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São Paulo - SP
Agosto de 2023
O sentido da existência está na cor do encontro
Cristino Wapichana
Introdução
O livro escolhido para a análise é do autor Cristino Wapichana e se chama O
cão e o curumim. Ele foi ilustrado por Taisa Borges e lançado em 2018 pela editora
Melhoramentos. Cinco anos após seu lançamento, está em sua 6ª reimpressão.
Conheci esta obra por meio de um clube de leitura infantil que assino e foi
realmente um presente. Li o livro todo em duas viagens de metrô, indo ao trabalho, e
me apaixonei pela doçura e encanto proporcionados.
Acompanhamos a história de Curumim, que nos conta suas experiências de
forma orgânica e repleta de aprendizagens. Devido a essa experiência tão
gratificante de leitura que me inspirei a “adaptar” a proposta do trabalho final para
um “glossário afetivo”, no qual escolhi temas-chave que aparecem de forma
intrínseca à história.
A proposta é não didatizar a obra, mas, sim, exaltar o tanto de conhecimento
compartilhado sobre a cultura Wapichana pela voz da personagem Curumim. Será
possível perceber que muitos dos tópicos poderiam estar alocados em outros temas,
devido a grande relação de tudo o que é dito.
Por fim, escolhi não abrir um tópico sobre o próprio Curumim. Ele navega por
tudo o que é dito e é parte essencial de todas as interações. Peço licença então a
Cristino e espero conseguir compartilhar um pouco sobre a cultura do seu povo com
o mundo.
Contextualização e pesquisa
Ao final do livro O cão e o curumim, encontramos uma minibiografia do autor.
Cristino Wapichana é natural do povo indígena Wapichana. Nasceu em Boa
Vista, Roraima e atualmente mora em São Paulo. É músico, compositor, escritor
premiado, contador de histórias e produtor do Encontro de Escritores e Artistas
Indígenas.
Foi nomeado Patrono da Cadeira Literária 146 da Academia de Letras dos
Professores (ALP) da Cidade de São Paulo. Em 2018 foi o escritor brasileiro
escolhido para figurar na Lista de honra do IBBY.
Publicou cinco livros que conquistaram diversos prêmios e que foram
traduzidos para alguns idiomas, como o sueco e o dinamarquês.
A sua obra mais premiada chama-se “A boca da noite - histórias que moram
em mim”, que ganhou o prêmio Jabuti em 2017.
Narrativa
A história de O cão e o curumim é dividida em três partes, sendo a última bem
curta, como se fosse um epílogo. O livro possui algumas ilustrações de duas
páginas, representando, em sua maior parte, aspectos literais da história, com cores
muito vivas. O texto é marcado, também, por algumas reticências, que dividem em
blocos alguns conteúdos de cada parte. O próprio autor escreve, no início, que o
livro representa histórias que moram nele e que o sentido da existência está na cor
do encontro. O uso das reticências traz essa característica de recordação de
memórias, como uma conversa com o autor.
Conhecemos, com a leitura do livro, a história de Curumim e seu cão Amigo,
contada em 1ª pessoa por um narrador autodiegético (Volmer apud Genette, 2015),
que é aquele que veicula informações de sua própria experiência, tendo vivido a
história como personagem protagonista. Segundo a autora, este tipo de narrador
consegue deixar o leitor mais próximo de si, como percebido durante a leitura. Além
disso, o narrador apresenta uma perspectiva interna, ou seja, sabemos o que
acontece somente pelos olhos e percepções de Curumim.
O livro conta a história do menino Curumim, um indígena que vive com sua
família em uma aldeia e compartilha com o leitor suas experiências de criança. A
única personagem que recebe um nome próprio no livro é o cão Amigo. Todos os
outros são chamados por aquilo que representam: mãe, pai, avô, avó, curumim,
irmão etc. No entanto, isso não nos afasta das personagens. A história nos envolve
de maneira que chamar o narrador de Curumim torna-se de certo modo afetivo.
O livro é dividido em três partes: a primeira, intitulada “Curumim”, conta sobre
o dia a dia da criança, a vida na comunidade, suas brincadeiras e reflexões e sua
relação com as pessoas da aldeia, principalmente com os avós e seu pai.
A segunda e maior parte do livro se chama “Amigo”, pois é quando o pai do
Curumim, ao voltar de uma temporada de caça, traz para casa um cachorro que
encontrou perdido na floresta, o qual as crianças dão o nome de Amigo. Ele se torna
um companheiro inseparável de Curumim e quando todos são convocados para irem
até a grande floresta, coletar material para construir uma nova moradia para eles
após um incêndio iniciado por uma das brincadeiras das crianças, Amigo prova ser
um grande guerreiro ao acuar uma anta e garantir a alimentação de todos por um
bom período de tempo.
Por fim, a terceira parte é como um epílogo da história e se chama “Curumim
e Amigo” e conta como a bravura de Amigo foi reconhecida na aldeia e o orgulho
que Curumim sente de seu cãozinho.
“Glossário afetivo”
Nesta seção, serão apresentados elementos da cultura Wapichana presentes
no livro. A ideia é observar como o autor aborda esses temas de forma orgânica, de
modo a transmitir elementos caros à sua cultura sem perder o caráter narrativo da
história contada. Os temas escolhidos foram:
- alimentação
- avós
- caça
- comunidade
- dialeto
- família
- floresta
- imaginação
- leitura
- mãe
- morte
- pai
- passagem do tempo
- rituais
Alimentação
O momento da alimentação no livro é repleto de detalhes. A mãe cozinha
enquanto as crianças sentam-se ao redor do fogo. É descrito como um momento de
afeto.
A comida cheirosa parecia deliciosa! Era um cozido de carne seca de veado
com macaxeira, temperado com folhas, pimentas malaguetas e carinho de mãe. A
farinha amarela de mandioca estava crocante e o suco de buriti completava a
refeição. (p. 30)
Ou, como podemos ver também em:
O beiju estava delicioso, e o suco de bacaba com farinha e mel, melhor ainda.
Restava um pouco de fumaça dentro de casa. Aliás, esse é o principal cheiro da
aldeia. Cheiro de fumaça. (p. 40)
Avós
A primeira interação de Curumim no livro é com sua avó. Como mostrado no
item anterior, ele observa, de longe, a interação da avó com o jatobazeiro. Ele presta
muita atenção em tudo o que a avó faz, descrevendo com detalhes. No entanto, não
consegue se aproximar.
Então percebi que aquele momento era somente para os velhos e não me
pertencia. Pensei em fugir, mas meu coração me acalmou. (p.12)
Curumim pensou que a avó não o estava vendo, mas esta o chama ao final
de seu ritual e ele pensa em uma teoria bem peculiar, mostrando como a mente de
uma criança pode pensar.
“Como vovó sabe que estou aqui se ela estava de costas para mim?” (...)
“Hum, será que os velhos vão ganhando mais olhos com o passar do tempo?” (p.
13)
Caça
A caça é uma das maiores fontes de alimentação da comunidade. No clímax
do livro, o cãozinho Amigo se depara com uma anta durante a incursão na floresta.
Aquela era uma oportunidade que não poderia ser perdida.
Meu pai não queria perder a oportunidade de trazer comida para a família.
Encontrar uma anta é como ter a bênção de uma roça cujas sementes produzem
frutos sadios e grandes. (p. 78)
Comunidade
Cada um tem sua função na comunidade. Os homens eram responsáveis
pela caça e as mulheres eram responsáveis pelas atividades coletivas.
Após brincarem e tomarem banho no rio, os curumins voltavam para casa
com cabaças repletas de água, para ajudar nos afazeres de casa.
O momento em que os homens voltam do período de caça é muito
comemorado pela comunidade. As mulheres os recebem com parakari, uma bebida
fermentada feita de mandioca. Elas também dançam, felizes.
É bonito ver o encontro dos caçadores com a comunidade. A festa começa
quando eles chegam e continua sem tempo de acabar. (p. 44)
Dialeto
É muito interessante notar, durante a leitura do livro, a escolha de palavras
usadas pelo povo Wapichana. Elas são deixadas em destaque e possuem um
glossário nas margens da página. Alguns exemplos:
caxiri - bebida tradicional indígena feita de mandioca.
darywin - bolsa feita de palha.
Kaimen Kupukudan - bom dia.
maruai - resina feita a partir da árvore Maruai.
pauixe - ave popularmente conhecida como mutum.
Família
Há um senso de coletividade e proteção muito grande na família. Certa vez,
enquanto os homens ainda caçavam e Curumim estava sozinho em casa com sua
mãe e irmãos, começaram a ouvir muitos barulhos do lado de fora. Curumim sabia
que precisava ser corajoso, pois estava se preparando para ser um grande
guerreiro.
Caminhamos lado a lado até a entrada da casa e ficamos prontos para enfrentar
qualquer perigo. Naquele momento me senti o próprio bem-te-vi! Tomamos a frente
de nossa mãe e de nossos irmãos mais novos (ele e os três irmãos mais velhos) (...)
Estávamos dispostos a defender a família a todo custo. (p. 27)
Depois de alguns momentos de tensão e com a orientação da mãe para que
ouvissem os barulhos com atenção total, descobriram que eram apenas os
passarinhos viajantes passando com suas acrobacias pela aldeia e marcando o final
do inverno.
Imaginar
Em uma das passagens da história, Curumim sai para uma caça com sua
zarabatana. Em uma cena emocionante, ele encurrala uma onça e vamos
acreditando em tudo o que Curumim está nos contando. Ao final, descobrimos que
era tudo uma brincadeira, fonte de uma imaginação borbulhante.
Cheguei perto e vi que o tiro foi bem no meio de uma pinta preta na testa. Retirei a
flecha da cara da onça - desenhada com carvão - na folha de embaúba e disse: -
Nunca mais atacará minha comunidade! - Depois daquela perigosa caçada, achei
melhor ir para casa antes que uma onça de verdade aparecesse. (p. 21)
Leitura
É muito interessante o conceito de leitura trazido pelo livro. Diferente do que
estamos habituados, Curumim nos conta sobre a importância da leitura do mundo.
(...) os moradores da aldeia precisavam ser ótimos leitores do seu lugar. A leitura era
um exercício diário, pois, quanto mais a gente lia, o ambiente e tudo que vivia ali,
mais nossa inteligência se desenvolvia. Os conhecimentos iam ficando do tamanho
que a gente queria que eles ficassem. Existem algumas leituras que a gente só
aprende com os mais velhos. (p. 33)
Mãe
A mãe de Curumim é descrita como uma pessoa observadora e ótima leitora
de mundo. Incentiva os seus filhos a serem corajosos e exploradores, tendo um
papel de convencer o pai quando julga que os filhos estão prontos para algo maior.
Durante o percurso na floresta, acompanhou de perto Curumim.
Mamãe estava sempre me cutucando, me empurrando paraná nos perder do
grupo, e ia me ensinando a ler sobre um canto ou bicho que eu ainda não conhecia.
(p. 64)
Morte
É como o meu avô dizia: “Só existimos na terra no tempo em que nosso coração
pulsa e nossos pés caminham”. O que já vivemos aqui fica aqui. Após o
desaparecimento de nosso corpo, mudamos para outro lugar, em outro tempo. E os
que partiram passam a viver aqui na terra, no lugar que ficam as lembranças. O
tempo além dos nossos passos é onde nossos antepassados moram. Quem vai
morar lá ganha o direito de viajar por todos os tempos. (...) Acho que o sentido da
existência está na essência dos encontros. São os encontros que nos permitem
viver momentos especiais, inesquecíveis, que nos fazem sentir parte do outro e do
mundo. (pp. 42 e 43).
Pai
O pai do Curumim é mencionado pela primeira vez em outro retrato do dia,
logo após o encontro com a avó. Curumim fala o quanto gosta de sua zarabatana
(tipo de tubo de madeira pelo qual é possível soprar dardos) e que está treinando
com ela para ser um bom guerreiro. O objeto torna-se ainda mais especial para ele
pois foi feito pelo seu pai.
Eu adorava a zarabatana, porque, além de ser minha companheira inseparável, ela
era linda e tinha sido feita pelo meu pai. (p. 19)
Curumim conta também o que seu pai pensava sobre ter uma família.
Certa vez ouvi papai falar que ter uma família era um direito de todos os homens da
aldeia, porém algo que precisava ser conquistado. Exigia dele mais que uma simples
escolha ou coragem, mais que força, habilidade ou conhecimento. Era preciso,
acima de tudo, responsabilidade e compromisso. (pp. 32 e 33)
Assim como os avós, o pai de Curumim também era para ele uma referência
de aprendizagens.
Os ensinamentos de meu pai sempre faziam minha imaginação voar. Eu ficava
tentando achar um abrigo dentro de mim para acomodar todos eles. (p. 33)
Outro momento de interação especial com o pai é quando este pedia para os
filhos pegarem as esteiras.
Quando ele falava isso, tinha surpresa na certa. Era assim o jeito dele de
falar: “vocês são o que de mais valioso o Criador nos deu, e eu estava morrendo de
saudade dos melhores curumins do mundo”. Nesse momento especial, podíamos
pular em cima dele, abraçá-lo e brincar à vontade. (p. 45)
Passagem do tempo
A passagem do dia é contada de forma bastante poética, apresentando a
passagem do Sol como um rito. O cenário é composto pela movimentação e canto
dos pássaros.
Todas as manhãs, quando o Sol esforçava-se para romper o dia e realizar seu rito
de passagem, sabiás, bem-te-vis, pataqueiras (...) e tantos outros pássaros
instintivamente se encontravam para ofertar seus cantos bonitos e despertar o dia.
(p. 18)
Considerações finais
Referências bibliográficas