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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS

ESCOLA DE ARQUITETURA E URBANISMO


HISTÓRIA DA ARTE ANTIGA E MEDIEVAL

ALUNA: SAMANTHA CAMPOS PAIVA BARROZO


PROFESSORA: MARINA CÂMARA

CHARLES- EDOUARD JEANNERET NO ORIENTE

Há um jorro de amarelo e ouro. Há todos os mármores de todos os palácios


de Bizâncio e todos os tesouros dos sultões e todas as gemas dos serralhos!
Uma Vênus de ouro maciço e uma Ceres encabeçam, no Khanal, a escadaria
do palácio de Justiniano que desce até as águas. (...). Quero que em seu
Chifre de Ouro haja Istambul, e que Istambul seja branca, crua como gesso,
que seja trincada pela luz, e que os domos dilatem o amontoado dos cubos
leitosos, e que minaretes se projetem, e que o céu seja azul. Então terá
acabado todo esse amarelo pervertido, todo esse ouro maldito. Sob a luz
branca, quero uma cidade inteiramente branca; mas ciprestes verdes devem
pontuá-la. E o azul do mar responderá ao azul do céu. (LE CORBUSIER,
2007. p. 79-81)

A viagem de arquitetura, mais do que um importante instrumento para a


ampliação de nosso repertório técnico e cultural, é também uma oportunidade para
observações mais detalhadas e profundas das paisagens visitadas, bem como das
tradições e das relações simbólicas estabelecidas por seus povos. Igualmente, somos
capazes de perceber as marcas infligidas pelo tempo nas construções. Por analogia,
poderíamos comparar tais marcas com camadas, cada qual referente a um período
histórico, possuindo assim suas peculiaridades, mas sobrepostas umas nas outras,
de forma a garantir a ideia de unicidade, ou seja, compõem os cenários tal qual os
conhecemos atualmente. Assim, a descrição de Charles- Edouard Jeanneret, feita em
1911, acerca de Istambul, não se refere a cidade dos dias de hoje, com elevados
graus de modernização, tampouco a Istambul de mármore e ouro, quando ainda
conhecida por Constantinopla, sobe o domínio autoritário de Justiniano e sua esposa
Theodora.
Similarmente, as pessoas também se modificam em decorrência de suas
viagens, pois mais do que terras desconhecidas, devem percorrer lugares
adormecidos dentro de si, aflorados pela imersão em um novo meio cultural, mesmo
que seus sentidos sempre as lembrem, de que não importa quanto tempo dure a
estadia, serão sempre estrangeiras. Com Jeanneret não foi diferente. Nunca mais foi
o mesmo depois de 1907, quando aos 20 anos iniciou a sua primeira grande viagem

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de arquitetura, percorrendo Atenas, os Balcãs e Istambul, na companhia de seu amigo
Auguste Klipstein.

Vindo de uma família de artistas, ainda na adolescência ingressa em uma


escola de arte suíça, para aprender gravura, chegando a ser premiado por um
desenho de um relógio de bolso. Nesse período, constrói uma boa relação com seu
professor, L’Eplattenier, o qual o influenciou a empreender a viagem para o Oriente,
cuja trajetória fora desejada por muitos artistas, sobretudo aqueles que já não
encontravam inspiração na Europa Ocidental, presa em seus ideários de supremacia
e rigor estilístico. (GARDINER, 1977).

Citando Jeanneret (o qual nesse ponto já utilizava o pseudônimo Le Corbusier)


segundo Gardiner, antes do ato criativo, é imprescindível a cautelosa observação e
internalização do objeto em estudo, para o surgimento da inspiração e, por fim, a
criação. Nas palavras de Gardiner, “antes de começar a pensar no presente e no
futuro, para poder criar, era preciso compreender o passado, conhecê-lo a fundo”.
Partindo de tal pressuposto, Le Corbusier registra os percursos realizados entre 1907-
1911, na forma de um diário de viagem, o qual viria a ser publicado em 1965, intitulado
Viagem do Oriente. Lançando mão de ricas descrições sinestésicas, assim como de
croquis detalhados, Le Corbusier demonstrou possuir mais do que uma visão
aprofundada das rotas traçadas, pois seus relatos evidenciam imensa sensibilidade
para com os locais visitados. Por um instante, o jovem Jeanneret torna-se parte das
paisagens, um elemento vivo das construções e incorpora o papel de nativo,
mergulhando nas tradições daqueles povos.

O Oriente, abrigando as ruínas de grandes e poderosos impérios de outrora,


paisagens tão distintas, oscilando entre desertos, cenários bucólicos, palácios
suntuosos, cobertos de ouro, mármore, marfim e pedras preciosas, em contraste com
pequenas cidadezinhas medievais, cerâmicas, bordados em tecidos escuros, muros
determinando fronteiras, construções que se valeram de estilos arquitetônicos
comuns, mas que tomaram características próprias em cada região, o espiritualismo
turco, a música dos ciganos, o céu em degrades de cores quentes e o sol intenso, a
castigar essas terras, que por algum motivo acreditamos terem bebido mais sangue
do que as nossas, envolve-nos em uma atmosfera de encantamento e misticismo,
este, talvez por não compreendê-las.

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Nesse contexto, Le Corbusier pôde estudar a arte clássica e medieval do antigo
continente no palco de seus acontecimentos. As longas caminhadas, na companhia
de nativos e o tempo reservados para usufruir dos cenários, sentindo-os em seus
traços, foram essenciais para o seu crescimento enquanto ser humano e como
arquiteto em constante aprendizado, refletindo anos mais tarde na originalidade de
seus projetos, tão incompreendidos pelos críticos da primeira metade do século XX,
quanto o Oriente.

ISTAMBUL, FLORENÇA E ATENAS

Le Corbusier visitou mais de trinta cidades em sua viagem pelo Oriente.


Entretanto, traçando-se um paralelo com a disciplina de História da Arte Antiga e
Medieval nos ateremos a apenas três lugares, cujas características elucidadas por Le
Corbusier fazem-se pertinentes aos nossos estudos. Começaremos por Istambul,
seguindo por Florença e nos encontraremos, por fim, em Atenas.

Em Istambul, não falaremos de Santa Sofia e nem de Süleymaniye, embora


citadas por Le Corbusier, mas sim das configurações de seus túmulos, presentes em
Sepulturas, capítulo destinado à temática. Enquanto no ocidente existe certa
resistência quanto à morte e todos os assuntos vinculados a ela, em Istambul, assim
como em outras cidades orientais, esta encontra-se sempre presente, de forma
harmônica, no cotidiano das pessoas. Não existe o que temer e por isso, não é
necessário esconder qualquer elemento que tenha vínculo com a morte. Conforme Le
Corbusier, “eles” – os turcos – “veem isso sem inquietude, porque têm uma religião
que não lhes dá o medo da morte”.

Assim, muitas casas possuem túmulos em seus jardins, e como não há mais
espaço no cemitério de Istambul, estendem-se pelas ruas. Tal fato, demostra a
permanência de elementos de origem bizantina nas atuais cidades, erguidas às
sombras de Constantinopla, como descrito na seguinte passagem:

Ali erguia-se um bosque de estrelas, tão velhas que o mármore desaparece


sob os musgos. Em Istambul são as mesmas que em Scutari, e as de Scutari
são as de Andrinopla dos Balcãs, da Ásia Menor e de outros lugares, acredito.
– Istambul está submersa em túmulos. As pessoas os amam. Estão até nos
pátios das casas. Num domingo turco vi, pela fresta de uma porta, um velho
sentado em seu jardim, as costas contra a coluna branca de um túmulo (...).
Já tinha visto no chão dos pátios de muitas casas, em Rodosto e noutras

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partes, lanternas velando os mortos familiares, bem junto à soleira das portas.
(LE CORBUSIER, 2007; p.104).
Segundo Faure (1949), a arte bizantina valoriza o espírito em detrimento do
corpo, empregando um estilo de imagem mais rígido, portanto, mais figurativo,
contrapondo-se aos ideais gregos de racionalidade e de valorização do homem. Em
contrapartida, os olhares serenos das figuras, os quais nos incitam à oração,
conduzem-nos a sensação de transcendência, ou seja, simbolicamente garantem o
que Faure denominou de “sobrevivência das almas”.

Ainda na perspectiva de Faure, “o luxo cruel das monarquias do Oriente”,


evidente nas construções de suas mesquitas e palácios, contrapõem-se a essa noção
de espiritualidade:

Semelhante gosto material nunca prendeu o sentimento popular à


letra de uma religião que reivindica o puro espírito. Os mármores venulados,
os mosaicos policromos, as grandes pinturas das abóbadas, dos muros, dos
pingentes que permitiam inscrever exatamente no quadrado do edifício o
pesado círculo da cúpula constelada, a barreira de prata do santuário, o altar
de ouro, a tribuna de ouro, os seis mil candelabros de ouro (...) das rígidas
vestes brochadas em que se imobilizam os ídolos vivos, o Imperador e o
Patriarca, era como uma enorme esfera de diamante atravessada de chamas,
um esplendor suspenso por grinaldas de luz (Faure, 1949, p. 107).
Prosseguindo a viagem, dirigimo-nos a atmosferas menos densas, aos
arredores de Florença, especificamente na Cartuxa do Vale de Emma1. Fundada em
1342, por Niccolò Acciaiolide, valeu-se dos estilos românico e gótico, além de abrigar
em seu interior importantes obras de arte, atribuídas à Donatello e Francesco da
Sangallo. Entretanto, Le Corbusier interessou-se, sobretudo, pela configuração
espacial do mosteiro, no que se refere aos seus pátios, jardins e celas, as quais se
localizam afastadas da entrada da cartuxa, garantindo elevado grau de privacidade.
(SIQUEIRA, 2014).

Consoante Siqueira, Le Corbusier tomou a Cartuxa do Vale de Ema como ponto


de partida para as visitas que se sucederiam, anos depois, a outras construções
pertencentes à Ordem das Cartuxas: Florença, Pavia, Clermont, Veneza e Grenoble,
construídas em diferentes períodos da idade média, agregando as suas estruturas,
por conseguinte, padrões românicos, góticos e, em última instância, renascentistas.

Ademais, Le Corbusier demostrou grande apreço pelos jardins das cartuxas,


os quais não se restringiam à vegetação ornamental, visto que incorporavam árvores
frutíferas e até mesmo hortas. Tais jardins, ao exigirem os cuidados dos monges,

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funcionavam como uma ponte que os levava de encontro a sua espiritualidade,
alcançada ao se interligarem à natureza. Logo, os jardins amenizavam a solidão dos
monges, decorrente do seu estado de isolamento.

Tal vínculo com a natureza, o qual Le Corbusier acreditava já não existir mais
nas cidades modernas da Europa Ocidental, reaparece ao longo de toda a viagem
pelo Oriente. O arquiteto pôde observar a forma que as construções se integravam às
paisagens, não como um elemento agressivo, mas como parte constituinte delas.
Suas tonalidades pareciam sempre estabelecer diálogo com o azul do céu ou o verde
das plantações. A descrição “Assim cada casa tem seu pátio e ali a intimidade é tão
perfeita quanto nos jardins dos padres do convento de Ema (...). A beleza, a alegria e
a serenidade concentram-se aqui”, refere-se às humildes residências encontradas por
Le Corbusier na Hungria, nitidamente espirituosas, uma vez que as famílias prezam o
bem-estar, mantendo suas casas decoradas com flores e com objetos nas cores verde
e vermelha, contrapondo-se às paredes caiadas.

Anos mais tarde, Le Corbusier se inspiraria nas experiências sensitivas


adquiridas tanto nos mosteiros da Ordem Cartuxa, quanto nas cidadezinhas do
Oriente. A configuração espacial da Cartuxa de Emma era ideal para projetos de
habitação popular, levando-o a criar Immeuble-villas, um conjunto habitacional
formado por células de habitação, áreas de uso comum e por jardins suspensos. Aliás,
a ideia de promover o reencontro do homem moderno com a natureza permaneceria,
aparecendo nos terraços jardins, um dos cinco pontos2 da arquitetura moderna
propostos por Le Corbusier.

De acordo com Gonçalves (2012), “o arquiteto moderno questiona a história


diferentemente porque, libertando-a da sua manifestação estilística, a vê com o
pensamento e interpreta com a necessidade”. Como podemos perceber, Le Corbusier
não procurava na viagem de arquitetura a reprodução de formas clássicas, mas via
em seu funcionamento e em suas estruturas, caminhos a se explorar, moldando as
formas do futuro.

Nesse sentido, o clímax da viagem se dá no Partenon, figura de grande poder,


praticamente inserida, se já não está, no imaginário coletivo humano, um referencial
para diversas civilizações ao longo do tempo. Le Corbusier não tinha palavras para

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descrever a ansiedade que o dominava horas antes de subir a Acrópole. Não
compreendia o fascínio que aquela construção de ordem dórica exercia sobre si.
Talvez fosse pela simplicidade de sua estrutura trílitica, comparada por Conti (1987)
aos túmulos pré-históricos, talvez fosse pelo uso das proporções perfeitas:

Por que essa arquitetura e não outra? Admito que a lógica explique que tudo
se resolveu aqui segundo a mais insuperável fórmula; mas o gosto, mas o
coração sobretudo, que conduz os povos e dita seu credo, por que, apesar
do desejo de às vezes subtrair a ele, nos traz de volta, por que o trazemos de
volta aqui, na Acrópole, ao pé dos templos? Para mim é um problema
inexplicável. (LE CORBUSIER, 2007; p. 193).
De fato, além das questões simbólicas acerca do Partenon, Conti pontua
particularidades de sua estrutura que o distinguem de outros templos, a começar por
suas colunas, as quais não são idênticas entre si. As colunas centrais, dispostas no
plano dos frontões, são um pouco mais altas do que as colunas dispostas nas
extremidades, fazendo com que visualizamos uma pequena distorção em suas linhas
horizontais. Em um futuro próximo, segundo Gardiner, Le Corbusier exploraria
questões semelhantes, ao trabalhar com o contraste entre planos verticais e
horizontais.

Se em um passado remoto o sol iluminava as vivas cores do Partenon, agora


o branco de suas faces integra-o ao restante das ilhas de mármore e pedra calcária.
O mesmo branco das paredes das casinhas turcas, o mesmo branco das velas de
milhares de embarcações que cruzam diariamente o Danúbio, conectando dois
continentes e dois mares, misturando-se a diferentes tons de azul.

Esse mesmo branco, seria absorvido pelo espírito criativo de Le Corbusier de


tal forma, que daria identidade aos seus projetos. Conforme Gardier, tornar-se-ia uma
marca da arquitetura moderna, largamente reproduzida nos anos 20 e 30,
caracterizando o estilo que ficou conhecido como arquitetura branca.

Sendo assim, Le Corbusier demostrou que recorrer ao passado não é um


“entrave ao progresso”, ao contrário, promove uma bagagem essencial ao trabalho de
um arquiteto (Gardier, 1977). Mais do que isso, provou nossa estrita relação com o
Oriente, importando, desde os primórdios da humanidade, elementos culturais,
científicos e materiais dessas regiões. Importação essa que muitas vezes ocorre de
forma conflituosa, principalmente quando se sobressaem sentimentos de

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superioridade, em ambas as partes, resultando em um dos elementos arquitetônico
mais antigos da humanidade: os muros.

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REFERÊNCIAS

CONTI, F. Arquitectura. In: ________. (Org.). Como reconhecer a arte: Grega. São
Paulo: Martins Fontes, 1987; p.6-31.

FAURE, É. Bizâncio. In: ________. (Org.). História da arte: A arte medieval. Lisboa:
Estúdios COR, 1949. p. 103-114.

GARDINER, S. Introdução: o artista. In: ________. (Org.). Le Corbusier. São Paulo:


Ed. da Universidade de São Paulo, 1977; p.13-35.

GARDINER, S. Primeiros temas. In: ________. (Org.). Le Corbusier. São Paulo: Ed.
da Universidade de São Paulo, 1977; p.36-63.

GONÇALVES, J.F.C. Motivação e consequência da viagem na arquitetura de Le


Corbusier: viagem ao Oriente e América Latina. Rio de Janeiro, n.18, p. 196-214,
jul.2012.

Le Corbusier. A viagem do Oriente. São Paulo: Cosac Naify, 2007.

SIQUEIRA, M. Le Corbusier e as casas dos monges brancos. III Enanpar. São Paulo,
2014.

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