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ARTIGO ARTICLE 1295

Cidade sanatorial, cidade industrial: espaço


urbano e política de saúde em São José dos
Campos, São Paulo, Brasil

Health resort, industrial city: urban space and


health policy in São José dos Campos,
São Paulo, Brazil

Paula Vilhena Carnevale Vianna 1,2

Paulo Eduardo M. Elias 1,2

Abstract Introdução

1 Faculdade de Medicina,
This study is part of the renewed theoretical and Podemos apreender a política de saúde a partir
Universidade de São Paulo,
São Paulo, Brasil.
conceptual approach to space in health policies. do espaço, interpretando a configuração espacial
2 Centro de Estudos de The key potential of this approach lies in deal- como a materialização de ações decorrentes da
Cultura Contemporânea, ing with the organization of space as a product interação político-econômico-cultural?
São Paulo, Brasil.
of relations between society and state power, in- Conferir ao espaço um papel ativo na cons-
Correspondência fluenced by the economy and enabled by politics. trução da sociedade, e vice-versa, é tarefa com-
P. V. C. Vianna When understood as a social construction, such plexa, um desafio etimológico e metodológico 1,
Faculdade de Medicina,
Universidade de São Paulo. space provides the material basis for a histori- que incorpora ao espaço socialmente construído,
Rua José Pereira dos Santos cal narrative, allowing a better understanding of inicialmente investigado sob a ótica funcionalis-
269, São José dos Campos, SP
how policies are formulated and implemented in ta 2 e estruturalista 3, elementos como a subjeti-
12244-484, Brasil.
paulacarnevale@uol.com.br urban space. Based on this space, we investigate vidade 4 e o circuito econômico secundário 5. No
the policy governing the configuration of health Brasil, reflexões sobre o tema têm sido encontra-
services in the city of São José dos Campos, São das especialmente no campo da epidemiologia,
Paulo, Brazil, during two different periods: the na busca de compreensão e de instrumentaliza-
1920s, in which the town became a health resort, ção deste conceito renovado 6,7,8.
and the early 1980s, when the municipal public Desde o século XIX, cidades e saúde pública
health system was organized. A historical and dialogam. Aqui, como na Europa, intervenções
geographic social reconstitution revealed both urbanas e sanitárias se confundiam 7 para orga-
ambiguities and consistencies in a town whose nizar o inchaço urbano resultante do processo
health profile acquired the characteristics of an migratório e imigratório, que desenhou novos e
industrial city. isolados centros econômicos e sociais 9. Porém,
com o advento da era moderna, outros eram a
Health Policy; Tuberculosis; Urban Health cidade, o conceito de saúde e o circuito político e
econômico mundial.
No estágio atual do sistema capitalista, as ci-
dades se fundem no espaço metropolitano des-
concentrado, processo observado no Brasil a par-
tir de 1940, momento de acelerada urbanização,
ativada pela industrialização 10. Impulsionado
pelo poder público, o território se especializa,

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com a constituição de redes articuladas e inter- Estado desobrigou os hospitais das grandes cida-
dependentes 10. Nesse cenário, os serviços pú- des de tratar da tuberculose: seguindo o modelo
blicos se organizaram, como observado para as europeu, estimulou a construção dos sanatórios
cidades de São Paulo 11 e Rio de Janeiro 12, com no interior, preservando, assim, o investimento
base na lógica racional, e, sobretudo, econômica realizado na imigração de mão de obra para a
e privativa, que reforçou as diferenças de classe. nascente indústria 22.
Esse movimento se acentuou na década de Equipamentos fundamentais da política
1960 com o período militar: no novo meio técni- antituberculose, os sanatórios requalificaram o
co-científico, de atividades econômicas dinâmi- espaço terapêutico, diferenciando-se dos hospi-
cas, modernas e integradas 10, a saúde seria carac- tais de isolamento. Alpendres e amplas janelas
terizada como tecnologia e produto de consumo. opunham essas “organizações de cura” às claus-
É com a reforma sanitária que o questionamen- trofóbicas cidades, sendo sua segurança e efeti-
to técnico, e, na mesma medida, econômico e vidade legitimadas pelo discurso médico e pelo
ideológico, rearticula-se mais ativamente com o poder público 17. Na marcha dos sanatórios para
espaço: a atenção primária, erigida a ponto cen- o interior, o afastamento dos operários doentes
tral do sistema sob as diretrizes da Organização evitava o contágio e reduzia o custo direto para
Mundial da Saúde/Organização Pan-Americana a sociedade, processo sustentado pelo discurso
da Saúde (OMS/OPAS), direcionou a expansão modernizador da higiene.
e reformulação da rede pública de saúde, numa Na Europa, a rede sanatorial originou as cida-
descentralização mitificada, tida como estraté- des-estância 23, convertidas em símbolos da mo-
gia, por si só, simultaneamente democratizante dernidade ao introduzirem, nos hábitos rurais, a
e racionalizadora 13. cultura e o modo de vida burguês 24. O potencial
Nessa trajetória, a organização institucio- climático de Campos do Jordão, em São Paulo,
nal do espaço pode ser revelada por meio dos Brasil, foi identificado pelas expedições geo-
equipamentos construídos e sua distribuição gráficas de Theodoro Sampaio. A edificação da
espacial 3, desde que reconhecidas as relações Suíça Brasileira envolveu relações sociais e arti-
que a possibilitaram e o ideário que a permeia; culações políticas, que a criaram nos moldes das
concepções e valores sociais cambiantes na linha cidades balneárias européias 25. Oficializada em
do tempo 14. Embora a marcante desigualdade 1926, seria centro de um futuro cinturão de cura
associada ao crescimento urbano venha impul- da Mantiqueira 26. Cidades com requisitos técni-
sionando estudos voltados à constituição desses cos para o tratamento de doentes e a profilaxia da
espaços de vida, ainda tendemos a tratá-los como doença tornaram-se estâncias, subsidiadas pelo
paisagem e pano de fundo, raramente incorpo- Estado 27. Ribeiro 19 dividia, em 1956, o combate
rando a ação e os atores; os homens e as relações à tuberculose no Brasil em três fases: 1889-1930,
sociais; a vida que modifica o valor e o significado antecedentes da política nacional; 1930-1945, re-
das formas 1,15. volução sanitária e incremento de órgãos técni-
cos; após 1945, campanha nacional sob a gestão
Paula Souza. A convergência de ações do Estado
Tuberculose e cidades e das Ligas se acentuou na segunda fase, via Mi-
nistério da Saúde 20,23. O “armamento antituber-
A tuberculose está associada ao crescimento ur- culoso completo” resultante ampliou a capacida-
bano e ao planejamento de políticas de controle de hospitalar do país e reduziu o fluxo de doentes
e organização de sistemas e serviços de saúde 16. para as capitais 19.
Ameaça biológica e ao projeto de modernida- Em São Paulo, a criação de estâncias clima-
de das cidades 17, metáfora ambivalente, ligava- téricas de repouso administradas pelo governo
se ao romantismo e à morte/isolamento 18. No do Estado era legislada desde 1921, mas as fun-
século XIX, tornou-se “motivo de exílio”: clima ções de coordenação das atividades de hospitais
e isolamento sanatorial se revestiram de lógica e sanatórios, fiscalização, pesquisa e execução
terapêutica e diferentes paisagens, identificadas de atividades nos dispensários foram planejadas
pela “rejeição da cidade”, foram convertidas em somente em 1931, com a reorganização do Ser-
locais de cura 18. viço Sanitário do Estado e criação da Seção de
No Brasil, Ligas e Estado conduziram a polí- Profilaxia da Tuberculose 27.
tica de controle da tuberculose: coube às primei- São José dos Campos, estância climatérica
ras a construção de sanatórios e dispensários 19 e para o tratamento da tuberculose de 1935 a 1977
ao poder público, inicialmente, a profilaxia, pela e atual dinâmico componente da metrópole des-
educação catequizante 20. Formadas por “elemen- concentrada de São Paulo, é uma via privilegiada
tos de prestígio”, as Ligas tinham estreito elo com para analisar a relação entre o processo de urba-
o aparelho estatal 21 e, por sua ação solidária, o nização e a política de saúde em dois momentos

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representativos: o início do século XX e o início Resultado e discussão


da década de 1980.
A cidade

Procedimentos metodológicos A geografia marca São José dos Campos: numa


simplificada representação que encobre a com-
O estudo é uma pesquisa qualitativa de aborda- plexa construção social, o privilegiado clima a fez
gem histórica e geográfica, tendo como base o estância em 1920; a privilegiada (re)localização
espaço socialmente construído. Concebido co- tornou-a pólo industrial tecnológico em 1980.
mo “conjunto indissociável de sistemas de objetos Segundo município paulista em arreca-
e sistemas de ações” 1 (p. 18), esse espaço incorpo- dação de ICMS (Imposto sobre Circulação de
ra técnica e ação, os objetos, a norma e os even- Mercadorias e Prestação de Serviços), São José
tos, numa visão dinâmica que cria e recria os lu- dos Campos se classifica no grupo I do Índice
gares a cada movimento da sociedade, a partir de de Responsabilidade Social do Estado 28. A área
cisões impulsionadas pela divisão do trabalho 1. urbana ocupa 19,5% da área total, e concentra
O espaço modifica a estrutura social vigente e é 98% da população (532.440 habitantes). Gran-
por ela modificado, num processo influenciado de parte do município (48%) está sob proteção
pela economia, moldado pela ideologia e possi- ambiental. Suas sete regiões administrativas são
bilitado pela política 5. heterogêneas em dimensão e densidade demo-
Este artigo investiga a relação entre o desen- gráfica. A região central é a menor e mais densa,
volvimento urbano de São José dos Campos e em população e equipamentos sociais; a Norte
a política que regeu a conformação da rede de apresenta características rurais; a populosa Sul
serviços de saúde da cidade em dois momentos e a recentemente expandida Leste possuem pio-
distintos: o início do século XX e o início da dé- res indicadores sociais e econômicos (Tabela 1;
cada de 1980. Figura 1).
A análise de 1910-1935 se baseou em docu-
mentos históricos (atas da Câmara Legislativa, A cidade sanatorial
Leis e Portarias e jornais, atas da Liga de Controle
da Tuberculose e obras de memorialistas). Seis Fundada como vila em 1717, São José dos Cam-
entrevistas (portadores de tuberculose e médicos pos acompanhou o processo regional de urbani-
e/ou participantes do poder político nos anos zação, embora a fraca economia cafeeira a exclu-
de 1930 e 1980) enriqueceram a reconstituição ísse da política econômica estadual: tornou-se
do ambiente social de 1930-1940 e a transição cidade em 1882, e cidade moderna em 1920.
de 1980. Dados quantitativos obtidos de fontes Os mapas locais evidenciam a precoce racio-
oficiais foram combinados à construção social nalidade administrativa. Em 1932, o primeiro zo-
realizada com base nos dados qualitativos das neamento dividiu a cidade nas áreas residencial,
fontes documentais e entrevistas. comercial e sanatorial, acrescentando, em 1933,
Tomada como rugosidade (que, por sua pró- a zona industrial (Figura 2). A sanatorial “área de
pria presença, influencia o momento subseqüen- isolamento”, definida por uma linha imaginária,
te de produção, facilitando ou dificultando-o, e era ampla, como a promissora zona industrial.
possibilita, pela análise de sua constituição, um A privilegiada posição da saúde é reforçada pela
olhar sobre a trajetória cultural, política e social observação das estruturas relacionadas: sanató-
local) 1,14, a rede sanatorial é representativa de rios, pensões e edificações de apoio, ignorando
uma técnica – o saber médico –, e a cidade tor- o zoneamento administrativo, distribuem-se por
nada estância é representativa de uma política toda a cidade.
– a da saúde pública, que se legitimava no final
do século XIX.
A hipótese é a de que o espaço sanatorial O ideário sanatorial
construído em São José dos Campos, na década
de 1920, direcionou o processo de urbanização e Pós-proclamação da República, a rural São
influenciou a concepção do sistema público de José dos Campos (19 mil habitantes) 29, à seme-
saúde instituído em 1980. lhança das cidades brasileiras recém-formadas 10,
urbanizou-se apoiada em capitais mercantis lo-
cais e na infra-estrutura propiciada por parcerias
público-privadas. As normas instituídas pela Câ-
mara e os contratos com capitalistas nacionais e
estrangeiros caracterizaram a lenta moderniza-
ção 29, que incorporou a questão sanitária.

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Tabela 1

Indicadores de qualidade de vida da cidade de São José dos Campos, São Paulo, Brasil, por região, para o ano de 2000.

Município Centro Norte Leste Sul Sudeste Oeste

Densidade de moradores por domicílio 3,71 3,26 3,75 3,81 3,79 3,91 3,53
na área urbana de São José dos Campos

Porcentagem de domicílios sem abastecimento 3,90 0,54 8,80 7,52 1,84 3,05 1,16
de água por rede geral

Índice de domicílios sem esgotamento sanitário 5,01 2,20 10,42 9,12 2,04 5,50 1,51
por rede geral

Índice de domicílios sem coleta domiciliar de 3,80 3,15 5,48 8,17 1,30 1,75 1,32
lixo na área urbana de São José dos Campos

Responsáveis pelo domicílio com renda nominal 15,85 12,67 21,67 16,55 16,29 14,42 7,31
mensal de até um salário mínimo

Responsáveis pelos domicílios analfabetos 5,33 3,85 7,93 5,45 5,16 7,22 1,95

Índice de responsáveis pelo domicílio que não 53,13 36,79 63,84 58,64 56,93 57,62 24,49
chegaram ao ensino médio

Fonte: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (2000, apud Borges 58).

Cedo se tornou o município de maior cresci- tância “para pobres”, em oposição à Suíça Brasi-
mento no Vale do Paraíba, num gradiente cres- leira. O primeiro passo, porém, está na chegada
cente desde 1935. dos tisiologistas 26.
Pode-se apreender o perfil da cidade ava- Portadores e cuidadores da tuberculose, os
liando-se a tributação instituída em 1922, cres- tisiologistas buscavam, inicialmente, a própria
cente para fábricas; hotéis, hospedarias e afins; cura, bem como os benefícios financeiros pro-
e farmácias 30. A menor taxação das indústrias, venientes da especialidade (Casa de Oswaldo
somada aos privilégios adicionais de concessão Cruz, Fundação Oswaldo Cruz. Entrevista com
de terrenos e isenção fiscal, estimularia sua im- José Rozemberg. In: Projeto Memória da Tu-
plantação. O maior valor cobrado dos estabele- berculose no Brasil; 1991). Gradativamente cons-
cimentos de saúde e hoteleiros incentivaria o já truíram e constituíram a rede de suporte ao tu-
importante componente da economia local. berculoso 29.
A renovação urbana, a exemplo de São Pau- Mário Galvão, vindo em 1904, despertou a
lo 11, foi o principal gasto público em 1922, com classe médica para o clima local “...em benefício
subsídio estadual 30. A “remodelação urbana”, de nosso progresso intelectual e material. (...) Foi
com ruas e construções “de cunho mais civiliza- ele, inquestionavelmente, que lhe infiltrou [à ci-
tório” 31, inseria São José dos Campos no circuito dade] uma seiva nova, ridente de benefícios futu-
modernizador paulista. Mas, a cidade modesta ros” 34 (p. 1). Pioneiro no uso do pneumotórax,
– embora grandiosa no discurso – tinha um dife- “vulto de destaque”, “elemento social de relevo”,
rencial: a convivência com a tuberculose 32. muito fez “...em benefício do povo de São José” 35
A “bondade do clima”, expressão registrada (p. 1). Politicamente atuantes, os tisiologistas ex-
em 1884 e periodicamente reimpressa 33, era di- pandiram sua rede de relações – presidiam orga-
vulgada, e contraposta a medidas cobradas pela nizações de saúde filantrópicas e privadas, bem
população para providências em face da “terrível como partidos políticos; representavam seus pa-
tuberculose”, para evitar “dois grandes prejuízos: res e também a própria cidade, localmente e na
o desenvolvimento dessa moléstia e o descrédito articulação com o Estado.
da cidade quanto a sua salubridade” 33 (p. 1). Legitimados pelos preceitos de desenvolvi-
A essa época, a Estância de Campos do Jordão mento urbano, foram atores centrais na confi-
estava consolidada. Entrevistados e memorialis- guração e oficialização da cidade sanatorial. Sob
tas imputam a proximidade das duas cidades a ótica médica, ordenaram espaço e comporta-
como fator de atração de tuberculosos para São mento urbanos, atuando, na mesma medida, na
José dos Campos. A facilidade de acesso a partir esfera econômica e cultural, ao converterem a
de São Paulo contribuiria para torná-la uma es- doença em oportunidade econômica e possibi-

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Figura 1

Cidade de São José dos Campos, São Paulo, Brasil (2000), segundo regiões administrativas e respectivas densidades
demográficas. Em destaque, cidade em 1938 e respectivas regiões administrativas.

NORTE
(535 hab./Km2)

Área rural

LESTE
(2.100 hab./Km2)

CENTRO
(4.432 hab./Km2)

OESTE SUDESTE
(352 hab./Km2) (851 hab./Km2)

N
SUL
(3.222 hab./Km2)

O L

S
Regiões administrativas (2000)

Rodovia Presidente Dutra

São José dos Campos, 1938: zona sanatorial


São Paulo

São José dos Campos, 1938: demais áreas funcionais

Malha urbana de São José dos Campos em 2000

Fontes: Prefeitura Municipal de São José dos Campos 59, para o mapa atual, e elaboração da autora, com base no mapa
da estância climática de São José dos Campos (Prefeitura Municipal de São José dos Campos. Planta da cidade. SBOC 07,
escala 1:10.000; 1938), para a cidade sanatorial.

litarem o ingresso do município no movimento cura da tuberculose pulmonar” 36 (p. 18), imagem
desenvolvimentista estadual. reforçada em documentos oficiais.
A tuberculose movimentava a cidade. Tema Em 1938, 1.154 doentes (10% da população
constante nos jornais, no primeiro ano do sema- urbana) distribuíam-se em cinco sanatórios, 29
nário pró-governista foi citada em 24 fascículos, pensões e 203 residências; 75,6% pagavam pela
ocupando a primeira página com um conjunto de estadia 37. Nas disciplinadas pensões, pacientes
publicações (Instruções Sanitárias) semelhantes recebiam procedimentos e eram cuidados co-
à publicação do Serviço Estadual de 1899 20, por mo membros da família (Entrevista com Ânge-
sua vez similar à publicação francesa de 1895 17. la Savastano, concedida à autora P. V. C. Vianna.
A cidade-estância se define por volta de 1910. São José dos Campos 2003; 15 abr). A população
Em 1913, Clemente Ferreira retorna à cidade para tuberculosa, economicamente ativa, instituiu a
conferir a “propaganda em favor de seu clima, na “indústria das pensões (...) das farmácias (...) das

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Figura 2

Zoneamento da cidade de São José dos Campos, São Paulo, Brasil, em 1938, e distribuição dos sanatórios, pensões, edificações de apoio ao tuberculoso e
principais indústrias.

O L

Sanatórios

Pensões sanatoriais
São Paulo

Indústrias

Edificações de apoio ao tuberculoso

Fonte: Bittencourt 52.

marmitas” (Entrevista com José Rosemberg, con- mil habitantes 10. A região metropolitana de São
cedida à autora P. V. C. Vianna. São Paulo 2003; Paulo, Campinas e Sorocaba concentravam 92%
15 abr). Possuindo qualificadas ocupações – pro- dos operários do Estado e as duas últimas, 72%
fissionais liberais, comerciários, comerciantes do interior. Embora viesse a seguir, o Vale do Pa-
– essa população refletia mais do que a nature- raíba (3.892 operários) empregava apenas 2,8%
za ocupacional da tuberculose: na comparação do total do Estado 38.
do perfil empregado em 1938 e 1944, ilustrou a Apesar do “retardo” no “surto de progresso
transformação local da economia 36,37. industrial” do Estado, São José dos Campos era
Mas, a tuberculose promoveria a urbaniza- impulsionada por suas “riquezas naturais”, e os
ção? dirigentes locais imaginavam a transformação da
Em 1920, São José (30.681 habitantes) era um cidade “quando o surto industrial fizer sua entra-
dos vinte municípios paulistas com mais de 20 da triunfal” 39 (p. 1), e um novo tipo de migra-

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ção expandisse a cidade e seu “movimento social, foram loteados no circuito imobiliário que cons-
transformando São José dos Campos em uma das tituiria a área nobre da cidade 43.
principais cidades paulistas” 39 (p. 1). Num movimento contraditório, tuberculose
A Câmara, procurando cumprir a própria representava oportunidade e risco. Havia des-
profecia desenvolvimentista, concedia “favores confiança – “muitos se consideram apenas fracos,
para a construção de pequenas indústrias” 40 e mas desde que para cá vieram, são suspeitos” 44
igualmente incentivava a construção de sanató- (p. 2), preconceito – “O senhor é de fora, portanto,
rios. A primeira iniciativa de construção registra- é suspeito” (Amaral JF. Inspeção sanitária de São
da foi rejeitada para reservar o terreno a futuras José dos Campos. Relatório apresentado à Facul-
instalações fabris, destinando-se aos sanatórios dade de Medicina de São Paulo; 1930. p. 124) e
terrenos públicos “fora do perímetro urbano” 41. unanimidade na constatação – “tudo girava em
Em 1914, a Câmara subsidiou a compra de torno da tuberculose” (Entrevista com Ângela
chácara para um sanatório pertencente à Santa Savastano, concedida à autora P. V. C. Vianna. São
Casa de Misericórdia de São Paulo. Dentro da José dos Campos 2003; 15 abr.), afinal, segundo
perspectiva da construção de sanatórios pa- Dr. Dória, proprietário de sanatório na zona co-
ra desafogar a capital, do uso da doença como mercial e articulador da oficialização da estância:
saída econômica e da articulação Estado-filan- “não precisamos de máquina (...), precisamos (...)
tropia 17,19, o recurso para a construção proveio de doentes. Essa é nossa indústria” 26 (p. 26).
da Câmara Municipal de São Paulo, do gover- A tuberculose direcionou o crescimento ur-
no federal e do “alto comércio” paulista, além bano e identificou a cidade. Embora a mudança
de fundos beneficentes angariados pela elite das fachadas coloniais reflita as modificações da
paulistana. O sanatório Vicentina Aranha, ini- concepção social dos espaços público/privado
ciado em 1917 e solenemente inaugurado em 11, na cidade em que casas se convertem em pen-

1924, oficializa a “cidade climática, confirmada sões e pensões em sanatórios, as varandas, além
pelo decreto 7.007, de 1935” 42 (p. 38). O maior de amplas janelas e portas distanciadas da rua
sanatório da América Latina se instalou nessa adquirem significado único.
cidade já sanatorial e reforçou esse perfil. Seriam Em paralelo, a instalação de empresas era in-
dez sanatórios, inaugurados até 1967 2. Diferente centivada pela articulação social e pela via fiscal. O
do perfil nacional e à semelhança de outras es- perfil da população economicamente ativa acom-
tâncias (Campos do Jordão, Belo Horizonte) 19, panhou a transição estadual, num movimento
além do grande número de estabelecimentos, a regional acelerado. O circuito (social, político e
proporção de leitos pagos/gratuitos favorece os econômico) da tuberculose e a nascente indústria
primeiros e há mínima participação de recursos sutilmente aproximavam-se: no jantar de inaugu-
federais 27,37. A esta rede, de natureza privada, o ração da Tecelagem Parahyba, em 1927, discursou
primeiro dispensário se soma apenas em 1945, o Diretor do Sanatório Vicentina Aranha 45.
centrado na fiscalização das pensões e ações de São José dos Campos, portanto, estruturou-se
profilaxia, sem atuação sobre os sanatórios (En- sobre a tuberculose antes que uma política espe-
trevista com José Rosemberg, concedida à au- cífica de controle da doença a erigisse como nú-
tora P. V. C. Vianna. São Paulo 2001; 12 set), cuja cleo. No momento da oficialização da estância,
clientela era, em maior parte, pagante. O centro a eficácia da terapia climática era questionada
de saúde local recebia subsídio da prefeitura e internacionalmente e debatida pela comunida-
conferia à indústria a vantagem adicional da as- de científica brasileira 46. Em 1935, no município
sistência médica (desde 1940, 50% do repasse predominantemente urbano, embora distinto da
municipal se destinavam aos funcionários da imagem atual de cidade, a indústria já se des-
Tecelagem Parahyba) 36. tacava, e gradativamente absorvia a população
Articulada pelos tisiologistas e pelo médico- economicamente ativa. O ideário progressista
prefeito Rodolfo S. Mascarenhas 27 (que se desta- permeava as relações sociais e, na inusitada com-
caria como sanitarista a partir dessa experiência), binação da tuberculose e indústria, imbricava
a oficialização da estância resultou em desdobra- ação social e perspectiva econômica no desenho
mentos que reforçaram a imagem sanatorial e da cidade que crescia.
simultaneamente estruturaram sua conversão à
tecnologia da indústria, possibilitada em 1950.
Na economia, além do circuito comercial Tecnologias: da saúde à indústria
mencionado, os recursos estaduais aumentaram
o orçamento municipal em 50%, investidos no Entre as cidades sanatorial e industrial não há
aprimoramento da infra-estrutura urbana, ini- continuidade nem tampouco ruptura total. A
cialmente nas zonas central/sanatorial 36. Os expansão industrial, contemporânea ao advento
terrenos próximos à área sanatorial, valorizados, dos quimioterápicos, gradualmente pôs um fim à

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era sanatorial. Industrialização e expansão urba- públicos 49. Índices de saneamento revelavam
na marcaram o período entre 1950-1980. um centro bem equipado, mas infra-estrutura
Três fatores são imputados ao “renascimen- deficiente nas áreas rural e de expansão urba-
to” de São José dos Campos: a Rodovia Presidente na (Sul e Leste); regiões prioritárias para a saú-
Dutra (1950), conectando a cidade ao Estado e de 50 (Figura 3). O eixo de crescimento urbano
sua economia ao mundo, o Centro Técnico Ae- se deslocou para o Sul, porém os equipamentos
roespacial – CTA (1950), que lhe conferiu o perfil sociais permaneceram concentrados no centro.
industrial tecnológico, e as indústrias que mar- Simbolizada pela rodovia e pelo avião, a cidade
gearam a rodovia, valorizaram a terra e modifica- tecnológica encobre o inchaço das periferias de
ram o eixo de crescimento urbano. múltiplas carências 51.
Mas a localização geográfica não é condição Em 1976, dos oito sanatórios, apenas dois
suficiente para a mudança 5. Desde o projeto da estavam ativos. Os demais tinham seu uso liga-
Via Dutra à instalação do CTA, a configuração do à saúde (dois) e educação (um); três estavam
espacial possibilitada pela política nacional de- desativados 52. O atendimento previdenciário de
senvolvimentista foi articulada localmente em saúde era realizado em duas agências do Insti-
arranjos espaciais, políticos e econômicos. tuo Nacional de Previdência Social. A tecnologia
Em 1980, o setor aeroespacial lança São José do tratamento tuberculoso se expandiu para as
dos Campos a pólo econômico regional, classifi- clínicas de medicina ocupacional e serviços de
cada entre as dez maiores economias do Estado. radiologia, estimulando a conformação da rede
A indústria empregava 50 mil dos 287.513 ha- privada do município (Entrevista com Amaury
bitantes. O município crescia a uma taxa cinco Louzada Velloso, concedida à autora P. V. C.
vezes maior do que a média nacional, e a área Vianna. São José dos Campos 2003; 26 mai). Das
urbana (12,7% do total do município) abrigava 18 unidades de atenção secundária/terciária,
89,1% da população 47. quatro eram públicas, sete filantrópicas e sete
O meio técnico-científico se estabelece: São privadas lucrativas; 12 estavam localizadas na
José dos Campos participa da remodelação do área central e antiga zona sanatorial. O setor pri-
território nacional – baseada na combinação de vado se destacava, e em 1981 os quatro principais
ciência, tecnologia e informação – bem como, convênios médicos da cidade já estavam institu-
amparada pelo Estado, possibilita essa transfor- ídos (um de autogestão, dois planos de saúde e
mação. Articulando ciência e tecnologia, e uti- uma cooperativa médica) 53. Das cinco unidades
lizando-as no setor produtivo para dinamizar a de atenção primária, duas eram estaduais e três,
economia, São José dos Campos se beneficiou federais (Figura 4).
da política instituída com o I Plano de Desen- Para o Departamento de Saúde Pública, cria-
volvimento Nacional, sob a diretriz do fortale- do em 1970, a localização dos estabelecimentos
cimento do poder de competição nacional em era uma fragilidade: concentravam-se “na área
setores prioritários, com foco em áreas tecnoló- nobre central, quando as necessidades maiores
gicas específicas 48, e da integração entre a in- estão na periferia” 54 (p. 31). À carência, disper-
dústria, a pesquisa e a universidade, a partir da são e obsolescência dos equipamentos, aliava-
qual se estruturou o eixo de desenvolvimento li- se “uma desintegração operacional e física” 54 (p.
gado às empresas. O CTA (pesquisa) e a Empresa 31), agravada pela escassez de recursos humanos.
Brasileira de Aeronáutica (Embraer, a inovadora É somente em 1978, com a tardia retomada da
indústria) se completam numa “sincronia e con- autonomia política do município, que se inicia
sistência das políticas (...) associada à robusta in- a implementação das ações discutidas no plano
fra-estrutura tecnológica criada na região de São nacional, por meio das ações de integração com
José” 48 (p. 539). Sustentada nesse apoio, São José o Estado e municipalização da rede previden-
dos Campos conhece um período inigualável de ciária, somadas ao reforço à atenção primária
crescimento econômico. com o estabelecimento das primeiras unidades
A população, jovem, majoritariamente mi- avançadas de saúde, nas áreas periféricas rurais
grante 47, concentrava-se na indústria (40,6%) e urbana 54.
e prestação de serviços (26%). A mobilidade da A multiplicação de equipamentos foi veicu-
população era alta, a habitação, no geral, satisfa- lada pelo governo municipal como ganho social
tória e a infra-estrutura, desigual 47. (creditado também à Secretaria de Assistência
O padrão de urbanização acompanhava o do Social) 47 e interpretada pelo Departamento de
país – áreas “vastas e expandidas, entremeadas Saúde Pública como um passo rumo à equidade
de vazios” 10 (p. 96) –, fortemente influenciado 55. No entanto, o documento oficial de divulgação

pelo capital privado. As regiões periféricas se ca- dos equipamentos sociais urbanos lista, na área
racterizavam pelo isolamento social, alto custo da saúde, apenas hospitais e dois sanatórios, sem
de transporte e falência gradativa dos serviços referência às unidades avançadas de saúde 53.

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ESPAÇO URBANO E POLÍTICA DE SAÚDE 1303

Figura 3

Cidade de São José dos Campos, São Paulo, Brasil, 1977, representada sobre a malha urbana da cidade atual, segundo risco
urbano e de saúde, e distribuição aproximada das 23 maiores empresas.

NORTE

LESTE

CENTRO

OESTE

SUDESTE

SUL

O L

S Regiões administrativas (2000)

Rodovia Presidente Dutra

Malha urbana em 2000

Áreas prioritárias

Áreas em desenvolvimento

Áreas industriais no perímetro urbano


São Paulo

Áreas não prioritárias

Empresas

Fontes: Silva 50, para a estratificação por risco, e Divisão de Planejamento Sócio-Econômico, Prefeitura Municipal de
São José dos Campos 53, para a localização das indústrias.

O significado dessa rede de atenção, assim, forma, “o atendimento primário [se dá] através
não é consensual. Inicialmente estabelecimen- das unidades básicas de saúde distribuídas se-
tos “experimentais, [para] assistir a população gundo critérios de hierarquização e regionaliza-
periférica no âmbito da medicina curativa e pre- ção dos equipamentos da periferia para o centro,
ventiva” 54 (p. 84), sob as diretrizes da OPAS e onde a atenção médica mais complexa é realiza-
da reforma sanitária brasileira passam a se guiar da” 55 (p. 1).
pela territorialização, levando a atenção primá- A nobre área central, merecedora do reco-
ria às populações excluídas do sistema. Dessa nhecimento dos profissionais e do poder públi-

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1304 Vianna PVC, Elias PEM

Figura 4

Unidades de saúde de São José dos Campos, São Paulo, Brasil, segundo período de inauguração, de 1976 a 2004 (rede de
Unidades Básicas de Saúde – UBS), e unidades de atendimento hospitalar (atenção secundária e terciária) em 1981.

NORTE

CENTRO
LESTE

OESTE
SUDESTE

SUL

O L

UBS inauguradas até 1983

UBS inauguradas após 1983

Unidades de pronto atendimento e


hospitalares em 1981
São Paulo

Regiões administrativas (2000)

Rodovia Presidente Dutra

Fontes: para unidades de pronto atendimento e hospitalares - Divisão de Planejamento Sócio-Econômico,


Prefeitura Municipal de São José dos Campos 53; para as Unidades Básicas de Saúde até 1984 –
Secretaria Municipal de Saúde, Prefeitura Municipal de São José dos Campos 55; para as e para as Unidades
Básicas de Saúde entre 1984-2003 – Secretaria Municipal de Saúde, Prefeitura Municipal de São José dos Campos 60.

co, concentra a rede hospitalar, que se expande (quantidade e preparo), funcionamento, progra-
e abriga a nova tecnologia médica, instalada não mação e coordenação e participação comunitá-
sobre os sanatórios, mas sobre a zona sanatorial ria – detalhadamente trabalhados nos documen-
re-significada (Figura 4). tos institucionais –, num distanciamento entre o
As Unidades Básicas de Saúde (UBS), avalia- projeto técnico proposto e o concretizado.
das em 1990 por Carvalho 56 (que participou da Na cidade cuja economia girava em torno da
elaboração do projeto e implantação da rede), inserção no dinâmico sistema mundial capitalis-
embora apresentassem estrutura física adequa- ta e cuja política foi marcada por sucessivos regi-
da, ficaram aquém do desejável nos itens pessoal mes disciplinadores (sanatorial/militar), a saúde,

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ESPAÇO URBANO E POLÍTICA DE SAÚDE 1305

na qualidade de política social, tinha uma inser- Os sanatórios, embora subsidiados pelo po-
ção limitada como propiciadora de espaços de der público municipal, diferenciavam-se daque-
cidadania. A participação popular, que poderia les do restante do país pela alta porcentagem de
influir numa conformação espacial mais equâni- leitos pagos e pela localização na área de zone-
me, tanto na produção bibliográfica, quanto nos amento que ocupava a maior parte da área ur-
documentos institucionais 55,57, é considerada bana (Figura 2), convertida em área nobre com
escassa. o advento da indústria (Figuras 3 e 4). O papel
Deslocada do eixo condutor da cidade, lugar central da saúde se expandiu aos planos econô-
que, como tecnologia, ocupou no início do sécu- mico, político e social – sobretudo, pelos benefí-
lo XX, como iria a saúde a ele retornar? cios financeiros e políticos que acompanharam a
oficialização da estância.
No início da década de 1980, a cidade havia
Considerações finais crescido vertiginosamente e estava plenamen-
te inserida no desenvolvimento metropolitano
São José dos Campos viveu o processo de mu- paulista. Os poderes político e econômico se des-
dança de “conteúdo” das cidades brasileiras de locaram para o dinâmico eixo empresarial da Via
1940/50 10: a “cidade econômica” substituiu a “ci- Dutra, que levou o centro de decisão para além
dade de notáveis”; mudança qualitativa que deve do território local, permeando-o ao capital e in-
ser referida à situação local anterior. teresses externos. A rede privada de saúde se con-
Além da industrialização pré-1950, a estrutu- solidou e os serviços de atenção primária institu-
ra e a ideologia sanatoriais atuaram aqui como ídos ocuparam, seguindo as diretrizes da OMS, as
facilitadores para o período seguinte, mesmo que regiões periféricas de múltiplas carências.
ao custo de sua própria destruição, cuja incom- Os “olhos higienistas” 11 ficaram para trás, e
patibilidade com o padrão de desenvolvimento o “risco social” se deslocou do centro, tornado
urbano exigido pelo país (mais do que com o no- nobre, para as áreas periféricas da cidade. Na
vo saber e tecnologia médicos) é evidente. transição dos símbolos que identificam a cida-
São José dos Campos, pautada pela ordem e de, observamos que “é a partir da articulação do
pelo progresso e marcada pela racionalidade téc- conjunto da estrutura social que uma nova forma
nica, concentrava equipamentos sociais, saber urbana se concretiza, na ligação material entre
técnico e articulação política. As relações sociais espaço e tecnologia” 3 (p. 55). Não menos impor-
que interagiram com o espaço para lhe conferir tante é a questão subjetiva 4: a cidade industrial,
características específicas – sanatorial, industrial caracterizada pelo conhecimento e pela tecno-
– reconheceram e trabalharam as oportunida- logia específicos que a possibilitaram, imprime
des de modernização condizentes com suas ca- no território o novo, mantendo, da era anterior, o
racterísticas territoriais, econômicas e políticas, ideário da ordem e do progresso, num movimen-
em sintonia com o país e, mais especificamente, to facilitado pela condição política de estância,
com o Estado de São Paulo. Nessa remodelação, mantida durante o regime militar.
a exemplo de São Paulo 11, o passado foi abando- A apropriação desse espaço e sua (re)produ-
nado para ser reconstruído com o que lhe con- ção, pautada pela questão econômica, deu-se
feria maior possibilidade econômica e destaque sob a égide do desenvolvimento. O manto tec-
nacional. nológico encobriu as questões sociais. O cresci-
No processo contraditório de construção da mento econômico, simultaneamente concreto e
cidade sanatorial se mesclaram justificativa mé- mítico, e as relações sociais, apaziguadas sob a
dica e elementos sociais, políticos e econômicos. hierarquia e disciplina que regiam a construção
Antecedendo os movimentos da política do espaço, deram um sentido racional ao proje-
nacional para controle da tuberculose, a saúde to de modernidade que se consolidava, ao qual
preencheu a cidade, em diversos planos: da privi- se atribuía o sentido do novo, do progresso, do
legiada zona sanatorial aos órgãos de imprensa; futuro.
do imaginário da população ao seu cotidiano; do Nessa cidade, cedo pautada pela racionalida-
circuito econômico à política e legislação, instru- de, técnica e hierarquia, quais seriam as vias, no
mento de aproximação com o Estado. Tisiologis- início da década de 1980, para a implantação de
tas, transitando entre o público e o privado, en- uma proposta emancipatória, que reposicionas-
tre as ações lucrativas e filantrópicas, legislavam se a saúde numa agenda de efetiva construção
tendo a saúde como mote. Se essas ações, como social?
política pública, eram majoritariamente cercea- Fica explicitado que a (re)inserção da saúde
doras, como produção vincularam-se ao desen- na questão urbana deve partir da história e da
volvimento da cidade, gerando oportunidades geografia, compreendendo a relação saúde/cida-
econômicas e articulações sociais específicas. de em diferentes planos: no jogo econômico; na

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1306 Vianna PVC, Elias PEM

articulação política; no plano concreto dos ser- lugar, revelando a trama subjacente ao manto
viços e fluxos; no plano subjetivo, de sua repre- homogeneizador que identifica as cidades e ofe-
sentação social. É desse conjunto de elementos, recendo novas interpretações para associações
traduzidos concretamente num arranjo espacial, paradigmáticas.
que se constrói e reconhece a especificidade do

Resumo Colaboradores

Este estudo se insere na renovada abordagem teóri- P. V. C. Vianna contribuiu na revisão de literatura, elabo-
co-conceitual do espaço para análise das políticas ração da metodologia, análise dos resultados e redação
de saúde. A potencialidade desta abordagem está em do artigo final. P. E. M. Elias colaborou na elaboração da
tratar a organização do espaço como um produto das metodologia e revisão do artigo final.
relações entre a sociedade e o poder de Estado, influ-
enciada pela economia e possibilitada pela política.
Esse espaço que se revela, ao ser compreendido como
construção social, concretiza a narrativa histórica,
possibilitando uma melhor compreensão de como as
políticas são formuladas e materializadas no espaço
urbano. A partir deste espaço, investigamos a política
que regeu a conformação dos serviços de saúde na ci-
dade de São José dos Campos, São Paulo, Brasil, em
dois momentos distintos: na década de 1920, em que
o município se constituiu como estância climática, e
no início da década de 1980, momento de estruturação
do sistema público municipal de saúde. Na reconsti-
tuição social histórica e geográfica, revelam-se as am-
bigüidades e coerências de uma cidade que delineava,
no perfil sanatorial, as características que marcariam
a cidade industrial.

Política de Saúde; Tuberculose; Saúde Urbana

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ESPAÇO URBANO E POLÍTICA DE SAÚDE 1307

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