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tomar o impulso necessário para cruzar fronteiras e impor novas regras


de criação e leitura de textos destinados à infância.
De fato, foi isso mesmo que aconteceu, pois, entre 1975 e 1985,
apareceram livros que se valem de personagens similares, como fadas,
bruxas, madrastas, príncipes e moças pobres, para discutir temas con-
temporâneos que interessariam as crianças brasileiras, dentro e fora da
escola ou em família.
REIS, FADAS E SAPOS PARA Destaque-se primeiramente A Fada que Tinha Idéias, de Fernanda
AS CRIANÇAS BRASILEIRAS Lopes de Almeida, publicado em 1971. A protagonista da história é a
fada do título, Clara Luz, que, como toda menina criativa, não aceita
as idéias prontas contidas no Livro das Fadas, a que deve obedecer. A
rebeldia se manifesta de modo simpático e conquista, de imediato, o
leitor, que, como ela, é levado a contradizer a autoridade e a questio-
nar a tradição.
O que a garota do título deseja é dar vazão à inventividade e abrir
Htória Meio ao Contrdrio apresenta novidades formais e narrati- caminhos, graças à imaginação e ao gosto de viver. Sozinha ou contan-
vas que surpreendem quem lê o livro. Por outro lado, lida com o que do com o apoio de outros, como o da professora de Horizontologia,
existe de mais tradicional das narrativas para crianças, tais como reis, Clara Luz mostra-se independente e desafiadora, a ponto de ser cha-
príncipes, gigantes. Ficam faltando as fadas, mas o mundo encanta- mada às falas pelas fadas que exercem o governo no mundo em que
do dos contos que elas denominam ali está. Escolhida para represen- vive. As últimas cenas do livro assemelham-se aos episódios de Alice no
tar o que de mais revolucionário acontecia na literatura brasileira para País das Maravilhas em que a menina inglesa se depara com a Rainha
crianças, pode dar a entender também que não se estava avançando, de Copas, mandona e poderosa; como a precursora, Clara Luz não se
e sim regredindo. perturba, acabando por modificar importantes regras do sistema polí-
O processo, porém, é compreensível, pois foi como se a literatura tico em sua terra.
infantil precisasse retornar aos inícios - do conto de fadas, nascido na Fadas ocupando o título de narrativas brasileiras para crianças tor-
Europa; dos Contos da Carochinha, como os que Figueiredo Pimentel nam-se mais freqüentes na passagem dos anos 70 para os anos 80:
narrou, nos primeiros anos da história do gênero no Brasil -, para Eliane Ganem publica A Fada Desencantada (1975) e Bartolomeu
Como e Por que ter a Literatura Infantil Ilrasileira 59

Campos Queirós, Onde Tem Bruxa, Tem Fada (1979), dois exemplos rativa de Bandeira, precisa ser mantido, porque constitui a tradição e
da tendência a recorrer ao tradicional imaginário da literatura infantil a história a que pertence o leitor. I '

para apresentar temas novos e inquietantes. O primeiro conta a traje- Escolhendo fadas para protagonizar as histórias, os autores mencio-
tória de uma fada que quer renunciar à condição dentro da qual nas- nados conferem importante lugar para a personagem feminina, como
ceu: recusa a obrigação de fazer magias, ajudar os outros, defender um se passa no já citado História Meio ao Contrdrio, de Ana Maria Ma-
desvalido a quem protege. Quer mudar de vida e de profissão, o que chado. Essa opção indica que os textos são renovadores não apenas
consegue graças à decisão de se transferir para uma cidade moderna, o porque temas e seres tradicionais da literatura infantil aparecem numa

Rio de Janeiro, e atuar da mesma maneira que as pessoas desprovidas condição diferente e transformadora, mas também porque as mudan-

de poderes sobrenaturais. ças são lideradas por mulheres que, de um jeito ou de outro, se rebe-
lam contra papéis previamente fixados, situações convenientes ou
Onde Tem Bruxa, Tem Fada compartilha o cenário urbano viven-
deveres consolidados pelo tempo.
ciado pela protagonista de A Fada Desencantada e, como os anteriores,
Às histórias de fadas protagonizadas por moças contrapõem-se as
atualiza espaço e personagens para exibir temas contemporâneos e
narrativas em que as personagens predominantes são reis ou príncipes
controversos. O texto, de linguagem lírica e metafórica, se comparado
ainda meninos ou já muito velhos. Pioneiro dessa tendência foi Eliar-
com os anteriores, revela como o materialismo e o pragmatismo das
do França, escritor e ilustrador que publicou, em 1974, O Rei de Quase-
pessoas expulsam as fadas, ou entes imaginários similares, do mundo
tudo. Este é o herói do livro, fábula que conta a história de um monar-
moderno. É como se não houvesse mais lugar para figuras da imagi-
ca que, tendo poder, nunca se contenta com suas posses, desejando
nação, porque as pessoas preocupam-se unicamente em ganhar
sempre mais. Acumula terras, dinheiro, os produtos da natureza, pla-
dinheiro, mesmo que à custa dos ideais ou dos valores positivos que a
netas e estrelas; mesmo assim, nunca se sente satisfeito, até descobrir
educação e a sociedade transmitem.
que a conseqüência de seus atos apenas gerara tristeza, feiúra e dor.
O Fantdstico Mistério de Feiurinha (1986), de Pedro Bandeira,
Devolve então o que conquistara aos donos, fossem pessoas ou a natu-
inverte essa equação, lidando com os mesmos termos. A protagonista reza, alcançando então a paz. Deixa, assim, de ser o "rei de quase-
do título é a figura esquecida dos contos de fadas, que precisa ser tudo ", para ter " tud"
o .1
relembrada para não desaparecer. Na companhia das personagens tra- Pode-se entender por que a narrativa traz marcas da fábula: a per-
dicionais dos contos de fadas, como Branca de Neve ou Chapeuzinho sonagem, que não tem nome, sendo apenas designada pela função
Vermelho, Feiurinha representa a memória do passado que, mesmo política, passa por uma lição de vida, transmitida por tabela ao leitor.
filtrado pela desmitificação e atualização, igualmente presentes na nar- Além disso, "o rei de quase-tudo" pode representar várias pessoas, al-
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cançando a generalidade prevista por aquele gênero literário. Corno é Mttrtelo (1976). Tal COino Eliardo França que, em O Rei de Qjtase-tudo,
um "rei", pode representar as figuras que detêm o poder e desejam moderniza um gênero clássico, a fábula, para discutir um tema contem-
sempre mais; corno alcança riquezas e propriedades, pode simbolizar porâneo, Ruth vale-se do estilo do cordel para narrar a trajetória do
o capitalismo, sistema econômico apoiado na acumulação de bens; menino nascido na corte, herdeiro do trono e autoritário, como todo
mas, como demonstra comportamento caprichoso, pode igualmente "sujeitinho muito mal-educado" que pensa ser "o dono do mundo".2
se confundir com a criança mal-educada, que não conhece limites e, O Reizinho Mandão não é, pois, contado, e sim cantado, e esta esco-
de alguma maneira, precisa aprender a conviver com os outros. lha é importante, porque, na abertura, o narrador chama a atenção para
Não significa isso que o texto seja pedagógico ou educativo, conclu- as condições - todas impossíveis, como nas vezes em que o "atrás for
são que as palavras anteriores poderiam sugerir. Em primeiro lugar, ,o"prego Ec01' marteI
na Lll'ente" o"ou"co bra usar ch'meI"
o - que po dem
porque o texto não conclui por urna afirmativa, ao modo da "moral fazer um cantador "se calar". O que está em jogo, pois, é a hipótese de
da história", que induziria a interpretação e fecharia a narrativa num uma pessoa dar livre curso não apenas a seus pensamentos, mas tam-
sentido único. Pelo contrário, desde a leitura inicial, O Rei de Quase- bém à possibilidade de exteriorizá-los verbalmente. É o que o herói do
tudo propicia urna compreensão aberta; além disso, propõe urna expe- título quer fazer, até conseguir, primeiramente, que o reino se torne
riência com a qual o leitor se identifica por já ter passado por situação infeliz e amargurado, já que todos estão proibidos de falar. Quando
semelhante. Em segundo lugar, porque a fábula não é um gênero edu- quer reverter a situação, é tarde: acaba sendo alvo da reação da menina
cativo, e sim literário, e só é eficaz quando tem meios de apresentar que exprime contrariedade, gritando, para todos ouvirem, que nin-
temas que só se podem entender graças ao poder de simbolização do guém controla sua fala. A explosão de liberdade modifica a situação do
texto. E, se o texto está apto a representar idéias de modo simbólico, reino, que redescobre a voz e provoca a fuga do indesejado governante.
ele requer interpretação, vale dizer, participação do leitor, que o absor- Ruth Rocha vale-se de uma alegoria para representar o Brasil dos
ve conforme suas experiências, gostos e preferências. anos 70, dominado por um regime autoritário que calava a oposição e
Outros reis se seguiram a este, escolhidos para liderar narrativas em que buscava encontrar meios de expressão para furar o bloqueio da cen-
que pudessem exprimir um posicionamento diante do exercício do sura e da repressão. Não quer dizer que o livro tenha ficado datado ou
poder e do modo como um sistema autoritário era exercido, quando que, hoje, não tenha sentido, uma vez que a livre manifestação das
os militares ainda governavam o Brasil. idéias e da arte está com freqüência sob a ameaça dos meios de contro-
O mais popular desses membros da realeza deve ter sido O Reizinho le, não necessariamente os policiais: os controles podem estar corpori-
Mandão (1978), de Ruth Rocha, escritora que, quando publicou esse ficados no aumento do número de mecanismos de fiscalização, bem
livro, era já conhecida por obras marcantes como Marcelo Marmelo como no seu aperfeiçoamento tecnológico. Além disso, crianças e adul-
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I I

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Como e j'or que ler a Literatura Infantil Brasileira

tos mandões estão sempre presentes na vida cotidiana, e nunca é demais a do "príncipe sapo". A versão canônica desse conto centra-se no dile
lembrar que a submissão gera silêncio e infelicidade. Tais temas, encon- ma da princesa, que, após ter perdido uma bola de ouro no fundo de
tráveis no livro de Ruth Rocha, comprovam que a autora, se não se um lago, pedé auxílio a um repugnante anfíbio para recuperar o pre-
calou na época em que lançou o livro, continua declarando, de modo cioso brinquedo. Ele aceita a tarefa em troca de um beijo, prometido
eloqüente, a inconformidade com as formas de dominação. pela jovem; obrigada a cumprir a palavra, ela tem uma agradável sur-
Na esteira do sucesso de O Reizinho Mandão, Ruth Rocha publicou, presa, pois, conforme o enredo dos Grimm, o animal metamorfoseia-
em 1979, O Rei que não Sabia de Nada, de teor igualmente alegórico. se num belo príncipe, seu futuro esposo.
Como o título sugere, o governante de um país imaginário é iludido Ruth Rocha desconstrói a seqüência original desde o começo, que
pelos ministros, que apresentam a ele a imagem de um país progressis- abre com o aparecimento do animal, introduzido por versos que in-
ta, onde inexistem preocupações econômicas e sociais. Quando desco-
corporam o posicionamento bem-humorado e paródico do poema
bre a verdade, o rei não tem mais meios de mudar a situação e foge.
modernista de Manuel Bandeira, "Os Sapos":
Alertado por uma menina, que não tem papas na língua, ele renuncia
ao poder e deixa a tarefa de solucionar os problemas para a população. Vinha o sapo pela estrada
A alternativa democrática dá certo, garantindo a melhora geral. Avançando passo a passo.
O Rei que não Sabia de Nada dá continuidade a um dos temas de Pula, pulando seus pulos,
O Reizinho Mandão: indicando que o governante desconhece os pro- Recitando no compasso:

blemas e dificuldades do povo, porque ninguém lhe confessa o que


- Meu pai foi rei!
acontece, a história chama a atenção para a necessidade de se expres- Foi, não foi!
sar diante do poder. Outra vez uma menina, agora nomeada Cecília, Meu pai foi rei!
é a agente da transformação. Foi, não foi!3
Sapo Vira Rei Vira Sapo ou A Volta do Reizinho Mandão (I982) com-
pleta a trilogia, desdobrando outra vertente sugerida pela narrativa-mãe Dialogando com o poema de Bandeira, que assume atitude irreve-
e que o subtítulo da obra revela. De novo, estamos perante um gover- rente diante dos representantes da tradição e do conformismo, Ruth
nante caprichoso, mal-educado e autoritário, que quer impor a vonta- antecipa que a personagem não conta com sua simpatia. A suposição
de sobre todos os outros, até ser derrubado pelo povo e posto a correr. se confirma mais adiante, quando a autora dá continuidade à intriga
A história, porém, não se limita a esse resumo, pois o título sugere original. Evitando encerrá-la logo após o conhecido desencantamento
de antemão que uma narrativa tradicional vai ser desmentida, no caso, do sapo e metamorfose em príncipe, ela relata o que acontece quando

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o marido da princesa ascende ao trono e toma as rédeas do governo. çado por se tratar de um texto que questiona convenções e lugares-
Os desmandos marcam sua administração, a ponto de gerar descon- comuns, isto é, o conformismo, presente também nas atitudes das per-
tentamento e conseqüente perda do poder. sonagens coadjuvantes nos relatos de Ruth Rocha.
As providências tomadas pela escritora, apoiando o texto não ape- O herói não é o príncipe que virou sapo, e sim o contrário: trans-
nas num conto de fadas tradicional, mas também no projeto moder- formado em ser humano, o animal nunca se sente adequado ao papel

nista, indicam que não cabe reduzir Sapo Vira Rei Vira Sapo a uma esperado dele, embora cumpra com denodo as tarefas que lhe são atri-

continuação de O Reizinho Mandão. É como se ela mesma se apro- buídas. Porém~ só alcança a felicidade e a tranqüilidade quando retor-

priasse de seus temas, estabelecesse os necessários cotejos - por exem- na à condição de sapo, ao final da intriga.

plo, o título aproxima a obra de textos anteriores, um deles sendo o Sapomoifose busca contrapor-se à noção de que as pessoas devem
procurar realizar expectativas da sociedade por causa de alguma razão
seu -, para contrariá-los. Eis por que a interlocução com o poema de
superior, e não em decorrência da vontade de fazê-lo. Nem todos que-
Manuel Bandeira se apresenta; com similar propósito, rechaça a con-
rem ser príncipes, milionários, profissionais bem-sucedidos, pessoas
clusão de O Rei que não Sabia de Nada, segundo representante da tri-
belas ou famosas - podem desejar ser apenas seres comuns, simples,
logia, já mencionado. Nesse, o final acomoda conflitos e promete feli-
mal vestidos ou feios, conforme aponta Cora Rónai, participando de
cidade perene; em Sapo Vira Rei Vira Sapo, o parágrafo final, após
modo original em um ciclo da literatura infantil nacional em que
lembrar que "a história se repete, / Como se fosse um gracejo", adver-
velhos mitos e a nova sociedade brasileira se encontravam para ofere-
te, como que convocando o leitor à permanente vigilância diante da
cer à criança um melhor conhecimento de si mesma e do mundo que
hipótese do retorno dos governantes opressivos e indesejados:
a rodeava.

Lá vai um sapo na estrada,


Procurando seu desejo:
Encontrar uma menina Notas
Que queira lhe dar um beijo ... 1 França, Eliardo. O Rei de Quase-tudo. 7. ed. Rio de Janeiro: Orientação Cultural, 1983.
2 Rocha, Ruth. O Reizinho Mandão. Ilustrações de Walter Ono. 4. ed. São Paulo: Pioneira,
1984. p. 5.
"O Príncipe Sapo" rendeu ainda outras revisões, como a versão pro-
3 Rocha, Ruth. Sapo Vira Rei Vira Sapo ou A Volta do Reizinho Mandão. Ilustrações de Walter
posta por Cora Rónai, em Sapomoifose, o Príncipe que Coaxava (1983). Ono. 2. ed. São Paulo: Salamandra, 2003. s. p.

A narrativa não tem cunho político, nem propõe uma alegoria ou fábu-
la, como nos livros examinados. Porém alinha-se ao grupo aqui esbo-
a literatura Infimtil Brasileira 61

bérn porque sintetizou os rumos doravante adotados pela vertente a ser


agora analisada: trata-se de Flicts, de Ziraldo, de 1969.
t. Quando publicou Flicts, Ziraldo era já um nome conhecido do
público brasileiro. Criador da Turma do Pererê, originalmente uma
revista de quadrinhos, nos anos 60, encantou a meninada com humor,
variedade de personagens e inventividade das histórias, todas de sua
lavra. O ponto de partida era uma personagem fortemente enraizada
GENTES E BICHOS
no folclore brasileiro, o Saci Pererê, figura introduzida na literatura
por Monteiro Lobato, que, em 1917, fez uma pesquisa entre os leito-
res paulistas para verificar o que se sabia sobre aquele ente fantástico.
Lobato ainda não escrevia para crianças, quando promoveu o inqué-
rito sobre o saci e publicou-o na gráfica do jornal O Estado de S. Paulo.
Talvez já pensasse no assunto, mas somente em 1921 fez daquela per-
Sapos podem ser animais de estimação, porém, contam entre as
sonagem folclórica um dos auxiliares de Pedrinho na busca da seqües-
escolhas menos prováveis de crianças e adultos. Pior ocorre aos porcos,
trada Narizinho, em O Saci. Os modernistas também valorizaram o
cujos hábitos e aparência não ajudam a transformá-lo em seres predi- menino de uma perna só, capaz de proezas mágicas e dotado de uma
letos. Se os sapos, porém, serviram para protagonizar fábulas políticas moral muito própria, nem sempre pautada pela decência e pelos bons
numa época de controle da expressão literária, um porco ajudou a costumes. Cassiano Ricardo denomina Martim Pererê o poema em que
mudar radicalmente a representação da criança na literatura infantil o saci representa, como diz ele, "as três raças de nossa formação inicial",
brasileira. Referimo-nos a um dos heróis de Angélica, em que Porto, o entendendo-o como "o Brasil-menino".! Ziraldo estava, pois, bem
herói, luta para se aceitar como tal e encontrar seu lugar no mundo. ancorado na trajetória modernista da cultura brasileira, quando trans-
Livro lançado em 1975 pela então pouco conhecida Lygia Bojunga, formou a personagem em herói de histórias em quadrinhos.
Angélica, e a obra que o precedeu, Os Colegas, de 1972, constituíram Por sua vez, ao eleger uma figura originária do folclore e da tradição
outros dos marcos das novas tendências assumidas pela narrativa popular, conferiu teor nacionalista à sua criação, complementado pelas
nacional que visava, primeiramente, aos pequenos leitores. outras criaturas pertencentes à Turma do Pererê: o jabuti Moacir, a onça
Um marco anterior, porém, precisa ser lembrado, não apenas porque Galileu, o coelho Geraldinho, o tatu Pedro Vieira e o macaco Alan,
antecedeu cronologicamente as publicações de Lygia Bojunga, mas tam- todos eles animais associados à natureza brasileira e aos valores prezados
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pelos modernistas, como sugere, para citar um único exemplo, C/tm do A busca do herói nasce do desejo de preencher essa carência, que
Jaboti, título do livro de Mário de Andrade, um dos principais líderes do significa descobrir que espaço lhe compete no universo. As várias ten-
movimento. Compõem o quadro de personagens outras personalidades ,t tativas são seguidas de negação, aumentando o isolamento da persona-
também fortemente vinculadas à tradição local, como o par de indiozi- gem, que, no texto, é representada tão-somente por um nome e uma
nhos Tininim e Tuiuiú, além de Boneca de Piche. cor. Não há seres vivos em Flícts, apenas cores e tons, combinando-se
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I
Na década de 1960, a sociedade brasileira dividia-se: de um lado, e, no entanto, recusando o protagonista, até ele sumir por completo.
a influência dos meios de cultura de massa produzidos sobretudo O desaparecimento, porém, é relativo: o narrador denuncia, na pági-
nos Estados Unidos, sendo os cartoons oriundos da Walt Disney na final, que, sim, Flicts achou seu lugar, pois "a Lua é flicts".
Co. um dos principais esteios da dominação cultural; de outro, a Ao concluir o relato, a cor sem dono transforma-se em adjetivo,
aspiração à manifestação de uma arte autenticamente nacional, vol- porque encontrou sítio apropriado. Deixa então de ser personagem,
tada à expressão dos problemas do país. Ziraldo opta por um cami- para se converter em qualidade de um ser, alcançável se o vemos de
nho original e único: cria histórias em quadrinhos nos moldes da perto, como ocorre, segundo as palavras do narrador, aos astronautas.
indústria cultural mais avançada de então; confere-lhes, porém, É o que soluciona o conflito proposto pela história, solução mágica e,
tom brasileiro, não apenas por força das personagens escolhidas, ao mesmo tempo, simbólica: o excluído acaba se revelando o conteú-
mas também porque elas se movem num cenário reconhecido pelos do mais profundo e secreto das coisas, conteúdo vazio, porém, por-
leitores, a Mata do Fundão, com características locais, sem deixar de que compete ao leitor preenchê-lo com o sentido que lhe parecer
ser atual e divertido. mais adequado.
Flícts desvela outra faceta do artista, não o desenhista da Turma do Flícts tornou-se, assim, metáfora não apenas do excluído, mas do
Pererê ou o chargista, que ocupava, entre os anos 60 e 70, as páginas reprimido que cada um deve aceitar, se quiser conviver melhor consi-
de revistas femininas como Cláudia ou de jornais de contestação como go mesmo. A riqueza das imagens tornou a narrativa paradigmática
O Pasquim, e sim o pintor. Flicts é, primeiramente, um livro sobre as das possibilidades de representar o mundo interior das criaturas de
cores, como destaca a abertura, em que o narrador refere-se à persona- modo compreensível, sem ser simplista. O sucesso de vendas, que se
lidade do Vermelho, do Amarelo e do Azul, designados com letras verifica até hoje, evidencia como Ziraldo soube atingir públicos de ida-
maiúsculas, para afiançar que se trata de substantivos próprios, e não des distintas e de vários períodos, no Brasil e no exterior.
de adjetivos. Mas Flicts é igualmente um texto sobre a exclusão, já que A obra traz igualmente uma lição para quem desejar falar do mundo
o protagonista do título não encontra um lugar para ele: "Não existe interior de uma criança para um leitor de pouca idade: é preciso encon-
no mundo nada que seja Flicts."2 trar formas de representação da intimidade, que se exteriorizem por
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meio de figuras de fácil tradução. Monteiro Lobato não se deparou de de ação. O estilo implica agilidade por parte do narrador, rapidez
com essa questão, porque as personagens são seres resolvidos, não na comunicação e interação com o leitor, características que desenham

vivem conflitos internos e agem sempre de modo decidido e direto. A o relacionamento da escritora com a literatura infantil e com suas

contribuição de Lygia Bojunga à história da literatura infantil brasilei- expectativas perante o público.

ra advém de ela ter alcançado apresentar, ao leitor, a criança por den- Os dois cães da abertura da história não formam as figuras exclusi-

tro, levando adiante a proposta contida no Flicts, de Ziraldo. vas da história. Aos poucos, eles encontram outros animais que, por
alguma razão, estão marginalizados ou sentem-se infelizes, vindo a agre-
Lygia Bojunga estreou na literatura infantil em 1972 com Os Cole-
gar-se ao grupo de amigos, de que nasce um conjunto musical. Eis a
gas, obra que antecipa várias características do texto dessa autora que,
segunda característica de Os Colegas, desenvolvida em outras narrativas
dez anos depois, viria a receber um prêmio literário consagrador, o
da escritora: as personagens, como Flicts, estão em busca de lugar na
Hans Christian Andersen. Uma dessas características é a abertura, que
sociedade, que resulta - e essa é a peculiaridade da temática de Lygia -
vai direto ao ponto, como no trecho reproduzido a seguir:
da descoberta da vocação artística. Os Colegas, tais como seus precurso-
res de Bremen, na história dos irmãos Grimm, são cantores; Angélica,
No princípio eram só dois. Tinham se encontrado pela primeira vez
revirando a mesma lata de lixo. do livro com esse título, faz teatro; Raquel, protagonista de A Bolsa
- Esse osso que tem aí é meu! Amarela, escreve; Maria, de Corda Bamba, seguindo a carreira dos pais,
-É meu! é equilibrista num circo. A arte é, nesses livros, fator importante para a
- Já disse que é meu! 3 liberação das personagens, escolha que se coaduna com o teor dos livros
onde as personagens aparecem, já que também eles provam-se inova-
Vê-se aqui como o narrador não foge a um padrão da literatura dores e inconformados com a tradição da literatura infantil.
infantil, iniciando a narrativa por uma marca de tempo. Só que o "era Angélica, que se segue a Os Colegas, não narra apenas a história da
uma vez", que aponta para a atemporalidade do mito ou do conto de cegonha que se descobre artista, rompendo com os padrões predeter-
fadas, converte-se em "no princípio", sinal de que uma história vai minados esperáveis dela. Animal em princípio previsível e previamen-
começar no presente. Daí para a frente, o estilo só pode mudar radi- te destinado a preencher um papel no imaginário ocidental, a cegonha
calmente: não há caracterização prévia das personagens, e ninguém é uma figura de quem não se esperam novidades ou questionamentos
explica ao leitor que se trata de dois cães. É o diálogo que encaminha sobre a função a desempenhar no conjunto do arranjo social. É o que
o destinatário para a compreensão do que se passa, exigindo dele, pois, Angélica rejeita, na busca da identidade. Contudo, ao lado dela, de-
comprometimento com a leitura e, ao mesmo tempo, maior liberda- senvolve-se uma segunda personagem, o porco Porto, que aparece já
Como e Pot' que Ler a L.itet'atul'a Infantil Brasileira

no primeiro capítulo e cuja história denota maior complexidade inte- tura policial, ainda quando são os dilemas da narradora adulta que
rior: não se conforma com a aparência, a ponto de fugir de casa, alte- prevalecem, sobretudo no segundo texto.
rar o nome e tentar escapar a seu destino. I.. A Vida Íntima de Laura e o livro subseqüente, Quase de Verdade, de
Sua trajetória corresponde à inversão desse projeto, pois ele tem de .1978, portam características distintas, afinadas, por sua vez, ao que
trilhar o caminho de volta: ao contrário de Angélica, para o pequeno Lygia Bojunga vinha fazendo até então: as personagens principais são
porco, descobrir a identidade é aceitar-se como tal, e esse é um difícil animais domésticos - Laura é uma galinha, e Ulisses, de Quase de Ver-
itinerário. Para tanto, a convivência com a cegonha rebelde é impor- dade, um cachorro - que vivem dilemas interiores, conforme um pro-
tante, porque significa o encontro do amor e da autoconfiança. Ao cesso de deslocamento de propriedades humanas para um bicho.
lado disso, Porto conhece seu pendor artístico, e a possibilidade de se Edy Lima, que, nos anos 70 e 80, celebrizou as histórias protagoni-
expressar por intermédio da criação dramática completa o processo de zadas por uma vaca voadora e a família com que o animal extraordi-
liberação interior. nário vivia, deu continuidade ao pendor que a literatura infantil vinha
A Bolsa Amarela, de 1976, parece completar uma trilogia, porque assumindo no período. É sob esse aspecto que se pode entender por
também narra o percurso de uma personagem na direção da segurança que A Bolsa Amarela altera os padrões vigentes e impõe outros modos
pessoal e da criatividade. Contudo, processa-se uma alteração: Raquel de trabalhar com livros para crianças.
é uma menina, de modo que a criança passa a ser traduzida por uma Não que crianças não pudessem ser personagens de livros para o
pessoa, e não mais por um animal, a simbolizar comportamentos ou público infantil. Afinal, Monteiro Lobato tornou famosos os meninos
problemas íntimos. A mudança não tem apenas cunho externo, pois Pedrinho e Narizinho, ainda que eles disputem a primazia das narra-
representa outra forma de compreender o papel da literatura infantil e tivas com os bonecos, Emília e Visconde de Sabugosa. Mas Lobato
ocorre num momento em que os escritores estão procurando alternati- não introduz o leitor na intimidade daquelas figuras, a não ser para
vas eficazes para a consolidação da escrita para crianças. entender suas idéias, como faz em Memórias de Emília ou em A Chave
Clarice Lispector, por exemplo, a quem se deve a projeção interna- do Tamanho. A Bolsa Amarela comporta essa inovação: são as insegu-
cional do romance brasileiro nos anos 70, dedicou-se também à lite- ranças e temores de Raquel que sobem para o primeiro plano, tradu-
ratura infantil e, em A Vida Íntima de Laura, de 1974, vale-se de pro- zidos por suas palavras ou pelos objetos que a menina, compulsiva-
cedimentos que a aproximam de Lygia Bojunga. A romancista lança- mente, carrega consigo, dentro da bolsa do título da obra.
ra, antes daquele livro, duas outras histórias - O Mistério do Coelho É como se Lygia apontasse ser possível desvendar o universo inte-
Pensante, em 1967, e A Mulher que Matou os Peixes, em 1968 - que, rior da criança, por esse ter um conteúdo próprio, com imagens e aspi-
conforme sugerem os respectivos títulos, tinham ligação com a litera- rações, impossíveis de serem simplesmente reduzidas a noções de psi-
a Literatura Infantil Brasileira 15
14 Como e Por que ler

cologia infantil ou de psicanálise. A via de criação inaugurada pela apenas a engenhosidade com que Lucas dá vazão a seu sonho e aos

escritora revelou-se fértil, vindo a ser enriquecida com a contribuição modos de resolver problemas; indica também que o processo desen-

de outras notáveis escritoras. volve-se de modo gradual, razão por que o protagonista decifra o

Ana Maria Machado, de História Meio ao Contrdrio, lembrada antes, nome do companheiro de maneira diversa: para ele, o amigo "tá

é uma das responsáveis pelo aparecimento de personagens que se apro- lento ... ",4 isto é, ele tem um ritmo demorado, sintoma do crescimen-

ximam de Raquel por força de sua natureza e da temática desenvolvida to peculiar à personagem central.

nos livros em que aparecem. Seguidamente essas personagens perten- Está em questão nesse livro, como em A Bolsa Amarela, de Lygia

cem ao sexo feminino, mas referir-nos-emos primeiro a um menino. Bojunga, a tradução do mundo interior de uma criança segundo um

Trata-se de Lucas, o garoto "que espiava para dentro", no livro procedimento narrativo que facilite a compreensão, pelo próprio lei-

publicado em 1983. Embora acostumado a prestar a atenção em tudo, tor, daquilo que é representado. O escritor precisa mudar o registro,

ele prefere mesmo o mundo imaginário em que se isola, já que esse lhe sem cair em simplificações reducionistas, nem tender à transmissão

apresenta uma realidade muito melhor e superior: a rede onde se balan- de lições, seja para a criança, seja para o adulto que igualmente conhe-

ça transforma-se no barco que enfrenta um mar agitado ou perigosos cerá a história. O Menino que Espiava pra Dentro lida com esses ingre-

piratas; se fica junto à janela, pensa viajar em naves espaciais a distantes dientes e resolve-os muito bem: Lucas é ensimesmado e gosta de viver

galáxias, e assim sucessivamente. A fantasia suplanta a realidade, que aventuras fantásticas, e ninguém pode condená-lo por causa disso.

Lucas povoa com um amigo imaginário, Talento, com quem dialoga, Quem lê a história, entende a trajetória vivida pela personagem, tra-

confessando o plano de converter-se em personagem de conto de fadas. jetória que ocorre apenas na intimidade do garoto; e identifica-se com

Mesmo imaginário, Talento não se submete ao programa bolado o herói, seja por experimentar comportamento similar, seja, quando

por Lucas e acaba conduzindo-o de volta à realidade, ajudando-o a for o contrário, por conviver com alguém com essas características.

superar a solidão e a amadurecer. Por isso, quando o menino recebe O Dia de Ver Meu Pai, de Vivina de Assis Viana, trabalha com in-

um cãozinho, acaba dando-lhe o nome do amigo fantástico, como que gredientes semelhantes, para abordar questões mais domésticas. Outra

expressando o reconhecimento pela ajuda prestada. vez a narrativa conta com um menino no papel de personagem prin-

O Menino que Espiava pra Dentro fala da criança urbana, que, em- cipal, Fabiano, que narra em primeira pessoa, como faz Raquel em A

bora apoiada pela família, carece de espaço para expandir a imagina- Bolsa Amarela. O tema da história talvez tenha perdido a contundên-
ção. Contudo, a narrativa não rejeita as soluções buscadas por Lucas, cia com o passar do tempo: em 1977, quando apareceu a primeira edi-

já que correspondem a tentativas de ultrapassar etapas e aperfeiçoar-se. ção do texto, o divórcio ainda não constituía matéria do Código Civil

Por isso, o amigo imaginário denomina-se Talento, sinalizando não


76 Como e Por que Ler iI Literatura Infantil Brasileira

Brasileiro, e a separação dos casais era considerada um problema, com Almejando uma irmã, Tarumã é contrariado pelos pais; não desiste do
conseqüências para a vida dos filhos e da família em geral. desejo, mas é obrigado a preenchê-lo por intermédio da fantasia:
Transcorridos 25 anos e consolidada a emenda constitucional que \ '

aprovou a lei do divórcio, o assunto pode parecer ultrapassado ou ba- o piá Tarumã queria que queria ter uma irmãzinha.
Mas não nascia. Ele pedia pro pai dele, pedia pra mãe. Até que desis-
nal. Não, porém, o livro de Vivina de Assis Viana, porque, ao atribuir
tiu. Não é bem que desistiu. Ele pegou a imaginar como seria a irmã-
o principal papel narrativo ao menino que percebe os sentimentos da zinha que ele queria. Imaginou, imaginou, imaginou. 5
mãe, a situação da nova família do pai e a própria condição, a autora
faculta a imersão no mundo interior da personagem. O leitor acom- A imaginação ocupa, neste primeiro momento, o lugar do desejo
panha, pois, o amadurecimento da figura central, os percalços íntimos insatisfeito; porém, ao contrário do que ocorre ao Lucas "que espiava
e, sobretudo, as fragilidades. A exposição franca da alma do protago- para dentro", T arumã se frustra, ao tentar converter a fantasia em rea-
nista faz com que a narrativa não perca vigor e atualidade, reforçando lidade. Não consegue convencer os amiguinhos de que a irmã existe,
o grupo de livros dedicados ao público infantil que não se preocupa pois eles descobrem a mentira do menino. Envergonhado, foge pelo
em mascarar fatos da vida cotidiana, fornecendo ao leitor alternativas "mundão" afora, "sem coragem de voltar" (p. 20); chega junto ao mar
de representação que coincidem com seu próprio mundo e atitudes, e e sofre uma transformação:
colaborando para a maturação dele.
Os livros relacionados até aqui podem sugerir que apenas persona- Na beira-beira do mar, Tarumã deitou de costas. Esticou os pés, as
mãos, o pescoço. Virou um gigante.
gens oriundos das camadas brancas e urbanas podem ocupar a posição
Quando você chega no Rio de Janeiro, você não vê um gigante deita-
principal na narrativa. O Curumim que Vírou Gigante, de J oel Rufino
do, não? Os pés são o Corcovado. É Tarumã. Bem em cima da cara
dos Santos, desmente essa impressão e representa um importante alar- dele tem uma estrela. Mas não é estrela não, gente. O que Tarumã está
gamento do tema. olhando é a irmãzinha dele. 6
O texto versa sobre a infância de T arumã, um índio que vive com
a tribo num cenário natural. Deste modo, a história de Joel Rufino Como se vê, neste segundo momento, a fantasia retoma, agora
dos Santos rompe os limites da representação do mundo contíguo ao reforçada: o menino se confunde à natureza onde residia, agiganta-se
do leitor, sugerindo elementos para uma ampliação das questões até e encontra a irmã com que sonhava. A metamorfose em gigante tem,
aqui descritas. A intriga, centralizada tão-somente no menino, desen- pois, sentido simbólico: a criança cresce e se engrandece, quando ruma
volve-se a partir do conflito decorrente das expectativas frustradas. na direção da realização dos anseios interiores, independentemente da
18 Como e Por (lUe Ler a Literaturél Infélntil Br<l~iieira 19

colaboração dos demais - sejam outras crianças ou adultos, compa- A lesma do título está ali porque o texto deseja focalizar determina-
nheiros ou parentes. Tal como acontece a Lucas, o socorro não pro- do comportamento infantil- a lentidão, própria às crianças com difi-
vém de fora, mas da interioridade do menino, que aprende a conviver culdades motoras. E pode fazê-lo de modo espontâneo, porque, ape-
com os desejos, mesmo quando insatisfeitos pelos outros. sar da desvantagem e da forma do animal, o tema aparece segundo
Narrativas como A Bolsa Amarela, O Menino que Espiava pra Den- uma perspectiva favorável à protagonista, apresentando a morosidade
tro ou O Curumim que Virou Gigante preferem focar o mundo interior como decorrência esperável de sua natureza física:
da criança, para dar vazão às fantasias, compostas de vontades irrealiza-
das, reprimendas recebidas de fora e ânsia de liberação. Nenhuma delas Lúcia Já-Vau-Indo não sabia andar depressa. De maneira nenhuma.
Andava devagar, falava devagar, chorava e ria devagarinho e pensava
contraria o comportamento e as decisões das personagens, mesmo
mais devagar ainda. Muito natural, pois ela era uma lesma?
quando podem parecer escapistas, conforme exemplifica a solução
encontrada por Tarumã. E todas julgam válido o modo como os pro-
A conversão do possível deficiente em herói, sem considerar suas carac-
tagonistas encontram saídas - sejam as imaginárias, como procedem
terísticas como prejuíw, comprova ser uma estratégia eficaz, pois evita a dis-
Lucas e o indiozinho, sejam as artísticas, experimentadas por Angélica
criminação ou o descrédito da protagonista, sem ter de contradizer suas
e Porto -, porque resultam da intimidade dessas pessoas, e não de
qualidades específicas. Sob este aspecto, Maria Heloísa Penteado aborda
sugestões provindas de outros, sejam esses grandes ou pequenos. Por
um assunto complexo de modo simples, usando a estratégia da fábula, com
isso, o final dos enredos coincide com um tipo de amadurecimento,
seu alto poder de sintetização, para alcançar um resultado de alto nível.
simbolizado, na obra de Joel Rufino dos Santos, pela metamorfose do
Dos animais aos humanos e retornando a eles, a literatura infantil bra-
garoto em gigante.
sileira deu um grande passo, ampliando as possibilidades de representa-
O trajeto que se desenha aqui começou com a referência a sapos e
ção do mundo interior da criança, sem ter de renunciar à comunicabili-
a porcos, passando depois a outros seres, não humanos, como Flicts,
dade com o leitor, nem ter de apelar ao socorro dos adultos na condição
humanizados, como a cegonha Angélica e os amigos do Pererê, ou
de auxiliares mágicos ou decifradores dos sentidos ocultos dos textos.
humanos propriamente ditos, como os meninos e meninas citados an-
tes. Há os domésticos e conhecidos, como os cães, de Os Colegas, ou
as galinhas, de A Vida Íntima de Laura, mas há igualmente os selva-
Notas
gens ou repulsivos. A protagonista de Lúcia Já- Vou-Indo, uma peque-
1 Ricardo, Cassiano. Martim Cererê. Rio de Janeiro: José Olympio, 1972. p. 163.
na lesma, na obra de Maria Heloísa Penteado, pode pertencer à últi- 2 Ziraldo. Flicts. 16. ed. São Paulo: Melhoramentos, 1984. s. p.
ma espécie lembrada, mas não se mostra menos interessante. 3 Bojunga, Lygia. Os Colegas. 50. ed. Rio de Janeiro: Casa Lygia Bojunga, 2004. p. 9.
80 Como e Por que ter

4 Machado, Ana Maria. O Menino que EspialJa pra Dentro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1983.
5 Santos, Joel Rufino dos. O Curumim que Virou Gigante. São Paulo: Ática, 1980. p. 3 e 5.
,.
6 Id. p. 22-24.

~
7 Penteado, Maria Heloísa. Lúcia Jd- Vou-Indo. 4. ed. São Paulo: Ática, 1980. As páginas não
trazem números.

GAROTAS QUE MUDAM


O MUNDO

Personagens femininas no papel de figuras centrais não são novida-


de na literatura infantil, podendo-se até dizer que foi nos livros para
crianças que moças e mulheres alcançaram proeminência, fama e po-
pularidade. Uma das mais antigas é Chapeuzinho Vermelho, que abre
os Contos cid Mamãe Gansa, publicados em 1697, por Charles Perrault,
na França. A mesma garota reaparece nos contos de fadas recolhidos
pelos irmãos Grimm, que colocam, ao lado de figuras originárias do
livro de Perrault - a Bela Adormecida do Bosque e Cinderela sendo
provavelmente as mais conhecidas -, outras meninas que se tornaram
famosas, como a Maria, irmã de João e vencedora da Bruxa Má que
almejava devorar a dupla.
No Brasil, foi Monteiro Lobato - de novo, ele - quem conferiu pri-
meiro plano a personagens femininas. Lúcia, a Menina do Narizinho
82 Como e POi" que lei" a Uteratura Infantil Brasileira

Arrebitado, nomeou o livro de estréia do escritor paulista, em 1921; não aparecem subitamente para mudar o curso da existência. No entan-

mas foi Emília quem tomou conta da saga do sítio do Picapau Ama- to, elas são insubmissas e ensinam amigos ou companheiros a atuar de
relo, boneca que, de certo modo, virou gente, liderou aventuras por maneira diferente, encontrando, assim, alternativas de vida ou compor-

todas as partes do mundo (veja-se Geografia de Dona Benta, de 1937) tamento que podem torná-los mais felizes ou, pelo menos, mais cons-

e varou o tempo, deslocando-se para a Antigüidade clássica com a cientes do que acontece em volta de si.
maior desfaçatez (vejam-se, neste caso, O Minotauro, de 1939, e Os Raul da Ferrugem Azul de Ana Maria Machado, pode ser o primei-
Doze Trabalhos de Hércules, de 1944). ro exemplo do grupo de obras a referir. Obra publicada em 1979, é

Herdeira de Emília talvez tenha sido Clara Luz, a fada que tinha contemporânea de História Meio ao Contrdrio, já mencionada; com

idéias e comanda o livro com esse titulo. Outra figura feminina impor- esta narrativa, compartilha um fato de natureza sobrenatural, a saber,

tante, entre as que apareceram nas obras mencionadas em capítulos o aparecimento das manchas azuis na pele de Raul, o protagonista do

anteriores, é a garota que desafia o reizinho mandão, no texto de Ruth entedo. As manchas têm, contudo, caráter alegórico, porque represen-

Rocha. tam a falta de ação do menino, quando se depara com uma injustiça

Mulheres fazendo história parecem não ser novidade, o que coloca- ou uma atitude que não considera correta. Raul, da sua parte, não

ria sob suspeita o tema doravante proposto. Há, porém, uma diferen- reage, aceitando, de forma conformista e como se estivesse enferruja-

ça nas tramas destacadas a seguir: as personagens femininas relaciona- do, o que vê a seu redor, embora fique incomodado com o que acon-

das antes têm algumas particularidades que as tornam mágicas, como, tece consigo.
por exemplo, a Chapeuzinho que dialoga com o lobo, a Cinderela que A primeira tentativa corresponde à busca de uma solução mágica

conta com a ajuda de uma Fada Madrinha, a Bela, que, embora tenha para os problemas que testemunha, decisão, de certo modo, coerente

permanecido dormindo por cem anos, não envelhece. A magia é igual- com o universo da literatura infantil precedente ao lançamento do

mente compartilhada por Clara Luz, fada de nascença; e o próprio livro. A conversa com o Preto Velho, porém, não o ajuda, ao contrá-

Lobato considerou Emília uma "fada moderna", titulo de uma peque- rio do que se passa quando se depara com Estela, a menina que enfren-

na narrativa incluída no volume das Histórias Diversas. ta os garotos mais velhos na defesa de seus principios. A conversa com

As jovens que, daqui para a frente, passam para o primeiro plano, não a personagem feminina modifica o comportamento de Raul, que, em

têm qualquer atributo mágico, não dispõem de auxiliares capazes de situação similar, também trata de defender os mais fracos, ainda que

ações sobrenaturais, e vivem a mesma realidade cotidiana e problemáti- arriscando a pele. O resultado é o desaparecimento das manchas, re-
ca experimentada pelo leitor. Seu mundo é, digamos, "normal", igual ao sultado .que representa a recuperação da capacidade de protesto e
nosso, em que os bichos não falanl, mortos não ressuscitam, príncipes revolta, até então reprimida pelo herói.
84 Como e Por flue ter a literatura Infantil Brasileira 85

Em Raul da Fenugem Azu4 o lugar de protagonista é preenchido feminina. Do diálogo entre a bisavó e a bisneta, nasce o cotejo entre
pelo menino indicado no título; mas Estela prefigura o tipo de perso- dois tempos e duas visões da mulher, a antiga e convencional, represen-
nagem que predominará em vários enredos da literatura infantil: ainda tada por Bia, e a moderna e descontraída, encarnada por Bel.
que pequena e oriunda das classes populares, ela não se deixa dobrar, A originalidade da obra nasce da introdução de uma terceira
manifestando indignação e autonomia quando ameaçada pela força perspectiva, a da Neta Beta, de quem Bel é bisavó. A voz do futu-
ou pelo poder. Torna-se paradigmática não apenas de uma atitude, ro é interpolada à narrativa, para dar conta das transformações que
mas também de um período, pois, à época, o país tentava liberar-se da afetam as concepções da mulher. Assim, nenhum ponto de vista -
ditadura imposta pelo golpe militar de 1964. As pessoas, após 15 anos seja o do passado, o do presente ou o do futuro - é definitivo, con-
de repressão, oscilavam entre conformar-se ou declarar rebeldia; Raul clusão a que chega Bel, após a experiência tridimensional do
representa a passividade inicial; Estela, da sua parte, a importância de tempo.
soltar a voz e expressar insubmissão. A passagem de Raul, de uma Bisa Bia Bisa Bel é o que se poderia chamar um livro feminista, não
situação para outra, indica um caminho, a ser perseguido não apenas apenas porque traduz o processo de independência da mulher ao lon-
pelos leitores de literatura infantil, mas também pela sociedade nacio- go da história, marchando do convencionalismo e obediência de Bia à
nal. Por esta razão, Estela simboliza não apenas uma criança que não completa auronomia e autoconfiança de Beta. Mas também porque
teme o enfrentamento dos mais fortes, mas o fato de que, mesmo apa- elege um ângulo feminino para traduzir essas questões, revelando
rentemente fraco - afinal, ela é uma menina pobre -, o ser humano como o processo de liberação nasce de dentro para fora, não por ensi-
tem condições de mudar o mundo em volta, "desenferrujando" os namento, mas enquanto resultado das experiências vividas. É o que se
músculos e encarando a poderosa engrenagem que o oprime. passa com Bel, a menina que se transforma internamente, sem deixar
Bisa Bia Bisa Bel de 1982, apresenta outro desenvolvimento para as de ser ela mesma, ou, em outras palavras, o que ela poderia ser, consi-
questões relacionadas a personagens femininas. A narrativa abre com a derando as coordenadas de seu tempo.
descoberta, pela narradora, Bel, de uma foto da bisavó, Beatriz, que Nos dois livros tratados até agora, a narração incorpora elementos
passa a carregar consigo. Menina independente e criativa, Bel relata as de certo modo sobrenaturais: as manchas de Raul podem ser alegóri-
andanças pela escola, amizades e interesses pessoais. Após o encontro cas, porque não resultam de um problema dermatológico; e Bel tem
do retrato e a incorporação desse objeto a seu cotidiano, a garota conta acesso às vozes do passado e do futuro por efeito de propriedades
igualmente as conversas com a Bisa Bia, interlocutora que passa a inter- extraordinárias, não em razão da invenção de um sistema novo de
vir em seu comportamento, chamando a atenção da narradora, que, transmissão de ondas magnéticas. Por outro lado, os acontecimentos
segundo ela, deveria adotar atitudes mais compatíveis com a condição extraordinários são vividos internamente, e não presenciados por tes-
36 Como e Por que ler a Literatura Infantil Brasileira
37

tem unhas, de modo que não contaminam o contexto externo onde oportunidade de protagonizar uma narrativa para crianças. Não que
vivem as personagens. pretos não tivessem aparecido em livros destinados ao público infantil;
Assim, Raul da Ferrugem Azul e Bisa Bia Bisa Bel ficam na frontei- porém, em posição preferentemente secundária, como Tia Nastácia, no
ra entre o gênero realista e a literatura fantástica, afastando-se, de uma sítio do Picapau Amarelo, ou Estela, em Raul da Ferrugem Azul.
parte, das obras citadas no começo deste livro, plenamente integradas Tânia representa, pois, importante mudança, mas não apenas por
ao mundo da magia, mesmo quando não se confundem com o conto causa da origem étnica, e sim por experimentar problemas com os
de fadas, como é o caso dos livros de Monteiro Lobato. De outra quais qualquer leitor se identificaria. Preocupada com a aparência,
parte, porém, não coincidem com o verismo, que evita qualquer com- como ocorre a todo adolescente, Tânia sente-se infeliz; a família não
promisso com elementos de existência puramente imaginária. Nas consegue transmitir-lhe a sensação de segurança de que careceria; por
obras examinadas a seguir, as meninas que as protagonizam aparecem isso, precisa encontrar dentro de si os elementos necessários ao forta-
em obras de teor realista, o que confere novas características ao tema lecimento do ego, que lhe facultam pronunciar a frase mais importan-
proposto e oferece outros desafios ao escritor. te do livro, colocada ao final:
A primeira dessas meninas aparece em obra de Fernanda Lopes de
Almeida, a autora que introduziu aos leitores brasileiros A Fada que Ti- E pensou: puxa, como eu sou bonita!
nhaldéias. EmA Curiosidade Premiada, de 1978, o inconformismo pe- E disse alto:
rante as convenções e as regras fixas é manifestado por Glorinha, a me- _ Eu sou bonita! Como eu sou bonita! 1

nina que não aceita respostas definitivas, indagando sempre" por quê?",
após cada afirmação das pessoas ou depois de cada ação que presencia. Elegendo a representação de cunho realista, Eliane Ganem, em Coi-

Graças ao comportamento permanentemente questionado r, a menina sas de Menino (1980), centraliza o enredo da narrativa na ação de Cla-
provoca modificações nas atitudes dos adultos, que, como os conheci- rice, que, como as garotas citadas antes, não aceita as regras domésti-
dos de Raul, o da "ferrugem azul", estavam imobilizados pela apatia e cas. O conflito familiar é apresentado de modo mais contundente
a resignação. nesse livro, que documenta brigas entre irmãos e conflitos entre pais e
A personagem principal de Nó na Garganta (1980), de Mirna filhos. O cotidiano da classe média compõe o pano de fundo da intri-
Pinsk:y, participa desse grupo de garotas que reage a situações e proble- ga, facultando um reconhecimento mais fácil do assunto de que se fala
mas que prejudicam a existência dos indivíduos. Mas a autora introduz e que, provavelmente, o leitor - criança ou adulto - experimenta.
um dado ainda ausente: Tânia, a figura central da narrativa, é negra, Esse horizonte burguês é contraposto, na obra, a outro contexto fami-
representando, portanto, uma etnia que, até então, não tinha tido liar, o do grupo favelado a que pertence Nezinho, que se converte no
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88 Como e Por que leI" a Literatura Infantil Brasileira

pivete Olho de Boi e que Clarice conhece, primeiro por acaso, depois Poder-se-ia dizer que foi uma revolução em dobro: a literatura se
porque deseja ajudar o menino. A atuação da garota tem, pois, um esco- modificou, e isso ocorreu por força da liderança de meninas e moças.
po mais amplo, porque ela deseja intervir não apenas nos comportamen- Fadadas pela tradição a traduzir fragilidade e dependência, elas come-
tos socialmente aceitos, mas na organização da sociedade. Acaba fracas- çaram por romper esse padrão; e acabaram por introduzir outro para-
sando, porque, agora, não se trata apenas de mudar internamente, como digma, na condição de porta-vozes da liberdade e da rebeldia, mesmo
ocorre a Tânia, criação de Mima Pinsky; é preciso interferir no sistema quando conscientes de que os limites acabariam por dobrar e vencer
social, econômico e ideológico que rege a vida nacional. algumas das iniciativas, tal como acontece a Clarice, em Coisas de
Fosse Clarice bem-sucedida, o livro falsearia a realidade brasileira e, Menino. O insucesso parcial não invalidou a luta, determinando a
de certo modo, ofenderia o bom senso do leitor. A opção pela escrita consolidação do tema e do tipo de personagem feminino de que fala
realista impõe limites à criação literária; mas, ao mesmo tempo, pode aqui até os dias de hoje.
ampliar as dimensões do mundo oferecido ao conhecimento do desti-
natário. O fato de que aumentou o número de Olhos de Boi na socie-
dade comprova que Eliane Ganem estava no caminho certo: as Cla- Notas
1 Pinsky, Mima. Nó na Garganta. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1980. p. 66.
rices se revoltam e tentam mudar; mas as fronteiras a ultrapassar são
mais rígidas que as convenções, restando a conscientização do proble-
ma, bem como a denúncia, e legando para o conjunto da sociedade o
convite à busca de soluções.
Da Clara Luz, de Fernanda Lopes de Almeida, a Clarice, de Eliane
Ganem, a literatura infantil brasileira viveu uma década de mudanças,
lideradas por representantes do sexo feminino que reproduziam, no
âmbito da narrativa destinada a crianças e adolescentes, o que se pas-
sava na sociedade e na cultura. Em ambos os casos, as mulheres reivin-
dicavam reconhecimento e retribuíam com ações transformadoras. A
literatura infantil não apenas mostrou-se coerente com o que ocorria;
ela assumiu, em certo sentido, papel de vanguarda, pois foi naquele
gênero de livros que apareceu o maior número de escritoras e de per-
sonagens femininas no lugar de protagonistas.

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