrialização da de chefe, um grande chefe do canteiro organi-
construção. Até hoje continua a manufatura zando aqueles 30, 40, 50 homens e o trabalho
deles, mas não havia distância social nenhuma. uma outra linguagem, totalmente diferente: as
Freqüentemente esse proto-arquiteto variava de ordens clássicas, o dórico, etc., todo o classicis-
canteiro em canteiro: aqui era o tal cortador de mo da Renascença. Ele vai buscar lá atrás uma
pedra que fazia a figura de chefe, mas no outro linguagem que tinha sido esquecida, que tinha
canteiro da mesma equipe podia ser outro que sido abandonada, que não era mais a lingua-
tomava as decisões mais difíceis nessa posição gem dos operários que estavam ali. E muda a
de organizador, de distribuidor de trabalho. linguagem: bota coluninha, bota capitel, bota
A primeira coisa que o Brunelleschi faz é coluna grega... Isto é, ele vai introduzir um
mudar as regras do desenho de arquitetura. desenho que não é o desenho dos operários,
Eles estavam acostumados, esses pedreiros - que não é o desenho que está à disposição do
vocês conhecem as imagens de Deus na Idade conhecimento deles.
Média com aquele bruta compasso... Deus
traçando o mundo é o chefe de canteiro. Os A partir daí até o século XIX, mais ou menos, a
chefes passeavam com grandes compassos, arquitetura é dupla — como quase toda a arqui-
grandes réguas, faziam desenhinhos esque- tetura dessa época. De um lado uma estrutura
máticos. Depois, no canteiro, eles iam des- massiva de tijolo, que sustentava o edifício
cendo, traçando as proporções e os desenhos realmente e, na frente, esculpidos, coluninhas,
com aquele compasso magnífico diretamente arquitraves, frontões, etc. A arquitetura partia-
na construção. Aquilo produzia as maravilhas se em duas: uma que os antigos operários ainda
que vocês conhecem, por exemplo, a catedral faziam, mas era cuidadosamente escondida;
de Chartres, entre outras. outra o desenho de decoração que se aplicava
em cima. A exploração do canteiro, a redução
A época de Brunelleschi coincide com o final de salários, tudo isso já se fazia presente, mas
de um período muito agitado em Florença e uma das entradas importantes para inverter a 7
Os ciompi eram os trabalhadores da industria têxtil, de baixa
na Europa em geral, com diversas revoluções autonomia produtiva que existia antes foi mu- condição social e econômica, e carentes de qualquer espe-
sociais: a luta dos ciompi7 e dos Ongle bleu8. dar o desenho, extrair o desenho do canteiro cialização. Em 1378 uma revolta popular levou as classes mais
Depois desse período de grande agitação, e transformá-lo em algo autônomo, indepen- baixas ao poder de Florença, na Itália.
vem uma nova política. A manufatura já exis- dente, que falava uma linguagem que não era 8
Literalmente, unhas azuis. Trabalhadores sem qualificação
tia nas indústrias de tecido e estas chamaram a linguagem da produção. Isso ainda continua: das indústrias têxteis.
Brunelleschi para fazer a cúpula da Santa são raríssimos os desenhos dos arquitetos que
Maria de Fiori. Brunelleschi começa adotando realmente são da produção, que são o desenho
dos produtores, um desenho do fazer. Quase direta, de expressão do canteiro.
toda a arquitetura até hoje é um travestimento,
é uma decoração, encobrimento daquilo que é a Nos anos 60, eu e o Rodrigo Lefèvre, com muita
verdadeira linguagem, verdadeira prática cons- dificuldade e discussão, pouco a pouco fomos
trutiva. Parece assim meio fantasmagórico, mas formulando nossas hipóteses de trabalho. Por
tudo isso é necessário exatamente para poder volta de 1967, expusemos pela primeira vez
diminuir, tirar dos trabalhadores a autonomia nossas teses na FAU, por mim resumidas no
produtiva. livro O Canteiro e o Desenho10. Esse trabalho foi
apresentado em condições bastante difíceis. Eu
Eu repito: a manufatura é muito simples e se- me lembro que numa dessas salas aqui ao lado,
ria muito fácil que os próprios operários, com onde eu dava aula, havia sempre a presença de
a ajuda dos arquitetos, pudessem assumir o um oficial da polícia que vinha gravar aulinhas
controle total dos processos produtivos, de A a e escutar os alunos. Já estavam um pouco atrás
Z, sem nenhuma interferência maior. Além de de mim pela participação na revista Teoria e
todos outros recursos da dominação — domi- Prática11. Eu já fazia parte da ALN e da VPR12,
9
Paulo Mendes da Rocha, arquiteto, formado pela FAU Ma-
ckenzie, foi professor-doutor da FAU USP, compulsoriamente nação econômica, jogar o sujeito sem trabalho então a barra era meio pesadinha. Tinha um
aposentado. no mercado de trabalho — no campo específico cidadão lá com gravador e nós, não só eu,
da construção civil há a ajuda do desenho de mas outros professores, adquirimos o hábito
10
Sergio Ferro, “O Canteiro e o desenho”. São Paulo. Revista
Projeto, 1979. arquitetura, que é mortalmente ofensivo em de falar de uma maneira bastante complicada
relação aos trabalhadores, aos produtores. Vo- para que o cidadão não pescasse absolutamente
11
A revista Teoria e Prática existiu durante os anos de 1967 cês podem ter um bom exemplo disso aqui no nada. Os alunos entendiam, eles sabiam que
e 1968 e chegou apenas ao terceiro número. Ela foi inter-
rompida devido à repressão que a Universidade recebeu do Brasil: ainda hoje de manhã visitei a belíssima estávamos falando num semicódigo e sabiam
Regime Militar no pós-68. O coletivo da revista era formado Pinacoteca do Estado, que o Paulinho9 refor- que tinham que interpretar o que era dito ali
por professores e alunos da Faculdade de Filosofia da USP mou. Ali, na arquitetura do Ramos de Azevedo, num outro registro, numa espécie de aula
(como Emir Sader, Roberto Schwarz e Ruy Fausto), ligados ao
grupo de discussões do Capital conhecido como “Seminário
agora visível em tijolinho, o que vocês vêem? O anagônica, com várias camadas de significa-
Marx”. Sergio Ferro foi seu diretor. No número 1 da revista que está sustentando aquelas paredes são maci- ção. Esse vício pegou e eu sei que o meu livro
foi publicado seu texto “Arquitetura Nova”. ços, blocos enormes de tijolos e, desenhado na O Canteiro e o Desenho até hoje é bastante difícil
fachadinha, colunas, arquitraves, arcos. Nada de ser lido, se é que ele é lido ainda, não tenho
12
Respectivamente Ação Libertadora Nacional e Vanguarda Po-
pular Revolucionária, grupos de luta armada formados em daquilo funciona, nada daquilo é operativo a menor idéia. Ele é todo rebuscado, complica-
1967, na qual Rodrigo Lefèvre e Sergio Ferro irão ingressar materialmente, e só está feito para encobrir, do, cheio de frases que vão e vem. Um pouco
no mesmo ano. tampar, esconder o que seria uma arquitetura vício da juventude e muito efeito da censura
que ficava marcada na nossa maneira de expor
os trabalhos.

Pudemos fazer aqui em São Paulo - o Rodrigo


mais do que nós todos, eu pouco, o Flávio
um pouco - algumas experiências graças a
professores da universidade dos quais nós
explorávamos a amizade, aceitando que fizés-
semos um pouco de experiência nas casinhas
deles. Então na casa do Bóris Fausto, na casa
do Bernardo Issler e mais tarde na do Juárez
Brandão Lopes13, fazíamos nossas experiê-
ncias. Algumas funcionavam, outras coitadas
não funcionavam tão bem, mas eles foram
bastante simpáticos para sempre aceitar que
as fizéssemos às custas deles.
Indo para a Europa14 não me foi mais possí-
vel fazer arquitetura, apesar de ter tentado
várias vezes; primeiro porque nosso título de
arquiteto não é reconhecido lá, não há reco-
nhecimento recíproco de título, o que é uma

13
Respectivamente historiador, educador e sociólogo, profes-
sores da USP durante este período.
barbaridade, uma estupidez, mas é assim. Para baixo, olhando a arquitetura de baixo para quase que inverso: há um movimento operá-
poder exercer arquitetura na França havia duas cima, do canteiro de obras para o desenho e rio fortíssimo na Europa, quando começam os
maneiras: uma era refazer o curso de arqui- não o contrário. É impressionante como assim sindicatos. Um deles, sobretudo, começa muito
tetura, mas eu já estava ensinando na escola de pode-se ir virando as concepções que habitu- forte, meio anarquista, mas muito dominado
arquitetura, ficava chato eu dar aula para mim almente temos de História da Arquitetura. O pelos trabalhadores da construção civil. Estes
mesmo. E a outra maneira de ser arquiteto na que parece ser revolução de formas, de estilos, pedem não mais salários, nem folgas, nem fé-
França, sendo brasileiro, era se chamar Oscar quando cutucamos por baixo, são momentos de rias, nem cinco minutos a mais para o almoço,
Niemeyer. O Niemeyer obteve um decreto conflitos sociais, de luta de classe no canteiro. mas pedem simplesmente o controle da produ-
especial do De Gaulle, que permitiu que ele ção. Eles querem que a produção da arquitetura
fizesse arquitetura, e fez obras belíssimas lá: Exemplos: a ordem clássica vai do século XV seja dominada e conduzida por eles do começo
a sede do Partido Comunista, a sede do jornal ao século XIX e termina com uma enorme ao fim: a destinação do projeto, a destinação do
L’Humanité e outras mais. hecatombe, um desastre no mundo operário, objeto e até as condições de produção, reivin-
que é a Revolução Francesa. Só para vermos dicações estas evidentemente impossíveis. Os
Tentei fazer algumas experiênciazinhas na es- como as idéias abstratas de liberdade às vezes sindicatos mais fortes na França, nesta época,
cola de arquitetura de Grenoble. Ali fizemos podem cair no absurdo: em nome da liberdade eram os sindicatos dos trabalhadores de ma-
o trabalho mais teórico, fundamos um labo- o governo da Revolução Francesa impediu e deira, dos trabalhadores em pedra: então não
ratório de pesquisa em História da Arquitetura, proibiu toda e qualquer associação operária. é à toa que nesse mesmo período se mudam os
Dessin et Chantier, Desenho e Canteiro, com vá- Resultado: o mundo operário e o da cons- materiais. Não é por acaso que a arquitetura
rios membros, oficialmente reconhecido pelo trução civil se esfacelaram, não foi possível muda de materiais fundamentalmente, passa
ministério da Construção. Publicamos vários nenhuma resistência organizada. E, com isso, para o concreto e para o ferro, destruindo, ti-
livros, artigos e teses. Eu desenvolvi particular- curiosamente, não é mais necessária aquela du- rando a força desse pessoal dentro do canteiro.
mente um trabalho de História da Arquitetura, plicidade à qual me referi anteriormente. Não Começa a gloriosa arquitetura contemporânea,
a história do Projeto, a história da descolação é necessário tentar haver esse refinamento da mudando de linguagem, mudando fundamen-
entre o desenho e o canteiro. Eu tentei fazer dominação no canteiro porque os operários já talmente a decoração no momento em que os
uma História da Arquitetura de cabeça para estão dominados de cara, não tinha escolha. operários estão fortes. Há um período em que
Começam aí os neos: neoclássico, neo-românti- os arquitetos se aproximam bastante deles: é
cos, neogóticos, neo-românico, etc., porque não durante o Ecletismo — até hoje menosprezado
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Sergio Ferro é preso em 1970 e demitido no ano seguinte pela
havia mais a necessidade de um aparelho de na história oficial da arquitetura — quando a
FAU por abandono de cargo. Neste mesmo ano ele sai da prisão
e muda-se para a França, quando irá tornar-se professor da dominação constante. técnica de construção aparece variada em si e se
Escola de Arquitetura de Grenoble. torna aparente. Houve um grande perigo para
Mais tarde, no fim do século XIX se passou algo o sistema com a arquitetura eclética, quando a
técnica está nas mãos dos operários, técnica que capomastris. Gostaria então que você falasse um
eles dominam, e que transparece diretamente pouco disso.
na arquitetura.
Sergio Ferro — Esse pessoal que veio construir
Estou exagerando, me perdoem pela caricatura, aqui em São Paulo no começo do século, os
mas de uma certa maneira a arquitetura mo- italianos sobretudo, vieram para cá por difi-
derna que vem em seguida - aquelas casas culdades políticas, perseguições. Eles faziam
brancas e lisas do primeiro Le Corbusier, do parte do sindicalismo anarquista na Europa, o
Adolf Loos, etc., — são uma resposta a tudo qual chamamos sindicalismo revolucionário.
isso. Transparece ali a necessidade de mudar Aqui começaram um movimento muito
completamente os materiais que estavam nas forte, publicaram jornais importantes como
mãos de sindicatos poderosíssimos e fazer um o “Avanti”17, mas infelizmente eles ficaram
outro tipo de decòr. O Loos ataca qualquer orna- muito ligados à Itália e a sua atuação maior
mento como crime15, mas não há ninguém que foi em relação a ela. Eles não implantaram um
tenha feito cobertura de bolo de uma maneira movimento a longo prazo aqui no Brasil, mas
mais perfeita que ele: uma decoração purista eram magníficos, não precisavam de ninguém,
que disfarça a arquitetura em quadro puritano. tinham técnica, tinham um saber.
Em 1920, cai esse sindicalismo forte, começa
o sindicalismo mais preocupado com salário, Quero insistir: nada disso elimina ou dispensa
férias, não vou entrar em detalhes sobre isso. o arquiteto. Isso simplesmente impõe um outro
Durante mais ou menos 25 anos, nós ficamos contato do arquiteto com a realidade produtiva,
estudando arquitetura, a história da arquitetura impõe um arquiteto que não seja colocado con-
por esse outro ângulo, essa outra perspectiva. tra o canteiro, contra os produtores, mas que
Há poderosas pistas de trabalho quando se ao contrário, colabore com esses produtores,
15
Ver Adolf Loos: Ornamento y delito: y otros escritos, Barce-
inverte a leitura. colabore com esse saber.
lona: Editora Gustavo Gilli, 1972.
Daniela Gomes Rezende, estudante de arqui- Todo esse pessoal magnífico, que tinha real-
16
A Casa de Dona Yayá, localizada na esquina das ruas Major
tetura — Você colocava a questão do Ecletismo, mente uma tecnologia total na mão, foi cui-
Diogo e Heloisa, na Bela Vista, foi construída no século XIX,
e atualmente é patrimônio da USP. que me fez lembrar do livro sobre a casa da dadosamente destruído alguns anos depois.
Dona Yayá16, que fala daquela época em que Primeiro com a guerra, evidentemente, e em
17
Avanti, jornal operário italiano. em São Paulo as casa eram construídas pelos seguida, já em 1920, o sindicalismo muda
bastante de figura. Por influência da CGT para a construção civil em termos de estrada, transferência de valor de um setor para o outro,
Francesa18, o sindicato brasileiro também se barragem, casinha, fábrica, usina, etc., uma constantemente.
adapta nessa época - há um outro tipo de massa de dinheiro gigantesca. Essa massa de
reivindicação, eles não pedem mais para fazer dinheiro é produzida na manufatura, não dá Alexandre Benoit, estudante de arquitetura —
obras, saber o que estavam fazendo ou para para entrar em detalhes muito técnicos, mas Me parece que o seu livro O Canteiro e o Desenho,
quem. Eles mudam completamente a reivin- isto significa que a possibilidade de coleta de escrito há 30 anos, tem uma grande influência da
dicação e de uma certa maneira se adaptam à mais-valia é muito maior, dá para pegar uma obra de Marx, O Capital. Eu queria saber como
coisa, aceitam a posição de trabalhadores da massa de dinheiro extraordinária, e isso tem você vê essa influência hoje, assim como o que
construção civil. As grandes reivindicações um papel fundamental na economia. A Crítica escreveu lá. Essa colocação que você faz sobre a
operárias desaparecem pouco a pouco, pelo à Razão Dualista19 fala sobre isso - alimentar história, seria possível tê-la como método peda-
menos no campo da construção civil. É claro os setores mais produtivos com uma taxa de gógico numa escola? Seria muito rico para a FAU.
que a história não é tão simples e linear assim, lucro menor. Quase poderíamos dizer que a O material que se conhece do Sérgio Ferro acaba
mas digamos, nunca mais houve um período construção civil vai sustentar as indústrias de em 1977 com O Canteiro e o Desenho, e de lá para
tão nitidamente afirmativo como entre 1890 e ponta e não o contrário. cá não tem mais nada. Inclusive, acho que se não
a 1ª Guerra Mundial. A relação disso com a fossem os grêmios desse período, teríamos muito
origem da arquitetura contemporânea na Eu- Isso é importantíssimo hoje em dia, porque pouco - são muito valorosos os cadernos que o
ropa, pelo menos, é claríssima, evidentíssima, nós vamos entrar num outro período desse GFAU publicou sobre as suas obras. A idéia de
totalmente explícita. Dá para seguir direitinho, tipo, me corrijam se eu estiver enganado. Eu um arquiteto criando uma nova relação com o
passo a passo, a mudança do desenho, a mu- tenho a impressão que as indústrias, os setores operário seria possível no capitalismo ou seria
dança do material e a relação com a perda de produtivos de ponta, estão exigindo uma massa necessária a sua superação? A experiência da
um saber. enorme de capital por uma taxinha de lucro Bauhaus teria alguma relação com isso?
desse tamanhinho assim. Vai ser necessário
Devo salientar que tudo isso parece ser con- fazer carradas de caminhões de mais-valia, Denise Invamoto, estudante de arquitetura
to de fada dramático, história de lobo mal e sobretudo aqui, na nossa área, na área da — Gostaria que o senhor comentasse uma prática
tudo, mas é preciso prestar atenção nisso, pois construção. A história dentro de cada canteiro que começou a acontecer quando não estava mais
a construção civil representa na economia um parece idiota e boba, mas somando tudo isso, no Brasil: os mutirões por autogestão e o coopera-
papel enorme. Uma parte importantíssima vendo tudo o que se constrói, o que se produz tivismo em São Paulo. Dentro da sua leitura, essa
do produto interno bruto de cada país vai em São Paulo... Tudo isso vai, se escoa; é uma é uma prática que pode transformar a sociedade
ou não? Aqui na FAU a sua obra ainda é bastante
marginal, temos poucos professores que a co-
18
Confederation Generale dês Travalleurs – França, Central Geral 19
Ver Francisco de Oliveira, “A economia brasileira: crítica à
dos Trabalhadores – Brasil. razão dualista”. Seleções CEBRAP, nº 1, 1975.
mentam. A maioria dos alunos tem contato com
ela através de iniciativas individuais ou de grupos, interpretações são válidas. Hoje no mundo se rer a esses imensos canteiros de obras, a essas
como o LABHAB GFAU, que é um laboratório de vê: concentração, desigualdade, infantilidade imensas obras faraônicas, e, de uma maneira ou
estudantes que se propõe justamente a resgatar do processo, um sujeito automático que nin- de outra, quase que desesperadamente, vamos
uma reflexão e uma atuação do arquiteto mais guém consegue frear... Nenhuma boa vontade, ainda continuar contribuindo para reter essa
voltada para o canteiro e para o contato com os nenhum rosário de boas intenções consegue queda da taxa de lucro. Por isso, acho que a
movimentos sociais... Mas isso é uma coisa que parar essa máquina infernal que é o capital gi- análise do Marx, em vez de envelhecer, se
fica à margem do ensino, então eu gostaria que rando em torno de si mesmo, se autoproduzindo rejuvenesce cada dia mais.
você comentasse o ensino hoje da FAU. constantemente, indiferente a qualquer injustiça As propostas que fazíamos para a arquitetura
social, indiferente a qualquer reivindicação de evidentemente não podem ser levadas até o
Sérgio Ferro — Marx, sem dúvida, é o ins- humanismo, que seja. Acho que, quanto mais fim sem modificações radicais nas relações de
pi-rador constante dentro da minha obra. a nossa sociedade avança, mais as teses do produção, sem modificações fundamentais e
Eu sigo as análises do Capital, com a minha Marx ficam válidas e radicalizadas. O que ele estruturais. E isso é básico: não há a menor
pouca capacidade, mas religiosamente quase. diz a respeito da industrialização crescente, o possibilidade de supor o trabalhador livre
É Marx de fundo. Acho que até hoje as suas aumento do capital fixo, do capital constante, quando na situação social ele não é livre. Não
colocações são absolutamente válidas, assim a diminuição da taxa de lucro, a dificuldade há como supor o trabalhador participando
como as análises que eu faço a partir delas. cada vez maior que tem o capital para obter com igualdade, como um sujeito autônomo,
Não creio que em 1989, o Marx tenha falecido as suas próprias taxas de lucro, isso aparece quando sua situação é fundamentalmente
com o falecimento da União Soviética e dos cotidianamente hoje. desigual, quando ele vendeu sua força de
países ditos socialistas. Aquilo lá ao meu ver trabalho. Entretanto nada disso nos impede,
era uma grande caricatura de socialismo com Acho também que uma das teses do Volume 3 ao contrário, tudo nos obriga a avançar nesse
alguns pequenos avancinhos, mas com uma continua sendo importantíssima para nós. Nele, sentido — fazer pesquisas, fazer estudos, fazer
quantidade de merda muito maior do que de Marx fala dessa tendência da taxa de lucro cair, ensaios — sabendo que todos eles serão meio
progresso. diz que uma da maneiras de contrabalançar capengas, não há dúvidas, mas a meu ver isto
isso é explorando ativamente setores ditos é fundamental.
As análises que Marx faz da nossa sociedade atrasados da economia. Um desses setores é o
nunca foram tão válidas quanto hoje. Quanto nosso, a construção civil. Cada vez mais, para Hoje em dia, existe a possibilidade de nos
a isso que se chama globalização, basta pegar equilibrar essa queda violenta da possibilidade aproximarmos de um outro tipo de relação
o 3º volume do Capital20, puxar um pouqui- de lucro do sistema, vai ser necessário recor- social que permitiria uma outra relação da
nho mais adiante e já está lá. Ele não conheceu arquitetura com o canteiro de obras. Penso
esse fenômeno exatamente, mas a extensão de 20
O Volume 3 trata especificamente da questão da renda da em certos bolsões que surgem pouco a pouco
suas análises é perfeitamente possível, as suas terra. na América e em certos territórios, em certas
regiões mais ou menos controladas ou dirigi- caminham para um outro tipo de sociedade. Eu
das por movimentos como o MST, onde há Eu não acredito que possa haver uma revolução acho isso básico, fundamental, e isso se relacio-
possibilidades de uma outra prática. Se as eficaz, uma transformação social positiva e for- na com os mutirões e outras experiências desse
análises dos grandes economistas funcionam, te sem que as relações de produção concretas tipo. Mesmo que eles existam por necessidade,
as áreas de miséria e de abandono vão crescer sejam alteradas — não é a posição só minha, é há que mudar desde já as relações de produção.
cada vez mais. A África, por exemplo, já está posição da Rosa Luxemburgo21 e de uma série Sem sonho, por enquanto é impossível parar
sendo esquecida, “deixa para lá, porcaria, está de outras pessoas. É necessário pensarmos a venda da força de trabalho enquanto a eco-
apodrecendo, está morrendo, dá um pouqui- desde hoje numa transformação social eficaz; nomia for dominada pelo valor. Por conta do
nho de remédio para a AIDS para eles calarem desde hoje começar a tentar transformar as valor tudo isso vai estar bloqueado, vai estar
a boca, mas deixa afundar esse pessoal”. Pelo relações de produção, pois se não mudarmos precisando de muletas. Mesmo sabendo que
menos é esta a posição da economia dominante. essa relação de dominação, será impossível, tudo isso é relativizado, precário, não há como
Mas na África vai continuar a existir gente, que ao meu ver, qualquer perspectiva humana esperar as transformações sociais acontecerem
vai continuar a precisar de trabalho e é nesses mais aberta. — anjos descendo do céu tocando trombetas,
países, nessas regiões, que pode se começar Sobre a questão de transformar efetivamente anunciando que o amanhã está aí — se nós não
uma outra prática. Acho que no Brasil já há, as relações de produção, o nosso campo é hiper prepararmos docemente essa transformação,
aqui e ali, algumas possibilidades, pequenas favorável, por aquilo que eu disse no começo todo dia. O outro lá dizia que, para andar 20
regiões onde a experiência já pode ser bastante — é um campo simples. Salvo barragens e al- léguas, o sujeito precisa dar um passo e depois
aprofundada. gumas obras mais complicadas, com toneladas outro.
de aço sendo carregadas de um lado para o
Quero insistir numa outra coisa que me parece outro, 99% delas são coisas simples, de uma Sobre o ensino na FAU, eu não diria absolut-
mais importante: na União Soviética, teoric- tecnologia que está ali. amente nada. Eu saí dessa escola há 30 anos
amente, fez-se uma revolução socialista, isto atrás. Uma escola excelente, me parece que ela
é, foi dito que todos os meios de produção eram As relações de produção nesses bolsões podem continua sendo uma das melhores escolas de
juridicamente da população, não havia mais ser facilmente transformadas desde já, e se en- arquitetura do país, mas não tenho nenhum
propriedade privada dos meios de produção. direito, nenhuma possibilidade, nenhuma com-
Mas continuaram a produzir, fazer arquitetura petência para fazer a menor discussão sobre o
e fazer toda a produção social exatamente como 21
Militante do Partido Social-Democrata Alemão e fundadora ensino na FAU atualmente.
nós fazemos aqui. O canteiro de obras na União da Liga Spartakista, publicou importantes reflexões sobre o
movimento operário internacional. Autora do texto Reforma
Soviética era igual ou mais duro, mais difícil ou revolução, A questão da organização da social-democracia Maria Ruth Amaral de Sampaio, diretora da
do que o daqui, pois a relação hierárquica e a russa, de 1904, Greve de massas, partido e sindicato, de 1906 FAU-USP de 1998 a 2002 — Uma questão mui-
dominação eram iguais, e deu no que deu. e A acumulação do capital, de 1912, entre outros. to presente nas suas pesquisas sempre foi a da
dominação. Hoje em dia você é um pintor dos
mais renomados deste país. Eu até o considero maneira de produção. Se na arquitetura temos nava aqui e repito a cada cinco minutos todos
como um pintor renascentista, de coisas tão lin- uma manufatura, que não é uma indústria, a os dias: “arte é a manifestação da alegria no
das que você faz. Então eu pergunto: essa opção pintura se transformou desde a Renascença trabalho”. E eu continuo achando esta definição
pela pintura foi por você encontrar nela uma num artesanato. O pintorzi-nho pinta na tela, válida. É uma definição cheia de ambigüidades,
ausência de dominação? faz o desenho, a figurinha, o que ele quiser cheia de entradas porque poderia ser entendi-
fazer. É um sozinho, um artesão diante de um da como “a arte é manifestação da alegria no
Sergio Ferro — Na pintura é o mesmo combate, produto que ele, de uma certa maneira, domina trabalho artístico”. Mas o Morris não diz isso,
a mesma coisa. Apesar de falar em economia, completamente. Mas o estranho é que, exata- diz: “arte é manifestação da alegria no traba-
dinheiro, valor, a questão que mais me interessa mente porque você tem este domínio, é que a lho”, insistindo, como ele sempre insistiu, que
e mais fundo me toca, é a questão da arte, da pintura resiste, ela é de uma força de resistên- qualquer atividade humana feita com liber-
produção da arte. Seja no campo da arquite- cia enorme. É preciso trabalhar com ela com a dade, responsabilidade e alegria necessárias,
tura, seja no campo da pintura, a questão da mesma humildade, com a mesma entrega que pode e deve ser arte. Por isso ele fazia papel
arte e do desenho sempre foram centrais para eu peço para os arquitetos que trabalham com de parede, bordava, fazia travesseiro, fazia
mim. A questão da pintura, eu tento colocar a construção civil. tricô, fazia crochê, cozinhava, um monte de
da mesma maneira que a questão da arqui- atividades desse tipo, tentando mostrar que
tetura. O que é a pintura para mim? Começo Arte, no fundo, é o quê? Eu considero a melhor cada uma delas pode ser fertilíssima em arte.
sempre como ensinava Marx, caracterizando a definição de arte a do William Morris22, o meu Evidentemente que é muito mais simples
santo padroeiro, que eu já repeti quando ensi- pensarmos assim quanto às atividades artesa-
nais ou manufatureiras do que em relação às Marx falava, inspirado no Hegel23, do espírito tubo, etc., mas tenho também à minha dispo-
atividades industriais, mas a própria Bauhaus objetivo — toda humanidade e toda a história sição toda a História da Arte, da pré-história
tentou mostrar que também nesse caso também humana está concentrada nos materiais diante até hoje. Posso usar essa História da Arte como
seria possível. de mim e em mim faço. De uma certa maneira, material que está sempre vivo, que está sempre
trabalho artístico nada mais é do que acordar, ativo. Por que não ir procurar, pescar o que há
O essencial é sempre o mesmo ponto: como revelar, estar à escuta desse espírito objetivo de bom nessa história? O Hegel dizia que a
é que se faz arte? Arte é homem vs. matéria, que já está na matéria, está impresso, está história está sempre toda escrita no presente,
homem vs. mundo, mãozinha vs. argila. Eu impregnado na matéria, no saber, no fazer, na que a nossa cabeça guarda ainda traços da Pré-
vou lá, mexo na argila e faço um boneco. tecnologia, respondendo àquilo que já está lá. história, guarda traços da nossa história. Eu
Nesse fazer, eu me projeto na matéria, e a É pôr esse movimento em vida e em funcion- utilizo a História da Arte e todos os materiais
matéria me responde; eu sou fruto histórico, amento. Essa relação é a relação fundamental que estão à disposição com toda a liberdade.
nasci em tal ano, me eduquei em tal situação, do trabalho, mão x matéria que pode e deve ser Procurando sempre ser — todo mundo me xin-
mas o barro também é. Porque o barro que o fundamento, núcleo, centro da arte. ga por isso e eu adoro — o mais respeitável
eu trabalho hoje veio de uma tal olaria, com dos artesãos. Eu pinto e respeito as regrinhas do
seus empregados, passou no trajeto tal com o A minha pintura — que ao contrário do que artesanato, aquele coisa toda, de provocação, já
caminhão e foi vendido na rua Teodoro Sam- foi dito, é muito maltratadinha pela crítica que a pintura é artesanato, vamos fazer, vamos
paio. Esse material também está carregado de nacional — é só isso: ver qual o material que pegar esse artesanato de frente.
história, são duas histórias que se encontram. O tenho na mão. Eu tenho tela, pincel, cores em

22
William Morris (1834-1896), desenhista, poeta, pintor, en-
saísta, socialista inglês, foi um dos teóricos do movimento
Arts & Crafts e autor dos textos Arte e sociedade industrial
e Contra a arte de elite, entre outros.

23
Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831), filosofo ale-
mão, autor dos textos A fenomenologia do espírito e A lógica,
entre outros.
Pintor é uma coisa limitada, pequenina, um produção humana na qual os arquitetos, como Dessa relação entre os dois é que pode se re-
a um. Se isto é transposto para a arquitetura, os organizadores do conjunto e de cada parte velar o que estiver mais presente, mais atual,
então ela vira a maior, a principal de todas as desse conjunto, poderiam se expressar com a mais prometedor, que está ali dentro ainda em
artes, a mais extraordinária. Quando visitamos mesma totalidade, com a mesma voluptuosida- estado de nascença. O produzir é fazer nascer
Chartres ou uma daquelas catedrais, vemos o de, com a mesma radicalidade do sujeito. aquilo que já está ali há praticamente oito meses
que pode ser, o que deveria ser arquitetura: engravidando. Trazer ao mundo. Gerar. Fazer
sempre essa qualidade de expressão humana, Eu tenho uma mania também, eu estudo parir o trabalho que o material já contém em
essa quantidade de fusão humana. É a mesma semiótica, que é um troço mais chato ainda, si. Mas isso não se faz sem a liberdade, sem o
coisa: cada tipo de trabalho, se respeitada a sua mas certas coisas desse campo são impor- canteiro autônomo, sem condições de liberda-
historicidade, a sua contemporaneidade, reve- tantíssimas. Só há uma maneira, nas artes de total, de A a Z, do primeiro ao último dos
la todo o espírito social que está dentro desse plásticas, do sujeito humano aparecer, que é produtores.
material. Se o produtor, o artesão, pedreiro, através das marcas e das impressões do traba-
marceneiro, que também são fruto social, com lho no material. É o índice do Pierce24. Não há O desenho de arquitetura, que eu procuro e
todo o seu saber fazer, com a técnica mais atual, nenhuma outra possibilidade de manifestar a que ensinei lá em Grenoble não desaparece.
trabalharem esse material, o revelarem com o presença do sujeito no espaço, se não passar Ao contrário, ele se torna hiper exigente, muito
máximo de racionalidade possível — isso pode pelo índice, se não passar por essa espécie de mais complicado que o desenho de hoje em
parecer contraditório — eles atingem ao mes- manipulação do material pelo trabalhador, pelo dia. Porque nenhuma gratuidade formal passa,
mo tempo o máximo de liberdade possível. E o que ele fez. Hoje em dia, cada trabalhador nenhum traço da mão trêmula do gênio deve se
com essa liberdade, é que pode vir a expressão é obrigado a falsear a própria mão, falsear o transformar em parede. Ao contrário, o projeto
humana. próprio material, para transportar tudo isso se transforma num exercício, numa racionalida-
na linguagem de um outro que não é ele mes- de hiper exigente. E, ao mesmo tempo em que
A expressão humana na arte é sempre isso: mo. Freqüentemente essa linguagem do outro traz essa racionalidade, abre para cada métier
pegar a necessidade histórica que está no desconhece totalmente as possibilidades vivas, a possibilidade da própria expressão, da pró-
material, que está no pintor, e trabalhá-la até o racionais, próprias de cada material, de cada pria autonomia, da própria liberdade dentro do
fundo. Quando essa necessidade é trabalhada tecnologia, de cada saber. campo de cada um. É um desenho ao mesmo
até o fundo, ela vira liberdade. A definição que tempo muito mais exigente, complexo e preciso
o Hegel dá de liberdade e de necessidade é ab- Tenho impressão que a arte (por isso eu faço do que nós habitualmente utilizamos em arqui-
solutamente a mesma — liberdade tem todas as tanta pintura), foi praticamente excluída do tetura. Pode parecer contraditório, mas não é, é
suas razões de ser em si mesma e necessidade é campo da arquitetura hoje, exatamente por-
aquilo que tem suas razões de ser em si mesma. que não há mais isso, essa possibilidade de
Dessa liberdade e necessidade nasce a grande trabalho entre o material e aquele que sabe.
24
Charles Sanders Pierce, semiólogo norte-americano.
muito mais aberto. O desenho pode ser ainda multâneo, à volta da arte e arquitetura, à volta estou fazendo caricatura, não é simples assim.
modificado no canteiro de obras, transformado da autonomia no canteiro, da produção livre e Mas posso dizer que há muita ambigüidade
no canteiro de obras, através da liberdade dos da racionalidade total, podemos e devemos já na Bauhaus. Temos que analisar com bastante
que estão fazendo. começar a ensaiar aqui, nas condições atuais cuidado, com bastante detalhe. Há coisas lindas
de produção. e, ao mesmo tempo, por debaixo do pano, há
A questão do índice na arquitetura, da mani- A Bauhaus foi um pouco uma experiência toda a problemática da Deutsche Werkebund25,
festação do trabalho nas artes plásticas é uma desse tipo. Mas, se nós lermos os trabalhinhos que é uma espécie de FIESP daquele tempo.
dimensão sem a qual jamais teremos a presença do Gropius a fundo percebemos que já existia,
do sujeito no espaço, jamais teremos aquilo que mesmo na formação da Bauhaus, a separação Guilherme Wisnik, arquiteto — Lembrando
chamávamos antes de um espaço humano, de entre alguns que deveriam parar no nível do das experiências com tijolo — usados tanto para
um espaço da dimensão do homem. A dimen- artesanato e outros que deveriam continuar no vedos como para as abóbadas — e com painéis
são do homem não é Modulor, não é medida nível dos grandes artistas, numa espécie de hie- pré-fabricados, eu queria que você comentasse
física, não é metro. A dimensão do homem é rarquia disfarçada. E o problema fundamental sobre as escolhas da tecnologia e dos materiais na
toda essa profundidade, essa totalidade do da Alemanha nesse tempo não era a arte, nem construção, e de que maneira elas engendrariam
que ele é. o povo, nem a liberdade, era simplesmente o as relações de exploração do canteiro, particu-
Arquitetura é a arte das artes, a primeira, a úni- fato de que ela tinha sido excluída do mercado larmente o caso do concreto no Brasil. Passado
ca. É a única arte que não pode ser como pintu- mundial. Ela não possuía colônia nenhuma e tanto tempo da publicação, no Brasil, de seus
ra: crítica, de denúncia, triste. Toda arquitetura precisava entrar nesse mercado de uma outra textos sobre arquitetura, e mais tempo ainda em
é boa ou não ou é, ou é positiva ou não é, ou é maneira, e escolheu a qualidade do produto, relação àquele período otimista do desenvolvi-
grandiosa e prometedora ou não é. E, como eu escolheu o refinamento do produto. Passou a men-tismo e da industrialização, você ainda acha
não posso fazer arquitetura, eu me resumo, me ter a linha de produção como uma arma para que existe um horizonte de emancipação possível
volto, me limito à pintura que também é uma vencer os privilégios que a França, os Estados através da industrialização da construção no Bra-
arte muito bonita, mas muito limitada, muito Unidos da América e a Inglaterra tinham com sil de hoje? Em que moldes isso se daria? Ou o
mais pequenininha, muito mais individual, suas colônias, e assim por diante. Por trás da canteiro autônomo e partici-pativo teria que ser
com ressonâncias sociais muito menos graves Bauhaus está uma guerra econômica muito feito nos moldes de uma tentativa de tradução
e importantes. O arquiteto, crente que é livre, forte. É a lógica do capital bem elaborada por histórica daquele canteiro medieval, apontando
é dominado pela lógica do valor. O desenho gente maravilhosa. O Paul Klee, por exemplo, para uma relação mais artesanal da produção?
que ele crê ser livre é um desenho totalmente é um dos pintores que eu mais admiro por essa
determinado pelas mesmas regras de funcio- constante passagem da pintura à teoria da arte. Francisco Barros, estudante de arquitetura — A
namento, como se o desenho dele tivesse que, Quando a Bauhaus foi excluída, muita gente foi minha a pergunta é sobre esse silêncio que a gen-
necessariamente, dominar. Mas esse acordar si- para um lado e muita gente foi para outro. Eu te sente aqui na FAU. Para nós, que ainda estamos
estudando aqui, há um silêncio muito grande a forma? são trazidas e montadas no canteiro. As duas
respeito do senhor e do que aconteceu depois da são manufaturas. A pré-fabricação no canteiro
sua saída da faculdade. E nós, que estamos aqui Eduardo Galli, estudante de arquitetura — Eu não é indústria. A industrialização dos compo-
dentro, vivendo hoje essa falta, não temos mais queria pedir para você discorrer sobre as rela- nentes não tem nada a ver com a industrializa-
notícias. Isso porque as pessoas que nos ensinam ções de trabalho a que um operário está sujeito ção do canteiro, são coisas bastante diferentes.
aqui dentro, salvo raras exceções, não falam sobre num canteiro, como no canteiro do Zezinho Você pode ter produtos os mais sofisticados no
isso. É um tabu. Magalhães26, ou no canteiro do Centre Georges canteiro. E esses produtos mais sofisticados de
Pompidou, ou então, sobre um tipo de arquitetura indústria de ponta entrarão na manufatura
Andréia Yuri Flores Urushima, arquiteta que se desenvolvesse em cima de um sistema dominante, na estrutura dominante.
— Hoje em dia existe uma variedade muito aberto de subvenção.
grande de canteiros, tanto em escala como em Naquele momento, tínhamos duas hipóteses e
organização. Por exemplo, existe uma grande Luiz Imenes, estudante de arquitetura — Você passamos a tentar as duas. Eu fiz duas casinhas
diferença entre a forma do arquiteto lidar com a dedicou boa parte da sua vida a estudar a relações ao mesmo tempo, para dois professores. Uma
reforma do tio e com as grandes obras, que hoje de trabalho no canteiro. Também foi professor para o Bernardo Issler, lá em Cotia, e a outra
em dia chegam a uma complexidade que nem desde que se formou. Eu gostaria que você co- para o Bóris Fausto, aqui na entrada da Cidade
mesmo o arquiteto tem domínio, uma vez que mentasse, não especificamente sobre a sua ex- Universitária27. E tentei uma hipótese numa
as várias obras são baseadas completamente no periência na FAU, mas sobre a atividade de ser casa e uma hipótese na outra: na do Bernardo
instrumento tecnológico do computador. Isto ul- professor, de ensinar, da relação professor - aluno, Issler, a manufatura serial, e na do Bóris Fausto,
trapassa a possibilidade do arquiteto ter domínio de como você vê o ensinar como militância. a manufatura heterogênea. Naquela época, eu
até sobre o desenho. Será que numa sociedade queria saber qual seria o tipo de manufatura
sem a mais-valia, essas construções gigantes e Sergio Ferro — Quando começamos a estudar mais pertinente, mais adaptado, mais empre-
baseadas no instrumento tecnológico não seriam O Capital e sua crítica, começamos a elaborar gado nas condições de produção do Brasil. A
realizadas? Elas não seriam uma forma de experi- a hipótese do que seria a arquitetura como casinha do Bernardo Issler deu muito certo
mentação muito válida de discussão tecnológica, manufatura. O Capital distingue dois tipos de com a tentativa de manufatura serial e tudo
estética, e até mesmo sobre a gestão do canteiro? manufaturas diferentes: uma chamada serial feito, montado no local. No entanto, a casa do
Sistemas desse grau de complexidade não teriam e outra chamada heterogênea. Na serial você Bóris Fausto apresentou muitos problemas. Na-
que ser hierarquizados, organizados de alguma faz quase tudo no canteiro: faz uma camada, e quele tempo as placas pré-moldadas eram uma
depois faz outra, e depois faz outra, e depois faz merda, eu tive muitos problemas com aquelas
outra. E aquilo vai somando, no fim, a casinha plaquinhas, principalmente com as juntas. A
25
A Deuscht Werkebund era uma associação de industriais e
artistas para a renovação das artes aplicadas na Alemanha e está pronta. E na heterogênea você traz peças primeira daquelas boas chuvas paulistanas
foi precursora da Bauhaus. que são feitas em usinas ou em depósitos, que me levou tudo embora. Foi um trauma.
E, a partir de uma experiência eficaz, outra
totalmente negativa, nós continuamos a de-
senvolver mais, evidentemente, a hipótese de
manufatura serial, que ainda hoje me parece a
forma de manufatura mais adaptada às con-
dições mais simples, mais elementares. Acho
que já existe elaboração de pré-fabricados com
outras qualidades que podem permitir uma
maior presença de manufatura heterogênea. A
grande diferença entre a construção no Brasil
e na Europa, na minha perspectiva, é que aqui
a dominante é manufatura serial e, na Europa,
a dominante é a manufatura heterogênea. Os
materiais, evidentemente, se adaptam a uma
e à outra hipótese. Os materiais próprios
para a pré-fabricação, transporte e montagem
não são os mesmos dos que são adaptados à
acumulação no canteiro. Logo, a escolha dos
materiais está muito ligada à hipótese teórica
do desenvolvimento. Não vejo nenhuma neces- 26
Zezinho Magalhães Prado, conjunto habitacional construído
sidade de ficar com a tecnolo-gia simples. Hoje em Guarulhos por iniciativa da CECAP, em 1967. Projetado cialmente econômica, pois o caro numa estrutura é o controle
há progressos em diversos níveis, em diversos por Vilanova Artigas, Fabio Penteado e Paulo Mendes da da tração, que depende de materiais opinados, como o aço.
setores. E seria um escândalo, um absurdo total Rocha para ser construído em sistema pré-fabricado, in- A compressão, ao contrário, pode ser realizada por materiais
dustria incipiente na época, acabou sendo construído de comuns e baratos (...) Além da invenção estrutural, a casa
jogar tudo isso pela janela. forma tradicional e com menos edifícios que o previsto (ver em abóbada instiga uma interpretação simbólica: pode-se
Que se faça uma crítica a certos instrumentos, Sylvia Fischer, “Subsídios para um estudo do Conjunto Zezinho dizer que ela, enquanto superfície côncava que protege seu
sim. Que se faça uma utilização diferente de Magalhães”. TGI, FAU-USP, 1972). morador, é uma expressão do habitat humano primordial, uma
cobertura-abrigo que reproduz uma especialidade cavernosa.
certos elementos de tecnologia, de direção de 27
Projetadas entre 1961-62, ambas partem do mesmo principio Uma gruta reinventada (...) A abóbada é também uma for-
canteiro, de previsão de canteiro, e de logísti- estrutural, a abóbada. Ela permitiria “valorizar o trabalho do ma irmã da oca indígena brasileira, cuja sabedoria estrutural
ca. Mas não devemos abandonar os canteiros operário no canteiro. Erguida facilmente em poucos dias, ela produziu uma cobertura leve e simples que se mantém em
protege os trabalhadores das intempéries, dando condições pé com naturalidade”.(Pedro Fiori Arantes, Arquitetura Nova:
mais complexos, dependendo evidentemente adequadas para que cada um desenvolva melhor seu ofício Sergio Ferro, Flávio Império e Rodrigo Lefèvre, de Artigas aos
da situação. Creio, entretanto, que hoje, no (...) Por trabalhar apenas em compressão, a abóbada é espe- mutirões, S.Paulo: Editora 34, 2002).
Brasil, em se tratando de áreas liberadas deve se deixar abertura para qualquer uma
pelos pobres e sem-terras, provavelmente os das possibilidades. Entretanto, eu sei que a
materiais simples, elementares, serão muitos complexidade e o tamanho de um canteiro
mais fáceis de serem utilizados, muito mais não são obstáculos para uma outra lógica das
disponíveis. Mas isso também depende tanto relações de trabalho.
da situação quanto do contexto. Qualquer hi-
pótese de previsão é difícil. Não creio também O próprio Rodrigo Lefèvre fez um trabalho, o
que nenhuma transformação social possa dizer: Hospital das Clínicas28, com aqueles painéis in-
“Vamos fazer casinha pequenininha ou vamos clinados, que pouca gente sabe que é dele. Uma
fazer só coisa grande. Só grandes e complexos experiência capenga e limitada, como todos nós
ou pequenos”. Detesto brincar de feiticeiro do fizemos. Ele trabalhava com o Maksoud29 nesse
futuro, porque nunca fui capaz de adivinhar período e não podia assinar a planta. Mas o
grande coisa na minha frente. Mas acho que
Rodrigo organizou aquele projeto, que é com- E, sobretudo agora em minha pintura, dizem desse tipo, devem se transformar em pequenas
plicadíssimo, tem trinta redes de líquidos, de que eu faço bundinha de renascença, pezinho maquininhas. Eu estava na França quando ele
fluídos como oxigênio e água. É um processo de maneirice. Eu estou com a impressão que fez aqueles canos do Beaubourg32, que tem pai-
de alta complexidade técnica. Entretanto, ele sou o pregador da volta à pré-história. Mas de néis de tijolos, mas assentados de uma maneira
tentou, e fez o desenho. E, até onde ele pôde jeito nenhum, de maneira alguma. Detesto jogar falsa. Ele tinha modulado precisamente, o tijolo
ir, ele abriu a ordenação do projeto a esse tipo no lixo as coisas, temos que aproveitar toda a devia ter 21,2 centímetros, mas quando chegou
de lógica que nós tentávamos desenvolver. No herança que nós temos, de A a Z, da arquitetura da olaria não estava com a dimensão correta.
entanto, não pôde ir até o canteiro, porque o das cavernas até o Renzo Piano. Entretanto, essa Então ele fez os operários limarem tijolo por
Rodrigo naquela época tinha acabado de sair da tecnologia tem que ser repensada, recolocada, tijolo, para passarem de 22,3 centímetros para
cadeia, e ninguém queria que ele tivesse contato reexaminada. Às vezes, ela está de cabeça para 21,2 centímetros, não permitiu de jeito nenhum
com operário nenhum. Ele era cuidadosamente baixo e você vê o inverso daquilo que ela po- que os tijolos fossem utilizados de outra forma.
fiscalizado. E nos canteiros do Maksoud a coisa deria servir. Qualquer arquiteto um pouco safadinho faria a
era bem dividida, tinha aquela proibição de en- fieira toda e disfarçaria na última, ou colocaria
trada. Evidentemente, os operários não podiam Recentemente eu fiz um estudo sobre o prédio um pouquinho mais ou um pouquinho menos
sair do que estavam fazendo, e esta regra era do Renzo Piano em Tóquio, uma loja para o de argamassa numa fieira só. Ele, na precisão
válida também para os arquitetos. Uma vez que Hermès, que faz lenços caríssimos, é um sellier30 dele, mandou que todos os tijolos fossem lixa-
o plano descia da arquitetura para a gestão de lá de Paris. O prédio é uma lindeza, uma ma- dos. Coisa que o Mies já tinha feito no M.I.T.,
canteiros, os chefes eram outros, e os poderes ravilha: uma torre de blocos de vidros, abso- não exatamente lixando, mas medindo tijolo
eram outros. lutamente perfeita em todos os detalhes. Uma por tijolo e selecionando apenas os que tinham
maravilha. Visitei também o banco de Hong
E, não se esqueçam nunca como aquelas ma- Kong31, que também é outra perfeição tecnoló-
ravilhas como a Catedral de Chartres e vários gica. Parece que um relógio foi aberto e se está
outros edifícios gigantescos, com tecnologia al- olhando aquelas coisinhas lindas de dentro, de 28
Sérgio Ferro se refere ao Edifício dos Ambulatórios do Hos-
tamente complicada, e estruturas refina-díssima tão perfeito que é. E, nesses dois casos, a tecno- pital das Clínicas, projeto realizado em 1975 sob coordenação
de Rodrigo Lefèvre na Hidroservice.
foram feitos. É o tipo de estrutura produtiva logia foi levada ao máximo das possibilidades,
que o Marx chama de cooperação simples, não perfeita. Não há grandes fantasias de formas, 29
Henri Maksoud, proprietário da Hidroservice, na qual Rodrigo
Lefèvre trabalha de 1972 a 1984. Neste mesmo ano morre
é o que pretendemos fazer, mas era um tipo são absolutamente racionais. Nesse caso de Rodrigo, vítima de um acidente automobilístico fatal em
autônomo de organização da produção, muito maior tecnologia, simplesmente todo o saber Guiné-Bissau, onde elaborava um projeto de ampliação dos
mais livre, com condições de igualdade. foi para cima, para a mão do arquiteto, e todo serviços de saúde daquele país.
No entanto, eu sempre fui acusado de arquiteto o fazer ficou completamente automatizado. 30
Joalheiro.
de tijolo e areia, retrógrado, contra o desenho. Os operários do Piano, e de outros arquitetos
medida centimetrada.

Isto é um caso caricato, a tecnologia na arqui-


tetura não pode ser desprezada, mas desde que
não seja utilizada para mais um massacre. Você
é obrigado a se transformar naquela força de
trabalho abstrata que não tem mais uma gota
de sangue para realizar aquela aplicação pre-
cisa do seu próprio desaparecimento na obra
do outro. Esses arquitetos high-tech, que são
fabulosos de certa maneira, são terrivelmente
enganosos nesse sentido; eles parecem respeitar
a técnica, mas em tudo aquilo que a técnica tem
de desumano, de desconsideração ao trabalho,
exigindo uma precisão absolutamente mecâni-
ca e voltada contra as possibilidades do traba-
lho, contra a humanidade que constrói. Não é à
toa que eles se transformam, por exemplo, em
arquitetos de museu, em arquitetos de Hermès,
duas casas de tesouros.
A arte hoje se transforma numa safadeza em
que o quadro, a obra de arte, mesmo quando
feita nas melhores condições, se transforma em

31
Hong Kong and Shanghai Bank, em Hong Kong, China.
Norman Foster, 1979.

32
Museu Nacional de Arte Moderna (Centre George Pompi-
dou), Paris, França.
tesouro, em reserva de dinheiro. O proprietário com outro sentido. Um prédio como o do Piano imaginar isso de jeito nenhum. Continuo nesta
ou colecionador compra, bota na sala de jan- em Tóquio poderia perfeitamente ser feito em luta até hoje e vou continuar. Está difícil, por
tar e guarda lá. Quando o banco reclamar outras condições de projeto, mesmo que essa enquanto. Eu ainda estou vivo, falo de vez em
uma dívida que ele não pode pagar, vende o precisão matemática desaparecesse e ele fosse quando, mas daqui a um pouquinho já estou no
quadro e paga. Uma reserva de dinheiro que um pouco diferente. canto da página, caio da página e isso some. Não
só funciona assim. É o mercado de arte hoje em O silêncio? Eu não acho nada estranho que tenho nem dúvida disso. Além do mais, eu me
dia. O Beaubourg guarda alguns tesouros e o não falem de mim e que me escamoteiem. coloquei numa posição quase suicida fazendo
Hermès guarda outros tesouros. E o curioso Desde quando começamos a falar disso, aos essa crítica ao canteiro e tendo a oportunidade
é que o Hermès, que é um sellier de luxo, dos 20 e poucos anos, é assim. Não é do agrado de de fazer só algumas experiências.
mais refinados, dos mais caros, age exatamente nenhum arquiteto ouvir que ele colabora para
como o Renzo Piano. Ele vem aqui na Floresta a exploração do operariado, daquele mesmo Graças à organização do canteiro, à aplicação
Amazônica e no Peru para ver como os índios operariado que ele está tentando defender da manufatura, junto com os operários, a partir
trabalham com a borracha, conhecer aquelas ao pensar em casa popular, escolas, creches. do saber deles, nas experiências, obtínhamos
técnicas com a palha. Mandam técnicos de É muito difícil aceitar a acusação de ser cola- grandes economias, uma fabulosa economia, de
alto nível científico estudar, trabalhar e se fan- borador da exploração daqueles mesmos que 25 e 30%. Mas só em uma delas eu pude reverter
tasiarem de índio durante uma semana. Pegam eles querem defender, é muito angustiante, essa economia em salários para os operários.
tudo, voltam para casa: é tecnologia popular muito triste, muito pesado. Sobretudo porque Nessa obra eu era o arquiteto, o chefe de cantei-
sofisticadíssima sendo reutilizada. Tecnologia a participação dos arquitetos no processo de ro, o empregador, o comprador de material, era
popular se transformando exatamente no in- exploração é totalmente inconsciente. Não se tudo. Mas em todas as outras, não deu. Chegou
verso, em altíssimo luxo. fala disso, ninguém fala disso. numa situação absurda, totalmente absurda. Eu
estava, de uma certa maneira, fazendo o inverso
Esta questão da tecnologia, como tudo, aliás, Não há nenhum curso de economia política na do que queria, aperfeiçoando a exploração do
tem uma extrema ambigüidade. Jamais se deve escola de arquitetura. Ninguém analisa o can- próprio operariado. Era muito ambíguo. Não
abandonar a conquista da razão, do saber, do teiro em termos das relações de produção. Um dava para continuar, a não ser criando canteiros
pensamento humano, que são fundamentais. silêncio absoluto, total. Todo mundo formado de experiência na universidade, mas isso não
Mas, cada um desses saberes, como foram nesse silêncio, e de repente ouve falar disso. aconteceu.
criados para o capital e pelo capital, para a Logo, somos chatos, grosseiros, mal-educados.
exploração, trazem sempre algo perigoso, Arquiteto é gente fina, desenha... De repente, Criar centros de experimentação e arquitetura
traiçoeiro e escorregadio escondido dentro dizer que ele é parte de um sistema de explo- realmente é uma obrigação, um dever, uma
do bolso. É preciso, então, em cada caso, fazer ração dos mais vergonhosos... Então eu não opção grandiosa. Acabamos de criar um na
a análise, a crítica, o detalhe, e a reutilização acho estranho que os arquitetos não consigam França há alguns anos. O ministério deixou
fazer este centro, um centro experimental de material, seu nível de história... Alguém que espírito, vida do conceito é a essência, o sangue,
arquitetura, mas que se transformou em algo conhece as relações entre os dois e que sabe o núcleo, o cerne da arte. Uma coisa das mais
curioso: os que experimentam fazem papagaio, porque está fazendo. sofisticadas. Vai lá na Maria Antônia, que agora
fazem bicicleta, mas arquitetura experimental é o prédio da filosofia, pede para o Ruy Fausto,
de jeito nenhum. Então eu parei a minha pro- Se vocês gostarem de brincar de filosofia, pe- o Bentinho34 falar do conceito do Hegel e vocês
dução. Há 30 anos, mais ou menos, que eu guem, por exemplo, o que o Hegel diz no fim vão ver o vocabulário que eles são obrigados a
fechei a torneira, moralmente incapacitado, da Lógica33 sobre o conceito, o que é o conceito, torcer, suar, para traduzir aquilo em palavras,
moralmente proibido de continuar fazendo sobretudo o que é a idéia. Idéia é aquela coisa em frases. E, nós fazemos isso tudo na prática,
arquitetura nessas condições. Só me autorizei espiritual, profunda, que não só está aqui, na todos os dias.
a fazer um pouco de arquitetura em condições minha cabeça, mas está ali, na realidade. E a
experimentais. As experiências eram raríssimas idéia é exatamente a identidade da diferença Os matemáticos têm a maior dificuldade de
na França. Nunca consegui nenhuma, só pe- entre a idéia daqui, da cabeça, e a idéia no somar elefantes com bananas, eles dizem que
quenininhas. Eu me tornei um suicida do métier mundo. E o que é a arte senão exatamente não pode. Qualquer pintor consegue equilibrar
e o métier me trata como morto. isso? Você, através do seu trabalho, conseguir o tom vermelho carmim com mulher, com pas-
revelar, expor, acordar a idéia no mundo. E essa sarinho ou com mais um rasgo na tela. A cabeça
Popularmente o pintor é um sujeito meio sujo, idéia no mundo não é nada mais do que você do artista é totalmente heterotópica. A gente
bebe de noite, não dorme, acorda de manhã no mundo, você coletivo, você sociedade. Você consegue resumir, reunir universos totalmente
com ressaca, pinta assim. É um marginal. E não no mundo que se acorda e se vê. O Hegel faz díspares, separados em gavetinhas nas nossas
sabe nem falar, só sabe pintar. O De Kooning, uma ginástica mirabolante, usa um vocabulá- universidades, no nosso saber. Tudo isso é a
que é um dos maiores pintores do século XX, rio terrível, horroroso, para conseguir falar do riqueza extraordinária e imensa da arquite-
foi proibido pela filha de falar nos jornais. Não conceito. E torce o vocabulário. Faz frases que tura, que deveria ser a maior das profissões
que ele fale besteira, ao contrário; ele disse que você lê e você acha que não tem pé nem cabeça. e não é.
os quadros dele eram muito caros e a filha ficou 38 vezes a palavra “se”, a palavra “para”. Tanto
p. da vida, abriu um processo que obrigou ele que é raramente lido até o fim. O Kant35 não podia admitir que a arte era tra-
a calar a boca. balho, não podia ser trabalho. Trabalho é coisa
Em arte, entretanto, isto é a coisa mais evidente de gente baixa, de gente que fica na cozinha.
Não há atividade intelectual mais exigente, para você fazer. Você faz com a mão, a ternura Arte é outra coisa, é coisa de gênio. Mas se arte
profunda, rigorosa do que a atividade artística. do fazer. Tudo daquilo que está aqui, passa é coisa de gênio, eu posso explicar. Se eu não
Volto ao começo. Arte é trabalho, arte é trans- imediatamente para lá. E lá você se vê. E, você posso explicar a arte pelo trabalho, não dá para
formar matéria com o próprio saber. Ela parte se vendo lá, lá já é outro porque você já se viu
do pressuposto de alguém que conhece aquele lá. E volta a fazer. Essa vida da idéia, vida do 33
A ciência da Lógica, publicada pela primeira vez em 1812.
setor produtivo, conhece as possibilidades do
explicar; então tem que explicar a arte por nada. entusiasmo. Você não quer parar, diabo, está
A invenção do gênio dele é curiosa. Gênio é um tão bom fazer aquilo que você vai em frente,
ser extraordinário, iluminado, parece que rece- continua um pouquinho mais. Depois você
beu uma pancada divina na nuca e cospe a alma quer que o outro veja direitinho como sabe
divina, mas ele não sabe o porquê. Ele é um fazer bem. Então você didatiza, exagera um
cano de água, entra por aqui e sai por lá. Isto é pouquinho para ficar mais explícito. Isso em
o gênio. Esse mito do gênio inspirado, cheio de qualquer trabalho pode ser feito. Isso é arte,
fusões, entrou na nossa tradição filosófica e foi esse trabalho livre que o sujeito faz com total
aproveitadíssimo por toda a tradição românti- autonomia, com total liberdade. Essa liberdade
ca. O maior telefone direto com Deus, para os canta com ela mesma e vira um ornamento,
românticos, é o artista. E isso continua até hoje: aquela coisa totalmente proibida pelo Loos,
depois do Van Gogh, Picasso, Andy Warholl, to- pelos bons arquitetos. Exatamente esse canto
dos continuaram desesperados mantendo esse operário do trabalho que não pode ser aceito.
mito do artista, que é excelente para o mercado. Tudo isso é saber, tudo isso é palavra, tudo
Isso rende à beça. Cada pancada divina dessas isso é ensino.
se transforma em milhões de dólares. O Walter Benjamin36 dizia que todo bom ro-
mance e toda obra de arte devem ensinar a
E a arte é simplesmente uma das dimensões fazer outra. Não há um artista que não seja
do trabalho livre, não é nada mais do que isso. imediatamente, de uma maneira ou de outra,
A arte é a dimensão fundamental do trabalho professor ou pesquisador, ou qualquer coisa
livre. É aquele momento em que você faz uma desse tipo. Não obrigatoriamente se tem um
pintura, tudo certinho. E você começa a ficar contrato com a FAU, mas se é professor nos vá-
contente consigo mesmo, começa a cantar e as- rios sentidos. Cada canteiro de obra livre é uma
sobiar. Aí você dá aquela última coisinha assim, universidade. Eu não sei se respondi tudo.
até um pouco a mais do puramente necessário,
um pouco além do exatamente preciso. E é isso Beatriz Tone, estudante de arquitetura — Como 34
Ruy Fausto e Bento Prado Jr., participantes do grupo de
que a história da arte conhecia antigamente você falou, os problemas e os fatos de que esta- leitura e discussão do Capital conhecido como Seminário
Marx, formado na década de 60, do qual Sergio Ferro irá
com o nome de ornamento. Simplesmente esse mos tratando aqui, estão presentes no mundo também participar.
pequeno gesto a mais, essa pequena escapadela todo. Você que dá aula na França e deve ter
além do puro gesto técnico, mas que nada mais conhecimento de outras faculdades: eu queria 35
Immanuel Kant (1724-1804), filósofo alemão.
é do que essa pequena alegria, esse rir, esse saber a quantas andam essas discussões entre
os estudantes, os trabalhadores. outro mundo, é necessário também pensar um comentasse esse tipo de canteiro no viés do
outro espaço? mercado capitalista de produção civil, principal-
Mariana Fix, arquiteta — Você já passou por mente no que se refere à intervenção do Estado,
questões fundamentais, eu queria só colocar mais Andrei de Almeida, estudante de arquitetura— porque ele não seria realizado sem essa interven-
uma. Estive recentemente em uma avaliação so- Eu tenho duas perguntas: uma era sobre esses ção. Queria perguntar também se existe alguma
bre o II Fórum Social Mundial na qual estiveram espaços de experimentação de utopias para a vontade de algum dia voltar ao Brasil.
estudantes que participaram do acampamento produção através da matéria disponível que vem
da juventude. Dali surgiu uma crítica sobre a de outros espaços. Ou seja, no caso do MST, pen- Reginaldo Ronconi, professor da FAU-USP
organização formal do Fórum, que foi realizado sando no canteiro experimental, inovador, qual —
no prédio da PUC em Porto Alegre, campus com era a possibilidade de criar esse espaço de utopia Em primeiro lugar, queria te convidar, não sei
boa infra-estrutura, com boas salas, com escada dentro de uma sociedade capitalista? Por mais até quando você fica aqui, a conhecer o nosso
rolante, auditórios, telões, enfim, com toda a que você diga que vai ser capenga, que vai ser canteiro experimental. Há cinco anos a gente
parafernália, mas organizado nos moldes de um sempre um pouco capenga, quais são as vanta- vem trabalhando aqui para construir um vetor.
shopping center, segundo eles. Questionou-se gens desse avanço? É pequenininho, é fraco ainda na escola, mas é
como a própria organização do espaço e da for- um vetor para discutir a formação do arquiteto
ma faziam com que as atividades acontecessem A outra questão é sobre o artista obrigatori- com o ponto de vista muito parecido com os quais
de maneira formal, e todos os outros problemas amente ser professor, como pensar justamente você tem discutido conosco aqui e tem discutido
que decorriam disso. Contrapunha-se a isso o na função do professor, na relação dele com o todos esses anos através dos seus textos.
acampamento da juventude: mesmo reconhe- aluno, à luz desses estudos sobre a relação de
cendo toda a sua precariedade, o acampamento trabalho? Como isto está a favor ou contra a do- Só para fundamentar o que eu quero colocar,
experimentava a proposta, tenha ela se realizado minação do sujeito que aprende? No caso, como a gente tem essa esquizofrênica posição do ar-
ou não, de viver agora o que será uma trans- o professor que ensina para o aluno e também quiteto que vai para o canteiro quase como um
formação. Então, peço para você comentar essa o arquiteto que ensina para o pedreiro e para os representante do capital, que está produzindo o
avaliação sobre o Fórum: se for para pensar um outros trabalhadores do canteiro de obras. próprio canteiro. Muitas vezes se esquece que é
empregado do próprio capital e trata a mão-de-
Luís Florence, estudante de arquitetura — obra como seus próprios empregados, no pior
36
Walter Benjamin (1892-1940), filósofo de estética alemão, Esteve aqui, há algum tempo atrás, o arquiteto sentido do termo. Mas também vive uma outra
pertenceu à primeira geração da Escola de Frankfurt, foi um Lelé. Ele criou esse canteiro de obras junto com dimensão esquizofrênica. Se a gente perguntasse
dos pioneiros no estudo crítico das técnicas de reprodução
em massa da obra de arte. Autor de Via de mão única, de vários técnicos, que, como ele mesmo diz, com- para os estudantes que estão fazendo um estágio
1928, A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, plementam o trabalho dele na parte tecnológica, hoje, ou para os colegas, quem está trabalhando
de 1936. na parte da gestão do trabalho. Queria que você hoje, acho que muitos levantariam a mão. É quase
um risco fazer essa pergunta. Mas a gente poderia só deu o financiamento necessário quando se
terminar com outra, perguntando quem tem a sua Pedro Arantes, arquiteto — Queria saber do esvaziou totalmente o programa e o sentido
atividade profissional legalmente regulamentada. Sérgio o que seria a transposição da sua crítica da experimentação, e olha que é ministério de
E aí, acho que muitas mãos se abaixariam. É uma do canteiro para a cidade. Se nós estamos aqui esquerda, socialista. Então, a experimentação
hipocrisia o que um arquiteto impinge a outro ar- pensando em outras relações de trabalho no virou experimentação bobinha, de fazer papa-
quiteto, com todas as desculpas e problemas que canteiro e a cidade é mais que uma soma de gaio, bicicleta, esqui, um negócio que não tem
todos enfrentamos da legislação trabalhista. Esse canteiros, o que seria a democratização da gestão nem pé, nem cabeça; aí sim eles aprovaram.
arquiteto é então um ser que vive numa tensão e do uso na cidade? Mas, quando escrevi o programa, para que ex-
brutal para poder se colocar como aquele liber- periências sobre relações de produção pudes-
tador, aquele humanista que pretende projetos Sergio Ferro — De vez em quando, eu recebo sem ser feitas, eles ficaram rodando, rodando,
interessantes. Na escola esse pequeno vetorzi- alguns alunos de arquitetura que querem fazer rodando, até que esse programa foi posto de
nho propõe uma mudança, uma transformação doutorado lá na Europa, em algumas matérias lado e transformado em outra coisa. O capital
no caráter da formação desse arquiteto para que muito específicas, sobre o canteiro, por exem- é tão forte, talvez até mais lá fora do que aqui.
ele possa conviver com espaços que não são ainda plo. Eu geralmente desaconselho. O ensino de Lá tem muito menos buraco no capital, o sis-
admitidos legalmente nesse mercado. arquitetura no Brasil, apesar de tudo, é bom e teminha está bem azeitado.
vocês não imaginam como o ensino lá fora às
O MST e o Movimento dos Sem-Teto se con- vezes é capenguíssimo, horrível. Não há como
figuram como um dos agentes desse espaço. A mitificar o que é feito lá fora. Me perguntaram
gente pôde observar na primeira gestão do PT sobre a questão do canteiro lá. Uma revista
nessa cidade surgirem em torno de 21 escri- francesa publicou uma espécie de abecedário
tórios sem fins lucrativos que trabalhavam com de termos de arquitetura, ensino, etc., na Fran-
esse novo arquiteto. O sonho que realmente a ça. Tem todos os termos bonitinhos, vai de A a
gente pôde constituir. Na verdade, a direção do Z e quando chega no “C” de chantier — canteiro
trabalho e do canteiro presume que ele seja uma de obra - a notícia é bem pequenininha e diz o
ferramenta importante para essa transformação. seguinte: “só em Grenoble, no curso de Sérgio
Assim como algo que organize o ensino, um Ferro fala-se em canteiro”. Aí, eles passam para
deslocamento para o canteiro, sem desmerecer outra palavra.
nem o projeto, nem a construção. Dentro desse Não pensem que lá fora é diferente daqui não.
panorama, como você pode compartilhar com Você falou que está fazendo um centro expe-
a gente a experiência do canteiro e como isso rimental aqui. Nós tentamos fazer um centro
contribui nesse novo desenho do arquiteto. experimental lá, bastante grande. O ministério
a maior admiração. Cabe muito mais a vocês
nos instruir, falar para nós. Mas acompanho,
vejo a arquitetura que foi feita nesse sentido,
são realmente obras muito bonitas, algumas
com êxito outras não, mas todas grandes ex-
periências. Então, em relação a isso, sou eu
que peço para poder vir um dia escutar uma
palestra nesse sentido.

Sobre a relação de ensino e dominação, há um


excelente texto do Foucault. Ele é terrível. Basta
estar com o microfone na mão, de uma maneira
direta ou indireta, que há uma relação de domi-
nação implícita. Eu ainda sou simpati-quinho,
de esquerda, posso enganar um pouco, mas
isso pode reverter totalmente em outro sentido.
mesmos guetos estão começando aparecer em Nós estudávamos isso, em 68. Mas hoje desa-
Acho que as oportunidades existem aqui hoje Nova York, na França, etc. E não há, mesmo que pareceu a moda. A gente brigava para mudar:
em dia, com esses bolsões, com essas áreas, com de longe, algo que possa ser comparado com o o professor dava aula lá e o aluno ficava aqui.
o MST, com o movimento dos sem-teto, por movimento do MST ou dos sem-teto no Brasil. Nós trocávamos as mesas de lugar, embaralhá-
exemplo. Há possibilidades de experimentação Neste sentido, acho que o Brasil é que está na vamos as cadeiras para conseguir cortar exa-
no Brasil que eu acho maiores do que as de lá. frente. Essas possibilidades de experimenta- tamente essas manifestações sutis, mas muito
O métier de arquiteto e o trabalho de arquite- ção, de criação, essa maleabili-dade das zonas poderosas de dominação, que estão sempre
tura estão horrivelmente estabelecidos, exigem marginais pode ser utilizada, já que ninguém implícitas no ensino. No entanto, não há como
essas qualificações de que você falou ainda há se interessa por elas. abolir o ensino. É preciso que a herança cultural
pouco. Essa regulamentação é tão exigente e
precisa que o campo está extremamente limi- Eu não participei dessas experiências dentro 37
Luiza Erundina foi prefeita de São Paulo entre os anos 1989
tado. Começam a aparecer campos de miséria do governo da Erundina, da Maricato37. Foram
e 1992, período no qual Ermínia Maricato foi secretária da
na Europa também, os sem-teto começam a feitas coisas lindas, lindíssimas aqui no Brasil. Habitação. Esta foi a primeira gestão do Partido dos Traba-
aparecer na França. A miséria está começan- Se eu não falo disso é simplesmente porque eu lhadores (PT) na cidade de São Paulo.
do a ficar mais escandalosa atualmente. Os não participei, não conheci de perto, mas tenho
se transmita de geração em geração. Pode e tar tais problemas. É de uma beleza enorme. besteira na frente de aluno, está na hora de
deve ser feito através de relações mais claras Os pré-moldados que ele faz em Salvador têm parar. Colaborar sim, aqui, ali, discutir, fazer
e abertas possíveis, e as formas universitárias também, ao mesmo tempo, uma habilidade seminários e coisas desse tipo, mas manter
de relação não são as mais claras. Não estou técnica muito grande, e uma capacidade de uma presença maior é impossível, estou bem
criticando a FAU, nem as outras escolas, mas apreensão imediata pelo próprio trabalhador. velhinho e cansadinho para isso.
a Universidade em geral. O professor sentado É uma tecnologia simples, mas tudo isso in-
em cima da sua tese de doutorado, grande felizmente tem curta duração. Agora o Lelé é Sobre as cidades, vocês não devem fazer per-
autoridade jogando palavras. um arquiteto que está ganhando prêmios por gunta sobre isso coisa nenhuma. O trabalho
aí, mas boa parte das obras dele vai ser posta do Pedro Arantes é uma resposta muito mais
Em tudo isso implicitamente há uma mani- de escanteio, pouco a pouco. bonita que qualquer resposta que eu possa dar
pulação, uma dominação com a qual é preciso aqui, a arquitetura que sai do canteiro e vai ao
ser muito cuidadoso. Essas são coisas perigo- Na Bahia, por exemplo, fiquei tristíssimo, aque- espaço urbano. Hoje em dia, vocês têm coisas
síssimas porque somos formados assim, temos les belíssimos abrigos de ônibus estão sendo sendo estudadas, de uma fertilidade muito
a tendência a reproduzir isso depois, mesmo no substituídos agora por mobiliário francês, de maior do que as pequenas experiências que
canteiro de obra. A coisa mais difícil é a escuta aço inoxidável, high-tech. Tenho o maior res- foram feitas lá na Europa. É evidente que o
no canteiro de obra, porque a palavra vem difí- peito pelo Lelé. Quando eu era estudante de arquiteto não pode ficar no canteiro de obras.
cil, atrapalhada. Dá uma vontade doida de pôr arquitetura, um dos prédios mais bonitos que Ele deve sair na cidade, ocupar a cidade. Mas
a palavra na boca do outro e escutar o discurso eu vi foi a faculdade de arquitetura de Brasília. talvez, são vocês aqui que estão tendo algumas
que a gente quer ouvir. Repito, em 68 havia Um prédio que não era de arquiteto, era do experiências muito mais interessantes, no caso
muita literatura, muito estudo sobre a forma Lelé. Foi fabricado de modo muito simples, do MST, e outras.
da mesa, do seminário. Mas com a recuada todo aberto. Brasília era nova ainda. O prédio
enorme em termos de esperança social tudo não tinha nem janela, nem nada. A gente dava Outra pergunta feita sobre a anarquia urbana,
isso desapareceu e hoje está praticamente nas aula e via as plantas. Uma liberdade incrível. É que é um termo que custo a aceitar. O que ve-
gavetas, nas prateleiras mais empoeiradas das realmente um dos prédios mais simples e mais mos no canteiro de obras é a irracionalidade,
nossas bibliotecas. bonitos que eu já vi até hoje. Naquele momen- anarquia, bagunça, que são voluntariamente
O Lelé... Eu adoro o Lelé. É um arquiteto de to a gente estava largando brasa no governo, introduzidas. Parte do curso de alguns profes-
primeira e sobretudo um dos mais generosos então o clima também era muito bom. sores na França é sobre como criar conflitos no
arquitetos brasileiros. O trabalho que ele fez canteiro, desordem, bagunça. A anarquia que
em Salvador, na Bahia, com o esgoto, com equi- Em relação ao Brasil, eu vou ficar neste ping- vemos nos canteiros não é tão anárquica assim,
pamento público, tudo isso é uma maravilha. pong. Eu estou me aposentando, eu preciso. é bem planejadinha, mesmo quando você vê
Poucos arquitetos tiveram coragem de enfren- Nesse ano vai fazer quarenta anos que eu digo cidades, zoneamentos, zonas recuperadas,
zonas em decadência. Eu acho difícil pensar no trabalho, volta cansado para sua casa. Assim,
que os nossos grandes planejadores urbanos, você não faz reunião sindical, não vai pensar
como Bruno Zevi, não saibam o que estão fa- besteiras. Nada disso é acaso. Evidentemente há
zendo e não tenham consciência direitinho de um pouco de anarquia, um pouco. Isso também
onde se deve introduzir uma avenida reta com aparece muito na Lógica do Hegel: tudo que a
aparência de ordem e onde se deve deixar a gente vê como acaso, acontecimento, surpresa,
coisa ir para o brejo. A anarquia urbana: tenho milagre, olhando com um pouco mais de dis-
a impressão que está bem planejada e tem muita tância, é de uma raciona-lidade, de uma lógica
conseqüência excelente. perfeita. Os trabalhadores não devem ter casa e
devem morar mal, nas piores zonas. Se não for
Para voltar e fechar com Brasília, eu me lembro assim, o salário dele tem que aumentar, isso é
que ainda na construção, já existiam as cidades evidente. É assim, é planejado, é lógico.
satélites. Era um faroeste, uma zona, lama. Ti-
nha botequim, puteiro, cabaré, luz vermelhas. Eu agradeço imensamente a vocês e repito: foi
Aquilo tudo era uma mistura. Era uma beleza, a primeira vez que eu subi aqui, nesse andar,
faroeste desses filmes de Sérgio Leone38. Essa desde aquele tempo. Eu dava tanta aula há
bagunça era útil. Juscelino morava pertinho, e trinta e tantos anos, e agora o contato com vo-
de vez em quando passava por lá, sorria, dava cês de novo aqui, aonde todas as teoriazinhas
um abração, um carinho. Tinha que inaugurar nasceram...Voltar aqui e discutir sobre elas,
em 1960. Inaugurou. Arrasaram as cidades sa- mesmo trinta e tantos anos depois, é absoluta-
télites. Todo mundo foi parar a mais de 50 qui- mente reconfortante e comovente. Eu agradeço
lômetros de distância. Acabou essa farra. Você a vocês muito, muito mesmo.
vai para longe, pega o ônibus, chega cansado

38
Sergio Leone, cineasta italiano.
Executado pelas mãos de :

Introdução Programação visual e diagramação


Ariane Stolfi Daniela • Gomes Rezende • Tatiana Ariane Stolfi • João C. Amaral Yamamoto
Morita Nobre Fotolito
Transcrição e revisão FAU USP
Daniela Gomes Rezende • Denise Invamoto • Impressão
Luciana Ceron Tatiana Morita Nobre Gráfica FAU USP
Notas e revisão final Colaboradores
Daniela Gomes Rezende • Tatiana Morita No- Eduardo Galli • GFAU • LAB HAB GFAU •
bre Rodrigo Vicino
Pesquisa iconográfica
Ariane Stolfi • Daniela Gomes Rezende • Diego
Beja • João C. Amaral Yamamoto • Luis Felipe
Chammas Agradecimentos especiais à Sérgio Ferro, que
nos cedeu os direitos da publicação, ao cineasta
Imagens em vídeo Wladimir Carvalho, pelo uso das imagens do
Silvio Cordeiro filme “Conterrâneos Velhos de Guerra” e para o
Capa arquiteto Pedro Fiori Arantes pela colaboração e
Ariane Stolfi • Daniela Gomes Rezende • João incentivo durante todo o processo de publicação
C. Amaral Yamamoto • Silvio Cordeiro deste testemunho.

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