Você está na página 1de 5

CARTA ABERTA DE UM ANARQUISTA AO SEU PAI

Querido pai,
Queria homenagear-te como vejo tão comumente fazerem as famílias que deram certo.
Sei que há os que acham que eu não ligo pra você ou que te esqueci. Nunca. Quem sabe
alguma hora você leia isso. Você foi talvez minha maior influência. Desde pequeno, você
se destacou daquela família nordestina tradicional, como rebelde, fazia tudo da sua
maneira, acreditava na própria inteligência. Lembro das suas façanhas. Vendeu pipoca pra
colecionar as revistas do batman. E aos 40 você ainda é fã dele, e eu sei o porquê. Foi
com ele que você aprendeu o valor da honra e da integridade. Haha, meu círculo de
amigos e eu em parte concordaria que é só mais um herói fabricado com intuito de criar
uma engenharia social, fabricar formas policiais de pensar, de quem combate o crime, mas
não combate o que gera o crime, a desigualdade. Mas lhe conhecendo bem, sei o valor
que ele tem pra você. Ele faz todo tipo de sacrifício, em nome do que acha que é certo,
sem receber nada em troca, nem ao menos agradecimento. Faz o que tem que fazer na
calada da noite, e ninguém sabe que ele fez. Você se vê assim. Lembro quantas vezes
você dizia: "Seu pai é o batman." E o atestava com aquele adesivo no fundo do seu fiat
prêmio anos 90, o batmóvel. Eu lhe admiro muito, você me ensinou o valor do
conhecimento. Me ensinou que o espírito científico é muito mais confiável na busca de
respostas do que qualquer metafísica. Meu primeiro livro lido, retirado da sua biblioteca,
uma coletânea de frases do Einstein...E tantos outros. Você tinha resposta pra tudo. Se eu
perguntasse "Pai, porque suamos?", a resposta vinha pronta: "Por que temos glândulas
sebáceas, que fazem o suor pra nos refrescar", e assim foi sempre. Qualquer um que me
conheça sabe o quanto disso tenho em mim. Eu segui esse princípio por toda a vida. Você
é e sempre foi um crânio, primeiro lugar, entusiasta do conhecimento.
Lembro também de quando na adolescência, começamos a brigar, brigar, brigar. Fugi de
casa várias vezes. Quebrei a porta de vidro com a mão. Arranquei os cabelos da cabeça
de louco. Mas era um espírito ruim dentro de você que não era você. Hoje com minha
experiência me dou conta disso. Hoje morro de medo de beber qualquer coisa alcóolica.
Como esquecer o dia que a gente te levou pra clínica? Sem o movimento das pernas?
Deitado naquele sofá esperando o fim? Eu não sei se ainda sou uma criança, mas naquele
momento eu ainda era, e não entendia nada.
Eu te amo, a maior prova disso foi quando soube que você corria risco de vida. Como
chorei, como fiquei triste. Parece que estou falando de alguém que morreu, né? Mas não é
bem isso. Me sinto distante de você pelas circunstâncias. Explico, desde pequeno, eu
achava que a vida poderia ser melhor do que essa que nos é reservada. E comecei a
investigar esse sentimento. Uma criança ainda não está corrompida pelas idéias da
sociedade. Ela é sincera com o que sente. É visível e terrível o que nossa sociedade está
passando. Não é normal que estejamos todos presos a esta realidade que nos
reservaram.
Grande parte dos artistas geniosos também conservaram esse sentimento genuíno. Isso
explica porque os maiores gênios sempre foram críticos a essa realidade. E na minha
investigação sincera me aproximei desses gênios. Aprendi muito com os livros, as
canções, os filmes, e conversando, ouvindo aqueles que se importavam com essa
questão.
A questão que falo, é uma vasta gama de problemas que a irracionalidade trouxe para a
humanidade, difícil de explicar em algumas linhas. Mas alguns problemas primordiais se
mostraram responsáveis por grande parte das guerras, fome, violência, destruição, ódio,
que nos impedem de uma vida plena e saudável.
Quando percebi que ainda não tinha a informação suficiente pra entender o que era isso,
fui atrás. E isso foi parte do meu processo de auto-conhecimento. Lembro de como você
ficou chateado com minha viagem. Você queria fundar uma empresa familiar, queria que
eu avançasse na computação, seguisse seu legado. Queria que eu seguisse cuidando de
você. Eu sentia que eu tinha um dever, que por tudo que havia sentido, buscado, desde
criança, poderia encontrar um conhecimento que fosse a chave para uma grande mudança
na sociedade, para melhor, que chamamos de revolução.
Sim, desde criança queria a revolução, e com o tempo aprendi a chamá-la de revolução.
Achei que seria capaz de fazê-la, e essa era a minha missão. Não por mim, não por
ninguém em especial, mas como o maior presente que poderia dar pra humanidade.
Megalomania? Alguns diriam que sim, mas parte dessa busca também era por amor aos
meus próximos. A minha mãe, a você, a minha família, aos meus amigos de infância, a
todos. Porque numa revolução, todos são considerados iguais. Não é como nessa
sociedade doente onde uns podem tanto, em detrimento da maioria que já nasce devendo
sua vida a outros, e passa toda a vida lutando para sobreviver, escravizado pelo salário,
pela fome, pelo medo do amanhã.
Vi minha mãe lutando toda minha infância, vi a pobreza de perto, senti o que era a dor da
falta. Vi o que era ter de se submeter aos que nasceram em berço de ouro, que ganharam
na loteria da vida. Por quê as coisas devem ser assim? Se todos entendessem de verdade
como tudo funciona, jamais aceitariam - somente os beneficiados. Mas o entendimento
está longe das pessoas comuns, porque assim quis o sistema. Mal têm tempo de ganhar o
pão de cada dia, só se informam por mídias desse mesmo sistema, claro que não
poderiam dar-se conta. Dizem os juristas que todos são iguais perante a lei. Dizem os
religiosos que todos são filhos de Deus. Mas com a desigualdade social, isso nunca é uma
realidade.
Essa revolução para mim era um segredo, que hoje já não guardo mais. Por que a roda
viva, a vida está me cobrando o tempo que estive lutando. Era um segredo porque contava
com o elemento surpresa, queria fazer algo perfeito, um plano bolado durante todos esses
anos, aperfeiçoando-se cada dia mais. Hoje morro de medo de ficar doente, pois quando
isso ocorre, preciso contar com meus amigos. E aos poucos, cada amigo que tenho vai
saindo de cena pra procurar seu próprio futuro. Isso me dá medo.
Eu estava seguindo você pai. Estava fazendo o que achava que era certo, sem querer
nada de volta. Afastado da família, sem falar muito sobre meu estilo de vida. Porque se um
dia morresse por essa revolução, já não teria laços para romper. Estava realmente
comprometido.
O tempo chegou, e eu aos 27 anos não vejo mais como eu posso lutar contra tudo isso
que está aí. Talvez essa missão fique pras novas gerações. Meu tempo passou. Eu
conheci diversas formas de luta, me encontrei como anarquista. Anarquista porque
acredito que todo ser humano deve viver sem que ninguém lhe seja superior, e sem ser
superior a ninguém.
Anarquistas acreditam na autogestão. Quando os seres humanos envolvidos em qualquer
trabalho sozinhos tomam conta de seus destinos, a forma de se organizar, sem imposição,
violência, hierarquia. Não é uma fórmula pronta de organização, mas princípios que
definem a forma de se organizar: Livremente. Era isso que eu buscava.
Eu poderia falar das revoluções anarquistas que aconteceram durante a história, da qual o
sistema tenta de todas as formas encobrir e esconder, porque são perigosas para ele. A
revolução espanhola de 36, A ucrânia anarquista de 17, o levante zapatista atual, a
revolução curda em Rojava. Mas percebi que o sistema reage a cada tentativa de
revolução. E hoje, o sistema já domina os veículos de informação. Estamos rodeados de
mentiras, e nem consigo visualizar tempo de desmentir todas elas. Se a verdade liberta, o
sistema já preparou uma reação pra cada verdade. O nazismo venceu. Quando a
Alemanha foi derrotada, todas as técnicas de manipulação foram absorvidas pelas
potências vencedoras. Uma das premissas da propaganda nazista era "uma mentira
repetida 1000 vezes torna-se uma verdade". E eles tem o monopólio dos meios de
comunicação. A internet também vem sido dominada por robôs que difundem idéias,
automaticamente, em redes sociais e comentários de portais de noticias. Nós sabemos
como se faz isso.
E nisso apostam os donos do mundo. Estão bombardeando o povo de mentiras, todo o
tempo. Seria preciso muito tempo para desfazê-las. Esse sistema está em todas partes.
Inclusive nos movimentos sociais. Porque se dominam a informação, vencem a guerra
antes de disparar qualquer tiro. Nos deixam confusos, injetam informações conflitantes.
Não consigo mais ver um horizonte anarquista. Sinto que nossa geração é uma das
últimas que pode fazer alguma coisa. Se esse sistema continuar, nosso planeta não
aguentará. Haverá colapso, guerras, escassez. Faltará água, comida. Estão envenenando
todas os rios, as reservas de água doce, estão matando as florestas, as biodiversidades,
estão destruindo toda forma de cultura que não se encaixe nesse sistema. Estão todos
perdidos nesse mar de informações, e as pessoas que poderiam fazer alguma coisa estão
inertes, graças a esse sistema que também trata de entreter as pessoas, para que pensem
que está tudo bem.
Sim, pai. Lembra que você adorava matrix? Você havia entendido que se tratava de uma
grande metáfora desse mundo que vivemos? Eu penso nisso todo dia. Me corrói por
dentro. Me tornar consciente do que estar acontecendo tem sido uma desgraça, porque sei
que enquanto escrevo essa carta pessoas estão morrendo de forma cruel, torturadas e
esquecidas ao relento. Tudo porque esse sistema assim quer, para que sejamos suas
baterias. Para alimentarmos esse sistema industrial que está na mão de poucos.
Já não sei mais o que fazer. Quanto mais entendi sobre as pessoas mais fiquei com medo
do futuro. Os universitários, que deveriam ser críticos ao que está acontecendo estão em
maioria manipulados pelas teorias hegemônicas da academia. O sistema também soube
manipulá-los muito bem. Tocam em suas feridas e os mantém reféns de uma narrativa
subjetiva, presos ao próprio mundo e aos próprios problemas, não se dão conta dos males
primordiais e nem de nenhuma saída possível. Por isso não quis fazer faculdade, desde
cedo entendi que ela também era parte do problema. Assim como as empresas, os
bancos, e o próprio dinheiro. Fui viajar pelo mundo, sempre buscando pistas que nos
levassem à revolução. Encontrei amigos que compartem desse sentimento, mas são
poucos. Todos eles são um pouco angustiados como eu. Estamos assistindo ao
apocalipse.
Nesse exato momento estou correndo atrás do prejuízo e tentando montar um futuro
tranquilo. Não posso contar com ninguém a não ser a mim mesmo. Mas não posso me
calar mais. Estou enfurnado até o osso na arte, porque ela é meu remédio, me alivia e
conforta. É meu passatempo e desafio cotidiano, um da qual posso vencer. E assim
sendo, vou usá-la como veículo de informação, falar o máximo que eu possa até quando
eu puder, e assim for, que me matem. Podem matar uma, duas ou três flores...Mas se o
exemplo for seguido, poderemos ter uma primavera.
Estamos passando por um momento difícil no território que chamamos de brasil (Países
não representam povos, mas territórios de controle). As forças de repressão estão
organizadas para destruir qualquer tentativa de resistência. Igrejas, donos de mídia,
poderosos, gente rica, se esforçaram para acabar com todas as conquistas que os
movimentos sociais lograram. Em breve, esse mundo se tornará pior do que já está.
Novamente em benefício de alguns poucos, que dominam todos os veículos de
informação, e podem comprar pessoas para falar por eles, como compram balas. Seremos
ainda mais escravizados, a saúde e a educação pública será ainda mais precária para
sobressair os setores privados, leia-se, hospitais e escolas que pertencem a esses
poucos, em sua maioria gringos, porque o brasil ainda é uma colônia. Metade de tudo que
arrecadamos como imposto vira pagamento de juros de uma dívida que temos desde a
época dos Portugueses. Nunca nos livramos do domínio estrangeiro.
Tenho medo, mas apesar de tudo não nos resta outra alternativa senão ter coragem. Pois
senão isso, só resta a dor dos que estarão marginalizados nesse sistema, como muitos já
estão, ou a submissão a ele.
Se não fosse a desigualdade, a miséria, haveria violência, crime? Se uma pessoa pudesse
claramente escolher entre um futuro seguro e tranquilo, e um cheio de riscos e incertezas,
qual ela escolheria? Esse mundo fala a verdade, quando diz que há oportunidade para
todos? A compaixão é qualidade dos inteligentes, porque é preciso imaginação para
colocar-se no lugar do outro. Quem vai nas periferias oferecer religiões fundamentalistas,
armas, drogas, emburrecimento da cultura? Quem se beneficia com isso? Não existe
fábrica de armas clandestina, vem tudo do sistema industrial.
E nesse turbilhão, aqui faço minha homenagem. Seu filho te ama. Sangue do meu sangue.
Meu ancestral. Meu criador, minha inspiração. Quem sabe um dia poderemos eu e você
esquecer essa miséria que paira sobre nós, e curtirmos uma manhã de domingo em um
mundo humano, inteligente, socialista. Onde não terei de vender todo meu tempo para
sobreviver. Onde poderemos tomar banho de riacho, morar em casa feita de bio-
construção, onde não sejamos reféns da máfia médica, mas possamos nos curar com
medicinas da floresta até o último caso, onde se possa comer fruta do cacho, onde os
desertos sejam reflorestados com agroflorestas, produção orgânica de alimentos. Um
mundo onde a pobreza não seja uma estatística, mas um relato do passado, inadmissível.
Onde as indústrias da morte sejam freadas, os monopólios comerciais não existam, onde o
poder acabe, onde cada ser humano valha o mesmo que cada ser humano, sem
distinções nem fronteiras.
Um dia gostaria de ver uma revolução acontecer. Por mim, por você e por todos nós.
Do seu filho
Saúde
El mármol, los caballos
tienen mis propias venas.
Cualquier dolor lastima
mi carne, mi esqueleto.
¡Las veces que me he muerto
al ver matar un toro!...
Oliverio Girondo

Você também pode gostar