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MÚSICA E CIDADANIA
O papel da música para o desenvolvimento intelectual, emocional e moral do
indivíduo

por Veronika Brunis1


Jardim Escola Paineira (Pedagogia Waldorf)2, Juiz de Fora/MG

1. Apresentação:
1.1 Observações em sala de aula como ponto de partida
Um pequeno exemplo da musicalização infantil pode mostrar o papel da música na
socialização da criança: Uma turma de 16 crianças entre 3 e 6 anos está sentada no chão da
sala de aula. A professora traz um xilofone e começa a tocar, acompanhando uma canção
dos cavalinhos. No decorrer da história, os cavalinhos galopam, passam por uma ponte com
passos cautelosos e batem as ferraduras nas pedras duras. Cada momento tem o seu toque
caraterístico, executado com movimentos fluentes e estéticos. As crianças estão fascinadas
e logo querem experimentar o instrumento também.
No primeiro contato, as crianças batem com força nas teclas, enquanto os colegas
tampam os ouvidos com as mãos. A professora pede, então, para “o cavalinho trotar com
cuidado sobre a ponte”, e logo as batidas ficam mais coordenadas e agradáveis para os
ouvintes. O próximo passo consiste em saber parar “o cavalinho” na hora certa ”para
observar a estrela guia”, alternando-se o xilofone com um metalofone, tocado por uma outra
criança.
Observemos como a música auxilia as crianças a entrarem em sintonia com o ambiente:

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Veronika Brunis, nascida em 1964 em Hannover, Alemanha, percorreu um Colégio Waldorf desde o
jardim até o Abitur (Prova final ). Estudou Pedagogia com enfoque no ensino de música (com enfoque no
violino), na Faculdade de Pedagogia em Freiburg, e, em seguida, no Instituto de Pedagogia Waldorf, em
Witten. Acrescentou a formação de Euritmia, completando os seus estudos em Hannover e em Stuttgart. Em
1990, co-fundação da Escola Waldorf em Chemnitz (Alemanha Oriental). Desde 1998 professora de música e
euritmia em Bauru, SP (Escola Viver, pedagogia Waldorf) e Juiz de Fora (Escola Paineiras, pedagogia
Waldorf) . Colaboração em cursos de formação de professores Waldorf. Atualmente projetando junto com
uma equipe de São Paulo um curso de formação antroposófica para músicos.
Contatos para cursos, aulas, oficinas, adquisição de xilofones, kânteles e liras:
Brunis@powerline.com.br
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Contatos para visitas, estágios, matrículas: escolapaineira@terra.com.br, Tel. 3215-5727
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 A música chama a atenção. Ela ajuda na concentração para a matéria em questão. Ela
transporta uma complexidade de informações e emoções .
 O músico aprende a transformar a sua motricidade vital e agressiva em gestos
significativos e harmoniosos.
 O músico interage com outros músicos, com o regente e com o público. Ele cria uma
consciência social através do escutar.

1.2 A sociedade na sua complexidade como desafio


Nós estamos educando as nossas crianças para quê? – Nós vivemos numa sociedade
altamente complexa, comparável a uma gigantesca orquestra sinfônica, tocando música
modernista de difícil entendimento. Quem consegue cumprir os seus compromissos com
fidelidade e firmeza, sem se deixar desviar pelas tendências ao lado e, ao mesmo tempo,
com sensibilidades para as necessidades da sociedade, compara-se a um músico bem
ensaiado e de bom ouvido3.
Infelizmente, a maioria dos adultos não tem essas qualidades bem desenvolvidas, o
que resulta em nossos problemas de violência, ganância, destruição do meio ambiente,
drogas e múltiplas doenças.
Existe o desafio cada vez mais urgente de educar a próxima geração com mais eficiência.
Obviamente um ensino puramente intelectual não cumpre esta exigência. A disparidade
entre teoria e prática se abre cada vez mais. Só um exemplo: Todos sabem que a destruição
da mata amazônica é um desastre ecológico, mas a exploração irresponsável continua. O
que está faltando?

1.3. A tese e suas referências :


Parece que não observamos bem o ser humano e as condições do seu
desenvolvimento saudável. Entre a teoria (intelecto) e a prática (as leis econômicas) existe
um longo caminho que precisa ser aplanado. E a música é um meio eficiente, como
mostrou o exemplo acima, para ligar os impulsos vitais e instintivos com o raciocíno e a

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O artista plástico alemão Joseph Boys (1922-1986) cunhou a expressão “soziale Plastik”, ( Escultura
Social), falando da arte de interligar os elementos da sociedade de uma maneira mais inteligente e saudável.
Isso levou o artista a criar a uma série de ações públicas altamente originais, firmando sua fama internacional
nos anos (19)70. RAPPMAN 1993.
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consciência social . Essa tese não é nada nova, como demonstra Wolfgang Wuensch no seu
livro Menschenbildung durch Musik (Formação do ser humano por meio da música),
WUENSCH 1995. O compositor e pesquisador de folclore Zoltán Kodály desenvolveu
uma didática com enfoque no canto e no bom fundamento da formação musical, instalada
em 100 escolas húngaras a partir de 1951. Nessas escolas, a prática de música ocupava uma
aula diária dentro do ensino regular. Kodály caraterizou o seu propósito da seguinte
maneira:

“Estas cem escolas não são escolas de música, mas escolas do ser humano. O homem sem
música não é completo mas apenas um fragmento.” KODALY 1966 (Pag. 32).

O sucesso desta experiência foi significativo. O desempenho dos alunos mostrava


resultados bem acima dos das escolas sem música. Considerando-se que as outras matérias
sofreram reduções, em benefício das aulas de música , esse resultado não pode ser ignorado
WUENSCH 1995 (pag. 7)4

Na Pedagogia Waldorf, desenvolvida na Alemanha, a partir de 1919 (e hoje


presente no mundo inteiro com centenas de escolas), pelo cientista e filósofo austríaco
Rudolf Steiner (1861 – 1925) HEMLEBEN1989, a música e as artes em geral exercem um
papel fundamental (STEINER1995, 1996, 1997, LANZ 1998, FRIEDENREICH 1990).
A pedagogia Waldorf baseia-se no estudo goetheanístico5 do ser humano, nos seus
aspectos físico, anímico e espiritual (Antroposofia)6 STEINER 1988 . Existem fases de

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Outros grandes músicos preocupados com o impulso pedagógico: Heitor Villa-Lobos (Brasil), Bela Bartók
(Húngria), Carl Orff ( Alemanha). Nos anos sessenta, Georg Picht lembra o ideal da formação da antiga
Grécia, visando num bom e abrangente ensino de música a premissa para uma verdadeira formação humana.
No ano 1970, num estudo da Bildungskommission (comissão para o ensino), volume 17, Felix Schmidt
escreve: “Também na área da educação musical a Federação alemã perdeu campo em comparação
internacional. Isto é mais inaceitável ainda pelo fato de, além de perder uma grande tradição alemã,
experiências e estudos em vários países europeus comprovaram o aumento no desempenho nas outras
matérias também, pois a música é capaz de abrir de maneira significante os órgãos espirituais.” Nos anos
1988-91, a experiência de Kodaly foi repetida na Suíça. O resultado desse experimento escolar de três anos
foi documentado no livro “Musik macht Schule”, pelos autores Ernst Waldemar Weber, Maria Spychinger e
Jean-Luc Patry na editora “Die blaue Eule”. Aqui, os resultados também foram positivos WUENSCH 1995
(pag. 7/8).
5
No livro “Repensar a ciência”, MARQUES 1996, existe uma abordagem histórica e científica do
goetheanismo.
6
Uma boa introdução para a Antroposofia encontra-se no livro LANZ 1997.
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desenvolvimento de cada aspecto, seguindo vários ritmos, , basicamente os setênios. LANZ


1998, LIEVEGOED19967. O currículo escolar é uma conseqüência desses estudos, com
indicações para o conteúdo e a metodologia certa, conforme os ritmos de desenvolvimento.
As premissas e os resultados desse trabalho dedicado, voltado para o bem-estar e a
saúde da criança existem já documentados em uma literatura vasta.8
A minha formação e experiência profissional originam-se desta linha pedagógica, que eu
considero bastante atual .

2. O papel da música em cada fase da vida


2.1 Gestação e parto
Por que se fala de “língua materna” e não paterna? Porque, antes de nascer, nós já
escutamos a voz da mãe falando e cantando. O ouvido tem um desenvolvimento precoce,
e, com os olhos ainda fechados, o feto escuta tudo com muita atenção dentro do útero. É
uma verdadeira “orquestra” de sons que se apresenta dentro do ventre materno: entre
batidas do coração e ruídos intestinais, existe uma variedade de ritmos. Como ele se
encontra dentro do líquido, as freqüências agudas prevalecem na sua percepção, sendo a
transmissão da voz materna através dos ossos da mãe. Estudos feitos na França ODENT
19869 mostram que um trabalho musical da mãe pode influenciar significativamente o bom
andamento da gravidez e, principalmente, o parto. Na última fase da gravidez, o feto se
ajeita na posição do parto. Se sentir um estímulo auditivo agradável, ele procura aninhar o
seu crânio na bacia da mãe, assim achando a posição correta com mais facilidade. Por isso
é necessário que a mãe tome uma posição ereta, como as boas cantoras o fazem, mas o
canto deve ser direcionado “para dentro”, não “para fora” , como ensinado no método
antroposófico do “Desvendar da Voz” WERBECK-SVAERDSTROEM 199410. A mãe
concentra-se na sensibilidade corporal com a intenção de mandar vibrações agradáveis para

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O livro de Lievegoed com o título “ Desvendando o crescimento”, além de ser uma descrição completa das
fases de desenvolvimento corporal, anímico e espiritual de 0 a 21 anos, é um exelente exemplo da
metodologia goetheanística.
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A maior editora de livros sobre Pedagogia Waldorf é a Editora Antroposófica em São Paulo,
www.antroposófica.com.br. Uma outra fonte sobre este assunto é a Federação das Escolas Waldorf,
fewb@terra.com.br pela edição do Periódico Pedagógico, uma revista trimestral com artigos de autoria
internacional.
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O capítulo : “ Antes do Parto” termina com as palavras: “Às vezes nós nos perguntamos, se as grávidadas
não seriam melhores , se viessem para a sessão de canto (na clínica em Pithiviers), em vez de fazer mais um
exame preventivo” ODENT 1986 (pag. 50).
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a base da coluna. Não importa a quantidade das notas, pelo contrário, uma música simples e
lenta, cantada em tom de ninar, serve melhor. Em bons cursos pré-parto na Alemanha, essa
técnica está sendo ensinada. Na minha própria experiência, o canto mostrou-se muito
eficiente para o relaxamento durante o trabalho de parto. O contato mãe- filho não se
interrompe e cria confiança e sintonia. Depois do parto, a criança reconhece a voz da mãe e
logo se acalma. Os cantos de ninar sempre funcionam melhor com a própria mãe.

2.2 Primeira infância


A criança pequena tem um ouvido muito sensível e não deve ser exposta ao ruídos
agressivos. Por outro lado, o isolamento completo é altamente prejudicial para a saúde e o
desenvolvimento da criança. A voz carinhosa da mãe, combinada com carinhos e a
amamentação, é uma necessidade elementar da criança pequena ZU LINDEN 1980.
Instintivamente, os adultos têm a tendência de falar suavemente e com voz mais aguda no
contato com uma criança.
Nos primeiros três anos, brincadeiras com as partes do corpo da criança, com versos
e pequenas canções, estimulam os sentidos básicos,11a segurança emocional, a
comunicação e a orientação espacial.
Instrumentos tocados ao vivo na presença da criança têm uma grande influência
sobre a musicalidade e o desenvolvimento neurológico da criança KOENIG 1997 .
Música reproduzida eletronicamente não tem o mesmo efeito, pois falta a coerência
com a realidade. Isso significa para a criança uma mentira, pois o aparelho de som imita
instrumentos que ela não vê, causando um enfraquecimento no âmbito moral da criança.
Além disso, as freqüências dos aparelhos, melhores que sejam, nunca terão a qualidade da
música ao vivo. E na criança pequena, todos os estímulos sensoriais exercem uma
influência sobre a saúde dos órgãos em desenvolvimento KOENIG 1997.
Se a mãe, o pai , a educadora da creche, a do maternal soubessem tocar um
instrumento delicado, como a lira, o kântele12, mas também um violão tocado com

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O método do “Desvendar da Voz “ tanto serve para a prática artística, quanto para a terapia e a pedagogia.
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Na visão antroposófica, existem doze sentidos, divididos em três grandes grupos: do âmbito do querer, ou
corpóreos (sentidos básicos): sentido do tato, sentido da vida, sentido do movimento, sentido do equilíbrio;
do âmbito do sentir, ou anímicos: sentido do olfato, sentido do paladar, sentido da visão, sentido térmico; do
âmbito do pensar, ou espirituais: sentido da audição, sentido da linguagem, sentido do pensamento, sentido do
eu (citado de : BURKHARD 1987(pag.202).
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delicadeza, ou uma flauta doce tocada suavemente, fariam um grande bem para os
pequenos sob seus cuidados. Esses instrumentos, com suas freqüências agudas, lembram a
criança da sua vivência pré-natal e reforçam a sensação de amparo e bem- estar.

2.3 Educação infantil


Esta descrição é resultado das observações feitas em jardins-de infância da
Pedagogia Waldorf.
Na fase entre 3 e 6 anos, acontece a sociabilização propriamente dita, com a criação
de bons hábitos e por força da imitação do adulto. Uma canção cantada pela mãe na hora de
acordar levanta logo o astral. Nessa fase da vida, a criança precisa brincar muito para
assimilar o mundo em sua volta com todo o seu ser. Como guiar uma criança absorvida na
brincadeira? A educadora que chamar as crianças para a arrumação com uma canção
bonita, como “Vamos todos ligeirinho arrumar nosso cantinho”, consegue liderar a sua
turma com facilidade. Para lavar as mãos, forma-se um trenzinho de crianças, que transita
cantando até o banheiro. Antes da merenda: uma canção e um verso. Na hora da históra:
uma vela acesa e uns tons dedilhados no kântele preparam o ambiente. Na hora de dormir:
uma canção e uma prece. Assim, a criança vivência o ritmo do dia de maneira alegre e
gostosa. Para o adulto, isso significa uma grande economia de esforço, pois evitam-se
confrontos e lágrimas IGNACIO1995.
O ritmo do ano se vive com canções, ritmos, cirandas, versos e dancinhas, conforme
cada festa e cada estação. A roda rítmica como parte da rotina diária num jardim-de-
infância é uma ferramenta poderosa no ensino de costumes, coordenação corporal e
espacial, linguagem corporal e oral, além de ensinar a criança a respeitar o grupo e a
educadora. Essa deve-se preparar bem, ensaiando as músicas com voz afinada e aguda, pois
um canto grave prejudica as cordas vocais das crianças. O canto desafinado embrutece ou
entristece a criança ao longo prazo.

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1. O kântele é um instrumento de origem finlandesa. Ele consiste em uma caixa sonora em forma de asa e
7-10 cordas,afinadas de maneira pentatônica ou diatônica. Tocado de maneira deslizante, com as pontas
dos dedos da mão direita, sua sonoridade é muito delicada A lira, um instrumento milenar, presente em
todas as culturas antigas, e principalmente na antiga Grécia, foi reinventada na Alemanha por Edmund
Pracht e Lothar Gaertner para uma prática de música de acordo com as exigências na pedagogia e na
terapia antroposóficas HOLLANDER 1996 .A técnica de dedilhar é parecida com a do kântele, mas
utiliza ambas as mãos. A lira é afinada cromaticamente. Existem construtores de kântele e lira no Brasil.
Informações por www.ouvirativo.com.br
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Também os gestos e movimentos corporais devem ser executados com beleza e


significado, pois a criança imita tudo. Gestos cuidadosos e carinhosos criam um clima de
respeito. Falta de controle e gestos violentos, rápidos demais ou sem dinâmica, geram
reações negativas.
Certamente não é indicado imitarem-se os movimentos pélvicos das moças da
televisão. Quem quer proporcionar aos seus filhos uma infância feliz, não os puxa
precocemente para um mundo decadente adulto.
Deve-se dar preferência a instrumentos primitivos, feitos com materiais naturais,
para desenvolver-se a sensação de coerência entre material e som. Instrumentos sintéticos,
eletrônicos ou até computadorizados não trazem benefício nessa idade; pelo contrário,
geram irritabilidade e queimam etapas na descoberta da sonoridade dos materiais.

2.4. Ensino Fundamental


Como o meu trabalho ocorre principalmente nesse âmbito, este capítulo será mais
detalhado.
Nessa fase, a criança saudável tem uma musicalidade natural maravilhosa, assimilando
rapidamente canções e ritmos. Por isso todo o ensino deve ser permeado por música. O
clima na sala de aula deve ser de entusiasmo e de amor pelas coisas belas do mundo
STEINER1988, LANZ 1998. O ritmo da aula , não importa a matéria , deve ser composto
como se fosse uma sinfonia, alternando-se atividades alegres com trabalhos cuidadosos,
movimento corporal com momentos de imaginação interna STEINER 1997..
 Uma canção, uma ciranda, uma peça tocada por todos na flauta doce, no começo do
dia, desperta a cabeça e une a turma, preparando as crianças para o aprendizado.
 Canções relacionadas com a matéria criam um clima favorável à assimilação da lição e
transmitem valores mais sutis. Exemplos: Para a aula de geografia - canções das várias
regiões em questão. Aula de história – música antiga de tal época. Aula de inglês –
canções da Inglaterra, dos Estados Unidos etc.
 Para decorarem tabuadas na matemática, movimentos rítmicos, batendo-se palmas,
pulando etc. (música corporal) demonstraram-se muito eficientes, ao passo que
desenvolvem destreza e trazem alegria BERTALOT,1995.
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 Canções para caminhadas e para trabalhos monótonos. Como a música estimula a


coordenação e o movimento rítmico, gera a sensação de leveza. O que era cansativo,
torna-se fluente. Existem inúmeras canções de plantação, de colheita, de trabalho
manual etc.
 Ginástica, dança folclórica, euritmia : tudo ganha vida com uma música animada. O
ideal, aqui também, é música ao vivo. Com um pouco de esforço, acham-se músicos
aposentados ou estudantes de música, pais, avós ou irmãos mais velhos que podem
tocar para os alunos.
 Peças de teatro, jograis etc. só ficam completos com canções, danças e sonoplastia
(fundo musical, produzido ao vivo com instrumentos diversos). Às vezes, os próprios
alunos têm as melhores idéias de como incrementar o seu teatro.
 As festas do ano e todo tipo de comemorações ganham o seu brilho com canções
típicas. Criam-se tradições próprias em cada escola, que deixam saudades durante toda
a vida. Essas comemorações cíclicas desenvolvem o sentido para o tempo. O ano está
sendo estruturado, e cada festa tem o seu jeito de alegria. É importante diferenciarem-se
e estruturarem-se as festas. Não se deve ter exaltação demais. A alegria deve nascer
da vivência do conteúdo da festa. Por exemplo: A festa junina comemora a vida de João
Batista. Sem momentos de solenidade, a alegria somente pode ser superficial. - Uma
das minhas lembranças mais bonitas da minha infância é a tradicional “dança da tocha”,
acompanhada por uma música solene, no momento de acender a fogueira. Em seguida
cantava-se um cânone com todos os presentes sobre a “chama como guia para a luz
interior”.
Aqui também deve-se dar preferência à música ao vivo, executada pelos próprios alunos,
pelos professores e pais. Uma alegria verdadeira só pode ser fruto de trabalho e de esforço.
Bebidas alcoólicas são inimigas desse clima elevado e não devem entrar numa escola. As
crianças devem vivenciar a nossa capacidade de sentir alegria sem estímulos químicos
artificiais. Nesse sentido, o cultivo das festas é uma prevenção fantástica contra
dependência de drogas e medicamentos, contra a depressão e a monotonia.
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2.4.2 A aula de música


A aula de música, propriamente dita, na idade escolar tem vários propósitos,
sempre relacionados com a formação plena da criança. Uma futura profissionalização nesse
campo deve ficar como possibilidade remota. O professor de música pode alegrar-se com
bons resultados, sem deixar prevalecer a ambição. Apresentações diante dos pais não
devem ter um estilo perfeccionista, para não matar o fluxo do desenvolvimento, dando
chances a todos os alunos. Por outro lado, uma apresentação é sempre um momento
especial e tem um grande valor pedagógico. Certos alunos, que ficam indiferentes durante
o semestre, podem revelar-se verdadeiros artistas na preparação de um concerto. E os
grandes brincalhões podem acordar na hora em que passam vergonha por falta de preparo.
Em geral, uma apresentação bem sucedida traz benefícios para a auto-estima dos alunos e
aproxima a comunidade escolar (principalmente os pais) . É um momento de avaliação
natural, também para o professor.
Ainda mais importante do que os resultados audíveis das atividades musicais, são as
capacidades desenvolvidas através dos diversos elementos da música:
 A memória melódica prepara a mente para uma coerência no pensamento lógico. Uma
melodia bem composta tem uma estrutura que consiste em seqüências, repetições,
imitações, contramovimentos e complementações. Ela não é arbitrária nem monótona,
não perde o rumo, tem começo, meio e fim.
 A afinação da voz desenvolve a percepção para o certo e o errado, o que leva ao
julgamento ético.
 No canto em várias vozes (começando com cânones, por volta de 8 anos), a criança
aprende a entrar em harmonia com o ambiente, sem perder o seu próprio caminho.
 A continuidade rítmica desenvolve força de vontade e firmeza de caráter, pois o
desafio é o de não perder o pulso num trecho mais complicado, nem acelerar-se em
trechos fáceis.
 A variedade de estilos entre músicas alegres e tristes, em tonalidades “maior” e
“menor”, rápidas, lentas, agudas, graves, fortes, suaves, criam uma riqueza emocional,
necessária para o desenvolvimento da empatia GOLEMAN 1995 (capítulo 7: As
origens da empatia) .
10

 Durante o decorrer do ensino fundamental, os alunos devem ter vivências com uma
variedade de instrumentos. Uma seqüência boa é: começando com instrumentos de
percussão simples, xilofones, metalofones, passa-se ao ensino do kântele,
desenvolvendo-se a motricidade fina da mão direita, e, em seguida, para a flauta doce,
limitando-se, no início, à mão esquerda. A flauta doce logo se torna o “amigo de peito”
da criança, pois permite um uso descomplicado. ( Muitas crianças descobrem
facilmente como tirar melodias de ouvido, e a flauta as acompanha por toda parte,
alegrando o seu ambiente). Além disso, a flauta ajuda a regular a respiração da
criança, o que beneficia o seu equilíbrio emocional. A partir da segunda série, deveria
entrar o violino como possibilidade de escolha, bem como o piano e, na medida do
possível,os outros instrumentos orquestrais. O professor de música deve incentivar os
alunos a aprenderem um instrumento musical em aulas extracurriculares. Nessa
escolha,devem entrar considerações pedagógicas , pois cada instrumento desenvolve
habilidades específicas. Exemplos: Os instrumentos de sopro (principalmente
“madeiras”) ajudam a criança agitada a controlar sua respiração, permitindo uma
musicalidade alegre e fluente, pois a técnica manual de uma clarinete ou flauta
transversal é parecida com a flauta doce. Já a criança cuidadosa vai-se dar bem no
violino que exige muita disciplina e paciência. A tendência dos meninos de quererem
aprender bateria resulta das influências unilaterais da televisão e precisa ser
contrabalançada por outras opções. A falta de melodia e o barulho exagerado desses
instrumentos prejudicam o desenvolvimento pleno, se introduzido antes da puberdade
WUENSCH1995.
 As habilidades manuais no manejo de um instrumento desenvolvem a inteligência
corporal, transformando movimentos instintivos em complexos conscientes e
controlados. A virtuosidade é uma vivência fantástica de liberdade e alegria.
 No treino diário de um instrumento, a criança aprende persistência e paciência. A hora
do treino é um momento valioso onde o aluno desenvolve autonomia, aumentando-se a
auto- estima. Essa hora do treino deve ser monitorada por um adulto, estabelecendo-se
horários e garantindo-se um ambiente tranqüilo. Um dos grandes inimigos desse treino
coerente é a televisão, que enfraquece a força de vontade e inibe a concentração, com
sua sonoridade irritante. Acontece que crianças com boas alternativas de atividades
11

ficam menos atraídas pela diversão passiva ou unilateral dos aparelhos, como também
os video-games e os jogos de computador.13
 A leitura de partitura significa a ligação do intelecto com o emocional. A arte de
interpretação musical é o desafio de dar vida a um produto morto (a partitura escrita).
Adivinhar a intenção do compositor exige um alto grau de inteligência emocional
GOLEMAN 19995.
 Na improvisação, exige-se presença de espírito, na vivência de liberdade sob certas
premissas. Na improvisação em conjunto, desenvolve-se a sensibilidade na
comunicação e no escutar.
 Exercícios de regência e gestos, que acompanham as subidas e descidas melódicas,
vivem no ambiente de leveza da música. Eles desenvolvem graciosidade e mobilidade
coordenada14. Essas habilidades não servem somente para as meninas, que têm uma
inclinação natural pelo movimento belo. É importante ensinar também os meninos, que
ser “macho” não significa automaticamente, ser “troglodita”.
 Música e imaginação: Ao escutarem uma música, os alunos devem ser estimulados a
imaginar cenários, cores, movimentos, carateres etc. Com este “sonhar acordado”, o
corpo relaxa, e a circulação sangüínea do cérebro aumenta, levando à vitalização e à
recreação STEINER 1997. São momentos de intimidade e de inspiração. O costume de
escutar-se boa música enriquece e enobrece a vida emocional e deve ser ensinado na
educação musical.
 muito grande para o desenvolvimento emocional e espiritual do aprendiz. As terapias
artísticas da linha antroposófica baseiam-se nesse fato WERBECK-
SWAERDSTROEM 1994.
.

13
No Apêndice do livro de LANZ 1998, encontra-se um estudo de Waldemar Setzer :”Os riscos dos jogos
eletrônicos na idade infantil e juvenil”.
14
Nesse campo, a arte da euritmia dispõe sobre uma grande variedade de exercícios, tornando visíveis os
diversos elementos musicais.. A aula ocorre em um salão vazio, equipado apenas de um piano, onde os alunos
executam coreografias e gestos baseados nos intervalos, nos tons absolutos, no ritmo, na estrutura
composicional, na harmonia, nas linhas melódicas etc.
12

3. Conclusão
3.1 Comparação do exposto com a situação atual e local
Considerando-se os benefícios do cultivo da música nos vários níveis da vida
individual e para a sociedade, todo esforço é pouco para instalarem-se melhorias no ensino
de música. Nas escolas particulares, o valor dado à música varia muito, dependendo da
tradição e do enfoque de cada instituição. Existem escolas com altíssimo nível artístico,
como, por exemplo, a “Academia” em Juiz de Fora. Nas escolas públicas, há pouco espaço
para as artes,e os professores, em geral, não estão preparados para inserir o cultivo de
música nas suas aulas. No nível extracurricular, porém , às vezes encontram-se ótimos
projetos, como aqui em Juiz de Fora, o trabalho de coral e orquestra do Maestro Ciro
Tabet15. Nos conservatórios estaduais, um grande número de crianças e jovens tem acesso
ao mundo da música. Também existem projetos da iniciativa privada, patrocinados por
várias empresas, dando oportunidades para as crianças menos privilegiadas16. Falta
mencionar o trabalho persistente que acontece nas igrejas e em entidades filantrópicas,
com conjuntos musicais de todos os estilos.
Mas, será que nos casos de cultivo da música, o ser humano está realmente no
centro da atenção? Existem muitos outros motivos, como as ambições para se promover
através de um belo conjunto musical, e os métodos do ensino, às vezes, não visam tanto ao
desenvolvimento pleno do indivíduo , mas pode haver muito “adestramento” com metas
restritas. No outro extremo, existe falta de critério na escolha das músicas adequadas para
cada idade. Ensinar a crianças de quatro anos a “dança da bundinha” é altamente
questionável. Também pode-se chamar uma falta de cultura deplorável reduzir-se o ensino
de música à execução diária do hino nacional, berrado ao acompanhamento de um alto-
falante horroroso. Um fundo musical de altíssimos decibéis na hora da merenda é um outro
erro grave que já vi em uma escola pública.
Resumindo, pode-se afirmar, que o cultivo da música existente em Juiz de
Fora tem um nível acima da média. Comparado com o que já existia como tradição no
passado, nota-se uma desvalorização da musicalidade elementar como ferramenta

15
Existe um coral das escolas públicas. Além disso, alunos com talento podem candidatar-se para entrar no
projeto “Orquestra Jovem”, patrocinada pela “Belgo Mineira” e apoiada pela escola de música “Scala”.
16
A escola de música “Pró Música mantém um número de bolsas, além de promover concertos gratuitos de
alto nível e um fetival de música antiga anual, trabalhando para uma verdadeira popularização da música.
13

pedagógica. Entre os extremos da decadência cultural e da perfeição técnica, falta em


grande parte uma convivência natural e saudável com a música, como um meio de
expressão humana.

3.2 Sugestões
• O ensino de música precisa sair da sua situação marginal no currículo e voltar a ser
considerado uma ferramenta principal de educação. Uma boa média seriam duas aulas
de música para cada sala, desde o ensino fundamental, além da participação do
professor de música em várias matérias. Cada escola deveria ter pelo menos um coral e
uma orquestra.
• Para se equiparem as escolas de instrumentos, parcerias e patrocínios devem ser
procurados17.
• É necessário promover cursos de reciclagem para professores de música atuantes, com
o propósito de se enfocar cada vez mais nas necessidades reais dos alunos.18
• Nas faculdades de pedagogia, a prática de música deve ser exigida e estimulada.19
• Nas faculdades de música devem ser estudadas as influências de cada elemento
musical sobre o ser humano, pois isso tem relevância tanto para o futuro compositor,
regente, intérprete, quanto para o futuro educador musical.20
• De modo geral, o trabalho duro e cansativo do professor de música deve gozar de mais
reconhecimento. Enquanto os salários na área de educação tiverem um nível tão baixo,
é difícil encontrarem-se profissionais engajados, dispostos a fazerem mais do que
reproduzir o conteúdo da apostila, ou de colocar um CD no aparelho de som.

17
A empresa alemã “Software AG” está patrocinando projetos que visam a proporcionar instrumentos
musicais para grandes números de alunos, tanto na Alemanha (Escolas Públicas em Bochum) quanto no
Brasil (São Paulo, Campinas, entre outros) .
18
Oficinas, cursos e uma formação para músicos, baseados na antroposofia, promove a equipe do
OuvirAtivo, www.ouvirativo.com.br
19
Existem vários seminários de pedagogia Waldorf no Brasil (São Paulo, Botucatu SP, Campinas SP, Nova
Friburgo RJ). Mais detalhes pela Federação das Escolas Waldorf.
20
Na Alemanha, existem ótimas instituições de formação musical e pedagógica baseadas na Antroposofia,
como o Institut fuer Waldorfpaedagogik, Annener Berg 15, D-58454 Witten-Annen.
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