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Wonsa da mu a, wone nnya wo.

Se suas mãos estão no práto, as


pessoas não comem tudo e te deixam
com nada. Simboliza a necessidade de
gestão participativa, democracia e
pluralismo

Sujeita Política: Mulher(?) Negra(S)


Autoras: Geise Pinheiro Pinto e Larissa Amorim Borges

Introdução

O presente texto busca refletir sobre as configurações e reconfigurações


pelas quais o feminismo tem passado a partir de interpelações de sujeitos/corpos e
espaços diversos. Assim, buscamos compreender como a intersecção das
categorias gênero, raça, nacionalidade, sexualidade têm indicado tensões em
relação à noção de “sujeitos” “mais” ou “menos” políticos, “mais” ou “menos”
feministas na contemporaneidade. Pretendemos também analisar e compreender
as implicações e os efeitos disso para as relações cotidianas e institucionais na
busca por justiça e transformação social. Nesse sentido, concluímos que projetos
de emancipação política e construção de autonomia de mulheres negras apontam
questões centrais para os processos de pluralização e politização do feminismo.
Falar sobre sujeita do feminismo hoje exige uma retomada breve das
origens desse campo. Isso não para buscar alguma essência ou ato solene de
fundação do feminismo, mas como anuncia Michel Foucault (1971/1994) para
evidenciar uma perspectiva genealógica, considerar a emergência desse campo do
conhecimento e intervenção política com base na análise das discórdias, dissensos
e conflitos que ocorreram e melhor compreensão dos desafios atuais posto para o
feminismo tanto como produtor de conhecimento, quanto como prática política.
Michel Foucault (2007; 2010) traz a análise genealógica como uma forma de
pesquisa e reflexão em torno de contextos e condições específicas que possibilitam
que certos saberes sejam produzidos. Essa análise considera o saber como
materialidade, como prática, como acontecimento, como engrenagem de um
dispositivo político, se articula com os interesses e a estrutura econômica e social
localizada espacial e temporalmente. Essa abordagem se contrapõe a noção de
história a partir de um desenvolvimento linear, global, contínuo, unívoco, de um
sentido originário – que parte em busca de uma “origem perdida” a ser resgatada.
Como veremos no decorrer deste material, através dos conflitos internos
subjacentes à consolidação dos movimentos feministas e de mulheres, a
constituição de antagonismos e conflitos internos que levaram a uma pluralização
crescente das formas de fazer política das mulheres, com a emergência de novas
questões e outras sujeitas do feminismo que foram invisibilizadas, desqualificadas
ou silenciadas pelo Feminismo hegemônico. Nas lutas e disputas internas ao
Movimento Feminista se constrói, por exemplo, o feminismo negro na América
Latina, mas isso não quer dizer que as mulheres negras nesse continente não
estivessem em movimento, como diz Jurema Werneck: nossos passos vêm de
longe!!!
Cabe destacar que partimos da compreensão do movimento feminista como
um movimento não datado, não homogêneo, controverso, não linear, polifônico,
longe de ser esgotado. Portanto, revisitar as perspectivas feministas que se
ocuparam em teorizar e refletir sobre a construção da categoria “mulher” inscrita
nos cenários de opressão patriarcal, racial, classista, heterossexual experienciada
pelas mulheres. Como veremos, essas reflexões e interpelações forneceram
subsídios teóricos, metodológicos e de intervenção e prática política para
reformulações de arsenais explicativos sobre a construção cercada de apagamentos
e mitificações que se tinha até então em torno das experiências das mulheres.

Reflexões acerca do ponto de vista do feminismo hegemônico

Historicamente, as mulheres têm reivindicado, contestado e disputado


sobre o lugar da mulher e as possibilidades de ser e se expressar como sujeitas de
direito e políticas. Indo de encontro ao arcabouço filosófico/científico/ religioso,
orquestrado “por” e “para” homens, as mulheres ousaram e ainda ousam
desenvolver tanto teoricamente e pessoalmente, como politicamente o desafio de
contestar e reivindicar o “direito a ter direitos” e a desafiar o prescrito para suas
existências, ou seja, a esfera que lhes foi atribuída: a da reprodução e a do
confinamento ao campo do privado (CÉLI PINTO, 2003, 2002; BIROLI, 2014;
CAROLE PATEMAN, 1988/1998; BELL HOOKS, 2000/2015).
A denúncia e interpelação das mulheres feministas caminham no sentido de
identificar, nomear e problematizar os processos sociais e políticos que ao longo do
tempo vêm sendo ocultados para manter a ordem social a partir da lógica dos
contrastes e diferenças evocadas pela suposta “evidência” da diferença sexual e a
consequente inferioridade e desqualificação atribuída às mulheres (MARLISE
MATOS, 2008; JOAN SCOTT, 1995, 2002; BIROLI & MIGUEL, 2014). Nesse
sentido, o campo do feminismo no Brasil e alhures têm feito críticas contundentes
ao projeto de sociedade e sujeito vigentes, apresentando a possibilidade de
construção de um “outro mundo possível” frente ao sistema patriarcal e seu poder
prescritivo e regulador.
Sendo assim, em nome de princípios de igualdade, de equidade e de justiça
social o feminismo emergiu na cena pública com o objetivo de colaborar com
processos de transformação e mudança social do sistema mundo vigente
(FRANCINE DESCARRIES 2002; MARLISE MATOS, 2010; CLAUDIA
MAYORGA, 2014; FLÁVIA BIROLI & LUIS FELIPE MIGUEL, 2014). Nesse
sentido, o campo do feminismo elaborou uma série de discursos e ações com
finalidades de identificar, nomear e denunciar a desigualdade de gênero, o
patriarcado, o sexismo delineando também, formas de enfrentamento (CAROLE
PATEMAN, 1988/1998; KATE MILLET, 1970/2000; GAYLE RUBIN, 1986;
BIROLI & MIGUEL, 2014).
Todo esse movimento levou à delimitação da categoria mulher e
consequentemente à proposição de lutas e bandeiras do feminismo. Essa
construção realizou-se marcada pelo universalismo e certo essencialismo,
desconsiderando que essas construções eram fruto de um grupo específico de
mulheres, com posições privilegiadas no âmbito das relações raciais, de classe e de
local de origem (CLAUDIA MAYORGA ET AL., 2013; CLAUDIA MAYORGA, 2014;
OCHY CURIEL, 2009; SUELI CARNEIRO, 2003; CONCEIÇÃO NOGUEIRA,
2017).
O debate sobre a categoria “mulher” começa a ganhar corpo a partir das
tensões entre aquilo que passa a ser identificado, na virada do século XIX para o
século XX no Ocidente, como “o movimento feminista”. Como dito anteriormente,
essa denominação torna-se problemática na medida em que ela incorreu e incorre
no risco de “datar” o ideário feminista e as lutas das mulheres em um contexto e
momento histórico muito específico, perdendo de vista, muitas vezes, outras
atrizes que compuseram e compõe essa história.
Para compreender as configurações contemporâneas das sujeitas ou corpos
“autorizados”, com maior ou menor grau de legitimidade, a participarem do
feminismo, buscamos nesse texto historicizar e problematizar formulações sobre a
categoria “mulher” que embasam parte importante do pensamento feminista
ocidental. Ao localizar historicamente essas construções discursivas sobre a
categoria “mulher”, percebemos corpos mais e menos possíveis de emergir como
sujeitas do feminismo, e voltamos a nossa atenção para como essas argumentações
vão nomear, autorizar e agenciar uma teoria, política e prática feminista.
Para Marìa Lugones (2014, 2009) a categoria mulher negra marca uma
ausência e não uma presença das mulheres negras, precisamente por conta da
introdução de um sistema de organização social no período colonial que dividiu as
pessoas entre humanos e não humanos. E uma das características dessa nova
organização social imposta é constituir o homem branco europeu burguês como o
ser humano por excelência: individual, ser da razão, da mente, capaz de governar,
o único capaz de ser um sacerdote/mediador entre o Deus cristão e o povo. Nessa
concepção a mulher burguesa, europea, branca é humana porque é sua
companheira, a que reproduz a raça superior, mas inferior por suas características
de emocionalidade, fragilidade física e mental, imperfeição em relação aos
homens, não podendo governar porque não tem uso desenvolvido da razão, e
destinada por natureza a reprodução (maternidade compulsória) e a esfera do
privado.
As populações negra e indígena foram racializadas e tidas como não-
humanos, seres inferiores, como os bestias. Portanto, não foram classificados
como homens e mulheres, mas sim como machos e fêmeas. Nesse sentido, são
vistos e tidos como instrumentos, seres que devem ser guiados pelos seres da razão
(homem branco, heterossexual e europeu) no sentido de tornarem-se produtivos
em uma economia racional e capitalista. Como seres racializados - portanto
inferiores - podem ser usados como objetos, mercadorias, assim podem ser
violados, destruídos, dominados e explorados.
Cabe destacar que a proposta de sistema de gênero moderno/colonial de
Maria Lugones (2014) para entender como a constituição de ficções poderosas
sobre mulheres negras e indígenas como irracionais, bestiais, ficções essas que
historicamente foram admitidas como justificativas para violação e extermínio
dessas mulheres. Nesse sentido cumpre saber: que outras histórias podem nos
contar as mulheres que se levantam diante dessas ficções? Como as mulheres
negras questionam as instituições patriarcais?
O pensamento da autora acima é importante para demonstrar como a
construção do conceito de gênero foi utilizada pelos colonizadores para legitimar a
dominação e transformar as estruturas sociais das sociedades colonizadas.
Também, como o sistema colonial de gênero apagou e destruiu identidades outras
(como sexualidades diversas e outras formas de relação entre homens e mulheres
na cultura Yorubá), e continua a ser perpetuado pelas sociedades como sendo a
única forma de interpretação e vivência das relações sociais. Além disso, seus
textos chamam a atenção para a naturalização de estereótipos hegemônicos de
gênero como sendo universais. Por exemplo, quando mulheres com todo tipo de
diferença são consideradas universalmente na categoria “mulher” (construída
como a mulher branca burguesa frágil, dominada, que precisa de proteção), sem
considerar as especificidades de diversas outras mulheres e suas experiências.
Marìa Lugones (2009, 2014) ainda pontua que as lutas feministas foram
construídas considerando o conceito “mulher” como universal, como se as
mulheres não fossem racializadas, tivessem as mesmas necessidades e sofressem
as mesmas opressões. Para aquela autora, as feministas brancas viam uma ligação
de todas as mulheres pelo gênero, que eliminava a necessidade de compreender
também a categoria raça e outras formas de sexualidade. No entanto, as mulheres
colonizadas e não-brancas tinham representações sociais específicas que não
cabiam no conceito de mulher dos feminismos hegemônicos.
Diante do exposto pontuamos a necessidade de problematizar a concepção
da utilização do conceito mulher. A forma como essa concepção foi historicamente
construída evidencia tanto o aspecto do sexo biológico como a construção social de
gênero. Justamente por isso, é preciso atentar para o fato de que a reinvenção da
categoria mulher realizada pelo feminismo hegemônico, constantemente lança
mão dos mesmos estereótipos elaborados pela opressão patriarcal, ou seja, a idéia
de passividade, docilidade, movida pelas emoções, etc. – na maneira de
compreender e operar com as relações e papéis de gênero (LUIZA BAIRROS,
1995). Nesse sentido Luiza Bairros diz:

Na prática se aceita a existência de uma natureza feminina e


outra masculina fazendo com que as diferenças entre homens e
mulheres sejam percebidas como fatos da natureza. Dessa
perspectiva a opressão sexista é entendida como um fenômeno
universal sem que, no entanto fiquem evidentes os motivos de sua
ocorrência em diferentes contextos históricos e culturais (1995, p.
459).

Observamos que o descentramento da sujeita universal do feminismo


permaneceu com o seu foco eurocêntrico e universalista e, dessa forma reproduziu
aquilo que ele mesmo criticou as perspectivas androcêntricas de produção de
conhecimento e de lutas políticas. Fundamentando-se na concepção de uma sujeita
liberal-humanista (racional, com livre vontade e agência), o feminismo
desconsiderou a experiência de outras mulheres que, por sua condição racial,
étnica, orientação sexual, local de origem, dentre outras estariam submetidas a
relações múltiplas de opressão (CLAUDIA MAYORGAET AL., 2013; OCHY
CURIEL, 2009).
Nesse sentido, algumas questões são pertinentes para pensarmos sobre o
debate de quem se constitui como a sujeita do feminismo: Quem pode falar pelo
feminismo? Quem tem a autorização de nomear o que seja o feminismo? Quem
define as bandeiras de luta do feminismo? Quem define a direção e forma de
estratégias de lutas do feminismo? Quem determina e define o que seja a sujeita
política do feminismo, o que seja resistência e a luta política desse movimento?
Teorias feministas branco-centradas, mas que se pretendem universais, por
mais que possuam uma posição política de emancipação, na ação, não realizaram
seu objetivo, pois negam as especificidades de outras mulheres, representando
assim somente mulheres em situações de algum privilégio social e, portanto
reproduzindo os processos de hierarquia, exclusão e desigualdades entre mulheres.
Para ampliar o debate sobre a politização dentro do próprio feminismo se faz
necessário refletir sobre como pensar e buscar a autonomia para mulheres negras
tendo como base a categoria de mulheres brancas, heterossexuais e de classe
abastadas. A entrada em cena de outros corpos de lugares sociais distintos traz
elementos importantes para caminharmos nesse debate.

Outras sujeitas políticas em foco

A partir desses questionamentos acima (dentre outros), ao longo do século


XX, houve a necessidade de caracterizar as especificidades do sistema de poder e
seus efeitos sobre as mulheres, o qual foi nomeado de formas distintas (política
sexual (MILLET, 1970/2000); patriarcado moderno (PATEMAN, 1993); sistema
sexo-gênero (RUBIN, 1975). O desapontamento e desencanto com paradigmas e
discursos elaborados por feministas brancas e de classe média levaram outros
coletivos de mulheres a tomarem suas próprias experiências de exclusão, opressão
e discriminação, bem como de construção de resistência, relacionadas,
principalmente, à raça, classe e sexualidade para produzir formas próprias de
operar com os conceitos de gênero e feminismo, em vista que a ênfase dada pelo
feminismo ao gênero como exclusiva fonte de opressão das mulheres não
estabelecendo relações com outras formas de dominação (SUELI CARNEIRO,
2015; MATILDE RIBEIRO, 2010, 2008; LÉLIA GONZALEZ, 1983, 1988;
CLAUDIA MAYORGA ET AL., 2013).
Toda essa agenda, que sofria muitas resistências políticas e sociais, pois
expressava as dificuldades e desvantagens das mulheres no mercado de trabalho,
educação, violência doméstica e sexual entre outras violações de direitos, foi
estimulada por organizações internacionais, por exemplo, a Organização das
Nações Unidas (ONU) que elegeu o ano de 1975 como o Ano Internacional da
Mulher, e os anos de 1975 a 1985 como a Década da Mulher em todo o mundo
(SUELI CARNEIRO, 2001, 2011; SUELI CARNEIRO & TERESA SANTOS, 1985;
CRISTIANO RODRIGUES, 2006).
As mulheres negras na América Latina participaram e interpelaram
ativamente neste momento. Assim, construíram suas lutas, conhecimentos e
práticas políticas argumentando a necessidade de articular o racismo, o sexismo, o
classismo, heterossexualidade compulsória, só assim o feminismo poderia
contribuir para visibilizar a experiência e luta de muitas mulheres. Esses
movimentos de mulheres diversas, a partir de experiências e corpos diversos
buscaram e buscam problematizar e superar a divisão social, sexual e racial do
trabalho intelectual, militante e das relações sociais cotidianas e institucionais. As
mulheres negras latino americanas têm elaborado um pensamento radical e
ativismo lésbico feminista negro, interseccional e decolonial, buscando a
construção de um pluralismo radical feminista em termos de autonomias e
utopias, ou seja: um luta de mulheres que também contemple várias
possibilidades, configurações e direção de luta.
É preciso evidenciar que nas sociedades multirraciais da América Latina, a
hierarquia de gênero, assim como as de classe, são organizadas e articuladas pelo
racismo (SUELI CARNEIRO, 2001). Assim, as análises pautadas somente nas
desigualdades de gênero não dão conta da construção de compreensões acerca da
condição de mulheres negras inseridas em diversos contextos, outras categorias
precisam entrar em cena para complexificar e evitar leituras reducionistas e, que
muitas vezes, colaboram para a manutenção de determinadas desigualdades e
exclusões sociais, inclusive entre mulheres (SUELI CARNEIRO, 2001; CRISTIANO
RODRIGUES, 2006).
Se pensarmos a experiência do movimento de mulheres negras na América
Latina, em que essas atrizes sociais evidenciavam e ainda evidenciam a questão da
dupla e até tripla desigualdade, a qual as mulheres negras estão submetidas
(racismo, pobreza e sexismo). Essas e muitas outras mulheres negras fizeram-se
presentes e foram protagonistas importantes na constituição dos movimentos
Negro e Feminista, bem como da produção acadêmica, contribuindo, assim para o
aprofundamento dos debates internos e externos aos movimentos negros e
feministas, sobre a necessidade da reflexão e problematização de gênero articulado
ao pertencimento racial, de classe e referente aos processos coloniais
demonstrando que esses múltiplos pertencimentos devem ser trabalhados
articulados. A proposta deve ser de uma análise ou interpretação acerca dos
processos de desigualdades que vise problematizar sobre a realidade que
pretendemos investigar/intervir, essas análises devem se complexificar, com
especial atenção aos efeitos dos diferentes sistemas de poder que caracterizam as
sociedades contemporâneas e, notadamente, as diversas sujeitas que emergem
interpelando o espaço público (MATILDE RIBEIRO, 2008).
Observamos que diferentes grupos de mulheres identificaram e explicitaram
os limites do gênero, dentre eles, seus efeitos normativos, sinalizando para a
importância fundamental de politizar e pluralizar o próprio feminismo. Essas
atrizes sociais diversas, em especial as mulheres negras, colocaram em pauta, não
sem conflitos e discordâncias, o debate sobre a articulação das diversas questões
levantadas pelas mulheres, também diversas na produção de uma leitura acerca da
opressão e, consequentemente, sobre sua ação política, tanto em termos do que
seja a resistência e luta possível, quanto em relação à direção e rumos dessa luta.
Nesse sentido, movimentos diversos, principalmente o de movimento de mulheres
negras na América Latina, buscaram e buscam tentativas, em suas ações e
mobilizações, ao enfrentamento dessas questões (OCHY CURIEL, 2002, 2009;
CLAUDIA MAYORGA ET AL., 2013).
Assim, cabe destacar que as feministas latino-americanas tiveram uma
participação importante e uma responsabilidade histórica na crítica e proposta de
outros feminismos possíveis. Isso forçou o feminismo negro latino-americano
como crítica, perspectiva teórica e, particularmente epistemológica ao construir
alternativas de prática política e produção do conhecimento que não essa
dependência intelectual e política eurocentrada, entretanto sem negar as
contribuições do feminismo vindo do norte (OCHY CURIEL, 2009). Nesse
sentido, a autora pontua:

Descolonizar para las feministas latinoamericanas y caribeñas


supondrá superar el binarismo entre teoría y práctica pues le
potenciaría para poder generar teorizaciones distintas,
particulares, significativas que se han hecho en la región, que
mucho puede aportar a realmente descentrar el sujeto
euronorcéntrico y la subalternidad que el mismo feminismo
latinoamericano reproduce en su interior, sino seguiremos
analizando nuestras experiencias con los ojos imperiales, con la
conciencia planetaria de Europea y Norteamericana que definen
al resto del mundo como lo OTRO incivilizado y natural,
irracional y no verdadero (OCHY CURIEL, 2009, p. 7).

Embora não seja um movimento homogêneo e existam divergências e


tensões, o ponto em que une o feminismo negro na América Latina refere-se às
interpelações e estratégias que grande parte das mulheres e feministas
afrodescendentes têm realizado e como a questão da representatividade das
mulheres, a relação entre prática política e produção de conhecimento; a
articulação de categorias que tem de maneira distinta dos anos 1960/1970,
demandado o entendimento acerca das opressões a partir de sistemas de poder
diversos (de gênero, de raça e de sexualidade), a pluralização dos corpos/das
sujeitas políticas, das experiências e das formas de ação e resistência política.
Nesse sentido, observar as diferentes formas e níveis de articulação entre
esses sistemas de opressões elaborados por essas atrizes sociais diversas, que
compõe o que estamos chamando aqui de feminismo negro na América Latina, é
um aspecto fundamental no enfrentamento das desigualdades diversas. Somente,
levando a forma como as “outras” inventadas pelo feminismo hegemônico
articularam e complexificaram esses pontos, principalmente em consideração as
políticas públicas e/ou intervenções sociais, produções científicas e formas de
ação/intervenção sociais podem contribuir para processos de análises e
interpretações que levem em conta a complexidade dos processos de manutenção e
naturalização das desigualdades e hierarquias das sociedades contemporâneas
(CLAUDIA MAYORGA ET., ALL, 2013).

As implicações do debate do pluralismo para pensar o feminismo


negro na América Latina

Convencionou-se, não sem críticas, de se contar o feminismo de forma


linear, a partir da conhecida metáfora das ondas. Dividir o feminismo em ondas
não é um ponto de vista consensual. Essa forma de pensar sobre o feminismo pode
gerar uma tendência reducionista e simplificadora da diversidade de perspectivas e
posicionamentos presentes na problemática apresentada por esse campo de
pensamento e ação política, como também tem contribuído para o invisibilizar e
desqualificar certas sujeitas, agendas políticas e os tensionamenos dentro do
próprio campo, além de contribuir pouco para complexificar as teorias e os debates
em torno do feminismo e seus impactos para os processos de transformação social
e busca de autonomia para as mulheres. (CONCEIÇÃO NOGUEIRA, 2017;
ANGELA MCROBBIE, 2009).
A primeira onda (século XIX até 1960 do século XX) teve como principais
reivindicações a denúncia e luta por melhoria das condições materiais de vida das
mulheres, pelos direitos sociais e no trabalho, pelos direitos civis e políticos, pelo
acesso ao estatuto de ‘sujeito jurídico’, pelo direito ao voto, motivo pelo qual ficou
conhecido como movimento sufragista (CONCEIÇÃO NOGUEIRA, 2017).
A segunda onda teve início nos anos de 1960 em que as reivindicações do
movimento feminista pela autonomia das mulheres em várias esferas da vida
parece se consolidar. Foi nessa onda que se organizou e consolidou de forma mais
sistemática esse campo de conhecimento, saber e luta política (MARLISE MATOS,
2010; CÉLI PINTO, 2003). Esse movimento gerou avanços na legislação de vários
países do norte global, tendência que se observa até a atualidade (SUELI
CARNEIRO, 2011; CONCEIÇÃO NOGUEIRA, 2017). Assim, as políticas da
reprodução e da identidade, a contradição e o aborto, a sexualidade, o prazer e o
questionar da heterossexualidade “compulsória”, a violência sexual e doméstica, os
abusos, o questionar dos efeitos dos estereótipos, do tratamento do corpo feminino
como objeto na arte, na publicidade e na pornografia são temas centrais neste
período e foram eleitos como temas principais ou primordiais para algumas
teorias, movimentos e ações feministas e que chamou atenção a necessidade de se
politizar o campo do privado como estratégia de emancipação para as mulheres. A
frase “o pessoal é político” tornou-se o slogan dessa onda.
A terceira onda emerge no final da década de 1980. Estas concepções e
críticas postas desse momento demarcam a diversidade dentro do próprio
feminismo (HELENA ARAUJO, 2007) e a pluralidade que pareciam faltar ao
feminismo da segunda onda. Nesse sentido, a terceira onda do feminismo pode ser
compreendida como um tempo que inaugura um espaço de debate e de conflito,
que caracteriza o feminismo contemporaneamente (CONCEIÇÃO NOGUEIRA,
2017).
A partir dos anos 2000, foi possível perceber o aumento do volume de
várias vozes que a hegemonia historicamente tentou silenciar. Em vários espaços e
de várias formas novos discursos e contra-discursos vem ganhando visibilidade,
uma multiplicidade de sujeitas políticas avança na proposição e experimentação de
novas formas de sentir, pensar e fazer a luta das mulheres por igualdade e
equidade. Em toda América Latina meninas e mulheres vem tecendo redes
afetivas-politicas com arte, tecnologia e outros saberes. Expressões como “Lute
como uma menina”, “Meu primeiro assedio”, o “Festival Vulva La Vida” e muitas
outras ações vêm evidenciando que “Três Ondas não são suficientes!” (Borges,
2013)

Assim, mais recentemente há ativistas e autoras feministas falando de uma


quarta onda, caracterizada por algumas como um momento marcado pelo uso
maciço das redes sociais e tecnologias digitais de comunicação e informação para
viabilizar e potencializar os processos de organização e como uma ampliação e
fortalecimento do feminismo latino-americano (FRANCHINI, BRUNA, 2018;
PALMEIRO, CECÍLIA, 2010, 2017). Há as ainda as que caracterizam esta onda
como uma fase em que há maior interface e incidência entre feminismo e Estado
(MARLISE MATOS, 2010).
Essa perspectiva supracitada de se contar sobre o feminismo tem mãe, local
e data aproximada de nascimento. Muitos vão pontuar que o feminismo foi uma
filha ainda que indesejada da revolução francesa. Muitas mulheres tiveram papel
central nesta luta. Ainda podemos pensar o local e data de nascimento, século XIX
na Inglaterra, com a chamada primeira onda do feminismo (o movimento
sufragista). Essa forma de se contar a história do feminismo torna-se problemática
do ponto de vista dos processos de autonomia e emancipação que o próprio
feminismo pretendeu e pretende.
Nessa forma de abordar o feminismo identificam-se as mulheres brancas e
européias como aquelas que encabeçaram as lutas em prol da emancipação das
mulheres. Isso invisibiliza uma série de outras experiências de movimentos de
lutas realizados por mulheres em outros contextos e espaços. Por exemplo: Na
áfrica; na América Latina, com os quilombos, os grupos em torno das religiões de
matrizes africanas perpetuados por mulheres negras como forma de resistência e
empoderamento de seus grupos etnias, dentre outros.
Nesse sentido, coloca as mulheres negras como iniciando suas lutas
somente a partir de um momento específico nessa escala linear de
desenvolvimento do feminismo, quando elas aparecem no final da segunda onda
tensionado o próprio feminismo, portanto, o feminismo negro parece ser uma
espécie de adendo e/ou anexo de menor relevância dentro do feminismo. Se
pararmos para olhar a história hegemônica do feminismo, percebemos certo
apagamento das vozes das mulheres negras nessa história. Há compêndios e livros
sobre a história das mulheres na América Latina nos quais não há capítulos sequer
falando sobre feminismo negro ou lutas de mulheres negras (DJAMILA RIBEIRO,
2017).
O que as mulheres negras pontuam é como suas posições orientadas para a
intervenção social feminista possa radicalizar a desnaturalização das desigualdades
entre mulheres, da liberdade enquanto um valor, da diversidade das estratégias de
luta e busca por autonomia e emancipação. E tal exercício se faz através da
historicização da realidade, de um olhar atento para as relações de poder,
principalmente, os seus efeitos: silenciamento, estigmatização, deslegitimação,
inferiorização e prescrição de formas de vida, de emergências de sujeitos políticos,
de pensamento, de sociedade.
Por isso, focando na questão do feminismo negro que é o âmago de nosso
debate neste curso, Sueli Carneiro (2003) argumenta sobre a necessidade de
enegrecer o feminismo. Para essa autora, existem reminiscências do período
colonial que permanecem ainda no imaginário social e como certa lógica que rege
as relações institucionais e cotidianas. Assim, antigos problemas ganham com
novas roupagens, novos contornos e funções em uma sociedade que se diz baseada
em processos democráticos, mas na realidade mantém intactas as relações de
gênero segundo a cor ou a raça instituída no período da escravidão (SUELI
CARNEIRO, 2003).
Sueli Carneiro (2003) nos faz ver como as experiências históricas das
mulheres negras, feitas de escravidão, de trabalho duro nos campos e nas ruas, de
miscigenação forçada e violência sexual, as coloca numa perspectiva muito
diferente das mulheres brancas, cujo discurso feminista é muitas vezes
completamente desatualizado. É por isso que, para Sueli Carneiro, é necessário e
urgente "um feminismo negro", abordando questões como violência de gênero,
aborto, dentre outros, mas incluindo nestes temas e questões os efeitos de racismo.
Carneiro nos convida a retomar nossa análise para tentar esclarecer o que, nas
nossas estratégias, está ligada a posições de "raça" e classe, e o que tem o que fazer
com posições políticas "universalizáveis".
Quando nos referimos à concepção de fragilidade das mulheres, que justificou
historicamente sobre elas a proteção paternalista dos homens, a pergunta que
emerge é: de que mulher estamos falando? Afinal, as mulheres negras sempre
fizeram parte de um grupo social que nunca se reconheceu nesta noção de mulher
pelo viés da fragilidade. As mulheres negras nunca foram vistas como frágeis e
sempre trabalharam durante séculos como escravas nas lavouras ou nas ruas,
como vendedoras, quituteiras, prostitutas, etc. Mulheres que não se reconheceram
no discurso das feministas disseram que as mulheres deveriam ganhar as ruas e
trabalhar, por exemplo (SUELI CARNEIRO, 2003).
Por isso, a partir desse ponto de vista, é possível afirmar que um feminismo
negro, construído no contexto de sociedades multirraciais, pluriculturais e racistas
– como são as sociedades latino-americanas – tem como principal eixo articulador
o racismo e seu impacto sobre as relações de gênero, uma vez que ele determina a
própria hierarquia de gênero em nossas sociedades.
Isso significa que enegrecer o movimento feminista latino-americano tem
significado, concretamente, demarcar e instituir na agenda do movimento de
mulheres o peso que a questão racial, a pobreza e os processos coloniais têm na
configuração, por exemplo, das políticas demográficas, na caracterização da
questão da violência contra a mulher pela introdução do conceito de violência
racial como aspecto determinante das formas de violência sofridas por metade da
população feminina do país que não é branca; introduzir a discussão sobre as
doenças étnicas/raciais ou as doenças com maior incidência sobre a população
negra como questões fundamentais na formulação de políticas públicas na área de
saúde; instituir a crítica aos mecanismos de seleção no mercado de trabalho como
a “boa aparência”, que mantém as desigualdades e os privilégios entre as mulheres
brancas e negras.
O feminismo de perspectiva liberal e hegemônico elaborou três conceitos
básicos e, na perspectiva de Luiza Bairros (1995), desafiadores, na medida em que
construiu esses conceitos pensando somente em um grupo específico: concepção
de mulher, conceito de experiência e a idéia de política pessoal. Esses conceitos
foram importantes para demarcar e nomear uma coletividade e suas respectivas
pautas e interpelações, sendo assim fundamentaram o estabelecimento de uma
organização política a partir do ponto de vista das mulheres. Entretanto,
paralelamente sinalizaram para a insuficiência e limites quando utilizados para
nomear e delimitar o que une todas enquanto mulheres.
Nesse sentido, esses conceitos contribuíram para o entendimento do porquê
certos feminismos desconsideram categorizações de raça, de classe social e de
orientação sexual possibilitando, dessa forma discursos e práticas focados para as
percepções e necessidades de mulheres brancas heterossexuais de classes
abastadas (LUIZA BAIRROS, 1995).
A discussão da Luiza Bairros (1995), nos ajuda na compreensão do
feminismo negro para a ampliação das questões clássicas colocadas pelo
feminismo hegemônico. O conceito de Mulher e experiência terminou gerando
prescrições dentro do feminismo a partir de uma idéia de essência da mulher, seja,
pelo viés biológico, com a questão da maternidade ou pelo viés da socialização com
a construção social de gênero, que pautou, muitas vezes, prescrições para as
mulheres.
Aqui cabe destacar a necessidade de demarcar o lugar de construção de
identidade, a necessidade de se estabelecer aquilo que vai ser chamado de uma
política identitária (OCHY CURIEL, 2009, 2007, 2002). Percebe-se um exercício
dessas mulheres de se posicionarem enquanto uma identidade coletiva para dar
conta de enfrentar aquilo que as tem inferiorizado e colocado em desvantagens
dentro das relações cotidianas e institucionais em suas vivências religiosas.
Por isso, a política da identidade ainda se faz necessária para a crítica da
universalidade, do genérico, do monolítico, do etnocentrismo e do heterocentrismo
como legado fundamental da modernidade e da colonização para evocar a
necessidade de compreender os sujeitos sociais desde uma diversidade de
experiências particulares e diversas formas de vida específicas e concretas (OCHY
CURIEL, 2007).
Entretanto, o desafio de uma política da identidade é que por vezes pode
representar um problema para a prática política, pois pode levar a compreensões a
priori e estanques de mulher enquanto categoria única e fixa, caindo, portanto, na
mesma armadilha de universalização de sujeitos do projeto moderno (OCHY
CURIEL, 2002, 2009; CONCEIÇÃO NOGUEIRA, 2017).
Nessa direção, Ochy Curiel (2009, 2007, 2002) faz uma reflexão e análise
dos diversos entendimentos e concepções acerca das identidades, criticando a
política das identidades, em diversos contextos, mais especificamente nos
movimentos feministas, de mulheres negras e lésbicas. A crítica da autora traz dois
aspectos importantes para serem pensados na ação proposta pelas mulheres
negras no contexto da América Latina. A não aceitação de uma perspectiva
essencialista e internalista das identidades, assim como entendimento da
identidade, deve se dar enquanto uma construção social e um processo que nunca
se acaba e em constante elaboração na relação com o outro e com os contextos de
inserção social.
A identificação de outras possibilidades em um terreno ontológico não
essencialista, e não racional parece ser a dimensão mediadora da politização das
relações de desigualdades, por isso não parece ser possível determinar de antemão
os sujeitos políticos e o desenvolvimento da própria luta e formas dos movimentos
de resistências.
Na inexistência de uma essencialidade das sujeitas políticas do feminismo,
essa perspectiva de se posicionar e agir parte da compreensão de que há uma
pluralidade de espaços políticos e que esses não se remetem a nenhuma base
unitária última. Assim, apontam para a necessidade de superação dos
essencialismos, bem como da dispersão de posições de sujeita suturadas, o que faz
também pressupormos a noção de totalidade social. Ambas saídas impedem
conceber a construção de articulações contingentes e contra hegemônicas.
A emergência da sujeita política do feminismo negro contribuiu e contribui
para o descentramento ideia do sujeito fixo, unitário (heterossexual, masculino,
branco, de classes abastadas) do discurso eurocêntrico, e também a versão
masculinista do “negro” como cor política, ao mesmo tempo em interpela e
tensiona contundentemente qualquer concepção de “mulher” como categoria
unitária e universal (AUDRE LORDE, 2012.).
Isso quer dizer que, embora o feminismo negro foi elaborado em torno das
questões referentes a raça e ao gênero, ele desafia performativamente fronteiras de
sua constituição, interpelando de dentro e de fora do próprio feminismo. Assim é
importante notar que, ao pensar a interseccionalidade, as mulheres negras não
estão restritas somente ao discurso e prática de uma luta meramente identitária,
mas diz de um novo modelo de sociedade possível e, nesse sentido, a mulher negra
ao passar a falar de si podem contribuir através de sua perspectiva com a teoria
feminista, por oferecer novas possibilidades de enfrentamento e ações políticas.
Por descentrar uma visão antes branco-centrada, mas tida como universal
(DJAMILA RIBEIRO, 2016).

Palavras Finais

O desafio ético e político, portanto deveria ser o reconhecimento das


experiências teóricas e políticas das mulheres diversas inseridas em seus contextos
diversos (mulheres negras, lésbicas, indígenas, cristãs, evangélicas, mulheres
trans, dentre outras), como parte do acervo e de uma genealogia feminista, porque
só desta forma, pode existir um feminismo transnacional e plural baseado na
solidariedade de muitas feministas e grupos de mulheres que partilham os mesmos
projetos de emancipação política (OCHY CURIEL, 2009). Contudo, um cuidado
fundamental nessa tarefa é não cair no essencialismo da diferença. Reconhecer a
diversidade é um movimento importante na construção de um mundo menos
autoritário e para tanto, é importante radicalizar um dos princípios do feminismo,
presente desde os anos 1960/1970, que se refere ao reconhecimento do lugar de
fala dos sujeitos envolvidos nos diversos espaços e processos de intervenção e
busca de transformação social.
Ao mesmo tempo em que essa expansão representa uma entrada mais
expressiva de um discurso feminista em diversas instituições, como nas
instituições religiosas evangélicas. Nas disputas sobre a legitimidade de um
“sujeito” feminista, um sujeito político o entrecruzamento dos marcadores sociais
gênero/raça/religião configuram as mulheres negras evangélicas, por exemplo,
como sujeitos inaudíveis. Esse silenciamento sistemático faz parte de um
pensamento estrutural e estruturante que se reflete na forma cristalizada e
estereotipada de concepção sobre as mulheres negras que ainda encontra desafios
para serem reconhecidas como sujeitas de direito e políticas.
O fato de acreditar e compartilhar profundamente no ideário feminista, não
garante por si só muita coisa. Faz-se necessário uma reflexão constante dos
conceitos pelos quais tais perspectivas operam no mundo. Assim, a gramática
utilizada pelo feminismo negro da AL para descrever as coisas, as práticas que
adotam cotidianamente, as relações mais miúdas que envolvem as dimensões
éticas, humanas e solidárias, passaram a fazer parte de suas rotinas cotidianas.
Parece-nos que se colocar como “feminista” não é algo que pode ser localizado na
delimitação de fronteiras, nos corpos ou nas superfícies corporais impostas como
“naturais” – como acreditam algumas perspectivas do feminismo e algumas
ativistas feministas –, mas sim no embaralhamento das fronteiras e nas
performances dissonantes, que buscam inscrever outros atos corporais/discursivos
e formas de significar e atuar no mundo.
Diante do exposto, o feminismo negro na AL coloca para o debate dentro do
próprio campo do feminismo o fato de que as perspectivas, abordagens e
posicionamentos feministas deveriam ser mais frequentemente percebidos como
aquilo que o feminismo elencou como cerne de suas lutas e enfrentamentos
(denunciar o patriarcado, o sistema sexo-gênero, o sujeito universal masculino,
dentre outros), e menos como uma prescrição e gramática normativa sobre as
sujeitas, condições e lugares sociais, de onde seria (im)possível a emergência de
sujeitas políticas do feminismo e/ou construção de movimentos de resistências e
autonomia.
As teorias e ações feministas branco-centradas, mas que se pretendem
universais, por mais que possuam uma posição política de emancipação, na ação,
não realizam seu objetivo, pois negam as especificidades de outras mulheres,
representando assim somente mulheres em situações de algum privilégio social e,
portanto reproduzindo os processos de hierarquia, exclusão e desigualdades entre
mulheres. Agir dessa forma prescritiva tem gerado a negação, a determinadas
mulheres, como as negras e indígenas, o direito e possibilidade de emergirem
como sujeitas do feminismo hegemônico, invisibilizando e deslegitimando sua
capacidade de ação e construção de autonomias e movimentos de resistência.
Assim, a perspectiva do feminismo negro na América Latina resisti e denuncia uma
noção exageradamente abstrata ou metaforizada de concepções acerca da sujeita
política do feminismo e de suas concepções de movimentos de resistências,
emancipação e luta contribuindo assim, de maneira singular para a desconstrução
das políticas hegemônicas de gestão de corpos e desejos.

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