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Universidade de Caxias do Sul (UCS)

Especialização em Literatura Infantil e Juvenil


Presença negra e indígena na literatura infantil e juvenil
Profª Drª Claudia Leite Brandão

Juliana Gomes Gregolin

“GLOSSÁRIO AFETIVO” SOBRE ELEMENTOS


DA CULTURA DO POVO WAPICHANA A
PARTIR DA LEITURA DE
O CÃO E O CURUMIM, DE CRISTINO
WAPICHANA

São Paulo - SP
Agosto de 2023
O sentido da existência está na cor do encontro
Cristino Wapichana

Introdução
O livro escolhido para a análise é do autor Cristino Wapichana e se chama O
cão e o curumim. Ele foi ilustrado por Taisa Borges e lançado em 2018 pela editora
Melhoramentos. Cinco anos após seu lançamento, está em sua 6ª reimpressão.
Conheci esta obra por meio de um clube de leitura infantil que assino e foi
realmente um presente. Li o livro todo em duas viagens de metrô, indo ao trabalho, e
me apaixonei pela doçura e encanto proporcionados.
Acompanhamos a história de Curumim, que nos conta suas experiências de
forma orgânica e repleta de aprendizagens. Devido a essa experiência tão
gratificante de leitura que me inspirei a “adaptar” a proposta do trabalho final para
um “glossário afetivo”, no qual escolhi temas-chave que aparecem de forma
intrínseca à história.
A proposta é não didatizar a obra, mas, sim, exaltar o tanto de conhecimento
compartilhado sobre a cultura Wapichana pela voz da personagem Curumim. Será
possível perceber que muitos dos tópicos poderiam estar alocados em outros temas,
devido a grande relação de tudo o que é dito.
Por fim, escolhi não abrir um tópico sobre o próprio Curumim. Ele navega por
tudo o que é dito e é parte essencial de todas as interações. Peço licença então a
Cristino e espero conseguir compartilhar um pouco sobre a cultura do seu povo com
o mundo.

Contextualização e pesquisa
Ao final do livro O cão e o curumim, encontramos uma minibiografia do autor.
Cristino Wapichana é natural do povo indígena Wapichana. Nasceu em Boa
Vista, Roraima e atualmente mora em São Paulo. É músico, compositor, escritor
premiado, contador de histórias e produtor do Encontro de Escritores e Artistas
Indígenas.
Foi nomeado Patrono da Cadeira Literária 146 da Academia de Letras dos
Professores (ALP) da Cidade de São Paulo. Em 2018 foi o escritor brasileiro
escolhido para figurar na Lista de honra do IBBY.
Publicou cinco livros que conquistaram diversos prêmios e que foram
traduzidos para alguns idiomas, como o sueco e o dinamarquês.
A sua obra mais premiada chama-se “A boca da noite - histórias que moram
em mim”, que ganhou o prêmio Jabuti em 2017.

Em uma entrevista concedida para a série Culturas Indígenas, produzida em


2016 pelo Itaú Cultural, Cristino Wapichana conta um pouco sobre o povo
Wapichana e seus costumes.
O território Wapichana abrange o vale do rio Branco, no Brasil, e o vale do
Rupununi, na Guiana. A população de aproximadamente 13 mil indígenas é dividida
em vários grupos na região. Uma das maiores reservas que conta com o povo
Wapichana é a Raposa Serra do Sol, que teve destaque em 2009 pela histórica
decisão pela demarcação da terra.
Cristino conta que o povo Wapichana, que pode ser traduzido como “homem
gato”, vive no meio natural e tem como base alimentícia a mandioca. Para eles, a
farinha é a base de tudo - o que podemos perceber também durante a leitura do
livro.
Os Wapichana vivem muito das suas histórias. Fortalecem-se culturalmente e
espiritualmente por meio das histórias contadas e recontadas. Isso os ajuda a
continuar com a identidade. Há várias passagens no livro com histórias que
transmitem conhecimentos, principalmente oralizadas pelas pessoas mais velhas da
aldeia, como os avós.
O primeiro contato com os Wapichana aconteceu em meados do século XVIII.
A relação com o homem branco foi bem turbulenta, pois este tinha uma relação de
posse em relação ao indígena. Os homens brancos dominaram as comunidades e
acabaram com parte da língua, sendo que muitos indígenas foram assassinados
nesse processo.
Somente a partir dos anos 1970, os Wapichana começaram a ocupar com
mais frequência lugares fora de suas aldeias, como, por exemplo, ir à escola.
Atualmente, muitos Wapichana trabalham como professores e em departamentos
públicos. Cristino conta que ainda há um preconceito visível pelo fato de serem
indígenas nas relações sociais.
Pelo fato dos inndígenas não aceitarem a escravidão, estabeleceu-se um
estereótipo de que indígenas são preguiçosos e sujos, o que alimenta o preconceito.
Além disso, os indígenas foram todos colocados em uma única “categoria”, o que
descaracteriza suas individualidades. Cristino conta que os indígenas se dividem em
mais de 365 povos e falam mais de 200 línguas, como se fossem países realmente.
A palavra “índio” não comporta a diversidade do povo. “Meu povo tem nome, não
sou índio”, ele completa.
Cristino conta que seu povo acredita que tudo é de todos. A terra é mãe para
todos e devemos respeitá-la, cuidá-la e preservá-la. Acrescenta que os indígenas
utilizam a terra por usufruto e que não são proprietários do lugar que habitam. Essa
relação forte com a natureza também fica muito explícita no livro.
Para ele, a cultura está em constante movimento. Músicas, danças e festas
são compartilhadas em vários povos. Quando se está próximo das cidades, há
celulares, internet, carros… o indígena quer o melhor para sua família. Atualmente, o
Brasil conta com mais de 6 mil universitários indígenas. “Não podemos só viver em
nossa comunidade. Temos que pegar as informações disponíveis e participar do
mundo.”, complementa.
Por fim, Cristino encerra a entrevista afirmando o quanto os povos indígenas
têm a contribuir com a sociedade em diversos aspectos, como a preservação
ambiental, cultural, moral e social.
Meu povo surgiu por meio da palavra. Não usa papel, usa palavra. O mundo
precisa de muita humanidade e a comunidade indígena tem muito isso. A sociedade
precisa desse olhar diferenciado, mais humano.

Narrativa
A história de O cão e o curumim é dividida em três partes, sendo a última bem
curta, como se fosse um epílogo. O livro possui algumas ilustrações de duas
páginas, representando, em sua maior parte, aspectos literais da história, com cores
muito vivas. O texto é marcado, também, por algumas reticências, que dividem em
blocos alguns conteúdos de cada parte. O próprio autor escreve, no início, que o
livro representa histórias que moram nele e que o sentido da existência está na cor
do encontro. O uso das reticências traz essa característica de recordação de
memórias, como uma conversa com o autor.
Conhecemos, com a leitura do livro, a história de Curumim e seu cão Amigo,
contada em 1ª pessoa por um narrador autodiegético (Volmer apud Genette, 2015),
que é aquele que veicula informações de sua própria experiência, tendo vivido a
história como personagem protagonista. Segundo a autora, este tipo de narrador
consegue deixar o leitor mais próximo de si, como percebido durante a leitura. Além
disso, o narrador apresenta uma perspectiva interna, ou seja, sabemos o que
acontece somente pelos olhos e percepções de Curumim.
O livro conta a história do menino Curumim, um indígena que vive com sua
família em uma aldeia e compartilha com o leitor suas experiências de criança. A
única personagem que recebe um nome próprio no livro é o cão Amigo. Todos os
outros são chamados por aquilo que representam: mãe, pai, avô, avó, curumim,
irmão etc. No entanto, isso não nos afasta das personagens. A história nos envolve
de maneira que chamar o narrador de Curumim torna-se de certo modo afetivo.
O livro é dividido em três partes: a primeira, intitulada “Curumim”, conta sobre
o dia a dia da criança, a vida na comunidade, suas brincadeiras e reflexões e sua
relação com as pessoas da aldeia, principalmente com os avós e seu pai.
A segunda e maior parte do livro se chama “Amigo”, pois é quando o pai do
Curumim, ao voltar de uma temporada de caça, traz para casa um cachorro que
encontrou perdido na floresta, o qual as crianças dão o nome de Amigo. Ele se torna
um companheiro inseparável de Curumim e quando todos são convocados para irem
até a grande floresta, coletar material para construir uma nova moradia para eles
após um incêndio iniciado por uma das brincadeiras das crianças, Amigo prova ser
um grande guerreiro ao acuar uma anta e garantir a alimentação de todos por um
bom período de tempo.
Por fim, a terceira parte é como um epílogo da história e se chama “Curumim
e Amigo” e conta como a bravura de Amigo foi reconhecida na aldeia e o orgulho
que Curumim sente de seu cãozinho.

“Glossário afetivo”
Nesta seção, serão apresentados elementos da cultura Wapichana presentes
no livro. A ideia é observar como o autor aborda esses temas de forma orgânica, de
modo a transmitir elementos caros à sua cultura sem perder o caráter narrativo da
história contada. Os temas escolhidos foram:
- alimentação
- avós
- caça
- comunidade
- dialeto
- família
- floresta
- imaginação
- leitura
- mãe
- morte
- pai
- passagem do tempo
- rituais

Alimentação
O momento da alimentação no livro é repleto de detalhes. A mãe cozinha
enquanto as crianças sentam-se ao redor do fogo. É descrito como um momento de
afeto.
A comida cheirosa parecia deliciosa! Era um cozido de carne seca de veado
com macaxeira, temperado com folhas, pimentas malaguetas e carinho de mãe. A
farinha amarela de mandioca estava crocante e o suco de buriti completava a
refeição. (p. 30)
Ou, como podemos ver também em:
O beiju estava delicioso, e o suco de bacaba com farinha e mel, melhor ainda.
Restava um pouco de fumaça dentro de casa. Aliás, esse é o principal cheiro da
aldeia. Cheiro de fumaça. (p. 40)

Avós
A primeira interação de Curumim no livro é com sua avó. Como mostrado no
item anterior, ele observa, de longe, a interação da avó com o jatobazeiro. Ele presta
muita atenção em tudo o que a avó faz, descrevendo com detalhes. No entanto, não
consegue se aproximar.
Então percebi que aquele momento era somente para os velhos e não me
pertencia. Pensei em fugir, mas meu coração me acalmou. (p.12)

Curumim pensou que a avó não o estava vendo, mas esta o chama ao final
de seu ritual e ele pensa em uma teoria bem peculiar, mostrando como a mente de
uma criança pode pensar.
“Como vovó sabe que estou aqui se ela estava de costas para mim?” (...)
“Hum, será que os velhos vão ganhando mais olhos com o passar do tempo?” (p.
13)

A avó é portadora e transmissora dos diversos conhecimentos adquiridos em


toda a sua vida. E Curumim está sedento para ouvir tudo o que ela tem para contar.
Ele considera esses momentos de interação mágicos.
Sabe, meu neto, não estamos sozinhos no mundo. (...) Somos feitos de uma
pequena parte de tudo o que nos cerca. Não podemos nos esconder. Tudo nos vê.
Estamos ligados com todos os seres pela terra, pela água e pelo ar… Dependemos
deles para continuarmos no mundo, e eles dependem da gente. Não somos mais
importantes que eles nem eles mais importantes que nós. (p.13)

A avó, de forma ativa, instiga o neto a refletir sobre o conhecimento passado.


Ao mostrar o corte que fez no tronco do jatobá, pergunta ao neto o que ele vê. Ele
responde que parece água o que sai do tronco. A avó, assim, ensina:
Este é o mesmo líquido que sai da primeira camada de nossa pele quando
nos ferimos. (p. 14)

Curumim, então, aguça seu olhar e enxerga o tanto de cicatrizes contidas no


tronco do jatobá e conclui que aquela árvore era como eles. Exalta-se aqui,
novamente, como a natureza está intimamente ligada com a cultura desse povo.
Além da relação com o mundo natural, aprendemos, organicamente com a leitura e
na fala da avó, a importância da relação entre todos os seres para o povo
Wapichana, como se todos os seres que vivem fossem um só.
No mundo temos que compreender a importância do existir, meu neto. Não
vivemos apenas para nós mesmos. Existimos quando o outro existe e nos
completamos quando nos doamos, como esta árvore, que se deixa ferir para curar
os outros. Só existimos juntos - concluiu. (p. 15)

Um pouco mais para frente no livro, ao contar sobre como as movimentações


dos pássaros podem ser fontes de aprendizagem, Curumim traz o seu avô e conta
sobre seus ensinamentos.
Meu avô sempre falava que tínhamos de alimentar bem o corpo e também o
espírito para crescermos fortes e saudáveis, para buscarmos ter a coragem do
bem-te-vi, a leveza de uma pluma e a velocidade de um beija-flor. (...) Dizia também
que tínhamos de ter a força e a destreza de uma onça e a fidelidade e o coração de
um cão. Eu achava isso o máximo! Embora não entendesse completamente o
significado de todas as palavras e ensinamentos. (p.23)

Os avós de Curumim também presenciaram o momento em que, após uma


brincadeira com fogo com um dos irmãos, a casa em que eles moravam pegou fogo
e foi totalmente destruída. Novamente, temos um momento de aprendizagem:
Não havia tristeza, desespero ou decepção neles. Sabiam que os curumins
são arteiros. Que o medo e o susto que meu irmão e eu havíamos passado eram
mais fortes que qualquer punição. As lembranças que iríamos carregar não nos
deixariam mais brincar com fogo perto de coberturas de palhas. (p. 55)

Caça
A caça é uma das maiores fontes de alimentação da comunidade. No clímax
do livro, o cãozinho Amigo se depara com uma anta durante a incursão na floresta.
Aquela era uma oportunidade que não poderia ser perdida.
Meu pai não queria perder a oportunidade de trazer comida para a família.
Encontrar uma anta é como ter a bênção de uma roça cujas sementes produzem
frutos sadios e grandes. (p. 78)

A avó também transmitiu ensinamentos sobre a caça.


Uma vez vovó contou uma história sobre a vida dos animais. Ela dizia que
eles não eram caçados, mas iam para um último encontro. Sabiam que seu tempo
estava chegando ao final e se sacrificavam para servir de alimento a outros seres. E,
quando chegasse o tempo dos que se alimentaram dele, seus corpos também iriam
servir a outros seres como alimento, e assim o mundo se renovava. (p. 79)

O momento do abatimento de um animal para alimentação também é repleto


de significados.
Aprendemos a honrar e a agradecer aquele que se sacrifica. Acalmamos
Amigo e nos aproximamos daquele guerreiro para oferecer nosso respeito e nossa
gratidão, colocando nossas mãos sobre seu corpo ainda quente. Meu pai, meu tio e
meu irmão mais velho, com suas mãos pintadas de sangue, cobriram a cabeça do
animal, que lutou com coragem e bravura. Era um momento solene de um último
encontro e uma despedida. Chegara o momento da viagem de retorno ao Criador.
(p. 83)

Comunidade
Cada um tem sua função na comunidade. Os homens eram responsáveis
pela caça e as mulheres eram responsáveis pelas atividades coletivas.
Após brincarem e tomarem banho no rio, os curumins voltavam para casa
com cabaças repletas de água, para ajudar nos afazeres de casa.
O momento em que os homens voltam do período de caça é muito
comemorado pela comunidade. As mulheres os recebem com parakari, uma bebida
fermentada feita de mandioca. Elas também dançam, felizes.
É bonito ver o encontro dos caçadores com a comunidade. A festa começa
quando eles chegam e continua sem tempo de acabar. (p. 44)

Há também descrição de como são construídas as casas da aldeia.


A cobertura da nossa casa era feita com uma folha de três palmos de largura
e quase o meu tamanho de comprimento, conhecida como ubim. Após ser colhida,
era trançada sobre varas compridas. Dava-se uma volta na vara com o talo na folha.
A ponta da folha, que passava por baixo dessa volta, segurava o restante do talo. E,
assim, o processo era repetido com outra folha, sucessivamente, para deixar as
folhas firmes na vara. Depois bastava amarrá-las com cipós titica nos caibros do
telhado, e rapidinho a cobertura ficava pronta. (p. 54)

O pajé (pai espiritual, tradução do livro) é uma das grandes referências da


aldeia. No dia em que a família de Curumim foi até a floresta para pegar folhas para
reconstruírem sua casa, houve um ritual conduzido por ele.
O pajé nos aguardava lá fora, com suas folhas e incenso de maruai.
Conforme saíamos de casa, ele nos benzia, um a um, pedindo proteção do grande
Criador, Tuminkere, para que fôssemos e retornássemos em segurança. (p. 62)

Dialeto
É muito interessante notar, durante a leitura do livro, a escolha de palavras
usadas pelo povo Wapichana. Elas são deixadas em destaque e possuem um
glossário nas margens da página. Alguns exemplos:
caxiri - bebida tradicional indígena feita de mandioca.
darywin - bolsa feita de palha.
Kaimen Kupukudan - bom dia.
maruai - resina feita a partir da árvore Maruai.
pauixe - ave popularmente conhecida como mutum.

Família
Há um senso de coletividade e proteção muito grande na família. Certa vez,
enquanto os homens ainda caçavam e Curumim estava sozinho em casa com sua
mãe e irmãos, começaram a ouvir muitos barulhos do lado de fora. Curumim sabia
que precisava ser corajoso, pois estava se preparando para ser um grande
guerreiro.
Caminhamos lado a lado até a entrada da casa e ficamos prontos para enfrentar
qualquer perigo. Naquele momento me senti o próprio bem-te-vi! Tomamos a frente
de nossa mãe e de nossos irmãos mais novos (ele e os três irmãos mais velhos) (...)
Estávamos dispostos a defender a família a todo custo. (p. 27)
Depois de alguns momentos de tensão e com a orientação da mãe para que
ouvissem os barulhos com atenção total, descobriram que eram apenas os
passarinhos viajantes passando com suas acrobacias pela aldeia e marcando o final
do inverno.

A família é muito valorizada durante toda a história. De forma bem bonita,


Curumim vai nos introduzindo nesse mundo de sentimentos tão genuínos.
Família é a melhor coisa que alguém pode ter. Família significa cuidar e ser cuidado.
Tem coisas que meu pai falava que ainda hoje não entendo.Mas eu sabia que, sem
minha mãe, meu pai e meus irmãos por perto o mundo ficava menos e sem cor. Sem
eles, eu sentia nascer dentro de mim um buraco escuro, sem fundo ou parede. (p.
33)

Em outro momento, exalta a felicidade de estar fazendo uma atividade em


grupo, com sua família.
Era bom demais estar no grupo. Eu estava muito feliz. Esperei bastante para
poder andar na floresta. (p. 60)
Floresta
O local habitado por Curumim é visto como um mundo de sonhos para ele,
tão especial que é tratado como uma extensão de si mesmo. Ali, ele cresce de forma
integral, se preparando para se tornar um bom guerreiro.
Aquele lugar parecia ter surgido do mundo onde moram os sonhos. Era ali que eu
exercitava minhas percepções, minhas reflexões, minha paciência e meus músculos
em desenvolvimento (...) Assim, eu me preparava para ser um bom guerreiro.
Aquele pedaço da aldeia era parte de mim. Quando eu não ia até lá, ele vinha até
mim, como os sonhos nos encontram. (p.10)

A natureza é exaltada na história, como na descrição do grande jatobá, que


nasceu ali antes mesmo da própria aldeia existir. Há uma relação íntima com a
floresta, e são os sábios mais velhos que carregam muito da tradição desse cuidado
e respeito com a natureza, como mostrado pela avó de Curumim, logo no início do
livro.
Vovó foi se aproximando de mansinho daquela árvore. Com um gesto carinhoso,
tocou-a com as duas mãos e, lentamente, foi encostando o rosto no tronco para
senti-lo. (...) ele iniciou uma conversa baixinha, como quem troca segredos. (...) Ela
começou a dançar ao redor do jatobazeiro, entoando um canto ancestral (...)
cerimônia espiritual”. (pp. 11 e 12)

É preciso, também, ter muito cuidado ao adentrar os caminhos da floresta.


Curumim mostra preocupação, em certo momento, pelos homens ainda não terem
retornado da caça, inclusive o seu pai.
A floresta é muito perigosa. Não são apenas os bichos grandes que podem atacar.
(...) Na mata há lugares encantados que deixam os caçadores desorientados,
fazendo-os andar em círculo. (p. 31)

A mata era um local de encanto e desejo para todos os curumins.


Entrar na mata de verdade era o sonho que todos os meninos queriam
realizar. (p. 57)

Imaginar
Em uma das passagens da história, Curumim sai para uma caça com sua
zarabatana. Em uma cena emocionante, ele encurrala uma onça e vamos
acreditando em tudo o que Curumim está nos contando. Ao final, descobrimos que
era tudo uma brincadeira, fonte de uma imaginação borbulhante.
Cheguei perto e vi que o tiro foi bem no meio de uma pinta preta na testa. Retirei a
flecha da cara da onça - desenhada com carvão - na folha de embaúba e disse: -
Nunca mais atacará minha comunidade! - Depois daquela perigosa caçada, achei
melhor ir para casa antes que uma onça de verdade aparecesse. (p. 21)

Em suas brincadeiras, Curumim também se mostrava cheio de indagações.


Ao brincar certa vez com um graveto e fogo, pensou:
Que espírito possui o fogo? Como seria nossa vida sem ele? (p. 40)

Um dos momentos mais poéticos do livro é quando Curumim brinca com um


raio de sol em suas mãos. É uma passagem tão linda que merece ser reproduzida
quase em sua integralidade aqui:
Deixei aquele pequeno raio subir na palma da minha mão. (...) E, naquele
momento de cumplicidade e amizade, nos permitimos brincar. (...) Mas o tempo que
caminha para a frente nos faz breves… Aquele raio de sol foi diminuindo e sua luz
se enfraquecendo. (...) Naquele instante, eu era a esperança de eternidade daquele
pequeno raio de sol. Aos poucos, ele foi deixando sua luz misturar-se com a minha,
até que nossa energia fundiu-se numa única cor. Na cor do encontro. (p. 42)

Em certo momento, Curumim nos conta o que é ocupar-se em ser criança.


No restante da manhã, nos ocupávamos em ser crianças; em caçar, pescar, fazer
abrigos, coletar frutos, construir brinquedos, subir em árvores, chorar; em nos
machucar, nos ajudar e nos consolar. Em aproveitar nosso tempo de
curumim. (pp. 43 e 44)

Leitura
É muito interessante o conceito de leitura trazido pelo livro. Diferente do que
estamos habituados, Curumim nos conta sobre a importância da leitura do mundo.
(...) os moradores da aldeia precisavam ser ótimos leitores do seu lugar. A leitura era
um exercício diário, pois, quanto mais a gente lia, o ambiente e tudo que vivia ali,
mais nossa inteligência se desenvolvia. Os conhecimentos iam ficando do tamanho
que a gente queria que eles ficassem. Existem algumas leituras que a gente só
aprende com os mais velhos. (p. 33)

É reforçado, durante toda a história, a importância dos mais velhos como


guardiões da sabedoria.
Mas o melhor de tudo é que a missão de ensinar era dos nossos avós. São
eles os guardiões e transmissores de nossa cultura. (...) Meu avô parecia saber
tudo! Certa vez, ele disse que as leituras eram tão importantes para nossa vida que
dependíamos delas para conseguir viver mais. (p. 35)

Muito do conhecimento também era transmitido por meio das histórias.


Vovô tinha muito cuidado em nos contar certas histórias. Ele as escolhia
conforme nossa idade para não causar confusão na nossa mente. (...) A leitura
pertence a todos, e todos são responsáveis por ensinar a ler e a escrever. Pais, tios,
primos ensinam leituras diferentes para que todos sejam capazes de ler o mundo, de
ser observadores e coletores de novas informações (...) A leitura nos livra de perigos
e acidentes. (pp. 35 e 38).

Mãe
A mãe de Curumim é descrita como uma pessoa observadora e ótima leitora
de mundo. Incentiva os seus filhos a serem corajosos e exploradores, tendo um
papel de convencer o pai quando julga que os filhos estão prontos para algo maior.
Durante o percurso na floresta, acompanhou de perto Curumim.
Mamãe estava sempre me cutucando, me empurrando paraná nos perder do
grupo, e ia me ensinando a ler sobre um canto ou bicho que eu ainda não conhecia.
(p. 64)

Morte
É como o meu avô dizia: “Só existimos na terra no tempo em que nosso coração
pulsa e nossos pés caminham”. O que já vivemos aqui fica aqui. Após o
desaparecimento de nosso corpo, mudamos para outro lugar, em outro tempo. E os
que partiram passam a viver aqui na terra, no lugar que ficam as lembranças. O
tempo além dos nossos passos é onde nossos antepassados moram. Quem vai
morar lá ganha o direito de viajar por todos os tempos. (...) Acho que o sentido da
existência está na essência dos encontros. São os encontros que nos permitem
viver momentos especiais, inesquecíveis, que nos fazem sentir parte do outro e do
mundo. (pp. 42 e 43).

A avó também traz ensinamentos sobre a vida e a morte:


“A vida é linda, meu neto, por isso todos os seres se apegam a ela com todas
as forças. Guerreiam e lutam com suas armas até que Tuminkere recolha a batida
do seu coração e o sopro que lhe mantém a vida”. (p. 79)

Pai
O pai do Curumim é mencionado pela primeira vez em outro retrato do dia,
logo após o encontro com a avó. Curumim fala o quanto gosta de sua zarabatana
(tipo de tubo de madeira pelo qual é possível soprar dardos) e que está treinando
com ela para ser um bom guerreiro. O objeto torna-se ainda mais especial para ele
pois foi feito pelo seu pai.
Eu adorava a zarabatana, porque, além de ser minha companheira inseparável, ela
era linda e tinha sido feita pelo meu pai. (p. 19)

Curumim conta também o que seu pai pensava sobre ter uma família.
Certa vez ouvi papai falar que ter uma família era um direito de todos os homens da
aldeia, porém algo que precisava ser conquistado. Exigia dele mais que uma simples
escolha ou coragem, mais que força, habilidade ou conhecimento. Era preciso,
acima de tudo, responsabilidade e compromisso. (pp. 32 e 33)
Assim como os avós, o pai de Curumim também era para ele uma referência
de aprendizagens.
Os ensinamentos de meu pai sempre faziam minha imaginação voar. Eu ficava
tentando achar um abrigo dentro de mim para acomodar todos eles. (p. 33)

Outro momento de interação especial com o pai é quando este pedia para os
filhos pegarem as esteiras.
Quando ele falava isso, tinha surpresa na certa. Era assim o jeito dele de
falar: “vocês são o que de mais valioso o Criador nos deu, e eu estava morrendo de
saudade dos melhores curumins do mundo”. Nesse momento especial, podíamos
pular em cima dele, abraçá-lo e brincar à vontade. (p. 45)

Passagem do tempo
A passagem do dia é contada de forma bastante poética, apresentando a
passagem do Sol como um rito. O cenário é composto pela movimentação e canto
dos pássaros.
Todas as manhãs, quando o Sol esforçava-se para romper o dia e realizar seu rito
de passagem, sabiás, bem-te-vis, pataqueiras (...) e tantos outros pássaros
instintivamente se encontravam para ofertar seus cantos bonitos e despertar o dia.
(p. 18)

Os pássaros estão presentes em diversas passagens do livro.


Finalmente os passarinhos despertaram o Sol. E, pelo canto do pássaro
acauã, aquele seria um dia quente. (p. 40)

A passagem do tempo também é tratada de forma poética nas reflexões do


Curumim. Certa vez, enquanto brincava com um raio de sol em sua mão e este foi
aos poucos desaparecendo, Curumim reflete sobre a existência:
Compreendi que tudo tem um tempo dentro do tempo. Que devemos viver com
intensidade e liberdade, sem jamais esquecer que todos têm o mesmo direito de ser
e de viver. (p. 42)
Rituais
Curumim mostra em certa passagem, com leveza, sua total integração com
todos os elementos do mundo ao seu redor. Em um simples ritual de boa-noite e
bom-dia, muito é abrangido em sua fala.
- Boa noite, pai criador; boa noite, família; boa noite, seres; boa noite, noite. (...)
- Bom dia, mãe; bom dia, mana; bom dia, fogo; bom dia, mundo. (pp. 38 e 39)

O momento após o abatimento da anta é descrito com muitos detalhes e há


várias etapas a serem realizadas. Os caçadores honram a anta e a mãe entoa um
canto, agradecendo o dono da floresta. Após esse momento, Curumim nos conta um
pouco sobre a importância dos rituais.
Realizar nossos rituais significa viajar, lá para o começo dos tempos, e
renovar dentro da gente nossa ancestralidade. É afirmar que pertencemos a um
povo, que esse povo pertence ao mundo e que esse mundo pertence a um Universo
repleto de outros seres. É a junção de todos que mantêm o equilíbrio da vida.
No ritual, Amigo se alimentava da força de nossa tradição. Mais do que
lembranças do passado ou novos conhecimentos que aprendemos ao longo da vida,
a tradição para nós é a força vital de nossa origem. Somos formados pelos
pedacinhos dos nossos ancestrais, e cada um nos orienta e nos ensina a viver
melhor. Respeitando e aprendendo com os mais velhos e com a natureza. A tradição
nos faz entender a dimensão do mundo, com sua variedade de povos, cores,
tamanhos, crenças, jeitos e línguas diferentes. (pp. 85 e 86)

Considerações finais

Wapichana transmite a cultura do seu povo com maestria em O cão e o


curumim. Com uma narrativa envolvente, somos levados pelos olhos do menino
Curumim a conhecer os caminhos da floresta e compartilharmos suas vivências com
a comunidade. Sem se prender a um glossário, o autor incorpora de forma orgânica
os elementos da cultura na narrativa contada e isso faz com que a
representatividade de seu povo esteja intimamente ligada com as experiências das
personagens. Espero que o livro chegue ao máximo de leitores possíveis, pois é
acessível para todas as idades e realmente uma linda obra que representa o talento
dos autores indígenas brasileiros.

Referências bibliográficas

CULTURAS INDÍGENAS. Entrevista concedida por Cristino Wapichana. Itaú


Cultural, 2016.

VOLMER, Lovani. Mostrar? Esconder? Seduzir? O papel do narrador em obras do


PNBE 2010. Tese de doutorado em Letras. Caxias do Sul, 2015.

WAPICHANA, Cristino. O cão e o curumim. Ilustrações de Taisa Borges. São Paulo:


Melhoramentos, 2018.

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