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O OPERÁRIO EM CONSTRUÇÃO – Vinícius de Moraes – (Rio de Janeiro, 1956)

Professor Ronildo do Nascimento – Língua Portuguesa

E o Diabo, levando-o a um alto monte, mostrou-lhe num momento de tempo todos os reinos do
mundo. E disse-lhe o Diabo:
- Dar-te-ei todo este poder e a sua glória, porque a mim me foi entregue e dou-o a quem quero;
portanto, se tu me adorares, tudo será teu.
E Jesus, respondendo, disse-lhe:
- Vai-te, Satanás; porque está escrito: adorarás o Senhor teu Deus e só a Ele servirás.
Lucas, cap. V, vs. 5-8.

Era ele que erguia casas O operário foi tomado Cresceu em alto e profundo
Onde antes só havia chão. De uma súbita emoção Em largo e no coração
Como um pássaro sem asas Ao constatar assombrado E como tudo que cresce
Ele subia com as casas Que tudo naquela mesa Ele não cresceu em vão
Que lhe brotavam da mão. - Garrafa, prato, facão - Pois além do que sabia
Mas tudo desconhecia Era ele quem os fazia - Exercer a profissão -
De sua grande missão: Ele, um humilde operário, O operário adquiriu
Não sabia, por exemplo Um operário em construção. Uma nova dimensão:
Que a casa de um homem é um Olhou em torno: gamela A dimensão da poesia.
templo Banco, enxerga, caldeirão
Um templo sem religião Vidro, parede, janela E um fato novo se viu
Como tampouco sabia Casa, cidade, nação! Que a todos admirava:
Que a casa que ele fazia Tudo, tudo o que existia O que o operário dizia
Sendo a sua liberdade Era ele quem o fazia Outro operário escutava.
Era a sua escravidão. Ele, um humilde operário
Um operário que sabia E foi assim que o operário
De fato, como podia Exercer a profissão. Do edifício em construção
Um operário em construção Que sempre dizia sim
Compreender por que um tijolo Ah, homens de pensamento Começou a dizer não.
Valia mais do que um pão? Não sabereis nunca o quanto E aprendeu a notar coisas
Tijolos ele empilhava Aquele humilde operário A que não dava atenção:
Com pá, cimento e esquadria Soube naquele momento!
Quanto ao pão, ele o comia... Naquela casa vazia Notou que sua marmita
Mas fosse comer tijolo! Que ele mesmo levantara Era o prato do patrão
E assim o operário ia Um mundo novo nascia Que sua cerveja preta
Com suor e com cimento De que sequer suspeitava. Era o uísque do patrão
Erguendo uma casa aqui O operário emocionado Que seu macacão de zuarte
Adiante um apartamento Olhou sua própria mão Era o terno do patrão
Além uma igreja, à frente Sua rude mão de operário Que o casebre onde morava
Um quartel e uma prisão: De operário em construção Era a mansão do patrão
Prisão de que sofreria E olhando bem para ela Que seus dois pés andarilhos
Não fosse, eventualmente Teve um segundo a impressão Eram as rodas do patrão
Um operário em construção. De que não havia no mundo Que a dureza do seu dia
Coisa que fosse mais bela. Era a noite do patrão
Mas ele desconhecia Que sua imensa fadiga
Esse fato extraordinário: Foi dentro da compreensão Era amiga do patrão.
Que o operário faz a coisa Desse instante solitário
E a coisa faz o operário. Que, tal sua construção E o operário disse: Não!
De forma que, certo dia Cresceu também o operário. E o operário fez-se forte
À mesa, ao cortar o pão Na sua resolução.
Como era de se esperar Sentindo que a violência E o operário disse: Não!
As bocas da delação Não dobraria o operário - Loucura! - gritou o patrão
Começaram a dizer coisas Um dia tentou o patrão - Não vês o que te dou eu?
Aos ouvidos do patrão. Dobrá-lo de modo vário. - Mentira! - disse o operário
Mas o patrão não queria De sorte que o foi levando - Não podes dar-me o que é
Nenhuma preocupação Ao alto da construção meu.
- "Convençam-no" do E num momento de tempo
contrário – Mostrou-lhe toda a região E um grande silêncio fez-se
Disse ele sobre o operário E apontando-a ao operário Dentro do seu coração
E ao dizer isso sorria. Fez-lhe esta declaração: Um silêncio de martírios
- Dar-te-ei todo esse poder Um silêncio de prisão.
Dia seguinte, o operário E a sua satisfação Um silêncio povoado
Ao sair da construção Porque a mim me foi entregue De pedidos de perdão
Viu-se súbito cercado E dou-o a quem bem quiser. Um silêncio apavorado
Dos homens da delação Dou-te tempo de lazer Com o medo em solidão.
E sofreu, por destinado Dou-te tempo de mulher.
Sua primeira agressão. Portanto, tudo o que vês Um silêncio de torturas
Teve seu rosto cuspido Será teu se me adorares E gritos de maldição
Teve seu braço quebrado E, ainda mais, se abandonares Um silêncio de fraturas
Mas quando foi perguntado O que te faz dizer não. A se arrastarem no chão.
O operário disse: Não! E o operário ouviu a voz
Disse, e fitou o operário De todos os seus irmãos
Em vão sofrera o operário Que olhava e que refletia Os seus irmãos que morreram
Sua primeira agressão Mas o que via o operário Por outros que viverão.
Muitas outras se seguiram O patrão nunca veria. Uma esperança sincera
Muitas outras seguirão. O operário via as casas Cresceu no seu coração
Porém, por imprescindível E dentro das estruturas E dentro da tarde mansa
Ao edifício em construção Via coisas, objetos Agigantou-se a razão
Seu trabalho prosseguia Produtos, manufaturas. De um homem pobre e
E todo o seu sofrimento Via tudo o que fazia esquecido
Misturava-se ao cimento O lucro do seu patrão Razão, porém, que fizera
Da construção que crescia. E em cada coisa que via Em operário construído
Misteriosamente havia O operário em construção.
A marca de sua mão.

QUESTIONAMENTOS
1) Como é que o operário está relacionado àquilo que ele produz nesse poema?
2) Observe que a expressão-título do poema pode significar mais de uma coisa: Explique em que sentidos
“operário em construção” pode ser interpretado nesse texto.
3) Por que o texto é facilmente caracterizado como poesia?
4) Há diferença na compreensão do poema quando lido silenciosamente da leitura falada (declamada)?
5) Qual é o tema do texto? Justifique, com apoio no texto de Vinícius de Moraes, porque a simples
escolha do tema não define o gênero textual.
6) Por que a escolha vocabular apenas, nem o nível de linguagem, nem o tema são suficientes para a
caracterizar o texto como poema? Use outros exemplos como base de sua argumentação.
7) Explique o significado de "consciência política"?
8) Por que o operário foi agredido e porque o patrão tentou chantageá-lo? O patrão achava o operário
perigoso?

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