Você está na página 1de 6

“Capuchinho Vermelho: Do conto clássico até uma versão atual”

Análise e comparação entre o conto “Capuchinho vermelho” de Charles Perrault e o conto


“Little girl” em Banda Desenhada muda de André Caetano.

Por Viviana del Carmen Miranda

Breve introdução sobre as obras:


O conto Capuchinho vermelho circulava no início como conto oral francês. Existiam várias
versões orais desta história contadas em França, recolhidas no século XIX. 1 Considerando que estas
histórias orais têm vida desde tempos remotos, é certamente possível que Perrault se tenha inspirado
em variantes da tradição oral francesa do século XVII. A versão de Charles Perrault, para jovens e
adultos, foi incluída em 1695 num manuscrito intitulado Contes de ma mère Loye 2 e depois
publicado, em 1697, em Contes et histoires du temps passé, Avec des moralités sob o nome autoral
de Pierre Darmancour, filho de Charles Perrault, membro da Academia Francesa. Só a partir do ano
1724, até os nossos dias, as publicações passaram a ser atribuídas a Charles Perrault. Assim, este
conto converteu-se rapidamente numa das histórias mais queridas e conhecidas do mundo ocidental.
O conto Little girl, apresentado em Banda Desenhada (BD) muda, foi escrito pelo autor e
ilustrador português André Caetano e publicada (pelo mesmo autor) recentemente no ano 2021. O
livro vem acompanhado de um cartão-postal, um mapa do local onde acontece a história e uma
paisagem sonora feita por Cátia Soares.3 Não possui narrativa escrita, pelo que é o leitor quem deverá
construí-la baseando-se nas ilustrações e na sequência dos quadros. Relativamente à BD, considerada
a nona arte, tornou-se muito popular na primeira metade do século XX, publicada de forma
autónoma (em revistas) ou em tiras sequenciais, nos principais jornais do mundo. Atualmente, muitas
obras clássicas da literatura são publicadas neste formato. Com inspiração nos contos de fadas, a
Little Girl transporta-nos para o universo da história intemporal Capuchinho vermelho, oferecendo
uma versão original e atual.

Análise:
O conto de Capuchino vermelho, na versão de Perrault, se insere numa tradição de contos de aviso
para crianças imprudentes. A moralidade, introduzida depois da história, revela que o lobo é uma
metáfora do homem sedutor, cujo ato de alimentar-se é uma metáfora do delito sexual. 4 Para as
crianças, a mensagem é: “se desobedecerem à mãe (adulto) serão comidos pelo lobo”, isto quer dizer
que perante uma má conduta advém o castigo. Para o público mais crescido, adolescentes e adultos,
1
(Silva F. V., 2011, pp. 33-77)
2
(Silva F. V., 2011, p. 31)
3
https://soundcloud.com/user-980072449/a-little-girl-paisagem-sonora
4
(Silva F. V., 2011, p. 23)

1
funciona como uma prevenção, “coloca em guarda donzelas descuidadas em relação a predadores
humanos (simbolicamente lobos)”.5 Esta moralidade não está presente explicitamente na obra Little
girl porque o componente não faz parte do género, mas, ao introduzir-nos no campo das
interpretações e significações, esta moralidade está certamente implícita, como se irá ler mais á
adiante.
Para compreender bem as relações (semelhanças e diferenças) entre ambas obras, analisar-se-á
algumas partes significativas, a partir de uma possível interpretação dos acontecimentos, figuras,
objetos ou personagens em cada situação. É importante destacar a relevância da linguajem icónica
(quadros, desenhos, cores, onomatopeias, os planos, entre outros) na obra Little girl que dá vida à
mensagem e a eleva a um plano superior, enfatizando na comunicação que aspira efetuar. 6
Particularmente, na BD analisada, o desafio encontra-se na descodificação da linguagem icónica.
Sem o apoio das palavras, é mediante os ícones que o leitor deverá criar a narrativa (claramente
submetida à subjetividade e competências literárias) desta banda desenhada muda.
O primeiro ponto de encontro se trata da origem do capucho e a sua significação. No clássico,
Perrault conta que o capucho vermelho foi dado pela avó. Na BD esta explicação está presente na
sequência narrativa, quando a Little girl lembra-se da sua mãe a colocar-lhe o capucho. Neste quadro
(que aparece num tom acinzentado, por isso infere-se que é uma lembrança), o leitor remite-se
rapidamente ao conto clássico, advertindo que foi a avó que fez aquela roupa. Portanto, a origem do
capucho está explicada pela intertextualidade. No clássico, a menina já está vestida com o capucho,
por isso Perrault a chama Capuchinho vermelho, na BD é a mãe que coloca o capucho. O facto do
capucho passar da avó para a neta, simboliza uma sucessão da maturidade, o percurso que a menina
deverá recorrer no seu crescimento, marcada pela presença das figuras femininas (avó e mãe). No
caso da BD, esse simbolismo encontra-se mais explicito, o capucho vem da avó e é a mãe que o
coloca à menina, existe aqui uma “transferência prematura da atração sexual, que, além disso, é
acentuada pelo fato de a avó estar velha e doente, demais até para abrir a porta”. 7 Por outro lado, a
palavra capuchinho (em diminutivo) refere-se à idade da menina. Ela é demasiado pequena para lidar
com essa emoção violenta que o vermelho simboliza e que o uso dele atrai. Na BD os desenhos de
quase todos os quadros são a preto e branco, portanto, a cor do capucho é inferida tomando como
referente a história de clássico.
Um aspeto presente na BD, que difere clássico, é a importância que o autor dá na descrição da
floresta. Os primeiros quadros mostram uma floresta densa e escura, que poderá invocar no leitor o
sentimento de medo. Esse sentimento vê-se refletido no quadro onde se observa o desenho de um

5
(Silva F. V., 2011, p. 23)
6
(Azevedo, 2020, p. 15)
7
(Bettelheim, 2002, p. 186)

2
olho grande, bem aberto e com as pupilas dilatadas. Noutro quadro, observa-se o confronto entre o
desenho de uma menina pequena a caminhar pelo sendeiro e uma gigantesca floresta que a rodeia.
Considerando que a floresta simboliza o mundo externo, a vida fora do aconchego da casa e da
proteção dos pais, pode inferir-se que uma criança não está preparada para andar sozinha pela
floresta (mundo).
Outro aspeto que se distingue em ambas narrativas são as advertências que a mãe deu à menina.
A versão de Perrault não explicita nenhuma advertência, no entanto, o autor da BD baseia-se na
versão dos irmãos Grimm, onde a mãe dá conselhos à filha: “vai direta, e não te desvies do
carreiro… não te esqueças de dizer bom dia e não te ponhas a espreitar e todos os cantos” 8. Ainda
que os conselhos não são iguais na BD, a intertextualidade com a versão dos irmãos Grimm é clara.
As advertências estão representadas na BD a partir de três quadros que retratam lembranças da
menina e que são os conselhos que a mãe lhe deu antes de sair de casa. Num desses desenhos, a mãe
adverte à Little girl que a ameaça da floresta é o lobo e que deve ter cuidado com ele. Nesta
sequência, destaca-se a personificação que o autor faz do mal, através do simbolismo do corvo que
representa a morte e escuridão, a sua cor preta está relacionada também à impureza e, principalmente
quando aparecem sozinhos, são considerados portadores de um acontecimento mau 9. A comparação
das personagens, lobo e corvo, que está representada em dois quadros consecutivos, leva ao leitor a
pensar em duas hipóteses, primeiro: o lobo é o corvo, ou segundo: o corvo anuncia o aparecimento
do mal (lobo). O corvo aparece na BD a partir do quarto quadro, sempre atrás da menina, como um
lobo que cerca a sua presa.
Por outro lado, o episódio mais importante na narrativa do clássico é o encontro com o lobo,
portanto, não podia faltar na história da Little girl. Na BD desenhada o lobo toma a forma de uma
menina igual à Little girl e é neste episódio e com esta personagem que há uma atualização da
ameaça do lobo. Em outros termos, a sociedade atual está influenciada pelo uso das redes sociais,
onde o lobo nem sempre parece um lobo. O predador sexual, escondendo-se atrás dos ecrãs e das
mensagens de texto pode tomar muitas formas e uma delas é mascarar-se como um igual. Neste
ponto, dois fatos adquirem relevância e são semelhantes nas duas obras. Primeiro, o lobo não
representa uma ameaça e segundo, a menina distrai-se com as flores. Respeito do primeiro, Perrault
atribui essa condição à ingenuidade e imaturidade da Capuchinho, que responde ao seu caçador sem
tomar nenhuma precaução, no entanto, na BD a menina é mais desconfiada e só quando o lobo se
mostra igual a ela, é que este consegue engana-la. No conto da Little girl, o lobo primeiro deve
ganhar a confiança da menina para depois atuar (tal como agem muitos predadores sexuais). Essa
forma de ganhar confiança está exposta nos desenhos, na semelhança física das meninas e na atitude
8
(Silva F. V., 2011, p. 25)
9
https://www.psicanaliseclinica.com/o-corvo/

3
do lobo-menina, que utiliza a brincadeira como motor para ganhar a amizade da pequena. “Num nível
diverso de interpretação, poderíamos dizer que o lobo não devora Capuchinho logo que a encontra
porque deseja levá-la para a cama.” 10, deseja seduzi-la. No clássico, o lobo primeiro tem de se livrar
da avó para “comer” à menina, na BD não parece interessar ao lobo a figura protetora, o importante
para ele é mesmo enganar à pequena, obter a sua confiança para lograr o seu cometido. Respeito do
segundo fato, as flores simbolizam a sexualidade em florescimento 11. “Perrault, usa a imagem de
uma menina que se mune de flores na floresta para, aludindo à expressão francesa jeune fille en
fleurs, sugerir a centralidade do sangue feminino neste conto” 12. Na BD, o autor atribui vários
quadros a este acontecimento, enfatizando no confronto entre dois símbolos: os espinhos que
rodeiam o campo de flores, que poderia referir-se a dor na perda da virgindade e a flor, que num
desses quadros aparece num desenho ampliado mostrando o gineceu que, não casualmente, é a parte
feminina da planta. Estes símbolos confirmam as intenções do lobo, dando aviso ao leitor do que irá
a acontecer a seguir. No mesmo sentido, no quadro onde as duas meninas cheiram as flores, poderá
significar, na Little girl, a inconsciência da própria sexualidade e na outra menina (o lobo) o prazer
sexual, ato que mostra a perversidade do atacante. Esta sedução acontece na Little girl desde o
encontro das duas meninas até chegar ao campo de flores, no Perrault ocorre na casa da avó. No
clássico, o lobo não se disfarça de avó, como noutras versões, simplesmente deita-se na cama dela e
quando chega a Capuchinho pede-lhe que se deite com ele, então ela tira a roupa e entra na cama. A
menina não foge e cede aos requerimentos do lobo porque inconscientemente deseja ser seduzida 13.
“Capuchinho reverte à posição da criança em busca de prazer edípico” 14, cedendo às sugestões do
lobo e colocando as coisas de um jeito que primeiro permitiu a este acabar com a avó e logo com ela.
No final a menina obtém o castigo merecido quando também é “engolida” pelo lobo, assim, se
confirma a perda da virgindade.
O desfecho da história na BD é extenso e começa quando num quadro, apelando ao uso da
onomatopeia “aaaaaaahhhhh”, que alude a um grito forte, dá origem a expressões de terror na
menina, que nesse momento já não se encontra acompanhada pela “amiga”. De facto, o grito
representa a transformação da “amiga” no lobo, o que se confirma no quadro seguinte, onde se pode
ver o lobo sumido na escura floresta, cercando à pequena no campo de flores rodeado de espinhos. A
seguir, o lobo revela-se à menina, iniciando-se uma longa persecução. A menina tenta escapar e
esconder-se, mas cada vez aparecem mais espinhos, até que ela fica sumida numa caverna cheia
deles, mesmo assim, a pequena luta com o lobo, tira uma faca do bolso e se defende ferindo no olho

10
(Bettelheim, 2002, p. 188)
11
(Bettelheim, 2002, p. 202)
12
(Silva F. V., 2011, p. 24)
13
(Bettelheim, 2002, p. 182)
14
(Bettelheim, 2002, p. 186)

4
ao seu predador. Aparece aqui, pela primeira vez, uma cor na BD, e é precisamente a cor do sangue
do lobo. Depois deste confronto a menina foge novamente, mas os espinhos acabam por cercá-la,
transformando-se nos dentes afilados do lobo que a rodeiam. Mais uma vez, aparece aqui o vermelho
que agora representa o sangue da menina que se espalha por todo lado. Assim, o final desta história
também se concretiza com a perda da virgindade, que simboliza o castigo da menina por acreditar no
lobo. Em certo modo, esta culpa está atenuada devido ao esforço que a menina faz por defender-se e
apartar-se do lobo, coisa que não acontece no conto de Perrault. A mensagem implícita nesta
sequência é que, mesmo que nos arrependamos do que fizemos, já está feito e pode não haver
remédio. Nos últimos quadros se observa a transformação do lobo novamente em menina, ela fica
banhada com o sangue da Little girl. A seguir, a menina-lobo pega no capucho da pequena e o veste,
tornando-se também vermelho. Nesse momento, reaparece o corvo e se possa na menina-lobo,
confirmando que ela era o perigo que cercava à Little girl. Finalmente, a menina-lobo vai embora
com o capucho vermelho, o que poderá significar-lhe o símbolo da sua conquista: a virgindade da
sua vítima. É importante destacar o desenho final que permite a identificação do lobo, pois a menina
atacante tem a marca da ferida no olho.

Conclusão:
Qual é a magia deste conto que ainda hoje movimenta sentimentos, interpretações e dá pé a novas
criações? Depois do exposto, não se tratará de magia, se não melhor de uma temática que é sempre
atual, pois acontecia no século XVII e acontece hoje. O valor literário deste conto, encontra-se
precisamente na narrativa que parece nunca terminar de dizer aquilo que tem para dizer 15, portanto,
disse sempre muito a todas as pessoas em todos os tempos. Esse fenómeno de divulgação prova que
a intertextualidade se apresenta como «um dos princípios maiores da constituição do espaço literário
(Samoyault, 2001: 111), na medida em que, nas suas sucessivas versões, se congregam processos
variados de reprodução-reelaboração ou de transformação de modelos e referentes, construindo-se,
assim, um universo literário vivo»16, um espaço aberto às inovações e criações da época atual.
Precisamente, a capacidade deste conto de ser recriado, reinventado e relido, outrossim, a
combinação do maravilhoso e o fantástico colaboram para a imortalidade desta história,
configurando-o como um clássico da literatura. Capuchinho vermelho “é uma narrativa
maravilhosa, pois todos os eventos acontecem fora do nosso entendimento ou a ação é realizada em
local vago ou indeterminado[…]O conto de Fadas está ligado à noção do maravilhoso, que designa
tudo que não é explicável pela razão, lógica, leis naturais e sim pelo lúdico, ou imagens de

15
(Calvino, 1991, p. 11)
16
(Silva S. R., 2006, p. 2)

5
sonhos.”17 Nas narrativas aqui analisadas, observa-se o simbolismo próprio dos contos maravilhosos,
que “esclarecem inconscientemente os processos e conflitos internos que o sujeito vivencia de forma
simbólica e impessoal, para que tenha a oportunidade de visualizar seus conflitos como um
observador, auxiliando dessa forma, nas resoluções e promovendo o amadurecimento emocional e
cognitivo. Segundo Bettelheim, o conto de fadas é o espelho onde podemos nos reconhecer com
problemas e propostas de soluções que só podem ser elaboradas na imaginação.”18
Como já se mencionou, o clássico de Perrault, mostra-nos um tema que é sempre atual, mas a BD
Little girl permitiu abordar essa temática renovando algumas caraterísticas, que permite às crianças e
adultos de hoje aumentar o “seu repertório de conhecimentos sobre o mundo e transferir para os
personagens seus principais dramas”19.

Bibliografia
Azevedo, M. D. (2020). Banda desenhada muda: relatório de projeto. Porto: Tese de Mestrado em
Design de Comunicação. Escola Superior de Artes e Design.
Bettelheim, B. (2002). A Psicanálise dos contos de fadas (16ª Edição. ed.). (A. Caetano, Trad.) Paz e
terra.
Calvino, I. (1991). Por que ler os clássicos. Companhia das letras.
Ferreira, E. L. (2014). Chapeuzinho vermelho: conto de fadas ou conto de medos? (Vol. 1).
Educação em Foco (Amparo). Obtido em 17 de janeiro de 2023, de
https://portal.unisepe.com.br/unifia/wp-content/uploads/sites/10001/2018/06/10chapeuzinho_
vermelho.pdf
Silva, F. V. (2011). Capuchinho vermelho. Ontem e hoje. Círculo de leitores.
Silva, S. R. (2006). O capuchinho verelho revisitado: leituras de História do Capuchinho vermelho
contada a crianças e nem por isso, de Manuel António Pina. Universidade do Minho.

17
(Ferreira, 2014, p. 3)
18
(Ferreira, 2014, p. 13)
19
Idem.

Você também pode gostar