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BATISTA, Vera Malaguti. Introdução Crítica à Criminologia Brasileira.

Rio de Janeiro: Revan, 2011.

Cap. X – O grande encarceramento

Os criminólogos críticos dos anos setenta do século XX não poderiam

adivinhar os novos sentidos do processo de acumulação de capital. A crise

recessiva mundial, a década perdida dos oitenta e seus personagens Reagan,

Thatcher, enfim o que se denominou “neoliberalismo”, trouxe o sistema penal

para o epicentro da atuação política. A prisão não perdeu sentido, embora o

trabalho vivo de uma forma geral tenha mudado seu espaço no admirável

mundo novo. O singular do neoliberalismo foi conjugar o sistema penal com

novas tecnologias de controle, de vigilância, de constituição dos bairros pobres

do mundo em campos de concentração. No Rio de Janeiro, de onde escrevo, a

governamentalização da segurança pública conjuga o maior índice de mortos

pela polícia, os famigerados autos de resistência (mais de mil por ano) com a

pacificação das favelas. É importante atentar para o uso histórico no Brasil (e

no mundo, vide a pax romana) dessa expressão: após os embates populares

pela radicalização da idéia de direitos na década de trinta do século XIX, as

rebeliões foram massacradas para a pacificação da década de cinquenta, que

instituiu o império brasileiro. Os medos do povo e dos seus desejos de nação

produziram o mais lento processo de emancipação da escravatura, aliado ao

embranquecimento da classe trabalhadora e de massacres consentidos de

rebeliões e revoluções como a dos Farrapos, dos Malês, dos Cabanos e

outros. Revoluções adiadas, diria Marildo Menegat. As favelas do Rio que

estão ocupadas manu militari são vendidas como um modelo que se


assemelha aos territórios ocupados da Palestina: muros, controle minucioso da

movimentação, novas armas, novas técnicas, mas principalmente uma gestão

policial da vida. É o oficial de plantão da polícia que decide se vai ou não haver

festa, batizado ou baile funk. Os jornais estampam fotos de policiais oferecendo

chocolate na Páscoa, igualzinho aos americanos no Iraque. Mas os moradores

adultos se recusam a conversar. O Rio de Janeiro converteu-se num

laboratório de projetos de controle social por ocupação que se inspiram na

Colômbia, no Iraque, na Palestina, nos territórios do mal como diria Bush.

Mas essa torturante contemporaneidade foi delineada por Loïc

Wacquant ao demonstrar a ascensão do Estado Penal como algo

correspondente ao desmonte do Estado Previdenciário dos Estados Unidos.

Como ele mesmo diz, esse vento punitivo soprou da América para a Europa e

de lá para as velhas colônias. O sistema penal tornou-se o território sagrado da

nova ordem sócio-econômica, atualizando a reflexão de Rusche: sobram

braços e corpos no mercado de trabalho, aumentam os controles violentos

sobre a vida dos pobres.

A grande mídia tem sido um obstáculo a uma discussão aprofundada

sobre a questão criminal. É ela quem produz um senso comum que nós

chamamos de populismo criminológico. Zaffaroni analisou como o declínio do

público e a ascensão do privado fizeram com que restasse ao Estado o poder

de polícia. Se a política não tem como reduzir a violência que o modelo

econômico produz, ela precisa mais do que de um discurso, precisa de um

espetáculo. E é nessa policização da política que a vítima (preferencialmente a

rica e branca) vai para o centro do palco, é ela que vai produzir as

identificações necessárias para a inculcação de uma subjetividade punitiva.


Nossas matrizes ibéricas já trabalham com o dogma da pena, mas os novos

tempos renovaram essas mentalidades. É Zaffaroni quem também demonstra

as marcas do inimigo, essa figura que vem da Inquisição mas que se teoriza

juridicamente no nazismo de Carl Schimitt, para aportar no novo direito penal.

Se os Estados Unidos são os maiores carcereiros do mundo, o Brasil passou a

ocupar um lugar importante: em 1994 (quando FHC aprofunda o que Collor

havia tentado) o Brasil tinha 110.000 prisioneiros. Em 2005 já eram 380.000 e

hoje estamos com cerca de 500.000 presos e 600.000 nas penas alternativas.

Aprendi com Maria Adélia Aparecida de Souza e sua geografia brasileira como

bairros e até cidades se transformaram em prisões, como é o caso de

Hortolândia em São Paulo. Guarapuava já foi no século XIX um lugar de

degredo, não é coincidência que seja hoje uma prisão de segurança máxima.

Com a mais dramática expansão carcerária da história da humanidade

conjugam-se prisões decrépitas com imitações da supermax estadunidense e

seus princípios de incomunicabilidade, emparedamento e imposição de dor e

humilhações aos familiares dos presos. Perdemos a mordida crítica que

tínhamos contra o autoritarismo na saída da ditadura e hoje aplaudimos a

tortura e o extermínio dos inimigos de plantão. O importante é traduzir toda a

conflitividade social em punição.

O importantíssimo livro de Anitua nos fala de um marco geral das

políticas criminais contemporâneas como compreensões determinadas da

questão criminal que produzem desdobramentos e estratégias políticas

distintas para o enfrentamento dos problemas. Ele aponta para três grandes

linhas: “lei e ordem”, direito penal mínimo e abolicionismo penal. Para além das

simplificações e maniqueísmos, afinal, não é só a direita que aposta na lei e


ordem, não é só no centro que pontua o direito penal mínimo e nem tampouco

a esquerda é abolicionista. Tentar entender esse panorama numa perspectiva

mais ampla é inseri-lo no que Zaffaroni chamou de curso dos discursos sobre a

questão criminal. Lembrando sempre a lição de Pavarini, temos que eclipsar o

objeto criminológico para entende-lo através das demandas por ordem.

Historicamente, nas relações entre o capital e o poder punitivo vimos como,

entre os séculos XIII e o XVIII, constitui-se a pena pública e organiza-se o

sistema penal. E também como, entre o XVIII e o XIX, a prisão e seus saberes

constituem-se na principal pena do ocidente. O século XX e o saber sociológico

produziram para o integracionismo do Welfare System uma crítica dos

processos de criminalização que foram potencializados pela criminologia

marxista e anarquista. O século XXI acontece no esplendor do neoliberalismo e

na sua crise. Seu caráter suicida, de capitalismo de barbárie, vai intensificar

relações entre o mercado, a mídia e o capital vídeofinanceiro.1 A questão

criminal transformou-se numa mercadoria de altíssimo valor para a gestão

policial e para ganhos concretos. Vamos resumir com Anitua essas diferentes

estratégias para o enfrentamento da questão criminal.

Para Anitua, “lei e ordem” seria parte da base ideológica criminal da

intolerância. Como disse Salo de Carvalho, ao analisar a política criminal de

drogas, essa estratégia se sustenta num tripé ideológico entre as ideologias da

defesa social, da segurança nacional e do direito penal do inimigo. Ela brota na

década de sessenta contra a criminologia crítica, o abolicionismo e o

rotulacionismo que lutaram junto aos movimentos sociais contra o poder

punitivo. Nos Estados Unidos essa estratégia orienta toda a produção

1
Cf. VASCONCELLOS, Gilberto Felisberto. O Príncipe da Moeda. 2.ed. Rio de Janeiro:
Espaço e Tempo, 1997.
legislativa em matéria criminal para a “guerra contra as drogas”, recuperando

do positivismo o caráter patológico do crime. Com o auxílio luxuoso da mídia e

suas campanhas de alarme social, inculcaram as teorias do senso comum,

ampliando o espectro punitivo, impondo penalidades mais severas,

flexibilizando as garantias, mas, principalmente fortalecendo o dogma da pena

como solução por excelência para os conflitos humanos. Nilo Batista

demonstra as relações entre mídia e sistema penal no capitalismo de barbárie,

denunciando seu inédito protagonismo. Quem pauta as agências do sistema

penal é o monopólio global da mídia no Brasil.2

A “lei e ordem” se insurgiu contra a “leniência” dos anos setenta,

restabelecendo uma pugna entre o bem e o mal nessa “criminologia da vida

cotidiana”. James Wilson foi o grande intelectual orgânico dessa escola, como

membro do Partido Republicano e da Rand Corporation. Seu livro Pensando

sobre o Delito, de 1975, transformou-se no livro de cabeceira do realismo

criminológico de direita. A relação que ele estabeleceu entre os índices

delitivos e as possibilidades de ser preso pontuam até hoje os discursos

criminológicos hegemônicos em nosso país e é responsável pelo

recrudescimento das penas mais pesadas, inclusive a pena de morte.

Anitua cita também Ernest Van der Haag, que lança em 1975

Castigando os Delinqüentes. Ali ele desenvolve um cálculo utilitarista que tem a

ordem como valor jurídico supremo. Para ele é mais fácil dissuadir que

reabilitar e ele classifica os “delinqüentes” em três tipos: maus, inocentes e

calculadores. A partir dessa tosca classificação sua proposta é: separar os

maus, proteger os inocentes e convencer os calculadores das relações


2
BATISTA, Nilo. Mídia e sistema penal no capitalismo tardio. In: Discursos Sediciosos –
Crime, Direito e Sociedade, n. 12. Rio de Janeiro: Instituto Carioca de Criminologia/Revan,
2002, pp. 271-288.
custo/benefício. É uma fusão sinistra do positivismo com o contratualismo

utilitarista, e ainda uma pitada de Pavlov. Sua máxima economicista é: quem

faz tem que pagar. O retributivismo volta à cena e a crítica à ressocialização

vem junto ao fim do Welfare System, do Estado Previdenciário.

Nos anos oitenta, Wilson se converte no principal assessor de Reagan

difundindo a Teoria das Janelas Quebradas, em 1981. Sua proposta de

criminalização dos pequenos delitos foi vendida como a mercadoria mais

barata, mais eficiente, mais visível e mais próxima. A moda demorou a chegar

na nossa colônia mas aí está até hoje... Como diria Nilo Batista, ao falar da

virada do XIX para o XX, e suas medidas de segurança, as elites neoliberais

precisam de pena para além do delito: a idéia de condutas desordeiras ou

antisociais criminalizadas resultou em seletividade, estigmatização e

criminalização dos pobres em todo o mundo. A Prefeitura do Rio hoje faz parte

da vanguarda desse atraso: choque de ordem, remoções, prisões de camelôs,

flanelinhas. A política da Tolerância Zero já é página virada em New York e

recebeu profundas e oportunas críticas da criminologia em geral, mas ainda

rende boas consultorias abaixo do Equador. Hart e Fridman, em Castigo e

Responsabilidade, apostam nessa linha de causalidades envolvendo os

conceitos de indivíduos, escolhas racionais e críticas economicistas.

Essa ideologia, ou cultura ou discurso criminológico, é que deu

sustentação conceitual à política de criminalização do excedente de mão-de-

obra para o grande encarceramento. Ela tem marcas no direito e no processo

penal, além da expansão sem fronteiras do sistema penal: do RDD ao controle

a céu aberto de que fala Passetti.3 É o que Wacquant denominou de onda

3
Cf. PASSETTI, Edson. Ensaio sobre um abolicionismo penal. Verve (PUCSP), São Paulo,
v. 9, p. 83-114, 2006.
punitiva. Essa cultura fortaleceu como nunca o direito penal simbólico e sua

perene emergência. Ninguém trabalhou melhor o direito penal do inimigo do

que Zaffaroni, contestando em Jakobs e sua genealogia a retomada da

prevenção geral em nossa margem. A grande mídia foi sua principal aliada e

condutrice, replicando o espetáculo da “criminalidade”, vendendo sua vigilância

eletrônica, apregoando a punição como a catarsis popular.

O vídeocapital financeiro foi o grande legitimador da policização da vida

e da legitimação do poder punitivo. Foi ele quem produziu a adesão subjetiva à

barbárie. Infelizmente a esquerda seduziu-se por esse poder. Na Inglaterra de

Tony Blair e pelo mundo espraiou-se teoricamente o realismo de esquerda,

convocando os criminólogos e as ciências sociais a colaborarem com a

governamentalização do Estado penal. Como na colônia a moda demora a

chegar, estamos no auge da produção “realista de esquerda”. É só olhar a

sociologia e suas assessorias e planos para os governos que atiram a nossa

polícia aos maiores índices de letalidade do mundo, e também ao sofrimento

psíquico e físico. Os policiais e os que ganham a vida na segurança privada

são as categorias de trabalhadores mais sofridas nos dias de hoje.

Voltando ao marco geral de Anitua das políticas criminais

contemporâneas temos um conceito abrangente de direito penal mínimo que

envolve um espectro não homogêneo de forças teóricas e políticas também

conhecidas como reducionistas, minimalistas ou garantistas penais. É um olhar

menos sociológico e mais jurídico, crítico do sociologismo na criminologia. Seu

surgimento não é casual, vem da resistência de vários matizes às grandes

violações dos direitos humanos dos anos setenta. Aliás, o garantismo tem a

______.; Louk Hulsman e o abolicionismo penal. Verve (PUCSP), São Paulo, v. 12, 2007.
idéia de direitos humanos como tema central, do “imperialismo dos direitos

humanos” de Hobsbawn à militância de esquerda contra as violências do

Estado. Tendo a justiça como trincheira, retomam-se alguns postulados

liberais, radicalizando na direção do uso alternativo de direitos, da produção de

novos direitos e na lenda fundacional do iluminismo, o Estado Democrático de

Direito.

O minimalismo contrapôs-se à legislação fascista na Itália e na Espanha,

à legislação anti-terror e ao autoritarismo na América Latina, mas produziu

também uma ressalva à criminologia crítica da mesma natureza da linha “lei e

ordem”: uma convocação a produzir alternativas práticas ao invés de constituir

“diques utópicos à barbárie”, como diria Marildo Menegat. De uma maneira

geral contribuiu para a jurisdicionalização da vida cotidiana e para a

maximização das intervenções jurídicas.

Para demonstrar a diversidade qualitativa e teórica do direito penal

mínimo, Anitua trabalha as diferenças entre Alessandro Baratta, Raúl Zaffaroni

e Luigi Ferrajoli no curso desses discursos. O que os separa na verdade é o

grande divisor de águas na criminologia e no direito penal: teorias legitimantes

ou deslegitimantes da pena. Muitos abolicionistas atuam na trincheira

garantista e muitos militantes de movimentos sociais apostam no poder punitivo

para “fazer justiça”. Não é simples a questão.

Alessandro Baratta marcou uma presença fundamental no pensamento

jurídico crítico da América Latina e pensou o direito penal como uma práxis

teórica alternativa, uma saída para os impasses do pensamento jurídico-penal,

o que ele chamou de novo modelo integrado de direito penal e criminologia.

Seu artigo dos anos oitenta Os princípios do direito penal mínimo apontavam
limites à potencialidade lesiva: limitação formal, limitação funcional e limitação

pessoal. Otimista com o futuro, e quem conheceu sua doçura e simplicidade

pode imaginar, ele pensava um mundo menos punitivo e trabalhou na

Alemanha sua teoria deslegitimante da pena. Criou uma escola fértil e fecunda

de pensamento crítico que ecoa forte até hoje através dos seus magníficos

seguidores no Brasil como Juarez Cirino dos Santos, Vera Andrade, Ana Lúcia

Sabadell, Teodomiro Dias Neto e outros. Baratta tinha também uma sólida

formação marxista.

Já Luigi Ferrajoli duelava com as ampliações do poder puntivo e com a

teoria crítica. Sua obra não produziu uma teoria deslegitimante da pena. Seu

garantismo critica a expansão mas justifica o sistema penal. Para Anitua, sua

crítica não aprofunda, produzindo uma contradição entre essa justificação e

essa deslegitimação não pela coisa em si, mas pelo seu excesso. Desde a

teoria marxista até os leitores de Foucault, como Agamben, está demonstrado

que o excesso, ou a exceção, fazem parte do que foi historicamente o papel do

poder punitivo no capitalismo. Nilo Batista percebeu algo de religioso nos dez

mandamentos de Ferrajoli: retributividade, legalidade, necessidade, lesividade,

materialidade, culpabilidade, jurisdicionalidade, acusatório, carga de prova,

contraditório. Enfim, um “utilitarismo penal reformado” aonde a idéia de

prevenção retorna triunfante para a utilização das penas alternativas ou

informais. Como disse Baratta, temos de pensar em alternativas à pena e não

em penas alternativas. É curioso notar que sua entrada maciça nos cursos de

direito no Brasil (muito mais lido do que Baratta) acabou por adaptar-se à

expansão do sistema penal. A prisão só se agigantou e se articulou com uma

miríade de controles sobre os pequenos conflitos domésticos e privados. O


pensamento de Habermas repercutiu na teoria sistêmica de Luhman e outros;

entrou na academia brasileira nesse vácuo, dominando obsessivamente o

pensamento jurídico nacional. Os adeptos da jurisdicionalização da vida vão

estar bem no centro do grande encarceramento, tendo à direita seus

companheiros da lei e ordem (é só ver os cursos de segurança pública e

direitos humanos para policiais) e à sua esquerda os companheiros da

esquerda punitiva e seus faróis para trás.

Nesse marco, fulgura Eugenio Raúl Zaffaroni e seu pensamento singular

e marcado pela sua trajetória latino-americana. Anitua conta um pouco sua

história e a mudança de perspectiva que ele delineia em 1990 quando

homenageia Hulsman e o abolicionismo em Em Busca das Penas Perdidas.

Ele retrata a reconstrução da dogmática jurídico-penal, que ele conduz para

além do finalismo e da ressocialização, numa perspectiva deslegitimadora e

abolicionista, com suas marcas existencialistas e cristãs. Ali ele introduz sua

visão sobre o sistema latino-americano:

A seletividade, a reprodução da violência, a criação de condições


para maiores condutas lesivas, a corrupção institucionalizada, a
concentração de poder, a verticalização social e a destruição das
relações horizontais ou comunitárias não são características
conjunturais, mas estruturais do exercício de poder de todos os
4
sistemas penais.

Para ele a pena aparece como fato de poder não legitimado. Introduz ali

a idéia de uma criminologia clínica e uma clínica da vulnerabilidade na direção

contrária da policização e da burocratização. Seu livro Criminología,

Aproximación desde un Margen produziu a idéia de realismo marginal e de que

a criminologia é um curso (no sentido dos rios) dos discursos sobre a questão

criminal e de que temos que entender essa acumulação de discursos a partir


4
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em Busca das Penas Perdidas: a perda da legitimidade do
sistema penal. Trad. Vânia Romano Pedrosa Rio de Janeiro: Revan, 1991. p. 15.
de nossa margem latino-americana. Seus últimos textos, que trabalham a

construção do genocídio (para que ele aconteça tem que haver discursos

legitimadores), trouxeram uma questão fundamental: utilizando o conceito de

técnicas de neutralização, ele pergunta porque historicamente a criminologia

não tratou dos genocídios, todos realizados pelos sistemas penais estatais,

pelas polícias ou por forças armadas em função de polícia. Com a palavra os

sociólogos, psicólogos, antropólogos que ganham a vida governamentalizando

o grande encarceramento. Para fechar, o que difere o direito penal mínimo de

Ferrajoli versus Baratta e Zaffaroni é a teoria deslegitimante do poder punitivo,

empreendida pelos últimos. Eles trabalham o garantismo numa perspectiva

política, histórica e por isso muito mais ampla. É Salo de Carvalho que entende

o garantismo como uma estratégia abolicionista a partir do conhecimento

histórico das funções da pena e do sistema penal. Curiosamente, parte da

esquerda, ao tratar do sistema penal, despreza as garantias (como privilégios

de classe) mas não descarta a pena.

Nilo Batista resplandece como alguém que conheceu e militou um

garantismo à brasileira, e com ele homenageia todos os que, na trincheira do

direito penal, duelaram com a pena, “esse monstro que só olha para trás”, a

partir da realidade do nosso país. Seu livro, que aqui homenageamos,

Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro, é leitura obrigatória também na

perspectiva da compreensão do garantismo deslegitimante. Sua parceria

intelectual com Zaffaroni, na tradução brasileira do Direito Penal, é um marco

no pensamento jurídico do continente. Os criminólogos da nossa margem não

vão poder deixar de lê-los. No Brasil núcleo de força, diques de resistência

garantista em torno de Salo de Carvalho, Geraldo Prado, Luis Gustavo


Grandinetti, Jacinto Nelson Coutinho, Sérgio Salomão Shecaira, Alberto Silva

Franco e tantos outros que tentam conter a onda punitiva.

Por fim, no espectro das políticas criminais contemporâneas ressurge,

fortemente, o abolicionismo, como decorrência também do grande

encarceramento. No capítulo de Anitua sobre o abolicionismo ele o aponta

como a crítica mais profunda à “racionalização” do poder de punir que só

aumenta a violência. Como diz Passetti, a pena ou o castigo não está só no

sistema penal, ele é um dispositivo que produz assujeitamentos e

verticalizações na pedagogia, na psicologia, na família. É uma lógica

instaurada a partir da escolástica e para Louk Hulsman a escolástica é a

verdadeira fundadora da lógica penal. A crítica foucaultiana, baseada também

em Rusche, propõe uma desconstrução da pena e do sistema penal a partir do

desvelamento de suas funções históricas e concretas. Como na “Lei e Ordem”

e no Direito Penal Mínimo, não há maniqueísmos. O abolicionismo é amplo,

está na deslegitimação mais profunda da pena em diferentes estratégias

políticas e jurídicas: no liberalismo, no marxismo, no anarquismo mas também

na criminologia crítica e no garantismo.

Para Anitua os antecedentes do Abolicionismo vêem numa seqüência

histórica desde William Godwin (1756-1836), o primeiro teórico do anarquismo

a articular uma crítica às relações entre organização política, contrato social,

propriedade privada, Estado e castigo. Depois, a linda figura de Josephine

Butler (1828-1906), a dama vitoriana que protegia as prostitutas do higienismo

policial do seu tempo. Na tradição anarquista, desde Etienne de la Boétie,

passando pela revolução dos iguais, do começo do século XX até hoje, lutou-

se contra o sistema penal e as prisões. Essa história, no mundo e no Brasil,


pode ser conhecida em torno de Edson Passetti e seu Núcleo de Sociabilidade

Libertária (NU-SOL) que reúne as memórias e os devires do abolicionismo

anarquista na Criminologia.

Nos anos sessenta um conjunto de movimentos políticos contra a prisão

dirigiu sua militância para os presos e seus familiares: o Krum na Suécia em

1965, o Krim na Dinamarca em 1967, o Krom na Noruega em 1968, o Krak na

Alemanha em 1970, a Liga Coohnhert na Holanda em 1971, o RAP (Radical

Alternatives to Prison) na Inglaterra dos anos setenta, bem como o PROP

(Preservation of the Rights of Prisoners). A Holanda é um centro histórico de

pensamento abolicionista, com raízes na pensadora libertária Clara Meijer

Wichmann (1895-1922) e em William Bonger (1876-1940), que do ponto de

vista marxista relacionava capitalismo e direito. Mas ninguém radicalizou mais

a deslegitimação do direito penal no marxismo do que o soviético Pashukanis

(1891-1938), cujo pensamento avant la lettre pagou um preço muito alto em

tempos difíceis. Na Holanda, Bianchi lutou contra as prisões e a idéia de

castigo e Louk Hulsman desconstruiu a definição de delito como utopia

negadora da realidade, propondo a idéia de situação problemática como um

contraponto ao confisco da vítima. Foi ele o maior de todos os cronópios, o

grande arquiteto da política de drogas na Holanda. Em 1983, o abolicionismo

entra no 9º Congresso Mundial de Criminologia em Viena e acontece também o

1º Congresso Internacional de Abolicionismo realizado pelos Quakers no

Canadá.

Seguindo as pegadas de Anitua vale pontuar sobre a obra do marxista

norueguês Thomas Mathiesen, fundador do Krom, sociólogo e filósofo, autor de

As Políticas da Abolição (1974). Para ele o sistema penal pode sempre piorar e
por isso problematiza a militância entre a reforma e a revolução, entre a luta

pela extinção do sistema penal e sua melhoria na atualidade. Ele dizia que a

estratégia abolicionista era inacabada e discutia com o garantismo e o realismo

de direita.

Nils Christie é um dos mais importantes autores abolicionistas cujo livro

mais conhecido no Brasil é A Indústria do Controle do Crime, de 1983. Crítico

do controle, em 1977 escreveu uma obra ligada a sua militância comunitarista

(Conflitos como Pertencimento) e, em 1981, lançou Os limites da dor onde se

contrapõe á categoria natural de delito. Seu último livro faz uma aguda crítica

ao papel da utilização da vítima como dispositivo de expansão do poder

punitivo, já que o abolicionismo propõe papel não vitimizável nos conflitos intra-

humanos. Na Alemanha, Anitua também cita Heinz Steinert e Sebastian

Scheerer, que escreveram contra o que denominaram empresários morais

“atípicos”: realistas de esquerda, feministas, ambientalistas e outros. Salo de

Carvalho, no livro Diálogos sobre a Justiça Dialogal, faz uma boa resenha das

idéias político-criminais dos anos sessenta e setenta que propunham outras

instâncias de resolução de conflitos no sentido da contração e da substituição

do sistema penal.

Mais que uma escola ou um marco, o abolicionismo é um movimento.

Zaffaroni faz a seguinte tipologia desse movimento: Foucault estaria na análise

estrutural historicista das fundações discursivas; Mathiesen no paradigma

marxista-materialista; Christie no modelo fenomenológico-historicista do

controle e da dor e Hulsman numa fenomenologia das situações problemáticas

na perspectiva da abolição de todos os sistemas formais. Sua presença na

América Latina marcou algumas gerações brasileiras. Sua vida, a luta contra o
nazismo e contra as opressões, sua militância anti-proibicionista, sua doçura,

sua jardinagem e culinária fazem parte da memória viva da história da

criminologia.

No Brasil, Edson Passetti e o NU-SOL são o grande foco de produção e

militância acadêmica abolicionista e Maria Lúcia Karam a mais fina jurista e

militante antiproibicionista, contra a violência dos sistemas penais. A doce e

impávida figura de Evandro Lins e Silva, nosso eterno Ministro, foi o mais

corajoso crítico da instituição prisional.

Esse movimento amplo, generoso, libertário e heterogêneo pode limitar-

se fenomenologicamente se não conseguir produzir uma crítica às funções do

poder punitivo no capitalismo. Começamos o curso desses discursos

lembrando com Anitua, Zaffaroni e Foucault o confisco do conflito, a Inquisição,

a centralização da Igreja e do Estado no processo que se instaurava de

acumulação de capital. Quem percorreu esse caminho crítico, fatalmente será

um abolicionista. Fica a pergunta de Salo de Carvalho: é possível, nos tempos

do grande encarceramento, ter o abolicionismo como meta e o garantismo

como estratégia?

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