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A LITERATURA DE FADAS E A PRODUÇÃO CONTEMPORÂNEA:

TEMAS E IMAGENS POLÊMICAS

Gilsyele Sonia BORRAZZO (G - UEM)


Alice Áurea Penteado MARTHA (UEM)

ISBN: 978-85-99680-05-6

REFERÊNCIA:

BORRAZZO, Gilsyele Sonia . A literatura de fadas e


a produção contemporânea: temas e imagens
polêmicas. In: CELLI – COLÓQUIO DE ESTUDOS
LINGUÍSTICOS E LITERÁRIOS. 3, 2007,
Maringá. Anais... Maringá, 2009, p. 432-439.

1. INTRODUÇÃO

A Literatura Infantil, até bem pouco tempo, era considerada um gênero


secundário. Entretanto, nós sabemos que é no encontro com qualquer forma de
Literatura que o homem pode ampliar e transformar sua existência. Assim, a Literatura
passa a ser um instrumento de veiculação de ideologias e culturas, um meio de
formação de consciências de mundo. Dessa forma, ela é essencial na formação de
qualquer criança em qualquer sociedade.
Desde seus primórdios, a Literatura infantil foi essencialmente imaginação; a
partir do Romantismo o maravilhoso foi incorporado a essa manifestação, por meio dos
contos populares dos Irmãos Grimm e de Hans Christian Andersen.
Quem lê os contos de fadas não imagina que essas histórias têm-se perpetuado
por séculos na cultura das civilizações através, principalmente, da tradição oral. Esse
tipo de literatura trata de questões universais e mistura a realidade com a fantasia.
Assim, por lidarem com conteúdos essenciais da condição humana, como o amor, os
medos, as dificuldades de ser criança, as carências (materiais e afetivas), as
autodescobertas, as perdas, as buscas, a solidão, a morte, a violência, entre outros temas,
é que eles fazem parte, até hoje, da nossa literatura.
Dessa forma, este estudo procura levantar e discutir temas e imagens polêmicas,
como o medo, a morte, o sexo e a violência, presentes na Literatura Infantil e Juvenil,
desde os contos de fadas até a Literatura contemporânea. Para isso, trabalhamos
alicerçados no pensamento de autores, como Nelly Novaes Coelho, Regina Zilberman,
Marisa Lajolo, que nos ajudaram a refletir sobre a origem desses temas na produção
infantil e juvenil. Dessa maneira, detectamos tanto a presença quanto os modos de

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manifestação desses temas em obras de momentos histórico-estéticos diferentes, para,
assim, traçarmos um panorama dos rumos da literatura infantil.
O estudo foi iniciado com a leitura comparativa do conto de fadas Chapeuzinho
Vermelho, nas versões de Charles Perrault e dos Irmãos Grimm, passando pela literatura
dos anos setenta, com a Coleção do Pinto – por meio de uma breve análise da obra O
Menino e o pinto do menino, de Wander Piroli – chegando até a contemporaneidade,
apresentando a manifestação da temática em Menina Nina, de Ziraldo, e em Os olhos de
Ana Marta, da escritora portuguesa Alice Vieira.

2. AS FADAS E A PRODUÇÃO CONTEMPORÂNEA

Chapeuzinho Vermelho é uma das narrativas de maior referência entre os


clássicos infantis, sendo conhecida pela maioria das crianças em todo o mundo. A
escolha de uma leitura comparativa da mesma obra escrita por diferentes autores não foi
por acaso. Como sabemos, as primeiras manifestações literárias para o público infantil,
que na verdade eram textos para adultos, traziam conteúdos muito fortes para as
crianças, que na época tinham seus sentimentos considerados sem nenhum valor. As
histórias carregavam juízos de valores da época, eram bem mais diretas e não se
caracterizavam pela presença do fantástico, do maravilhoso, do inocente, que deveriam
ser comuns nas histórias infantis. Podemos notar esta diferença ao analisarmos as
versões de Perrault e dos Irmãos Grimm para Chapeuzinho Vermelho.
A história inicia-se com a atribuição de uma tarefa à menina por sua mãe. E
desta tarefa é que dependerá a narrativa. A atenção será mantida, sobretudo, pelas
figuras da menina e do lobo, pois é a partir desses dois sujeitos que se encadeiam as
principais ações da narrativa.
Primeiramente, observamos uma relevante diferença no modo como as
narrativas são iniciadas. Perrault começa sua história afirmando: Havia, numa
cidadezinha, uma menina que todos achavam muito bonita (PERRAULT, 1992, p.4),
enquanto Grimm escreve: Era uma vez uma pequena e meiga menina, da qual todo
mundo passava a gostar assim que a conhecia (GRIMM, 1993, p.4). Fica evidente
como a segunda versão enfatiza o maravilhoso, pois inicia a história com a tradicional
frase Era uma vez, elemento presente na maioria das histórias infantis.
No que se refere à construção da personagem, notamos, nas passagens
anteriores, que o narrador em Perrault valoriza a aparência, a beleza. Ele descreve
Chapeuzinho como sendo uma menina que todos achavam muito bonita. Dessa forma,
percebemos que se trata de uma moça/mulher e não de uma menina. E é por culpa dessa
beleza das mulheres que os homens, ou lobos, as atacam. Já o narrador em Grimm
descreve a menina como pequena, meiga; fazendo uso de adjetivos de modo que o leitor
pense mais em sua beleza interior do que na exterior. O uso de diminutivos como
vovozinha, no trecho: Mas ninguém a amava tanto quanto sua vovozinha (GRIMM,
1993, p.4), remete à idéia de que se trata de uma menina. Já a linguagem objetiva e
direta de Perrault, que escreve: A mãe era doida por ela e a avó ainda mais
(PERRAULT, 1992, p.4), mostra que pode se tratar de um adulto e não de uma criança.
Podemos perceber nas histórias os valores de cada época quanto à família. O
texto de Perrault - pertencente a uma época em que a família revelava uma realidade
social e moral, mais do que sentimental – valoriza a fala da mãe à menina: Vai ver como
está passando tua avó, pois eu soube que ela anda doente (IDEM, Idem, p.5), ou seja, a
mãe de Chapeuzinho soube que a avó estava doente, levando o leitor a pensar que o

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relacionamento entre elas é distante. Já na versão de Grimm, a mãe diz: Chapeuzinho,
leve este bolo e esta garrafa de vinho para a vovozinha, pois ela está doente e fraca
(GRIMM, 1993, p.5). Aqui já encontramos uma preocupação maior com a família, pois
a mãe sabe que a vovozinha está doente e fraca, mostrando que o relacionamento entre
elas é próximo. Neste momento, encontramos vestígios da família burguesa, unicelular,
na qual já há uma preocupação com os sentimentos familiares, e não somente com o
social.
Quanto às recomendações dadas pela mãe, notamos que em Perrault estas não
existem já que a mãe somente manda a menina levar a encomenda para a avó; em
Grimm, ao contrário, encontramos: Quando chegar à floresta, não se desvie da estrada,
senão você poderá cair, quebrar a garrafa e estragar o bolo (...) Quando você chegar
lá, não esqueça de dizer “Bom-dia” e não fique a olhar curiosamente para todos os
cantos (IDEM, Idem, p.5). Nessa passagem notamos claramente que se trata de uma
criança, pois a mãe descreve atitudes que são típicas da infância. Podemos notar
também o aspecto didático presente no texto quando a mãe pede à menina para se
comportar e ser educada.
Dando seqüência à história, quando Chapeuzinho se depara com o lobo,
acontece a primeira manipulação de sedução. Na versão de Perrault, ela menina
encontra o compadre lobo que logo teve vontade de comer a menina (PERRAULT,
1992, p.7). Quando o autor refere-se ao lobo como um compadre, percebemos que se
trata de alguém humano - um homem- e, a partir desse fato, observamos aquela imagem
da mulher imposta pela sociedade – a de símbolo de desejo dos homens. Ao falar que o
lobo logo teve vontade de comer a menina, o narrador deixa evidente a violência contra
a mulher e o desejo sexual. Esses fatos confirmam a hipótese de que não se trata de uma
menina, mas sim de uma mulher. Já em Grimm a menina encontrou o lobo, mas, como
não sabia que ele era um bicho tão malvado, não se assustou ao vê-lo (GRIMM, 1993,
p.6). Nessa versão, percebemos a questão da antropofagia, ou seja, o lobo como um
lobo, aquele que come a carne humana para se alimentar.
No que diz respeito ao diálogo da menina com o lobo, observamos que na
narrativa de Perrault a voz da personagem, a fala feminina, não é valorizada, pois ela
fala pouco e o diálogo é menos detalhado que na outra versão. Contudo, percebemos o
jogo de sedução que o lobo faz com Chapeuzinho quando ele instiga a menina com a
brincadeira: Vamos ver quem chega primeiro (PERRAULT, 1992, p.9). Já em Grimm, a
menina age mais, fala mais, mostra-se educada, obediente e o diálogo vai se construindo
através de um jogo de perguntas e respostas entre as personagens, típico das
brincadeiras infantis. Ao contrário do texto de Perrault, que se mostra mais moralizador,
o diálogo aqui é detalhado, mostrando o tempo e o espaço onde a narrativa acontece. É
nesse momento da história, em ambos os autores, que o lobo tenta fazer com que a
menina se distraia para que ele chegue primeiro à casa da vovó. Contudo, na versão de
Grimm, quando o lobo diz a menina Pelo seu jeito de andar, dá a impressão que vai
para a escola, quando aqui na floresta é tão mais divertido (GRIMM, 1993, p.11),
notamos a questão pedagógica que se insere no livro. O autor procura dizer às crianças
que a escola pode até ser chata, mas pelo menos lá não há perigos como na floresta.
Quando a ação passa para a casa da vovó notamos, em Perrault, que o lobo
avançou sobre a pobre mulher e devorou-a num instante, pois fazia mais de três dias
que ele não comia (PERRAULT, 1992, p.13). Já em Grimm, dirigiu-se até a cama da
vovozinha e, de uma só vez, a engoliu (GRIMM, 1993, p.14). A diferença entre os
discursos dos narradores ocorre com o uso dos verbos. Quando o narrador em Perrault

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faz uso dos verbos avançar e devorar, nos remetemos a algo mais voraz, a uma
necessidade que precisa ser saciada. Percebemos, também, que devorar carrega certa
ambigüidade: a do devorar sexualmente ou se alimentando. Já o emprego dos verbos
digerir e engolir abranda a violência da outra narrativa, pois revelam ações mais
amenas. Em engolir não notamos a mesma força e ambigüidade que em devorar. Nessa
mesma cena, o lobo, em Perrault, não veste as roupas da vovó, porque não é necessário
enganar a menina, afinal não se trata de uma menina e esta já sabe o que vai acontecer.
Já em Grimm, ele se fantasia de vovó enquanto a menina se distrai pela floresta, a
colher flores e só tornou a pensar na vovó quando já não podia mais carregar
(GRIMM,1993, p.15). Nesse trecho notamos a questão pedagógica, já que o narrador
tenta passar para os leitores o perigo da distração.
Na versão de Grimm, a menina ao chegar à casa da vovó e encontrar a porta
aberta tem uma intuição Meu Deus, como estou assustada hoje, e eu que sempre gosto
de visitar a vovó! (IDEM, idem, p.15). Já na versão de Perrault a menina ao escutar a
voz grossa do Lobo, teve medo, mas pensando que a voz da sua avó estava diferente por
causa do resfriado, respondeu (PERRAULT, 1992, p.14). Assim, notamos que intuição
medo expressam sensações diferentes, ou seja, a menina teve uma intuição de que algo
não estava bem. Já em sentir medo poderíamos pensar que a mulher teve medo do
primeiro encontro com um homem, pois ela já sabia o que a estava esperando.
A questão sexual fica evidente na versão de Perrault porque o lobo pede à
menina que deixe a comida sobre a mesa e venha se deitar com ele; ela tira seu vestido e
vai para a cama. Dessa forma, notamos que a personagem tem consciência do que vai
acontecer, ela não é inocente como uma criança. E quando faz as perguntas ao lobo
disfarçado de vovó, como: como você tem braços grandes, como você tem pernas
grandes (IDEM, idem, p.18-19), elas podem remeter a uma brincadeira sexual. Já na
versão de Grimm, a menina não tira o vestido, nem se deita na cama com o lobo e ela
faz as perguntas utilizando a palavra por quê, repetidamente, modo típico de crianças
que são curiosas e perguntam o porquê de tudo.
No que se refere às respostas do lobo quanto à pergunta sobre a boca grande, na
narrativa de Perrault, ele explica: É para te comer (IDEM, idem p.22) e salta sobre a
menina e a devora. Já em Grimm, o lobo diz Para que eu possa devorá-la melhor!
(GRIMM, 1993, p.20) e pula da cama e engoli a menina. Aqui o uso dos verbos também
deixa claros os objetivos do lobo. A narrativa de Perrault termina nesse momento com a
moral da história, revelando as intenções de manter a mulher submissa às instituições
sociais:

Vimos que os jovens, principalmente as moças, lindas, elegantes e


educadas, fazem muito mal em escutar qualquer tipo de gente. Assim,
não será de estranhar que, por isso, o lobo as devore. Eu digo o lobo
porque todos os lobos não são do mesmo tipo. Existe um que é
manhoso, macio, sem fel, sem furor. Fazendo-se de íntimo, gentil e
adulador, persegue as jovens moças até em suas casas e seus
aposentos. Atenção, porém! As que não sabem que esses lobos
melosos de todos eles são os mais perigosos (PERRAULT, 1992,
p.23).

Assim, o narrador explicita claramente que a história foi escrita para adultos, ou
melhor, para as moças, e não para crianças. Já a história de Grimm não termina como a
anterior. Um caçador aparece e salva a Vovó e a Chapeuzinho, que ainda estavam vivas

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na barriga do lobo. A menina termina dizendo Nunca mais sairei da estrada e
penetrarei na floresta, quando isso for proibido por minha mãe (GRIMM, 1993, p.23).
Neste final percebemos, claramente, o caráter didático da obra e suas ligações com a
escola, também uma instituição burguesa como a família.
Vistas as disparidades existentes entre a mesma narrativa, escrita por autores em
diferentes épocas e com diferentes interesses, passamos agora para um momento de
grande criatividade na Literatura Infanto-juvenil brasileira, a partir do final dos anos 60,
do século passado. Após um longo período no qual não se teve interesse nenhum pelo
que era escrito para o público infantil e por uma decadência de autores e obras para este
gênero, a década de 70 surge como renovação no campo da Literatura Infantil e Juvenil
no Brasil. Nesse período, a literatura volta a ser valorizada como manifestação ideal dos
conhecimentos e experiências do homem, e as obras aparecem como estimulação da
consciência crítica das crianças.
Nesse momento, além de muitas outras produções de valor, surge uma coleção
que procura seguir uma conduta uniforme e cria textos que mostram a vida como ela é,
colocando à disposição das crianças e jovens temas que denunciam os conflitos de um
mundo cada vez mais brutalizado, massificado e dominado pelo consumo. Essa coleção
foi denominada Coleção do Pinto e obteve um grande sucesso, pois representou uma
nova forma de como a arte pode se posicionar em face do leitor infantil ao apresentar o
propósito verista em seus textos. Conta com quatro títulos: O Menino e o Pinto do
Menino (1975), Os Rios Morrem de Sede (1976), ambos de Wander Piroli, O Dia de
Ver meu Pai (1977), de Vivina de Assis Viana, e Pivete (1977), de Henry Corrêa de
Araújo. Nessas narrativas, segundo Zilberman (2003), encontramos questões como: a
vida familiar, as dificuldades sociais, a separação do casal, a solidão da criança, a
poluição, a desigualdade social urbana, a morte, a violência, entre outros. São temas que
dizem respeito à realidade brasileira moderna, à vida urbanizada e que são sempre
narrados do ponto de vista do adulto, e não do da criança, demonstrando a dificuldade
encontrada pela Literatura Infantil, muitas vezes utilizada como meio de manobrar os
pensamentos do pequeno leitor.
Wander Piroli foi um dos precursores da Coleção e entre as histórias que
escreveu, destacamos O Menino e o Pinto do Menino (1975). O livro conta a história de
um menino, o Bumba, que ganha de presente da sua professora um pinto. Entretanto, ele
sabe que não pode manter o animal no apartamento onde mora por duas razões: a
primeira é que seu pai não permitiria a permanência do animal; a segunda porque era
proibido ter animais no apartamento. Mas o menino fica doido pelo pintinho e a mãe
sem achar outra solução acaba cedendo e levando o bicho para casa. Contudo, o pinto
acaba morrendo e a história termina com o pai escondendo o fato do menino.
A história é simples e nos mostra os problemas domésticos e sociais vividos pela
classe média, que vive com a falta de dinheiro e o excesso de trabalho. Dessa forma,
verificamos a tendência verista, pois é um texto objetivo e direto no qual não existem
soluções mágicas para os problemas das personagens. Afinal, o pinto morre e o menino
precisa aceitar a perda. Assim, o livro trabalha com a idéia da morte, mas esta não está
explícita para a criança. Para Zilberman (2005), a obra “traduz a perspectiva com que a
criança percebe o aperto dos pais, a boa intenção da professora, a fragilidade de sua
condição pessoal, razão por que pode ser entendida e admirada por pequenos leitores”
(p.103). Sendo assim, percebemos que o menino está representando não somente a sua
fragilidade pessoal, mas também a do grupo social a que ele pertence.

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Todavia, notamos que o foco da narrativa não é apenas o do menino. A
personagem da mãe, que é um adulto, carrega grandes conflitos. Ela é ansiosa, nervosa e
se mostra em grande tensão durante a narrativa, por exemplo: A mãe ia tensa, fechada,
quando ouviu o pinto piar (PIROLI, 1975, p.7). Notamos que o segundo capítulo do
livro, intitulado: A Mãe e seu Problema focaliza o interior da personagem e mostra os
meios com que ela tentou se livrar do pintinho: já havia sentido que estava começando
a jogar sujo. Maquinando um plano para se livrar do problema (IDEM, idem, p. 9).
Contudo, o menino percebe a intenção da mãe e faz de tudo para convencê-la. Assim, o
espaço onde ocorre a narrativa muda, eles saem de um lugar aberto – a rua, e vão para
um espaço fechado – o apartamento. Essa mudança acaba por acentuar o conflito entre
mãe e filho, o espaço fechado torna-se um lugar opressor, pois ali a mãe se torna mais
agressiva, como nos exemplos: Cala a boca, Bumba – ordenou a mãe; Se você não ficar
quieto – ameaçou a mãe – eu tomo o pintinho (IDEM, idem p. 17). Em resposta à
agressividade da mãe, o menino se tranca no quarto, procura o seu espaço, pois lá ele
sabia que ao lado de animalzinho estaria seguro.
O capítulo cinco traz o título: Uma Casa de Papelão e carrega muita
ambigüidade: o que seria a casa de papelão, a moradia do pintinho – uma caixa de
sapatos, ou o apartamento onde a família vive com todas as suas dificuldades? Se
analisarmos as atitudes agressivas da mãe dentro de casa, o seu desespero e nervosismo,
podemos concluir que a causa de tudo isso não é o pintinho, mas sim os problemas
internos e externos dela, melhor dizendo, os problemas urbanos modernos, que
caracterizam as obras desse momento e que já foram citados anteriormente.
Já o capítulo oito, narra o momento em que o pai chega, com problemas,
cansado e recebe a notícia a respeito do novo morador. Ele, como a mãe, fica indignado
com o presente da professora. Entretanto, procura se controlar e conversa com o
menino, que já estava triste achando que seu pintinho iria morrer. A reação do pai, ao
contrário da mãe, não foi agressiva, mas sim de carinho, ele passou a mão no rosto do
menino, apertou carinhosamente o seu queixo e disse: Ele está dormindo. Agora vai
guardá-lo, vai, filho (IDEM, idem, p.28). A história termina com a morte do pintinho
disfarçada para o menino: Bumba – disse o pai. – Eu vou por ele aqui, mas não acorde
ele não. Vamos. Agora feche os olhos e trate de dormir (IDEM, idem, p.34). A imagem
final do livro é a da mãe com os dentes agarrados no travesseiro, imagem que combina
com toda a agressividade da mãe no decorrer da história.
Pensando agora em obras mais contemporâneas, encontramos os livros Os olhos
de Ana Marta, de Alice Vieira e Menina Nina, de Ziraldo. Ambos falam da morte,
entretanto, sob perspectivas diferentes.
O primeiro conta a história de uma menina que foi condenada a nascer para
tomar o lugar da irmã que havia morrido. Entretanto, Marta não sabia da existência de
uma irmã morta antes de seu nascimento. Todos na casa escondiam o fato da menina, e
sua mãe se mostrava indiferente a ela, nunca pronunciava seu nome e era uma pessoa
doente, depressiva, que se isolava de todos devido às suas dores de cabeça. Na verdade,
a mãe se mostrava cega à idéia de que Ana Marta havia morrido e de que Marta era
outra pessoa. Quem representava o papel de mãe para Marta, era Leonor, a empregada
da casa. Ela não concordava com a idéia de e que a morte de alguém poderia ser
ignorada durante uma vida toda. Era como se Marta não existisse. Era como se o
espírito de Ana Marta perpetuasse sua vida na vida da irmã, e como se seus olhos
estivessem por todos os lados da casa, observando tudo e todos.

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A narrativa inicia com a frase: Trocaram-me de mãe no hospital. Como nos
filmes, sabes (VIEIRA, 2005, p.9). Ao se deparar com essa frase, o leitor já percebe que
o texto irá tratar ou de conflitos sentimentais de uma criança ou de tensões familiares,
temas referentes ao sentimento infantil. E é através do sentimento e da voz infantil que a
narrativa se constrói e desvenda as formas de se encarar a morte, de se tentar lidar com a
perda, de como adultos e crianças lidam com essa emoção e de como, entre todos esses
conflitos, surge o amor.
Na narrativa, passado e presente parecem estar juntos. A figura ausente,
fisicamente, de Ana Marta é que vai determinar todo o conflito da obra, afinal ela é a
irmã da narradora, cuja morte representa a perturbação de toda a família, especialmente
de Marta, que precisa conquistar o coração de sua mãe Flávia e estabelecer sua
existência enquanto ser único, incapaz de substituir sua irmã morta. Assim, quando ela
descobre toda a história de sua irmã - por meio da ajuda de Leonor, que não suportava
mais a idéia de ver a menina ignorada - pensa a respeito da irmã:

(...) os teus olhos vigiavam tudo. Sempre os senti em mim, embora


não soubesse evidentemente que eram os teus olhos. Sempre senti que
eu estava no lugar de outra pessoa, e que tinha de repetir os seus
gestos, os seus movimentos, e que terríveis desgraças cairiam sobre a
minha cabeça se isso não acontecesse (IDEM, idem, p.163)

Nesse momento notamos claramente toda a tristeza e conflitos vividos pela


menina até aquele momento, sendo ignorada pela mãe que nunca pronunciava seu
nome, que nunca conversava, que nunca havia lhe dado amor. Contudo, ela quer de
qualquer maneira provar sua existência, conquistar seu espaço e o amor da mãe. Assim,
resolve encarar toda a situação:

Sei que não vale a pena adiar por muito mais tempo: tenho de entrar
no quarto de Flávia e olhar para ela como se fosse a primeira vez que
nos encontramos. E fazê-la entender que não foste tu que nasceste
outra vez no dia em que eu nasci (IDEM, idem, p.164-5).

A história termina com Flávia pronunciando seu nome: Chamas-te Marta – diz,
lentamente, como se soletrasse uma frase difícil. (IDEM, idem, p.172). Assim, Marta
termina sua narrativa dizendo: Tenho a certeza absoluta de que, debaixo do vestido de
Flávia, brilhavam naquele momento duas asas de âmbar. (IDEM, idem, idem).
Já Menina Nina é a história de uma menina que se parece muito com sua avó,
para ela a avó era a Super Vovó Vivi. Todavia, teve um dia que Vovó Vivi foi embora
sem dizer adeus, um dia em que ela dormiu para sempre. Nina não entendeu o motivo
de sua avó ter ido embora sem se despedir, sem cumprir as promessas, as viagens, as
farras que iriam fazer. Então o narrador tenta explicar a Nina porque isso havia
acontecido, dando duas razões para que a menina não chorasse a perda da avó.
O narrador trabalha de uma maneira muito bonita o amor existente entre avó e
neta - a menina dizia: Eu já sei o que vou ser quando crescer. Vou ser você, Vó Vivi
(ZIRALDO, 2002, p. 22) - e a maneira como explicar a morte de alguém muito querido
a uma criança. Assim, quando vovó morre são apresentadas duas razões para que a
menina não chore. A primeira diz:

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Se muito além desse sono que vovó está dormindo não existe nada
mais – como muita gente crê – não existe despertar, nem porto,
destino ou luz; se tudo acaba de vez – acabou, completamente – pode
ter certeza, Nina, a Vovó está em paz; não sabe nem saberá que está
dormindo para sempre. Aí, você pode, Nina, ir dormir o seu soninho e
sonhar um sonho bom, pois Vovó não está sofrendo. Como não vai
acordar – seja aqui do nosso lado, seja em outro lugar – ela está
sonhando, Nina (como sonha, toda noite, quem dorme um sonho
profundo). E então, Vovó vai ver sua netinha crescer nos sonhos de
vocês duas. Pode parar de chorar (IDEM, idem, p. 35)

Já a segunda:

Se, porém, depois desse sono imenso, Vovó Vivi despertar num outro
mundo, feito de luz e de estrelas, veja, Nina, que barato!!! Que lindo
virar um anjo. Que lindo voar no espaço! E aí, se acreditarmos que é
desse jeito que as coisas acontecem, depois que a vida na Terra
termina, pode ter certeza, Nina: vovó está vendo você.E, então,
quando você dormir, dê um adeuzinho pra ela, mesmo que você não
possa ver a vovó (é que o Céu é muito longe). E, de lá onde ela está,
Vovó vai ver você crescer do jeito que ela sonhava. Portanto, não
chore mais e vá dormir, minha querida, dos dois jeitos desse adeus é
que a gente inventa a vida (IDEM, idem, p. 37)

A história termina assim. Ziraldo soube falar muito bem e de uma maneira muito
carinhosa sobre um tema tão doloroso e de difícil explicação para as crianças. Seu modo de
expressar deixa claro os rumos que a Literatura vem tomando atualmente, sempre voltada aos
sentimentos infantis e à valorização da criança como criança, pois encontramos textos feitos
especialmente para estas, e não para adultos.
Sendo assim, este estudo procurou demonstrar como a Literatura Infanto-Juvenil vem
manifestando temas polêmicos desde os contos de fadas até as produções contemporâneas,
como tais temas foram e são trabalhados com o público infantil, de modo que esse leitor tão
especial possa entrar em contato com todas as sensações da vida, sejam elas belas, estranhas ou
dolorosas, sem prejuízo da qualidade estética dos textos a ele endereçados.

3. REFERÊNCIAS

GRIMM, Jacob; GRIMM, Wilhelm; trad. Verônica Sônia Kühle. Chapeuzinho


Vermelho. 6ª ed. Porto Alegre: Kuarup, 1993.

PERRAULT, Charles; tad. Francisco Balthar Peixoto. O Chapeuzinho Vermelho.


Porto Alegre: Kuarup, 1992.

PIROLI, Wander. O Menino e o pinto do menino. 9ª ed. Belo Horizonte: Editora


Comunicação.

VIEIRA, Alice; Os olhos de Ana Marta. São Paulo: Edições SM, 2005.

ZILBERMAN, Regina. A literatura infantil na escola. 13a. ed. São Paulo: Global,
2003.

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ZIRALDO. Menina Nina: Duas razões para não chorar. São Paulo: Melhoramentos,
2002.

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