Quando partimos da trajetória da formação do Estado-Nação e democracia na
sociedade brasileira temos uma história oficial marcada de discursos contra-insurgentes, ou seja, falas, símbolos e ritos que tentam desconstruir a imagem do processo de resistência, lutas e atuação dos sujeitos subalternos na construção das práticas de cidadania, direito e justiça ao longo da nossa história. A passagem do império para a república, as elites intelectuais e políticas, em conformidade com os interesses conservadores da Casa-Grande e, ao mesmo tempo, com as ideias liberais e positivistas, criaram uma sociabilidade arrivista nas grandes cidades, como bem lembrou Nicolau Shevchenko em “Literatura como Missão”, onde algumas figuras como Euclides da Cunha e Lima Barreto, tentaram a sua maneira, reinterpretar o papel desse “povo brasileiro”, e criticar os caminhos tomados da republica naquele momento. Caminhos esses de grandes massacres até o presente momento. As vítimas do Estado Republicano, como escreveu Edgar de Decca, são narrativas de massacres: Eldorado dos Carajás, Carandiru, Candelária, Contestado, Canudos, Caldeirão, Favela da Maré, Rocinha, Alemão, Messejana, Mairelle Franco, dentre tantas. Contudo temos narrativas de lutas, resistências e participação política das camadas populares na formação do Estado Brasileiro. As insurreições dos oitocentos contra o alistamento militar forçado, a mudança dos pesos e medidas (quebra-quilos), fugas de escravizados, motins e saques de retirantes nas grandes secas, são alguns dos exemplos das experiências de cidadania popular, que não podem ser enxergadas nas lentes da política oficial e institucional. Mas também não parou no período da primeira república, estado novo, ditadura militar, redemocratização e pós-golpe, seria uma extensa lista, citar a relevância como a greve geral de 1917 à Jornadas de julho de 2013 para as formas de organização dos trabalhadores, despossuídos e marginalizados frente ao estado capitalista. Assim, mesmo com uma narrativa de massacres republicanos e discursos contra-insurgentes das elites dirigentes sobre a formação histórica do país, que tentam a todo custo, transmitir uma ideia de passividade, brandura e conciliação dos grupos dominantes e subalternos da nossa sociedade, a nossa resposta, pelo menos a minha, enxerga caminhos trilhados de luta, solidariedade e resiliência na esfera cotidiana. A luta pelas formas de dominação dos sujeitos debaixo não é apenas uma luta contra os avanços do estado-burguês, mas é uma batalha contra outras formas de dominação, presente historicamente na sociedade brasileira, como o machismo, misoginia, homofobia, racismo, e o imperialismo. Essas últimas, não devem ser bandeiras menores aos movimentos sociais, afinal, a dominação estatal e capitalista, não está dissociada de outras formas de opressão. Partindo dessa contextualização, queremos dizer que não podemos confundir Estado e Sociedade, inclusive para entender os dilemas sobre a democracia no Brasil. Mesmo parecendo sinônimos quase perfeitos, existem diferenças históricas. A sociedade preexiste a formação do estado-nação. Existem (existiam) vários tipos de formações sociais, redes socioespaciais múltiplas de poder (ideológico, econômico, militar e político) que se sobrepõem e entrecruzam, logo, as sociedades não são unitárias, circunscrita num espaço geográfico ou social, como lembra o sociólogo Michael Mann. Assim a formação do estado-nação, veio a florescer nos séculos XIX e XX, constituindo- se ao lado do capital mercantil, um aspecto essencial do sistema mundial e territorialização do poder da burguesia, ambas com raízes no estado moderno absolutista (com sua estrutura de burocratas, exército nacional, juristas, etc.) e elementos ilustrados da Revolução Francesa. A nação para existir precisa ser imaginada coletivamente, e formar as almas e corpos dos seus cidadãos, através de dispositivos como as escolas, museus, religião cívica, imprensa, monumentos, exército e tradições. Como escreveu Michael Bakunin, o estado “absolutamente não é a sociedade, é apenas uma forma histórica tão brutal quanto abstrata. Nasceu historicamente, em todos os países, do casamento da violência, da rapina e do saque, isto é, da guerra e da conquista, com os deuses criados sucessivamente pela fantasia teológica das nações. Tendo explorado até aqui as dimensões históricas das formas de dominação da sociedade e estado nação, podemos agora olhar para a conjuntura contemporânea do Brasil. Se atualmente depositamos nossas expectativas sobre os aparelhos do Estado e da Democracia brasileira, acredito que estamos perdidos, ou no mínimo esquecidos das estratégias de luta cotidiana. Se a palavra “Dilema” é uma situação, normalmente problemática, constituída por duas soluções que são contraditórias entre si, mas ambas aceitáveis pelo sujeito em um contexto, o estado e democracia no Brasil estão bem representadas etimologicamente, porém, no ponto de vista prático, quem está saindo ganhando ainda são as mesmas raposas velhas da Casa-Grande, patrões e o sistema financeiro imperialista. Diante a esse cenário de luta feroz das elites dirigentes pela máquina do poder político e o rebento das ideias liberais e conservadoras na sociedade, a atitude é de ir por uma terceira via de posição. “Nem com o bando reacionário do impeachment e do congresso e tampouco com o governismo ajoelhado que passa a faca na carne do povo em conluio com a patronal e o sistema financeiro” (CAB). A luta de classes não pode abandonar a cena para o jogo de uma polarização que não representa os interesses dos setores oprimidos das cidades e do campo. O verbo radical que concorre no alto de um carro de som e grita mais alto ou as cirandas contra o capitalismo, não dobra nenhum poder. É um rito inútil e cada vez mais rechaçado. “A radicalidade de uma alternativa está no plano das práticas e a produção de força social de uma resistência combativa vem de baixo, dos lugares vitais do cotidiano de trabalho, estudo e comunidade”. A unidade que pode forjar uma terceira posição tem que pulsar dessas dinâmicas e da união dos organismos de democracia de base das classes oprimidas. O momento é de reafirmar a independência de classe dos trabalhadores contra o ajuste econômico; se opor ao sistema corrupto de representação da política burguesa, com uma democracia direta e de base, com assembleias populares, conselhos e plebiscitos na vida pública. Os avisos de incêndios do fascismo e conservadorismo na nossa sociedade e classe política deveria generalizar a luta pelas ruas, greves e ocupações fora dos controles burocráticos e dos cálculos eleitoreiros. A dialética cotidiana pode criar outra cultura política, que faça caminhos para novas gerações de lutas rebeldes que defenda seu trabalho, território, direitos sociais, saúde, educação e radicaliza a democracia pela auto-organização e solidariedade. “Que não joga mais sua sorte e suas esperanças no esquema trapaceiro dos partidos da ordem e semeei núcleos de poder popular como fatores de resistência” (CAB). Desde as eleições nacionais de 2014 estava fora do panorama dos presidenciáveis um projeto reformista, por esquerda, no sentido clássico. Os governos tucanos ao longo de sua trajetória política foram a mão de ferro do neoliberalismo no Brasil. Ingressaram o país no violento circuito ideológico e econômico do mercado capitalista globalizado. Privatizações de bens públicos, arrocho salarial, recorte de direitos sociais, desmontes dos serviços públicos e desemprego em massa são traços da agenda neoliberal, que utilizando- se do nome de “estabilidade econômica” logrou seus estabilizadores de ordem social. O Partido dos Trabalhadores governista fez uma trajetória de capitulação ao sistema no parlamento e finalmente no governo central. Um processo que fez da política parlamentar e de carreira burocrática-institucional a sua escada. Mas existiu distinções entre a passagem dos dois governos entre essas décadas. O Partido dos Trabalhadores criou uma governabilidade de política de alianças que atraiu e dividiu setores oligárquicos da direita. Nesse processo acabou empurrado para a vala comum dos acordos, lóbi, propinas, caixa dois, entre outros esquemas de desvios que são práticas históricas dos dirigentes da democracia burguesa. Por outro lado, fez uma política de crescimento dos ganhos do sistema financeiro e dos grandes capitais, ao lado da criação de programas sociais para os mais pobres, que estavam desassistidos de políticas públicas, além da inclusão de mercado dos setores populares. Mas as esperanças de antigos membros e correligionários de combater as estruturas de concentração de riqueza e poder, a taxação patronal e a reforma agrária, infelizmente ficaram de fora de combate, ao menos na prática. Assim temos um governismo que a mais de uma década ajudou a conduzir ideologicamente a um “desarme” de projeto independente, das organizações e lutas das classes oprimidas. Isso afetou de alguma forma a quebra da unidade de classe, ampliando a ambição e valores sobre um perfil técnico-burocrático que é estranho a moral e ética da esquerda de intenção revolucionário. A crise financeira mundial do capital em 2007/2008 alcançou o estado brasileiro no governo Dilma anos depois. A recessão, carestia e ajuste econômico desmonta a estratégia governista para ainda mais entrar nos quadros do sistema financeiro, patronal e do agronegócio. A promessa do capitalismo brasileiro que vinha crescendo pela desapropriação dos bens comuns, pela dominação dos capitais do agronegócio, mineradoras e empreiteiras, afunda-se com a queda de preços das matérias primas e a desaceleração do capital chinês em 2015. O sonho da classe média e seus privilégios estavam ameaçados. O objetivo triunfalista de um país de classe média, puxado pelo consumo e o endividamento de massa transforma a situação cotidiana das amplas camadas de trabalhadores e despossuídos do país. Depois do golpe político que contou com apoio da polícia federal, MPF, Sergio Moro, Rede Globo, judiciário, e as mesmas aves de rapina rentista do capital financeiro nosso dilema entre solução via estado ou democracia estão cada vez mais tensas. A direita opositora ao governismo petista, utilizou-se da judicialização da política e produção imagética-discursiva da mídia, esta mesma seletiva e criminalizadora, para fazer seus arranjos numa zona de fronteira dos marcos constitucionais do direito democrático burguês. Essa judicialização da política no cenário atual criou efeitos ideológicos que reverberam em ideias, noções e práticas conservadoras de uma dita “salvação nacional”, pelas mãos do poder judiciário, da polícia e das forças armadas. Todavia, tem se ampliado episódios de grupos nacionalistas e fascistas, perseguindo e criminalizando movimentos sociais e minorias em todo país, com o apoio de representantes dos três poderes. Portanto, um golpe branco e de homens velhos está em curso, sendo orquestrado por setores da direita no congresso, no judiciário, na mídia, organização patronal, militares, “num grande acordo nacional, com o Supremo, com tudo” como frisou Jucá nas investigações da operação “Lava a Jato”. Seja como for, parece que vem um governo de coalizão agressivo contra os trabalhadores e o povo. Em que dilemas estamos! Uma resposta de viés libertário e anarquista sobre esses dilemas está na luta de classe e contra todas as formas de dominação estatal e da sociedade. Não enxergamos caminhos seguros numa política de pacto social e conciliação, que seja favorável estruturalmente para as camadas de baixo. A correlação de forças são desiguais, pois a qualquer momento as negociações de direitos trabalhistas, sociais e econômicos convertem-se em moeda de troca do grupo governista com a classe patronal e rentista do capital. A luta de classe não pode ser feita nos moldes e mesmos aparelhos do reboquismo e pelegada dos sindicatos. Para se tornar autônoma e horizontal, os debaixo precisam se organizar a partir de suas bases, fazendo valer a independência de classe como a real alternativa ás camadas oprimidas. Uma alternativa que a curto prazo, marcado pelo trágico desmantelamento organizativo do tecido social, e medidas de criminalização, (como a lei aprovada do antiterrorismo), se traduza na mais resoluta “solidariedade de classe”. Assim, não apostamos nem no estado e nem na democracia burguesa representativa, que de muitos exemplos na história, mostra-se a serviço da minoria burguesa e do estamento de toga da classe burocrática. Acreditamos que a democracia direta, através de assembleias e estratégias de organização para uma autogestão na sociedade, seja a forma de poder político dos sujeitos subalternos. Defende-se permanentemente a ideia de que as práticas de hoje, nosso cotidiano, é que devem apontar para a nova sociedade em que se quer viver amanhã. “Por isso, se a sociedade futura defendida é autogestionária, federalista, igualitária e libertária, os meios utilizados nas lutas presentes devem contribuir neste sentido”. Não se cria uma sociedade sem Estado por meio do reforço do Estado. Não se cria uma sociedade com autogestão do trabalho por meio da militarização. “Os anarquistas vêm defendendo que suas lutas devem estar atravessadas pelos princípios libertários e, portanto, não podem promover a dominação, seja entre os próprios anarquistas ou na relação entre anarquistas e outras pessoas, grupos, organizações, movimentos. Vêm ainda sustentando a necessidade da independência e da autonomia de classe. O que implica a recusa das relações de dominação estabelecidas com partidos políticos, Estado, outras instituições ou pessoas, garantindo o protagonismo popular da classe oprimida, a ser promovido nas construções das lutas pela base, de baixo para cima, envolvendo a ação direta”. (Socialismo Libertário, 2016). As jornadas de julho de 2013, as ocupações de terras por trabalhadores rurais, o movimento secundarista contra a PEC 241, entre tantas outras expressões de resistências e de luta contra o machismo, racismo e homofobia, que vemos nesses últimos anos através de coletivos feministas e antifascistas, são exemplos reais de como é possível uma organização coletiva de amplos setores das camadas populares, que reúnem jovens, trabalhadores, de mais sujeitos preocupados com a transformação social. Para mim, a resposta está nas ruas e solidariedade, na democracia direta e na política popular, e não atrás de gabinetes de pensadores e sindicalistas da esquerda institucional. Concluo com uma citação do sociólogo James Scott sobre o quanto o anarquismo pode nos ensinar sobre o que é considerado “político” na sociedade moderna.
“Contra que costuma-se acreditar, as organizações não tendem a iniciar os movimentos
de protestos, mas, que na verdade, seria mais correto dizer que os movimentos de protesto dão lugar o nascimento de organizações, que ao mesmo tempo, em geral, intentam domar os protestos e transforma-los em canais institucionais. A medida que os protestos ameaçam o sistema, as organizações formais, são mais um obstáculo do que um elemento facilitador. [...] Por conseguinte, episódios de mudanças estruturais tendem a acontecer somente quando grandes alterações não institucionalizadas, que tomam a forma de motins, ataque a propriedade, manifestações descontroladas, roubo, incêndios e aparente rebelião, ameaçam instituições estabelecidas. Este tipo de alterações não costumam ser encorajadas, quase nunca e ainda menos promovem nem mesmo para as organizações de esquerda, que tendem a ser estruturalmente inclinado a preferir os requisitos, manifestações e greves ordenadas, que, em geral, podem ser restrita no âmbito institucional existente. Assim [grifo nosso], as formas de cooperação, coordenação e ação informal que encarnam o mutualismo sem hierarquia são experiências cotidianas das maiorias das pessoas”. São a partir dessas formas que acredito poder construir as bases democráticas de nossa sociedade no tempo presente.