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OS FILHOS DA LEI*

Gizlene Neder e
Gisálio Cerqueira Filho

Este artigo enfoca a história das idéias jurídi- da discussão sobre o casamento civil, que acompa-
cas, tendo como referência a questão do poder e nhou o processo de secularização e modernização
da disciplina sobre a família, instituição-chave no em Portugal e no Brasil. Tal questão parece ter se
leque das práticas de controle e disciplinamento constituído na pedra de toque da resistência con-
social, na passagem à modernidade. Analisamos servadora que dificultou e atrasou as reformas.
principalmente o ideário político (e jurídico) erigi-
do em torno dos acalorados debates ocorridos
Centro e periferia: a circulação de
desde fins do século XVIII em Portugal e na
idéias
conjuntura de emancipação política no Brasil
(1822), quando se alardeou a intenção de instituir Estamos particularmente interessados em
um código criminal e outro civil modernos. mapear as situações de apropriação cultural vis-à-
O trabalho contempla duas ordens de ques- vis a identificação do percurso do iluminismo
tão. Num primeiro plano, situa o processo de jurídico, que propõe reformas nos códigos legais
circulação das idéias iluministas no campo do desde fins do século XVIII. As propostas dos
Direito, tendo em vista a relação centro/periferia reformadores implicaram uma luta ideológica que
no que se refere aos lugares de produção destas envolveu diferentes campos de força política.
idéias. Em segundo lugar, enfoca o pátrio poder e Trabalhamos a relação do pensamento e da
a situação da mulher e dos filhos-família, ao lado cultura jurídica luso-brasileiros com os centros de
produção de idéias europeus mais significativos
* Este artigo insere-se em projeto integrado de pesquisa em fins do século XVIII (Itália, França e Holanda 1
intitulado Poder, Idéias Jurídicas e Autoridade na Famí-
lia: História, Direito e Ideologia em Portugal e no Brasil,
— a Europa apresenta, então, uma dinâmica histó-
patrocinado pelo Conselho Nacional de Desenvolvi- rico-ideológica policêntrica), levando em conta a
mento Científico e Tecnológico (CNPq). Para o desen- existência, na época, de um vasto processo de
volvimento da pesquisa contamos também com Bolsa circulação de idéias que acompanhou a circulação
de Investigação da Biblioteca Nacional de Lisboa/Fun-
dação Luso-Brasileira para o Desenvolvimento do Mun- de pessoas, mercadorias etc. não somente no
do de Língua Portuguesa. território europeu, mas também em seus prolonga-

RBCS Vol. 16 no 45 fevereiro/2001


o
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mentos ultramarinos. De modo que a origem das quanto pelos brasileiros, formados em Coimbra.
idéias (ou seja, o lugar das idéias), a autenticidade Afinal, foi a formação coimbrense que embasou a
e o mimetismo (em Portugal e no Brasil) são temas primeira geração de homens públicos que assumiu
que definem a pauta desta discussão. a direção política da sociedade brasileira a partir da
Tanto em Portugal quanto no Brasil, o ímpeto emancipação política. Da França, os ventos da
reformador que acompanhou a passagem à mo- modernidade sopraram anunciando as reformas
dernidade estabeleceu um diálogo com as princi- sobretudo do código civil. Residia neste ponto o
pais correntes de pensamento no resto da Europa. grande pólo de resistência política, ideológica e
A introdução do paradigma legalista, que toma o afetiva às mudanças entre os juristas luso-brasilei-
primado da lei como eixo da articulação do campo ros, uma vez que a nova concepção de direito de
político e ideológico, anunciava, na virada do família, erigida no bojo do processo revolucionário
século XVIII para o XIX, a necessidade de adotar francês, implicava uma visão secularizada do casa-
códigos criminal e civil modernos, o que significa- mento, admitindo-se o divórcio. O código civil
va ir muito além da mera introdução de princípios francês (de 1804, mais conhecido como Código
constitucionalistas que visassem à limitação dos Napoleônico) esteve, ao longo de todo o século
poderes absolutistas das monarquias européias e XIX, no centro da polarização ideológica que
relacionava-se ao processo de secularização em dividiu, apaixonadamente, o universo político dos
curso. Nos dois países, encontramos a defesa da juristas.
necessidade da reforma na codificação. No Brasil, o movimento pela independência
Em Portugal, observa-se uma movimentação que culminou com a emancipação política em 1822
expressiva que partiu, num primeiro momento, da evocou igualmente a necessidade de se fazer um
própria monarquia. No reinado de D. Maria I, na código civil e outro criminal para a jovem nação
esteira da reforma pombalina do ensino jurídico emergente. Em 1830 foi aprovado o Código Crimi-
(1772) que propiciou a formação intelectual ilumi- nal. Uma leitura atenta deste código revela uma
nista, foram encomendados dois projetos de códi- presença forte do projeto de código criminal enco-
gos ao jurista Pascoal José de Mello Freire: um de mendado à Pascoal José de Mello Freire em fins do
direito público e outro de direito criminal. 2 O século XVIII, ao lado das idéias do iluminismo
jurisconsulto coimbrense preparou, ainda em fins penal inspirado em Beccaria e Bentham (Neder,
do século XVIII, um terceiro projeto de reforma, do 2000). Quanto ao código civil, o país esperou
Regimento do Santo Ofício, desta vez sob a en- quase um século mais. Somente em 1916 foi
comenda do arcebispo inquisidor-geral. 3 Nenhum aprovado o Código Civil Brasileiro, tendo as Orde-
dos projetos redigidos por Pascoal de Mello Freire nações Filipinas (de 1603) vigorado para o direito
foi aprovado. Portugal só veio a ter uma nova de família até esta data — portanto, 94 anos após
codificação criminal e civil em meados do século a emancipação política (1822) e 27 anos após a
XIX (1852 e 1867, respectivamente). proclamação da República (1889). Assim, estamos
Leitora de Bentham e Voltaire, dentre outros, diante de uma situação histórica em que ruptura
a intelectualidade portuguesa mostrou preocupa- (emancipação política, elaboração de novo código
ções com a reforma política e jurídica do império criminal, mudança de regime político de monar-
luso-brasileiro. No escopo teórico mais geral do quia para república etc.) e continuidade (perma-
Iluminismo, os juristas convergiam no cuidado nência das Ordenações para o direito de família
com as referências a autores e livros. Aderiram além de sua vigência em Portugal) alternam-se de
superficialmente ao ímpeto reformador do centro forma pendular. A relação centro/periferia adquire
hegemônico do pensamento europeu que, na Itá- uma complexidade ímpar, de acordo com o prisma
lia e na Holanda com Beccaria, Grocius e Puffen- enfocado. Onde o centro: Itália, Holanda ou Portu-
dorf, abria caminho para a reforma do código gal?
criminal. Sobretudo os dois últimos autores foram Grosso modo, tomamos como referência as
muito referidos, tanto pelos juristas portugueses fortes ligações existentes entre o pensamento polí-
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tico português e o brasileiro no período considera- no) não podem ser solucionados sem que tenha-
do. E quando pensamos a relação centro/periferia mos clareza do processo histórico-cultural subja-
na temática do iluminismo jurídico, estamos nos cente. Podemos afirmar, ainda, que o fracasso das
referindo a uma só formação histórico-ideológica políticas públicas para o atendimento de crianças e
luso-brasileira e sua relação com os vários centros adolescentes, de velhos e doentes mentais, nestes
de produção de idéias iluministas europeus acima mais de cem anos de ordem republicana (seja no
mencionados. Sobretudo, tomamos por base a campo assistencial, judicial, policial, ou educacio-
constituição de um projeto de construção de impé- nal) deve-se, em boa parte, à forma tímida como o
rio (luso-brasileiro) elaborado por um segmento Estado (paradoxalmente, no mais das vezes, forte
da intelectualidade influenciada pela orientação e autoritário) se incumbe de sua função parental
política pombalina (Neves, 1998) e seu projeto de (Legendre, 1983 e 1992). Queremos com isto dizer
modernização conservadora. Neste projeto, as atu- que, em alguma medida, a cultura política no Brasil
alizações históricas foram empreendidas de forma dá suporte ideológico ao paterfamilis, que, todo-
a garantir a inserção da formação histórica no poderoso no texto da lei jurídica (Cerqueira Filho,
quadro mais geral do mercado mundial, sem que a 1993),4 açambarca sob as abas de seu chapéu uma
estrutura social (fortemente hierarquizada) e a parentela extensa (mulher, filhos, parentes, afilha-
visão de mundo tomista tenham sido alteradas. dos, criados e agregados), produzindo, para além
Desnecessário ressaltar a enorme importân- dos efeitos macropolíticos já bastante enfocados
cia de que se revestem estes temas nos dias de pelos estudos no campo da Ciência Política (Oli-
hoje, tendo em vista a discussão e elaboração de veira Vianna, 1974), 5 efeitos ideológicos e políti-
uma nova codificação civil para o Brasil nesta cos que obstam a institucionalização e a profissio-
virada de milênio. Em que medida o atraso na nalização de políticas públicas eficazes. Em outras
aprovação do código civil é um sintoma de perma- palavras, os asilos (de alienados, de velhos), os
nências de uma cultura política (e jurídica) forte- orfanatos, as prisões (inclusive para jovens infrato-
mente assentada em concepções tomistas e abso- res) — bem como o sistema de educação pública
lutistas sobre o poder, a hierarquia e a obediência? — não atuam em sua plenitude de forma a garantir
De que forma a extensão do pátrio poder, tal como o suporte ideológico necessário para o exercício
o formulado nas Ordenações do Reino, perpetua da função parental do Estado.
um modelo de família holístico, extenso, onde o
paterfamilis é plenipotente e a idéia de indivíduo
Direito de família: ruptura e
é muito tênue? Quais as implicações desta estrutura
continuidade
de família quanto aos direitos da mulher e dos
filhos-família (sucessão, dote, emancipação etc.)? As formações sociais portuguesa e brasileira
Por fim, de que forma esta estrutura afetou (afeta apresentam fortes vinculações ideológicas e afeti-
ainda) a condição feminina e o modelo institucio- vas que pontuam especificidades na passagem à
nal de assistência aos órfãos e outras crianças que modernidade. Embora a inserção destas formações
se encontram no que hoje chamamos “situação de sociais no mercado internacional implique moder-
risco”? Mais: o desdém para com a vida e as práticas nização e atualização histórica, mediante a ruptura
de genocídio associadas ao extermínio, mormente com a mentalidade política e jurídica previamente
contra os afro-brasileiros, não estariam ancorados dominante, o conservadorismo clerical tem atuado
no absolutismo onipotente deste paterfamilis e produzindo efeitos psicológicos, políticos e até
numa reiterada ausência da função parental do jurídicos de continuidade das concepções tomis-
Estado? Estamos convencidos de que vários dos tas. Os estudos sobre o controle social e a discipli-
problemas que vivenciamos hoje no campo das na enfocando a questão da instituição familiar,
políticas públicas voltadas para atendimento de vista como parte das tecnologias de controle social,
crianças e adolescentes (prostituição infantil, abu- constituem campo de observação privilegiado des-
so sexual, estupro, violência doméstica, abando- te processo.
o
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A proposta de reforma da codificação penal, significativos, que aplicamos com desdobramentos


surgida primeiramente na Itália com Beccaria (sé- para o campo das emoções e afetos (Cerqueira
culo XVIII), a introdução do revolucionário código Filho e Neder, 1997). Nossa abordagem metodoló-
civil francês (1804), que propôs o casamento civil, gica é heterodoxa. De um lado estamos adotando o
e, posteriormente, o código civil alemão (1897), método indiciário e a idéia de sintoma, combinada-
muito referido pelos juristas brasileiros da área de mente e de forma ampliada com o enfoque psicana-
direito de família, implicaram um debate no qual a lítico; de outro, não estamos nos prendendo rigida-
circulação das idéias jurídicas pode ser facilmente mente à concepção de cultura e permanência cultu-
detectada. ral adotada pelo historiador italiano (ancorada no
Sobretudo, devemos levar em conta a aceita- estruturalismo lévi-straussiano), uma vez que esta-
ção ou não da idéia de indivíduo na formação mos considerando o processo de apropriação cultu-
histórica brasileira na passagem à modernidade (tal ral a partir de uma perspectiva dinamista.
como na Europa) e sua incorporação, tendo em O projeto político republicano, tanto no Bra-
vista a autoridade do Estado e da família (pátrio sil (1889) quanto em Portugal (1910), pombalina-
poder), no direito civil brasileiro. Simultaneamen- mente, possibilitou um conjunto de moderniza-
te, é importante ver como as formas de controle e ções, separando a Igreja do Estado. Entretanto,
disciplinamento social mudaram, ou não, toman- encontramos evidências de uma continuidade psi-
do-se como referência o pensamento jurídico e a cológica e ideológica que garante a prática autori-
instituição familiar. tária de controle social, com ênfase numa dogmá-
Especialmente em relação ao pensamento tica jurídico-penal em detrimento de procedimen-
jurídico, identificamos um conjunto de fantasias tos disciplinares aplicados pela Criminologia, que
absolutistas de um controle social absoluto como poderiam abarcar, interdisciplinarmente, algumas
expressão de permanências de uma cultura jurídi- questões suscitadas pela Sociologia, pela Antropo-
co-política bastante antiga. A penetração de pro- logia e pela Psicologia e a Psicanálise. No campo
postas iluministas não foi suficiente para alterar de do direito de família (direito civil), as permanênci-
forma expressiva a organização social e política as e a continuidade são mais evidentes, uma vez
que fundamentava as práticas jurídicas em Portugal que sua mera discussão tem implicado considera-
e no Brasil (Neder, 1996). A visão de mundo ções psico-afetivas nevrálgicas para o conservado-
tomista, espraiada na Península pela prática políti- rismo clerical das duas formações históricas. Os
ca e ideológica da Igreja Romana, sustentava uma desdobramentos deste processo num século XX
concepção de sociedade rigidamente hierarquiza- republicano têm sido observados na grande difi-
da, produzindo efeitos de permanência cultural de culdade de alteração dos estatutos jurídicos do
longa duração, com fortes desdobramentos para os direito de família, ou nos grandes obstáculos en-
afetos e as emoções presentes nas formações contrados pelos positivistas republicanos, no Bra-
históricas portuguesa e brasileira (Cerqueira Filho sil, por exemplo, para a implementação de uma
e Neder, 1997), que resistem, ainda hoje, ao coro- política educacional pública. As pressões da Igreja
lário das tantas mudanças promovidas pelas con- contra a escola pública de tempo integral, por
cepções iluministas e liberais sobre os direitos. exemplo, não podem ser vistas, no nosso enten-
Empreendemos a identificação destas perma- der, tão-somente como preservação de seus inte-
nências através da análise das metáforas/metoními- resses econômicos, por deterem uma rede grande
as, das condensações/deslocamentos, tomados aqui de escolas confessionais. O núcleo cultural e ideo-
como sintoma/indício a revelar afetos e emoções, lógico desta resistência a políticas públicas educa-
muitas vezes inconscientes. O historiador italiano cionais e beneficentes está fortemente imbuído da
Carlo Ginzburg (1991) propõe um método heurísti- idéia de família tridentina, enquanto projeto civili-
co centrado nos dados marginais, nos detalhes e zador da Igreja, e constitui a base afetiva das lutas
nos resíduos, que, manifestados involuntariamente, ideológicas que emperram as políticas públicas
permitem ao analista procedimentos interpretativos nestes setores (Neder, 1994).
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Pensamos que, neste final de milênio, a Circulação das idéias iluministas e as


educação e a formação profissional de operadores reformas no campo do Direito
sociais eficientes (médicos, juízes, promotores,
policiais, professores, assistentes sociais etc.) terão O estudo sobre circulação de idéias situa-se,
de ser tomadas como referência estratégica primor- historicamente, na discussão sobre a reforma dos
dial para o desenvolvimento social. Os operadores códigos civil e criminal brasileiros, que se arrasta
sociais devem saber lidar, política e ideologica- praticamente desde a emancipação política, quan-
mente, com estas permanências histórico-culturais. do a necessidade de sua formulação foi aventada.
Consideramos o pensamento jurídico portu- Passa pela encomenda, por parte do Imperador, de
guês como uma matriz (Faoro, 1975) muito mais no um projeto de lei a Augusto Teixeira de Freitas, na
sentido de uma permanência cultural (cultura jurí- década de 1850, e culmina, na outra ponta deste
dica), um substrato, do que propriamente “fonte processo, com um acirrado debate na virada do
inspiradora” do pensamento jurídico e político bra- século XIX para o XX, quando outra encomenda de
sileiro. A inspiração encontrava-se no pensamento projeto é feita pelo governo republicano ao jurista
jurídico liberal tout court, em termos da aparência e Clovis Bevilacqua, que teve como principal interlo-
das preferências temáticas e ideológicas. cutor Rui Barbosa.
Esta a razão, no nosso entender, de uma certa O detalhamento deste processo pode clarear
forma de atualização histórica que encaminha a nossas referências identitárias dos pontos-chave
passagem à modernidade com traços autoritários. para a discussão atual sobre a reforma (novamen-
Incorporam-se aspectos institucionais da moderni- te) da codificação civil brasileira. Em que medida a
zação, com inflexões em algumas idéias liberais, a aludida influência do Código Civil Alemão teria
partir de uma leitura conservadora das reformas moldado o Código Civil Brasileiro? Onde estaria a
empreendidas (Neder, 1996). As reformas pomba- também muito aludida tendência ao individualis-
linas da segunda metade do século XVIII inscre- mo (influência francesa?) da codificação brasileira
vem-se neste quadro. Sua fórmula de atualização formulada por Clovis Bevilacqua?
histórica (calcada no pragmatismo político) está De fato, na passagem do século XVIII para o
ainda a influir nos processos de modernização de XIX, tanto em Portugal quanto no Brasil, abriram-se
Portugal e do Brasil (Faoro, 1975 e 1994). discussões sobre estas questões. A modernização
Um dos sintomas desta influência é a forma da codificação francesa pressionou ideologicamen-
como o pensamento jurídico no Brasil (e em te para que as alterações fossem difundidas. A re-
Portugal) lida com as relações entre a idéia de sistência do conservadorismo clerical (nas duas for-
indivíduo, desenvolvida a partir da passagem à mações históricas estudadas, Portugal e Brasil) sata-
modernidade (e que está presente nas leis civis nizou os ventos da modernidade; os juristas esgri-
francesas), e a delicada questão do pátrio poder, miram seus argumentos em torno, sobretudo, da le-
presente na codificação portuguesa (Ordenações gitimação do casamento civil. Portanto, além das
Filipinas) adotada no Brasil, como já ressaltamos, legislações dos dois países, contamos com uma vas-
até a promulgação do Código Civil Brasileiro ta fonte documental constituída de teses, livros, arti-
(1916). Sublinhe-se, ainda, que as Ordenações do gos e panfletos produzidos no bojo desta discussão.
Reino de Portugal — sucessivamente, as Ordena- A continuidade das concepções tomistas pode
ções Afonsinas (1446-47), as Ordenações Manueli- ser constatada no conservadorismo clerical presen-
nas (1512-1514) e, por fim, as Filipinas (1603) — te na obra do jurista brasileiro Francisco José Vivei-
constituem um mesmo corpus juris. Portanto, as ros de Castro, Delitos contra a honra da mulher, ou
Ordenações Filipinas, de início do século XVII, que em Estudos sobre o casamento civil, do jurista e
têm no código do século XV sua formulação básica historiador português Alexandre Herculano. O pri-
(Silva, 1985), vigoraram no Brasil por muito mais meiro é um tratado jurídico onde se discute uma
tempo que em Portugal no que se refere ao direito tese sobre os delitos de adultério e de estupro. O
de família. segundo marca, política e ideologicamente, a posi-
o
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ção do conservadorismo clerical diante do debate contrários — um deles o de Heculano. Este panfle-
sobre o casamento civil em Portugal em meados do to constitui um libelo de indignação para tornar pú-
Novecentos. blica sua oposição ao projeto aprovado pela maio-
Destaque pode ser dado a alguns aspectos do ria da comissão (Seabra, 1866). 6
livro Delitos contra a honra da mulher (Viveiros de O emolduramento das práticas de controle e
Castro, 1897), que trata de estupro e defloramento. disciplina, destarte, deve ser buscado na Igreja e
De um lado, do ponto de vista do conteúdo, o livro em sua forte influência na cristandade européia. Se
indica as rupturas com o pensamento jurídico pré- Michel Foucault (1978) situa o nascimento da
moderno (pela adesão do autor ao Iluminismo ao prisão nas casas de correção, no século XVI, seu
tratar dos delitos contra a mulher). De outro lado, amigo Philippe Ariès (1978) sublinha a importância
confirma a continuidade de um conjunto de práti- do Concílio de Trento (1545-1563) na definição de
cas ideológicas inculcadas por séculos de hegemo- uma estratégia civilizatória da Igreja Romana, ten-
nia do pensamento religioso (e do Direito Canôni- do em vista a delimitação de um modelo de família
co) na cristandade ocidental. A mulher que é e de padrões de controle do comportamento social
violentada, por exemplo, é vista não como vítima e sexual.
mas como ré. Ela é considerada responsável pelo Os desdobramentos da questão jurídica a
estupro, pois se este se deu fora do lar, significa partir de uma consideração mais ampla das ques-
que a mulher expôs-se ao mal (na rua, lugar fora tões relativas ao controle e à disciplina, fora da pri-
do espaço doméstico/familiar), possibilitando a são, foram apontados por Michel Foucault e Arlette
exteriorização do mal que só ela possui — a Farge (1982)7 e Pierre Legendre (1988). As sutilezas
sedução. Destarte, ela é responsabilizada pelo dos micropoderes insinuados através da “docilida-
delito que sofreu. Interessante observar que, a par de dos corpos”, a arte das distribuições, através dos
da utilização de uma linguagem jurídica moderna colégios, quartéis, do controle dos horários, vigilân-
para analisar os delitos contra as mulheres (o tema cia hierárquica, jogo do olhar e tantas outras tecno-
estava na pauta das discussões na França), sobretu- logias de controle lançam-nos, de um lado, à rua, e
do aqueles diretamente dirigidos contra seus cor- ao controle do espaço urbano pela polícia. De
pos (estupro e sedução), este livro mostra-se en- outro lado, somos também convidados a refletir
volto por um emaranhado ideológico em que os sobre estas mesmas questões sob quatro paredes: a
preconceitos do conservadorismo clerical, que vei- institucionalização jurídica da família na passagem à
culam uma imagem da mulher negativa, deprecia- modernidade (Burguière e Segalen, 1998).
tiva e misógina, manifestam-se vivamente. O atraso na modificação do código civil no
Já o texto de Alexandre Herculano (1866) Brasil deve-se às dificuldades encontradas pelos
tem um conteúdo panfletário mais explícito, na reformadores do campo jurídico em articular as res-
luta contra a introdução do casamento civil em trições que a visão moderna de direitos da pessoa
Portugal. A defesa do casamento como um sacra- (eivada de individualismo) impôs ao pátrio poder,
mento, cujos laços indissolúveis devem ser manti- que no Brasil se manteve fundado numa concepção
dos e estendidos, na legislação portuguesa, para os ainda medieval sobre autoridade na família.
não-católicos, é o cerne da argumentação de Her- As dificuldades de Augusto Teixeira de Frei-
culano. Toda a legitimidade do casamento (e tas, autor do primeiro projeto de código civil para o
conseqüentemente da filiação — legítima —, da Brasil, não ficaram longe do quadro acima analisa-
herança e da sucessão) deveria permanecer sob o do. As concepções modernas no campo do direito
controle político e ideológico da Igreja. Alexandre de família tinham no individualismo do Código
Herculano fez parte da Comissão Revisora do Napoleônico sua base primeira de sustentação.
Projeto de Código Civil Português, elaborado pelo Junto com a expansão napoleônica pela Europa na
Visconde de Seabra, onde argumentou contra a virada do século XVIII para o XIX, ocorreu uma
proposta de secularização do casamento, vitoriosa grande expansão do ideário revolucionário que
na comissão por três votos favoráveis contra dois forçou o processo de secularização, mesmo em
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formações sociais fortemente controladas pela Igre- de 19,63% cai para 9,8% dada a exaustiva repetição
ja, como era o caso de Portugal (e Brasil), Espanha e nas citações a Von Savigny, o mais romanizado e
Itália.8 De outro lado, havia os obstáculos de ordem ocidental dos juristas alemães na época. A obra de
emocional e afetivo-religiosos: Augusto Teixeira de Savigny chegou a Portugal e ao Brasil pela tradu-
Freitas tinha uma enorme dificuldade de aceitar a ção francesa.
idéia de casamento fora do controle da Igreja.
Evidentemente, não estamos deixando de conside-
Gráfico 1
rar outros obstáculos e dificuldades que levaram País de Origem das Obras
seu empreendimento ao fracasso, já exaustivamen-
te apontados pelos autores do campo do Direito no 80
Brasil, relacionados à sua oposição à escravidão. No
60
entanto, consideramos estes obstáculos afetivo-
religiosos como mais decisivos para o fracasso do 40
primeiro projeto de código civil no Brasil.
20
Procedendo a um levantamento quantitativo
acerca do país de origem das referências bibliográ- 0
ficas contidas no Esboço de Código Civil (Quadro 1 Alemanha França Itália
e Gráfico 1), de Augusto Teixeira de Freitas, pode-
mos inferir algumas questões significativas.
Quadro 2
Quadro 1 Obras Citadas por Augusto Teixeira de Freitas,
Obras Citadas por Augusto Teixeira de Freitas, sem Repetição de Obras Citadas
com Repetição de Obras Citadas
País Citações %
País Citações % Alemanha 10 9,8
Alemanha 43 19,63 Brasil 7 6,86
Brasil 18 8,21 França 66 64,7
França 132 60,27
Itália 9 8,82
Portugal 7 3,19
Portugal 5 4,9
Itália 12 5,47
Outros 5 4,9
Outros 7 3,19
Total 102 100
Total 219 100
Fonte: Esboço de Código Civil. Rio de Janeiro, Ministério da
Fonte: Esboço de Código Civil. Rio de Janeiro, Ministério da
Justiça e Negócios Interiores, 1852. 8 vols.
Justiça e Negócios Interiores, 1852. 8 vols.

Primeiramente, encontramos um leque de


Gráfico 2
referências bibliográficas bastante restrito (um total
de 106 obras), com a remissão exaustiva a umas País de Origem das Obras
tantas obras, como o Traité du droit Romain de Von
Savigny. De outro lado, há um conjunto expressivo 80
de referências a códigos e leis, no mais fino estilo
dos comentários jurídicos pré-modernos. 60
Retiradas as citações repetidas, teremos um 40
quadro bastante próximo se considerarmos as
obras procedentes sobretudo da França — 60,27% 20
(Quadro 1 e Gráfico 1) e 64,7% (Quadro 2 e Gráfico 0
2). Porém, encontramos uma diferença significati- Alemanha França Á
Itália
va nos dados referentes à Alemanha: o percentual
o
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Diferentemente, o quadro de referências bi- partir dos 21 anos, entre outros), foi tida como
bliográficas contidas nas notas de rodapé do Códi- influenciada pelo código civil alemão (sobretudo
go Civil Brasileiro (Quadro 3 e Gráfico 3), de Clovis pela intervenção marcante de Rui Barbosa no
Bevilacqua, meio século adiante, expõe a varieda- processo de discussão parlamentar da reforma do
de, a riqueza e a abertura ideológica e política do código). Contudo, temos várias indicações de que
autor. Atente-se para o fato de que a porcentagem a alusão ao código alemão pode ter ocorrido como
de citações de obras oriundas do iluminismo jurídi- forma de dissimulação (ou discordância) das influ-
co francês no campo do direito de família é superior ências da codificação francesa, uma vez que estas
à de qualquer outro centro de produção de idéias, encontravam, historicamente, muitas resistências
sendo apenas inferior às referências nacionais. políticas, ideológicas e afetivas na formação social
brasileira (e portuguesa) para sua aceitação, dadas
Quadro 3 as suas implicações com o processo revolucioná-
Referências Bibliográficas — rio. A julgar pela lista de obras sobre direito civil
Código Civil Brasileiro
adquiridas pelo então senador Rui Barbosa, pode-
mos afirmar que, ele sim, foi influenciado pelo
País Número de citações %
Alemanha 102 10,82 código civil e pelo pensamento jurídico alemão,
Argentina 21 2,22 como mostram o Quadro 4 e o Gráfico 4.
Brasil 414 43,94
Colômbia 7 0,74 Quadro 4
Espanha 24 2,54 Obras de Direito Civil do Acervo da
EUA 14 1,48 Biblioteca da Fundação Casa de Rui Barbosa
França 228 24,2 País Obras %
Inglaterra 9 0,95 Alemanha 95 52,77
Itália 71 7,53 França 50 27,77
Portugal 30 3,1 Itália 32 17,77
Suíça 8 0,84 Outros 3 1,66
Outros 12 1,27 Total 180 100
Total 942 100
Fonte: Catálogo Bibliográfico da Biblioteca da Fundação Casa
Fonte: Clovis Bevilacqua, Código Civil dos Estados Unidos do de Rui Barbosa.
Brasil. Edição histórica, 2 vols. Ed. Rio, 1977.

Gráfico 4
Gráfico 3 País de Origem das Obras
Alemanha
Argentina 60
Brasil
Colômbia 40

Espanha 20
EUA
França 0
Alemanha França Itália
Inglaterra
Itália
Portugal
Supomos, portanto, que o atual direito de
família no Brasil apresenta um quadro de influên-
A codificação aprovada, que restringiu o cias múltiplas, embora haja uma evidente presença
pátrio poder (por meio de vários artigos indivi- da literatura jurídica oriunda da França, conforme
dualistas, como a maioridade plena dos filhos a pode ser observado no Quadro 3.
OS FILHOS DA LEI 121

Mas, se procedermos a um levantamento da


Gráfico 6
origem das obras disponíveis na biblioteca do
País de Origem das Obras
Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB), observa-
mos, igualmente, a forte influência francesa em 50
termos da circulação de idéias e de livros (Quadro 5 40
e Gráfico 5).
30
20
Quadro 5
Obras de Direito Civil do Acervo da Biblioteca do 10
Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB) 0
País Obras % França Brasil Argentina Chile
Brasil 23 20,53
França 66 58,92
Itália 20 17,85 Criado em 1843, o IAB inaugurou sua biblio-
Outros 3 2,67
teca em 1896 (Lira, 1995). Sublinhe-se que se trata
Total 112 100
de uma biblioteca cujo acervo é assegurado exclusi-
Fonte: Catálogo Bibliográfico da Biblioteca do IAB.
vamente por doações de juristas sócios do Instituto.
Mais interessante é observarmos, contudo, a
Gráfico 5 completa ausência de obras oriundas da Alema-
País de Origem das Obras nha, país que supostamente teria influenciado
nosso Direito Civil. A aludida influência do código
60 civil alemão sobre as leis civis brasileiras, se em
alguma medida ocorreu, foi em função da exausti-
40
va participação do senador Rui Barbosa, este sim,
germanófilo, nas discussões da Comissão Especial
20
do Senado sobre a redação do projeto da Câmara
0 dos Deputados. 9
Brasil França Itália Outros

O pátrio poder no Brasil: hierarquia e


Igualmente significativa é a presença maciça obediência
de volumes de códigos civis comentados na biblio-
teca do IAB. Aqui, também, percebe-se a presença De um ponto de vista mais abrangente, esta-
soberana da produção de origem francesa (Quadro mos tratando das relações entre Igreja, Estado e
6 e Gráfico 6). Sociedade. A luta da Igreja para interferir na autori-
dade do paterfamilis data de muitos séculos. Embo-
Quadro 6 ra seu projeto civilizatório e disciplinar em torno da
Códigos Comentados no Acervo da Biblioteca do instituição familiar tenha sido decisivamente imple-
Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB)
mentado a partir do Concílio de Trento (Bossy,
País Número de códigos %
França 109 42,08 1990), no bojo da reforma religiosa católica, o
Itália 39 15,05 Concílio de Latrão (1215) representa o primeiro
Brasil 34 13,12 marco da ingerência da Igreja na autoridade das
Portugal 34 13,12 famílias (Lebrun, 1993). O casamento tornou-se um
Argentina 14 5,4
Espanha 9 3,47 sacramento, sob o dogma da indissolubilidade dos
Chile 8 3,08 laços matrimoniais. E, o que é mais importante, o
Outros 12 4,63 consentimento dos noivos (por suposto, livre) abriu
Total 259 100 caminho para o fortalecimento do indivíduo diante
Fonte: Catálogo Bibliográfico da Biblioteca do IAB. da família, enfraquecendo a autoridade do pai e
o
122 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 16 N 45

seus substitutos legais. Este não mais decide e seus criados e seus escravos. Todos sujeitavam-se
acerta sozinho os casamentos. Ao mesmo tempo, à autoridade do senhor. Eram, também, objetos
não podemos deixar de sublinhar a arguta observa- implícitos de sua proteção. O pátrio poder alcança-
ção de François Lebrun, na abertura do seu texto va, portanto, todos os que moravam ou trabalha-
“As reformas: devoções comunitárias e piedade vam na mesma casa. Ao mesmo tempo, o casamen-
pessoal” (Lebrun, 1991, p. 71), acerca da divisão do to era considerado um sacramento, cuja adminis-
Cristianismo entre duas tendências aparentemente tração e autoridade jurisdicional pertenciam à Igre-
inconciliáveis. “É ao mesmo tempo uma religião ja e eram regidas pelo Direito Canônico.
eminentemente pessoal, que chama cada indivíduo As idéias de casa e de família afetavam
à conversão, à fé e à salvação [...] e uma religião profundamente a natureza da política (Graham,
coletiva, apoiada numa Igreja.” De um lado, a forte 1997). Constituíam-se em unidades básicas da or-
presença do Cristianismo, que marca decisivamente dem política, e mostravam-se particularmente re-
a Península Ibérica, cunhando histórica e ideologi- sistentes à mudança. O pai exercia autoridade legal
camente uma cultura holística, patriarcal e franca- sobre todos; podia até, legalmente, encarcerar
mente mi-sógina. De outro, identificamos vários filhos de qualquer idade que vivessem com ele.
passos na construção de uma dada idéia de indiví- Pelas Ordenações do Reino, a emancipação dos
duo, que convive paradoxalmente com uma visão filhos ocorria aos 25 anos. Entretanto, “[...] a lei
holista, notadamente a partir da filosofia tomista considerava a propriedade dos filhos vivendo com
(Morse, 1988). 10 a família, independente de sua idade, como per-
Os tempos modernos, a partir, sobretudo, da tencente ao pai” (p. 34). O termo pai de família
virada do século XVIII para o XIX, marcam a (paterfamilis) implicava, além de cuidado (prote-
elaboração de uma ideologia secular, que cimenta ção), autoridade (obediência). Todavia, filhas e
a sociedade e molda o Estado, substituindo a filhos solteiros permaneciam sob o jugo do pátrio
liturgia do pensamento religioso. Nas duas forma- poder para além dos 25 anos, sobretudo se moras-
ções sociais em foco (Portugal e Brasil) este pro- sem na casa paterna.
cesso apresenta especificidades e ambigüidades A extensão (cultural e política) do pátrio
que devem ser sublinhadas. poder no Brasil afetou o encaminhamento de
Temos, portanto, um universo patriarcal onde políticas públicas para a educação e a assistência
o paterfamilis era investido de autoridade e respon- social. Reside aí, no nosso entender, a explicação
sabilidade sobre todos os membros de sua casa, para a ineficácia da intervenção do Estado neste
inclusive os empregados (Graham, 1992). Depen- setor, mesmo quando enfocamos conjunturas his-
dia de cada um prestar a obediência devida de tóricas em que a presença do Estado é forte (o
acordo com o seu lugar — fosse como esposa ou Estado Novo ou a recente ditadura militar), quando
como filho, como agregados ou escravos, como a legitimidade da ação estatal não podia ser ques-
manda uma ordem fortemente hierarquizada. tionada. Diferentemente da Inglaterra (e suas colô-
A extensão do poder do chefe da família nias), onde a caridade e a assistência à pobreza
atingia um raio muito grande. Ele administrava foram assumidas pelo Estado ( Poor Law, desde o
legalmente as propriedades, os bens da família, período elizabetano), em Portugal (e no Brasil)
tanto da esposa quanto dos filhos ainda solteiros, e estas práticas ficaram restritas à esfera da Igreja, e
concedia ou negava permissão para os filhos ou à caridade por ela instituída (as Santas Casas de
mesmo para uma filha viúva casar novamente. O Misericórdia). Os cuidados em relação a crianças e
casamento de seus subalternos, sobretudo de suas velhos têm sido tratados como um problema da
criadas, dependia de seu consentimento e sua ordem privada (das famílias). É um problema do
interferência. A autoridade masculina estendia-se a paterfamilis, de quem todos esperam proteção
todos os membros da casa. De acordo com as como contrapartida da obediência irrestrita.
Ordenações, o chefe de família tinha o direito de Os limites de uma família iam além do pai, da
castigar fisicamente a sua mulher, os seus filhos, os mãe e dos filhos. A proteção em troca de lealdade,
OS FILHOS DA LEI 123

imposta pelos vínculos familiares, estendia-se pri- Dantas (1949) interpreta a intervenção de Rui
meiramente a uma ampla gama de relacionamentos Barbosa, que primou pela crítica aos erros de
consangüíneos e por meios de casamentos. As linguagem do projeto redigido por Clovis Bevilac-
relações sociais eram orientadas pelo paradigma qua, como tendo sido uma estratégia política do
familiar, que mesclava em seu interior força e então senador da recém-proclamada República
benevolência. A falta de obediência ou lealdade para impedir que o código fosse aprovado apressa-
deixava o indivíduo exposto à exploração de ou- damente, pois acreditava que este deveria ser uma
tros. Nas famílias, a ameaça de punição e a promes- obra duradoura e cuidadosamente elaborada. De
sa de benevolência descreviam as vidas de esposas nossa parte, tendemos a acentuar as discordâncias
e filhos, escravos, agregados, pequenos proprietári- ideológicas e afetivas de Rui Barbosa com o indivi-
os, pequenos comerciantes e outros seguidores do dualismo presente no projeto (sob influência do
senhor. Esta autoridade também atingia as relações ideário jurídico francês).
de poder, principalmente as políticas. É esta autori- É bom lembrar que a decretação da Lei do
dade do paterfamilis que o código civil veio limitar. Casamento e do Registro Civil (assim como a
No Código Civil Brasileiro, a emancipação decretação do Código Penal de 1890), antes da
dos filhos e filhas está prevista para 18 (parcial) e Constituição (1891) — esta de corte liberal —, teve
21 anos (total). Várias restrições ao pátrio poder uma intenção antecipatória, para garantir um su-
foram firmadas. Entretanto, o costume seguia defi- porte legal-institucional autoritário e repressivo às
nindo a permanência dos filhos na casa (viver sob tecnologias de controle social. A institucionaliza-
o teto do pai) como dever de proteção e obediên- ção da ordem republicana no Brasil implicou,
cia ao pai. O casamento constitui-se, portanto, fator como era de se esperar, a separação da Igreja do
importantíssimo de ruptura com o pátrio poder, do Estado. Portanto, o casamento civil seria, de uma
ponto de vista da construção da idéia de indivíduo. forma ou de outra, instituído. A lei de 1890 (Decre-
Durante todo o período em que se discutiu a to n. 181) viabilizou o inevitável e não previu o
reforma das leis civis no Brasil, a defesa ou a divórcio, mantendo-se a indissolubilidade do casa-
resistência ao casamento civil dividiram opiniões. mento até 1977.
Sobretudo, as forças do conservadorismo clerical e
dos patriarcas retardaram o quanto puderam a
Conclusão
transferência das mãos da Igreja para as do Estado
de todo o registro civil, mormente em relação ao Para concluir, queremos retomar a reflexão
matrimônio. Isto porque, uma vez colocado em sobre a inoperância das políticas públicas relativas
mãos civis, o casamento deixaria de ser um sacra- ao atendimento de crianças e adolescentes no
mento e passaria a ser considerado um contrato, Brasil.
como na maioria das sociedades modernas. Todo Como dissemos, com o Código Civil Brasileiro
contrato, em termos jurídicos, prevê o distrato. o pátrio poder sofreu, na letra da lei, uma restrição.
Portanto, a questão da indissolubilidade do casa- Mas a extensão da obediência ao pai conferida pelo
mento e do divórcio infletiu a discussão. costume e pela prática política seguiu dando supor-
Uma vez proclamada a República, sob a te político e ideológico a uma autoridade paterna
liderança de positivistas (dentre os quais alguns plenipotente. Estamos lidando com uma figura
francamente anticlericais), a Lei do Casamento e do paterna que dificulta a identificação de limites
Registro Civil foi decretada pelo Governo Provisó- impostos pela lei, no sentido jurídico, mas também
rio em 1890, sendo seu mentor Rui Barbosa. no sentido psicanalítico. A idéia de que o atendi-
Quando o novo projeto de código civil, encomen- mento aos desvalidos (velhos, crianças abandona-
dado a Clovis Bevilacqua nos últimos anos do das ou desassistidas e loucos) deveria ser feito por
século XIX, foi discutido, encontrou em Rui Barbo- meio da montagem de uma estrutura institucional
sa um grande opositor, cuja atuação parlamentar estatal acompanhou a modernização do país na
retardou em muito a sua aprovação. San Tiago virada do século XIX para o XX. No entanto, a
o
124 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 16 N 45

permanência do poder do chefe de família atuou social, destaque-se o trabalho de Arlette Farge, em co-
produzindo efeitos ideológicos que dificultaram o autoria com o próprio Foucault (Foucault e Farge, 1982).

processo de legitimação das políticas públicas no 8 Trabalhamos com a obra de Anthoine de Saint-Joseph
(1856), Concordance entre les codes civils étrangers et le
setor. O sucesso das políticas públicas neste campo code napoléon.
(realizadas por instituições governamentais ou não- 9 O parecer de Rui Barbosa foi publicado em 1902 sob o
governamentais) depende, em parte pelo menos, título Projecto de Código Civil Brazileiro — Trabalhos da
da construção de um arcabouço ideológico e afeti- Comissão Especial do Senado — Parecer do senador Ruy
vo de sustentação da função parental repousada Barbosa sobre a redacção do projecto da Camara dos
Deputados, 2 vols., Rio de Janeiro, Imprensa Nacional,
numa autoridade capaz de substituir esta figura tão 1902.
abrangente do paterfamilis. 10 Trata-se de uma concepção do “indivíduo” e de “bem
Certamente os debates sobre os novos códi- individual” como participante de um todo, em que o
gos (criminal e civil) constituíram-se num locus “bem comum” não pode ser substituído pelo ideal
pessoal.
privilegiado em que a sociedade brasileira con-
frontou mudanças sociais — mas, afinal, nem tão
radicais assim — associadas à modernização, à BIBLIOGRAFIA
formação do Estado republicano, bem como aos
sentidos cambiantes e diversificados da identidade ARIÈS, Philippe. (1978), História social da criança e
nacional num período de transformações econô- da família. Rio de Janeiro, Zahar Editores.
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1 Sobre a relação centro/periferia, trabalhamos com Carlo
Ginzburg (1989), que se fundamenta em Bakthin (1987). BURGUIÈRE, André e LEBRUN, François. (1998), “As
No Brasil, encontramos a mesma abordagem em Anto- mil e uma famílias da Europa”, in BURGUIÈ-
nio Candido (1993) e Roberto Schwarz (1977 e 1990). RE, André e SEGALEN, Martine et al. (orgs.),
2 Pascoal José de Mello Freire, Direito público de Portugal, História da família, vols. 3 e 4, Lisboa, Terra-
Seção de Reservados da Biblioteca Nacional de Lisboa, mar, pp. 15-82.
COD. 8.527; e Ensaio de código criminal a que mandou BURGUIÈRE, André e SEGALEN, Martine et al. (orgs.).
proceder a Rainha D. Maria I, Lisboa, Typographia
(1998), História da família, Lisboa, Terramar.
Maiguense, 1823 (Seção de Obras Raras da Biblioteca
Nacional do Rio de Janeiro). CANDIDO, Antônio. (1993), “A dialética da malandra-
3 Ver, do mesmo autor, Projecto de hum novo Regimento gem”, in A. Candido, O discurso e a cidade,
para o Sancto Officio, Seção de Reservados da Bibliote- São Paulo, Duas Cidades, pp. 19-54.
ca Nacional de Lisboa, COD. 92.
CERQUEIRA FILHO, Gisálio. (1993), Ideologia do
4 No texto legislado, apenas. Tais poderes tão absolutiza- favor e ignorância simbólica da lei. Rio de
dos têm implicado a ausência ou degradação da figura
Janeiro, Imprensa do Estado do Rio de Janeiro.
do pai (no sentido psicanalítico) na formação histórico-
ideológica brasileira, com efeitos no processo de cons- CERQUEIRA FILHO, Gisálio e NEDER, Gizlene.
tituição identitária (Cerqueira Filho, 1993). (1997), Emoção e política: (a)ventura e imagi-
5 Referimo-nos a Instituições políticas brasileiras, de Oli- nação sociológica para o novo milênio. Porto
veira Vianna (1974), que constitui ainda fonte de refe- Alegre, S.A. Fabris Editor.
rência fundamental destes estudos.
DANTAS, San Tiago. (1949), “Rui Barbosa e o Código
6 Trabalhamos com o livro de António Luís de Seabra
Civil”, in San Tiago Dantas, Dois momentos de
(Visconde), Duas palavras sobre o casamento, publica-
do em 1866 em desagravo às acusações de anticlerical Rui Barbosa, Rio de Janeiro, Casa de Rui
que vinha recebendo desde a redação do projeto de Barbosa.
código civil português. FAORO, Raymundo. (1975), Os donos do poder: for-
7 Sublinhe-se a importância dos desdobramentos de estu- mação do patronato político brasileiro, 2 vols.
dos com a orientação foucaultiana através de grupos Porto Alegre/São Paulo, Editora Globo/Editora
interdisciplinares de pesquisa. No campo da história da Universidade de São Paulo.
OS FILHOS DA LEI 125

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