Você está na página 1de 156

Pontifícia Universidade Católica- PUC

Programa de Pós Graduação em História

Maria Aparecida de Oliveira Lopes

Beleza e ascensão social na imprensa negra paulistana, 1920-1940

Mestrado em História Social


São Paulo, 2002

1
Pontifícia Universidade Católica- PUC
Programa de Pós Graduação em História

Maria Aparecida de Oliveira Lopes

Beleza e ascensão social na imprensa negra paulistana, 1920-1940

Dissertação apresentada à Banca Examinadora como exigência


parcial para a obtenção de titulo de MESTRE em História Social
pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, sob a
orientação da professora Doutora Denise Bernuzzi Sant’Anna

2
Sumário

Introdução..................................................................................................................................................4

CAPÍTULO I – Imagens da beleza negra..............................................................................................20

1.1- A indústria da beleza e da propaganda...........................................................................................20

1.2 - Uma leitura preliminar das fontes..................................................................................................23

1.3 - Os mitos e a África .........................................................................................................................31

1.4 - O “herói burlesco”...........................................................................................................................36


1.5 - O corpo negro: cabelo e pele...........................................................................................................49

1.6 - A exclusão do embelezamento negro..............................................................................................64

CAPÍTULO II – Idealizações do corpo negro.......................................................................................86

2.1 - Os freqüentadores da “Bricabraque” e/ou “Braço Aberto”......................................................101

CAPÍTULO III – Espaços de visibilidade da beleza negra................................................................107

3.1 - A criação dos concursos de beleza negra................................................................................... 107

3.2 - Festas e danças................................................................................................................................135

3
INTRODUÇÃO

Analisar as trajetórias históricas do embelezamento negro a partir da imprensa negra, entre 1920
e 1940, é certamente penetrar em um universo pouco explorado. É menos explorado ainda quando se
trata de questionar os produtos e os métodos empregados para o embelezamento da mulher negra. Esta
pesquisa está centrada nas análises sobre as representações e práticas do embelezamento negro e suas
relações com os objetos de ascensão social.
Após os primeiros contatos com a bibliografia sobre a problemática do negro na sociedade
brasileira, fomos nos interessando por alguns enfoques e abrindo novas possibilidades de pesquisa, mas
sempre com a intenção de encontrar aspectos da história do negro no século XX e de escrever uma
história afirmativa sobre o grupo. Por isso, ao passarmos os olhos por alguns estudos da escravidão
tínhamos consciência que não era aquele universo, especificamente, ao qual queríamos nos reportar, pois
era constrangedor ter presente conosco aquela situação de inferioridade e de martírio sofrido pela
comunidade negra. Foi esta dificuldade, definitivamente, a responsável pela desistência da rápida leitura
que realizávamos da imprensa - (O Estado de São Paulo) -, durante a primeira metade do século XX:
cansamos de encontrar a figura negra nas páginas policiais (nas poucas vezes em que registrávamos a sua
presença).
Voltando à reflexão do período escravocrata, sem querer minimizar o martírio sofrido pelos
escravos, acreditamos ter desistido de construir uma interpretação daquele universo também em função
do peso da evidência histórica, segundo a qual os senhores conseguiam via de regra dominar os escravos.
Contudo, ao relermos o artigo "Blowi'n in the Wind: E. P. Thompson e a experiência negra no Brasil",
reavaliamos este pensamento ao concordar com Silvia Lara sobre a seguinte idéia:

Uma relação de dominação e exploração que, de modo contraditório, unia


horizontalmente e separava verticalmente homens e mulheres como senhores e escravos
e, que, através de suas práticas cotidianas, costumes, lutas, resistências, acomodações e
solidariedades, de seus modos de ver, viver, pensar e agir, construíram isso que, no fim
das contas, chamamos de "escravidão", de escravismo. Selecionar unicamente a vontade
de alguns agentes ou privilegiar apenas necessidades e razões econômicas para análise

4
desta relação, constituem procedimentos capazes de produzir somente uma versão
(transformada em explicação) deste processo 1."

Tais reflexões, a priori, nos estimularam a prosseguir na leitura sobre o tema e nos auxiliaram no
uso de critérios avaliativos da bibliografia relativa ao tema.
O trecho do pensamento de Lara direcionou o nosso olhar, num segundo momento, para as ações
de resistência praticadas pelos escravos freqüentemente incluídos no mundo dos dominados. Depois, nos
estimulou a desenvolver a análise sobre a experiência dos indivíduos da época do pós-abolição, quando
já havíamos selecionado os agentes ocultos citados na reflexão da historiadora, tencionando interpretar a
experiência desses agentes de uma perspectiva mais complexa e rica, inserida no mundo das relações
sociais. Agora, a partir do estudo dos periódicos, analisamos representações dos negros do século XX na
sociedade paulistana. E, nas relações entre negros e brancos, vamos percebendo que seus confrontos de
maneira nenhuma se estabeleciam a partir da separação entre de dois grupos de pigmentação diferente.
Ou seja, dentro da própria comunidade negra as disputas e diferenças de pensamento também reinaram,
chegando a impossibilitar as concretizações de projetos e ideais propostos para uma coletividade. Pois,
as discussões étnicas estiveram intimamente relacionadas às questões sociais, em particular àquelas da
divisão de classe.
Enquanto analisava os jornais e a literatura acadêmica e dos movimentos sociais sobre a
população negra na primeira metade do século XX não deixei de pensar sobre as questões do corpo
negro na bibliografia sobre a escravidão, ao interpretar as primeiras referencias bibliofráficas desta
pesquisa. Segundo Fernandes, no universo da escravidão o escravo não deveria usar calçado, chapéu, e
certas roupas sem o consentimento do senhor. Os escravos transitavam pelas ruas paulistanas de calça,
camisa de algodão, pés nus e de cabeça descoberta, pois se tornou comum em São Paulo a proibição de
roupas finas e do porte de arma pelos escravos (um documento de 1720 proibia taxativamente o uso de
roupas de seda e de outros vestuários iguais aos dos brancos). Em dias festivos, apenas certos escravos
(como pagem, que acompanhava a família à Igreja) vestiam-se de modo cerimonioso (no caso, se
apresentava calçado e todo fardado). A intenção era marcar através da indumentária a posição dos negros
na sociedade, "porque assim perderiam os brios e entenderiam que nasceram para escravos dos brancos".
Sobre as mulheres o viajante Kidder, citado pelo sociólogo, asseverava que as senhoras caprichavam em

1
LARA, Silvia Hunold. "Blowin' in the Wind: E.P. Thompson e a experiência negra no Brasil". Projeto História, São Paulo,
PUC/SP, n. 12, outubro/1995. O objetivo da historiadora foi estabelecer paralelos entre as interpretações históricas de
Thompson e a historiografia da experiência negra no Brasil, sobretudo dentro das considerações já citadas no texto. Acredita
que os estudos da experiência negra devem se basear na proposta da análise thompsoniana. Ela conclui que a aproximação da
historiografia escrava com o pensamento thompsoniano é de ordem teórica, política e não temática.

5
bem vestir suas escravas, sobretudo as escravas de maior laço afetivo, que pelos salões e pelas ruas
faziam refulgir o ouro e a pedraria dos seus donos, "em curioso contraste com a pele negra das
domésticas, efêmeras e humildes representantes da abastança da família" 2. A escravaria era sinônimo de
poder: os corpos e a ornamentação.
Assinalou Dornas Filho, discordando do viajante Kidder, como fez Fernandes, que, nos tempos
colôniais, “pela Carta Régia de 3 de setembro de 1709 e pelo bando de 1740”, as negras “não podiam
usar vestidos de prata e ouro, tecidos de lã, holandesas, esguiões, jóias e etc”. Tal falta era punida com
“açoites e degredo para São Tomé”. Contou que um ladrão, inclusive, roubou as jóias postas para São
Benedito “sob o pretexto de que negro não podia ter luxo”3.
Nesta direção, Bastide assinalou que a tentativa de marcar distâncias entre negros e brancos
nunca chegou a ponto de impedir, às vezes, uma certa indisciplina que perturbava as regras de polidez,
que aproximava as classes e que fazia com que negros tivessem muito mais respeito por seus próprios
chefes, seus anciãos, seus feiticeiros, do que por seus próprios patrões brancos. Em sua visão, o negro
começou a se dedicar a destruir “a institucionalização da linha de cor” a partir desta data, que foi quando
o vestuário conquistou importância para o negro, sendo mais característico dele o “complexo do sapato”.
Finalizando o artigo, com um dado de Gilberto Freyre (Casa grande & senzala), e relacionando o
“complexo do sapato” à religião, o francês escreveu que os negros tiravam seus calçados antes de
entrarem em uma igreja e que Freyre via este ato como “um resto da influência islâmica”. E, embora o
negro tenha abolido “uma etiqueta que lhe recordava uma antiga condição inferior”, interessa notar que
“conservou, em compensação, o gosto dos refinamentos nos sinais de respeito”4
Sublinhou o estudioso Pierson que o mulato, por aproximar-se mais do que o preto das
características dos europeus, teve mais facilidade em apropriar-se de certos símbolos de status – o sapato
pequeno e a botina, por exemplo, cujo uso, no Brasil colonial e império, era índice importante de posição
social. A sociedade brasileira assustava-se com pés grandiosos: “pés pequenos, especialmente entre as
mulheres, eram e são ainda tidos como elegantes. O autor nos alertou que é preciso “não negligenciar o
papel do sexo e do amor romântico na ascensão social do mulato”, pois “a atração sexual que o mulato
exercia sôbre moças de famílias ricas e influentes levou às vezes à fuga, ou ocasionalmente, mas com
freqüência cada vez maior, a casamentos com assentimento dos pais”. E, de maneira semelhante, as
mulheres mulatas se beneficiaram do mito da potência sexual dos “híbridos” e da elevada mortalidade

2
BASTIDE, Roger & FERNANDES, Florestan. Brancos e negros em São Paulo. Op. Cit., pp. 105.
3
FILHO, João Dornas. “A influência Social do Negro Brasileiro”. São Paulo: Revista do Arquivo Municipal, ano V, vol. LI,
outubro de 1938, pp. 117.
4
BASTIDE, Roger. “Estudos Afro-brasileiros – O cerimonial da polidez”. In: Revista do Arquivo Municipal, ano X, vol.
XCVIII, 1944 (setembro-outubro), pp. 93-95.
6
das mulheres brancas (principalmente durante o século XIX). Fatores que as levavam a contrair
casamentos sucessivos com “velhos patriarcas que procuravam um estimulo sexual”. Eram cada vez
mais freqüentes casos de casamentos de brancos já idosos de famílias ilustres, com mulatas quadrarunas
e octorunas bonitas, vestindo-se com geito de brancas” 5.
Pierson ainda enfatizou que o “mulato” apesar de ter alcançado consideração social e de ter
gozado de certas vantagens da classe superior, era “muito sensível à sua origem e ao fato de trazer
consigo, inevitàvelmente, em suas características físicas, a marca de um status inferior. Exemplificando,
disse que Gonçalves Dias foi a vida inteira um inadaptado tristonho. Uma ferida sempre sangrando,
embora escondida pelo croisé de doutor. Por isso “o mulato fez-se então notar pelo uso extravagante de
perfumes, o que parece ter sido um excesso de compensação para o cheiro corporal (o assim chamado
catinga ou budum) que se diz ser característico dos africanos”6.
Schwarcz, interpretando as representações do negro nos anúncios dos jornais, A Província de São
Paulo” e o Correio Paulistano, acrescentou, inclusive, uma distinção entre as formas de indumentária
desfrutadas pelos escravos domésticos e agrícolas. A pesquisadora escreveu que ficava evidente o bom
trato recebido pelos escravos domésticos, uma vez que vários anúncios destacavam como sinal para uma
possível apreensão os belos e ás vezes elegantes trajes dos cativos, que “fugiam com roupas alinhadas,
relógios ou mesmo guarda-chuvas de alpaca com cabo de marfim”. Já nos anúncios dos escravos
agrícolas, não delimitavam com precisão a idade, o cabelo, a altura ou a cor da pele, pois os
proprietários, às vezes possuíam centenas de cativos, pouco conviviam com eles. Reiterava-se nesses
anúncios os defeitos físicos dos escravos.
Por meio dos anúncios de compra e venda de escravos para serviços domésticos, Gilberto Freyre
percebeu, na coleção de 1825, 30, 35, 40, 50, do Diário de Pernambuco, a “preferência pelos negros e
negras altas e de formas atraentes – bonitas de cara e de corpo e com todos os dentes da frente”. O que
mostrava ter havido “seleção eugênica e estética de pajens, mucamas e mulecas para o serviço domestico
das casas-grandes”. De acordo com o escritor, havia uma preferência pelo povo sudanês para os serviços
de contato com brancos. “O sudanês é um dos povos mais altos do mundo. No Senegal vêem negros tão
altos que parecem estar andando de pernas de pau. São “magricelas, dentuços, angulosos, hierárticos”.

5
PIERSON, Donald. “A ascensão social do mulato brasileiro”. IN: Revista do Arquivo Municipal, ano VIII, Vol. LXXXVII,
1942, pp. 118.
6

O sociólogo acrescentou “que para convencer a si mesmo e aos outros de sua identidade com o estrato superior, o mulato
desenvolveu o arianismo enfático, tornando-se, como Machado de Assiz ou Olavo Bilac, cúmplice do branco contra o preto”.
PIERSON, Donald. “A ascensção social do mulato brasileiro”. Op. Cit., pp. 118. Há quem afirme que para abstrair as críticas
de Machado de Assis à discriminação contra o negro, torna-se necessário ler nas entrelinhas suas obras, seus trechos
referentes ao assunto.
7
No sul da África é que se encontra gente baixa e redonda. “Mulheres culatronas. Redondezas
afrodisíacas do corpo. Hotentotes e broximanes verdadeiramente grotescos com as suas nádegas
salientes7”
Por vezes Schwarcz encontrou, nos anúncios, descrições que pouco auxiliavam na captura do
escravo que se evadira, antes evidenciavam a forma como o senhor branco representava o escravo.
Alguns atributos remetiam “a dimensão simbólica do material”, isto é, não se referiam diretamente ao
objetivo do anúncio, tais como: “pernóstico, moldes humildes e insinuantes, muito amigo do copo, muito
influído a dançar samba”. Essas descrições negativas, no entanto, eram ocultadas quando a intenção era
comercializar a “peça humana”. Nos classificados de venda “as peças exibidas eram comumente
valorizadas como robustas, fortes, sadias, inteligentes e boas para qualquer serviço” 8.
Nas diferentes seções dos jornais era freqüente a descrição do negro como “alienado, bêbado e
imoral”: atributos que remetiam às explicações dos “editoriais científicos”, escritos por autores
influenciados pelas “teorias darwinistas e positivistas e pelas máximas da antropologia criminal, que
insistiam em analisar o caráter hereditário das taras e degenerações”. A Redempção (1887- jornal ligado
a um grupo de caifazes e a Antonio Bento), em alguns momentos, introjetando as idéias da época sobre o
negro, “afirmava que a raça preta desaparecia porque abusando da liberdade entregava-se ao vício da
embriaguês9”.
A contenda em torno do uso dos sapatos foi explorada pela historiadora Wissembach. Para ela, de
imediato, a condição de homem livre dos negros seria concretizada na realização dos desejos aos quais
haviam sido impedidos como escravos. Utilizou para ilustrar esse aspecto uma história descrita pelo
viajante Le Graffe, que durante a conversa com uma ex-escrava, numa casa de poucos objetos, notou a
presença de um magnífico par de sapatos, de um calibre sólido, mas de uma feitura evidentemente
antiga, que se colocava bem em evidência sobre uma espécie de credência no salão. Neste sentido, “a
razão daquela estranha exibição” entrelaçava-se às histórias que os libertos contaram para o viajante.
Nos comentários do francês após o decreto da libertação, homens e mulheres afluíram das fazendas e dos
sítios em direção às cidades próximas, e os negros que guardaram “pequenas economias” tiveram como
primeiro ato correr ás lojas de calçados, na intenção de se “equiparar aos seus senhores de ontem usando
como eles botas e bodequins”. Para Le Graffe,

7
FREYRE, Gilberto de Mello. Casa-grande & senzala. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1987, pp. 314-317.
8
SCHWARCZ, Lilia Moritz. Retrato em branco e negro – Jornais, escravos e cidadãos em São Paulo no final do século XIX.
São Paulo: Companhia das Letras, 1987, pp. 135-188.
9
SCHWARCZ, Lilia Moritz. Op. Cit., pp. 135-188
8
o primeiro gesto da liberdade foi aprisionar os pés nas formas escolhidas e por
conseqüência”, menos adaptadas: porque os bons pés dos negros, poucos acostumados a
estarem estreitados, protestaram com estardalhaço (...). Negros e negras, em todas as
cidades para as quais se dirigiram, passavam felizes e orgulhosos, com uma postura
altiva, descalços, mas todos levando um par de sapatos por vezes à mão, como um porta
jóias valioso, ou por vezes a tiracolo, como as bolsas vacilantes da última moda
mundana10.

Após a emancipação a liberdade era um dom a ser orgulhosamente exibido e depois vivenciado.
A mesma exibição foi encontrada por Pierre Verger entre os relatos de forros da Bahia, só que estes, além
de se calçarem como seus ex-senhores, traziam consigo guarda-chuvas, signos de dignidade social
africana, e também no sul do país, em Desterro, Santa Catarina, os jornais comentavam, ironicamente é
claro, comportamentos similares dos ex-escravos nas comemorações que se seguiram ao Treze de
Maio11.
Cunha, citando o viajante Koster detalhou um pouco mais essa exploração em torno do corpo do
escravo. O escravo, possivelmente o rural, “recebia duas camisas e dois pares de calções por ano, e
geralmente dois chapéus de palha, uma esteira para dormir, uma peça de baeta para se cobrir de noite.
Tinha sua choça que devia mobiliar. Enfim, recebia comida 12: carne seca ou peixe e farinha de
mandioca”. Ganhava tudo isso “em troca de trabalho ou de punições”. Crueldade para o viajante Koster
ia, além disso.
Na primeira metade do século XX não encontramos lei que proibisse o negro de vestir-se igual ao
branco, entretanto, a sociedade paulistana continuava achincalhando os negros que ousavam desfrutar
dos objetos espalhados pelo mercado da indumentária corporal, e, permanecia reforçando e criando
estéreotipos físicos negativos do negro. Os achincalhamentos aos corpos negros aconteceram nos
espaços públicos, sobretudo no centro da cidade, dentro dos locais de trabalho, nos institutos
embelezadores da sociedade mais ampla, nas festas, enfim, no cotidiano, onde negros, brancos e
mestiços se relacionavam. Os salões de embelezamento da sociedade branca não atendiam negros de
qualquer posição social. Neste quadro conflituoso os negros procuravam assegurar um espaço no
10
WISSEMBACH, Maria Cristina. Ritos de magia e sobrevivência. Sociabilidades e práticas mágico-religiosas no Brasil
(1890-1940). Tese de Doutoramento em História, FFLCH-USP, 1997, pp. 24..
11
WISSEMBACH, Maria Cristina. Op. Cit., pp. 24..
12
Gilberto Freyre, interpretando as relações entre negros e brancos de forma harmoniosa, fomentou que o escravo negro no
Brasil, “mesmo com todas as deficiências do seu regime alimentar”, foi “o elemento melhor nutrido em nossa sociedade
patriarcal”. Explicou que os descendentes dos negros da senzala e da casa grande conservaram bons hábitos alimentares.
Além do mais, muitas das “melhores expressões de vigor ou de beleza física” no Brasil tinham ascendência africana. Entre os
bem dotados corporalmente incorporou as “mulatas, as baianas, os crioulos, as quadrarunas, as oitavanas, os cabras de
engenho, os fuzileiros navais, os capoeiras, os capangas, os atletas e os estivadores”. Em sua visão, da “população média,
livre mas miserável, provinham muitos dos piores elementos”. Sobre essa população “débil e incapaz”, principalmente, agia,
“aproveitando-se da sua fraqueza de gente mal-alimentada, a anemia palúdica, o beribéri, as verminoses, a sífilis, a bouba”.
FREYRE, Gilberto de Mello. Casa-grande & senzala. Op. Cit., pp. 34-44.
9
mercado de produção dos objetos de ornamentação corporal, para que novamente pudessem fugir da
mais baixa posição marcada pela indumentária, bem como buscavam criar seus próprios institutos de
beleza e suas oficinas de costura. É certo também que outros militantes preferiam canalizar a luta para
outras situações por entender que a querela corporal era supérflua frente às demais situações conflitantes
e emergentes. Ao mesmo tempo encontramos discursos profundos que relacionam as representações e
práticas corporais às dimensões sociais.
Neste processo, as questões que mais nos estimularam a desenvolver esta pesquisa afluíram
durante a leitura do texto de Jeferson Bacelar, "A Frente Negra Brasileira na Bahia" 13; em que o autor
estabelece comparações entre a Frente Negra paulista e baiana, constatando aproximações nas ações e
distanciamentos no que concerne à peculiaridades históricas, quadro social e alcance de suas propostas.
Depois de um estudo bibliográfico e de fontes chamou atenção como os jornais - escritos por
militantes negros e dirigidos à comunidade na tentativa de conquistar uma maior valorização para a
mesma - estavam influenciados pela cultura, idéias e valores da sociedade branca.
Através da problemática proposta na Iniciação Científica construímos o projeto que deu origem a
esta dissertação, visando, diante da leitura dos jornais editados por negros na cidade de São Paulo (de
1920 a 1940), analisar aspectos da idealização do embelezamento negro na visão do Clarim d’Alvorada,
do Progresso e d A Voz da Raça. O que nos permite discutir modelos e vias de ascensão social, valores,
traços "raciais" e culturais que deveriam ser assimilados pela comunidade negra paulistana emitidos,
principalmente, pelos jornais alternativos. A meta seguinte foi perceber diferenciações entre os jornais a
partir das idealizações do corpo negro
Torna-se difícil definir o que seria um corpo, entretanto, Georges Vigarello respondeu que um
corpo é um objeto múltiplo, que pode representar dimensões bastante diferentes da vida, tais como a
sensibilidade, a expressão ou mesmo a verdadeira mecânica ligada ao trabalho. O corpo é uma
experiência inabarcável e não é um objeto homogêneo. É importante estudá-lo, pois por meio dele
sabemos como o mundo é construído e pode revelar uma profundidade social inimaginável. “É um
arquivo vivo que revela e esconde”14.

13
BACELAR, Jeferson. “A Frente Negra Brasileira na Bahia”. Afro-Ásia, Salvador, Centro de Estudos Afro-Orientais/UFBA,
n° 17, 1996. A Frente Negra Brasileira, com sede em São Paulo e em outros Estados, foi uma associação anti-racista criada
em 16 de setembro de 1931. Diferenciava-se dos movimentos anteriores por seu teor político (teve candidato na eleição de
1936). Sua meta era a ascensão social do negro e para tanto, através do seu jornal oficial A Voz da Raça (1933 - 1937),
estimulava seu povo a trabalhar, ter casa própria e progredir. Acreditava que o negro se igualaria ao branco ainda pela
educação.
14
Entrevista com Georges Vigarello realizada por Denise Sant’Anna. “O corpo inscrito na história – Imagens de um arquivo
vivo”. In: Projeto História, São Paulo: PUC/SP, n.º 21, novembro de 2000, pp. 224.

10
O Clarim d'Alvorada, o Progresso e A Voz da Raça anunciavam, principalmente, informações
referentes as atividades dos movimentos negros: as festas, o carnaval, o esporte; os concursos de beleza
infantil, masculino, feminino; os eventos promovidos pelas associações, as dívidas e despesas dos jornais
e das associações, os choques entre militantes e seus projetos; nascimentos, aniversários, mortes,
formaturas, casamentos, vícios; a educação formal, a educação informal, o trabalho, as políticas
governamentais; as ações dos militantes de outros países, dos Estados Unidos, da África; os mitos, o
preconceito, a discriminação, a escravidão, a mulher, a religião, etc.
Nesta dissertação, o enfoque dado ao movimento negro se desvincula daquele projeto idealizador
da construção de uma história das manifestações negras. O estudo objetiva analisar a relação que o negro
estabelecia com a sociedade através da escolha de um tipo de padrão de beleza. É a partir da adesão a
certos modelos de cuidados com o corpo, em particular, com o embelezamento e com a ornamentação,
que vamos delineando a resistência, a acomodação, a ascensão ou a adaptação do negro frente às
barreiras e as exigências da sociedade. A forma como cada indivíduo se produzia contribuía para recriar
a imagem que o outro (branco ou negro) construía sobre a etnia e a cultura negra.
Dentro dos recortes informativos corporais na imprensa negra teremos uma versão que
veementemente anunciava a transformação do corpo negro, acreditando no branqueamento através do
uso dos produtos fabricados para tal fim. Todavia, os produtos divulgados foram fabricados tanto por
negros quanto por brancos15. Logo, outros sujeitos não negros também colaboraram na escolha dos
modelos de beleza "apropriados" para os negros. Ou seja, a valorização de determinados padrões de
beleza ligados ao ideal de branqueamento e suas conseqüências envolveu um conjunto social
diversificado. Além disso, ter uma aparência bela nem sempre dependia exclusivamente do
branqueamento do corpo. Tal como era moda para as moças brancas da sociedade paulistana, para as
negras, ser bela incluía o uso de roupas e ornamentos considerados adequados aos estilos em voga,
especialmente o francês e o inglês. Já a versão da resistência, que se contrapunha ao branqueamento, por
entender que o corpo negro deveria rememorar e afirmar os traços africanos, divulgou técnicas e
tratamentos corporais menos contribuidores da transformação dos traços ancestrais, estimulando os
15
Vejamos esta idéia nas próprias palavras do militante José Correia Leite: “o sujeito que descobriu o pente de alisar era um
alemão. Eu conheci até. Ele entrou em contato com O Clarim d'Alvorada. Por ser um jornal de negro, ele procurou fazer um
anúncio do seu pente. Antes disso os cabelos eram alisados com tampa de espiriteira ou outros acessórios. Até que começaram
a aparecer os inventos norte-americanos. Lá havia uma preocupação muito grande de alisar cabelo, branquear. Os americanos
descobriram uma pasta que acabou com o uso do ferro. Depois com a luta pelos direitos civis, acabou a idéia de alisamento de
cabelo e apareceram os black-power's, um movimento muito importante porque o negro passou a usar o seu cabelo próprio.
No Brasil começaram a imitar sem saber o significado daquele tipo de cabelo. Era a marca de uma revolta, de um sentido do
Poder Negro. Então o negro que usava o cabelo black-power estava mostrando pertencer a um grupo contrário às idéias
pacíficas do Luther King”. Cf. CUTI. E disse o velho militante José Correia Leite. São Paulo, Secretaria Municipal da
Cultura, 1992, pp. 214.

11
leitores a ter em mente os princípios básicos de preservação física, fazendo referência apenas à higiene,
ao tratamento dentário, etc. De vez em quando encontraremos as duas versões de embelezamento
presentes num mesmo texto, anúncio, poesia ou crônica. Será por meio das críticas às práticas e as
representações de uma versão de embelezamento à outra, ou de um eloqüente discurso em torno de um
único padrão de beleza, que captaremos os limites e as infinidades de cuidados com o corpo negro, bem
como conheceremos os principais pontos de consonâncias e dissonâncias entre as duas versões de
embelezamento.
Como assinalou Chartier as representações construídas do mundo social, embora aspirem a
universalidade são sempre determinadas pelos interesses de um grupo que as forjam. Por isso “o
necessário relacionamento dos discursos proferidos com a posição de quem os utiliza”. A representação é
a construção de uma rede de relações e as percepções do social não são discursos neutros: produzem
estratégias e práticas que tendem a legitimar determinado projeto. Ao utilizar os impressos como fonte
primária de investigação, o historiador deve levar em consideração a rede de relações nas quais vivem os
atores sociais – as redes de solidariedade e/ou antagonismo, enfim, as inter-relações entre os atores, o
texto e o contexto; as lutas de representações têm tanta importância quanto as lutas econômicas para a
compreensão dos mecanismos pelos quais um grupo impõe, ou tenta impor, sua concepção do mundo
social, seus valores e seu domínio16.
Após avaliarmos alguns textos da imprensa referente às idealizações do corpo, em particular, da
beleza física, observamos que, próximo do desejo de obter uma aparência aprazível para si, os negros
cuidavam e divulgavam a "boa apresentação" em vista das várias críticas recebidas, excessivamente
depreciativas, por vezes expressas em tom de xingamento. Tal prática depreciadora não surgiu
especificamente naquele momento histórico e nem sempre se dirigiu aos corpos dos sujeitos em questão.
Contudo, como na época pesquisada foram eles (os negros) os achincalhados, pretendemos aprofundar a
problemática dos significados do xingamento por meio de análise cuidadosa do período selecionado para
que seja possível obtermos, pelo menos, uma noção sobre o sentido das palavras depreciativas e de seus
usos. Nesta trama, os três jornais alternativos concluíram que se a comunidade negra se excluísse das
ridicularizações físicas, se adotasse o padrão de beleza da época, poderia igualar-se corporalmente aos
brancos. Nesta etapa final os negros alcançariam o posto do que era ser belo na época, bem como
garantiriam para si uma integração maior dentro da sociedade paulistana.
Surgem, então, algumas indagações. Por ordem de importância, a principal indagação elaborada é
a seguinte: como foi possível a sociedade mais ampla vincular a aparência do negro aos valores
16
CHARTIER, Roger. A história cultural, Lisboa: Difel. 1990, pp. 17, 180.

12
historicamente considerados refratários à civilidade contemporânea? Ou seja, como foi possível construir
historicamente o vínculo entre a aparência do negro e a sujeira, entre a aparência do negro e a selvageria
e a tudo que é negativo? Certamente as respostas a estas questões dependem de acontecimentos
históricos que ultrapassam os limites dos objetivos desta pesquisa. As associações entre o negro e a
sujeira, por exemplo, não são específicas desta época e nem foram criadas com a imprensa negra. No
entanto, é nela, durante a década estudada, que os vínculos entre o negro e os valores depreciativos
ganham um novo vigor.
Ficou visível na divulgação dos valores na imprensa negra, a tentativa da sociedade mais ampla
de afirmar a antiga tendência de desumanizar corporalmente a figura negra perdesse seus direitos sociais
e espaços de apresentação e ação na cidade. Neste processo de extrema complexidade e preconceitos,
surgiram dúvidas gerais e secundárias pensadas da seguinte maneira: o respeito à diferença corporal
inexistia nesta sociedade? O discurso da integração concedida ao negro seria um simulacro? Mesmo
transformando-se, o negro continuaria representando o outro, a imagem distorcida? Aqueles que
aderiram ao modelo branco de beleza se identificavam com os valores da cultura negra? Estiveram
desvinculados de uma luta em prol da comunidade negra, pelos direitos sociais e contra o preconceito e a
discriminação? Construíram relevantes estratégias de reivindicação?
O pensamento inverso também foi analisado, a partir de questões como estas: os sujeitos
incluídos na perspectiva da resistência ao padrão de beleza predominante se encontravam identificados
com os valores da cultura negra? Estiveram vinculados às lutas em prol dos direitos sociais? Construíram
relevantes estratégias de reivindicação?
A temática contemplou pesquisas da população negra sob diversos focos durante a primeira
metade do século XX: psicológico, econômico, cultural, trabalhista, jornalístico. Entre os autores,
destacamos, primeiramente, Florestan Fernandes que, em seu livro O negro no mundo dos brancos,
contou um pouco sobre as dificuldades vivenciadas pelos negros na primeira metade do século XX,
assim como a ação dos líderes negros, "mais esclarecidos e bem informados":

Assim realizaram campanhas para a reabilitação da mãe solteira, grave problema porque
aumentava o número de menores desamparados e dificultava o casamento ou a
constituição da família; para o incentivo da responsabilidade do pai na educação dos
filhos e na manutenção do lar; para o abandono dos porões e dos cortiços e a aquisição
da casa própria; para a valorização da aprendizagem e das profissões acessíveis aos
negros, para a valorização mais vigorosa e consciente nas atividades políticas (...) 17

17
FERNANDES, Florestan. O negro no mundo dos brancos. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1972, pp. 37-97. Este
livro começou a ser escrito em 1942 e só foi concluído em 1963. Visou estudar as relações raciais numa sociedade
considerada pelo autor como tipicamente brasileira, com a predominância do que é tradicional e do que é moderno.
13
No período, de acordo com o autor, e com a percepção dos escritores negros, boa parte da
população negra e mestiça submergiu “numa dolorosa era de miséria coletiva, de degradação moral e de
vida social desorganizada. O abandono do menor, do doente e do velho, a mãe solteira, o alcoolismo, a
vadiagem, a prostituição, a criminalidade ocasional ou sistemática"18.
Várias situações influenciaram a construção de imagens estereotipadas do negro. Fernandes disse
que o drama vivido pela comunidade não comoveu o branco e não resultou num controle social direto ou
indireto. Muito pelo contrário, só serviu para degradar ainda mais o negro e sua imagem. E como as
reivindicações dos negros eclodiram de forma pacífica, elas não germinaram disposições de "segregação
racial". As manifestações foram socialmente construtivas, tentando absorver técnicas sociais e difundir
novas imagens do negro. Ao conhecermos mais profundamente as idéias de Fernandes constataremos o
oposto desse pensamento. Ele evidenciou que houve “segregação racial” na sociedade paulistana antes,
durante e depois a constituição dos movimentos negros. A sociedade visualizava segregação por parte
dos movimentos negros. Essa idéia é predominante, inclusive, no livro A integração do negro à
sociedade de classes.
Os discursos da imprensa negra visavam "substituir a imagem do antigo preto, mais africano que
Ocidental, mais exótico que nacional", e construir a imagem do "novo negro". Talvez, uma imagem
repleta de um racismo, penetrado de valores e normas dos brancos. A mesma hesitação encontrava-se
entre "o enquistamento e a miscigenação". Isto é, de um lado defendia-se o "mulatismo", posicionando-
se contra o descendente de imigrantes. De outro lado havia o receio diante do progresso do
branqueamento da população que eliminava pela mestiçagem "os melhores elementos da raça". Por fim,
existia a aceitação da verdade dos estereótipos dos brancos sobre os "pretos", de onde surgia uma intensa
campanha de educação, que alcançava aos conselhos práticos: como se comportar no salão, como assoar
o nariz, insistindo na necessidade de deixar a bebida, de não vadiar, mas, ainda, de instruir-se19 .
Roger Bastide, o precursor do estudo sobre a imprensa negra, em seu artigo "A imprensa negra
do Estado de São Paulo", aprofundou-se na analise das imagens ao debruçar-se nos pequenos jornais
para procurar a psicologia afro-brasileira, um "auto-retrato do negro por ele mesmo". Para ele as
reivindicações permanecem as mesmas no tempo histórico. Atentou em sua pesquisa para o status social
requisitado pelos agentes negros, que ansiavam ser recebidos nos clubes e nas recepções das sociedades

18
FERNANDES, Florestan. O negro no mundo dos brancos. Op. cit., pp. 37-97.
19
BASTIDE, Roger & FERNANDES, Florestan. Brancos e negros em São Paulo. Op. Cit., pp. 199.

14
porque desejavam provar ao branco que tinham “sua honorabilidade, sua vida mundana, que” conhecia
“as regras de polidez, em resumo, que não” era “um selvagem”20.
A análise do sociólogo foi ainda inquietadora sobre a crítica do branco. O jornal local campineiro
comentou que nas festas de uma associação negra, pairava um certo "cheirinho" no baile que corou uma
rainha de beleza "da raça". Relevante foi a conversa que Bastide estabeleceu entre as idéias de um
modernista com as idéias dos paulistas negros no tocante a cor da pele, mostrando que o artigo de Mário
de Andrade esmiuçava todo o jogo das sobrevivências folclóricas que agia no inconsciente humano,
inconsciente que atribuia "às cores um valor simbólico e ao preto, em particular, um caráter diabólico".
Os "paulistas de cor" achavam que esse jogo simbólico contribuiu para que as pessoas fizessem idéia de
que o negro era sinônimo de coisa ruim, chegando ao ponto de trocar a cor ou dar cor à alma do
indivíduo. Entre as conclusões análogas ao artigo de Andrade argumentaram que na nossa língua a
indicação de um caso bárbaro empregava termos pejorativos, tais como: "atirados na negridão da vida,
um crime negro, ou uma ação negra"21.
Sobre a representação do corpo na visão dos paulistanos negros em comparação com a
representação dos norte-americanos, Bastide explicou sentir uma certa ambivalência na representação
paulistana, pois, embora os militantes brasileiros reclamassem da metamorfose emplacadora do
progresso norte-americano, o jornal A Voz da Raça estava repleto de anúncios do gênero e comentava:
"notável é que, enquanto o branco recorre à canícula das praias, e mesmo aos produtos químicos para
adquirir uma tez amorenada, o negro americano lança mão de um creme o qual, segundo a propaganda,
dá mais personalidade"22.
E por fim, aprofundou-se na ambigüidade da representação corporal negra nas páginas dos
jornais:
assim por ocasião das festas do Natal e do Ano Novo, reclamará que se oferecem às
crianças não bonecas louras de olhos azuis e faces rosadas, mas sim a boneca preta, de
cabelos encarapinhados, o único brinquedo admissível para as crianças de cor. Mas esse
apelo é ouvido? E não é uma reação contra o que continua a ser o sentimento profundo
de uma raça, a aceitação da superioridade dos valores brancos? 23.
Podemos dizer que na mídia contemporânea permanecem os padrões de embelezamento
disseminados naquela imprensa alternativa, particularmente, os fenômenos do branqueamento. De cabelo
louro, alisado, visualizamos diversificados "profissionais" negros: cantores (principalmente pagodeiros),

20
BASTIDE, Roger. “A imprensa negra do Estado de São Paulo”. In: Estudos Afro-brasileiros. São Paulo: Editora Perspectiva,
1973, pp. 130-143.
21
BASTIDE, Roger. “A imprensa negra do Estado de São Paulo”. Op. Cit, pp. 130-143.
22
BASTIDE, Roger. “A imprensa negra do Estado de São Paulo”, Op. Cit., pp. 135.
23
BASTIDE, Roger. "A imprensa negra do Estado de São Paulo". Op. Cit., 133.

15
esportistas (jogadores de futebol, de basquete), modelos, jornalistas, etc. Para esta imprensa, como na
primeira metade do século XX, estas figuras carregam em seus corpos o modelo de beleza possibilitador
da mobilidade social. Todavia, ainda existe a rememoração e a afirmação ao estilo negro, hoje até os não
negros usam Rastafari24 e roupas coloridas, um estilo que se tornou representante dos diversificados
modelos africanos de indumentária.
Patrícia Birman escreveu que a solução do branqueamento, vista como original e peculiar à
sociedade brasileira, e mesmo como um remédio eficaz para a violência da luta racial que se apresentava
na sociedade norte-americana, teve como contrapartida o surgimento de uma perspectiva antagônica á
que, hoje, é referida como negritude. “É possível considerar o ano comemorativo do centenário da
Abolição como um ano que foi privilegiado pela construção da negritude”25.
Entre os anos 20 e 40 imaginávamos os modelos brancos de embelezamento sendo utilizados
somente como uma estratégia para alcançar a ascensão social, enquanto a partir da segunda metade do
século XX predominavam no âmbito da moda. Contudo, fomos percebendo que tal formulação é
enganosa, talvez seja mais coerente supor que, no processo histórico, o branqueamento esteve presente
tanto no campo da moda como naquele da estratégia política para alcançar a visibilidade social. Na
escalada para a conquista de um espaço na sociedade, diversos artistas e jornais pesquisados, cobram do
negro uma aparência que em nada condiz com aquela da África ou com aquela originada da sua própria
inspiração. Esta cobrança não parte unicamente dos brancos. A divulgação de produtos e estilos brancos
aparece na mídia considerada negra, exemplo: Revista Raça Brasil26. O que queremos dizer,
especificamente, é que os negros, não têm a liberdade de se adornar livremente se quiserem se enquadrar
no grupo conotado da "boa apresentação".
Numa sociedade que valoriza a brancura da pele, o cabelo liso e os traços do rosto Ocidental, os
negros têm dificuldade de afirmar a sua beleza. Há, contudo, diferenças marcantes entre a imprensa do
período de 20 a 40 e esta, atual, que utilizamos para traçar um curto e grosso paralelo do embelezamento.
Os jornais negros da primeira metade do século XX vinculavam junto ao foco corporal problemáticas
24
"Os rastas são reconhecidos visualmente pelas longas tranças, mediante a interpretação bíblica, pregam o amor à natureza,
combatem o consumo de álcool, adotam a ganja (maconha) como elemento de meditação e transcendência, para se entrar em
contato com Jah, o deus único”. Segundo os pesquisadores, “os rastas são como etíopes, descendentes da Rainha de Sabá e do
rei Salomão. Ao sistema capitalista chamam Babilônia”. A origem da palavra foi retirada da dissertação de Salomão Jovino da
Silva, A polifonia do protesto negro - movimentos culturais e musicalidades negras urbanas anos 70/80 - São Paulo,
Salvador e Rio de Janeiro. São Paulo, PUC/SP, 2000, pp. 83. O autor está interpretando o movimento musical do reggae a
partir da pesquisa de Carlos Benedito Rodrigues da Silva. Da terra das primaveras à ilha do amor. Campinas,
Unicamp/IFCH, s/d; Sansone registrou que o “rastafarianismo” é um movimento originário da Jamaica dos anos 20.
SANSONE, Livio. “A produção de uma cultura negra”. In: Revista de Estudos Afro-Asiáticos, n.º 20, 1981, pp. 122.
25
BIRMAN, Patrícia. In: Estudos Afro-Asiáticos, Op. Cit., pp. 5-6.
26
A revista Raça Brasil começou a circular a partir da década de 90 (do século XX). Ver fig. 1 - a mulher negra nua é uma
imagem que localizamos na Raça Brasil, ano 5, n. 51, novembro de 2000, pp. 10-11.

16
políticas, discriminatórias, participativas e organizativas ao passo que a Raça Brasil desenha-se como
uma espécie de revista Caras para negros. Neste sentido, vale observar os trabalhos acadêmicos que
traçam paralelos entre o pensamento da imprensa negra e revista Raça Brasil.
Os divulgadores dos padrões de beleza, os divulgadores de produtos, hoje, normalmente, tentam
passar a idéia de serem os embelezadores físicos uma invenção maravilhosa para o corpo negro, como se
quisessem reconhecer ou fazer existir uma especificidade de elementos corporais, que ora precisam ser
tratados e ora precisam ser apagados. Assim, por exemplo, o Vasenol (produto de beleza da atualidade)
amacia a pele negra, mas os cremes para o cabelo (alisadores “naturais”) extinguem o modelo crespo.
Aquelas especificidades já contidas nos produtos para tratamento dos corpos brancos não servem para o
embelezamento do corpo negro. Acreditam que a diferença de elementos entre um corpo branco e um
corpo negro é maior; o rótulo de venda convence os consumidores da especificidade do corpo negro
como um bem, considerando que tais produtos vendem abundantemente. Mais do que isso, demonstra
aos consumidores a necessidade de afirmar os traços negros, os traços africanos. Essa pretensa
preocupação para com o corpo negro esconde também o mal causado pelos produtos químicos
(especialmente os alisantes), pois em seus rótulos nenhuma informação é registrada dizendo do mau
cheiro contido, do mal que fazem ao corpo, da queda de cabelo que promovem. A falta de informações
sobre os males é marca de outros produtos. Mais recentemente apareceram no mercado dos cosméticos
produtos para o cabelo com a tarja: "Creme Alisante, Creme Relaxamento e Creme Permanente Afro,
agora sem cheiro de amônia"27. Porém, mesmo assim, eles apareceram de forma amena e fazem parte do
rol dos produtos caros.
Nas décadas de 40 e 50 encontramos páginas inteiras dos jornais negros destinadas aos institutos
de beleza, aos salões de cabeleireiro, as cabelisadeiras, às barbearias, às alfaiatarias, às modistas. Apesar
de visualizarmos, inicialmente, a rara presença de anúncios nos anos 20, escolhemos começar a pesquisa
a partir deste período porque sentimos a necessidade de estudar uma época considerada pelos militantes,
antigos e contemporâneos, de grande efervescência política, cultural e recreativa dos movimentos
negros. Entretanto, ao realizarmos uma leitura mais aprofundada nestes jornais selecionados
perceberemos o quanto eles oferecem em termos de crônicas, anúncios, textos e poesias para a reflexão
do embelezamento.
Os estudiosos da imprensa negra reconheceram a importância dos três jornais selecionados no
combate à discriminação e na organização dos negros na cidade de São Paulo. A luta travada pelos
militantes (jornais e associações), foi caracterizada como uma Segunda Abolição. Para os mais

27
Revista Raça Brasil, ano 6, n. 53 e 54, janeiro e fevereiro de 2001.
17
frentenegrinos, A Voz da Raça, sua associação e seus militantes constituíram o movimento de combate ao
racismo no Brasil. Preferimos dizer que foi possível extrair de todos os jornais informações significativas
sobre a população negra e relações sociais.
Outra razão para a escolha destes títulos jornalísticos diz respeito a sua periodicidade, ou seja,
possuem uma periodicidade quase regular e sua publicação abrange um período longo. Além disso,
existe uma coleção significativa desses jornais eleitos em locais de fácil acesso para a pesquisa. O
material para o desenvolvimento do trabalho encontra-se microfilmado no CEDAP (Centro de
Documentação e Apoio à Pesquisa) da Unesp de Assis, na Biblioteca Mário de Andrade, no Centro
Cultural São Paulo e, também, no Instituto de Estudos Brasileiros e no CEDIC (Centro de
Documentação da PUC/SP).
No primeiro capítulo desta dissertação, denominado de Imagens da Beleza Negra, analisamos a
indústria da beleza no Brasil e, neste mesmo item, com maior profundidade, a indústria da propaganda,
ao alocarmos as características gerais e específicas dos três jornais que fazem parte da imprensa negra. A
seguir, interpretamos os modelos de beleza contidos nos exemplares selecionados e na bibliografia sobre
a população negra, sempre atentando, na escolha de um padrão, para as diferenças culturais e de gênero.
Passam por estas imagens discussões referentes aos fenótipos negros, especialmente, sobre as visões dos
tratamentos do cabelo e da pele negra na sociedade brasileira.
No segundo capítulo, Em Busca De Um Corpo E/Ou De Uma Mulher Ideal, interpretamos os
comentários dos líderes negros sobre os seus ideais de beleza feminina, traçando um paralelo entre esses
ideais com as visões que a sociedade formulava da mulher negra. Buscamos, neste mesmo capítulo,
sistematizar rapidamente através dos depoimentos de que forma os líderes negros lidavam com as suas
aparências.
Pretendemos refletir, sobretudo no primeiro e no segundo capítulos, a respeito de algumas
imagens que resistiram à passagem do tempo e que ganharam destaque junto ao foco central da análise.
O desafio será reinseri-las na história, tratá-las como produtos culturais, resultados de interesses
econômicos, políticos, e sociais determinados28. Buscamos para esta reflexão alguns textos da história, da
literatura, da sociologia e da antropologia, pois a intenção é colocar os textos dessas áreas em diálogo
com as discussões da imprensa negra comparadoras das imagens negras brasileiras e africanas às
imagens construídas pelo mundo dito civilizado.
Procuramos a partir destes materiais retirar informações concernentes à construção mitológica
das imagens do corpo negro, traçar um paralelo entre a relação que o homem fazia do corpo negro com o
28
FERNANDES, Florestan. O negro no mundo dos brancos. Op. Cit. pp. 83.

18
mundo dos animais, para percebermos nessa relação porque veementemente o corpo era associado e
identificado ao corpo de animais, e/ou porque tanto se associava a beleza da mulher negra à
sensualidade, à sexualidade. Associações que eram completamente responsáveis pelas denominações de
exotismo e primitivismo quando outros sujeitos pretendiam diminuir ou folclorizar a figura negra.
Florestan Fernandes, no capítulo "Representações coletivas sobre o negro: o negro na tradição oral" 29,
ainda indica que, através dos contos, dos folclores populares percebe-se a forma pela qual a sociedade
paulistana lidava com a aparência do negro.
No terceiro capítulo, intitulado Espaços de Visibilidade da Beleza Negra, apresentamos os
concursos de beleza negra que recorreram às opiniões dos organizadores e das candidatas frente à
situação e a participação do corpo negro na Capital. No mesmo capítulo procuramos traçar as
preferências de embelezamento dos festeiros, as escolhas das danças pautadas pelos tipos ansiados de
comportamento e movimento dentro das sociedades negras. Registramos as recorrências das
apresentações das artistas negras internacionais, sobretudo as de Josephina Baker, atentando para as
formas corporais estratégicas que empregavam para cativar o público e alcançar a fama.

CAPÍTULO I - IMAGENS DA BELEZA NEGRA

1.1 - A indústria da beleza e da propaganda

Foi a partir dos anos 20, e, sobretudo depois dos anos 30, que a indústria da beleza, em particular,
nos Estados Unidos se desenvolveu. Esta indústria fabricou, principalmente, cosméticos, tais como: o
29
FERNANDES, Florestan. O negro no mundo dos brancos. Op. Cit., pp. 201-217.

19
pó-de-arroz, o batom, as maquiagens para os olhos, o esmalte colorido, o perfume, o talco, etc. No
Brasil, em 1922, as primeiras bombas de perfume eram lançadas pela Rhodia e em 1919 era criada a
empresa Lopes, primeira empresa nacional de produtos de beleza, construída na época da valorização do
lazer urbano e da sugestão do bem estar.30
Na década de 30, quando a Atkinsons se estabeleceu no Rio de Janeiro, esses produtos tornaram-
se solidários à valorização da praticidade; ficaram mais fáceis de transportar e de usar. A voga dos
produtos de beleza portáteis era, portanto, indicadora de uma tendência mais ampla, relacionada à
presença de mulheres nas ruas, nos restaurantes, escolas, escritórios, etc. A praticidade e o conforto
chegavam como sinônimos máximos da modernidade há muito almejada. A partir dos anos 40, mais do
que um dom, “o glamour e a beleza eram considerados os resultados de uma conquista individual e de
um trabalho sem hora e sem lugar para começar ou para acabar". As artistas e as mulheres da alta
sociedade serviram de modelo para a campanha das diversificadas empresas fabricantes. Em meio à
colonização norte-americana, as revistas brasileiras publicavam cosméticos das grandes empresas, como
Max Factor, Avon e Helena Rubinstein, para realçar o glamour das misses brasileiras, das vedetes
cariocas, das atrizes da chanchada nacional e das sereias louras de Hollywood31.
A Grande Depressão e a Segunda Guerra não diminuíram a importância da indústria dos
cosméticos. Vários tratamentos de beleza eram considerados estimuladores da boa moral, bem como
indicadores de emprego seguro e da civilidade urbana. No entanto, nem com todo o sucesso das
indústrias, os observadores deixaram de questionar a qualidade dos cosméticos. Nos anos trinta, a
Americam Association afirmava vigorosamente que muitas manufaturas de cosméticos estavam
falaciosamente anunciando os benefícios para a saúde enquanto usavam chumbo e arsênio em seus
produtos. Em 1936, sob pressão, o governo federal norte-americano colocou a maquiagem, em geral, sob
regulamentação e aboliu o uso de ingredientes danosos nos produtos e os anúncios fraudulentos das
propagandas. Ainda que as empresas de cosméticos testassem seus produtos quanto à toxicidade e
potenciais irritações ao corpo, sempre havia quem admitisse que boa parte da população era alérgica a
algum ingrediente cosmético. Mesmo assim, havia mulheres sobrepondo o objetivo de ser bela e jovial,

30
SANT’ANNA, Denise Bernuzzi de. “Propaganda e história: antigos problemas, novas questões”. São Paulo: Projeto
História, n.º 14, fevereiro de 1997, pp. 110.
31
SANT'ANNA, Denise Bernuzzi de. "Do glamour ao sex-appel: notas sobre a história do embelezamento feminino entre
1940 e 1960". Uberlândia: Revista de História da UFU, pp. 1-14. Este e outros artigos citados desta pesquisadora são partes
da sua tese de doutorado: La recherche de la beauté. Une contribuition à l'historia des pratiques e des représentations de
l'embelissement au Brésil - 1900 a 1980, defendida na Universidade de Paris VII, 1994.

20
aos males provocados pelas substâncias. Entre os produtos que causavam esses males, estiveram as tintas
de cabelo acusadas de causarem alergias e câncer32.
Enquanto a indústria da beleza se desenvolvia, a cidade de São Paulo se transformava num
importante centro econômico e político do país. "Aglomeravam-se as casas bancárias, os grandes
estabelecimentos de comércio atacadista, da importação, as fábricas de bens de consumo e o melhor e
mais variado comércio varejista do Estado". Nos novos espaços de convivência instituídos, ruas
movimentadas, fábricas, oficinas, lojas, associações recreativas, culturais e políticas, cafés, teatros,
cinematógrafos, escolas, etc, as experiências sociais tornaram-se mais urbanas, permeadas pela presença
da publicidade33.
Em meio ao desenvolvimento da imprensa, emergiram os jornais destinados a fazer parte da
imprensa negra, em geral, de pequeno porte. Os integrantes dos jornais pertenciam aos mais
diversificados setores da sociedade, faziam parte da pequena burguesia, das profissões liberais (letrado,
professor, jornalista, artista), do funcionalismo público (escriturário, motorista, servente); trabalhadores
informais (carregadores, serventes de pedreiros, posseiros e assentadores de trilhos), etc. Alguns sabiam
ler e escrever. Havia, também, os que partiram para o autodidatismo. Vieram de diversificados cantos do
país, uma parte chegou do interior paulista e outra nasceu na Capital.
No desenrolar do texto veremos o quanto, para os escritores negros, o padrão de beleza e de
comportamento moral, estava comprometido com o ideal de ascensão social, sem querer negar, no
entanto, que em muitos instantes os jornais apelaram para a educação formal e informal como requisitos
essenciais da formação humana. O apelo para a educação caminhou no sentido de argumentar que os
princípios básicos, morais e éticos, deveriam ser ensinados em casa. A mulher estaria incumbida desta
tarefa34. Tanto a educação formal quanto a informal serviriam para conquistar grandes postos na
sociedade. Por conta da falta de política educacional e institucional ou da acomodação dos negros, este
projeto se distanciava, na visão da imprensa e de muitos negros, que por sua vez estavam fora dos bancos
escolares. Era preciso trazê-los para o ensino, para as "escolas" das associações (particularmente para a
escola da Frente Negra Brasileira e do Centro Cívico Palmares). Quem atendesse a este anseio dos
32
BANNER, Lois W.. "The History Women and Beauty Since 1921". American Beauty. Chicago: Chicago Press, 1984, pp.
271-291.
33
CRUZ, Heloísa de Faria. Na cidade, sobre a cidade - Cultura letrada, periodismo e vida urbana. São Paulo, 1890-1915.
Tese de Doutorado em História Social. São Paulo: FFLCH/USP, 1994, pp. 10 e 210.
34
Moura escreveu no capítulo “A imprensa negra em São Paulo” que em toda a trajetória dessa imprensa há um constante: a
ascensão do negro deverá realizar-se através do seu aprimoramento cultural e do seu bom comportamento social. Para que
isso aconteça há sempre a recomendação de que a família deve educar os filhos, especialmente as moças, para que assim
consigam o reconhecimento social dos brancos. Por outro lado, a educação é considerada como uma missão de família. “A
educação é uma questão privada”. Quase todas “as referencias ao problema educacional vinculam-no a uma obrigação
familiar, ligando-o a um nível de moral puritano”. MOURA, Clóvis. Sociologia do negro brasileiro. São Paulo: Editora Ática,
pp. 210.
21
militantes e tivesse contato com a imprensa poderia ter seu nome registrado nos jornais no momento de
formatura.
A falta de instrução foi muitas vezes apresentada, pelas primeiras pesquisas sobre esta imprensa,
como fator de derrocada dos movimentos negros. Como se muitos negros, por não saberem ler, e não
militassem, fossem automaticamente alienados. Todavia, observando fotografias dos livros e dos jornais
percebemos a majoritária presença de negros em festividades, em manifestações, em atividades
promovidas pelas associações, concluindo que foi expressiva a participação dos negros daquela época
em diversas atividades sociais.
Reconhecemos, como outros estudiosos, que os militantes foram incisivos na apresentação da
proposta de conquista de valores da classe dominante e universais: a casa própria, a compra do terreno, o
estímulo à educação, a assistência social, etc. Porém, depois de uma leitura mais detalhada ficamos com
a impressão de ser o teor político dos jornais duvidoso, na medida em que o inimigo da comunidade
negra era indicado por alguns como sendo o próprio negro. Esse fator predominava como razão para o
"atraso da raça". A palavra atraso aqui é usada propositadamente, porque era assim que os escritores
denominavam os seus "irmãos de cor" "desligados" dos movimentos sociais. Desta forma, os escritores
negros, acabavam por justificar a pobreza e o insucesso dos negros como problema pessoal e não social,
já que ser pobre ou fracassado era entendido como conseqüência da falta de esforço individual, da falta
de empenho ou da falta de talento para buscar alternativas que os tirassem da pobreza, da discriminação,
etc.
Uma explicação para encarar o próprio negro como "desmoralizador" do grupo, para expressar
tamanha insatisfação com a baixa posição social e econômica ocupada por alguns, talvez, esteja
relacionada à presença significativa de "jornalistas" da "classe média" ou da "elite" 35 nos jornais. Eram
parabenizados e merecedores de nota nos jornais apenas aqueles que conseguiam chegar ao ponto mais
alto da hierarquia social. O grupo letrado dos jornais negros incorporou idéias do progresso, da evolução
e da integração. Maria Isaura Pereira de Queiroz resumiu essa idéia da seguinte maneira: "A crença numa
pretensa democracia racial mantinha as possibilidades de uma reivindicação coletiva fundamentada na

35
Há na dissertação de Petrônio Domingues uma relevante explicação para o termo elite negra. Segundo este pesquisador o
termo elite negra não significava uma minoria detentora dos meios de produção material. O termo tinha três sentidos
específicos: primeiro político, porque este grupo se configurou como dirigente político da comunidade e era aceito como tal
pelos brancos; segundo educacional e cultural, porque este grupo era fundamentalmente alfabetizado e considerado
culturalmente evoluído; terceiro ideológico, porque este grupo reproduzia muitos dos valores ideológicos da classe
dominante. A pesquisa de Domingues, que também contemplou a imprensa negra, buscou reconstruir a história do negro em
São Paulo no pós-abolição (1889-1930) centrada, fundamentalmente, em três questões: o racismo e as relações de trabalho, o
projeto do branqueamento e o mundo dos negros. DOMINGUES, Petrônio José. Uma história não contada - Negro, racismo
e trabalho no pós-abolição em São Paulo. Dissertação de Mestrado em História, FFLCH/USP, 2001, pp. 0 e 163.
22
solidariedade étnica, incentivando ao contrário o individualismo segundo a crença de que com esforço e
diligência pessoal era possível alcançar a ascensão sócio-econômica".36

1.2 - Uma leitura preliminar das fontes

Os jornais alternativos circulavam na capital através das assinaturas, das vendas nas redações e
nas associações, sendo também distribuídos para outras cidades por meio dos colaboradores e ainda nos
pontos de encontro da comunidade, onde se trocavam notícias, tais como: a Praça João Mendes, a Igreja
dos Remédios, a rua da Glória (sede da Agremiação Paulistana), rua do Lavapés. No centro velho, as
ruas Florêncio de Abreu, Libero Badaró, a Igreja Santa Efigênia, o largo do Paissandu, a Igreja do
Rosário dos Homens Pretos, indo terminar no Largo do Piques, atual ladeira da Memória, na Praça da
Bandeira.37
Pagava-se pelo jornal não só o preço estipulado pelos seus organizadores, mas o que o público
podia, já que muitos eram desprovidos da quantia exigida. Os pobres recebiam o exemplar
gratuitamente. Por causa do pouco dinheiro em caixa, incessantemente, os jornais faziam anúncios
implorando para que a população negra fizesse a assinatura deles e para que o abonados pagassem uma
taxa mais alta do que valia o exemplar. Essa idéia nem sempre deu certo, por isso também estes jornais
deixaram de circular e tiveram suas estruturas modificadas, que é particularmente o caso dClarim
d'Alvorada e d'A Voz da Raça. Os militantes contam que algumas vezes investiam dinheiro do próprio
bolso para garantir a publicação. Em depoimento a Clóvis Moura, Raul Joviano do Amaral narrou como
eles conseguiam se manter, explicou as irregularidades das publicações:

os iniciadores da imprensa negra, por pertencerem à base da sociedade, colocados no seu


grau mais baixo, não tinham condições econômicas para manter a imprensa. Apenas o
sacrifício, a boa vontade de abnegados permitiam a existência desses jornais. Não havia,
por isso, uma periodicidade regular de publicação: quando havia dinheiro, o jornal saia
com regularidade; quando não havia saia com atraso. Uma das maneiras de sustentar
esses jornais era freqüentar as sociedades negras existentes na época, distribui-los e
pedir uma contribuição para o próximo número. Os próprios diretores, os próprios
redatores iam leva-los as sedes das associações. Com o tempo foram criadas

36
QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de "Coletividades Negras - A ascensão sócio-econômica dos negros no Brasil e em São
Paulo". Op. Cit., pp. 660.
37
GARCIA, Marinalda. Os arcanos da cidadania. A imprensa negra paulistana nos primórdios do século XX. Dissertação de
mestrado, FFLCH-USP. São Paulo, 1997, p. 115. A dissertação de Garcia consiste em resgatar as múltiplas tentativas dos
jornalistas negros em construir uma cidadania negra a partir dos instrumentos legais e de acordo com o projeto político das
elites paulistas, apesar das adversidades políticas entre negros e brancos.

23
cooperativas. Mas, mesmo assim, foi muito difícil mantê-los a base da cooperação
porque o negro não tinha condições econômicas38.

Percebemos então que uma parte das lideranças dos movimentos sociais enfrentou sérios
problemas econômicos. Por isso não pode ser considerada elite negra. No depoimento de Raul Joviano
do Amaral a Clóvis Moura, gravado em 15 de junho de 1975, ele falou dos “sacrifícios do negro” para
viabilizar a imprensa negra:

o seu êxito se deve a homens humildes como o Tio Urutu, que era cozinheiro do Instituto
Disciplinar, a José Correia Leite, que era auxiliar de uma drogaria, o qual além de
escrever e orientar jornal tirava dos seus parcos vencimentos uma parcela para mantê-lo.
Outros abnegados da imprensa negra foram Jayme de Aguiar, o argentino Celso
Wanderley, (...) Lino Guedes e o Salatiel Campos. Todos contribuíram para com
duzentos reis ou um tostão, o máximo um cruzeiro, para que o jornal saísse. O jornal O
Clarim d’Alvorada, por isso mesmo, nunca teve caixa e, como o objetivo da imprensa
negra era difundir à comunidade negra as suas idéias, os seus organizadores nunca
procuraram organizações financeiras para ajudá-la. Também não procuravam políticos
da época. Sem ter praticamente anúncios, ela vivia da solidariedade. Foi dentro desse
espírito que a imprensa negra viveu por quase vinte anos 39.

O Clarim d'Alvorada foi criado em 1924, por José Correia Leite e Jayme de Aguiar. Chamou-se
inicialmente O Clarim, incorporando já em 1924 a denominação O Clarim d'Alvorada, título que
manteve até o final da publicação em 1940. No cabeçalho, indicou os seus objetivos: "Orgam literário,
noticioso e humorístico", apenas em alguns anos acrescentou a intenção de ser propriamente um órgão
para a defesa dos "Homens de Cor", dos "Homens pretos de São Paulo" ou da "Mocidade negra". O
jornal foi dirigido quase sem interrupções por José Correia Leite. Cuti informou na biografia deste
militante que ele ainda participou da fundação da Frente Negra Brasileira, da qual se demitiu em razão
da divergência ideológica. Em 1932 dirigiu o jornal satírico A Chibata40. No mesmo ano fundou o Clube
Negro da Cultura Social, do qual foi um dos secretários e orientadores, onde publicou a Revista
Cultura41. Esta associação funcionou até o ano de 1937. Em 1945 colaborou na fundação da Associação

38
MOURA, Clóvis. “A imprensa negra em São Paulo”. In: Sociologia do negro brasileiro, Op. Cit., pp. 214.
39
MOURA, Clóvis. “A imprensa negra em São Paulo”. In: Sociologia do negro brasileiro, Op. Cit., pp. 211.
40
Encontramos 8 páginas do jornal Chibata na coleção imprensa negra. O jornal foi fundado em junho de 1932. Em suas
páginas não constam o endereço da redação e administração, os nomes dos organizadores e o subtítulo.
41
Da Revista Cultura localizamos 33 páginas. Ela carregou o título de “Revista da Mocidade Negra”. Não havia paginação.
Sua redação e administração funcionavam na Rua Major Quedinho, n. 23. O redator chefe foi Manoel A. Santos, o diretor
Jose A. Barbosa, o gerente Sebastião Oliveira e o redator secretário Oswaldo Camargo. O número do dia valia 400 reis, a
assinatura semestral 6$000 e a anual 10$000. As propagandas do salão de cabeleireiro, das cabelisadeiras e dos remédios
anunciadas nesta revista são quase as mesmas publicadas n“O Clarim d’Alvorada”. O inusitado é que apesar das marcas dos
remédios serem as mesmas os desenhos são diferentes.
24
dos Negros Brasileiros que passou a editar o jornal Alvorada. A A. N. B. permaneceu ativa ainda por
volta de 194842.
N O Clarim d'Alvorada Correia Leite exerceu ainda a função de diretor responsável, repórter e
gráfico junto a Jayme de Aguiar. O endereço da redação era na Rua Major Diogo, n. º 13, a assinatura
anual custava 5$000 e o número avulso $200. O órgão pretendia ser mensal, porém sua periodicidade era
irregular e apresentou uma composição quase fixa de quatro páginas; de 1932 a 1940 a publicação foi
praticamente nula.
As associações ligadas ao Clarim d'Alvorada eram: o Clube 13 de Maio, o Auriverde, a Princesa
do Norte, a Elite da Liberdade, a 15 de Novembro, a 28 de Setembro, o Paulistano, o Kosmos, a Princesa
do Norte, a União Militar, os Cordões da União da Mocidade, Barra Funda (Camisa Verde), Campos
Elyseos; Clubes de Futebol como Cravos Vermelhos; O Centro Humanitário José do Patrocínio e o
Centro Cívico Palmares.
Os projetos esbarraram nas desavenças políticas – O Clarim d’Alvorada sofreu um
“empastelamento”. O fundador José Correia acusou Arlindo Veiga dos Santos, presidente da Frente
Negra Brasileira, de sua destruição. Os dois não se entendiam politicamente, o primeiro pregava o
socialismo e o segundo o patrianovismo 43. José Correia na narração do episódio expressou que o
“empastelamento” do seu jornal ocorreu quando publicaram o terceiro número, e que não foi apenas um
“empastelamento”, foi um assalto. "Tinha nego de porrete, jogaram estantes de livros pra rua,
derrubaram máquinas de costura, máquina de escrever, mas a oficininha ficou intacta, não mexeram em
nada, porque tinha um quartinho que era a oficina, lá estava uma página pronta". Os dois militantes
chegaram a ir para a polícia, com seus respectivos advogados para resolver o impasse44.

42
CUTI. E disse o velho militante José Correia Leite. Op. Cit. pp. 299.
43
A “Ação Imperial Patrianovista Brasileira”, foi um movimento que expressou as idéias nacionalistas e autoritárias no final
da década de 20 e início da década de 30. Idealizada por Arlindo Veiga dos Santos, visava instaurar uma nova monarquia no
Brasil, baseada numa filosofia política conservadora. Seu aparecimento se liga ao centro D. Vital e a revista A Ordem,
fundados respectivamente em 1921 e 1922 por Jackson de Figueiredo. Esse centro que marcou a renovação do pensamento
católico do país, assumia um tom polêmico em face à realidade política, social e intelectual do Brasil, mas pretendia a ordem
e não a Revolução. ROY, Teresa Maria Malatian. A Ação Imperial Patrianovista Brasileira. Dissertação de Mestrado em
Ciências Humanas (História), PUC/SP, 1978, pp. 9.
44
BARBOSA, Márcio. Frente Negra Brasileira - Depoimentos. São Paulo: Quilombhoje, 1998, pp. 69. O pesquisador reúne
no livro depoimentos dos militantes: Aristides Barbosa, Francisco Lucrécio, José Correia Leite, Marcello Orlando Ribeiro,
Placidino Damaceno Motta.
25
O Progresso foi criado em 1928. Participaram da administração do jornal, desde o seu início,
Argentino C. Wanderley (proprietário), e Lino Guedes45, um poeta editor. Integraram-se depois: o gerente
Heraldo da Cunha e o diretor Euclydes S. dos Santos.
O endereço da redação era na rua Maria Thereza, n.º 10, a sua assinatura anual custava 6$000 e a
semestral 3$000. O jornal continha seis páginas, a publicação pretendia ser semestral e sua periodicidade
foi quase regular. Circulou até 1931 e, distintamente dos outros jornais, não manteve um subtítulo.
Apresentou uma composição fixa de páginas. Como O Clarim d'Alvorada, manteve um caráter
associativo diversificado. Articulou-se com o Centro Cívico Palmares, o Auriverde, a Confraria dos
Remédios, o Clube Atlético Brasil e o Grêmio Recreativo Paulistano.46
Seus escritores acreditavam que o desenvolvimento do intelecto poderia ocorrer via
aprendizagem da música, da dança, do teatro, da literatura, etc. Tanto que nas últimas edições sugeriram
temas para a educação dentro de uma perspectiva artística, ou seja, nas instituições escolares poderiam
falar da participação dos negros no cinema e assim por diante. Essa idéia vigorava, talvez, por ser forte a
presença dos livros didáticos com versões pejorativas sobre o negro, visões presentes no imaginário da
sociedade brasileira e usadas para ofender uma criança ou um adulto negro. Ou ainda podemos dizer que
parcela da comunidade negra letrada e associada era alheia ao universo das culturas afro no Brasil, por
isso quase sempre propunha para o desenvolvimento do intelecto negro o aprendizado da cultura
Ocidental.
O terceiro periódico analisado foi A Voz da Raça, criado em 1933, por Francisco Costa Santos,
com a colaboração de algumas pessoas que organizaram O Clarim d'Alvorada e o Centro Cívico
Palmares. Da sua administração participou Deocleciano Nascimento (redação), um poeta que também
colaborou n O Clarim d'Alvorada; Mario Campos (redação), Raul Joviano do Amaral (chefia), Francisco
Lucrécio (secretário), Rubens Costa (diretor) e Antonio M. dos Santos (diretor).

45
Lino Guedes nasceu na cidade de Socorro, interior de São Paulo, em 24 de junho de 1897. Filho de ex-escravos, fez estudos
em Campinas, onde iniciou sua promissora carreira no jornalismo, em 1915. Trabalhou nos jornais Diário do Povo e no
Correio Popular daquela cidade. Em 1926, transferiu-se para a Capital, passando por diversos órgãos da imprensa. Trabalhou
no Jornal do Comercio, nO Combate, no Correio Paulistano e no Diário de São Paulo, onde chefiou o departamento de
revisão. Dirigiu em conjunto com Gervásio de Moraes, em 1924, o jornal Maligno. Sua carreira de escritor iniciou com o
lançamento, em 1926, de Black, em 1927, o Canto do cisne preto; ainda publicou em 1930, Ressurreição negra, em 1932,
Negro preto cor da noite; em 1936 Urucungo; em 1937, Ristre Domingos, em 1938, O pequeno Bandeirante – Sorrisos do
Cativeiro. Foi membro da Sociedade Paulista de Escritores. Faleceu no dia 4 de março de 1951. Localizamos a biografia de
Lino Guedes na dissertação de Petrônio Domingues, que provavelmente, retirou as informações da vida do autor na obra O
negro inscrito de Oswaldo de Camargo, publicada em São Paulo: Imesp, 1987, p. 75.
46
CARDOSO, Paulino de Jesus Francisco. A luta contra a apatia - Estudo sobre a instituição do movimento negro anti-
racista na cidade de São Paulo (1915-1931), Dissertação de Mestrado, PUC/ SP, 1993, pp. 138. A pesquisa de Paulino
Cardoso visa compreender as práticas diferenciadas dos jornais, historicizando a transformação das organizações negras de
seu caráter recreativo para as instituições de luta anti-racista.

26
Ainda que muitos textos do jornal não tivessem assinatura, podemos afirmar que uma parte
significativa deles foi escrita e traduzida por Deocleciano Nascimento, Isaltino Veiga dos Santos e
principalmente, por Arlindo Veiga dos Santos47. Ou seja, a maior parte dos textos era de autoria dos
membros48 da Frente Negra Brasileira. Arlindo Veiga dos Santos ocupou o cargo da presidência da F. N.
B. até 1934 e depois tomou posse Justiniano Costa que, durante a gestão do primeiro presidente, ocupara
a função de tesoureiro.
O jornal anunciou dois títulos como slogan: "O Preconceito de côr, só nós, os negros, o podemos
sentir", frase de Isaltino Veiga dos Santos (irmão de Arlindo Veiga dos Santos). A segunda frase
anunciava: "Deus, Pátria, Raça e Família", que permaneceu até o final da publicação quando o jornal foi
cortado, levando consigo parte do cabeçalho.
O preço do periódico do dia era de $200, o número atrasado eqüivalia $400 e a assinatura anual
5$000. Apesar da proposta de edição semanária teve uma periodicidade irregular, sua composição se
dividia em 4 páginas, assim como a maioria dos jornais alternativos negros.
A administração e redação localizavam-se na rua Conselheiro Brotero, n.º 156. Circulou até
1937. Enquanto O Clarim d'Alvorada declarava ser o jornal de "propriedade da gente negra", este
considerava ser de "Propriedade de uma Companhia em Organisação". Isso significa dizer que A Voz da
Raça atendia mais aos interesses dos associados da F. N. B.
A F. N. B, manteve Departamento de Instrução e Cultura (com professores nomeados pelo
Estado), Departamento Musical, Departamento Esportivo, Departamento Médico, Departamento de
47
Joaquim Pedro Kiel de Araraquara, numa reportagem especial para “A Voz da Raça”, escreveu um pouco da tentativa inicial
dos irmãos Veiga dos Santos em organizar um jornal. Disse que os conhecia há muito tempo. “Quando eram quase meninos
(um com 7 e outro com 15)” os irmãos Veiga dos Santos fundaram em Itu, juntamente com Kiel, “um semanário intitulado A
Bomba”, cujo titulo era alusivo ao distintivo da artilharia montada. A Bomba era quase um órgão oficial do 1O. R. A. M.
Apesar, porém, desse caráter, A Bomba corajosamente defendeu a idéia da 2a. candidatura de Rui Barbosa a presidência da
República, contra a opinião geral da oficialidade, que aspirava ver o General Lauro Miler no posto para qual iria ser
escolhido, Epitácio Pessoa. Disse Kiel que A Bomba estava “acima dos interesses e das conveniências” e defendia “a
liberdade de opinião”. Os oficiais de “superioridade e liberalidade de opinião” participavam desse primeiro empreendimento
jornalístico, pois achavam graça “no ardor ruibarboseano da modestíssima folha e continuaram a comprar os jornais” e a dar
preferência para A Bomba, publicando “editais de concorrência e matérias pagas”. Nesse “pequenino jornal” Arlindo e Isaltino
Veiga dos Santos “ensaiaram os seus primeiros passos na imprensa”, bem como Kiel, o autor que avaliou as dificuldades
financeiras por qual passaram, as lutas que sustentaram para que o jornal A Bomba não morresse no primeiro numero,
sobrevivesse, pelo menos, até o terceiro mês. Frente Negra, A Voz da Raça, São Paulo: 25 de março de 1933, p. 4.
48

Arlindo Veiga dos Santos nasceu na cidade de Itu, a 12 de fevereiro de 1902. Nesta cidade “iniciou os seus estudos no G. E.
Dr. Cesário Mota. Em seguida freqüentou o colégio São Luiz, dos padres jesuítas, e o Ginásio Nossa Senhora do Carmo, dos
padres carmelitas, onde estudou por iniciativa dos professores José Pinheiro e José Esteves Carramenha. Logo nos primeiros
tempos de estudante manifestou inclinação para a atividade literária, tendo colaborado com os jornais locais A Bomba
(manuscrito) e A Federação, que era editado pela paróquia da Nossa Senhora da Candelária”. Na cidade de São Paulo “fez
curso universitário na Faculdade de Filosofia e Letras de São Paulo (que se tornaria posteriormente a Faculdade de São
Bento), onde colou grau em Filosofia e Letras em 1926. Ao mudar-se para São Paulo tornou-se membro da Congregação
Mariana da Imaculada Conceição de Santa Efigênia, onde havia jovens estudantes que mais tarde vieram a se destacar na
sociedade. Parece ter sido congregado mariano dos mais ativos, chegando mesmo a ocupar a presidência desse sodalício em
1940”. ROY, Teresa Maria Malatian. A ação imperial patrianovista.Op. Cit., pp. 46.
27
Imprensa, Departamento de Artes e Ofício, Departamento Dramático; Companhia da Boa Vontade,
Comissão de Moços, Departamento Jurídico Social, Departamento Doutrinário. Oferecia serviços no
próprio salão de barbeiro e cabeleireiro, nos locais para jogos e divertimentos, nas oficinas de costura, no
posto de alistamento eleitoral, no gabinete dentário, na caixa beneficente e na cruzada feminina. A Frente
Negra era dirigida por um grande conselho, constituído de 20 membros, selecionando, dentre eles, o
Chefe e o Secretário. Havia, ainda, um Conselho Auxiliar, formado pelos Cabos Distritais da Capital.49
Francisco Lucrécio enfatizou que “como força social, e sabendo que a civilização e o progresso”
eram fatos de inestimável valor, a F. N. B. caminhou para o campo educacional, criou escolas primárias
com quatro salas de aula, cursos de formação político-social, de instrução moral e cívica, de música,
línguas e de história. O objetivo era estimular o ingresso dos negros nas escolas superiores, do saber em
todos os níveis. A F. N. B. realizou a tarefa preliminar de ministrar os conhecimentos necessários aos
negros, objetivando a sua integração em todas as atividades do país, desde o Magistério até ao Direito, da
Medicina à Política, aos postos eletivos: vereadores, prefeitos, governadores, presidente da República,
diplomatas, oficiais das Forças Armadas50.
Recebiam a carteira de identificação da associação (carteira com retrato de frente e de perfil) 51, de
preferência, os indivíduos negros de “boa conduta” na sociedade e com a carteira de trabalho assinada.
Além disso, os sócios inscritos pagavam dois mil réis por mês, importância arrecadada para manter a
entidade. As delegações também contribuíam com sua cota para a sustentação da luta. Todos eram
voluntários, militantes e até fanáticos que davam tudo pela causa.52 Segundo a pesquisadora Pahim, os
militantes falaram que a F. N. B. congregou cerca de,

6.000 sócios em São Paulo, e 2.000 em Santos, já Florestan Fernandes referiu-se a


200.000 sócios, sem especificar, contudo, se em São Paulo ou no Brasil. De acordo com
um dos depoimentos havia 50.000 associados, segundo outro 30.000, sem especificarem,
contudo, se em nível nacional ou apenas no Estado. Em informe publicado no jornal A
Voz da Raça, em 1935, a Frente Negra contava com mais de 100.000 associados em todo
o território nacional53.

Em 1926 foi criado o Centro Cívico Palmares, uma instituição de estrutura semelhante à F.N.B.
Ela teve biblioteca, escolas com cursos primários e secundários, corpo docente de negros; desenvolveu

49
MOURA, Clóvis. “Uma voz independente para o negro”. Op. Cit., pp.72.
50
LUCRÉCIO, Francisco. “Memória Histórica, A Frente Negra Brasileira”. In: Revista de Cultura Vozes, ano 83, n.º 3, maio-
junho de 1989, pp.334.
51
Ver figura 21- carteira de identificação da Frente Negra Brasileira de Francisco Lucrécio.
52
LUCRÉCIO, Francisco. “Memória Histórica, A Frente Negra Brasileira”. Op. Cit., pp. 335.
53

PINTO, Regina Pahim. “A Frente Negra Brasileira”. IN: Revista de Cultura Vozes. N.º 4, julho-agosto, 1996, pp. 47.
28
palestras, peças teatrais, audições de piano e de canto. Inclusive foi o embrião da F.N.B. Contou
Lucrécio que,

em maio de 1929 um grupo de negros, vindos do Centro Cívico Palmares (...), resolveu
lançar um manifesto dirigido à nação e à raça negra, visando fundar um órgão que se
relacionasse com as atividades políticas e sociais (...). As reuniões sucediam-se em pleno
lampião da Praça da Sé. Toda noite lá estava o grupo de negros, que era cada vez maior,
discutindo a maneira de se organizar. Alugaram uma sala no Palacete Santa Helena, ao
lado direito de quem sai da Igreja da Sé. Ali foi elaborado o estatuto e escolhido o nome
da entidade: Frente Negra Brasileira. No ano de 1931 a idéia já estava amadurecida,
sendo necessária apenas torná-la pública. Assim foi que em 16 de setembro de 1931, na
presença de milhares de negros, reunidos nos salões das Classes Laboriosas, na rua do
Carmo, foi lido o estatuto e lançado o manifesto. A alegria e os aplausos foram
culminantes quando aclamados os nomes para compor o grande Conselho, que deveria
dirigir a entidade54.

A Voz da Raça e a Frente Negra Brasileira foram os mais elogiados pela bibliografia da imprensa
negra devido ao fato de terem conseguido agregar uma massa negra significativa em torno de seus ideais.
Consideraram suas ações positivas, no sentido de combater o racismo, de conscientizar os negros, de
construir e indicar empregos, enfim, pela grandiosidade da instituição. Entretanto, por tantas ações
ficaram expostos aos questionamentos, principalmente quando os objetivos almejados não se
concretizaram. A forma, também, como conduziram as estratégias de luta foi um outro ponto criticado.
Clovis Moura apontou que a Comissão de Moços, possivelmente, era chamada de “milícia
frentenegrina, organização paramilitar. Os seus componentes usavam camisas brancas e recebiam rígido
tratamento, como se fossem soldados”. Uma das justificativas para a existência dessa corporação dizia
respeito à “incompreensão” que pairava com a criação da F. N. B. Diziam que os negros “estavam
fazendo racismo ao contrário. No entanto, com o tempo, os membros da Frente Negra foram adquirindo
a confiança não apenas da comunidade, mas de toda a sociedade paulistana55”
O regime de Vargas trancou as portas da Frente e mais do que isso produziu desavenças entre O
Clarim d'Alvorada e A Voz da Raça, especificamente simbolizou as desavenças entre Correia Leite e
Veiga dos Santos. Antes do fechamento, os líderes frentenegrinos incitavam o regime de Vargas a trancar
as portas aos estrangeiros, “comandavam uma dura campanha nacionalista contra toda estrangeirada que
maquinava separatismos, bolchevismos, socialismos, para que os negros pudessem conquistar sua

54

LUCRÉCIO, Francisco. “Memória Histórica, A Frente Negra Brasileira”. Op. Cit., pp. 332.
55
MOURA, Clóvis. “Uma voz independente para o negro”. IN: História do negro brasileiro. São Paulo: Editora Ática, 1989,
pp. 72.
29
posição de direito no país". É o que narra o brasilianista George Reid Andrews, na sua história
documentada da desigualdade brasileira desde a abolição até o final da década de 1980.
Andrews estabeleceu paralelos comuns entre a orientação anti-imigrante da Frente e aquela do
movimento integralista. Os dois movimentos, na sua visão, compartilhavam de um grande menosprezo
pela democracia liberal e a F. N. B., apesar da rejeição às filosofias políticas estrangeiras, teve uma
admiração explícita pelo fascismo europeu. “Em um editorial de 1933 saudando a ascensão de Adolfo
Hitler ao poder, Arlindo Veiga dos Santos parabeniza-o por ter salvado a Alemanha das mãos do
cosmopolitismo judaico e do ópio entorpecente de 14 anos de república liberal democrática”. A Voz da
Raça relatou as realizações do nazismo e do fascismo ao instalar disciplina e patriotismo em seu povo.
Esta admiração pelo autoritarismo estendia-se ao próprio sistema de controle interno da Frente: os
dirigentes não eram escolhidos por eleição, mas por funcionários encarregados desta tarefa, e a
organização como um todo, era policiada por uma milícia moldada nos Camisas Verdes integralistas e
comandada por Pedro Paulo Barbosa, um dedicado anticomunista e admirador de Mussolini56.
Segundo Andrews, a F. N. B. e A Voz da Raça aliaram-se cada vez mais ao fascismo e
integralismo, tanto que a organização chegou a adotar o lema dos integralistas "pela família, pelo país e
por Deus, modificando-o um pouco e acrescentando pela raça”. Contudo seria mais coerente dizer que a
organização adotou ainda os princípios do movimento patrianovista, que impedia as pessoas de
pertencerem ao movimento caso professassem “doutrinas políticas contra a Pátria, a Família e a
57
Religião”. De todo modo, predominou “na trajetória da entidade uma visão direitista” . Então,
questionamos: de que forma o arianismo e o autoritarismo influenciaram A Voz da Raça na construção de
suas imagens ideais e reais do corpo? Como isso era tratado nestes jornais?

1.3 - Os mitos e a África

Entre as imagens divulgadas, os mitos, como a princesa Isabel, foram apresentados como pessoas
que se preocupavam com a aparência, com a moda. O traquejo social e suas formas corporais eram vistos
pela imprensa como fator positivo, principalmente porque expressaram a libertação. Naquela época, as
imagens consideradas positivas serviram como exemplo para os negros "desarrumados" da cidade;
56
ANDREWS, Gorge Reid. Negros e Brancos em São Paulo (1888-1988). Bauru: EDUSC, 1998. pp. 238-239. Interessa
perceber na sua pesquisa o percurso das mudanças econômicas, sociais e políticas ocorridas da abolição ao centenário que
contribuíram para alterar a imagem de democracia racial desfrutada na sociedade brasileira. Ver mais sobre a história das
manifestações negras e da sua imprensa, no começo do século XX, em MOURA, Clóvis. Brasil: as raízes do protesto negro.
São Paulo: Editora Global, 1983, pp. 47-76.
57
MOURA, Clóvis. “Uma voz independente para o negro”. Op. Cit., pp. 73.
30
"desarrumados", que desde a escravidão eram inferiorizados porque, como informa o trecho "Luís
Gama", possuíam uma "epiderme de cor mais escura e traços menos delicados", traços julgados
grosseiros (de má qualidade, malfeitos, rudes, incivis, indelicados) em oposição aos traços delicados
(afáveis, corteses, educados):

Luís Gama - (...)Viveu largos annos entre nós, residindo em São Paulo, onde ao lado de
Antônio Bento, lutou com raro denodo pela libertação desses homens cuja inferioridade
consistia numa epiderme de cor mais escura, de traços menos delicados. Casado com
uma francesa, possuía a elegância de um príncipe, trajando habitualmente fraque ou
sobrecasaca e chapéo alto e tudo cor de cinza, muito elegante. A tarde descia com uma
pontualidade Ingleza até o Braz, onde, nessa época residiam os políticos, os jornalistas
e mais homens de distinção social, afim de cavaquear com os amigos e tomar uma ou
mais cervejas das boas58.

Semelhante a Luís Gama, o seu companheiro abolicionista Dr. Alfredo Casemiro da Rocha
(deputado estadual, federal, senador e prefeito), um baiano que viveu em São Paulo de 1878 a 1933,
julgava importante as "pessoas de cor e de posição vestir-se bem para diminuir o risco de qüiproquós,
como o que se daria com ele". Quando deputado, numa ocasião em que participava de uma comitiva, ele
foi confundido com um carregador de malas e defendido por um terceiro que advertiu de forma alguma
poder "um carregador ou cocheiro se vestir como aquele crioulo", aquele homem que sempre se vestia de
modo cerimonioso como, em geral, as pessoas das classes dominantes e médias urbanas. Era incapaz de
se apresentar a quem quer que fosse de sua intimidade, "em mangas de camisa", ou seja, sem estar de
camisa, gravata e terno - casaca ou paletó, colete e calça - sempre rigorosamente limpos e bem passados.
"Era impossível vê-lo de outro modo, no parlamento, na prefeitura, enfim, em qualquer repartição
pública, rua ou logradouro, a não ser no consultório, onde envergava um avental de linho sempre alvo e
engomado, ou por ocasião das viagens, a cavalo, quando usava roupas próprias para cavalgar”.
Na categoria dos mitos a África foi também outro elemento edificante no pensamento da
imprensa negra, que nos permitiu formular reflexões significativas acerca das representações corporais.
Dela teremos a presente reflexão do embelezamento contemplada a partir de um olhar ocidental e de um
outro contrário a este. Ou ainda vamos encontrar os dois vieses de análises apresentados de maneira
ambígua, como se formulou no caso seguinte:

O Continente Negro

58

Progresso, São Paulo: 19.07.1928, pp.1.

31
A sagrada terra dos nossos avós, tão injustamente considerada como um immenso
matagal cheio de feras e de negros imbecis, foi objeto de elogiosas considerações por
parte do notável jurisconsulto alemão Dr Mendelssohn Bantholdy. (...).
Os povos que habitam a África são tão negros ou tão escuros como os que contribuíram
com o seu gênio para as primitivas civilizações. A história completa e sincera do que foi
a África está oculta aos povos modernos pela miserável influência norte-americana.
(...).
Não nos sentimos tristes quando a Política Internacional estampa, em seus jornais e
revistas, caricaturas de todos os gêneros em que o negro sempre occupa um papel
inferior e ridículo.
Não nos sentimos tristes quando nos contam com um sorriso malicioso que os africanos
vendiam seus filhos a troco de alguns lenços vermelhos. E por falar em venda de filhos
não souberam os leitores que agora, em pleno século 20, uns olhos azuis e cabellos
louros vindos da Europa civilizada, andavam vendendo aqui no interior do nosso
Estado, suas filhas a 2 ou 3 mil réis? Que belleza! São as lições da história!
Não há raças superiores nem raças inferiores, mas umas mais adeantadas e outras
menos adeantadas. São palavras do ilustre Charles Darwin 59.
Booker

No texto de Booker, a escrita aponta para os leitores que desde as mais antigas civilizações
(começando pelos egypcios), os povos de traços negros contribuíram para a formação e o
desenvolvimento do continente, desmistificando as argumentações norte-americanas, que tentavam
apagar essa particularidade dos “peles negras”. Em relação aos outros países, a África era considerada
atrasada devido à permanência de “um imenso matagal cheio de feras e de negros imbecis”. Para
contestar essa visão depreciativa, o autor baseou-se na pesquisa de um alemão (Dr. Mendelsson
Bantholdy), que teceu elogios ao continente depois de perceber um certo “adeantamento da raça negra”
em comparação às outras que já ocupavam o topo do progresso. Mas também endossou a versão
afirmadora da inferioridade negra, dizendo não se sensibilizar ao olhar, através da imprensa, caricaturas
feitas da África pela política internacional, em que os negros apareciam em papéis inferiores.
No caso da tatuagem, representadora das fases de transição do costume dos africanos de Bornéu
vislumbra-se, em parte, a sofisticação do embelezamento nos corpos negros.

Tatuagem
A tatuagem dos negros é um costume assaz generalizado, todavia, em Bornéu adquiriu
proporções extraordinárias.
Os indígenas de Bornéu cobrem completamente o corpo de desenhos esquisitos havendo
alli algumas tribus que excedem todos os exaggeros imagináveis.
A tatuagem completa corresponde aos guerreiros valorosos aos felizes caçadores de
cabeças, sendo noutros indivíduos em regra circunscripta ao rosto e aos braços.
Os desenhos mais diffíceis são executados por intelligentes especialistas, que recortam
primeiramente os moldes em madeira, passando-os depois para a parte do corpo

59
O Clarim d'Alvorada, São Paulo: 15.01. 1927, pp. 4.

32
escolhida. Para esse fim, servem-se de um pedaço afiado de bambu, ou de uma agulha,
que molham previamente num pigmento vegetal, preparado com esse fim. O processo é
muito doloroso e requer bastante tempo: mas os signaes tornam-se indeléveis. A
tatuagem pratica-se nos homens ao entrarem na idade viril, e nas mulheres quando
estão em condição de casar60.

O detalhamento da ornamentação realizada pelas tribos negras só não teve completamente o seu
devido valor reconhecido porque o autor, no instante em que vislumbrou a extensão e a exigência da
técnica, no delineamento dos desenhos, deixou escapar em suas palavras o estranhamento que tal prática
costumeira lhe causava.
Diferente das construções textuais indefinidas sobre os padrões de embelezamento, ou melhor,
um escritor veementemente identificado com o olhar ocidental de embelezamento, apresentou Sarka
como exemplo explícito da adesão ao padrão de ornamentação pessoal desejado e respeitado pela
imprensa paulistana; era como se no processo de transformação o branqueamento se expandisse até a
alma do artista. Contando também para seu merecimento de nota no Progresso a consagração de sua arte
pelos parisienses:

Raymond Sarka é um grande artista negro - Raymond Sarka, é um preto authentico


da Abyssínia, cujo talento de artista a escola de Paris já consagrara. Além de artista de
grande valor, Sarka é um homem fino e elegante, um verdadeiro "gentleman" que toda
São Paulo conhece através da fina película - El negro que tenia el alma branca 61.

O rei Ras Tafari seria o responsável por espalhar em seu território um estilo moderno, incluindo a
religião e os costumes. Transformaria a Etiópia e arrastaria todo o continente para a "civilização",
particularmente em termos de "usanças" ainda denominadas de primitivas:

A coroação do novo rei da Ethyopia.


Quem é o soberano que ocuppa, hoje, o throno do famoso Menelik.
De todos os paizes africanos é a Ethyopia incontestavelmente o mais curioso, o mais
interessante.
Lá os costumes modernos, tomando o termo na sua verdadeira acepção, contrastavam
por assim dizer com os mais primitivos. Sob alguns aspectos a Ethyopia é um paíz que
vai acompanhando a marcha da civilisação, sob vários outros, porém, é a mesma
Ethyopia de séculos atrás, com todos os preconceitos e usanças de então. Entretanto,
tudo leva a crer que a Ethyopia dentro de alguns annos seja um paíz moderno (...)
Ras Tafari, o que consideraram herdeiro de Salomão e da Rainha de Sabá, partilha o
throno da antiga Ethyopia com sua tia e imperatriz Zeoditú, filho do poderoso Menelik
II. (...)

60
Progresso, São Paulo: 23.07. 1929, pp. 2.
61
----------; 13.05. 1929, pp. 2.

33
Com a sua personalidade original e rigorosa imprimiu novo rumo a Ethyopia, fazendo-
a figurar na Liga das Nações esforçando-se para remoçar sua physionomia
introduzindo nella um pouco de dynamismo e da techinica do Occidente 62.

Com este tipo de notícia, o jornal não planejou que os seus leitores esquecessem completamente
o continente. Seria mais conveniente que os mesmos analisassem e rememorassem os corpos da "mãe
pátria" a partir da perspectiva ocidental. Esse mesmo olhar ocidental deveria influenciar as relações
paulistanas, impedindo uma segregação. Os costumes, a religião, e “as usanças” da comunidade negra
paulistana também deveriam acompanhar a marcha da "civilização".
O relato de Francisco Lucrécio63 e a dissertação de Miriam Nicolau Ferrara64, especialmente o
capítulo sobre o continente africano, contribuíram para compreendermos as razões da história da África
aparecer, desdenhosamente e parcimoniosamente, na memória dos escritores negros. Lucrécio indicou
que vigorava a difusão de uma imagem muito negativa do continente naquela época devido ao
colonialismo europeu. Além disso, muitas informações sobre a África não eram publicadas, passavam
oralmente entre os negros. Isso propiciou uma leitura permeada pelos valores da sociedade branca, ou
seja, os escritores dos três jornais analisados fizeram uma leitura estereotipada, em termos de vestimenta,
comportamento e costumes, ao divulgar informações relativas ao continente africano.
Esse olhar dos ativistas dos movimentos sociais para a África deixou de ser menos estereotipado
a partir da segunda metade do século XX, quando as viagens para a África tornaram-se intensas, o
mesmo ocorrendo no sentindo contrário, o Brasil passou a receber autoridades africanas, intelectuais,
políticos, turistas, refugiados.
De todo modo, nem sempre a população negra desejou assemelhar-se esteticamente às figuras
africanas ou brancas. Falando sobre a trajetória desta comunidade, nas primeiras décadas do século à
Zeila Demartini, José Correia Leite lembrou-se que o índio era o preferido: "então todo mulato cabelo
duro, beiçudo aí queria ser descendente de índio, não queria ser descendente de negro, não. Quando o
cabelo do negro era muito duro ele mandava raspar a cabeça, para dizer que era descendente de índio".
Tal preferência pela figura indígena era por causa do romance, naquela época "ele era parecido com um
herói, um ser diferente"65.
62
Progresso, São Paulo: 16. 12. 1928, pp. 4.
63
BARBOSA, Márcio. A Frente Negra Brasileira, Op. Cit., 52.
64
FERRARA, Miriam Nicolau. A imprensa negra paulista (1915-1963), Dissertação de Mestrado, FFLCH -USP, 1986.
Miriam Ferrara, traçou a história desses jornais procurando sublinhar o mundo ideológico do negro paulista, as suas
esperanças e o seu comportamento. Procurou retratar o contexto das incertezas, das frustrações, das ambigüidades e expressar
as particularidades e diferenças culturais, além dos aspectos sociais e psicológicos dos afro-brasileiros.
65
DEMARTINI, Zeila de Fabri. "A escolarização da população negra na cidade de São Paulo nas primeiras décadas do
século", Revista Andes, ano 8, n. 14, 1989, pp. 57.
34
O conhecido narrador Lucrécio (dentista e associado participante da F. N. B. e do jornal A Voz da
Raça), reafirmou a mania dos negros em tentar se passar por índio, porque em seu meio de cunho
nacionalista, os pensamentos dos escritores identificados com os personagens indígenas vigoravam.
Esses estudiosos exaltavam a posição ora dos lusitanos, ora dos negros e ora dos índios, o que lhes fazia
concluir que “a formação da raça brasileira” derivava dessa trilogia, e que “se não temos uma raça
definida, ou uma etnia, temos três raças como raiz”. Entre os estudiosos que escreveram sobre a
“formação da raça brasileira” o militante cita o maranhense evolucionista Nina Rodrigues, como se esta
figura exaltasse o negro ou o índio em suas formulações66.
Observamos que o pensamento evolucionista das teorias raciais sombrearam as representações
sobre o corpo negro anunciadas na imprensa negra. Mais detalhadamente, Lucrécio relatou que lia muito
o Nina Rodrigues (1862-1906), ou melhor, os intelectuais negros conheciam “o assunto de negro” por
causa do Nina Rodrigues, do Oliveira Vianna, entre outros. Nina Rodrigues temia ver desaparecida as
fronteiras entre negros e brancos, ou melhor, denunciava “sem tréguas a possibilidade do negro
transformar o branco, alterá-lo, torná-lo outro”. Esse médico criminalista tecia críticas a mistura das
“raças”, já que “considerava o índio como o menos aproveitável dos nossos elementos étnicos, e os
brancos como membros de uma civilização superior, a ordenação das raças torna-se nítida: brancos,
negros e índios”. Dentre os mestiços, a dificuldade de Nina Rodrigues era maior para estabelecer a
hierarquia “das raças” pois, nem sempre era possível estabelecer com precisão essa origem”: em todo
caso, considerava o mestiço um “desequilibrado”. Desde a segunda metade do século XIX, e mais
fortemente na passagem para o século XX, os intelectuais brasileiros “tratavam de transformar escravos
em negros”, isto é, deixaram de analisa-los como “máquinas de trabalho” para analisá-los como “objetos
da ciência”. Assim, o estudo de Rodrigues buscava traçar um perfil do negro não apenas em termo
“racial”, mas também em termo social e cultural. Rodrigues foi um dos mais radicais defensores da
teoria do branqueamento, apesar de ter sido mestiço. Oliveira Vianna, na década de 20, também
advogava a “arianização progressiva” do Brasil devido à emigração e a mortalidade dos negros e
mestiços. A teoria do branqueamento, no entanto, teve como principal pressuposto a ambigüidade,
porque ao mesmo tempo em que via a mestiçagem como um mal que deveria ser extirpado, pregava o
“cruzamento das diversas espécies” como solução para o problema “racial” do país. Cometemos um
grande engano ao dizermos que os militantes não questionaram os pensamentos dos intelectuais racistas,
pois localizamos no jornal A Voz da Raça um texto assinado por Arlindo Veiga que contesta as idéias
dos teóricos raciais: “Há historiadores que negam sistematicamente a influência negra no Brasil, como

66
CORRÊA, Mariza. As ilusões da liberdade. São Paulo: EDUSF, 1998, pp. 1-88, 168-174.
35
por exemplo, o seu Manuel Bonfim; outros (cousa engraçada) negam até perante as nações do mundo,
que haja negros brasileiros no nosso Brasil. Outros perdem a tramontana quando algum francês, inglês
ou outro qualquer alienígena irritado nos chama ‘terra de negros, mulatos e mestiços’. E então conspiram
cominacente: É PRECISO ARIANIZAR ISTO AQUI ! (sic) Como seu Oliveira Viana e mais alguns
sábios”.

1.4 - O “herói burlesco”

Fernandes sistematizou relatos colhidos em bairros paulistanos e averiguou que as


“representações da inferioridade etiológica” do negro estavam expressas nas “várias situações do nosso
folclore”, que, por sua vez, explicavam a “situação do negro na tradição oral”. Evidentemente no “ciclo
sobre a formação das raças”, a noção de inferioridade se patenteou “através da entidade criadora,
diferente para o negro e para o branco, o Diabo e o Deus respectivamente”:

O Branco e o negro
Certo dia, Deus, ao ver o mundo tão bonito, resolveu povoa-lo para dar mais vida à
natureza. Então fez o branco, aproveitando o barro da terra. O Tinhoso, que sempre anda
espiando o que Deus faz para fazer a mesma coisa, também tratou de fazer um boneco
de barro. Quando acabou deu um assoprão nele e um monstrengo cambaio, preto e de
cabelo queimado, saiu a correr o mundo. O Diabo ficou danado da vida, pois o de Deus
era branco e bonito, mas a culpa foi sua, porque não reparou que a sua mão queimava.

Sobre o nariz do preto:


“Deus quando fez o negro
Começou no calcanhar,
Quando chegou no nariz,
Deu ao Diabo para acabar,
O Diabo tinha preguiça
Não queria trabalhar:
Deu um soco no nariz
E o acabou de esborrachar” 67.

Numa visão clássica teológica a criação do corpo branco é perfeita porque está associada ao
criador magistral, enquanto a criação do corpo negro é tributária do Satanás, o anjo rebelde que, segundo
a crença cristã, foi banido do céu e sepultado no inferno. O Diabo é uma pessoa sem virtudes e feia. Por
isso mesmo sua produção, segundo a crença paulistana, é deformada.

67
Fernandes, Florestan. O negro no mundo dos brancos, Op. Cit., 206-216.
36
Na versão em que o negro apareceu como criação de Deus, foi representado de forma inferior em
relação aos demais elementos “representantes das raças, por uma espécie de retardamento físico e
mental”, os quais o inibia de qualquer iniciativa própria, vejamos a lenda:

Origem das raças (Pari)


Antigamente todos os homens eram pretos. Uma vez Deus resolveu premiar o esforço de
cada um sem nada ter dito a eles: mandou-os atravessar um rio. O mais esperto, e que
tinha mais fé, executou logo as ordens de Deus, atravessando o rio a nado. Quando saiu
do outro lado estava completamente branco, que era uma beleza (...) O terceiro também
quis mudar a cor (...). Mas a água estava mais suja e quando ele chegou do outro lado
viu com desgosto que estava apenas mulato (...). O quarto muito molenga e preguiçoso,
quando chegou ao rio, Deus já o tinha feito secar. Então ele molhou os pés e as mãos,
apertando-os sobre o leito do rio. É por isso que o preto só tem as palmas das mãos e as
solas dos pés brancas68.

Na primeira metade do século XX, na sociedade paulistana, como no século XVIII na Europa,
estão presentes as noções populares de criação do homem, que se associaram às cientificas para
enfraquecer a “doutrina ortodoxa da singularidade do homem”. Segundo o pesquisador Thomas, o
monogenismo (crença teológica na descendência de um tronco comum dos homens) não impediu a
emergência de noções de inferioridade racial, pois a cor negra era comumente encarada como uma
deformidade; era comum encarar que os negros tinham degenerado de seu ancestral comum, Adão,
enquanto, os brancos tinham permanecido constantes, ou mesmo melhorado. O escocês Lineu, que era
monogenista, por exemplo, achava que os africanos eram “manhosos, preguiçosos e indolentes”69.
No próprio jornal A Voz da Raça localizamos uma reflexão a respeito da origem do corpo negro.
Segundo a escritora do texto, Maria de Lourdes Rosário, “a nossa origem foi única, do casal paradisíaco
de que nos fala o Gênesis”. Nesta direção, se ao corpo negro fosse atribuído qualquer tipo de
inferioridade o mesmo deveria ser conferido ao branco: “E você meu irmão branco, nega ao negro capaz
pelos característicos de raça que legou-lhe a natureza? Negue ao branco boçal, cuja formação moral
rastejante não se adapta ao seu meio social, assim como também negue ao negro em condições
idênticas”. Deste ponto de vista, o homem deveria ser julgado pelos seus princípios morais, religiosos,
patrióticos. Pelo seu “grau de integralisação á Pátria” 70. Evidentemente a escritora frentenegrina ratificou
as idéias da elite paulistana, ávida por espalhar os seus valores e princípios pela sociedade e reagiu como
os europeus ao descobrirem o “Novo Mundo” (século XVI e XVII). Os estrangeiros encaravam os
habitantes desta terra como “selvagens por viverem nus e pela condição em que se encontravam”. Não
68
Fernandes, Florestan. O negro no mundo dos brancos, Op. Cit., 206-216.
69
THOMAS, Keith. O homem e o mundo natural. Op. Cit., pp. 163.
70
Filosofando. A Voz da Raça, São Paulo: 30 de junho de 1933, p. 3.
37
levavam em consideração as diferenças culturais e materiais: inferiorizam os povos que não estavam no
mesmo grau de “progresso e civilização” da Europa 71. Desenvolviam lentamente suas virtudes sociais,
na visão da escritora frentenegrina, brancos e negros deslocados do “progresso paulistano”.
José Carlos Silva registrou no seu texto os ditos do imaginário que se perpetuaram no tempo na
sociedade paulistana: “cada macaco no seu galho, preto que nem um carvão, negro não é gente, feder que
nem negro, frango de macumba, tição, urubu”; e entendeu que o insulto que associa negro ao animal tem
a intenção de atingir elementos que estejam nos limites entre a natureza e a cultura. Portanto, insultar
uma pessoa com as categorias de animais domésticos denota maior força simbólica, porque a coloca
nestes limites, indicando que ela não pertence ao reino da cultura. Faltam-lhes atributos humanos para
tal. A sua condição não é, portanto, muito diferente daquela que é ostentada pelos animais domésticos,
incapazes de ingressarem no mundo da civilização. Os insultos lançados aos negros indicam a tentativa,
numa sociedade plural, de colocar o negro em seu lugar, ou seja, próximo da natureza, posição que
ocupava no período escravocrata, quando a sua condição social era melhor definida 72. Atento a esses
insultos inferiorizantes, O Clarim d’Alvorada reclamou dos xingamentos dos filhos de italianos dirigidos
aos corpos negros na região do Brás:

Então a gente era sempre espesinhado se a gente passava sozinho em qualquer lugar,
que tinha criança branca, nossa eles xingavam a gente. De negro fedido, escondido no
mato, cabeça pra fora, parece macaco. Era comum isso a gente ouvir. E isso eu ouvi até
velho. Em 1935, na guerra da Itália, que a Itália estava invadindo a Etiópia, nossa mãe,
o que eu sofri naquelle Brás. Aquela criançada, filhos de italiano, o que eles caçoavam
de mim por ser negro e me chamavam de negro africato olha o negro africato era
assim73.

Nesta época Nina Rodrigues já havia escrito que o negro é inferior ao branco, entre outros
aspectos, por possuir “uma massa encefálica” menos pesada e por carregar “um aparelho mastigatório”
com “caracteres animalescos”. E, por mais paradoxal que possa parecer, o próprio autor respondeu,
indiretamente, o quanto esta associação entre o homem e o animal, para a cultura africana, não tem uma
conotação ofensiva. Assim, sublinhou ao se referir à religião: “o crocodilo é um animal sagrado para
71
THOMAS, Keith. O homem e o mundo natural. Op. Cit., pp. 157.
72
SILVA, José Carlos Gomes da. Os sub urbanos e a outra face da cidade. Negros em São Paulo (1900-1930): cotidiano,
lazer e cidadania. Campinas, Dissertação de mestrado em História, IFCH/UNICAMP, 1990, pp. 43. José Carlos Gomes
objetiva no seu estudo compreender as formas específicas através das quais o negro paulistano experimentou no início do
século a condição de homem público. A questão central da sua dissertação é entender o que significava ser cidadão negro
numa cidade como São Paulo, não a partir de indivíduos isolados, mas analisando parcelas da comunidade paulistana, que
possibilitaram aos indivíduos participar da vida pública enquanto cidadãos, pp. 5.
73
O Clarim d'Alvorada, São Paulo: 15. 01. 1927, pp. 4.

38
muitos povos africanos, chegando mesmo a ser adotado em alguns pontos da África”. Logo, tais
satirizações corporais não deveriam ofender a comunidade negra associada se esta fosse valorizadora da
cultura africana.
Arthur Ramos, um dos seguidores do pensamento de Nina Rodrigues, admitiu que nos contos
africanos, de grande influência no Brasil, a presença de animais é imensa. Estes animais desempenham
funções humanas nestes contos. Têm sentimentos humanos: astúcia, fineza, humor. O “coelho, o chacal,
a hiena, o elefante, o crocodilo, com seus nomes próprios a cada dialeto figuram em multidão de contos e
fábulas africanas”. Ramos ilustrou ainda esta questão no item das danças guerreiras africanas. No
Zambeze existiam “verdadeiros dançarinos, ágeis como corças, com as cabeças ornadas de plumas ou
capacetes velhos e vestidos de peles de macaco e de gazela. Traziam os rostos enfarinhados, um escudo
na mão esquerda, e, na destra uma zagaia ou machadinha. Corriam, de um lado para o outro invocando a
alma de algum guerreiro”. Não deixou, porém, de questionar a cultura africana: “Entre os povos
atrasados, o folclore dos animais, revelando um contato estreito entre o homem e o animal, numa espécie
de vida comum, conduz-nos insensivelmente à crença nos seres míticos, meio homens, meio animais, de
que estão cheias as lendas da humanidade”74.
Freyre escreveu que “nem merece contradita séria a superstição de ser o negro, pelos seus
caractéres somáticos, o tipo de raça mais próxima da incerta forma ancestral do homem, cuja anatomia se
supõe semelhante a do chimpanzé”. Tal superstição se baseia no julgamento desfavorável que se faz da
capacidade mental do negro. Entretanto “os lábios dos macacos são finos como na raça branca e não na
preta” e, “entre as raças humanas, são os europeus e os australianos os mais peludos de corpo e não os
negros75”
Borges Pereira, historicizando o universo radiofônico e a inexpressiva inserção da população
negra em emissoras, disse mais sobre a maneira como um grupo da sociedade lidava com o negro
quando ele não dispensava o mínimo cuidado ao corpo. Durante as primeiras décadas do século, a figura
negra serviu de chacota: "O calouro em si desajeitado e inibido, quase sempre mal trajado e, às vezes, até
mesmo maltrapilho, transformava-se em atração para o ouvinte,” e por isto mesmo, passou a ser
componente programático obrigatório em todas as estações. Na construção deste personagem, o
pesquisador considerou que a imaginação do autor do script tentou retratar o "herói-burlesco" como
sendo o tipo particular do mundo de negros. "Lá naquele ambiente - esboçado sugestivamente pela
imagem ou apenas sugerido pela narrativa - os padrões de conduta” sofreram “estranhas combinações,

74
RAMOS, Arthur. O folclore negro do Brasil- Demopsicologia e psicanálise. Rio de Janeiro: Livraria Editora da Casa do
Estudante, 1935, pp 123-181.
75
FREYRE, Gilberto de Mello. Casa-grande & senzala. Op. Cit., pp. 296
39
compondo um estilo de vida que embora romantizado”, era “inteiramente desabonador ao homem de cor
elaborado, partindo da visão depreciativa que se” fazia “comumente da vida diária do negro. A
estilização desse negro” era “feita à base de estereótipos impregnados de alusão à estética: feio, macaco,
tição; ou ligados à sua descaracterização social e sua frouxidão de costumes: malandro, rufião,
delinqüente, maloqueiro, amasiado, bêbado, vagabundo, mandingueiro, pernóstico, servil...". O mesmo
autor nos revelou ter surgido destas generalizações populares, que procuravam identificar características
"negroides" a traços "simiescos", a expressão “macaca de auditório” (principal elo de ligação entre o
negro e o animal), em vista da presença barulhenta das mulheres negras nos auditórios radiofônicos76.
No momento histórico, entre os anos 20 e 40, a comunidade “jornalística” esteve observando a
maneira adversa como os negros andavam se comportando, se apresentando, que parecia em nada
condizer com o programado pelos jornais, com as notas recomendativas corporais. E estas imagens
adversas enfocadas pelos jornais (corpo esfarrapado, doente, prostituído, alcoolizado) eram aproveitadas
ainda pela sociedade mais ampla no processo de construção e reafirmação dos estereótipos em torno da
figura negra. Dos homens, das mulheres, das crianças e dos velhos que perambulavam pelas ruas, pelas
festas e pelas associações, os líderes negros emitiram opiniões, tanto sobre o estilo de ornamentação
pessoal quanto sobre a falta de cuidado com o corpo, cumprindo exatamente uma função policialesca:

Um dever. Hoje, infelizmente, ainda se vêem passar, pelos arredores, mesmo no coração
da cidade, muitos patrícios que são escravos, não daquelles senhores carrascos, mas dos
vícios que os tornam incapazes para tudo: principalmente ao trabalho, que é a base
essencial da nossa vida material. Merecem compaixão, causam-nos dó! Quais os motivos
que os obrigam a andar maltrapilhos, cobertos de chagas nos bancos públicos e sendo
muitas vezes pensionistas de polícia? E porque se deixaram dominar pelos vícios. Pela
embriaguês constantemente, vemos chefes de família abandonarem seus lares; jovens que
poderiam gozar uma velhice feliz, hoje, porém como andam!... tornando-nos inúteis à
Pátria(...)77.
Moyses Cintra

O militante Correia Leite sustentou uma preocupação exacerbada para com os corpos femininos
negros esfarrapados e dominados pelo vício do álcool nas ruas. Contudo, sua compaixão figurou-se mais
para o lado masculino, isto é, temia a desvalorização dos sobrenomes dos homens que foram
abandonados pelas esposas decadentes. Sempre a inquietação para com os moradores de rua esteve
relacionada ao temor de uma possível destruição da família negra, da classe social e da pátria brasileira.

76
BORGES PEREIRA, João Baptista. Cor, profissão e mobilidade: o negro no rádio de São Paulo. São Paulo:
Pioneira/EDUSP, 1967, pp. 130-155.
77
O Clarim d'Alvorada, São Paulo: 02. 03. 1924, pp. 3.

40
Decadência. Não é somente no elemento masculino que devemos pensar para a
organização social da nossa classe; porque também o elemento feminino necessita de
auxílios. Num dos pontos mais tristes, que sempre contemplamos em todos os recantos da
nossa paulicéia, é sem dúvida a decadência da mulher preta 78. Quantas vezes deparamos,
em pleno coração da cidade, com patrícias errantes, arrastando imundos trajes,
dominadas pelo maldito álcool, que é causa de tantas desgraças e que infelizmente
domina muitas que poderiam ser mães exemplares, expondo-se ao ridículo e nos
envergonhando? Quanto dóe em nossa alma contemplarmos essas victimas da sua
fraqueza, vivendo nesses emperrares, (...) vel-as hoje em completa miséria; quantas
esposas abandonam seus lares, illudidas vão se atirar na lama dos vícios, arrastando
para lá muitas o bom nome do próprio esposo79.

Corpos tenros e farrapos! São flores em botão que jamais darão frutos sagrados, porque
vivem sem amparo de ninguém, pelas ruas crestando-se pelos bailes 80.

Segundo o militante Pedro Rodrigues, dizia “o hino frentenegrino” que a “gente negra” era “forte
em todos os sentidos, não só anatomicamente falando como forte de inteligência, forte de sentimentos
afetivos, enfim, forte de corpo e forte de espírito”. Uma “raça” na qual havia indivíduos que possuíam
“uma resistência orgânica” surpreendente. Contudo “a raça” estava definhando, devido ao abandono e
ignorância em que se encontrava no Brasil, pois puzeram-na à margem da sociedade depois de tudo ela
ter feito pela grandeza desta terra81. O negro ficou livre e, “se batendo em seu território, nu, sem
dinheiro, sem lar e sem o conforto material para a sua manutenção82”.
A tuberculose, entre outros males, inquietava definitivamente a sociedade paulistana, tanto que
sob a orientação da Delegacia de Saúde, o Dr. David Teixeira realizou na sede da Frente Negra uma
conferência sobre a doença. No desenrolar das causas da doença, concluiu que o que melhor alicerçava

78
A palavra preta/preto aparece constantemente nesta imprensa, assim como a expressão “homem de cor”. O que se sabe é que
Vicente Ferreira, um importante orador do meio negro daquela época, condenava o uso da expressão “homem de cor”,
preferia que se usasse a palavra negro. Acreditava-se então na existência de palavras e expressões que tendiam a degradar o
corpo negro. Às vezes, palavras e expressões pejorativas tornam-se a-históricas, mas é bem verdade que os significados
depreciativos estão mais incutidos nos sujeitos preconceituosos do que nas próprias palavras e expressões. Nos deparamos
quase constantemente também com o uso da palavra mulato/mulata na imprensa negra, palavra que, muitas vezes, vem
carregada de significados depreciativos á figura do mestiço. Mas o que não conseguimos captar foi uma diferenciação entre o
uso da palavra “negro/preto/ homem de cor”, isto é, tanto para elogiar quanto para criticar a figura do negro empregaram os
três termos, usaram esses termos para falar do negro pobre/rico, feio/bonito, associado/desassociado, etc; Mariza Corrêa, por
exemplo, diz que, no Brasil, “o escravo passou a ser negro, racial e biologicamente definido, depois da abolição”. Foi nesse
período que o termo negro, e não preto, passou a ser “usado na literatura especializada, definindo aqueles que eram
biologicamente inferiores aos brancos”. Lilia Schwarcz, através da análise dos jornais do século XIX, verificou que a
categoria negro começou a ser mais empregada para designar aquele escravo fujão, rebelde.
79
O Clarim d’Alvorada, São Paulo: 12. 10. 1924, pp. 1.
80
Progresso, São Paulo: 15. 11. 1931, pp. 2.
81
A raça negra: uma maravilha humana. A Voz da Raça, São Paulo: 22 de abril de 1933, p. 4.
82
O que foi a raça negra. A Voz da Raça, São Paulo: 11 de novembro de 1933, p. 1.

41
tão horroroso mal era "o vício dos alcoólicos, as longas noitadas mal passadas ao relento com acréscimo
da má alimentação, além do notável desleixo dos bêbados em cujo senso já não pode existir a higiene".
Neste ínterim, o Departamento de Saúde da cidade de São Paulo transmitiu a tarefa de combater a
doença para a Frente Negra e, próximo da instituição anti-racista, acusou unicamente os pobres da cidade
pelo desenvolvimento da doença. Ora, se a peste era branca, como bem disse a reportagem, o que os
negros pobres tinham a ver com a propagação?

Semana anti-tuberculose. Perante numeroso auditório, composto em sua maioria de


frentenegrinos e sua família. O Dr. David Teixeira realisou na Sede da Delegação da
Frente Negra uma substanciosa conferencia sobre a tuberculose, suas conseqüências
sociais e a maneira pratica de se evitar a peste branca que hoje vem matando muita gente
a mesma a própria da guerra. (...). A sua conferência foi ouvida com religiosa atenção
tendo me impressionado muito. Silva em nome dos presentes usou a palavra, agradecendo
um entusiasmo improvisado a feliz idéia da Delegacia de Saúde mandando instruir o
nosso povo para um luta pacífica e tão humanística que é a de combater o bacilo de
Koc83.

Não havia no início do século um serviço regular gratuito de tratamento às doenças. Segundo o
memorialista Bruno, abriu-se em 1918 o primeiro posto de tratamento à sífilis na Santa Casa de
Misericórdia, por iniciativa dos Estudantes da Faculdade de Medicina – Serviço, que mais tarde se
transformou em Liga de Combate à Sífilis. Em 1924 foi oficializado pelo governo, em colaboração com
o Instituto Rockfeller, o Instituto de Higiene, destinado a construir uma escola de sanitaristas que, em
1938, seria incorporado a Universidade84.
Numa espécie de conto A Voz da Raça reconheceu que foram os fatores externos que mais
prejudicaram o negro, levando-o, inclusive, à bebedeira. Nas primeiras argumentações concernentes às
causas da embriaguês, o corpo negro não tinha propensão a doença. O abandono e a vida miserável
levaram as mulheres e os homens negros a tornarem-se alcoólatras. A única saída para exterminar tão
horroroso mal seria definitivamente a abstenção:

Estamos bem. Um conto verídico. Na estação de trem, no trem.


Aglomeração curiosa envolven’a. Paira em alguns lábios um riso sarcástico. Alguns
dirigem-lhe a palavra. Mas ás perguntas ela responde com frases desconexas. A um
grupo de gentis senhorinhas despertou curiosidade, por isso, perguntou-se á alguém:
-O que tem a pobre preta?
-Um ataque forte coitada! Convinha leva-la para a Santa Casa.
-Ataque?! Ataque nada, atalhou uma terceira, isto é pinga.

83
A Voz da Raça, São Paulo: 31.03. 1934, pp. 4.
84
BRUNO, Ernani Silva. História e tradições da cidade de São Paulo (São Paulo de Agora). São Paulo: HUCITEC, 1991, pp.
1363.

42
É pinga! e a pobre preta lá esteve na Santa Casa de Misericórdia. Horrivelmente
abalada tem a saúde pelas vissicitudes de uma vida de miserável abandono.
Os agentes intrínsecos e extrínsecos que roubam da humanidade a saúde, não atingem,
por certo, ao negro senão ao agente classificado na ordem dos extrínsecos: a pinga. E
como da pinga podemos e devemos nos abster. Estamos bem85.

Contudo, tanto os fatores internos quanto os externos foram arrolados pelos escritores acerca da
degradação física e moral causada pelo alcoolismo. Nas notas mais longas vamos nos assustar com a
quantidade de vezes em que os escritores negros relacionaram o alcoolismo à degenerescência. Destas
associações entre o vício e a degenerescência interpretamos primeiro que os escritores negros
questionavam a idéia de que o corpo negro tinha propensão aos vícios e a doença, depois fomos
verificando que os escritores negros assimilavam a idéia de degenerescência e a dirigia para a população
pobre e sem instrução da cidade, inclusive, para os negros:

O alcoolismo, um dos flagelos da humanidade. Especial “A Voz da Raça” Pedro Paulo


A Rodrigues
O alcoolismo acarreta a humanidade grandes males raciais e sociais como fator de
degenerância psico-orgânica incentivo a prática que o bom senso e a normalidade
condenam (...).
São atingidos pelos malefícios do alcoolismo não somente os viciados, mas ainda os que
com eles convivem, principalmente seus familiares atingidos pelo ferrete da vergonha, e
os descendentes que herdam quase sempre espíritos fracos e organismos predispostos a
tuberculoses, a idiota moléstia de Parkinson, etc. Quantos infelizes e inocentes creaturas
não arrastam atribulada e amarga existência, recebendo assim os juros dos
desregramentos alcoólicos de seus ancestrais e às vezes longínquos 86.

No mesmo texto, “Alcoolismo, um dos flagelos da humanidade”, a ação do álcool foi descrita
como negativa porque deixava o organismo fraco e predisposto às doenças e, principalmente, porque
depois do “falso estimulo e despertar de energia”, exercia ação contrária, deixando o combatido
predisposto à inércia e a vagabundagem. O discurso contra o álcool, neste caso, esteve intimamente
ligado à ideologia do trabalho e, de todo modo, imbricado de fatos generalizantes: “os alcoólatras”
tornavam-se “quase sempre de gênio incrível”. No “o lar”, exerciam “às vezes tiranias inacreditáveis
sobre as esposas e filhos”, os quais eram forçados a abandonar suas casas ou “heroicamente” submetiam-
se aos “aviltadores”.

85
A Voz da Raça, São Paulo: 19 de agosto de 1933, p. 4.
86
A Voz da Raça, São Paulo: agosto de 1933, p. 4.

43
Para os viciados, a única saída seria novamente “abster-se” de ingerir o álcool, “seja na forma da
popular e barata caninha que” estava “ao alcance de todas as bolsas, ou da louca e espumante champagne
que” rodava “em profusão nas orgias dos magnatas”. Seja em que forma fosse 87, o álcool deprimia,
degenerava e até fazia desaparecer os povos inteiros que dele abusavam, como vinha “acontecendo com
algumas tribus de pele vermelha e algumas da Oceania”. Os povos estavam sumindo, devido ao uso e
abuso do álcool “conjuntamente com outras corrupções”.88
Apesar de ter seduzido homens e mulheres nobres, o álcool, causava os piores estragos no físico
e na vida social dos povos não só do Brasil como da região da África e da Oceania. Contudo, ficou
evidente que A Voz da Raça não relacionou, diretamente e constantemente, o ato de beber dos ricos e
instruídos às “taras” e às degenerações. A Voz da Raça reconheceu os pobres (brancos e negros) como
classes perigosas. “É nos núcleos destituídos de instrução e educação que esse flagelo social faz a
maioria das vítimas, não sendo porém, privilégios deles, pois existirem senhoras de altas
cavalariças,“cheveux blancs et sang bleu, cujos nomes até servem para designar certas especialidades de
vícios e perverções, nos quais foram verdadeiros recordistas”89.
A Delegacia de Saúde vigiava o comportamento dos meios negros, vigilância que foi agradecida
e alastrada pela Frente Negra. O sujeito ébrio, esfarrapado, sem instrução era quem desarmonizava não
somente as relações familiares e patrióticas, como ainda poderia comprometer a moral, a religião e o
"futuro da raça negra":

Semana anti-alcoolica. Fomos surpreendidos com a gentil visita de um inspetor da


Delegacia de Saúde desta cidade que perante crescido número de alfabetizados e
frentenegrinos realizou uma edificante e substanciosa preleção sobre os efeitos danosos
do álcool na economia urbana comprometendo como compromete seriamente a moral, a
Pátria, a família, o futuro da raça e até a própria religião porque o ébrio não respeita
nem Deus. Falamos também agradecendo esta proteção de tanta oportunidade, pois
continuará a ser a nossa preocupação nas escolas da Frente Negra 90.

Considerando os estragos proporcionados pelo do álcool seria conveniente proteger os associados


da bebida:
Observação importante
Para boa ordem e em homenagem a nossa Liga Anti-Alcoolica, nesta festa social em que
se visa um certo senso Cristão, não se admitirá uma só gota de bebidas espirituosas 91.
87
Ver a figura 26 – propaganda da cerveja Antártica no próprio jornal “A Voz da Raça”.
88
A Voz da Raça, São Paulo: 16 de setembro de 1933, p. 2.
89
A verdade acerca do álcool. A Voz da Raça, São Paulo: 31 de dezembro de 1935, p. 2.
90
A Voz da Raça, São Paulo: 11. 11. 1933, pp. 4.
91

44
Na observação importante, não sabemos nem a qual festa referiu-se A Voz da Raça, porém nas
entrelinhas captamos que não serviriam a bebida porque tal ato quebraria a principal regra da Liga Anti-
Alcoólica: a abstinência. No dizer d A Voz da Raça a liga Anti-Alcoólica doutrinava a comunidade
frentenegrina e as diversas agremiações negras, que não procuravam estudar a causa da “miséria moral .
O álcool era “a desculpa para todas as coisas”, era um verdadeiro “milagre” para “uma raça tarada pelo
álcool”92.
E, Rajovia resenhou no texto o “Vício de beber”, que, “apesar da forte doutrinação, dos
ensinamentos mais sãos, dos exemplos mais reais, a campanha contra o álcool, iniciada periodicamente
por diversas agremiações”, havia fracassado, enfatizando sobremaneira a propensão do corpo negro a
vicio, palavra mais contante do que doença. No Brasil o álcool era “um mal geral, maior que o mal dos
doutores”. Eles entregavam, às vezes, ordenados inteiros numa simples bebedeira, enriquecendo o
“botiquineiro ardiloso” que dava os mais variados nomes à sua droga sem atentar para o “prejuízo moral
e físico”93. Rajovia, entre os escritores que refleriam acerca do álcool, foi um dos poucos a assinar um
texto que relacionou o “vício” de beber às degenerações: crime, loucura, doença hereditária. Por vezes,
ficamos com a impressão de estar dialogando, nestes textos sobre o álcool, com médicos e antropólogos
criminais daquela época:

A verdade acerca do Álcool.


Ninguém mais habituado para dizer a absoluta verdade acerca do álcool do que o
médico.
Quantos males poderia a humanidade evitar, se abandonasse a garrafa. Na exposição
abaixo mostra que o álcool não tem um valor nutritivo, que diminue a força muscular,
perturba a digestão e enche os hospícios.
Atravez dos séculos a humanidade tem vindo adotando costumes que a tem desviado da
vida natural para a qual a destinou o Criador. Entre os referidos costumes – pernicioso,
porque contribuem para abreviar nossos dias – encontra-se o consumo de substâncias
que, longe de ser alimentícias, só prejudicam, como o álcool e o fumo, a não falar outros
estimulantes menos violentos (...).

Discriminando a verdade acerca do álcool o jornal A Voz da Raça informou que transcreveu as
argumentações de um médico, Dr. R., sobre as substâncias químicas danosas ao corpo. Entretanto,
conhecemos apenas a letra inicial do doutor, o que nos levou a pensar que ele não queria responsabilizar-
se completamente pelas observações comprometedoras, que relacionavam os vícios às taras e as

Alcoolismo. Um dos flagelos da Humanidade. A Voz da Raça, São Paulo: 9 de dezembro de 1933, p 1.
92
Uma campanha necessária. A Voz da Raça, São Paulo: 6 de maio de 1933, p. 4.
93

A Voz da Raça, São Paulo: 23 de dezembro de 1935, p. 3.


45
degenerações e, ainda, que o próprio jornal tomava para si as conseqüências da escrita. Nesta segunda
interpretação concluímos que o médico escritor das causas e das conseqüências do hábito de beber
poderia ser um associado da F. N. B. Evidenciamos que os primeiros parágrafos do texto foram escritos
por um “jornalista” dA Voz da Raça, enfatizando exatamente o mal que os comportamentos e os
costumes da sociedade moderna provocavam ao corpo, qu sofreram críticas no aspecto “ingerência do
álcool”: “a humanidade tem vindo adotando costumes que a tem desviado da vida natural para a qual a
destinou o Criador”94. No texto “Uma campanha necessária” essa idéia também foi marcante: “a geração
que se forma, deve ser educada num novo caminho. Voltar a natureza, e gozar das vantagens que o solo
abençoado nos deu, a fruta é simplicidade natural dos primeiros tempos. Li a pouco o que disse um
médico, o homem tem probabilidade de viver cem anos (?), mas com a pinga não chega a quinta parte
dessa existência”95. Tanto era forte a idéia de que o corpo pobre e sem instrução tinha propensão ao vício
como era flagrante o reconhecimento de que foram os costumes urbanos e sociais que corromperam e
degradaram o corpo negro.
Neste texto o ébrio desarmonizava a religião porque não compreendia e assimilava as virtudes
apresentadas pela doutrina religiosa, virtudes que combinavam com os ensinamentos dos líderes negros.
Um dos pilares da ascensão social para o jornal A Voz da Raça era justamente a educação, que de acordo
com o escritor do texto, Castelo Alves, estava em consonância com a saída que, por sua vez, o
antropólogo criminal Cesário Lombroso advogava para amenizar o vício do álcool, as “taras”. Segundo o
autor anônimo do texto “Os tarados”, “a tara é uma certa tendencia espiritual e psíquica que arrasta o
indivíduo para a prática de atos e costumes reprovados pela moral, e os tarados não tem a devida
educação para se conter”. Os tarados são possuidores das seguintes propensões: “libidinagem, homicídio,
meretrício, falta de caráter, etc”:

Os tarados não rixentos, propensos ao latrocínio, à mentira e odientos menosprezam a


própria Divindade só porque os seus sacerdócios aconselham a prática de todas as
virtudes, que eles influídos pela tara, não prezam. A tara está com todas as raças e no
seio de todos os povos como um intorpecente das melhores qualidades. Seria fácil evitar
a tara do que cura-la visto que o único medicamento eficaz é a educação sistemática
nas escolas, como já afirmara Lombroso 96 em sua Medicina Legal. Evitamos a tara
combatendo o alcoolismo e a sífilis como fatores principais, evitando-se o alcoólatra e o
sifilítico, e estes por sua vez, num lampejo de bom senso evitar constituir proles de
infelizes como até hoje. Como o negro deseja reergue-se, é bom que saiba evitar a tara
94
Uma campanha necessária. A Voz da Raça: São Paulo: 6 de maio de 1933, p. 2.
95
A Voz da Raça, São Paulo: 6 de maio de 1933, p. 2.
96
O italiano Cesário Lombroso (1836-1909) foi o criador da antropologia criminal, em seus experimentos media o crânio e o
seu conteúdo e criava “uma classificação dos traços faciais e corporais”. A intenção de Lombroso era detectar o que “subsistia
dos ancestrais primitivos” nos homens e nas mulheres contemporâneos que os levavam à loucura e ao crime. Nina Rodrigues
teoricamente foi influenciado pela obra de Lombroso e pela escola médico-legal francesa que teve como expoente
Lacassagne. CORRÊA, Mariza. IN: As ilusões da liberdade, Op. Cit., pp. 178.
46
para a nossa felicidade e grandeza da pátria. Para bem e entender meia palavra
basta97. Os Tarados

Com uma certa doze de humor, na sessão de anedotas do próprio jornal A Voz da Raça, alguém
satirizou a doutrinação corporal, imposta por parcela dos líderes negros, associada à degenerescência,
aos princípios cristãos e a abstenção do álcool:

Foi bem feito


Um crente (?) pregava contra o álcool.
-O álcool mata, o álcool leva á loucura, o álcool faz perder toda a dignidade.
Ahi tendes, meus irmãos – acrescenta ele – um exemplo que nos mostrará o quanto é
nocivo o álcool: um sábio fez, há pouco, a seguinte experiência: pegou um porco e o fez
engolir meio litro de genebra... e o porco morreu.
Foi bem feito – interrompeu um dos fiéis – a genebra não foi feita para os porcos 98.
Depois de progredir na leitura dos textos, referentes aos modos de tratamento corporal, ficamos
com a impressão que essa preocupação para com os esfarrapados e pobres da cidade não passou do nível
verbal de reclamação. Pois, era flagrante a inexistência de qualquer medida dirigida ao tratamento desses
corpos.
Por volta de 1920, as “elites” da população de cor não queriam saber de nenhuma ligação com a
zona espúria da sociedade paulistana. Se dependesse deles, aqueles elementos” (malandros, vagabundos,
prostitutas, mendigos, etc) “seriam presos e deportados para o interior, ou sujeitos a programas
correcionais, sob tutela policial. Os resultados de alguns estudos de caso revelaram que as associações
recreativas circunspectas não aceitavam para sócios pessoas suspeitas, de condição desmoralizadora”99
Os salões de embelezamento, os locais de assistência médica e as caixas beneficentes, criados
pelas associações eram de uso dos associados e não estavam dispostos a atender qualquer freguesia,
principalmente, a freguesia vinda da rua ou que contrariava as regras de comportamento da comunidade
negra associada. Captamos pelas falas dos militantes que nem todos tinham condições de imprimir em
seus corpos o mínimo de tratamento, limpeza e ornamentação idealizados por médicos, engenheiros e
escritores dos jornais da época. Será que todos os negros da cidade tinham, pelo menos, água encanada
para tratar de seus corpos? Os militantes queixavam-se desta questão ao poder público?
Em resposta aos xingamentos, aos padrões de embelezamento e a situação da época uma parcela
da população negra buscou tornar-se agradável para si e para os outros. Era como se a resistência e a
dominação negra ficassem expressas nas várias propostas de cuidado e exposição do corpo emitidas
pelos jornais. Propostas de embelezamento ligadas ao branqueamento do corpo, ao cultivo da beleza, ao
97

A Voz da Raça, São Paulo: 11 de novembro de 1933, p. 1.


98
A Voz da Raça-: 31 de dezembro de 1935, p. 3.
99
FERNANDES, Florestan. A integração do negro á sociedade de classes, Op. Cit., pp. 163.
47
uso de vestimentas da moda, nova e limpa, às maneiras de se comportar em público e nas reuniões
familiares e associativas, etc.
Analisando a intensidade desta crítica do branco ao corpo negro Jean Paul Sartre escreveu que
"há em certa gente", o asco ao judeu, assim como há o asco ao chinês ou ao negro. "E esta repugnância
não nasce do corpo, se se ignora a sua raça; tal repulsa chega ao corpo pelo espírito, é um compromisso
da alma, mas tão profundo e tão completo que se estende ao fisiológico, como sucede na histeria"100.
Em réplica a esta “histeria”, que pode ser traduzida neste estudo pela exigência de um padrão
branco de embelezamento, o bem cuidado apresentou-se a partir de duas perspectivas. A mais constante
delas acatava certos estereótipos da sociedade branca e os recriava. O texto de uma pesquisadora negra,
Neusa Santos, concorda absolutamente com o que disse Borges Pereira no tocante às visões construídas
sobre o corpo negro pela sociedade em geral, visto como "exibicionista, pernóstico e grotesco".
Trazemos a sua interpretação então para pensarmos nas novas e abrangentes técnicas de metamorfoses
(representadas por Michael Jackson) e, principalmente, para pensarmos o que interiormente estimulavam
e estimulam os negros a aderirem a tal processo: "Os esforços para curar a ferida vão então se suceder
numa escalada patética e dolorosamente inútil”. Primeiro tenta-se metamorfosear o corpo presente, atual,
de modo penoso e caricato. São os pregadores da roupa, destinados a afinar o nariz ou a usar os produtos
para alisar o cabelo ruim101.

1.5 - O corpo negro: cabelo e pele

A partir do século XX, os indivíduos conquistaram uma maior liberdade de modificar seus
corpos. Houve um crescimento das técnicas e dos produtos de transformação e isso atingiu não apenas o
corpo negro: seios e nádegas siliconados, plástica rejuvenecedora, cabelos artificiais, ginásticas diárias,
"cuidados com a alimentação", uso de remédios emagrecedores... a lista é ampla e diversificada,
atingindo o corpo de várias etnias, classes sociais e todos os sexos.
O francês Bonniol escreveu, ao analisar as variações, marcas e metamorfoses da beleza e da cor
da pele, que a valorização imperiosa da brancura quase sempre está sob o efeito de uma dominação
histórica, imposição difícil de se libertar, seja na escrita, seja na expressão gestual do corpo.
Direcionando mais o fenômeno da metamorfose para o corpo do pop-star Michael Jackson, ele entendeu
100
SARTRE, Jean Paul. Reflexões sobre o racismo. 3 ed. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1963.
101
SOUZA, Neusa Santos. Tornar-se negro ou as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social. Rio de
Janeiro: Editora Graal, 1983, pp. 7. O livro de Neusa Souza torna-se uma análise psicológica de dez casos apresentados, tende
a entrelaçar os relatos de negros à temas como a identidade, a cultura, a brancura, os estereótipos corporais e a "democracia
racial".

48
que a recusa corporal, talvez, tenha muito a ver com a recusa das origens, mas certamente vai além. É a
expressão dos "casos limites", em que o clareamento do rosto e o rigoroso alisamento do cabelo
acompanham uma transformação sistemática, pelos recursos das cirurgias e uso de produtos químicos. O
cantor não pode tornar-se branco, "projeta-se uma aparência improvável, cujo lado mutante foi
sublinhado”. Os signos distintivos da racialidade se apagam e o que se percebe é o efêmero, baseado na
idéia de que todo dia se renova estilisticamente a moda na sociedade contemporânea102.
A moda é menos signo das ambições de classes do que a saída do mundo da tradição, é um desses
espelhos onde se torna visível aquilo que faz o nosso destino histórico mais singular: a negação do poder
imemorial do passado tradicional, a febre moderna das novidades, a celebração do presente social.
Durante a década de 20 e 30, a liberdade de modificar o corpo em nome da beleza não era ainda
bem aceita pela imprensa. A possibilidade de mudança era limitada aos cosméticos. Mas a pele e o
cabelo ascenderam à condição de nobreza nas discussões dos escritores preocupados em recomendar o
cuidado das aparências negras. Houve, por exemplo, um investimento propagandístico grandioso para
tornar o cabelo e a pele apresentáveis socialmente. Mais recentemente há um investimento publicitário
em torno da boca e do nariz da figura do negro. No entanto, entre os anos 20 e 30, a exigência dos
cabelos lisos era constante nas reportagens e anúncios publicitários. Por conseguinte, técnicas e produtos
apropriados para se conseguir um cabelo menos crespo e menos volumoso conquistaram forma e valor.
Vendedores, salões e alisadeiras, que se autodenominavam modernos no ramo, veiculavam a pasta e o
pente quente como métodos mais seguros para alisar o cabelo e adquirir, após o alisamento, outros cortes
em voga pelo mundo, ou mais especificamente de acordo com os penteados franceses. Apareceram
poucos anúncios de produtos capazes de diminuir a queda dos cabelos, pois quem oferecia esse tipo de
serviço moderno, infalível, rápido e barato, acreditava e anunciava não estar causando nenhum dano ao
cabelo do freguês. Enquanto os anúncios de alisamento repetiam-se e multiplicavam-se, os produtos para
reparar os danos sofridos pelos cabelos raras vezes apareciam (com exceção do Dulcabir e da Bela Cor),
assim como também foi inexpressiva a veiculação de anúncios de alisamento que se contrapusessem aos
métodos modernos. Entre os produtos considerados modernos, o que monopolizou as páginas da
imprensa foi o Cabelisador (pasta e pente), que ocupou vários espaços no jornal A Voz da Raça e nO
Clarim d'Alvorada. Neste último, o anúncio do Cabelisador ocupou mais de duas páginas do jornal para
explicar sobre os seus efeitos, o modo de usar e a promoção de venda.

BONNIOL, Jean-Luc. "Beauté et couler de la peau: variations, marques et métamorphoses". Beauté, laideur. Paris:
102

Communications, 1995, pp.201.

49
No "Instituto Dulce" e no "Salão Brasil" os cabeleireiros já se autodenominavam especialistas em
cabelos de pessoas de "cor preta". Por especialidade em cabelos de pessoas de “cor preta" pode-se
entender a diversidade de cortes e penteados oferecidos, isto é, além da onda do alisamento o freguês
poderia, também, optar por uma ondulação, escolher qualquer corte em voga ou inventar um corte e
penteado para os seus cabelos (Salão Sol). O que não aparece na veiculação da propaganda é a palavra
trançamento. Outra indistinção no atendimento dos salões diz respeito ao sexo do freguês: para homens e
mulheres, basicamente, ofereciam os mesmos tipos de serviço. O "Instituto Dulce", não atendia pessoas
do sexo masculino e nem indivíduos desvinculados das associações:

A única maneira segura de alisar o cabello sem perigo é com a maravilhosa invenção. O
cabelisador. Um estojo completo pelo menor preço. Só nesta redacção: Rua Major Diogo,
131 - São Paulo103.

Salão para alisar cabellos crespos. Systema, Rápido, Infallivel e Barato. Alisamos
qualquer cabello, por mais crespo que seja sem prejudical-o, em 12 horas, a preço
módico. Entregamos cada vez uma ficha, que, ao fim de certo tempo lhe dará direito a um
CABELISADOR grátis. São Paulo, Praça da Sé, 16, 2 O.. andar, sala 4. Telephone 2-1706.
Rio de Janeiro - Avenida Passos, n. 88. Sobrado104.

Cabelos Crespos!... Tem quem os quer. Salão cabelisador. Avenida São João n.º 1781
sobrado. Alisa-se qualquer cabelo crespo sem dor. Ondulações e Cortes de cabelos.
Preços de conformidade com a crise. Atende-se a qualquer hora. Av. São João, 1781- Sob
- Esq. Al. Glete, Bondes: 15, 17, 35, 36, 38, à porta. Vende-se aparelho para alisar 105.

O famoso “Cabelisador” era um pente de aço, mas existia também em forma de pasta. A partir de
20$000 os fregueses poderiam alisar os cabelos, “sem dor e sem perigo” 106. O pente de “aço nickelado”
custava o mesmo preço do “Cabelisador” e era vendido na redação do jornal, local onde o vendedor fazia
demonstrações grátis às pessoas interessadas107. Nos salões, por 3$000 o freguês também poderia obter o
alisamento, e, inacreditavelmente, sem sofrer qualquer dano ao cabelo (“Sem - dor, queimar,
enfraquecer”)108. O jornal funcionava, assim, como uma espécie de conto publicitário difusor de valores
e ideais de beleza fundamental no período estudado.
Para ser elegante e moderna a mulher negra deveria apresentar-se não só de cabelos lisos, mas de
cabelos compridos. Aderindo a esse cuidado com a carapinha, a mulher passava a ser considerada bonita.

103

O Clarim d'Alvorada, São Paulo: 20.09.1929, pp. 3.


104
O Clarim d’Alvorada, São Paulo: 24.01.1930, pp. 2.
105
----------: 9.12.1931, pp. 1.
106
----------: 24.12.1929, pp. 2.
107
----------: 25.01.1930, pp. 3.
108
----------: 13.04. 1930, pp. 2.
50
De acordo com a propaganda, o ideal de cabelo da época era criterioso: se a mulher não poderia nem
mesmo exibir-se de cabelo liso e curto, o homem também não poderia apresentar-se de cabelo liso e
comprido. Percebe-se aqui uma íntima associação entre cabelo liso e elegância moderna. Esta associação
não poderia deixar de fomentar uma intolerância maior diante dos demais cabelos crespos, comuns entre
mulheres e homens negros.

Uma invenção maravilhosa!...O cabelisador. Alisa o cabello mais crespo sem dor. Uma
causa que até agora parecia impossível e que constituía o sonho dourado de milhares e
milhares de pessoas, já é hoje uma realidade irrefutável. Quem teria jamais imaginado
que seria possível alisar o cabello por mais crespo que fosse, tornado-o comprido e
sedoso?. Graças à maravilhosa invenção do nosso “CABELISADOR”, consegue-se um
conjunto de “Pastas Mágicas”, alisa-se todo e qualquer cabello, por mais crespo que
seja. Com o uso deste maravilhoso instrumento, os cabellos não só ficam infallivelmente
lisos, mas também compridos. Quem não prefere ter uma cabeleira lisa, sedosa e bonita
em vez de cabellos curtos e crespos? Qual é a pessoa que não quer ser elegante e
moderna?109

Os anúncios do “Cabelisador” explicam o modo de usar o produto. Seu estojo continha todo o
necessário para o alisamento, “não havendo necessidades de cabellereiro”. Poder-se-ia fazer “tudo em
casa, discreto e economicamente”. Fabricavam-se “duas qualidades de CABELISADOR”, uma para o
cabello muito crespo, n. 1, e outra para o cabello menos crespo, n. 2”. Tanto o “Cabelisador” n. 1 quanto
o n.2 custavam um único preço: 3$700 e estava a disposição da “distincta clientela”, mediante
pagamento adiantado, em toda a parte do Brasil.

É Maravilhoso? Já conheces o nosso procedimento de alisar cabellos sem o uso


prejudicial de ferros quentes? O Sr. A Crispim, alisa cabello por este novo e maravilhoso
processo e tinge sem provocar a queda do mesmo. E seus cabellos ficarão perfeitamente
lisos, assentados podendo até ser lavados. Rua Brig. Tobias, 91 - casa, 6. Ortiz - O
famoso actor e bailarino Cubano usa alisar o cabello pelo "Novo
Processo"110.

Cabellos lisos a 3$000. Sem queimar, sem enfraquecer, sem fazer mudar a côr. Trabalho
rápido e com perfeição. Serviço completamente differente dos que se vê pela rua. Corte,
ondulações e aperfeiçoamento das sobrancelhas. Instituto Dulce. Alameda Glette, 71 -
Esquina da Avenida São João. Só attende a senhoras. Bondes, 13 - 15 - 17. Alameda
Angélica, Lapa - 31, 1933111.

109

O Clarim d’Alvorada, São Paulo: 13.05. 1929, pp. 3.


110
O Clarim d'Alvorada, São Paulo: março de 1935, pp. 3.
111
Progresso, São Paulo: 31.01.1930, pp. 6.
51
O Instituto Dulce cobrava o mesmo preço dos alisamentos baratos, apesar de querer diferenciar-
se dos serviços de embelezamento oferecidos nas ruas. Um pequeno diálogo do Progresso exibiu a
tentativa da casa comercial Dulce em querer tornar-se o melhor local de cultivo à beleza feminina:

-Oh! D. Maria, que é que a senhora fez, que ficou com o cabello liso, diferente do que se
pela rua.
-Ora Dona Tomazia, fui ao Instituto Dulce, e de lá sai assim, com o cabello liso, sem
caspas e sedosos.
-E que achado! Por obséquio, diga-me, onde fica essa excelente casa de belleza.
-Ali na Praça Marechal Deodoro, 41.
-Hoje mesmo irei lá, e recomendá-la-ei às minhas amiguinhas. Obrigada até loguinho,
sim?112

Virginia Bueno. Alisadora de cabellos. Alisa com toda perfeição á preços módicos, 55.
Rua Domingos de Moraes. São Paulo113.

Cabelos e Unhas. Desejas os vossos cabellos lisos e bem ondulados? As vossas unhas
elegantes e bem cuidadas? Não perca tempo. Ides a rua Rego Freitas, 20. n 114.

Dulcabir. É o melhor, entre os melhores fixadores para o cabello. Vende-se em todas as


pharmacias e perfumarias115. O cabello está cahindo? Use Dulcabir116.

Segundo os anúncios, os produtos para esticar o cabelo ainda serviam para o tratamento de outras
doenças do couro cabeludo, bem como propiciavam uma coloração rejuvenecedora. Os serviços de
tratamento dos cabelos, com exceção do domiciliar, localizavam-se praticamente pelas redondezas do
centro da cidade - Major Diogo, Praça da Sé, Avenida São João, Alameda Glete, Rego Freitas,
Brigadeiro Tobias, Amaral Gurgel, Marechal Deodoro e Liberdade-, e também existiam em outras
cidades e Estados, como o Rio de Janeiro. Provavelmente, nas periferias da cidade, predominavam os
tipos de serviços oferecidos pelas cabelisadeiras e as formas caseiras de embelezamento. Entre os
produtos anunciados, somente a loção "Bela Cor" foi aprovada pelos médicos e carregou a tarja do
Departamento Nacional de Saúde Pública.

Para o cabello. Um preparado moderno e maravilhoso. A loção Bela Cor é de effeitos


rápidos e garantidos e contra caspa, queda de cabellos, calvícies e moléstias do coro
cabelludo. Com quatro applicações desapparece completamente a caspa, tornando a
cabeça limpa e fresca. Com seis applicações cessa a quéda e faz brotar novos cabellos
nos casos de calvície. Com dez applicações os cabellos brancos, grisalhos ou descorados

112

Progresso, São Paulo: 20.07. 1929, p. 2.


113
O Clarim d'Alvorada, São Paulo: 13.05. 1930, pp. 1.
114
A Voz da Raça, São Paulo: 29.04.1933, pp. 4.
115
O Clarim d'Alvorada, São Paulo: 31.12. 1929, pp. 1.
116
Progresso, São Paulo: 31.08. 1929, pp. 4.
52
vão ganhando vida e a côr natural primitiva. É usada e aconselhada por notáveis
médicos brasileiros e licenciada pelo Departamento Nacional de Saúde Publica, o que
consiste uma grande garantia para o publico. Compre hoje mesmo um vidro de loção
<Bela Cor>, ela vos dará inteira satisfação. Encontra-se em todas as Pharmacias,
Drogarias e Perfumarias117.

Salão Sol - de Vicente Andretta


Barbeiro e cabeleireiro. Especialista a la garçonet e outros cortes a vontade do freguês,
faz ondulações e machinas e mão. Attende chamados a domicilio. Rua Santo Antonio,
328-A. São Paulo118.

Salão Brasil - Barbeiro e cabelleireiro. Corta-se cabellos de senhoras, a la garçonne, a


bebe, semi-garçonne, etc - Especialidade em cortes de cabello para pessôas pretas.
Preços módicos. Rua Amaral Gurgel, 1- A, São Paulo119.

Os salões de beleza ocuparam um lugar importante na imprensa negra. Assim, por exemplo, foi
comemorado no dia 14 de janeiro de 1930 o aniversário do “Salão Brasil”. O proprietário do salão,
representante do jornal Progresso, recebeu os cumprimentos pelo acontecimento120.

Salão Brasil. Amplo e confortável. Esmero capricho para servir a distincta freguesia -
Corta-se cabellos a La Garçonne e a Bebe, semi-garçonne. Especialista em cabellos de
pessoas de côr. Propriedade de Manoel Simões. Rua Amaral Gurgel, 1A. São Paulo 121.

A Frente Negra Brasileira manteve nos anúncios de embelezamento o nome da associação, por
optar dirigir tais tipos de serviço apenas aos seus associados. A seleção do freguês realizada pelo
"Instituto Dulce" se assemelhava, então, a realizada pelo “Salão Brasil” e pela F.N.B., sendo esta última
instituição muito mais rígida no critério de escolha formulado, atendia somente os associados da Frente.

Instituto Dulce - Só para senhoras - tratamento completo de cabello, por mais rebelde
que seja - preços módicos. Especialidade em tratamento de cabello de pessoas de cor, por
mais crespos que sejam, tornam-se lisos e sedosos. Para conservar o cabello, usem
Dulcabir. Tendo espinha, cravos, toda e qualquer mancha de pelle use creme de Leir. Rua
Marechal Deodoro, 47 - A, casa 107. São Paulo 122. Instituto Dulce - Alameda Glette, 71.
Ver para crer. Só attende a senhoras123.

117
O Clarim d'Alvorada, São Paulo: 13.05. 1926, pp. 2.
118
----------: 21.10.1928, pp. 4.
119
Progresso, São Paulo: 23.07.1928, pp. 4.
120
----------: 31.01. 1930, pp. 4.
121
O Clarim d'Alvorada, São Paulo: 13.05. 1926, pp. 2.

122
Progresso, São Paulo: 28.07.1929, pp. 4.
123

O Clarim d'Alvorada, São Paulo: 13.04.1930, pp. 3.

53
Salão Frente-Negrino. Barbeiro e Cabeleireiro da Frente Negra Brasileira. Rua
Liberdade, 196 - São Paulo
Homens
Cabelo 1$000
Barba $000
Assignatura mensal 4$500
Com direito a 2 cabelos e 8 barbas ao mez, excepto aos Sábados e Domingos.
Senhoras
Corte de cabelo 1$5000
Só aparar atraz $5000
Não há fiado - especialidade em corte de cabelo de gente de cor - Vendem-se vales para
barba e cabelo124.
Os salões de embelezamento frentenegrinos se “multiplicavam” e se tornavam mais sofisticados
(da localidade ao atendimento) para atender à sua distinta clientela:

Novamente possuem os frentenegrinos um bem montado Salão de Barbeiro e


Cabeleireiro, instalado numa das salas do prédio onde funciona a sede central da F. N. B.
à rua da Liberdade, n.º 196. A direção do salão está confiada á técnica do conhecido
profissional Benedito Glicério de Andrade. Regogizamo-nos com a F. N. B. e com o chefe
daquele salão, pois novamente os seus associados, amigos e clientes, terão comodidade
em serem servidos a preços módicos125.

As propagandas do alisamento repetiram-se nas folhas do periódico, particularmente a do


“Cabelisador”. Pensemos, então, que essa repetição teve como pressuposto a necessidade de fazê-las
serem aceitas e preservadas, tornando habitual a prática do alisamento indicada para a comunidade
negra. A princípio achamos que a prática do alisamento era indicada para parcela da comunidade, para os
associados. Entretanto, embora os institutos de beleza das associações se negassem a atender o negro
mais pobre, percebemos, pelos clichês dos contos publicitários, que pretenderam alastrar a prática do
alisamento para toda a população negra da cidade.
Segundo o pesquisador Jocélio Santos,
Os discursos sobre a importância do cabelo na composição da estética negra são temas de
imagens aproximativas, contrastivas e de conteúdo político. A aproximação é a suposta
harmonia estética do rosto das sociedades ocidentais, em que os cabelos considerados
bonitos são lisos e compridos. Em razão dessa colonização cultural, os negros usavam
ferro quente (que os baianos apropriadamente denominam cabelo frito), pastas, alisantes e
outras alquimias, construindo-se um ideal negro associado ao uso desse instrumental 126.

124
A Voz da Raça, São Paulo: 18.03.1933, pp. 2.

125
A Voz da Raça, São Paulo: 23 de junho de 1934, p. 3.
126

Ele entende que a partir dos anos 70, “uma imagem de contraste revela um discurso político, relacionado aos reflexos do
black is beautiful, movimento cultural e comportamental norte-americano dos anos 60”. As cidades de São Paulo e o Rio de
Janeiro foram “os dois centros irradiadores da influência norte-americana”, nas quais apareceu “o corte black-power – cabelo
redondo e cheio, in natura. Por conseguinte, com a crescente valorização da busca da consciência racial, procurou-se uma
54
Entretanto, além do investimento na mudança de cabelo, houve também uma forte preocupação
com a cor da pele. A presença da moda, principalmente a européia, argumentou veementemente em favor
do processo de adesão ao branqueamento. No tocante ao clareamento da pele, os indícios foram surgindo
na transmissão dos anúncios de vários produtos, pois, ao mesmo tempo em que serviam para apagar
rugas, manchas, cravos e espinhas, clareavam a pele. O uso excessivo do pó-de-arroz para as mulheres
negras parece ter sido a maneira comum de branquear a pele. Nos dias de festa, como anotou Zé da
Esquina (pseudônimo de um escritor do Clarim d’Alvorada), elas abusavam do uso dos apetrechos
contribuidores da formação de uma aparência branca até a chegada do liquido "Milagre" no mercado dos
cosméticos, que foi desenvolvido pelos alemães:

Tendo espinha, cravos, toda e qualquer mancha de pelle use creme Leir 127.

Atenção milagre!... Outra grande descoberta deste século é o creme líquido milagre -
dispensa o pó de arroz... Formula Scientifica Allemã para o tratamento da pelle usando
uma vez usa sempre. Para combater as sardas, pannos espinhas e rugas. Clarea e amacia
a cútis. Preço de cada vidro para propaganda (?). Pedidos e demonstrações, grátis nesta
redacção. Para tel-a mais 3$000 para o porte128.

Os anúncios eram entrecortados por conselhos e, por vezes, por frases carregadas de

preconceitos:

Algumas, referindo-me às mais claras não lhe proporcionam boas risadas? Santo
Deus!... e a carapinha diminuta, o pó de arroz, os cremes e as lisadeiras pagas por tão
pouco!129 Zé da Esquina

usavam batom nos seus lábios roxos, passavam pó nos suas faces pretas, lustravam o
cabelo com brilhantina e faziam tranças feito corda de navio (...) 130.

naturalização dos cortes, trançados e penteados afro, com repúdio ao alisamento”, que passou a ser considerado “decadente e
prejudicial” porque impede o crescimento do cabelo. SANTOS, Jocélio Teles. “O negro no espelho: imagens e discursos nos
salões de beleza étnicos”. Op. Cit., pp. 56.
127
Progresso, São Paulo: 28.07. 1929, pp. 4.
128
O Clarim d'Alvorada, São Paulo: 20.07. 1931, pp. 2.
129

O clarim d’Alvorada, São Paulo: 15.11. 1925, pp. 2.


130
Informação retirada do depoimento colhido pelos sociólogos que escreveram sobre a população negra paulistana.
BASTIDE, Roger & FERNANDES, Florestan. Brancos e negros em São Paulo, Op. Cit., pp. 195.
55
Desde as primeiras leituras sobre a imprensa negra ficamos com a impressão de ter visto um
anúncio sobre uma pomada branqueadora da pele. Quase finalizando a leitura dos jornais chegamos,
enfim, à reportagem. Nela, o que encontramos foi uma crítica ao progresso dos corpos dos norte-
americanos que utilizavam a tal Bleach, fabricada pelos franceses. Uso que, sobremaneira, maculava os
"princípios e as finalidades da Raça", idealizados pelos "líderes de ébano" brasileiros. Tornar-se-ia
verdadeiramente um momento de contestação ao produto se o texto não se manifestasse a favor do ato
que impedia a quebra dos pentes quando os negros iam escovar as suas carapinhas:

Progresso inútil - Os negros americanos...aqueles sim são civilizados. Entretanto, o subir


tem limites refiro-me a complexidade da palavra Progresso (...). Nos EE. UU. atualmente,
entre os negros e negroides e chics, engraçadinho ficar mais claro por meio de uma
pomada feita por um tal Sr. Bleach o que da o nome a mesma pomada, ou creme. É de
uma formula franceza e chamada Fan Fan. Os jornais negros da América chegam a
dedicar páginas inteiras com ilustrações sugestivas sobre a matéria. Tudo isso seria
muito interessante se não fosse a consideração a respeito da verdadeira finalidade do
negro perante a sociedade em que vive e onde pretende escavar-se do pó ignóbil do
Captiveiro. O negro deve crescer integralmente como potência racial, robustecendo suas
bases, atendendo a tradições, princípio; e finalidades? Ou pretende, simplesmente, fazer
u'a maneira controlativa de tudo que faz o branco?(...) Será necessário imitar também a
cor da pele? Quando toda creação dos métodos abolicionistas da carapinha, houve uma
desculpa aliás lógica; não se quebrariam tantos pentes. Mas quanto a esse creme (...)
pomada! Vem dar aos brancos se houver negro réprobo que use a idéia de que todo o
nosso esforço ascensional, é baseado, simplesmente, no ridículo desgosto (...)131.

Nas entrelinhas da adesão ao branqueamento começamos a traçar a versão oposta de


embelezamento, isto é, até a versão do branqueamento, especialmente no tocante à transformação da pele
e do cabelo, por vezes, não defendeu completamente a obsessão pelo corpo transformado.
A obsessão pelo corpo transformado rendeu uma mirabolante história para Monteiro Lobato na
sua obra de 1945: “O presidente negro ou o choque entre as raças”. A história acontece nos Estados
Unidos e a parte que tem significado para o nosso texto ocorreu no ano de 2228. Na trama, Lobato
apresentou um negro (Jim Roy) e um branco (Kerlog) disputando o cargo presidencial norte americano.
Jim venceu as eleições, porém, antes de descrever a cena de posse do novo presidente o que o autor fez
foi mostrar de que forma Roy e boa parte da população negra foram derrotados politicamente. Tal fato é
atribuído ao cientista John Dualey aliado de Kerlog. John dedicou-se, por “longo tempo, ao estudo do
cabelo negro, esperançando em descobrir o meio de alisa-lo e torna-lo sedoso e absolutamente igual ao
da raça branca”:
131
A Voz da Raça, São Paulo: maio de 1937, pp. 4.

56
Os raios Omega, de sua descoberta, tinham propriedade miraculosa de modificar o cabelo
africano. Com três aplicações o mais rebelde pichaim tornava-se não só liso, como ainda
fino e sedoso como o cabelo do mais apurado tipo de branco. Os raios Omega influíam no
folículo e destruíam nele a tendência de dar forma elíptica ao filamento capilar. Vencido
este pendor para a forma elíptica, cessava o encarapinhamento, que não passava de mera
conseqüência mecânica132.
Através de Miss Jane, personagem que ajuda a descrever a história do futuro, Lobato conta o
sucesso do novo fenômeno, pois:

logo, em seguida a notícia estupefante, como pitada de cocaína, incorporou-se a Dualey


Urculing Company, que estabeleceu em todas as cidades, e nestas em todos os bairros,
Postos Desencarapinhantes. O processo era simples. Três aplicações, de trinta minutos
cada uma. Tais facilidades juntas ao custo mínimo – dez centavos por cabeça – fizeram
com que os negros acorressem aos postos como cães famintos. As fábricas de pentes,
grampos, loções shampoos, brilhantinas, tinturas, etc, trabalhavam dia e noite sem
conseguir atender á silutanea procura de tais produtos. Cabeleireiros novos surgiram em
todos os cantos e por mais que trabalhassem não davam conta do recado. As negras,
sobretudo, passavam os dias ao espelho, muito derretidas, penteando-se e despenteando-
se gasosamente, as omegadas levava-as a esquecer o longinquissimo passado da
humilhante carapinha. Até Jim Roy se omegava. Tornava-se um admirável tipo de
branco artificial, diverso dos tipos de brancos nativos apenas pela grossura dos lábios,
salienta zizomatica e chateza do nariz133.

A “fúria desencarapinhante dos negros fê-los se esquecerem completamente da política”.Tanto


Roy quanto à população foram abalados ao descobrirem que “os raios de John Dualey” possuíam virtude
dupla. Por isso mesmo, também “o índice da natalidade negra caiu de chofre”134.
Nas páginas da imprensa negra, nem todos concordavam com o branqueamento do corpo, seja
para conservar os traços concedidos por “Deus”, seja para rememorar as características físicas dos
antepassados africanos, marcados pela salubridade e pela fortaleza.

La garçonne (Dedicado às moças de cor de São Paulo). Quando Deus Nosso Senhor,
creou Eva - a primeira mulher deu-lhe um bello cabello, segundo a História Religiosa.
Assim também creou Adão, com seu bello bigode para destinguir do sexo. Na corte de
Luiz XV usava-se tranças postiças para o adorno dos seus pares e de seus vassalos.
Agora no século XX vemos a maior falta de senso em matéria de modas! Em Paris, a
132
A concepção de história de Monteiro Lobato nos confirma a influência da eugenia. “A história é o mais belo romance
anedótico que o homem vem compondo desde que aprendeu a escrever. Mas que tem como passado a História? Toma dele
fatos e personagens e os vai compondo ao sabor da imaginação artística dos historiadores. Só isso”. LOBATO, Monteiro. O
presidente negro ou o choque entre as raças, Romance americano do ano de 2228. São Paulo: Clube do Livro, 1945, pp. 44-
169.
133
LOBATO, Monteiro. O presidente negro ou o choque entre as raças, Romance americano do ano 2228. Op. Cit., pp. 169-
184
134

LOBATO, Monteiro. O presidente negro ou o choque entre as raças, Romance americano do ano 2228. Op. Cit., pp. 169-
184.
57
cidade das novidades, talvez para agradar os patrões dos Bares e Confeitarias, os
rapazes e as moças que servem nesses estabelecimentos cortaram os seus cabellos todos
pelo mesmo systema e, dahi veio o nome de cabello "à la garçonne". Essa moda irradiou
por todos os países da Europa e da América, e do universo, e não há quem convença as
nossas patrícias de côr, não cortem seus cabellos, embora sejam carapinhados,
porque, foi o Creador que no-lo deu assim. Sejam imitadores de tudo quanto é bom,
bello, e que não nos sirva para desprestigiarmos...Antes procuremos imitar cousas que
possam engrandecer a nossa raça; como sejam as artes, as sciencias e a literatura. E não
em cortes de cabello e systema de moços e moças que servem nos bares e confeitarias de
Paris. Isso é uma moda que nos deprime por todos os princípios. A moda deve ser usada,
em se tratando de corte à La garçonne, de conformidade com predicados preciosos e não
de como pensamos e até aqui temos observado135.
Horácio da
Cunha

Segundo textos como este, para propagar os belos tipos esculturais era preciso que a comunidade
negra criasse o seu próprio instituto de beleza, espaço que deveria ser marcado pela afirmação de um tipo
de beleza. Além do mais, em torno do enfoque ao endeusamento do corpo naturalmente negro sugeriu-se
que o branco poderia se assemelhar à beleza negra desde que, pelo menos, adquirisse um pouco do
bronzeamento solar ou desfrutasse dos cremes amorenadores da pele, como vimos em outro texto.
“Um grande jornal europeu” registrou uma notícia significativa: um “patrício” negro após tomar
“uma herva” para curar-lhe um mal começou a embranquecer, sua epiderme começou a ficar branca e
assim sendo, “o sucesso fora uma nova esperança” para muitos negros que desejavam ser brancos
também. A Voz da Raça comentou,

Ora prezado leitor, amigo!... será que iremos também nós, nos tornar brancos assim, nós
que desejamos a completa ascensão do negro dentro do nosso paiz, notadamente em São
Paulo, onde a nossa luta pela vida é um axioma? Negro-branco, pura ilusão. Fiquemos
assim. A nossa cor é o emblema do nosso valor, é a causa do nosso sofrer, mesmo assim,
sejamos negros; negros de epiderme, porém sinceros nos atos e fatos (...) Tratemos de
nossa união e do progresso do negro sem artifícios para o bem coletivo dos nossos e pela
prosperidade do Brasil.136 Negro sim!

O Clarim d’Alvorada fez um discurso, referente à valorização da pele negra, semelhante ao texto
anterior d A Voz da Raça. Virginio Figueiredo, autor do texto “Raça negra”, argumentou que o negro era
“grande como um brazão e sombrio como a côr”, estabelecendo uma relação entre a fortaleza do físico e
a cor da pele. Isto é, se por um lado as atribuições corporais garantiam ao negro um aspecto de
superioridade, por outro lado, provocavam espanto aos olhares alheios. À “raça negra” cabia orgulhar-se

135
O Clarim d'Alvorada, São Paulo: 15.11.1925, pp.3.
136
A Voz da Raça, São Paulo: 5 de agosto de 1933, p. 1.
58
dos “dotes que a natureza lhe emprestou”. A “cor negra” deveria ser “negra de verdade” e “não
simulada”. Para tudo ocorrer assim, cada negro teria a obrigação de procurar “conservar o caráter com a
mesma fineza que a côr”137.
O culto à conservação e a afirmação do corpo não se restringia às técnicas e aos métodos dos
institutos embelezadores e não era recomendado apenas para os dias de festa. O cuidado com o corpo era
um trabalho a ser realizado no dia-a-dia, principalmente depois de meados dos anos 30. A beleza negra,
além de ser um dom dado por Deus, tornava-se o resultado de um trabalho constante.

Negros. Em toda a face da Terra, o negro é considerado inferior ao seu semelhante. Por
que? Pela ignorância dos que assim julgam. Fisicamente está provado que o negro é de
ótima resistência não sendo característico da raça as moléstias sangüíneas que se
observam em outras raças. É sabido que os africanos vivem muito, qualidade que se
estende aos seus descendentes. Moralmente, o que é que clama contra a raça nobre?
Ladrões assassinos e bandidos há em toda parte, em todas as raças são defeitos dos
homens. Portanto, se trata de um vagabundo, ladrão e outras coisas piores, não por ser
negro mas por ser homem. Ser negro é um simples acidente da carne. E o que tem isso? A
carne negra é por ventura a mais feia? Não por que? Ide a África observar as raças e
cores que bellos tipos. O que nos falta? O cultivo da beleza. Pois, não tem os brancos,
apesar de se considerarem os mais lindos, os seus institutos de beleza? Pois criemos os
nossos como fizeram os negros da América do Norte138.

Mesmo admitindo que o negro não deveria ser considerado inferior ao branco, o autor do texto
anterior o associa a um “acidente da carne”. Dificilmente os artigos conseguiram escapar completamente
dos estereótipos e divulgou estratégias e produtos que se contrapusessem aos métodos considerados
modernos de embelezamento. Ou ainda podemos interpretar a expressão “acidente da carne” no sentido
de acaso, de não ser essencial. Como se o que contribuísse para a valorização do homem fosse a sua
moral e o seu caráter.
Conservar a aparência na versão de rememoração e afirmação do corpo negro significava
denunciar, através de uma mulher “branca”, as práticas de branqueamento utilizadas pelas negras. A
mulher denunciadora foi descrita como tradicional e mestiça (apesar de branca tinha os cabelos crespos)
propositadamente:

Esta é boa de fato - Benedita conversava com sua amiga branca, sobre namorados; de
repente a conversa envereda pelo lado da moda. - Não tinha reparado, Sinhá, que os teus
cabelos eram crespos de natureza... que horror. -É o caso, minha amiga, você, que é

137
O Clarim d’Alvorada, São Paulo: 13 de maio de 1929, p. 2.
138
----------: 15.10. 1925, pp. 3.

59
negra, alisa o cabelo, por não se conformar com a naturalidade dele, quando eu sou
conservadora até na minha raça139.

Sugeriu-se, no diálogo entre as duas mulheres citadas anteriormente, que Benedita, sendo negra e
não mestiça, deveria ser mais conservadora no tocante aos seus traços físicos, sobretudo, no tocante ao
cabelo.
Observamos que a versão favorável á transformação física apareceu mais em forma de anúncios,
de propagandas, enquanto a rememoradora e afirmadora dos traços africanos evidenciou-se
principalmente nos textos e na literatura dos militantes da imprensa negra. Ao mesmo tempo, quando a
intenção era branquear a ênfase das frases tornou-se mais evidente, ao passo que a tendência de
rememorar e afirmar os traços negros apareceu em tom meio dúbio.
Segundo a pesquisadora Neusa Souza,
nascer com a pele preta e outros caracteres do tipo negróide e compartilhar de uma mesma
história de desenraizamento, escravidão e discriminação racial, não organiza, por si só
uma identidade negra. Ser negro é além disso, tomar consciência do processo ideológico
que através de um discurso mítico acerca de si, engendra uma estrutura de descobrimento,
que o aprisiona numa imagem alienada na qual se reconhece. Ser negro é tomar posse
desta consciência e criar uma nova consciência que reassegure o respeito às diferenças e
que reafirme uma dignidade alheia a qualquer nível de exploração (...) 140.

À luz desta narração de Neusa Santos é possível argumentar que a versão do branqueamento
tomou consciência do discurso que outros construíram a respeito do corpo do negro, porém deixou de
criar uma nova consciência coletiva que reassegurasse o respeito às diferenças, fazendo uso somente do
discurso igualizador. À primeira vista, o grupo resistente ao processo de branqueamento parece ser o
legítimo representante da criação desta consciência em torno do respeito à diferença e, talvez, uma parte,
até tenha mesmo ocupado esse posto (como veremos no item das danças). Mas não podemos esquecer da
insegurança presente na escrita daqueles que pregavam a rememoração aos traços negros, retratando
completamente a impossibilidade de manterem-se coesos, ou seja, de divulgarem imagens
questionadoras dos achincalhamentos, ainda porque se sentiam no dever de explicar ou desculpar-se,
perante a sociedade, pelas suas marcas corporais de nascimento.
Manuela Carneiro da Cunha apresentou uma outra reflexão para pensarmos a questão da
identidade. Segundo ela, o “que se ganhou com os estudos de etnicidade foi a noção clara de que a
identidade é construída de forma situacional e contrastiva, ou seja, que ela constitui resposta política a
139
O Clarim d’Alvorada, São Paulo: 28.04. 1934, pp. 2.
SOUZA, Neusa Santos. Tornar-se negro ou as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social. Op. Cit.,
140

pp. 77.

60
uma conjuntura, resposta articulada com as outras identidades em jogo com as quais forma um
sistema”141. Ao deslocarmos tal pensamento para o nosso contraponto em torno do embelezamento,
poderemos propor que a versão de rememoração e afirmação dos traços negros construiu uma identidade
“situacional e contrastiva” diante dos padrões de embelezamento brancos. Quase da mesma forma agiu a
versão do branqueamento na construção de uma identidade, pincelou uma identidade corporal,
evidentemente diferente da versão rememoradora e afirmadora dos traços negros, mas também aquém
dos padrões de embelezamento brancos da sociedade paulistana, pois o corpo negro mesmo maquiado,
transformado, jamais se igualaria ao branco.
Desde as primeiras pesquisas relativas aos jornais negros falaram no branqueamento do corpo,
essencialmente no que diz respeito ao alisamento dos cabelos, de forma que esse querer parecer com o
"outro", às vezes, colocasse em dúvida os projetos dos militantes em termos de originalidade e
afirmação. Isto é, duvidava-se que esses homens negros fossem capazes de propor uma firme luta contra
a discriminação, pois tinham horror de ver perambulando pela cidade corpos de pele negra e de cabelo
crespo.
A pesquisa de Isildinha Nogueira, ainda que seja um estudo de casos do final da segunda metade
do século XX, apontou uma importante perspectiva para pensarmos essa relação entre a ação política e a
aparência negra. Sua contribuição ao vislumbrar essa relação não foi apresentar argumentos contra a
ação política dos negros, mas dizer que “a ação política pode vir a ser comprometida e limitada pela falta
de consciência da parte dos negros, do processo de formação, em sua própria psique, das representações
imaginárias e simbólicas do corpo negro”142.
Parte das comunidades negras esteve, então, de acordo com "a insistência dos médicos eugenistas
que direcionavam o valor da brancura da pele". Segundo Sant'Anna, no artigo “Ser bela no Brasil (1900-
1960)”, desde 1919 os Annales do eugenismo "afirmavam que a beleza feminina resultava de uma pele
delicada e branca, de uma aparência “que não tinha a ver com os jambos gorduchos e a pele bronzeada
de certas brasileiras". Os médicos de inspiração eugenista ditavam os conselhos de beleza e associavam
"a higiene do corpo à pureza da raça", na intenção de suplantar o passado colonial marcado pela mistura
racial. Entre os elementos conquistadores do ideal de brancura estiveram "os pós-de-arroz, os sabonetes
e os cremes de beleza". Também havia uma série de receitas caseiras para adquirir o brancor da pele:

141
CUNHA, Manuela Carneiro da. Negros, estrangeiros. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985, pp. 185.
142

NOGUEIRA, Isildinha Baptista. Significações do corpo negro. Tese de Doutoramento em Psicologia, I.P/ USP, 1998, pp.
120-169.
61
“máscaras de leite, de oxigênio, da clara de ovo misturada com suco de limão, do óleo morno e de
avelã"143.
Pensemos que as mulheres negras mais enquadradas nos comportamentos urbanos acataram estes
conselhos que eram dirigidos às classes superiores da sociedade paulistana, pois a palidez era "sinônimo
de prestígio social evocando conforto, tempo livre nas sombras dos jardins de filiação européia". E como
as classes superiores negras estiveram distantes do posto da elite local, concluímos que tanto as mulheres
associadas negras quanto as mais pobres eram enquadradas no grupo indesejado, de pele bronzeada que
lembrava o "duro trabalho sob o sol", enrugadas, moradoras das casas miseráveis e insalubres,
freqüentadoras dos bailes populares e dos locais promíscuos144.
Além disso, é possível afirmar que mesmo a versão rememoradora e afirmadora dos traços
africanos compactuou com os conselhos de beleza ditados pelos médicos de inspiração eugenista:
embora não ansiasse pelo ideal de um corpo europeu civilizado, anunciava técnicas e cuidados com o
corpo em termos de limpeza que combinavam com algumas regras dos manuais de beleza em vigor.
Talvez, seja exatamente nesse ponto que esse estudo da beleza negra apresenta inovações, aprofundando
a obsessão pelo branqueamento, revelando o culto ao corpo naturalmente negro, evidenciando as práticas
e as representações do embelezamento da imprensa negra marcados por elementos da cultura.
No artigo "Cuidados de si e embelezamento feminino: fragmentos para uma história do corpo no
Brasil", um aspecto que Sant'Anna destacou como significativo o culto à beleza natural. Durante as
décadas de 20 e 30, sobretudo, e segundo a imprensa e os manuais de beleza, a verdadeira beleza era
fornecida por Deus e representava o interior de cada pessoa. Sendo assim ela não deveria ser alterada
radicalmente.
Até os anos 30, segundo esta autora os anúncios sobre as técnicas e os produtos para se conseguir
uma boa aparência eram normalmente sigilosos e recomendados por médicos 145. Acompanhando a
imprensa negra, podemos perceber que apenas a minoria dos anúncios e conselhos buscava a valorização
do físico negro, posicionando-se contra produtos e técnicas que alterassem os seus traços físicos. A
maioria, ao contrário, pregava a transformação do corpo e se encaixaria muito mais na mentalidade de
embelezamento das décadas posteriores, informando abertamente toda a comunidade negra sobre as
diversas formas de ornamentos e produtos necessários para branquear e atribuindo a cada um a

143
SANT'ANNA, Denise Bernuzzi de. "Être belle au Brésil (1900-1960)". Beauté, laideur. Paris: Communications, 1995, pp.
99-100.
144
SANT'ANNA, Denise Bernuzzi de. "Être belle au Brésil (1900-1960)". Beauté, laideur. Paris: Communications, 1995, pp.
99-100.
145
SANT'ANNA, Denise Bernuzzi de (org.). Políticas do Corpo. São Paulo, Estação Liberdade, 1995.

62
responsabilidade pela decisão de como alterar a própria estética; ficamos com a impressão de que com o
corpo negro exigi-se, há muito tempo, uma mudança mais radical da aparência. Como se este corpo, para
ser “natural” precisasse, primeiro, ser trabalhado e transformado constantemente na sua cor e no seu
cabelo.
Além disso, nos jornais analisados, as propagandas dos institutos de beleza foram quase
exclusivamente voltadas às mulheres, não querendo dizer, no entanto, que os salões e a imprensa não se
preocupassem com o corpo masculino. A explicação para tudo ocorrer assim, talvez, tenha sua razão na
organização e administração dos institutos, realizadas quase exclusivamente por mulheres. E,
principalmente, por serem elas alvo do ufanismo em torno dos costumes, comportamento e
branqueamento.
Sob este ufanismo os jornais concederam espaço às propagandas dos produtos e dos locais
eficientes para se conquistar o branqueamento, porém A Voz da Raça e O Clarim d’Alvorada não
deixaram de anunciar nomes e locais apropriados para o tratamento do odor, das unhas, das
sobrancelhas, das roupas, etc.

1.6 - A exclusão do embelezamento negro

Entre os anos 20 e 40 as recomendações dos jornais destinadas ao corpo foram variadas. Algumas
eram consideradas essenciais para a sobrevivência dos indivíduos de qualquer época, tal como o
tratamento dos dentes, da limpeza em geral, incluindo os cuidados com a vestimenta. A crítica aos odores
era fundamental nesta época em que “o higienismo se converteu num dos baluartes do movimento de
cunho evolucionista no combate a degeneração”146. Implicitamente os cuidados básicos para com o corpo
pareciam ser recomendados menos para os associados dos jornais do que para os desassociados,
moradores de rua e/ou pobres da cidade. Uma outra opção de preservação do corpo para os associados
era o serviço oferecido pelos dentistas, que atendiam pelas redondezas do centro da cidade.
No consultório e no gabinete dentário era preciso que os pacientes apresentassem a carteira de
identificação da instituição anti-racista. Os frentenegrinos acreditavam que os cuidados com os dentes
poderiam prevenir contra várias anomalias do corpo, conquistando assim o desenvolvimento da "raça": o
146

MELLO, Marina Pereira de Almeida. O ressurgir das cinzas. Negros paulistas no pós-abolição: identidade e alteridade na
imprensa negra paulistana (1915-1923). Dissertação de Mestrado em História – USP, 1999, pp. 6, 36. Essa historiadora
concebe a imprensa negra como um canal de resistência e de integração. Assim investiga as inquietações e a angustias dessa
imprensa perante a sociedade que celebra o estrangeiro e transforma o elemento negro nacional em um ser invisível, incapaz e
inútil.
63
desenvolvimento físico e intelectual. Querendo uma assistência médica mais geral os pacientes deveriam
pedir uma autorização para a secretaria da F.N.B:

Francisco Lucrécio. Cirurgião dentista. Consultório Avenida Brigadeiro Luiz Antônio,


1456. Atende aos frentenegrinos, todas as terças, quintas e sábados. Preços módicos 147.

Odontologia. É motivo de grande satisfação e digno de encômios, o modo com que o.


Secretário da F. N. B. Dr. Francisco Lucrécio, vem dedicando com interesse e carinho a
assistência dentária gratuita aos escolares frentenegrinos. É esse realmente um gesto de
elevado alcance social, destacando-se pela influência benéfica, em favor da formação da
raça, pela inteligência, e pelo desenvolvimento físico. Pois não se pode compreender que
seja uma criança dotada de clareza intelectual, possuindo anomalias varias 148.

Departamento de saúde. Da Frente Negra Brasileira. Dirigido pelo distinto clinico Dr.
Ferreira Dias. Consultório Rua Barão de Itapetininga, 18, 8 O. andar. Sala 806. horário
14 ás 16 horas. Os senhores associados que precisarem da assistência médica, devem
retirar os seus memorandus na secretaria da F. N. B. sem a qual não serão atendidos
pelos médicos149.

Uma declaração indica que os pacientes não regularizam os pagamentos do Departamento de


Saúde da F. N. B., vejamos:

Declaração. O abaixo-assinado, cirurgião dentista da Frente Negra Brasileira, com


gabinete na sede central, à rua da Liberdade 196, pede aos seus clientes e amigos que
tiverem serviço clinico em andamento ou qualquer importância depositada para a
colocação de dentes, para comparecer dentro do prazo de 30 dias, a contar desta data,
afim de regularizar os seus tratos a beneficio da obra. A Comarca 150

Os “frentenegrinos quites” com o Departamento de Saúde teriam “consultas grátis ao


apresentarem o memorandum retirado na secretaria da F. N. B”. Para “as doenças dos olhos, nariz,
ouvido e garganta” poderiam “recorrer ao Instituto Rudge Ramos. Diretor: Dr. Rudge Ramos. Rua da
Glória, 326 (antigo, 78) – fone 2-7865”151.
Assim como em outros jornais, para assegurar a saúde, O Clarim d'Alvorada e A Voz da Raça,
divulgaram uma série de remédios capazes de manter a fortaleza dos corpos negros. Segundo os
anúncios, alguns remédios eram reconhecidos pelos médicos uruguaios, pelos médicos alemães e, às
vezes, eram reconhecidos por todos os médicos. Eles serviam para diversas doenças, entre elas, a

147
A Voz da Raça, São Paulo: Abril de 1937, pp. 4.
148
-----------: setembro de 1936, pp. 3.
149
----------: maio de 1936, pp. 4.
150
A Voz da Raça, São Paulo: 7 de junho de 1934, p. 2.
151
----------: 31 de dezembro de 1935, p. 4.
64
fraqueza, a magreza, o reumatismo, as dores nas costas, no peito, na cabeça, as gripes, as prisões de
ventre, os problemas de rins, de fígado, de bexiga, etc:

Nutril Xavier - O braço direito da saúde, força e vigor, receitado pelos médicos. Dá
saúde e vida a todos os órgãos enfraquecidos, efficaz na anemia e falta de appetite.
Desanimo, magresa, neurasthenia - etc152.

Só a martello - Para aquelles que se illudem com outras marcas, repetiremos as palavras
do eminente Dr. Mario Graccho. "Atesto que tenho sempre em minha clínica o Emplastro
Fhenix". Obtendo optmos resultados na cura do rheumatismo, dores nas costas e no peito,
constipações etc. Quando comprar Emplastro exija do seu pharmaceutico esta marca que
é a do legitimo emplastro fhenix153.

Além dos remédios antigos como os emplastros, havia os novos, em certos casos apresentados
em forma de drágeas:

Grave no seu espírito o nome. Composto Ribott. Fortificante Universal. Fortifica,


engorda, enriquece o sangue154.

Pastilhas Rinsy. Cura moléstias dos rins e da bexiga. Elimina o ácido úrico e o
arthristimo diurético. Reconhecido por todos os médicos. Limpa o organismo das
impurezas e das intoxicações. O bom resultado depois do terceiro vidro 155.

Guaramidina. Nas dores de cabeça só a guaramidina. Infallivel nos resfriados, na


grippe, etc. Em tubos de 20 comprimidos e em doses. Remédio de confiança 156.

Os anúncios do Vigonal o transformaram no fortificante mais competente, universal, pois além


de aumentar os músculos e estimular o apetite, prevenia rapidamente contra os acidentes do sistema
nervoso, o empobrecimento do sangue, alimentava o cérebro, tonificava o coração, regularizava a
menstruação, reconstituía o corpo das senhoras durante e após a gravidez, evitava a tuberculose, etc. Seu
gosto rivalizava com o mais fino licor de mesa, por isso, das crianças aos adultos, todos poderiam
deliciá-lo. O interessante é que se destinava não a qualquer corpo, mas sim aos corpos delicados,
parecendo expressar que se destinava aos profissionais e/ou às famílias das sociedades negras. Em vários
anúncios de remédios não havia uma separação entre negros/brancos, ou reclamações dizendo sobre a
proibição do uso de certos remédios para os negros. No entanto, no anúncio seguinte, se percebe uma
distinção de classe: o Vigonal se destinava às famílias mais favorecidas da sociedade paulistana:
152
O Clarim d’Alvorada, São Paulo: 14.04.1927, pp.2.
153
----------: 30.07.1925, pp. 3. Ver figuras 22 e 23.
154
----------: 13.05. 1929, pp. 2.
155
----------: 13.05. 1929, pp. 2. Ver a seqüência das figuras 24 e 25.
156
A Voz da Raça, São Paulo: 9.12. 1933, pp. 3.
65
Vigonal - O fortificante mais perfeito. Opinião de um grande scientista Uruguayo. "A
minha opinião é completamente favorável ao fortificante Vigonal. Para mim elle tem sido
de grande efficacia contra os accidentes nevrophaticos e em outros casos derivados do
empobrecimento do sangue, a tal ponto que não lanço mão de outro Tonico em minha
clinica". Efeitos rápidos do Vigonal (...)
Vigonal. É o remédio ideal para os médicos, advogados, professores, estudantes,
negociantes e outros que sofrem de insônia, perda da memória, fraquesa dos nervos e
cerebral.
A venda em todas as pharmácias e drogarias. Pedidos aos grandes laboratórios.
Alvim e Freitas. Rua Wenceslau Braz, 22 Sobre-loja157.

A Voz da Raça trouxe a reafirmação de Dr. Martins, um naturalista alemão sobre a eficácia das
plantas brasileiras na cura de todos os tipos de doenças. No próprio espaço de propaganda da Medicina
Vegetal, imprimiu uma espécie de manual dos remédios eficazes que se encontravam na “Farmácia
Catedral” da Praça da Sé e em todas as drogarias, tais como: o Vermífugo Catedral (contra vermes,
amarelão e lombriga), o Guaraton (estimulante aphodisiaco poderoso), as Pastilhas Vegetais (raquitismo
e fraquezas), o Porrum Satirum (depurativo de doenças de pele), o Boldo (Fígado, Basso e Bile), Cactus
(coração e circulação), o Regulador Catedral (doenças de senhoras), o Musa Sapientum (para tosses e
escarros sangüíneos), Cálcio Catedral (doenças do pulmão e acido úrico), a Saúde do Corpo (preventiva
de arterio esclerose e fortificante), etc. Uma parte desses remédios era produzida com plantas da flora
brasileira:
Medicina Vegetal. Maravilhosa da Flora Brasileira. Do Laboratório Vegetal Cathedral,
exijam esta marca. Não conhece os maravilhosos efeitos da Medicina Vegetal. Procure
conhece-los. O quanto antes possível, está alcançando um verdadeiro sucesso, superando
com mais eficiência todas as doenças. Palavras de grande sábio e naturalista alemão Dr.
Martins: "As plantas brasileiras não curam, fazem milagres". Distribuímos gratuitamente
ao público, o nosso Gala "Terapêutico da Medicina Vegetal" que carrega em suas
páginas explicações sobre todas as doenças, regimes e suas curas correspondentes.
Farmácia Catedral Praça da Sé - 94. Em todas as drogarias Remédios que curam (...).
Consultas gratuitas158.

O Clarim d’Alvorada preferiu elogiar a produção norte-americana e européia de medicamentos.


Esses medicamentos eram rigorosamente preparados “segundo as prescrições da pharmacopea e da
homoepathia”. A “Pharmacia Homoepathica Lins”, do farmacêutico Nilo D’Avila Lins, montada de
acordo com o regulamento do serviço sanitário de São Paulo, importava diretamente dos mais afamados
laboratórios europeus e americanos. O diploma constituía outro sinal de distinção desse ambiente: Lins

157
O Clarim d'Alvorada, São Paulo: 13.05. 1929, pp. 2.
.
158
A Voz da Raça, São Paulo: 20. 06. 1935, pp. 4.

66
era formado pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. O estabelecimento funcionava na Avenida
São João e abria aos domingos e feriados159.
Os jornais alternativos praticamente não mencionaram o saber indígena e afro-brasileiro sobre
curas e cuidados com o corpo a partir do uso de ervanários, o que na maioria das vezes ganhou destaque
foram as propagandas dos remédios e dos produtos considerados modernos para o tratamento e
embelezamento do corpo negro. Mesmo assim, por vezes, como no caso apresentado da propaganda
“Medicina Vegetal”, focalizamos que, embora A Voz da Raça quisesse ratificar o conhecimento do
médico relativo ao corpo, deixou fluir um saber em torno da eficácia das ervas na prevenção do corpo
contra as doenças. Ficou evidente que havia no próprio cotidiano da comunidade negra associada o uso
de produtos industrializados, mas também caseiros, rurais. Pressupomos neste ufanismo, de se enquadrar
aos preceitos costumeiros da elite paulistana, que os jornais negros desvalorizavam as receitas caseiras
de embelezamento e cuidados com o corpo, criadas e passadas de geração em geração pelas famílias e
comunidades negras. A intenção, dos anúncios dos remédios e dos produtos de beleza, era quebrar os
vínculos dos ensinamentos tradicionais vindos até mesmo do continente africano, do período
escravocrata. Como se, entre os anos 20 e 40, esses conhecimentos tradicionais fizessem uma forte
oposição aos ensinamentos dos contos publicitários dos jornais negros em torno do embelezamento. As
propagandas dos remédios e dos cosméticos criariam, então, o consumidor. Os valores do
embelezamento e de prevenção do corpo sairiam das propagandas. Parcela da comunidade negra
começaria a se relacionar com os produtos, com os anúncios, e não mais com membros da família e da
comunidade negra para tomar conhecimento de técnicas e produtos para tornar-se “apresentável”.
Nestes anúncios de remédios há uma exaltação à figura do médico, como se naquela época a
medicina ditasse as formas, o funcionamento e o comportamento do corpo 160. Sant'Anna revelou que
entre 1900 e 1930, o médico tinha "um lugar fundamental para a organização moral e social das famílias
de elite", especialmente o clínico geral. A falta de beleza era traduzida várias vezes como sendo doença
e, portanto, merecia o tratamento dos médicos. Além disso, antes da década de 50 o domínio da
cosmetologia não havia conquistado ainda uma autonomia. A influência da medicina era tão forte que na
publicidade, para a correção dos defeitos da aparência feminina, "as pomadas para afinar a cintura,
branquear a pele, tirar pelos ou escurecer os cabelos brancos" eram comumente chamadas de "remédios".
Na vida cotidiana confirmava-se a importância dos remédios e da medicina, tanto que, para embelezar,
as mulheres usavam tônicos, loções e pós-higiênicos. “Os conselhos de beleza se preocupavam menos

159
O Clarim d’Alvorada, São Paulo: 13 de maio de 1924, p. 5.
Sobre a importância da medicina na gestão dos corpos, ver, por exemplo, FOUCAULT, Michel. "Poder - Corpo".
160

Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Editora Graal, 1979, pp. 145.


67
em sublinhar as sensações agradáveis do uso de remédios do que em afirmar, de modo imperativo o
quanto eles eram eficazes”161.
Nos conselhos médicos divulgados pela propaganda foram recomendadas técnicas de
embelezamento desfrutadas pela elite aos associados negros. De modo incisivo, as reportagens e os
anúncios da imprensa negra idealizavam fazer do corpo negro um corpo branco. Isto é, os conselhos de
beleza ansiavam que os corpos negros, particularmente os das mulheres negras associadas, adotassem os
mesmos hábitos das mulheres brancas de elite das grandes cidades. Os remédios cumprem na imprensa
negra, portanto, uma função: embelezar os homens e as mulheres associados, que depois seriam
discursivamente separados dos pobres julgados “feiosos” da cidade.
Seria errôneo concluirmos que os médicos e os seus discursos eram reconhecidos como
autoridades máximas dentro da imprensa negra. Foi na sessão de anedotas do jornal A Voz da Raça que
encontramos, em dezembro de 1935, nas páginas dois e três, significativas críticas relativas ao papel
desempenhado pelos médicos no tratamento dos corpos, vejamos:

Dominado as más inclinações (Transcrito) Anedotas


Ao examinar o doente, o doutor Macário, verificou que ele estava num estado lamentável
de sujeira. Com cuidado e para não ofender ensinuou:
-Escuta uma coisa, meu amigo, de vez em quando não sente desejo de se lavar?
E o doente, naturalmente
-Sim doutor, mas eu sei dominar admiravelmente as minhas más inclinações.

Boa desculpa
O médico da vila encontra na estrada o Joaquim, que finge não o ver.
-Olá Joaquim! Então não se cumprimenta mais o médico?
-Desculpe-me, senhor doutor, balbucia o caipira, tirando o chapéu, pensei que o senhor
estivesse zangado comigo porque há muito tempo não fico doente.

Para rir
Num consultório médico
O Doutor - os seus beiços são grosso de um feitio excepcional... Naturalmente é musico?
O Doente – V. Ex. advinha!
O Doutor – E que instrumento o senhor toca?
O Doente - Bombo162

Para além do ensinamento médico acerca do uso de remédios para o tratamento do corpo,
segundo a pesquisadora Wissembach, existia uma porção de ensinamentos ligados à “medicina mágica”
ou caseiras, até porque não havia médicos e “boticas” para atender toda a população paulistana. Partes
das classes populares enfrentavam as adversidades das doenças com receitas caseiras, com ervas,
161
SANT'ANNA, Denise Bernuzzi de. Políticas do Corpo. Op. Cit., pp. 122-123.

162
A Voz da Raça, São Paulo: agosto de 1936, p. 3.
68
excretos dos animais misturados, no mais das vezes, com simpatias e orações. Ramos localizou as
práticas mágicas do catolicismo popular e as práticas religiosas dos negros, nas quais havia um
“amalgama irreconhecível” de orações. Orações para a cura do “nervo torto, espinhela e campainha
caída, carne trilhada, para tirar um argueiro, para cura de cobreiro, de íngua, espinha na garganta, cura de
bicheira, dôr de ventosidade, cura de olhado, etc” 163. Nas palavras de Wissembech, essas práticas não
estavam associadas simplesmente à “permanência de ritos e crenças, em continuidade com as tradições
do catolicismo popular e dos ritos afro-brasileiros, mas de um processo acentuado de revivescência das
mais variadas correntes de pensamento mágico ou místico”. No processo de urbanização da cidade,
crescia espantosamente o numero de habitantes que trazia inscrito “o alastramento das vertentes do
pensamento espiritualista”: teorias e práticas do espiritismo, do magnetismo, da ciência do ocultismo, da
quiromancia e da cartomancia “mesclavam-se às tradições existentes e acabavam por moldar práticas e
figuras sociais multifacetadas”164.
As ervas, algumas delas depurativas, outras sudoríficas, outras ainda simplesmente simbólicas,
eram encontradas nas matas, cultivadas em canteiros e muitas vezes descobertas através da observação
de comportamentos de animais ou então de ensinamentos vindos de tempos imemoráveis. Essas ervas
vinham de diversificadas regiões brasileiras e estrangeiras e eram competentes na cura de variados
males. Os “curandeiros e pitonistas, feiticeiros, macumbeiros e ocultistas”, agiam em centros ou
institutos. Costumavam se espalhar pelo Brás, Mooca, Belenzinho, Luz e Santa Efigênia; Penha,
Santana, Pinheiros; Cambuci e Barra Funda. As curandeiras e as benzedeiras normalmente habitavam as
regiões de São Bernardo, São Caetano e Santo Amaro. Wissembach transcreveu uma propaganda de uma
das importantes lojas de comercialização, a Hervanaria Santa Izabel, localizada à rua General Carneiro
número 45:

Completo sortimento de figas e cruzes de arruda, de guiné, de azevim de Lisboa, de


azeviche africano, de Kengongo, etc; búzio, favas anti-rheumáticas, favas contra máo
olhado, favas divinas, colares indianos para facilitar a dentição – Hervas próprias para
lavar casa e para banhos – Hervas para coceiras, para urinas – para suspensões – para o
estômago – para rheumatismo – para febres intermittentes ou palustres – para gonorhéa, -
para o fígado etc, etc. Cascas de Catuaba para a impotência, - guias de Pagé, - defumações
africanas para defumar a casa – defumações completas – gomma de batata de purga – óleo
e banha de capivara, banha de coaty para fazer nascer o cabello e a barba, banha de raposa
(gambá), de cobra, de jacaré, de lagarto, etc – óleo de mamona – mel de pau – mel de
jatahy – dentes de jacaré – chifres de veado, contas de leite, etc. – obys, orobos, legítimas
figas de azeviche contra a inveja – figas de pau de alho. Pó Egypciano – Iman em pó (...)

163
RAMOS, Arthur. “O negro e o folclore cristão”. In: Revista do Arquivo Municipal, ano IV, vol. XLVII, maio de 1938, pp.
64
164
WISSEMBACH, Maria Cristina. Ritos de magia e sobrevivência. Sociabilidades e práticas mágico-religiosas no Brasil
(1890-1940). Op. Cit., pp. 9.
69
orações de todas as qualidades – óleo de coco, - azeite de dendê – chifre de cabra loura –
Pemba africana, Pimenta da Costa, Legítimas Pedras de Cevar da África. (...) remédios
para tirar verrugas – cera da terra, -contas de azeveich, favas do Pará para aromarizar o
fumo.165

O botânico F. C. Hohene, do Instituto Butantã, visitou os ervanários localizados nos mercados de


São Paulo, em 1920 e “ficou admirado com a panacéia de produtos, objetos e fetiches” que estavam a
venda. Hohene aproveitou para fazer, junto ao trabalho cientifico de classificação das ervas e do
reconhecimento de suas qualidades terapêuticas, digressões sobre a aparência destes estabelecimentos.
Wissembach constatou que o “tom impressionista” do botânico era o mesmo utilizado pelas notícias da
imprensa da época relacionadas às descrições das moradias de homens negros acusados de praticar ritos
de feitiçaria e nas quais era sublinhada a imagem de exotismo, do primitismo, da barbárie e da incultura.
Ela insistiu em destacar que o exotismo denominado para essas práticas, pela “chamada modernidade”,
pode ser visto com efeito de dupla mão, isto é, as práticas eram utilizadas “como artimanha da
resistência cultural” pelas classes populares, provocando naqueles que delas se aproximavam
“sentimentos ambivalentes de medo, respeito e também de atração”. 166
A Delegacia de Costumes e Jogos, por volta de 1928, se encarregava de combater as práticas
mágico-religiosas e o curandeirismo. No Setor de Repressão à Prática do Baixo Espiritismo havia um
corpo de inspetores especializados, aos quais se acrescentavam peritos médicos ligados ao Serviço
Sanitário, nas atribuições de fiscalizar o exercício clandestino da medicina. Inspetores e peritos médicos
acompanhavam os denunciantes das práticas, apresentavam-se como autores da denúncia e dos
inquéritos policiais e como testemunhas enfatizadoras da pertinência dos réus nos dispositivos penais.
Nas descrições das condições de vida e de trabalho das classes populares realizadas por
jornalistas, autoridades médicos-sanitaristas e policiaes, homens de ciência e autoridades eclesiásticas na
cidade de São Paulo surgiram uma gama de preconceitos e estereótipos quando se referiram “às
pitonistas e às benzedeiras”: misturaram rezas e baralhos aos odores dos afazeres domésticos. Ou seja, as
descrições de moradias e de tipos físicos de feiticeiros, curandeiros ou rezadores estabelecidos na cidade
criaram “cenários singulares, nos quais a pobreza de cortiços, de casebres e de vestes” foi “sobrepujada
pelo caráter inusitado das práticas” que presidiam167.
165
WISSEMBACH, Maria Cristina. Ritos de magia e sobrevivência. Sociabilidades e práticas mágico-religiosas no Brasil
(1890-1940). Op. Cit., pp. 37, 134-135.
166

WISSEMBACH, Maria Cristina. Ritos de magia e sobrevivência. Sociabilidades e práticas mágico-religiosas no Brasil
(1890-1940). Op. Cit., pp. 84-112.
167
WISSEMBACH, Maria Cristina. Ritos de magia e sobrevivência. Sociabilidades e práticas mágico-religiosas no Brasil
(1890-1940). Op. Cit., pp. 104.
70
Nina Rodrigues, ao descrever o local no qual funcionava o candomblé da Bahia, também
enfatizou a falta de higiene dos negros. Ele assinalou que através de uma simples observação nos
quartinhos do Gantois era possível revelar os hábitos dos negros:

E’ um especimem o quarto particular onde trabalha a filha da mãi de terreiro e onde tenho
estado por diversas vezes. Sem ordem, ali se encontram na mais indescriptível
promiscuidade, taboleiros de cereais, frutas e ervas, garrafas e tigelas de azeite de dendê,
pratos com moquécas, e outros preparados africanos, pimentas, condimentos, etc. De
encontro a uma das paredes está um armário tosco de madeira onde se guarda roupa e às
vezes comestíveis. Do outro lado opposto uma mesa velha e mal aceiada, tendo em cima
garrafas de vinho, de azeite de dendê, copos, cálices, pratos com comida, etc 168.

Nas descrições de Rodrigues podemos encontrar um tom impressionista ainda na parte da


manifestação musical. Para ele, a música do candomblé era “monótona, grave, triste e rude” como a
“melopéa africana”. A dança, por demais extravagante e estranha. “Tudo concorria para dar ao conjunto
um cunho de poesia selvagem e mysteriosa169”
O que a historiadora Wissembach sublinhou de relevante foi, ainda na sua pesquisa, a capacidade
desses homens e dessas mulheres populares e religiosos em improvisar a sobrevivência material e
instaurar formas criativas que minimizassem os efeitos de uma crise social aguda provocada pelos
trajetos de desenraizamento e pelas contingências de um ambiente novo, instável e principalmente
exigente170.
Neste estudo do embelezamento negro, não há cisões entre “representação e prática, aparência e
essência”, pois localizamos uma gama de imagens que comprovaram a adesão às técnicas e aos métodos
de embelezamento considerados modernos, aqueles do branqueamento, do uso de produtos
industrializados. Os mesmos que conquistaram permanência histórica, chegando ao século XXI com
rigor e sofisticação no mercado de produtos de embelezamento para negros. No caso das propagandas
dos remédios e do uso das ervas no cotidiano dos negros havia uma ilação entre “a crença na ciência e a
fé na religião”, nos permitindo flagrar o início de uma forma de vida urbana que se confundia ainda à
uma forma de vida bem mais próxima à natureza171.

168
RODRIGUES, Nina. O animismo fetichista dos negros bahianos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira S. A., 1935, pp.
64-6
169
RODRIGUES, Nina. O animismo fetichista dos negros bahianos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira S. A., 1935, pp.
64-6
170
WISSEMBACH, Maria Cristina. Ritos de magia e sobrevivência. Sociabilidades e práticas mágico-religiosas no Brasil
(1890-1940). Op. Cit., pp. 8.
171
Tal conclusão é análoga à realizada pela historiadora Sant’Anna, quando analisou as práticas e representações do
embelezamento feminino. SANT’ANNA, Denise Bernuzzi de. “Propaganda e história: antigos problemas, novas questões”.
Op. Cit., pp. 99.

71
As representações dos corpos influenciavam as tramas sociais que envolviam a população negra.
Por isso mesmo preconceitos e estereotipos para com os negros mais pobres da cidade alastraram-se
para os institutos embelezadores: de um lado, temos a recusa dos institutos embelezadores das
sociedades negras em tratar do corpo negro “pobre”, e, de outro, a recusa dos salões da sociedade mais
ampla em tratar até o negro de posição social elevada. A imprensa reclamava que se a comunidade não se
embelezasse nos salões das associações, ficava sem o tipo de serviço prestado nos salões de beleza, tanto
nos simples como nos sofisticados, da sociedade mais ampla. Neste tópico, focalizamos a justificativa da
criação, por parte dos associados negros, dos seus próprios locais de embelezamento. A prática
discriminatória ultrapassou os limites da cidade e dos salões, expandiu-se para as alfaiatarias, sapatarias,
etc.

Não precisamos especificar o feito dessa perseguição de certos estrangeiros contra o


negro brasileiro, pois que elle é muito vazio tanto quanto conhecido: começa em alguns
barbeiros e vae até certas casas de bebidas. Si ficarmos encastellados no silêncio da
covardia, si fugirmos aterrorisados deante do volume dos nossos affrontadores, a nossa
sorte amanhã será a de um verdadeiro condennado social. Não teremos barbeiros, não
teremos sapateiros, nem alfaiates, não poderemos entrar nos hotéis, nos theatros, enfim,
seremos expulsos dos bondes e exortados dos trens, ficando mesmo sem o direito de
transitarmos pela calçada. Quem cala consente, e por isso é que precisamos agir com
segurança172.

Neste sentido, O Clarim d’Alvorada ressaltou também a exclusão dos negros em outros Estados.
No Rio Grande do Sul, barbeiros e cabeleireiros se recusavam a prestar serviço aos negros, como
informou o integrante dos "Batutas" em uma entrevista cedida para O Clarim d'Alvorada:

Curiosa entrevista dada a critica - Do Rio de Janeiro, pelo pandeirista Alfredo sobre
suas impressões do Rio Grande do Sul.Os Batutas regressaram do Rio Grande do Sul,
onde conseguiram um ruidoso sucesso. Os queridos populares músicos regressaram ante-
hontem, depois de percorrerem as cidades de Porto-Alegre, Pelotas e Rio Grande. Fazem
actualmente parte dos "Batutas": Pechinguinha, (flauta); Donga, (banjo); Venthuil,
(trombone); Martins, (piano); Paulo (pistom); Francisco (tuba); Benecdito, (bateria);
Alfredo, (pandeirista); Paschoal, (saxofone) e Benicio (tenor).
Alfredo nos disse que gosta immenso do Estado Sulino, mas veiu mal impressionado da
cidade Rio Grande.
-Por que? - perguntamos.
-Porque lá existe o preconceito estúpido de cor.
-Como assim?
-Os barbeiros não barbeiam as pessoas de côr preta!
-Por que?
-Só elles sabem (...)173.
172
O Kosmos, São Paulo: 21.11. 1924, pp. 2. O jornal faz parte da coleção imprensa negra.
173
O Clarim d'Alvorada, São Paulo: 03.02. 1929, pp. 2.
72
Pelo interior do Estado paulista os comerciantes adotaram a mesma postura das grandes cidades,
mesmo quando o consumidor apresentava-se bem trajado:

Restaurante Giocondo - Raras são as cidades do interior do nosso Estado, onde o


preconceito de cor, não seja um facto imperante, em todas as tendinhas de commercio. Os
barbeiros, os bares e os restaurantes coagem os pobres pretos de tudo e por tudo - depois
vem com a eterna tapiação - no Brasil não há preconceitos - da outra vez quando
estivemos em Campinas, não fomos servidos, na famosa casa Tolle, que é um bar sem
graça e sem luxo nenhum, agora, em Piracicaba, "o modesto" restaurante Giocondo não
nos servia um almoço. Diante do nosso protesto, allegaram os proprietários do mesmo,
ao nosso collega do "Patrocínio", que foi pela selecção; esta desculpa não esta direita,
pois não estávamos bêbados e nem mal trajados, e com toda a polidez, pedimos um
almoço, ao gury que servia de garçon - ipso fac – houve conferência e veio para cima de
nos, a eterna canção, não temos comida no momento, porém nos conhecemos esse
decantado preconceito feito pela ignorância desses comerciantes (...) 174.

Ainda assim, mesmo com uma significativa parte dos jornais anunciando a discriminação sofrida
pelos negros nos salões da sociedade mais ampla e em outras casas comerciais, um sujeito negro “de
bom padrão de vida” discordou da existência do preconceito chegando até a pensar que o assunto
desmerecia reflexão:

Há males que vem para o bem - O preconceito da côr - Alguns jornaes desta Capital,
no dia 17 do corrente, noticiaram que um coloredman, não pode ser barbeado em um
salão chic, sito à Rua da Boa Vista, 18. Essa noticia, é muito interessante, depois do
caso do 'O Fanfulla'. Esse patrício afrontado no mínimo é um desses pretos ricos, - ou
tem cisma de ser - que acha inopportuno a realisação do nosso Congresso; coitado foi
tranqüilo sentar-se commodamente na poltrona macia, certo que, no Brasil, não há
preconceito de cor. (...) temos ahi a idéia da realisação do 1 O. Congresso da Mocidade
Negra Brasileira175.

Houve negligência por parte dos brancos em oferecer “tratamentos” embelezadores para os
negros, mas também essa negligência esbarrou no profundo desejo dos negros de não mais ter que
depender dos serviços prestados pelos estrangeiros. Tinham a intenção de retirá-los do mercado de
trabalho, particularmente do mercado da ornamentação. Era como se a comunidade negra associada
tivesse perto do afeiçoamento ao estrangeiro (em termos de adornamento) muita restrição ao seu domínio
no mercado de trabalho:

174
----------: 25.01.1930, pp. 2.
175
O Clarim d’Alvorada, São Paulo: 27.10.1929, pp.1.

73
Linhas Ligeiras - Do "The Washington Word", E.U. A:
-os gregos nos vendem melancias e doces
-os israelitas nos vendem roupas e provêem os nossos divertimentos
-os italianos concertam os nossos sapatos (...)
-os chinezes lavam e engomam as nossas roupas
Na Bahia de Salvador
-os espanhoes dominam o commercio a retalho de viveres, e espancam os nossos
patrícios e ficam impunes.
-os italianos nos vendem massas alimentícias
-o que fazemos para nós? Andamos descalços, ornamentamos as nossas ruas com
bandeiras estrangeiras, carregamos pianos na cabeça e fazemos discursos 176.
Um bahiano

O rancor ao estrangeiro aflorava diante dos seus xingamentos dirigidos aos corpos negros e
devido às ocupações que o estrangeiro ocupava no mercado das indumentárias e nos institutos de beleza.
E se o negro não queria usufruir do que era produzido pelo estrangeiro, o mesmo fortalecia-se do outro
lado - o estrangeiro não queria que o negro desfrutasse de “coisa de branco”, inclusive ofícios. Filosofia
assumida até por não brancos subordinados, que "faziam esculhambação" quando as senhoras e as
meninas negras ousavam usar o chapéu.

Gente Negra no Brasil (colaboração de um congregado mariano para O Clarim


d'Alvorada)
Todos se collocam contra o preto. Elle é desprezado, humilhado em toda a parte. O
estrangeiro maltrata-o e ninguém vem em seu auxílio, nem mesmo os brasileiros. Estes
chegaram ao cumulo. Um fato que parece não ter grande importância, mas que, na
verdade, encerra um insulto (...), são as chacotas a que estão sujeitas as senhoras pretas
que usavam chapéu. Ora, então um preto não pode ter um chapéu... E os constantes
insultos que recebem umas e outras por parte não só de estrangeiros mas,
principalmente de brasileiros177.

Segundo A Voz da Raça os negros só conheciam “da liberal-democracia, da tal igualdade” o


nome. Isto ia constituindo-se aos olhos dos habitantes daquela “urbis plutocrata e cosmopolita,
verdadeiro escândalo ou pelo menos, admiração, o uso do chapéu por uma negra, a audácia de uma
patrícia fazer-se normalista”. Igual celeuma faria um rapaz negro se levasse a sério a constituição, se se
tornasse estudante e saísse às ruas com o livro a mostra. “Qualquer desses desaforados” fariam os negros
serem apedrejados e corridos, da cidade, que se supunha “a mais civilizada do País”. As mulheres negras
deveriam ser, talvez, “para gáudio da democracia, sempre, sempre, pianistas do Fogão”178:

176

O Clarim d'Alvorada, São Paulo: 23.08. 1930, pp. 3.


177
O Clarim d’Alvorada, São Paulo: 28.09.1930, pp.2.
178
A união faz a força. A Voz da Raça, São Paulo: 22 de abril de 1933, p. 2.
74
O chapéu de Benedita
Quando áquella menina, a Benedita,
A negrinha ali da esquina,
Pós o chapéu pela primeira vez,
Foi um Deus-nos-acuda, Tu não crês?
A língua viperina
Da estrangeira que mora perto dela
Falou: "chapéu é só para gente fina,
Não é pra Benedita”!
E a filha do doutor, toda amarela
Com o ciúme fatal de quem é prima,
Disse: "Pensa que fica mais bonita”!
Vejam só! Benedita
De Chapéu!
Quem será que lhe deu?!
Estas regras então vão se saindo,
Querem ir para cima!

Sabem que mais?


Até o preto, o negrinho Barnabé,
Cuja filosofia, é a mesma do patrão,
Na coisa pós o pé:
Achou ruim, estuchou, fez esculhambação
Quando acaba a função dessa perversa fila?
Santo Deus do Brasil! Quando esta cousa muda,
Se apenas um chapéu da simples Benedita Fez um Deus-nos-acuda?179

O chapéu, era de uso, segundo uma mulher branca, daquela Benedita que já havia retirado o
corpo do fogão e vivia exibindo-o para o mundo. É isso que exaspera o comentário da marcha
carnavalesca cantada pela senhora branca: apenas conseguiam vestir-se luxuosamente as mulheres
negras que se prostituíam na vida:

Diálogo - Horacio da Cunha


-Ora vejam só!!! Quá, quá, quá
-Quem foi que morreu?
-Que me conste, ninguém
-Por que então a senhora está atacada de riso?
-É porque estou contemplando o seu chapeuzinho de feltro com esta pena verde ao lado
-Comigo é assim...
Agora nós os pretos somos outros; para isso trabalhamos, podemos e temos o direito de
ser "chics" como os demais.

179
A Voz da Raça, São Paulo: 1O. 04. 1933, pp. 3.

75
A minha risada não se refere ao seu chapeuzinho; lembrei-me daquela "Marcha
Carnavalesca" que ouvi cantar: "a Benedita já faz Progresso/ Tirou o corpo lá do
fogão/Anda na seda, tem um V8/ E sai de braço com o Capitão".
Isso não é verdade
Quem passeia de braços dados com o Capitão são as loiras a oxigenê e as belezas
artificiais, que saem dos "cabarets" ao romper da aurora.
Os pretos e as pretas que não carregam o seu belo terno feito no "Imperador da Moda"
ou com os nossos amigos Russos das prestações, é porque são adeptos da "Lei do
Mínimo esforço" e assíduos freqüentadores das Kermesses, feiras que se realizam das
segundas-feiras aos sábados e não querem teima.
Está claro...
Tudo isso não é da minha conta
Mas é preciso ser articulado para estimular nossos irmãos negros
Graças a Deus, a maioria dos meus irmãos negros procura trabalhar para manterem as
suas proles e acompanharem os luxos e etiquetas da nossa paulicéia, apresentando-se
com sua Bela Indumentária; porque quem não tem não é considerado na roda dos
nossos irmãos pretos e chics180.

O direito de ser chic rimava com o dever de trabalhar. Benedita poderia usar o chapéu, não
porque virou uma prostituta, e sim, por exemplo, porque conquistou o cargo de professora. Era de direito
dos negros produtores da paulicéia desfrutar das novidades oferecidas. O negro que não tinha acesso aos
adornamentos do mundo da moda, era considerado adepto da acomodação, era o freqüentador das feiras
e das quermesses, morador dos bairros pobres e periféricos da cidade e, sobretudo, excluído do meio
negro “nobre”. Ao mesmo tempo que Cunha reagiu contra a sociedade branca, que tentava especificar
um tipo de posição social através da indumentária para os negros, ele degradou parte da comunidade
negra impossibilitada financeiramente de participar do império da moda e de freqüentar os locais de
status da sociedade paulistana.
A marcha carnavalesca presente no texto Dialogo da d’A Voz da Raça chama-se “Mulatinha da
caserna” e é dos compositores Martinez Grau e Ariovaldo Pires. A canção de “convocação
revolucionária” marcou o carnaval de 1937, década em que o mestiço e sua cultura tornaram-se símbolos
da nacionalidade brasileira. Segundo Teófilo Queiroz o diminutivo “mulatinha” contém uma rica
ambigüidade: “a simpatia e a vulgaridade da mulata”. A letra constitui, também, uma indicação da
ascensão social da “mulata”. Ela passou de cozinheira a amante de militar graduado, além do mais,
tornou-se proprietária de automóvel (V-8 era a denominação comum dada a linha de automóveis de
fabricação FORD). Desde 1924 “a mulata” aparece em letra de música, entretanto constava mais no
título da composição. Serve de exemplo o nome da composição “Casaco de Mulata é de Prestação” do
autor Luis Nunes Sampaio. Na análise das letras de músicas carnavalescas o pesquisador Queiroz afirma
que Lamartine Babo, possivelmente, foi o autor mais favorável à “mulata”. Sua marcha carnavalesca “O
180
A Voz da Raça, São Paulo: novembro de 1936, pp. 3.
76
teu cabelo não nega” para o carnaval de 1932 foi produzida em parceria com os irmãos Valença.
Expressando idéias sobre a figura da mulata fizeram sucesso, ainda, as músicas: “A mulata é a tal”, de
1948, dos autores João de Barro em parceria com Antonio de Almeida, “Fita Amarela”, de 1931, de Noel
Rosa, etc181.
Sob a voz da mulher negra urbana que dialogou com a branca, foi possível ainda notar o desejo
profundo que o autor anterior sentia de desvincular a comunidade feminina negra das louras oxigenadas
e das mulheres dos "cabarets", desfrutadoras dos artifícios da beleza. No início do século, quase todas as
mulheres de “boa família” tendiam a vestir-se fazendo uso comedido das bijuterias, dos espartilhos e das
roupas presentes na imprensa feminina. O chapéu era um desses adornos, aqui a Benedita idealizada por
Horácio esteve incluída nos costumes elitistas urbanos.
Descobrimos que as mulheres italianas depoentes de Bernardo, em “Memória em branco e
negro”, trabalhavam na produção de chapéus. D. Adalgisa narrou que desde os oito anos colocava um
xale nas costas e ia trabalhar na fábrica de chapéus. Os sapatos foram fabricados por homens negros e,
com o passar dos anos, este ofício passou para as mãos dos italianos. Um dos depoentes negros da
própria autora conta que desde menino trabalhava como aprendiz de sapateiro na casa “Stacchini”, na
Rua da Graça, local onde trabalhou durante quinze anos a troco de comida e de alguns tostões. Só saiu da
loja porque, em 1927, no Bom Retiro182 e em outras localidades, os italianos ocuparam o lugar dos
negros nas sapatarias e nas alfaiatarias 183. Num dos anúncios encontrados por Wissembach sobre as
práticas religiosas, em 1934, Francelino Ignácio da Silva, homem negro, explicou que há quatro anos
havia abandonado “em definitivo a profissão de sapateiro, de onde já não retirava o necessário para o
sustento, dedicando-se inteiramente à exploração de um centro espírita”, denominado de Centro de
Nossa Senhora Aparecida, do qual era “presidente, secretário e tesoureiro”184.
Tentando combater o preconceito dos patrões, disseminado pela cidade, os militantes se
confrontaram com o governo para conseguir o desejado, que seria, no caso seguinte, a valorização dos
corpos masculinos. A Frente Negra comunicou ao presidente da nação, em audiência, a respeito do
afastamento dos corpos negros da Guarda Civil. Posteriormente à contestação da F.N.B., Getúlio Vargas,
181
QUEIROZ JUNIOR, Teófilo. O preconceito de cor e a mulata na literatura brasileira. São Paulo: Editora Ática, 1975, pp.
68-73.
182
Delineou-se na cidade uma concentração de judeus, sobretudo nos distritos do Bom Retiro e de Santa Efigênia. Além das
sinagogas dominavam um “grande número de indústrias de roupas e malharias”. BRUNO, Ernani Silva. História e tradições
da cidade de São Paulo, Op. Cit., pp. 1344.
183
BERNARDO, Teresinha. Memória em branco e negro. Olhares sobre São Paulo. São Paulo: EDUC, FAPESP, UNESP,
1987, pp. 103-119. É um livro que narra, via história oral, a trajetória de descendentes de escravos e de italianos (na faixa dos
70 anos), que viveram na cidade paulistana.
184
WISSEMBACH, Maria Cristina. Ritos de magia e sobrevivência. Sociabilidades e práticas mágico-religiosas no Brasil
(1890-1940). Op. Cit., pp. 143.

77
por intermédio do comandante da Segunda Região Militar, Gal. Góes Monteiro, e do chefe da Polícia de
São Paulo, Cordeiro de Farias, ordenou que a Guarda Civil de São Paulo aceitasse a inscrição dos negros
nas suas fileiras. Até então, a maior parte dos elementos que a integravam era estrangeiro, porque "se
exigia dos candidatos uma altura mínima, que o negro não atingia"185.
Tal problema não foi pronunciado apenas pela F.N.B. No governo de Júlio Prestes, os militantes
do O Clarim d'Alvorada também se sensibilizaram com o assunto, divulgando mais requisitos que
impediam a participação dos negros nesse concurso público. Segundo o texto “A cor e a Guarda Civil”, a
delegacia regional da cidade de São Paulo recebeu da “Chefatura de Polícia” uma carta de teor seguinte:

Sr. Delegado. Requisito as vossas providências no sentido de serem angariados fundos


nesse município e apresentados nesta Capital, na Guarda Civil, indivíduos que desejem
alistar-se nesta corporação. Os candidatos deverão reunir as condições essenciaes
exigidas pelo respectivo regulamento e que são: 1 metro e setenta e dois centímetros de
altura, no mínimo saber ler e escrever, ter boa conduta, idade mínima, 22 anos,
preferindo-se homens robustos maiores de 25 anos e de cor branca, de boa dentição e
de constituição physica perfeita. Aquelles que forem aceitos terão o ordenado inicial de
250$000, passando a 320$000 no fim de quatro mezes, desde que não tenham faltas ao
serviço, saúde e fraternidade. O Chefe de policia Mário Bastos Cruz 186.

Tecendo críticas veementes à circular do concurso, O Clarim d’Alvorada questionou: “Prestes


está criando uma difficuldade, um handicap aos negros e mulatos brasileiros?”. E mais: por que motivo
os negros são excluídos da guarda civil, “quando nenhum antropologista conseguiu provar, por a-b” que
somos “espiritual e physicamente inferiores aos brancos?”. O jornal argumentou que, na circular do
concurso, Mário Bastos Cruz não disse abertamente: excluem-se homens de côr. A autoridade usou uma
expressão mais branda, porém, “não menos deprimente: preferindo-se homens de cor branca”. Por fim:

As únicas condições que o governo póde exigir para que um homem, de mais de vinte
um annos, possa servir na guarda civil são: idoneidade moral, robustez physica e
instrução regular. A altura já é uma exigência passível de crítica. Com effeito, se se
impõe a estatura mínima de 1,72, porque não exige também o regulamento um peso
máximo e mínimo? Porque não estatua a dolicocephalia ou a brachicephalia?187 .

Ao falar das diferenças entre os “dolicocéfalos e braquicéfalos” o escritor dO Clarim d’Alvorada


dialogou diretamente com os discursos raciais presentes nas falas dos políticos, intelectuais e cientistas
que, de 1880 a 1920, buscavam trazer imigrantes para branquear e civilizar o Brasil. Se no século XIX os
185
PINTO, Regina Pahim. Movimento negro em São Paulo: luta e identidade. Tese de doutoramento, FFLCH - USP, 1993, pp.
145.
186
O Clarim d’Alvorada, São Paulo: 14.07.1929, pp.1.
187
----------: 14.07. 1929, pp. 1.

78
chineses e os africanos eram desautorizados a entrar no país, no século XX a condenação recaiu sobre os
japoneses e os norte-americanos. Argumentou-se que a civilização japonesa estava em decadência e que
possuía “costumes, línguas e comportamentos” díspares da cultura nacional. Dessa forma jamais se
misturariam com o elemento nacional. Segregação era a justificatica corrente também para barrar a
entrada dos norte-americanos: poderiam gerar o “ódio racial” ao se agregarem ao negro brasileiro,
“produzindo uma ruptura (...) da hierarquia racial e do processo de mistura sobre o qual se definia a
unidade política da nação”188. Foi nesta direção então que se desenvolveu o questionamento do jornal O
Clarim d’Alvorada, era como se dissesse que políticos e intelectuais brasileiros introjetavam aspectos
das teorias racistas do século XVIII, ou melhor, “hierarquias das teorias racistas”, em que “nem todos os
brancos eram considerados iguais”. Como na classificação de Lapouge, “que inferiorizou todos os
braquicéfalos europeus por oposição aos seus superiores arianos dolicocéfalos” 189. E ainda, que tais
distinções entre brancos não existiam para os administradores da Guarda Civil paulistana, preferiam
empregar qualquer tipo de branco a ver perambulando pela cidade um negro com uniforme da
corporação.
O texto denominado de “Os barqueiros do Volga” pelo escritor dO Clarim d’Alvorada discutiu a
presença dos estrangeiros no Brasil: “esses homenzarrões de olhos gateados e cabellos loiros”, que “não
se empregam niente no portuense”. Disparou contra a participação dos homens negros na Guarda Civil:
“Dizem até que alguns creoulos, meio esfolados na côr, foram promovidos a caboclo”. Neste processo
de discordância, o escritor formulou que o negro deveria “luctar pelo engrandecimento dos homens de
cor desta terra, pela associação forte e pela classe poderosa”, que vivia “completamente desunida”, ao
invés de ficar criando conflito para fazer parte de uma corporação que mais servia “para embellezar uma
cidade” mau governada190.
“Os Barqueiros do Volga” corroborou a fala de Marcello Orlando Ribeiro (Inspetor-chefe da
extinta Guarda Civil e Tenente Coronel da Polícia Militar). Ribeiro tinha uma certa antipatia pela farda
em vista da enorme repressão e pancadaria cometidas pela Cavalaria durante os períodos de greve na
cidade. Nesses termos, embora amenizasse a selvageria praticada pela Guarda Civil, admitiu que recebeu
de um dos componentes desta mesma corporação uma bofetada, na Quintino Bocaiúva, por estar “com

188
RAMOS, Jair. “Os males que vem com sangue. As representações e a categoria do imigrante indesejável nas concepções
da imigração da década de 20”. In: Raça, Ciência e Sociedade, Op. Cit, pp. 59-82.
189
SEYFERTH, Giralda. “Construindo a nação: hierarquias raciais e o papel do racismo na política da imigração e
colonização”. IN: Raça, Ciência e Sociedade. Op. Cit., 41-58.
190
O Clarim d’Alvorada, São Paulo: 17.07.1927, pp. 5.

79
um carrinho em cima de uma casa comercial”. Quer dizer, a antipatia que ele tinha pela Cavalaria passou
para a Guarda Civil191.
A ação dos militantes neste concurso teve um final positivo. Encontramos, inclusive, um texto em
que O Clarim d'Alvorada convidou o chefe da polícia para participar de um de seus eventos. Embora
Mario Bastos não tenha comparecido à comemoração, o jornal tentou agradecê-lo pela ação em prol da
comunidade negra. O jornal queria deixar registrado o reconhecimento a Bastos Cruz, “pela maneira
fidalga” com que o chefe de polícia recebeu o convite da folha para o “vesperal literário”, realizado em
homenagem ao poeta Cruz e Souza. A folha ficou cativada pelo “gesto de urbanidade do modelador
incansável da segurança pública” e pela presença de seu ajudante de ordens Sr. Tenente Jayme Camargo
na pequena festa literária192.
Contribuiu também para a entrada dos negros na Guarda Civil “o discurso pronunciado pelo
Deputado Orlando de Almeida Prado, na 13a. sessão ordinária da Câmara do Deputados de São Paulo,
em 31 de julho de 1928”. A “portaria foi revogada ao receber a determinação”. O diretor da Guarda Civil
comentou, azedamente, “diante de testemunhas: com a entrada dos negros, podemos abrir a porta a
morféticos e a portadores de defeitos físicos”193.
“Prohibir o ingresso do negro na Guarda Civil era desconhecer o valor da ação do preto na
formação do nosso paíz, quer como elemento de trabalho, quer como fator ethinico”. Essa foi a fala do
deputado Prado para o Progresso na Câmara dos Deputados.
Houve um confronto direto entre os militantes e o poder governamental, provocado pelos
administradores do Estado e pela sociedade. Novamente um depoente de Márcio Barbosa fala da
proibição da entrada dos negros nos rinques de patinação, que tornaram-se moda em São Paulo, na
estação do inverno. Por ser um lugar chic, apenas a entrada de brancos era permitida. “Na época a Frente
Negra estava com muita força diante do governo de Getúlio Vargas” e reclamou. Depois de feita a queixa
“o chefe de polícia, o Cordeiro de Farias, emitiu uma nota: rinque de patinação que não aceitasse negros
fecharia suas portas, como de fato houve rinques de patinação que foram fechados"194. No “depoimento
feito em público pelo Dr. Arlindo Veiga” colhemos: “os negros graças à flexibilidade com o corpo, talvez
porque são mesmo do samba tornaram-se logo os maiores patinadores”195.
O jornal Chibata publicou uma nota a respeito da entrada dos negros nos rinques de patinação da
Capital, quando já estava franqueada a entrada “aos patrícios coloreds”. A nota dizia que todos poderiam

191
BARBOSA, Márcio. Frente Negra Brasileira. Op. Cit., pp. 84, pp. 5.
192
O Clarim d'Alvorada, São Paulo: 25.01. 1930, pp. 1.
193
FERNANDES, Florestan. A integração do negro à sociedade de classes, Op. Cit., pp. 273.
194
BARBOSA, Márcio. Frente Negra Brasileira. Op. Cit., pp. 54.
195
FERNANDES, Florestan. A integração do negro à sociedade de classes, Op. Cit., pp. 351.
80
escorregar com elegância, em qualquer pista (“brancos, pretos, amarelos e todas as matizes”). Entretanto,
alguns “patrícios” ainda receiavam se apresentar nas casas de diversão decentes, procuravam outros
“ambientes anty-higienicos, com aspectos impressionantes”. O autor anônimo informou também nesta
nota que o proprietário do projeto de rinque R. das Palmeiras dizia em roda que os moreninhos estavam
protestando contra o pagamento. Nas palavras deste proprietário, ditas “em pilhéria”, enquanto umas
“casas cobravam 2$200, para ver o Rei Bobi patinar, um chimpanzé autentico”, outras deixavam patinar
“por 600 tantos macacos”. O escritor finalizou o texto, influenciado pelas palavras do proprietário ou
satirizando-as, argumentando que os “negros de brio” preferiam “escorregar em casca de banana” a
entrar na “bagunça”196.
Do discurso de Orlando Prado, o Progresso extraiu mais um sinal de aversão da sociedade para
com os físicos negros e pediu para que o presidente do país colocasse um fim na estratégia dos
“cobiçadores egoístas” que tentavam roubar a liberdade corporal e a exposição dos negros num concurso
de beleza infantil. Se tal fato se concretizasse seria uma injustiça, visto que muitos brasileiros eram
filhos e descendentes de uma única mãe, “a mãe preta”. Se os corpos brasileiros saíram do mesmo
ventre, logo, todos deveriam ter a mesma oportunidade de apresentação. O Progresso, influenciado pela
idéia de democracia racial, afirmou ter a mãe negra repartido o seu leite e o seu afeto, amigavelmente,
entre o seu filho e o filho do senhor:

Prohibir que as creanças de cor concorram, como noticiam os jornaes, ao concurso de


robustez infantil organizado pela Inspetoria de Educação Sanitária e Centro de Saúde é
ignorar este poema commovente de amizade representado pelas mães pretas, repartindo
entre os filhos do sinhô e o filho das suas entranhas o leite forte, vigoroso, e o affecto
maternal197.

Assim, como o já referido concurso da guarda civil e como as casas de patinação, os


organizadores do concurso de “Hygiene Infantil” tentaram impedir a apresentação das crianças negras
para a sociedade paulistana. De imediato, o Centro Cívico Palmares fora contestar para o governador do
Estado a postura tomada pelo “Concurso de Robuztez Infantil”, que negou a inscrição e a premiação das
crianças negras. Justifica-se, então, a reclamação do Centro Cívico Palmares pela consciência que tinha
de ser a criança negra também forte e salubre:

196
Com o Rinque Palmeiras. Chibata, São Paulo: junho de 1920, p. 3.
197
Progresso, São Paulo: 12.10. 1928, p. 1.

81
Mais Um Gesto Sympathico do Sr Presidente do Estado em Prol dos Negros
No último concurso de robustez realisado nesta capital, sob os auspícios das
auctoridades de Hygiene Infantil, foi defeso às crianças pretas, concorrerem aos
prêmios instituídos no alludido certamem.
Até a inscripção lhes foi negada!
É o cumulo
Evidentemente, isto constituio uma medida de arbítrio a que estavam alheias as
auctoridades competentes.
O "Centro Cívico Palmares", fazendo coro, aos gritos de revolta, que surgiram,
protestou contra a vexatória e inqualificável decisão dos organizadores do "Concurso
de Robustez Infantil", levando esse protesto até ao senhor presidente do Estado, que
respondeu em carta, cujo texto, já divulgamos.
O Dr. Júlio Prestes, coherente com o seu passado político liberal e conhecedor da
justiça atirada à face dos pretos de São Paulo, ordenou, immediatamente, as
providencias que obstarão a repetição dessa anomalia sem justificação plausível (...) 198.

Na década de 20 o corpo robusto, do adulto e da criança, ocupou um lugar de visibilidade


privilegiada na imprensa e na educação escolar. Assim, “O Concurso de Eugenia” despertou
curiosidade, sendo “recebido com grande sympathia, quer nos meios scientificos, quer nos meios
populares”. A “Directoria Geral do Serviço Sanitário”, organizadora do evento, entregou para a
Inspectoria da Educação Sanitária e Centros de Saúde a realização do “II Concurso de Eugenia”. Houve
um elevado número de inscrições. O Progresso e o Centro Cívico Palmares, após conseguirem a
aprovação da participação das crianças negras no concurso, junto ao Dr. Júlio Prestes, saíram em defesa
das idéias dos organizadores e realizadores dos concursos: “Com os concursos de Eugenia no dia em que
o nosso povo os compreenda em toda sua amplitude, consiguiremos o que foi e será sempre o primeiro
cuidado de todas as nações: possuir filhos fortes, para serem fortes amanhã199.
A puericultura conquistou espaço no Brasil a partir da última década do século XIX. Foi
traduzida pela medicina “como um conjunto de normas, com fundamentação cientifica, visando o
crescimento saudável da criança”, portanto, definida, como higiene individual e social da criança.
Quando os puericultores brasileiros passaram a ficar alertas aos problemas do país, como a alimentação,
o conhecimento da puericultura já estava em expansão em todo o mundo.
A constituição de raça forte percorreu os diversos concursos de robustez infantil nos anos 30,
questão que remetia para a eugenia da raça, prática, portanto, dos regimes autoritários. No governo de
Vargas, a Alemanha nazista foi referência quando se trabalhou a militarização do corpo, bem como os
demais regimes fascistas. A beleza física era traduzida pelo ser robusto e, ademais, fazia sucesso o
branco de olhos azuis.
198
Progresso, São Paulo: 24.02. 1929, pp. 2.
199
Progresso, São Paulo: 24.09. 1929, pp. 6.

82
A eugenia ganhou força no Brasil, com a fundação da Sociedade Eugênica de São Paulo em
1918. O primeiro congresso brasileiro de eugenia, em 1929, debateu assuntos referentes à maternidade e
a infância. Nestas iniciativas destacou-se a participação do médico eugenista Renato Kehl, apoiando a
intervenção do Estado na produção humana através de exames pré-nupciais obrigatórios e na
esterilização de quem fosse julgado degenerado ou criminoso. Até os anos 40, “os eugenistas defendiam
posturas médicas que apontara a necessidade de controle populacional, propondo esterilizações que
atingiam famílias pobres. Assim, seria garantida, através do processo seletivo, a sobrevivência dos mais
fortes” 200. Os projetos que postulavam esterilizações não deram certo no Brasil, mas foram aprovados
em outros países que adotavam os modelos eugênicos (Dinamarca, Suíça, Estados Unidos). Setenta mil
pessoas foram esterilizadas (estando nesse meio um grande número de negros) entre 1907 e o final da
Segunda Guerra Mundial.201
Não por acaso, os inscritos no concurso de robustez infantil de São Paulo deveriam ter entre 6
meses e 14 anos e estarem matriculados nos centros de assistência, onde havia a presença dos médicos.
Num dos concursos, a primeira classificada era freqüentadora do Parque Infantil da Lapa. A entrega de
prêmios era realizada no teatro Municipal, onde os pobres não tinham freqüência assídua, depois havia o
desfile das crianças vencedoras pela Avenida Paulista. A própria historiadora Brites, que nos auxiliou na
compreensão do contexto em que estava inserido o concurso de robustez infantil, afirmou que a mãe
negra não estava presente no momento de entrega do prêmio às crianças vencedoras. As mulheres que
desconheciam os princípios da Puericultura foram indicadas como “gente primitiva e desabituadas às
condições higiênicas”, “incapazes de falar do próprio corpo”. Apesar disso se verificou também, “de
acordo com os relatórios Anuais de Divisão e Recreio”, que os locais que pretendiam “assistir” e
disciplinar os corpos das crianças pobres, como os parques infantis, tinham dificuldades em oferecer um
ambiente habitável: uniforme, água, chuveiros, aparelhos sanitários, etc. E além do mais, nos postos de
saúde, faltavam médicos e o número de mortalidade infantil era difícil de ser controlado.
Então os pronunciadores da imprensa negra interpretaram a conquista da simples inscrição, das
suas crianças, no concurso de robustez infantil, como uma ação positiva. E se o concurso premiava
principalmente as crianças robustas, brancas e de olhos azuis, como é então que os pais das crianças
negras exibiriam seus filhos? Maquiariam também às suas crianças com o liquido “Milagre”, com o pó-
de-arroz, com a pasta “Bleach”? Passariam “Cabelisador” nas cabeças das crianças? Por outro ângulo, as
mães e os militantes negros, ao requerer a participação das crianças negras, estavam protestando contra o
200
BRITES, Olga. Imagens da Infância. São Paulo e Rio de Janeiro, 1930 a 1950. Tese de Doutoramento - PUC/SP, 1999, pp.
1-20, 43-141.
201
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças, Op. Cit., pp. 234.

83
padrão branco de beleza louvado no concurso? Não, estavam acatando os princípios norteadores do
concurso e tentando marcar presença da comunidade negra neste evento.
Os posicionamentos do Progresso e dO Clarim d’Alvorada frente ao “Concurso de Robustez
Infantil” divergiram. Entre os pronunciadores negros do concurso, Arlindo Veiga, foi um discordante,
demonstrando um repúdio ao questionamento da salubridade negra e desejando fazer os pais negros
voltarem suas energias para outros problemas vivenciados pela população negra, problemas mais
urgentes do que a “perfeita” exposição corporal criada e idealizada pelo Departamento Higienista:

Palavras aos paes negros


Raça forte que, graças a Deus, somos, a miséria da condição social e physica em que
vivemos nós negros brasileiros não pode ainda quebrar tanto a nossa integridade
physica. E, pois, a cruzada da educação do corpo é menos attraente ou, melhor, menos
urgente do que a do levantamento do nosso nível intellectual e moral 202.
A J. Veiga dos Santos

CAPÍTULO II – IDEALIZAÇOES DO CORPO NEGRO

Corpo
202
O Clarim d'Alvorada, São Paulo: 13.05. 1927, pp. 3.

84
“Pompas e pompas, pompas soberanas,
Majestade serena da escultura
A chama da suprema formosura,
A opulência das púrpuras romanas
As formas imortais, claras e ufanas,
Da graça grega, da beleza pura,
Resplendem na argélica brancura
Desse teu corpo de emoções profanas.
(...) E as águias da paixão, brancas, radiantes,
Voam, revoam, de asas palpitantes,
No esplendor do teu corpo arrebatadas!” (Cruz e Souza)203

Em variadas notas, os letrados negros relacionavam a beleza exterior da mulher aos sentimentos
internos, no sentido de alertar seus companheiros de etnia e sexo das armadilhas que poderiam
proporcionar-lhes as mulheres “mascaradas”. Ou seja, as mulheres vestidas de acordo com a moda da
época eram definidas negativamente como “belas sedutoras”. Nestes comentários, sobre as relações
afetivas entre homens e mulheres, predominavam expressões que tencionavam construir ora o modelo de
mulher cobiçada, ora o modelo de mulher amada e de família.
Segundo o escritor do texto denominado de "Ruínas", as mulheres muito vaidosas, arruinavam o
coração dos homens, considerados constantes vítimas nas relações íntimas. Entretanto, as incapazes de
amar tinham características e estilos similares: eram bonitinhas, de pequena altura, exalavam caprichos,
falavam um pseudovocabulário amoroso, tinham o hábito de falar dos homens ingênuos conquistados,
eram sagazes, vestiam os mesmos “toilletes” (“vestidos chics e de sedas”) e gostavam de sentir fortes
prazeres dos sentidos, da sexualidade. Esses "artifícios de sedução estavam emaranhados com a ganância
por trás das finas toilletes”. A meta desse tipo de mulher era conseguir, cada vez mais, artifícios
corporais para esconder seus defeitos dos almofadinhas, dos "sem juízo e sem instrução”, possuidores
dos requisitos para sofrer o golpe, que não era unicamente o da sedução, mas ainda o do interesse
material. Esse tipo de mulher levaria os almofadinhas para a “degradação física e moral”204.
Francisco Souza Reis, também caracterizou o tipo de mulher que poderia levar o homem à
“degradação física e moral”: era alta, usava "vestido de seda e gaze cor de rosa", cingia a testa com "uma
pequena diadema de flores artificiaes", tinha "uns pezinhos delicados de mestiça virgem, morena de
cabellos de azeviche e encaracollados" era "flexível esbelta, de um physico esculptural".
Por esta mulher, Reis foi seduzido. Ou melhor, deixou ser seduzido por uma mulher considerada
de caráter duvidoso que, além de tudo, se rendia aos caprichos dos homens de caráter dúbio. No mesmo
texto, “Páginas da minha vida”, a Maria, caracterizada como sedutora, sem virtuosismos, era aquela que

203
Poemas Escolhidos. São Paulo: Editora Cultrix, sem data, pp. 68.
204
O Clarim d'Alvorada, São Paulo: 03.06. 1928, pp. 2.

85
poderia ser a “mulher ideal, a mulher modelo, a mãe e optima esposa capaz de supportar os mais
horrendos dos suplícios no firme propósito de nunca profanar o thalamo fiel e sagrado de seu esposo”205.
Em busca de um corpo ideal, Tuca (o escritor) contestava a postura dos almofadinhas, dos
homens e das mulheres, entendedores da arte do trajar. Desconsiderava que as pessoas de costumes
urbanos tivessem condições de oferecer o amor romântico a seus companheiros. As mulheres da cidade
estavam mais interessadas em tirar proveito das relações amorosas e, os caipiras, embora satirizados
pelos indivíduos da cidade, em virtude da sua simplicidade na ornamentação corporal e no seu estilo
musical, tinham mais condições de transmitir o lirismo do amor romântico, o puro amor206.
Moyses Cintra pensava quase do mesmo modo que o escritor Tuca. Ao referir-se as mulheres
lavadeiras de roupas, Cintra fez exaltação às mulheres mestiças e jovens simples. Tinha orgulho de vê-
las vestidas humildemente: de pés descalços, “tranças cahidas as costas”, possuidoras de “um semblante
cor de jambo”. Enfim, tudo o que “a natureza agraciou a mulher formosa sem artifícios”. Essas mulheres
eram virtuosas por desconhecerem “as modas das cidades chics”. Aos sábados entregavam “os seus
trabalhos semanaes” e recebiam seus salários. Quando iam a uma festividade religiosa na vila,
acompanhavam os pais. Assim transcorriam suas vidas até que um dia encontrassem “um violeiro para
completar a sua felicidade”. Na Capital era diferente: as modas despertavam as piores atitudes em jovens
e velhos, desde as “más leituras” até outros “passatempos perigosos”, passatempos que concorriam para
“completar as innumeras illusões do mundo”. Por isso mesmo, o autor, admirava “as jovens simples e
humildes, lavadeiras moreninhas” e todas que possuíam os “dons da natureza sem phantazias”207.
Na opinião de R. Asobrac, o quadro das relações afetivas entrelaçadas aos objetos embelezadores
do corpo, na “época do progresso”, transferiu-se para o casamento, pois os jovens encontravam o ideal
material como um meio de estabilizar-se na vida. Entretanto, as mulheres tinham em mente o critério da
moda quando iam escolher seus parceiros, pois não queriam “saber de pieguices de Romeus fóra de
moda, nem de sua posição social ou moral”. Faziam “questão das calças largas, jaquetão curto, gravatas
listradas e das costelletas á Rodolpho Valentino, o extincto imperador da futilidade”.

Quanto aos rapazes, estes, eram menos exigentes, contentavam-se com o charleston e
com o dote, desde que este fosse uma somma regular. Elles por sua vez tinham razão
pois se a vida naquele tempo, custava os olhos da cara; a começar dos alugueres que
custava uma exorbitância, iam acabar nos gêneros de primeira necessidade (...). A vida
estava difficil (...). Mas era forçoso casar-se. (...) Pior para elle, casava ou pagava
imposto.O conselho de ministros da bella Itália, rejovenecida pela forte tempera de
Benito Mussolini, aprovou o projeto de lei que estabeleceu o imposto sobre os

205
O Clarim d’Alvorada, São Paulo: 6.04. 1924, pp. 2.
206
Amor e Jazz. O Clarim d’Alvorada, São Paulo; 24.01.1926. pp. 4.
207
As lavadeiras. O Clarim d’Alvorada, São Paulo: 27 de dezembro de 1925, pp. 3.
86
solteirões; diziam que a dita lei, deveria ser creada aqui no Brasil. Mas a nova
tributação, não attingiu as mulheres, o que não parecia justo. As noticias telegraphicas
diziam: que o bello sexo ficou isento de tal imposto, por ter o conselho reconhecido que
as mulheres não se casavam porque não encontravam quem as queriam". Poder-se-ia
admitir semelhante hypothese?208
O casamento

Embora esses homens recriminassem constantemente o exagero da ornamentação das mulheres


de costume urbano, localizamos também um trecho em que reclamavam que a mulher negra perdera o
primeiro posto de beleza exatamente por não usar trajes da moda:

Cetro da Creoula
E as nossas creoulas, esses tipos que não rendem juros, raros de uma beleza sem par,
não tem o seu valor para se fazer um concurso, para comprovar os seus dons de beleza,
a graça incomparável do seu sorriso, a que tem nos olhos toda meiguice e nos lábios a
candura imprescindível de um beijo doce quente e sincero de uma mulher que sabe
amar e ser amada.
(...) Já se tem escrito tanto sobre o valor das morenas, dos seus enlevos, dos seus
amores; do encanto das loiras, e da graça das mulatas! (...) da efígie sempre lembrada
da mãe preta e na atualidade, esses tipos novos que surgem filhas diletas de uma raça
forte, que se ramificara em todos os pontos da grande terra brasileira, ainda continua a
ser ouvidadas nos tempos de hoje. Como são conformadas as nossas irmãs creoulas.
Elas assistem todas essas transformações próprias da evolução do povo brasileiro, com
a indiferença própria das suas manias com o sorriso de uma reflexão toda adquirida de
um coração magnânimo. A creoula é no momento que passa, destinada a ser a mais
conformada sentimentalista209.

Segundo o escritor frentenegrino, anterior, a negra perdeu terreno para as mulheres louras e
mestiças devido ao forte sentimentalismo expresso em seu corpo: “meiguice nos olhos, candura nos
lábios, beijo doce e quente e saber amar”. O que faltava nela para arrebatar as concorrentes, nas relações
com os homens e nos concursos de beleza, mesmo considerando a fortaleza de seu corpo, era
acompanhar o progresso da apresentação corporal e o traquejo da sedução (“conquista, encanto”). Essa
reflexão foi apresentada numa nota de carnaval. “A loirinha” que se fazia presente em todos os recantos

208

O Clarim d’Alvorada, São Paulo: 20.02.1927, pp. 3.


209
A Voz da Raça, São Paulo: 17.03. 1934, pp. 3.

87
perdeu a sua graça, e o prestígio da mestiça, aquele que nos acompanhava há muito tempo continuava
com seu mandato. Como se as “louras de olhos de cristal”, em breve, fossem esquecidas. Cogitava-se,
contudo, fazer uma festança, no sábado de aleluia, para coroar-se a paulistana mais linda, estando entre
as fortes candidatas, ainda, a loura e a mestiça.
Na imprensa, os homens desprestigiaram os corpos femininos e todo o papel social desenvolvido
pelas mulheres na sociedade, pois até quando exaltaram a sensualidade da mulher negra e mestiça
reconheceram que essas poderiam fazer parte do grupo das belas sedutoras, as incapazes de manter
relações sólidas com os homens, as promíscuas, valorizadoras dos suplementos embelezadores da moda
e do dinheiro, que levariam o homem para a “degradação moral e física”. Enfim, mulheres que
contrastavam com as possuidoras de virtuosismos, as mulheres simples, fiéis, modelos de esposa. É certo
ainda que as possuidoras de virtuosismos degradavam as imagens de certos grupos masculinos, pois
apesar de amarem e saberem ser amadas, estavam completamente fora do progresso indumentário
feminino.
Podemos considerar que uma mulher que conhecia o progresso da ornamentação teria a
possibilidade de carregar as características positivas atribuídas à virtuosa, bem como a mulher
simplesmente ornamentada poderia carregar os elementos negativos da bela sedutora. Não obstante, o
que temos são construções das imagens idealizadas das mulheres na imprensa.
Preferir a mulher loura para uma sólida relação era reconhecer que esta possuía virtudes. Mas
será que esse virtuosismo não vinha acompanhado dos elementos negativos da bela sedutora? Em
segundo lugar, a preferência destinava-se às mestiças, pois acreditava-se que seu tipo de beleza,
aproximava-se do tipo da mulher branca, com o “acréscimo da pontinha de fogo, da lasciva atraente” que
lhe dava o sangue negro210. Maria Isaura Pereira de Queiroz afirma que, no Brasil, a “mulata tem sido
estética e sexualmente valorizada”, podendo-se dizer que em geral “encarna o eterno feminino” 211.
Reiterando as informações da antropóloga, tem de se lembrar que a "exaltação das mulatas nos
temas populares alcança o humorismo que se avizinha estreitamente do deboche"212. Na verdade, como
diria Teófilo de Queiroz, o mestiço é um “elemento dialético”, constituído de um processo irreversível da
miscigenação. A presença da mulata, pelo seus dotes físicos, é tolerável como um mal necessário. Assim,
ela é tratada literalmente como a “própria síntese do elemento social contraditório e perturbador”. Como
tipo literário, é direta e intensamente associada às suas características étnicas e aos estereótipos
corporais. Nas descrições das mulatas assinalam: “o colorido de sua pele, distribuído por vários tons, o

210
BASTIDE, Roger & FERNANDES, Florestan. Brancos e negros em São Paulo. Op. Cit., pp. 181
211
QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. Revista Ciência e Cultura, Op. Cit., pp. 655.
212
BORGES PEREIRA, João Baptista. Cor, profissão e mobilidade. Op. Cit., pp. 182.
88
bem torneado de braços e pernas, mãos e pés pequenos, a cintura fina, o busto insinuante e bem
moldado, a boca sensual, de dentes sadios, os bastos cabelos negros, os olhos grandes e belos e quase
sempre negros”. Esse tipo literário é dotado de recursos estéticos apesar de perder para a negra, “ainda
presa a uma distinção do trabalho”. Tais atribuições corporais também lhe fazem perder para a branca,
que é “preservada pela moral e pelas leis” e reconhecida como a mais dotada para “funções nobres”: de
esposa e de mãe de família213.
Baseando-se nos dotes estéticos e virtuosismos femininos o autor analisou as mestiças descritas
por Gregório de Matos (Boca do Inferno), Manuel Antonio de Almeida (Memória de um Sargento de
Milícias – Vidinha), João Felício dos Santos (João Abade – Maria Olho de Prata), Guimarães Rosa (A
Estória de Lélio e Lina – Jini), Bernardo Guimarães (A escrava Isaura), Aluízio Azevedo (O cortiço –
Rita baiana) e Jorge Amado (Gabriela). Nas descrições de Aluízio Azevedo Rita baiana é a “mulata
bonita, dança com sensualidade, como meneios cheios de graça irresistível, simples, primitiva, feita toda
de pecado, toda de paraíso, com muito de serpente e muito de mulher”. A Gabriela, “heroína de Jorge
Amado”, possui o cheiro do cravo e a cor da canela. Ambos, poderosos “apelos a exotismos apetitosos,
que aguçam a gula e apelam a origens do tipo étnico a que pertence Gabriela”. O cravo e a canela
lembram “especiarias que se associam facilmente a idéias de sensualidade e poderio”. A condição desse
tipo de “mulata” estimula os “brancos conquistadores, ávidos de satisfação para seus sentidos, no exótico
de outras terras, de outros aromas, de outras mulheres”214.
No Progresso, a beleza da mulher negra e mestiça, brasileira e norte-americana, diz mais respeito
à sensualidade, como se ao embranquecer elas perdessem a cor, o principal quesito de sedução, e ao
amorenar-se a mulher branca adquirisse o toque da sedução. Perder um traço africano de tradição aqui
está relacionado à sensualidade, tanto que as naturalmente de “cor escura” estiveram em vantagem
quando comparadas com as que conquistaram o bronzeamento pela técnica solar. Embora os homens da
imprensa negra preferissem as mulheres brancas para o casamento215, não as consideravam sedutoras:

A cor morena é cor de ouro


A cor morena, bem escura está em moda. Quem por exemplo, tomar os jornaes norte-
americanos, que anunciavam viagens para Havana, leva este appelo: "Por que vos
deixaes esbranquiçar aqui durante o inverno, quando podereis ir amorenar-nos em
Havana, a cidade mais chic do mundo?".
213
QUEIROZ JUNIOR, Teófilo de. O preconceito de cor e a mulata na literatura brasileira. Op. Cit., pp. 30-118.
214
QUEIROZ JUNIOR, Teófilo de. O preconceito de cor e a mulata na literatura brasileira. Op. Cit., pp. 30-118.
215
Darcy Ribeiro diria que quando um negro casa com uma branca ele fica mais branco, mas o filho da branca vai ficando
cada vez mais negro, “então, fica tudo em casa, essa branquifação na verdade é uma mulatização”. O assimilacionismo fez
com que o negro brasileiro se tornasse menos agressivo do que deveria ser, menos que o norte americano. E, “o mulato tem a
qualidade do ser duplo, do homem que é dois: ele é a África, ele é a América e ele é ninguém até encontrar uma identidade”.
RIBEIRO, Darcy. “Sobre a mestiçagem no Brasil”. IN: Raça e Diversidade. São Paulo: EDUSP, 1996, pp. 199-211.
89
O verbo usado não é mesmo amorenar: é curtir. E isso se dá como uma sedução!
As mulatinhas dos Estados Unidos como do Brasil estão vingadas - elas que teem a
pelle curtida naturalmente216.

Citando um trecho do texto de Silvio Romero, publicado na Revista do Brasil (novembro de


1916), A Voz da Raça também fez apologia a beleza da mulher mestiça. Porém novamente foi flagrante o
fator ambigüidade: entre enaltecer a beleza da mulher negra e a beleza da mulher mestiça. Ao
caracterizar a mulher cortejou “suas gotas de sangue africano”:

O cruzamento influenciou as relações do senhor e do escravo, trouxe mais doçura aos


costumes e produziu o mestiço, que constituía a massa da população. E UM CERTO
GRAU A BELEZA DA NOSSA RAÇA (sic). Ainda hoje, os mais lindos tipos de nossas
mulheres são essas moças ágeis, fortes, sadias, vividas, de tez de um doce amorenado,
de olhos negros, cabelos bastos e pretos, sadias jovens, de cujas veias circulam por
certo já diluídas, muitas gotas do sangue africano217.
Os negros e algumas afirmações dos brancos

A figura masculina também foi associada às marcas do estereótipo negro. O mito da


superpotência sexual do negro218 ao mesmo tempo em que, lhe rendia status físico, colaborava para a sua
desvalorização humana. Raramente uma família branca permitia a entrada de um negro em seu núcleo.
Por causa do mito da superpotência, Bastide discorreu que houve no cotidiano masculino, a “batalha
sexual das cores”. Um negro ou mestiço bonitão e falante tinha todas as aventuras sexuais com as negras.

216
Progresso, São Paulo: 13. 01. 1929, pp. 3.
217
A Voz da Raça, São Paulo: 11 de agosto de 1934, p. 1. Nos anos 30 o mestiço transformou-se em ícone nacional, em um
símbolo da nossa identidade. “Identidade cruzada no sangue e sincrética na cultura”, isto é no samba, na capoeira, no
candomblé e no futebol. Valorização que se concretizou no plano verbal e não no cotidiano: as populações mestiças
continuaram discriminadas. A convivência harmoniosa entre a população brasileira foi aos poucos sendo gestada “como um
verdadeiro mito de Estado”. A partir dos anos 30 a idéia da democracia racial foi difundida e esteve presente na obra de
Gilberto Freyre. Antes da década de 30 a miscigenação significava no máximo uma aposta no branqueamento
218
Sobre o mito da sexualidade desenfreada dos negros importa recorrermos ao pensamento de Frantz Fanon, que em 1952
escreveu que as intenções atribuídas ao negro são muitas vezes “desejos recalcados” dos brancos, são desejos que não têm a
aprovação da moral reinante. As fantasias sexuais dos brancos sombolizam “a nostalgia de uma época em que todo tipo de
liberdades sexuais seria permitido”. Orgias sexuais, incestos, etc, são “projetados nos negros”. O negro “simboliza o mal, a
sujidade, isto é as profundezas do inconsciente do branco”. O comportamento do “negrófobo” está estreitamente ligado “a
conflitos que ele não resolveu”. No entanto, todos sabem que a superioridade sexual do negro não é real. Nesta situação o
negro reage sob “auto-acusação”. No processo de “auto-acusação” o negro recorre a identificação com o branco. A busca do
branqueamento se concretiza. O negro assume a cultura branca. Aquele que é “amaldiçoado, negado” passa a ser “embelezado
por máscaras brancas”. Em algumas capitais neocoloniais da África, um dos produtos mais vendidos na farmácia, passou a ser
o que tinha “a faculdade de tornar a pele mais branca”; Fanon costumava direcionar seu pensamento sobre “o drama do
racismo” para os povos colonizados, sobretudo, para os colonizados pela França (Martinica e Argélia). Cf. FANON, Frantz.
Pele negra, máscaras brancas. “Notas sobre o pensamento de Frantz Fanon” – Grupo de estudos sobre o pensamento político
africano do CEAA. In: Revista de Estudos Afro Asiáticos, n.º 5, 1981, pp. 5-39.
90
Uns tornavam-se sedutores profissionais, “colecionavam virgindades”, o que tirava maior número era
taxado de macho219.
Menos pela presença do estereótipo do corpo masculino negro e mais pela tentativa em viver
com independência sexual, algumas das comunidades femininas negras desdenhavam a postura
irresponsável do homem. As senhoras ouvidas por Teresinha Bernardo, moradoras das regiões de
Pinheiros, Penha, Barra Funda, Freguesia do Ó, Brás, Ipiranga, Bom Retiro -Campos Elíseos, Casa
Verde, Penha, nas primeiras décadas do século XX, narraram as diversas formas que utilizavam para não
ter filhos “indesejados”, fato que a pesquisadora interpretou como “a negação da própria cor, isto é,
produto da interiorização de valores dominantes, ditados pelos brancos. Era o fenômeno de
branqueamento que se refletia na recusa à maternidade, na relação afetiva com o homem negro. Em
última instância, a autocondenação à extinção, não só como indivíduo, mas como elo na cadeia de
gerações, tendo muito a ver com a própria etnia”220.
Complacente com a realidade das interlocutoras, a estudiosa justificou esta maneira delas se
portarem, pela vivência na liberdade sexual, maneira pela qual separavam a sexualidade da procriação e
possuíam métodos contraceptivos. Benedita tomou um remédio chamado garrafada, feito por uma
“feiticeira” moradora da Freguesia do Ó. E Dona Cacilda, tomava um certo cuidado, mas se caso
engravidasse, fazia aborto, como as brancas, fazia aborto com a parteira. A família matrifocal, no dizer
de Bernardo, teve sua raiz na África e marca profunda no regime escravocrata brasileiro, por isso
relacionou os métodos abortivos à força dos costumes, dos costumes sobrepostos aos valores da
sociedade inclusiva.
Na Barra Funda, lugar predominantemente de negro, a presença feminina também foi marcante
nas habitações coletivas. “Abrigaram diversas tias africanas com seus clãs, que praticavam o jongo,
macumba e samba de roda como extensão da própria vida familiar”. Uma das tias africanas mais
populares na Barrra Funda foi a Tia Olimpia, “uma negra bonita, com porte de nobreza que organizava
festas num terreiro situado na rua Anhanguera na Barra Funda. Tia Olimpia e as demais tias africanas,
asseguradoras dos traços culturais e simbólicos no interior dos porões, cortiços e terreiros, trajavam-se
como verdadeiras rainhas africanas”221. Embora não tenhamos em discussão a forma como encaravam a
chegada de um filho negro, observamos que nesse universo as mulheres cultuavam a indumentária de
origem africana.

219
BASTIDE, Roger & FERNANDES, Florestan. Brancos e negros em São Paulo. Op. Cit., pp. 183.
220
BERNARDO, Teresinha. Memória em Branco e Negro, Olhares sobre São Paulo. Op. Cit., pp. 47-117.

221
SILVA, José Carlos Gomes da. Os sub urbanos e a outra face da cidade. Negros em São Paulo (1900-1930): cotidiano,
lazer e cidadania. Op. Cit., pp. 59.
91
O pesquisador Nina Rodrigues diria que as mulheres adotaram e conservaram vestuários de
origem africana. “As operárias pretas” usavam “saias de cores vivas, de larga roda. O tronco coberto da
camisa” era “envolvido no pano da Costa, espécie de comprido chale quadrangular, de grosso tecido de
algodão, importado da África”. Na cabeça traziam “o torso, triangulo de pano”. Este vestuário, sobretudo
usado pelas negras da Bahia, valheu-lhes no resto do país o qualitativo de baiana. O uso do torso
obrigava as mulheres que não tinham os “cabelos carapinhos a trazê-los cortados cerce, eliminando
assim os penteados. Nos Estados do Norte, porém, as negras que” tinham “cabelos mais longos traziam
penteados complicados”. O preparo da cabeleireira se convertia num trabalho artístico de execução bem
demorado. As “negras ricas da Bahia” carregavam “o vestuário a baiana de ricos adornos. Vistosos
braceletes de ouro” cobriam “os braços até o meio, ou quase todo; volumoso molho de variados
berloques, com a imprescindível figa”. A saia era “de seda fina, a camisa de alvo linho, completando o
vestuário, especiais sandálias, que mal” comportavam “a metade dos pés”222.
Outro pesquisador fez uma descrição bem análoga a de Rodrigues sobre a indumentária negra
brasileira que tem origem africana. Segundo Freyre, as vendedoras de guloseimas também usavam peças
de roupa e objetos maometanos. “Na Bahia, no Rio, no Recife, em Minas, o traje africano de influência
maometana permaneceu longo tempo entre as pretas doceiras, e entre as vendedoras de aluá”. Algumas
delas eram amantes de “negociantes portugueses e por eles vestidas de seda e cetim” e usavam “jóias e
cordões de ouro. Figas da Guiné contra o mau-olhado. Fieiras de miçangas. Colares de búzio.”. Na
década de 30 quando o autor escreveu o seu livro ainda se encontravam pelas ruas da Bahia “negras de
doce com os seus compridos xales de pano-da-Costa”. Vestidas de muitas saias: por baixo o linho alvo,
por cima a saia nobre, adamascada, de cores vivas. “Rodilha em turbante muçulmano. Chinelinha na
ponta do pé. Eram, em geral, “pretalhonas de elevada estatura”, as negras comumente chamadas de
baianas223.
As mulheres interpretadas por Santos tinham um modo de vida bem próximo das interlocutoras
de Bernardo. Analisando a vivência das mulheres do Bexiga a autora reconstruiu o mundo das mulheres
negras através da história oral, resgatando a visibilidade delas “nos cantos escondidos da casa”, nos
tanques, nas cozinhas, nas lavanderias, nas máquinas de costura. Outro importante fator para a temática
desta pesquisa é que nos informa da dificuldade das moradoras do Bexiga em comprar roupas novas;
assim eram obrigadas a fazer prestações com o turco vendedor de roupas, tanto novas quanto velhas. Os

222
RODRIGUES, Nina. Os africanos no Brasil, Op. Cit., pp. 119
223
FREYRE, Gilberto de Mello. Casa-grande & senzala, Op. Cit., pp. 316.
92
padrinhos também eram responsáveis pelo adornamento de alguns corpos, pois além de cuidar das festas
de aniversário e batizado dos afilhados, faziam a manutenção das roupas224.
Bem próxima dos anseios dos artistas negros, podemos enquadrar uma parte das mulheres negras,
que desejava dar demonstrações públicas do seu status, paralelamente pretendia esbanjar do bem estar
material e adequar-se aos padrões culturais paulistanos. Quem resistia ao modo de vida paulistano era
logo recriminada. Segundo Deborah Santos as mulheres desassociadas eram desvalorizadas por falar
alto, dançar samba, a umbigada, a gafieira, freqüentar festas sozinhas em ambiente não familiar, brigar
em público, andar com maus elementos, serem analfabetas, freqüentar macumba e finalmente “vestir-se
sem decoro”. O vestir-se sem decoro desenha-se como uma maneira das associadas negras se dirigirem
às outras que não se revestiam da mais fina película. E a referência à imoralidade vem ratificar as visões
dos que incompreendiam poder as pessoas morar em cortiços distantes da promiscuidade225.
Sobre as relações sexuais dos negros interessa trazer as reflexões de Fernandes. Em sua visão “a
idéia do homem ou da mulher bestial não se” aplicava “ao seu comércio erótico”, como queria a tradição
cultural. Discordando da tradição cultural o autor fomentou: “só errou ao atribuir tal propensão à suposta
natureza humana do negro e do mulato”, querendo dizer que, os negros agiam de forma desenfreada em
relação ao sexo “não porque fossem mais quentes”, mas principalmente, “porque o sexo se erigiu na
única área livre de exercício das aptidões humanas e numa esfera lúdica da cultura”. Detalhando mais
essa sua generalização em relação à coletividade negra: “o que importa é o fato elementar de que o negro
foi despojado e excluído de tudo – menos do seu corpo e das potencialidades”, elementos que o
incoporava à condição humana. Tudo acabou girando em torno do sexo e da arte erótica, porque foi
nesse terreno que o negro e o mulato viram abertos diante de si todos os caminhos que os conduziam ao
prazer e à perdição, mas também os levavam a redenção e ao amor. Relacionou a vivência sexual dos
negros escravizados à das tribos africanas:

tal coisa não sucedia nas tradições tribais perdidas – nelas, a vitalidade, a alegria e a
pureza do prazer sexual exprimiam-se segundo certas regras, que incluíam o respeito
por si e pelo parceiro da atividade erótica. Foi a escravidão que suprimiu essas
barreiras e tôda delicadeza ingênua mais refinada que coroa a ligação do homem e da
mulher segundo os modelos tipicamente africanos. Impedindo as escolhas dos parceiros
e até dos momentos para os encontros amorosos 226.

SANTOS, Deborah Silva. Memória e oralidade: mulheres negras no Bexiga - 1930/40/50. São Paulo, Dissertação de
224

Mestrado em História, PUC/SP, 1993.


225
Idem Ibid, p. 30.

226
FERNANDES, Florestan. A integração do negro à sociedade de classes, Op. Cit., pp. 131-135
93
Nesta relação entre o comportamento sexual das tribos africanas com o comportamento da época
escravocrata o autor concordou com Gilberto Freyre, que comentou: “passa por defeito da raça africana,
o erotismo, a luxúria, a depravação sexual. Mas o que se tem apurado, entre os povos da África, como
entre os primitivos em geral, é a maior moderação do apetite sexual que entre os europeus”. O negro
africano “para excitar-se necessita de estimulos picantes. Danças afrodisíacas. Culto fálico, orgias.
Enquanto que no civilizado o apetite sexual de ordinário se excita sem grandes provocações”227
A população negra foi desalojada do Centro Velho de São Paulo quando começaram os trabalhos
de melhoramento da Capital, as grandes operações de renovação urbana que se iniciaram durante a
administração de Antonio Prado (1889-1911). As ruas foram alargadas, os mercados demolidos e
transferidos, construíram praças e boulevardes. Esboçaram o desenho de um centro burguês de ruas
largas e fachadas uniformemente neoclássicas, que seria exclusivo das classes dirigentes: seu espaço de
trabalho, diversões, comemorações cívicas e religiosas. Durante o governo de Raymundo Duprat (1910-
1914) as reformas foram, em sua maioria, realizadas. Para a construção da Praça da Sé e a remodelação
do Largo Municipal, os cortiços, hotéis e pensões das imediações foram demolidos. Está ligado a esse
processo de limpeza do centro a expansão e consolidação do Bexiga como território negro em São Paulo.
Nas palavras de Raquel Rolnik a imagem da marginalidade foi também “identificada como
própria da habitação coletiva: a intensidade de uma vida em grupo não familiar e a densidade dos
contatos do dia-a-dia contrastavam com a organização da casa burguesa (familiar, isolada, inteiramente
dividida em cômodos com funções e habitantes segregados)”. A marginalidade era “associada a um
conjunto de gestos, um jeito do corpo”. Se, para parcela da comunidade negra paulistana, a linguagem do
corpo era elemento de ligação e sustentação do código coletivo, para a classe dominante branca cristã a
freqüência com que os negros dançavam a umbigada, se requebravam e se abraçavam publicamente,
desafiava os padrões morais. No aspecto religioso, a presença dos terreiros e das práticas religiosas
africanas completavam o estigma: a “crendice, a religião primitiva”, afrontava a religião oficial 228. Os
negros menos pobres tentavam incorporar-se aos modos de vida urbano.
De acordo com esta autora,
o cortiço jamais foi reconhecido sequer com questão urbana. Durante curtíssimo
período, as autoridades médicas usaram como estratégia de combate às epidemias na
cidade a desinfecção dos cortiços, o que poderia implicar inclusive sua demolição. Já
na segunda metade do século, o cortiço desapareceu por completo do campo da
intervenção urbanística, embora nos últimos cem anos não tenha parado de se
reproduzir, reinventar, relocalizar. Dos casarões recém abandonados no Velho Centro
subdivididos por sublocadores, os cortiços foram ocupando os casões dos Campos
227
FREYRE, Gilberto de Mello. Casa-grande & senzala, Op. Cit., pp. 316
228
ROLNIK, Raquel. “Territórios Negros nas cidades brasileiras (etnicidade e cidade em São Paulo e no Rio de Janeiro)”. IN:
Estudos Afro-Asiaticos, n. 17, 1989, pp. 33-34.
94
Elíseos, da Liberdade, do Cambuci, do Brás. E as sucessivas periferias o
reproduziram229.

Analisando a obra de Alain Corbin “Saberes e Odores” a pesquisadora informa que segundo
Corbin a partir do século XIX, “cada vez mais a preocupação com os odores fétidos da terra, da água
estagnada, do lixo cedeu terreno para os odores da miséria, para o fedor do pobre e da habitação infecta.
Deslizamento da vigilância olfativa da natureza para o social, do exterior para o interior, que induz uma
estratégia disciplinar na qual desinfecção e submissão são assimiladas simbolicamente: o sonho de tornar
o pobre inodoro sugere a possibilidade de construir trabalhador comportado e produtivo.”
Traçando os territórios negros cidade de São Paulo, Rolnik informou que na década de 20, na
Barra Funda, Bexiga, Liberdade, além de certos pontos da Sé, não só moravam negros importantes,
como existiam escolas de samba, terreiros, times de futebol e salões de baile. Na década de 30 a autora
observou um movimento geral de periferização das classes populares; o antigo padrão do cômodo de
aluguel superdenso e da cidade limitada ao percurso do bonde foi gradativamente cedendo lugar a
chamada expansão periférica, caracterizada pela abertura de loteamento e pela autoconstrução em bairros
distantes da área equipada da cidade. Para parcela da comunidade negra “a desmarginalização colocava-
se claramente em termos territoriais – era preciso sair dos cômodos e dos porões para organizar um novo
território negro, familiar”. Esse foi um dos lemas da Frente Negra Brasileira. Uma das ações concretas
dos membros da Frente Negra Brasileira foi comprar terrenos em loteamentos recém-abertos nas
periferias da cidade e fundar núcleos formados por casas próprias. São exemplos dessa nova forma de
territorialização a região da Casa Verde, Vila Formosa, Parque Peruche, Cruz das Almas e Bosque da
Saúde. “Bairros inicialmente sem qualquer infra-estrutura e distantes do Centro começaram a edificar
casas próprias em lotes comprados”.230
O conforto requerido constantemente, sobretudo pelos militantes dA Voz da Raça, era, no
mínimo, fruto de uma idealização. Além de Rolnik, o pesquisador Bruno exasperou diante da infra-
estrutura da Capital nos aspectos transporte coletivo, energia elétrica e água. Em suas anotações
encontramos que depois de 1920 o número de bondes foi reduzido “em conseqüência da crise de energia
elétrica determinada pelo desenvolvimento excepcional da indústria paulistana”. Os primeiros ônibus
urbano surgiram, então, em 1924, considerados pelo autor, pequenos, feios, sem nenhum conforto,
comportando em média de dez a doze passageiros. Circulavam pela cidade “trinta ou quarenta deles,
229
ROLNIK, Raquel. A cidade e a lei – Legislação política urbana e territórios na cidade de São Paulo . São Paulo: FAPESP,
Estúdio Nobel, 1997, pp. 4-185.
230

ROLNIK, Raquel. “Territórios Negros nas cidades brasileiras (etnicidade e cidade em São Paulo e no Rio de Janeiro)”, Op.
Cit., pp. 35-39.
95
montados em geral sobre châssis de caminhões Ford”. Quanto ao abastecimento da água repetiam-se em
torno de 1920 as graves crises, sobretudo na época da estiagem. Decidiu-se pela construção da adutora
de Rio Claro e resolveu-se apelar para as águas da represa Guarapiranga, em Santo Amaro, cuja adução
amenizou a situação. A crise no abastecimento retornou em 1937, quando foi feita a adução de
emergência do ribeirão Vargem Grande, que cruzava “a adutora de Rio Claro, começando então a vinda
da água desde Poço Preto até São Paulo”231.
O desemprego estava enraizado nas crises vividas pela população de São Paulo, o que fazia com
que os negros criassem suas estratégias de sobrevivência, especialmente as mulheres negras. Os
escritores frentenegrinos vão criticar algumas dessas estratégias. Os suplementos embelezadores
recebidos pelos negros, no entendimento dos frentenegrinos, criavam circunstâncias vexatórias e
situações delicadas, principalmente quando entravam no nível da troca de favores. Neste sentido, Pérola
de Castro, um escritor do jornal A Voz da Raça, em “Palavras de Rioclarense”, apelou para que o negro
paulista deixasse de dar importância aos interesses dos políticos brancos porque eles só sabiam
“valorizar o negro, quando este era seu capanga, o seu cabo eleitoral. E assim a troco de sapatos e roupas
velhas que nada” representavam, foi “com grande pesar que” viram “certos negróides e mulatóides
deixarem se levar a troco de quinquilharias”232. Já Horácio da Cunha reclamou das mulheres negras do
Bexiga, e de outras localidades, que aceitavam objetos em virtude da necessidade de trabalho: “Do
meu caminho tenho ouvido muitas das nossas irmãs negras e mulatas dizer: - Negro!... Só para
compadre; sabem meus irmãos por quê elas falam assim? É porque elas não tiveram quem lhes dessem
um conselho, instrução e educação; somente lhes deram uma roupa para se apresentar na sociedade a
troco de serviço233.
As troca de favores criavam situações mais complicadas. Conta esse fato a depoente de
Bernado, enfocando o acionamento da polícia pelas patroas, na ocasião que davam por falta de qualquer
objeto de adornamento corporal. Assim, exemplarmente, relatou D. Inês das suas lembranças do footing
da Rua Direita e da Rua São Bento:
Na rua, se disputavam trajes. Havia separações pela roupa. As mulheres mais pobres, as
mais ricas. Pela roupa, eu percebia tudo. Às vezes, quando dava pegava escondido a
roupa da patroa. E aí eu ia muito chique e muito nervosa, porque dava cadeia. Mas teve
época que até de chapéu eu fui. E os sapatos? Já viu preta de sapatos fechados? Às vezes
eram nossos, às vezes eram emprestados, às vezes quando dava também o sapato eu
tirava do guarda roupa da patroa. Mas como doíam os pés! Roupa apertada vá-la, mas o

231
BRUNO, Ernani Silva. História e tradições da cidade de São Paulo, Op. Cit., pp. 1351-1356.
232
A Voz da Raça, São Paulo: 5.08. 1933, pp. 4.
233
----------: 19. 08. 1933, pp. 4.
96
sapato é a perdição! (...) não era bom não, com o pé doendo como a gente ia olhar para
os moços?234.

O homem negro, igualmente vaidoso, se lembrou dos passeios dos fins de semana, do lazer e do
crescente achincalhamento em torno da sua figura. Segundo Durvalino, que só trabalhava e nunca tinha
sossego e dinheiro para se divertir, disse que o único lugar existente para passear era o footing, local que
freqüentava aos sábados e domingos, vestido nas suas melhores roupas. “Os homens de terno branco, de
linho legítimo e de palheta”. Estratégia usada por boa parte dos homens negros e de raro significado para
os jornalistas do Estado de São Paulo e do Correio Paulistano, que registravam a passagem desses
negros como momento de enfeiamento da cidade235.
Em março de 1937, A Voz da Raça teceu uma crítica às zombarias em torno dos passeios dos
negros pelo centro da cidade, justificando que o intuito não era proclamar passeios integrantes dessa
mesma sociedade, mas reivindicar o “direito natural” de quem durante a semana se entregava aos árduos
trabalhos, “cooperando firmemente” para o desenvolvimento da paulicéia. Ademais, um

direito natural que assiste a todos os humanos, as paradas de elegância, os “footings”,


as pessoas são complementos dos atos dos civilizados. Paris, sempre ele, apresenta os
Campos Elyseos, o magnífico logradouro onde as beldades femininas e masculinas vão
exibir não menos magníficas creações dos grandes “magasins” e passear a eterna
vaidade humana. Nos Estados Unidos, Inglaterra, Itália, etc, os costumes são os
mesmos de, em lugares apropriados, reunirem-se as elites, num desfilar gostoso de bom
gosto e de bom tom. Nas cidadezinhas do interior, em nossa terra, é notável (...). Ao cair
das noites serenas, aos domingos, as moreninhas vão exibir os vestidinhos adquiridos
no Salim, ante os sorrisos beaticos. Também aí as gordas matronas, as comadres, tiram
cismacentas lembrando a passada maioridade, ante suspiros, lamentos e confidências.
Na capital paulista, na esplendida terra da garoa também se critica o belo hábito. A rua
Direita ao centro, principalmente aos sábados é uma colméia imensa de mestiços e
negros, louros e azuis, homens e mulheres, crianças e bebes, casados, solteiros, civis,
policiaes e militares, boêmios, (?), governados, artistas, operarias, etc, na confusão das
vezes, que vão fazer os “footings”. E assim há vários pontos da cidade que em dias
determinados, recebem a mocidade garridamente de mil cores alegres. 236
Deplorável, Rajovia. - A rua Direita, sua freqüência e remédios.

Francisco Lucrécio registrou que a F.N.B chegou a realizar “passeatas, protestos e combates” nas
ruas de São Paulo, “contra a campanha feita pelos lojistas”, os quais tentavam “proibir a circulação de
elementos negros na rua Direita” 237. A rua Direita era um importante centro comercial e a “mais chique

234
BERNARDO, Teresinha. Memória em Branco e Negro, Olhares sobre São Paulo. Op. Cit. pp. 47.
235
BERNARDO, Teresinha. Memória em Branco e Negro, Olhares sobre São Paulo. Op. Cit. pp. 117.

236
A Voz da Raça, pp. 1.
237
LUCRÉCIO, Francisco. “Memória histórica, A Frente Negra Brasileira”. Op. Cit., pp. 335.
97
da cidade no dizer do cronista Alcântara Machado. Com o passar dos anos perdeu sua posição para a
Barão de Itapetininga”238.
O footing também foi comentado por Rajovia e creditada aos “homens de cor”: “um dos dados
deploráveis que vem caracterizando os homens de cor da atual geração é, sem dúvida, o malfadado
passeio da rua Direita. Isso é facilmente verificável e doloridamente incontestável”. Suas reclamações
estiveram centradas no aspecto “corrompimento social” e “degradação moral”. Acreditava, pois, que não
havia motivos que atenuassem aquela demonstração de “degradação moral”, insistindo na culpabilidade
dos sujeitos, não apenas negros, ali presentes. Era necessário que todos da sociedade conhecessem as
regras de comportamento social para que assim o progresso pudesse vigorar:

A rua Direita é um vasto paraíso de (?) porque a sua freqüência domingueira


desconhece, ou finge desconhecer as mais comezinhas regras de educação social e tem
salanico prazer em violar as leis da moral, tão necessárias ambas, para estimulo e
amparo do progresso geral, que só será efetivado plenamente se houver, respeito entre
componentes duma sociedade, ligados por interesse comum duma sociedade. Para os
homens de cor, esse interesse existe particularmente e colide, por vez, violentamente
com o interesse coletivo, de modo a tornar-se imperativo categórico a obediência de
certos princípios e normas sociais e morais; antes um dever de consciência que se
impõe e que está sendo, desabusada e prejudicialmente desprezado pelas “gentes” da
rua Direita.239
A rua Direita. Corrompimento social/Degradação Moral

Ao mesmo tempo Rajovia aproveitou para denunciar que os negros eram punidos por não
respeitarem os princípios e as normas sociais e coletivas daquela localidade. Num segundo momento,
usando de um tom meio satírico, responsabilizou a “gentinha” pela desordem que enxergava. A descrição
de Rajovia começou a comprovar nossa interpretação:

Não somos, ainda, uma sociedade forte na estrutura econômica e, por isso mesmo, não
podemos crear antagonismos entre o interesse individual e o interesse social, pois que
se fora assim, em face dessa derrocada, uma força seria levantada, coagindo, até a
violência, os indivíduos à obediência dos preceitos de sociabilidade e de moral, úteis a
conservação e ao equilíbrio da sociedade.
A rua Direita. Corrompimento Social/Degradação Moral

Defendeu a punição (a violência) para as pessoas que desequilibravam a sociedade, que poderiam
“contaminar as moças virtuosas e os rapazes honestos”. Protestou contra a postura dos homens e das

238
BRUNO, Ernani Silva. História e tradições da cidade de São Paulo, Op. Cit., 1364.
239
A Voz da Raça, São Paulo: abril de 1937, p. 1.
98
mulheres que perambulavam pela localidade, pelos bares. Quase disse abertamente estar se referindo aos
moradores de rua e as prostitutas:

O escândalo da rua Direita não modificou uma moça ou um rapaz desconhecendo


aquela perdição, nutre-se ingenuamente, na fácil camaradagem e pouco depois está
contaminado da pouca vergonha ali dominante. Faltando-lhes força para seu próprio
domínio, de derrocada em derrocada, chafurdam-se no lamaçal do abismo á beira, e
tornam-se um inútil um pária, desligados do bom sentimento, da noção do dever um
dandi de péssima reputação, um abutre ele, e ela, de moça virtuosa e honesta, não
tardiamente transforma-se, atirada pelos abutres à ronda sinistra dos bares escusos, ao
hipotético esplendor dos desgraçados. A rua Direita.
Corrompimento Social/Degradação Moral

De todo modo, as moças virtuosas e os rapazes honestos deveriam evitar permanecer na


localidade para que não se tornassem uns “corrompidos sociais”, como havia acontecido, sobretudo, com
as moças e os moços freqüentadores dos bares. A situação dessa localidade incomodava os leitores dA
Voz da Raça, pois o próprio autor comentou que recebeu algumas “centenas de impressões” relativas ao
“último artigo” e confessou que “30 impressões” louvavam o protesto do autor, enquanto 70 estavam
descontentes. O que “ardentemente” queria era que se conjugassem os esforços “para debelar o mal”,
antes que de “outras partes” partissem “os corretivos adequados”.
Partimos para as contendas corporais envolvendo as mulheres negras no ambiente de trabalho, no
qual concedemos um espaço especial para as patroas no plano do julgamento físico, pois elas ofendiam
da menina à senhora negra. Os protestos da sociedade branca envolvendo, especificamente, as crianças
estavam entrelaçados aos estereótipos do corpo negro. Novamente D. Francisca conta às discriminações
que sofriam as meninas negras em Pinheiros, no Colégio da Vila Providência (internato). “As negras
deveriam ter a cabeça raspada, pois diziam que sangue de preto era quente e, portanto, morada de piolhos
e, também, porque preta não podia perder tempo penteando os cabelos. Esse colégio recebia visitas de
senhoras, as chamadas “benfeitoras”, as quais, quando necessitavam de ajuda no trabalho doméstico, iam
buscar as meninas negras, enquanto as meninas brancas continuavam estudando240.
Nesse caso, os corpos negros prestavam para o trabalho e jamais para serem embelezados e
elogiados. E quando o preconceito estético sobrepôs-se ao valor trabalhista, as mulheres ficaram
desempregadas. As famílias sírias de São Paulo, por exemplo, só aceitavam as negras na falta da branca.
Para repelir as negras, diziam que elas bebiam e fumavam, cheiravam mal, eram muito nervosas e não
tinham constância. Inseridas nesta mesma linha de estranheza, temendo que seus maridos ficassem

240

BERNARDO, Teresinha. Memória em branco e negro, Olhares sobre São Paulo. Op. Cit., 120.
99
seduzidos pelas empregadas negras, as famílias portuguesas ficavam revoltadas com o estereótipo dos
seus antepassados (“amantes da Vênus Negra”), e despachavam as candidatas do emprego. Francisco
Lucrécio comenta que muitas famílias começaram a aceitar empregadas quando se criou a Frente Negra
Brasileira. “Chegou-se a ponto de exigir que essas negras tivessem as carteirinhas da Frente”, e além
disso, ironicamente, afirmou que “eram importantes na época as empregadas domésticas, principalmente
as negras, pois elas sabiam lidar com a cozinha, com a limpeza” 241. As empregadas eram preparadas para
repelir os insultos. Daí, também, “resultavam fricções e conflitos.” O resultado é que muitas patroas
passavam a evitar as negras frentenegrinas242.
Nesse cenário de embates culturais, estéticos e hierárquicos envolvendo a mulher negra e a
mulher branca, a confusão era ora “resolvida” na polícia, ora dirigida para os jornais ou ainda resolvida,
brutalmente, nos interiores das casas de emprego. Na lembrança de D. Inês, emerge o espancamento:
“em 1930, nesta cidade, tinha patroa que usava chicote, e a gente ficava quieta!” 243.
No caso transcrito do jornal O Dia pelo jornal A Voz da Raça concluiremos que nem todas as
empregadas ficavam quietas perante a violência da cidade que se queria civilizada, inclusive,
conheceremos mais uma das técnicas de espancamento utilizadas pelos patrões. Izolina da Conceição, de
22 anos de idade, relatou que: “na tarde do dia 24, véspera de Natal compareceu à Quarta Delegacia de
Polícia, na Avenida Paulista, afim de apresentar uma queixa”, pois estava ferida e ensangüentada. Depois
de esperar horas na Quarta Delegacia e de ter se dirigido à Central, sem conseguir ser atendida, resolveu
procurar o jornal O Dia para contar o episódio e para que tomasse providências. Segundo O Dia, a
jovem foi à sua redação porque o jornal defendia os pobres. Acompanhemos o relato de Izolina:

Eu era empregada do Sr. Fernando Borges, à Alameda Rocha Azevedo, 7. Na tarde do


dia 24 pedi, aliás com bons modos à minha patroa D. Celina, que me fizesse um
adeantamento, pois era véspera de natal eu pretendia ir a missa do galo. Ella
respondeu-me com asperesa, dizendo-me que eu queria era ir para a farra e para isso
não me dava dinheiro discutimos. Ella insultou-me. Respondi no mesmo tom. Ai dona
Celina chamou por seu marido. Apareceu o Sr. Fernando Borges que pretendeu
expulsar-me. Pedi meu dinheiro. Ele vibrou-me uma violenta bolacha no rosto,
derrubando-me. Depois juntamente com sua esposa e sua filha de 16 anos de edade
surraram-me desapiedadamente! Fiquei toda ensangüentada e até agora tenho a
cabeça dolorida que não posso pentear-me! Meu rosto está assim como o Sr. vê... E já
estou cansada de ir e vir à polícia. 244 Espancada e ferida pelos patrões não foi
atendida pela polícia
241
BARBOSA, Márcio. Frente Negra Brasileira, Op. Cit., pp. 37.
242
FERNANDES, Florestan. “Movimentos sociais no meio negro”. A integração do negro à sociedade de classes, Op. Cit.,
pp. 350.
243
BERNARDO, Teresinha. Memória em Branco e Negro, Olhares sobre São Paulo. Op. Cit.
244
A Voz da Raça, São Paulo: 06. 01. 1934.

100
Na primeira página, A Voz da Raça continuou comentando o caso de Izolina da Conceição,
baseando-se nos princípios cristãos, nos quais as relações entre patrões e empregados deveriam ser
norteadas. Os patrões não deveriam explorar os empregados simplesmente porque pagavam a eles um
ordenado no final do mês. Na argumentação do escritor anônimo do jornal os princípios cristãos
entrelaçavam-se aos direitos da trabalhadora Izolina, direitos que também foram defendidos
fervorosamente pelo jornal, apagando a argumentação dos patrões que ratificavam que a empregada
queria o dinheiro para farrear. Segundo A Voz da Raça cabia a Izolina decidir a qual destino dar seu
salário:

O patrão deve tratar a serviçal como se fosse família


Há muitas famílias que tem creadas e não consideram que essas tenham o mesmo
direito de serem tratadas, desde que cumpram com as suas obrigações.
Serve de modelo a esta pequena crônica, além de outros, o caso da patrícia, Izolina da
Conceição, que em véspera de Natal pedira aos seus patrões uma pequena quantia para
festejar, sendo, então agredida e espancada sob alegação de que ela queria dinheiro
para gastar em farra.
Fosse não fosse, era seu; estava ganho.
Vejamos o Evangelho, 3O. Domingo, depois da Epifania; São Mateus...
Que contraste com certos patrões e patroas que tratam com orgulho, desprezo e sem
carinho os criados e as criadas, julgando que basta dar-lhe o salário ajustado para
terem o direito de trata-los do alto, exigir deles o Maximo de trabalho sem atendimento;
muitas vezes, às condições de fadiga e saúde.

2.1 - Os freqüentadores da “Bricabraque” e/ou “Braço Aberto”

O modo pelo qual os oradores negros se apresentavam nas cerimônias constituiu um dos fatores
que marcou a incoerência nas propostas de embelezamento dos militantes e, portanto, da imprensa. Neste
sentido vamos perceber, por meio dos depoimentos dos próprios líderes negros, que um significativo
grupo de escritores da imprensa teve dificuldade financeira para adquirir certos objetos embelezadores,
apesar de reclamar dos transeuntes negros da cidade que estivessem muito aquém dos estilos de
ornamentação em voga. A bibliografia vem mostrando as dificuldades dos líderes em se apresentar bem
trajados para a conquista da ascensão social nas diferentes dimensões da vida.

101
Na entrevista à Zeila Demartini, José Correia Leite contou, na pesquisa sobre o sistema
educacional da cidade de São Paulo, que desde a infância teve dificuldade em cuidar da sua
ornamentação pessoal, fator responsável pela sua ausência nos bancos escolares, pois não possuía nem
mesmo um calçado para apresentar-se bem ornamentado245. Ao passo que a condição do presidente da
F.N.B foi contada no depoimento de Raul Joviano do Amaral: “Arlindo Veiga dos Santos, chefe de um
movimento internacional, professor do São Bento, só tinha uma calça, um paletó e um sapato
desbeiçado”246.
Outra vez, Raul Joviano do Amaral descreveu Vicente Ferreira como um dos maiores oradores
negros e falou que, quando houve a inauguração da estátua de Ruy Barbosa no Vale do Anhangabaú,
depois dos discursos oficiais e da dispersão do público, “um negro mal vestido, jornais debaixo do braço
tomou a palavra”. Era Ferreira. Ele fez uma oração grandiosa sobre o Ruy Barbosa, cuja vida conhecia
muito. Aos poucos foram todos parando e voltaram para ouvir Vicente Ferreira247. No depoimento de
José Correia Leite a ambigüidade no estilo de Vicente Ferreira: “desleixado na maneira de vestir, barba
mal tratada, chapéu roto na cabeça, alto, quando falava se transformava num semideus. Ele era muito
feio, mas muito elegante...andava mal vestido, mas numa elegância danada...Todos os negros que
gostavam de falar procuravam imitar Vicente Ferreira, só que eles não tinham o conhecimento de
Vicente Ferreira. Voltou para o Rio e morreu em Petrópolis, tuberculoso, por volta de 1934/35”248.
Sendo assim é coerente interpretar que para Vicente Ferreira a beleza do indivíduo negro
representava-se pelo esplendor do discurso, pelo grau de meditação frente aos problemas emergentes,
nos quais se inseria a população negra, e/ou o indivíduo belo era aquele com pleno desenvolvimento das
capacidades cognitivas. Os cultuadores do seu jeito despojado de se apresentar, pensando nos associados
influenciados pela versão de embelezamento mais constante e menos constante na imprensa negra, os
cultuadores unicamente do embelezamento exterior do corpo, paradoxalmente, estiveram completamente
fora do seu conceito de beleza. Estiveram inseridas nesse conceito as pessoas que valorizavam mais a
beleza interna do que a beleza externa do ser humano. Na mesma fala de Correia Leite, no tocante à
ambigüidade do estilo de Ferreira, talvez, seja plausível interpretar que Leite o enquadrou no mesmo
estilo de Arlindo Veiga: apesar de trajar-se socialmente usava terno, gravata e sapatos velhos.

245
DEMARTINI, Zeila de Brito Fabri. "A escolarização da população negra na cidade de São Paulo nas primeiras décadas do
século". Op. Cit., pp. 58. Ver figura 16, foto de José Correia Leite.
246
PINTO, Regina Pahim. Movimento negro em São Paulo: luta e identidade. Op. Cit., pp. 88. Ver figura 19 – imagem de
Arlindo Veiga dos Santos.
247
FERRARA, Miriam Nicolau. A imprensa negra paulista (1915-1963), Op. Cit., pp. 84. Ver figura 15 – imagem de Vicente
Ferreira.
248
FERRARA, Miriam Nicolau, A imprensa negra paulista (1915-1963), Op. Cit., pp. 85.

102
O estilo de Arlindo Veiga foi outro tópico intrigante porque, embora Raul Joviano tenha dito que
ele dispunha apenas de um velho uniforme social, nas fotos das manifestações negras, podemos perceber
pela coloração e modelo de seus figurinos a “diversidade” do seu guarda roupa, ora ele apareceu de terno
preto, ora ele apareceu de terno cinza. A justificativa para a afirmação desfavorável, de Raul Joviano à
forma de Arlindo Veiga se adornar, ficou por conta do que se pode chamar de mania do meio negro: era
comum tecer comentários “brincalhões” com o estilo de ornamentação do companheiro de movimento.
Esses depoimentos relativos à ornamentação dos militantes tiveram uma conotação
homenageadora, crítica e engraçada de se rememorar as figuras dos companheiros. José Correia Leite
comentou que os desfavorecidos da sociedade compravam na rua XV de Novembro. Naquele tempo
compravam na Belchior, casa de roupas usadas, que uns chamavam de “Braço aberto” ou “Bricabraque”.
Na casa adquiriram: bengala, palheta, sapato, vestido, polaina, calça, colete, camisa, chapéu, luva - tudo
usado, penhorado e/ou em bom estado. Entretanto, nem todos podiam construir esse tipo de guarda
roupa. “Eram obrigados a vestir roupa de brim barata, andar de chinelos ou descalços. Era o pessoal da
periferia: Barra Funda, Bixiga, Liberdade, Bom Retiro, Brás, eram bairros longes”. Homens e mulheres
aderiram a esta prática de comprar roupas dos mais variados estilos para compor um estilo
completamente despojado ou, freqüentavam a “Bricabraque” na intenção de encontrar algumas peças da
moda, como disse Correia Leite: “Qualquer coisa que surgia na moda, o negro dava um jeito à sua
maneira. Fosse o que fosse: dança, roupa...” 249.
Segundo Fernandes, após a escravidão, uma parte da população negra para conseguir melhores
condições de vida dependia “da proteção do branco”. “A herança das roupas usadas” era o “cartucho
para um emprego melhor”. O problema do vestuário era muito grave e sem “boa aparência” o negro não
podia “pleitear uma colocação com perspectivas”. Naquela época, o negro “nem podia pensar em roupas
de casimira”, que eram por demais dispendiosas. “Graças ao protetor branco, alguns herdavam até fraque
e cartola, que usavam nas grandes festas”250.
Sobressaiu-se dos depoimentos dos militantes a impossibilidade financeira de compor,
minimamente, os seus guarda-roupas. Todavia, na visão de um frentenegrino, a moda beneficiava
sobremaneira o corpo feminino, vejamos:
Crônica Afeminada
De há muito que as mulheres andam implicadas com os homens, pela simples questão
de vestimenta.
Não são poucos os momentos angustiosos que eles passam, por questão de uma reunião
última, ou mesmo em palestras num círculo onde predomina o elemento feminino.
249
CUTI. E disse o velho militante José Correia Leite, Op. Cit., pp. 45
250
FERNANDES, Florestan. A integração do negro à sociedade de classes. Op. Cit., pp. 61.
103
Acham elas...perdão – achamos nós – porque eu também pertenço ao sexo fraco – o
modo absurdo de como se vestem, de maneira invariável.
-Calça, colete e paletó. A quiçá variedade, é capa; guarda-chuva (...) cinta no meio.
Sempre o mesmo estilo, sempre a mesma coisa do mesmo jeito.
Calça, colete e paletó – perdão novamente – (...) o chapéu e as caboclas (?) de quando
em vez.251

O escritor que assinou a crônica, com pseudônimo de Ana, revelou que os homens buscavam
vestir-se “adequadamente” para agradar, sobretudo, “o sexo frágil”, responsabilizado pela criação e
propagação da moda da indumentária:

Nós ao contrário, temos uma infinidade de sistemas, conquanto seja também o mesmo
modo de trajes.
Vestido, ou saia e blusa, chapéu e luvas. É que possuímos diversos modelos; Maria
Antonieta, vestido aberto nas costas, compridos, curtos, médios, caveados, e uma
imensidade enquanto os homens só podem mudar de tom de claro para escuro, de
escuro para claro, ficando só nisso, no sempre enfadonho corte e sistema; calça, colete
e paletó.
Quem sabe se os homens, pregando uma rendinha no festó da calça, cortassem as
mangas do paletó, ficassem mais engraçadinhos e gostosos...
Crônica afeminada

Adornar-se de acordo com os preceitos da moda ou criar a sua própria moda concedia destaque
para os homens no meio feminino. Os vários usos de peças compositoras de um estilo simbolizavam para
o homem negro, enfim, o baluarte da sedução. Por isso mesmo, foi através da voz feminina, considerada
exímia conhecedora da moda, que o frentenegrino sugeriu aos homens diversificados modelos
masculinos de ornamentação, sobrepondo a importância do conhecimento da moda às dificuldades em
adquirir peças embelezadoras. Numa segunda leitura do texto é possível perceber uma certa ironia por
parte do autor, questionando os inventores, cultuadores e preceitos da moda.

Pois como vemos não é de agora que nós mulheres vimos observando sorrateiramente e
detalhadamente os homens que não se esforçam por mudarem de sistema. Usem sim as
peças mas em diversos modelos, tais como: Paletó a la Vienense – gola de veludo, friso
de seda, punhos de crepe marroquino. Colete sem botões com dois bicos, cruzados que
circundam a cintura, a calça de veludo, toda debruçada com seticeta, casinhas de
abelhas, presas com missangas celazentes...
A culpa não é nossa, mas sim do mundo que tem cada invenção e nós mulheres somos os
xs e bs das invenções.
Crônica afeminada

251
A Voz da Raça, São Paulo: julho de 1936, p. 3.
104
CAPÍTULO III – ESPAÇOS DE VISIBILIDADE DA BELEZA NEGRA

3.1 - A criação dos concursos de beleza negra

Brincar com a imagem negra, sob a intenção humorística, foi tarefa desenvolvida pelO Clarim
d'Alvorada, talvez, na intenção de apresentar os conselhos de beleza propostos pelo jornal e, criticando a
visão que a sociedade fomentava da estética negra. Com certeza os organizadores do concurso
discordavam da visão depreciativa que se fazia comumente da vida diária do negro. Importante para o
promotor do concurso, o próprio Clarim d’Alvorada, era também entregar prêmio, visando garantir a
presença do participante, criticando de antemão desinteressantes promoções da outra imprensa destinada
ao leitor. “É de praxe os jornaes, de vez em quando, apresentar aos seus leitores e administradores,
surpresas: prêmios aos assignantes concursos de beleza, sympatia, etc., ultimamente se preocupam os

105
jornaes de apresentar aos leitores problemas de formação de phases e períodos por intermédio das
palavras cruzadas”252.
Ademais os organizadores associavam as pessoas pretensiosas à feiúra. Sutilmente, era como se
fizessem questionamentos aos corpos que buscavam obter sucesso pela exibição de uma imagem
artificial, e/ou que tentavam exibir-se via uma posição de prestígio.

Alerta!...Muito cuidado; a opinião dos nossos presados leitores é que deverá nos auxiliar
no grande concurso que iniciaremos brevemente. Qual o preto mais feio e pernóstico
desta Capital?...Ao premiado concorrente, daremos um bello prêmio e promptificamos a
publicar a sua caricatura conforme no próximo número apresentarmos as condições do
determinado concurso253.

Num outro número, o periódico publicou o texto com o título “Qual o preto mais feio”,
conclamando os leitores a apoiarem o concurso, que se encerraria na data de aniversário do próprio
jornal, ou seja, em janeiro de 1926. Para colaborar, bastaria o leitor amigo adquirir os números do
exemplar até a data do encerramento do concurso e ir votando na pessoa que lhe parecesse “mais feia e
pernóstica”. O eleitor do concurso deveria enviar para a redação o cupom preenchido, indicando o nome,
o endereço e os locais freqüentados pelo candidato ao título de feiúra e de pretenciosidade. Ao vencedor
seriam entregues três prêmios, os quais seriam expostos 15 dias antes do encerramento do concurso na
sede de uma sociedade ou em uma casa comercial . A publicação de caricaturas dos premiados era
“offertada como lembrança”254. Todavia, o exemplar não apresentou todo o desenrolar da atividade,
assim ficamos impossibilitados de acompanhar as manifestações do dia da entrega e de nomear o
condecorado com o título. Esse concurso expressou, em segundo plano, um certo desconforto desses
homens dO Clarim d’Alvorada em lidar com o cultivo e apresentação da beleza masculina, deixando
evidenciar que, nos concursos de beleza e no jornal, o símbolo do embelezamento era a mulher. Por isso
os concursos femininos foram mais extensos e veremos como essa responsabilidade de ser o símbolo da
beleza negra pesou para as mulheres condecoradas com o título.
Não conseguimos excluir a análise do concurso de beleza feminino da cidade de Campinas, onde
ocorreu o primeiro concurso de beleza negra organizado pelo movimento negro, ou mais especificamente
promovido pelo jornal Getulino255 de 1920. Acompanharemos de que forma se deu esse grande evento,
252
O Clarim d’Alvorada, São Paulo: 27.09.1925, pp. 4.
253
-----------: 27.09. 1925, pp. 4.
254
O Clarim d’Alvorada, São Paulo: 15.11. 1925, pp. 4.
255
O “Getulino” foi criado em 1923 e funcionou até 1926. Seu título era: “Orgam para a defesa dos interesses dos homens de
côr”. Sua “redacção e officina” funcionavam na rua Luzitania, 135, em Campinas - (“telephone: 315”). Os redatores do jornal
eram Lino Guedes (chefe) e Gervásio de Moraes; os diretores proprietários: Andrade & Moraes. A assinatura custava 10$000
106
conheceremos as candidatas, os escritores das notas dos concursos e, enfim, as reflexões dos homens e
das mulheres em torno do concurso de beleza. As notas do “Concurso de Belleza” serviram como foco
aglutinador das propostas de atuação negra envolvendo parcela da sociedade negra campineira. O espaço
destinado ao culto da beleza negra feminina apresentou, de forma resumida, as problemáticas constantes
da imprensa negra: a dança, as festas, os heróis, as ações dos negros no processo histórico, a visão da
imprensa branca sobre a atuação do meio negro campineiro, a religião, a família, etc. Todos esses temas
estiveram em consonância com a apresentação do corpo no aspecto físico, intelectual e moral.
A primeira nota encontrada sobre o concurso foi inquietante, tratou de exibir de antemão, a
suntuosidade do evento, em termos de prêmio e ambiente festivo, para que assim as moças negras “de
família” ficassem estimuladas a participar do concurso:

Concurso de Belleza
Como promettemos damos hoje, não completa a lista dos prêmios a ser conferidos as
vencedoras em 1O. 2O. e 3O. lugares, no concurso que abrimos: uma barrete, Casa
Gerin; um porta jóias e um Kalendario artístico, casa Genoud; um vidro de extracto,
Casa Mouginho e um collar camafeu, Casa Iracema.
Alem de publicarmos o retrato das vencedoras, offerecemo-lhes também no final desse
prélio que será em 6 de Outubro, uma grande festa no Cassino, tomando parte nella o
G. D. Luiz Gama, estando já os ingressos à venda.
O elegante theatrinho da empreza Vianna & Bianchi, naquelle dia, receberá, além da
profusa illuminação, cuidada ornamentação prodigalizada pela Floricultura
Campineira, sendo não só o espetáculo como a “sauterie”, abrilhantado por uma
excellente “jazz-bands american”, completa, sob a direção do maestro João do Amaral.
É grande o enthusiasmo reinante para o resultado do concurso de belleza, que já
recebemos votos para as seguintes senhorinhas:
Nathalia 15
Zélia Ferreira 13
Ninica Ferreira 10
Sylvana de Assis 10
Bepa Oliveira 9
Luiza Andrade 7
Lais de Moraes 7
Alice de Campos 7

O Getulino funcionou como uma espécie de meio propagandístico para as casas comerciais que
patrocinavam o concurso de beleza negra campineira; o mesmo fenômeno ocorreu, mais tarde, durante a
divulgação das notas do concurso “Miss Progresso” paulistano.
Encurtamos a lista dos nomes das concorrentes para apresentar as regras do concurso do
“Getulino”, conduzidoras do processo da votação das candidatas. Para colaborar com a eleição da moça

e a semestral 6$000. Sua periodicidade semanal foi regular, o jornal continha 4 páginas.

107
mais bela, o eleitor deveria “encher” o cupom e remete-lo à redação do jornal, indicando o seu nome e o
nome da beneficiada.256
Enquanto o jornal Progresso admitiu que se inspirou no Getulino para organizar o concurso de
beleza negra da Capital, o Getulino, sem meias palavras, reconheceu ter criado o concurso de beleza
campineira em vista da voga dos concursos de beleza, que era adotada pela imprensa em geral. Estando
“a frente de uma grande empreza jornalística” achou “opportuno” encertar um “concurso nas mesmas
condições adoptadas pelos jornaes e revistas modernas” 257. Entretanto, em primeiro plano, a maioria das
notas, expressou demasiadamente o orgulho de ter partido do Getulino a primeira iniciativa de divulgar e
criar o “Concurso de Belleza” negra. O reconhecimento desta primeira ação em torno da criação do
concurso de beleza negra esteve constantemente presente, inclusive, nas notas trazidas de outros jornais
anunciadores da manifestação negra campineira.
A lista de prêmios destinados às vencedoras do concurso cresceu constantemente, bem como a
lista dos nomes das concorrentes e os seus votos. De vez em quando, o jornal criou uma certa expectativa
para os leitores e as participantes do evento dizendo não ter espaço para divulgar maiores informações
relativas ao transcorrer do evento, isto é, registrando somente os nomes daquelas mulheres que
receberam acima de seis (6) ou de vinte e cinco votos (25). Em todo caso, anunciou que a contagem dos
votos estava se “procedendo com a maior lisura possível, ficando os coupons na redacção ao dispor dos
interessados”258.
No momento em que as primeiras candidatas ao título alcançaram mais de cem votos ficamos
sabendo que, na etapa final do concurso, a folha sairia em forma de revista com quarentas páginas
impressas trazendo na capa o retrato da vencedora em primeiro lugar, e, no texto variados portraits-
charges e uma “interwien com a mais bella”.259 Em vista do grande sucesso que despertou o concurso no
meio social negro, os organizadores passaram a trabalhar com mais afinco para a festa oferecida no
Cassino260.
Não foi possível “para se comemorar aquella ephemeridade”, que por certo ficaria “guardada na
memória de todos, esta folha sair em forma de revista 261. Ao contrário do que anunciou o jornal, devido
“a falta de mão-de-obras”, distribuiu apenas “um número especial impresso em fino papel com copiosos

256
Getulino, Campinas: 5 de agosto de 1923, p. 2.
257
Concurso de Belleza. Getulino, Campinas: 5 de agosto de 1923, p. 3.
258
Concurso de Belleza. Getulino, Campinas: 12 de Agosto de 1923, p. 3.
259
Concurso de Belleza. Getulino, Campinas: 26 de Agosto de 1923, p. 3.
260
Concurso de Belleza. Getulino, Campinas: 9 de setembro de 1923, p. 3.
261
Concurso de Belleza. Getulino, Campinas: 16 de setembro de 1923, p. 3.
108
artigos e grande número de clichês não só de vistas da cidade como das vencedoras e de outras
classificadas”. Nesta fase do concurso as candidatas receberam um número de votos surpreendente:

Lais de Moraes 647


Luiza de Andrade 547
Alice de Campos 513
Genny de Assis 351
Benedicta Bueno Ferreira 112262 .
Concurso de Belleza

A eleição do concurso ocorreu de agosto a outubro de 1923. Através das informações


apresentadas nas notas do concurso de beleza não foi possível sabermos se existiam critérios de escolha
para a eleição da mulher que seria representante da beleza negra campineira. Os critérios, aparentemente,
ficaram mesmo a cargo do eleitor. Nesta época, aparentemente, os eleitores das candidatas não se
preocupavam com as medidas dos corpos das mulheres. De todo modo, o Getulino anunciou que os srs.
contabilistas José Gonçalves Machado, Manoel Lebre e Francisco Mariano, convidados para
constituírem a mesa apuradora do concurso, depois de examinarem os “coupons, apresentaram um
minucioso laudo, pelo qual” se verificou “o resultado do prélio”:

Lais de Moraes 1755


Alice de Campos 1456
Luiza de Andrade 1260
Patronilha G. dos Santos 1204 263.
Concurso de Belleza

No total, quarenta e uma mulheres (41)264 participaram do concurso de beleza. Foram enviados
para a redação do Getulino sete mil trezentos e oitenta e quatro (7.384) votos aproximadamente. Essa foi
também a expressão numérica das pessoas envolvidas na eleição do concurso.
Na primeira e na segunda página do jornal nos deparamos com uma longa entrevista e com as
fotografias das quatro primeiras vencedoras do “Concurso de Belleza”, por ordem de classificação.
Normalmente as notas do concurso de beleza ocupavam a terceira página do jornal, mas quando
chegamos às comemorações finais do evento encontramos notas do concurso na primeira página do
jornal. Resumindo as “impressões” de Lais de Moraes nas primeiras linhas da entrevista, Lino Guedes, o
entrevistador, sublinhou as suas características físicas e intelectuais:
262
Getulino, Campinas: 23 de setembro de 1923, p.3.
263
Getulino, Campinas: 7 de outubro de 1923, p. 3. Ver figuras 2, 3, 4, 5, 6 e 7 das vencedoras do concurso de beleza de
Campinas.
264
Getulino, Campinas: 7 de outubro de 1923, p. 3.
109
Inteligência aguda e clara, typo de creatura fina e distincta, exprimindo-se com
facilidade, apóiam o colorido da phrase na encantadora mobilidade da physionomia em
que paira, por vezes, um sorriso de ironia leve, ou aza de ideal melancolia brandamente
tosca, para a tornar mais doce e mais bella, se possível a senhorinha Lais de Moraes, e
em extremo gentil, não se furta, a quem a procura, nem mesmo, as pessoas que
pretendem hostilizal-a, como se ella tivesse culpa de... ser bonita 265
Questionário

A entrevista foi realizada na casa da primeira colocada do concurso. Lais recebeu os militantes
“com transparente satisfação em sua sala de visitas e sem preoccupações protocollares, liberta das frias
formas da polidez official, estendendo as suas mãos bem torneadas”, que foram beijadas. A princípio,
disse que “na contagem dos coupons, foi classificada, alias merecidamente, outra, cujos predicados
physicos a isso faziam jus”. Lino Guedes logo argumentou a Lais que ela não deveria dizer nada,
somente deveria responder o que ele perguntasse. O diálogo tomou outros rumos: falaram da origem e da
importância do Getulino. Lino Guedes reclamou das pessoas que tentavam atrapalhar o desempenho do
Getulino, do meio negro; falaram das personalidades negras que lutavam pela “grandeza da língua
materna”, destacaram como figuras relevantes: Rui Barbosa, Nabuco e afinal Bilac. Neste dialogo entre
Moraes e o jornalista Lino Guedes havia a intenção de igualar as ações dos líderes da década de 20 com
outros da época anterior.
Lais permaneceu aconselhadora e consoladora do inquietante entrevistador, que aventou a árdua
tarefa do Getulino na imprensa. Na intenção de atenuar o ressentimento do entrevistador para com os
adversários da sociedade negra campineira, Moraes emitiu um discurso pautado no catolicismo, citou as
idéias de um General para invocar o Espírito Santo:

Pelo que vejo, meu amiguinho não conhece aquella célebre prhase do General De
Lamoriciere: “Quando estaes embaraçado, fazei como eu, invocae o Espírito Santo e
confiae no seu auxilio”. Na verdade, “nas atribulações a alma que se volta para Deus
encontra a calma e a serenidade, como a águia que se eleva por entre as nuvens em
tempestade”. Questionário

Lino Guedes fez, então, a seguinte pergunta para Lais: “É cathólica?”, Moraes rapidamente
respondeu:

Apostólica e Romana. E quem não será nascendo nesta episcopal cidade, neste paiz que
teve como primeiro symbolo de civilisação a cruz a augusta e piedosa cruz que, quinze
séculos antes no cimo melancólico do Calvário, santificada pelo sangue do Redemptor,

265
Getulino, Campinas: 13 de outubro de 1923, p 1-2.
110
com um braço apontava a aurora – nascente dos gozos ineffáveis, e outro voltando para
a noite – o manto do perdão sobre as injurias...

Questionário

“Num cunho de gentileza”, disse para o chefe do jornal: “vou lhe poupar o trabalho de estar me
perguntando cousa a cousa dizendo-lhe tudo”, do namorado, do baile, da moda, dos filmes, do livro, do
concurso.

Não tenho namorados, e nem podia tel-os, pois o escasso tempo que me sobra para
estar em companhia dócil de minha mãe, que adoro quanto deve adorar uma filha que
bem comprehenda os seus deveres filiaes. Não confunda você, namorados com
amiguinhos pois amiguinhos tenho, e os tenho bastante...
O baile apesar de ser a creação soberba e maravilhosa de Terpsycore, não tem a minha
sympatia, porque os modernos adeptos da dansa não sabem cultivarem-na como era
mister. Não estranhe você ter esta affirmativa partido de uma moça. Adoro os caprichos
da moda.

Quando a jovem afirmou que adorava os caprichos da moda, seu entrevistador logo concordou:
“nem podia ser o contrário”, pois “em seu corpo de menina habita uma alma de moça”. Ela então
continuou com um discurso meio radical em torno da moda:

A moda é a elegância, todos nos devemos dar culto a elegância, pelo menos assim
ordena o bom gosto. A cor, a meu entender, bella que agrada a vista é o rosa, todavia, a
cor lilás é linda também. Dentre as flores, esse reino divino, que tem o throno a rosa, a
rainha que dirige os nossos destinos, eu vou procurar em que vive a violeta em sua
simplicidade graciosa para ser o alvo da minha admiração.

Questionário

Num vai e vem, mais de concordâncias do que de discordâncias, entre entrevistador e


entrevistada, ele disse que compactuava da visão da moça sobre a moda. A própria observou tal
gratificação e inferiu: “percebo em suas palavras o intuito de agradar-me, pois noto que trás sempre na
lapella lindo cravo”. Quase terminando o questionário, ou o monologo, ela informou que era
freqüentadora do cinema “Rink”, e assídua porque nos filmes poderia acompanhar o trabalho do seu
artista predileto (“Buck Jones”) e ouvir os sons agradáveis da orquestra. Apesar de tecer criticas às
danças modernas, adorava a orquestra e o instrumento que mais lhe seduzia era o Violino. Lia romances,
o que mais lhe agradou foi “A Moreninha” de Macedo266.
266
Getulino, Campinas: 13 de outubro de 1923, p. 1-2.
111
Ao dialogar longamente com o entrevistador, esmiuçando pormenores de sua vida, Moraes foi
rapidamente cumprindo a expectativa do Getulino sobre sua pessoa, que era de retratar e construir um
modelo de mulher no aspecto físico, familiar, intelectual, para as associadas e os leitores deste jornal.
A princípio pareceu mesmo que a vencedora ficou insatisfeita com o título que lhe foi conferido.
No entanto ficou satisfeita em ver pessoas que habituadas à bondade quizeram ser-lhe “gentil
suffragando” o seu “nome obscuro”. Embora não acreditasse em seus predicados físicos para vencer o
concurso, mostrou-se vaidosa oferecendo inclusive, no final da entrevista, uma fotografia “com
dedicatória expressiva” para os representantes do Getulino.
Partimos para a nota do dia da festa de condecoração às vencedoras, nota de primeira página
acompanhada de fotografia, que começou exaltando os convidados e a dimensão do concurso. A festa se
realizou num “Cassino” da cidade de Campinas no dia 13 de outubro de 1923:

Magnífico estupendo maravilhoso foi o sucesso obtido pelo concurso de belleza


instituído por esta folha, concurso este que revelou a fina flor da sociedade não só
campineira como paulistana e santista. Altamente magníficas, estupendamente
maravilhosas foram as festas que encerram esse importante certamem o único em todo
o Estado de São Paulo e quiçá em todo o Brasil.267 Concurso de Belleza

O primeiro orador da festa foi exatamente um homem com perfil de intelectual. Lacerda
Werneck, “pronunciou com particular eloqüência o discurso”. Para o intelectual, “malditos” eram “os
brasileiros que” julgavam “negro patrício um ser fora da comunhão nacional”, porque na verdade “o
povo” tinha “em suas artérias o sangue cheio de Santo patriotismo do negro Henrique Dias, o maior
Heroe da Guerra Holandeza, a quem o rei de Portugal recolheu a sua corte”. O momento era de
relembrar as figuras negras consideradas relevantes para a formação do povo brasileiro, mas, sobretudo,
de reconhecer outro vulto para as comunidades negras presentes (paulistana, campineira e santista).

Preguemos sempre a igualdade – espírito das nossas leis humanas -, a fraternidade


atributo divino que exorna a alma de todo o homem verdadeiramente fiel aos
ensinamentos de Jesus, a quem o próprio preconceito deformou ao lhe pintar a face,
fazendo-o branco, louro e de olhos azues, quando como descendente de Sem (?), como
hebreu foi moreno, de olhos escuros e cabelos castanhos268.
Concurso de Belleza

267

----------:21 de outubro de 1923, p. 1.


268
Concurso de Belleza. Getulino, Campinas: 21 de outubro de 1923, p. 1.

112
Significativo era fazer o reconhecimento de um mito de caráter universal. Com tal prerrogativa o
discursador e o Getulino problematizavam as características de Jesus para a comunidade negra,
aproximando-a, assim, cada vez mais, de Jesus negro para que o povo católico aceitasse naquele
momento a figura de Jesus escurecida. Ao mesmo tempo, Werneck difundia o catolicismo entre os
negros e tecia criticas à forma como aquela religião representava a sua figura sagrada. Por outro lado, era
como se conversasse com uma massa de negros puramente católica, não levando em consideração a
possibilidade de no recinto encontrarem-se pessoas que professassem outros credos, como o candomblé,
a umbanda, etc. A postura do Getulino também não foi muito diferente da de Werneck. Ao divulgar este
discurso, eminentemente católico, parecia dialogar com leitores somente desta religião.
“O clou da festa foi o baile que rythmando por otpmo jazz bands prolongou até a madrugada,
notando-se entre os pares incontáveis senhorinhas com deslumbrantes toilletes ”. Nota “chic” para a
imprensa local e paulistana que estiveram presentes na sessão solene, as quais foram saudadas pelo chefe
do Getulino. O sr Tasso de Magalhães, secretário do jornal Diário do Povo, começou falando ser a festa
que assistia “uma demonstração de que o preto” estava “comprehendendo a sua situação na sociedade”,
e “terminou por felicitar as senhorinhas detentoras da palma da belleza”. No entender do sr. Tasso de
Magalhães, foi a ação de empreender o concurso de beleza que viabilizou a mobilidade social da
sociedade negra campineira. Esta parte do discurso do Sr. Tasso de Magalhães o Getulino registrou como
protesto e como aceitação. A aceitação está contida na parte em que o orador aventou que os negros
haviam percebido tarde demais a situação em que permaneciam, afirmando que quase nada “os
humildes” poderiam fazer para transformar a realidade social. Pela Gazeta de Campinas discursou o sr.
Benedicto Cavalvanti, por “uns vinte minutos”, de forma exagerada e estereotipada sobre as
contribuições do povo negro ao Brasil. Para ele o “progresso de nossa pátria” era “devido única e
exclusivamente ao escravo de hontem ao effectivo e carinhoso preto”269.
A próxima nota seguiu descrevendo a sessão solene 270. Entre uma manifestação e outra
ofereceram taças de “champagne” às vencedoras “no improvisado refeitório ao ar livre do theatro”
(muitas vezes chamado de Cassino nas notas), servidas “pelo distincto advogado Dr. Lucio Peixoto”.
Depois de finalizado o “grande baile”, já “ao amiudar dos gallos”, iniciou-se as festas
particulares. No domingo, a primeira realizou-se na residência, a rua Augusto César 199, de Lais de
Moraes. Seguiram para a casa de Benedicto Florêncio, na qual “foi servido aos convidados um lauto
almoço que regado a finíssimos vinhos, e no meio da maior cordialidade, terminou às 14 horas”.

269

Getulino, Campinas: 21 de outubro de 1923, p. 1.


270
Concurso de Belleza, Campinas: 21 de outubro de 1923, p. 1.
113
Lais recebeu, segundo o Getulino, além de vários presentes, cumprimentos por cartas,
“telegrammas” e cartões271.
Assim terminaram as notas dos festejos “do único concurso organisado”, naquela época, que
preocupou a imprensa carioca, “a mais culta do mundo, a qual se referiu aos festejos” em termos muito
lisonjeiros. Por isso a Revista da Semana e o jornal A noite publicaram o retrato de todas as mulheres que
participaram do “Concurso de Belleza” campineira. Podemos acompanhar a forma como a Revista da
Semana e o jornal A noite anunciaram o evento pela transcrição do próprio Getulino:

Um dos muitos resultados produzidos pelo grande certamem nacional organizado pelo
“A noite” e a “Revista da Semana” e delles, por certo, um dos mais curiosos e menos
esperados foi o interessante concurso de belleza de moças descendentes dos povos da
Getulia e que guardam o coração da epiderme, a tisna dos soes crestadores da África:
concurso promovido pelo Getulino o primeiro semannario que se edita regulamento no
Brasil com officinas próprias, dirigido, redigido e collaborado exclusivamente por
homens de cor.”272 O encerramento das festas officiaes – A imprensa do Rio - Notas

De acordo com o Getulino, as notas da Revista da Semana e do jornal A Noite enfatizaram o


caráter significativo, até nacional, do concurso de beleza festejado e criado pelos movimentos sociais.
Para a sociedade campineira negra, que estava frente à uma empresa jornalística, era importante ser
reconhecida como uma empresa organizada e dirigida por negros. Entre os jornais alternativos que
faziam parte da imprensa negra, com esse mesmo caráter de funcionamento e criação, a Revista da
Semana e o jornal A Noite glorificavam o Getulino, que agradecia e ratificava tal reconhecimento
carioca.
Na transcrição do Getulino relativa à opinião da Revista da Semana havia também um
comentário sobre a situação vivenciada pela África nos anos 20. O comentário surgiu não só em termo
de calamidade, mas também em termo de ações afirmativas da África, aquela que havia prestado
“valiosíssima contribuição na ultima Guerra pelos bravos filhos de Senegal, do Alger, do Cabo, de
Angola e Moçambique e de outras colônias da França, da Inglaterra e de Portugal” em “defesa da
Civilisação ameaçada pelos brancos da Europa”. No entanto, no decorrer dos comentários, a revista
carioca caiu em contradição, assim como o Getulino que transcreveu o fato, pois ao comparar a situação
dos negros dos Estados Unidos com a situação dos negros brasileiros enfatizou: “nos Estados Unidos,
onde é tradicional a separação das raças, os negros têm, como os brancos, os seus próprios jornaes, como

271
Concurso de Belleza. Getulino, Campinas: 28 de outubro de 1923, p. 2.
272
Getulino, Campinas: 28 de Outubro de 1923, p. 2.
114
Chicago Defender, as suas escolas e suas instituições. No Brasil não existe essa desintelligência”. 273 Para
a Revista da Semana os negros na década de 20 viviam num processo étnico harmonioso com toda a
sociedade brasileira. A própria revista não conseguiu identificar as causas da criação do Getulino, a luta
dos negros naquele momento por um espaço social, político, cultural e recreativo. Ainda que o espaço
cultural “no meio negro” fosse, principalmente, permeado por elementos da cultura branca, ocidental
(cultuava a musica norte-americana, pregava o catolicismo, etc).
A visão sobre as relações raciais nos Estados Unidos era complexa. Foi comum encontrar nestes
jornais alternativos críticas a América do Norte quando estava em questão o fator discriminação e, por
outro lado, elogios em relação à prosperidade econômica. “A Voz da Raça” acrescentou, nesta lista de
exaltação aos norte-americanos negros, os fatores organização social e independência. Vejamos: “lá” os
negros têm “seus jornais, as suas Universidades, os seus Bancos, o seu comércio, a sua agricultura, as
suas indústrias, as suas artes. Um grande artista de sangue negro poderá encher um teatro enorme
unicamente com gentleman da sua raça”. Enquanto no Brasil, “o negro não tem formado senão clubes
dançantes de arrumadeiras e copeiras e cordões de Carnaval”. Segue reclamando da situação econômica
enfrentada pelas coletividades negras brasileiras. “E como documento de solidariedade racial e humana,
o mais que conseguiu foi a irmandade do Rosário, para dar um caixão de pinho, e uma grinalda de papel
aos párias quando morrem”274.
Em determinado momento a Revista da Semana e o jornal A Noite seguiram afirmando que a
segregação entre negros e brancos ocorreu, no Brasil, somente na época da escravidão:

Um dos factores primaciaes da nacionalidade, o negro – em último convívio com o


branco –foi, mesmo na época odienta da escravidão, um collaborador prestimoso do
nosso processo econômico e um valente auxiliar na defesa da pátria, deixando na nossa
história escriptos em caracteres indeléveis os nomes de Henrique Dias e Marcilio Dias,
Luiz Gama e Cruz e Souza, como expoentes fulgurantes do heroísmo e da mentalidade
da sua raça. Não seria pois, de extranhar que também um typo de belleza, dessa raça
aparecesse no certamem por “A Noite” e a “Revista da Semana”.
O encerramento das festas officiaes – A imprensa do Rio – Notas

As “manifestações de apreço às vencedoras” partiram também de uma “commissão de moços


pertencentes à elite paulistana”. Estiveram presentes as comissões de Campinas, Jundiaí e São Paulo. A
chamada comissão de “D. Juan” composta de estudantes (Jose Pinto Nunes, Jordelino dos Santos, Luiz
Bonfim, Ruy de Panta, etc, e das sras Maria Guilhermina, Iracema, Maria dos Santos, etc), organizou um
grande baile no salão Itália Fausta, no dia 17 de outubro de 1923275. A “senhorinha” Lais de Moraes,
273
O encerramento das festas officiaes. Getulino, Campinas: 4 de novembro de 1923, p.12.
274
Humberto de Campos - O destino da Raça Negra. A Voz da Raça, São Paulo: 9 de dezembro de 1933, p. 4.
275
A glorificação das sociedades paulistanas. Getulino, Campinas: 18 de novembro de 1923, p. 3.
115
acompanhada de sua família, e o redator chefe do jornal (sr. Augustinho E. dos Santos), chegaram à festa
paulistana às 21, 30 horas. Na “gare da Luz” foram recepcionados por “senhorinhas e cavalheiros”,
representantes das diversas associações e “grande número de pessoas”. Durante as apresentações
ofereceram “innumeros ramalhetes de flores naturaes” à “Miss Getulia”.
Antes de seguir para o salão Itália Fausta, Moraes passou pela “confortável residência” do sr.
Paranhos. A solenidade ocorrera por volta das 23 horas. No saguão do Itália Fausta, as “senhorinhas”
cobriram de flores a “representante de belleza Getulia”, que foi conduzida pelo braço do sr. Ruy de
Paula, quando subia as grandes escadarias para dirigir-se ao salão de honra, onde dançavam ao som da
“excellente orchestra” do maestro Carlos Cruz, que entregou à Lais “corbelhas de flores”. Às duas horas
da manhã ofereceram “um buffet improvisado no palco scenico do salão”, uma espécie “de farta mesa de
doces regada a finíssimos vinhos”. O baile encerrou-se às 5 horas da manhã276.
No dia seguinte Lais passeou pelos principais pontos da Capital, assistiu a missa das 12 horas no
largo de São Bento e depois seguiu para um “lauto almoço” programado na casa do sr. Eduardo
Paranhos. A culinária ficou “sob a direçção” da hábil D. Cândida, que obedecia “a um bem feito
cardápio”277.
O Kosmos, “orgam official do Grêmio Dramático e Recreativo”, além de recepcionar Lais e a
comissão campineira resenhou algumas impressões sobre o concurso de beleza do Getulino e a
vencedora. Ao transcrever as impressões de Abílio Rodrigues (do Kosmos), o Getulino aproveitou para
difundir a opinião dos homens sobre a mulher negra ideal para a representação do concurso de beleza.
Segundo o escritor Abílio Rodrigues, os traços de Lais condiziam “com a simplicidade do seu olhar”, as
suas palavras eram as de quem sabia exprimir com “franqueza e fidelidade” o “sentimento da alma”,
“despida de preconceitos irrisórios”, de “sorriso amável e um olhar meigo” que demonstravam “muito
bem ocultar um coração bondoso, preparado para as ações boas”. Foram esses atributos que levaram o
“Getulino” a cumprir um dever, um dever de encontrar uma mulher bela não só fisicamente, mas com
predicados “na alma” e no “intellecto”, para a completa formação do ser mulher. O concurso
empreendido pelo “Getulino” serviria para “elevar a classe”278.
A vida de Lais de Moraes no posto de representante de beleza continuou a ser comentada por
Lino Guedes em outra nota.
Neste instante de conflitos devido à notoriedade de Lais, seria necessário que a condecorada
afirmasse definitivamente o seu posto de beleza, era preciso lembra-la do compromisso de sempre ceder
276
A glorificação das sociedades paulistanas. Getulino, Campinas: 25 de novembro de 1923, p. 1-2.
277
Getulino, Campinas: 25 de novembro de 1923, p. 1-2.
278
Lais de Moraes. Getulino, Campinas: 6 de janeiro de 1924, p. 1.
116
notas para o Getulino, principalmente a do casamento, ou melhor, a da profissão do homem escolhido
para o casamento: “um cartão visita” do esposo, assinado por Lais, “de nome gracioso e belo”. 279 . O
Progresso também informou a respeito do “Contrato Esponsalício” da senhorinha Malvina Alves.
Malvina “contractou casamento com o Sr. Domingos Roberto. A noiva Miss Progresso 1930 era filha do
sr. Fernandes Alves e de sua senhora Maria F. Alves”280. Era comum estes jornais emitirem também notas
contendo a data de comemoração do aniversário das primeiras colocadas. Foi por meio dessas notas
sociais que descobrimos os tratamentos diferenciados dados pelo “Getulino” às aniversariantes:

Deflue no dia 11 do andante a data genethlíaca da senhorinha Alice de Campos, que no


concurso de belleza aberto por esta folha, brilhantemente conquistou o segundo logar.
Felicitando a gentil nataliciante o Getulino almeja-lhe mil aventuras 281.

Deflue hoje a data genethlíaca da senhorinha Petronilha Gomes dos Santos. Portadora
de raros dotes de espírito e de coração, a nataliciante no concurso aberto pelo Getulino
por uma somma de votos, alcançou galhardamente o quarto logar. Entre as numerosas
felicitações que por certo recebera a senhorinha Petronilha, das pessoas de suas
relações, incluímos as nossas282.

Além de Moraes, foi Luiza Andrade quem recebeu um tratamento especial. Contou para o seu
destaque no jornal o seu elo de ligação com os proprietários dos jornais:

Festeja no dia 9 andante o seu natalício a senhorinha Luiza de Andrade, Sobrinha do sr.
Leopoldo, Christino de Martinho Andrade, sendo os dous últimos proprietários desta
folha. Cumprimentando a distincta nataliciante, que é premio de belleza ao concurso
que ultimamente abrimos, cujos echos reboaram por todo o nosso paiz, enviamo-lhes os
nossos283.

Cabe, portanto, perguntarmos quem ganhou o segundo concurso de beleza feminino promovido
Getulino, e se realmente o concurso aconteceu. O evento pretendia congregar as numerosas “famílias
pretas”, que militavam, em volta da “palma da belleza” em 1926. Na única nota que encontramos
constam as regras de eleição (o cupom) e um significativo título: Qual a mulher mais bella de São
Paulo? 284.

279
Progresso, São Paulo: 8 de julho de 1924, p. 1.
280
----------: fevereiro de 1931, p. 4.
281
Getulino, Campinas: 13 de janeiro de 1924, p. 1.
282
----------: 10 de fevereiro de 1924, p. 1.
283
Getulino, Campinas: 6 de julho de 1924, p. 1.
284
----------: 13 de maio de 1926, p. 4.
117
De uma certa forma, o Progresso acatou a responsabilidade de eleger a mulher negra mais bela
da Capital. O concurso de beleza criado pelo Progresso revelou a tentativa de mostrar para o negro que,
no espaço das sociedades negras, o seu físico seria aceito e cultuado e, mais especificamente, que o físico
das suas mulheres seria homenageado. Tentou de forma menos debochada do que o concurso masculino
dO Clarim d’Alvorada falar da comunidade negra. Para participar do concurso bastava à candidata ser
uma associada e uma moça de "boa família" (quesito da associação), que em breve um admirador (a) da
sua beleza enviaria para a redação seu nome escrito no cupom do concurso:

Miss Progresso
Seguindo o exemplo dos nossos collegas do Getulino de Campinas, abrimos hoje um
concurso para apurarmos qual a moça preta mais bonita de São Paulo.
A vencedora, num festival que se realizará no dia 1 O. de Janeiro. Além de conferirmos o
título de Miss Progresso, serão entregues diversos prêmios, offertas de casas
comerciais.
O que vai ser o concurso do Progresso, informamos mensalmente os leitores, que hoje
nada mais tem que fazer, senão cortar o coupon abaixo e remetel-o á nossa redacção 285.

Pelas proximidades da Barra Funda, Santa Cecília e Vila Buarque, a festa foi organizada com a
intenção de marcar as localidades no instante da condecoração da vencedora. Comerciantes amigos (casa
Otto Schoeinbach e o Photo Raffaeli), raridades na época, se propuseram a colaborar na premiação da
vencedora, assim como Lino Guedes (Laly) prometeu trazer um espetáculo para o dia da comemoração.
Entre as candidatas de "família" marcou presença uma mulher de parentesco com o proprietário do
jornal, Ruth C. Wanderley:

Miss Progresso. Grande é a ansiedade em saber qual a senhorita que conquistará esse
título
A lucta portanto está travada tendo lances interessantes que iremos registrando
opportunamente.
A casa de Otto Schoeinbach, já convidou o nosso redactor social para ir escolher um
mimo que por intermédio do Progresso será offertado aquella que conquistar o primeiro
logar.
O Photo Raffaeli Internacional, fará uma ampliação da Miss Progresso.
Ainda outros prêmios farão parte do grande patrimônio que está reservado a mais
Bella.
Ao que parece sob a direcção artística do Sr. Messias Ferreira durante o vesperal, será
levada a scena, o rideau de Laly, Jornal Fallado, onde, entre um ambiente de arte luxo e
espírito, vê-se como se faz um hebdomadário.
Até o dia 20, receberam votos as senhorinhas:
Clarizia 23 votos
Malvina Alves 20 votos

285

Progresso, São Paulo: 31.10. 1929, pp. 4.


118
Zenaide B. de Andrade 19 votos
Alice 18 votos (...)286.

Até o final do concurso, que durou de outubro de 1929 a fevereiro de 1930, as notas
permaneceram no jornal para lembrar a comunidade da votação, das premiações e do dia da
comemoração. O jornal resolveu prorrogar o período de eleição do concurso para arrebatar mais
candidatas. Cerca de 16 mulheres participaram do evento:

Miss Progresso
O interesse despertado pelo certamen que abrimos, para escolher entre as senhorinhas
bellas, a quem deve ser dado o título de Miss Progresso continua intenso.
Assim attendendo a solicitações que nos foram feitas, resolvemos deixar para Fevereiro
a apuração final dando prazo assim que as votações montem a cifra respeitável.
A lista dos premios, serão accrescentadas mais algumas prendas que na proporção que
nos chegarem às mãos, daremos publicidade.
A festa dedicada a Miss Progresso revestir-se-a de brilho excepcional, estando os
encarregados de leva-la a bom termo, desde já elaborando o programma (...). 287

Focalizamos, na nota anterior, uma frustração do Progresso com a “cifra das votações” do
concurso. Projetava alcançar, então, uma quantidade considerável de candidatas e de eleitores. Talvez
almejava para o concurso “Miss Progresso” a mesma expressão numérica do concurso instituído pelo
Getulino. Em termo numérico a soma dos votos do concurso “Miss Progresso” (1.738-
aproximadamente) foi bem menor se comparado com o resultado do Getulino (7.384).
A festa ocorreu no salão “Brinco de Princezas” e fora programada para acontecer próxima dos
dias carnavalescos: essa data daria um glamour maior no instante da condecoração, pois os convidados
de exímia família, além de fartarem-se com as surpresas reservadas estariam liberados para cheirar lança
perfume e participar das batalhas de serpentinas:

Miss Progresso
A sua Miss Progresso, offerece no dia 22, à rua da Conceição, 5 um grande baile que
será rythimado por excelente jazz de professores.
Além de renhidas batalhas de serpentinas confettis lança-perfumes, outras surpresas
estão reservadas para a festa.
Os convites, as exímias famílias podem procura-los á rua Maria Theresa, 10 (Res. Do
sr. Euclydes S. dos Santos)288.

286
Progresso, São Paulo: 24.11. 1929, pp. 3.

287
----------: 31.01. 1930, pp. 4.
288
Progresso, São Paulo: 15 de fevereiro de 1930, p. 2.
119
Finalmente chegou o dia da condecoração das representantes de beleza289. Na "festa simples e
tocante", a senhorita Laís de Moraes (representante da beleza campineira) entrou nos amplos salões da
rua Conceição pelo braço de Benedito Florêncio. Às onze e meia da noite as danças foram paralisadas e,
entraram em cena, a senhorita Malvina Alves, Beatriz e Lina Xavier de Carvalho, que foram saudadas
por entusiásticas salvas de palmas. Feitas as apresentações, Laís de Moraes pôs a faixa simbólica de
“Miss Progresso” 1930 em Malvina Alves. Estiveram presentes importantes líderes negros, tais como:
Gervasio de Moraes, Jayme de Aguiar, Euclydes Santos e Eusébio de Oliveira. O evento foi de grande
importância para a comunidade. Os professores do jazz-band, anunciados na nota anterior não estiveram
presentes, em seus lugares apresentaram-se os "Sertanejos Paulistas" junto com o grupo "Revistas
Paulistas". "As dansas, depois desses actos, prolongaram-se até o ouvidar dos gallos"290.
Faltou por parte da nota anunciar se os comerciantes citados cumpriram a proposta de entrega de
prêmios às vitoriosas, se os organizadores do concurso foram aos estabelecimentos buscar os prêmios. A
escrita deixou evidente que as vencedoras receberam prêmios, mas não explicitou os tipos nem os
patrocinadores.
Antes do dia da festa, os “progressistas” entrevistaram as eleitas em suas casas. As vencedoras
aproveitaram a ocasião para denunciar a situação das mulheres frente ao preconceito: do qual serviam
como simples exemplo de beleza para o movimento negro (simples exemplo enfatizado pelo
entrevistador). Para elas, as companheiras tinham algo mais a demonstrar. Malvina Alves, primeira
homenageada e entrevistada na Avenida Angélica, disse que não era com orgulho que recebia o título de
“Miss Progresso”, mas com satisfação: porque era cheia de responsabilidades. Isto é, “toda a mulher”
gostava “de sacrifícios” e “a faixa simbólica” era “uma cruz”. Em seguida agradeceu aos repórteres por

289
O Progresso divulgou apenas, na nota do resultado, os nomes e os votos das doze primeiras candidatas: Malvina Alves (204
votos), Beatriz X. de Carvalho (183), Levica da Silva (175), Evangelina X. de Carvalho (174) Iracema Santos (170), Clarizia
Soares (130), Nair Vieira (128), Alice Silva (128), Ruth C. Wanderley (120), Ritinha Baptista (118), Nenê Bordine (104),
Rosalina Aquino (104). Constaram nas primeiras listas de votação os nomes de Maria Olívia da Silva, Felicia Assis, Lina
Xavier de Toledo e Zenaide B. de Andrade.
290

Progresso, São Paulo; 15.02.1930, pp. 3. Ver figuras 8, 9, 10 e 11 das vencedoras do primeiro concurso de beleza do
“Progresso”.

120
marcá-la com o título, para que vissem nela, especialmente suas coleguinhas, “não um typo de belleza”,
mas “a imagem apagada”, que encarnava “todas as virtudes da abnegada Raça Negra”, a que pertencia
“prazeirosamente”. No final do diálogo, “os lindos olhos de Miss Progresso, como dois cysnes pretinhos,
nadavam em lágrimas”. Chorava não pela “honra” que investiram nela, e nem por ela, mas pela sua
“gente”, e em particular, pela mãe preta que deveria “ser tratada com carinho”. Acreditava que se a
sociedade brasileira venerasse a “mãe preta, pelas noites indormidas que passou com as maiores figuras
do Brasil Infante, as filhas legítimas” dessa escrava seriam tratadas com justiça.
Já Beatriz X. de Carvalho mal acreditou na sua vitória ao ser visitada pelos “progressistas”. Foi
logo dizendo, sorridentemente, que o segundo lugar do concurso era de Clarizia ou Malvina. Confirmada
à sua colocação, “encheu toda a sala” de sua casa “com um sorriso argentino”. Um dos entrevistadores,
usando uma espécie de gíria da época, confirmou que nenhuma candidata teria o desprazer de tirar o
brilho da boa colocação de Carvalho. “Não compro bonde, quem é que teria o mao gosto de empannar o
brilho de seu certamem tornando-se a vice Miss Progresso”. Beatriz aproveitou a oportunidade para falar
“com enthusiasmo dos valores da Raça Negra”: lembrou-se de “Áurea Pires, a poetisa preta, que escrevia
com alma as mysticas poesias que” enriquecia “a literatura nacional”. Em seguida pediu para “os
senhores que” caminhavam “na vanguarda das grandes emprezas”, acrescentarem “mais um grande
movimento em favor da mulher preta”. Como se dissesse que a mulher negra estivesse precisando sair do
interior do seu lar para participar da vida pública: “Ella precisa libertar-se mais uma vês. Ir para a
regência das escolas, para os escriptorios, para o caixa dos estabelecimentos commerciaes, para a
bilheteria dos cinemas, para os Centros Telephonicos, enfim, para os logares em que possa por à prova a
sua indiscutida capacidade de intelligência” 291.
Nas páginas do Progresso, em que estão incluídas as entrevistas, as imagens quase apagadas do
microfilme mostram as primeiras vencedoras bem trajadas (com o corpo todo coberto). A primeira
colocada, Malvina Alves, tinha um tom de pele claro, cabelos curtos desencaracolados, lábios e nariz
finos. O fotógrafo do jornal procurou retratar todo o seu rosto, enquanto os corpos das outras duas foram
retratados de forma global; a segunda, Beatriz X. de Carvalho, apresentou um tom de pele mais escuro, o
cabelo alisado e curto, nariz e lábios menos finos. A terceira fotografada (Evangelina X. de Carvalho)
apresentou as mesmas características da segunda. Tudo leva a crer que era irmã gêmea de Beatriz X. de
Carvalho.
Em virtude da quantidade de pessoas que pôde reunir em torno do concurso anterior, o Progresso
optou pela realização de um segundo concurso de beleza. Os critérios para a eleição de uma segunda
291
Progresso, São Paulo: 20.08. 1930, pp. 1.

121
representante de beleza negra permaneceram os mesmos. Entretanto, este segundo concurso diferenciou-
se do primeiro, pois foi estendido para as cidades do interior, possibilitando a participação das negras
não paulistanas. O jornal justificou esta iniciativa mais como maneira de elevar o “moral da raça” através
da exposição das mulheres negras de “boa família”, e não apenas como um simples espaço condecorador
do físico feminino. A pretensão do concurso combinava com a fala da vencedora do primeiro concurso,
isto é, queria denunciar a “imoralidade” que reinava no mundo das mulheres e o desamparo a que
estavam submetidas. Vejamos estas idéias na fala de Malvina Alves contida no título da entrevista que
concedeu ao Progresso: “precisamos cuidar das moças de côr - flores que estiolam sob o peso do trivial
nas estufas senhoreais”:

Miss Progresso
Dando cumprimento ao nosso programma, que é elevar, por todos os meios a moral da
Raça Negra, abrimos hoje, como fizemos no ano passado, o nosso concurso, para a
escolha da Miss Progresso (...).
As classificadas em 1O. logar nas cidades do interior concorrerão nesta capital, ao
título de Miss Progresso.
Nas edições subseqüentes daremos mais informações sobre o concurso cuja finalidade,
repetimos é elevar a moral da raça homenageando a mulher negra (...) 292.

Do mesmo modo que São Paulo, Piracicaba, Rio Claro e Itapira elegeram suas mulheres,
respectivamente a “Rainha da Espuma, a Princesa do Oeste e a Linda”, para participarem do fervoroso
concurso de beleza feminino instituído pelo Progresso. Não é de se admirar que de São Paulo as
participantes interioranas levaram informações sobre o que se discutia nas organizações negras, e/ou de
suas cidades elas traziam informações concernentes à atuação negra. Esse espaço pensado, a princípio,
como um nobre lugar de culto à beleza negra foi tomando outras proporções, redefinindo-se como um
espaço de discussão das questões que afligiam o corpo negro e a sua representação, mas, sobretudo,
refletor do papel da mulher negra na família, no trabalho e na sociedade. Com a entrada das concorrentes
interioranas, o concurso passou também a estimular a concorrência entre as próprias candidatas no
processo de afirmação dos corpos. Ou seja, os concursos contribuíram para ampliar as discussões sobre a
beleza negra e o interesse em classificá-la e julgá-la:

Miss Progresso - Vae tomando proporção a nossa iniciativa


Grande era a expectativa em torno do nosso concurso de belleza.
Assim logo nos primeiros dias do mês, considerável foi o número de cartas que foram
enviadas do interior pedindo informações mais detalhadas.

292
Progresso, São Paulo; 30.11. 1930, pp. 2.
122
Enquanto no interior o movimento toma vulto, não é também menos na Capital, onde
nos bairros se prevê uma acirrada luta.
Até ontem as primeiras horas receberam votos as senhoritas:
Leontina Martins Bonilha 11
Zaira Assumpção Mattoso 9
Nair Barbosa 8 (...)293.

Uma reportagem expressou a forte concorrência das localidades e das candidatas no processo de
arrebatamento do título, manifestando o desejo delas em conquistar o título que lhes eximiriam do
quadro das “estioladas” pobres e moradoras de rua.
A seguir, nos deparamos com uma nota na qual aparecem os rostos de duas candidatas,
provavelmente o rosto da primeira e da segunda colocadas, e o resultado da apuração final do segundo
concurso “Miss Progresso”. Consta neste texto que Leontina Martins Bonilha recebeu 481 votos, Maria
Apparecida de Moraes 436 e Cecília Martins Cruz 395. O escritor da nota afirmou que os “progressistas”
se sentiam felizes “com o vulto a que assumio” o concurso. Pois, conseguiram, “escolher uma
senhorinha que além da belleza physica” detinha “a belleza moral e intellectual”. Esta “senhorinha,
durante um anno” seria “a representante da Raça que soffreu para o engrandecimento do Brasil”. Os
leitores haviam compreendido a intenção do jornal. Os votos, a princípio raros, augmentaram, depois
consideravelmente. Na fase final, a luta para a conquista de votos, travou-se entre as duas primeiras
colocadas. O movimento no interior foi bem interessante. Piracicaba ao invés de escolher a sua
candidata à eliminatória resolveu offerecer seus votos à senhorinha Martins Bonilha. Gesto idêntico teve
Rio Claro, para com a senhorinha Maria Apparecida Moraes. No próximo número publicariam uma
entrevista de cada uma das candidatas, pela qual poderiam “avaliar o cultivo intellectual das misses que
o Progresso elegeu. À Miss Progresso, 1931” seria oferecido pela direcção do jornal, um baile que se
realizaria somente em junho294.
Na última reportagem não temos as manifestações do dia da condecoração da vencedora, a nota
apenas revelou alguns pormenores da vida de Leontina Bonilha, moradora da Rua Visconde de Inhaúma
(Saúde). Análoga às vencedoras dos concursos anteriores, queixou-se para o Progresso da forma como
viviam os negros na Capital, desta vez reclamando da amena participação desta comunidade nos bancos
escolares, fator que desde muito cedo havia retirado sua participação do mundo da instrução formal. Em
decorrência da desconcertante situação partiu para o autodidatismo, lendo romances e obras políticas.
Junto à instrução solitária, análoga às moças de “família”, desenvolveu ainda trabalhos caseiros, entre
293
Progresso, São Paulo: dezembro de 1930, pp. 2.
294
Progresso, São Paulo: abril de 1931, pp. 2.

123
eles a costura, que lhe garantia um pouco de conhecimento sobre roupas. Assim, aproveitou o momento
para dizer que gostava da cor preta e fez alusão ao rosa, porque o rosa tinha um toque mais feminino,
ingênuo e infantil. Ela realmente aparentou ser mais vaidosa do que as antigas misses, sempre
reclamando e preocupando-se com o ângulo da foto, com a maneira pela qual iriam expor o seu corpo no
jornal295.
Na década de 30, as mulheres negras ocuparam um espaço privilegiado nos concursos de beleza
promovidos pelas sociedades negras da cidade de São Paulo e do Estado de Minas Gerais, nos quais
foram eleitas também as Rainhas frentenegrinas:

A Delegação da F. N. B. da cidade de Muzambinho, acaba de eleger e coroar a sua


rainha. A escolha recaiu na pessoa da exmia snrta. Raquel Dionísia que é uma das mais
ardorosas batalhadoras – padrão de exemplo – das frentenegrinas da linda cidade
mineira, Bravos! 296 Comentando/Rainha

Na cidade paulistana,

também a sede central da F. N. B., durante o memorável “Chá de maio” promovido


pela Comissão de Moços, elegeu a sua Rainha. A eleita que venceu em um empolgado
plebiscito, foi a senhorinha Saara Rodrigues, apreciada reclamadora que tanto tem
brilhado na ribalta frentenegrina e nos palcos desta capital.
Comentando/Rainha

As mulheres negras, na primeira metade do século XX foram, além de empregadas domésticas,


donas-de-casa, esposas, participantes ativas dos movimentos negros: organizadoras de sociedades
recreativas e culturais, professoras, palestrantes. Mas é flagrante o reconhecimento do seu posto de
representante de beleza negra, tanto para as sociedades negras quanto para a sociedade, ainda que o
impacto das atividades das associações negras tenha sido diminuto na sociedade:

Se todas as delegações elegeram as suas respectivas rainhas, breve, teremos um numero


bem elevado de magestades, tal é o numero de delegações que a F. N. B. possue. A’
essas duas rainhas, eu que também sou de sangue azul, me prosterno numa reverente
curvatura e saúdo-as cordialmente.
Com
entando/Rainha

295
O que nos disse Leontina Bonilha, que conquistou o título de "Miss Progresso". Progresso, São Paulo: 30.08.1930, pp.
2. Ver figuras 12 e 13 das vencedoras do segundo concurso de beleza do “Progresso”.
296
A Voz da Raça: São Paulo, julho de 1937, p. 2.
124
Ao tentarmos buscar uma explicação da palavra rainha dentro do aspecto embelezamento, para o
jornal A Voz da Raça, percebemos a estratégia de colocar suas mulheres, vencedoras das eleições
internas do concurso da F. N. B., no posto máximo da representação da beleza negra. Nessa mesma
perspectiva, a tentativa foi tornar aquelas mulheres representantes da rememoração à beleza negra,
pregando sobremaneira o culto ao corpo negro, o corpo que comportava, na opinião do escritor da nota,
“sangue azul”, azul no sentido nobre: talvez, de legítima representante da nacionalidade brasileira.
Antes de formularmos generalizações acerca das mulheres brancas e do tamanho de suas notas
nestes jornais alternativos, devemos dizer que Yolanda Pereira, talvez, tenha sido a única mulher de um
concurso internacional de miss que saiu da linha da contemplação dos militantes enquanto simples
exemplo de beleza feminina, e destacou-se, exatamente, por chegar ao topo do posto da beleza (Miss
Universo). Posto pouco alcançado pelas mulheres consideradas de características negras. Ela mesma
autodenominou-se negra, ao dizer que foi recebida em sua terra natal pela sua “mãe preta” depois da
conquista do título, e que sentiu vontade de abraçar a “Miss Progresso” e toda a gente de ancestrais
negros. “Queria abraçá-la, enlaçando assim toda essa gente, compassiva e boa, que enche de poesia o
Brasil grande de nossos avôs”. Porém, o certo é que sua fama lhe concedeu destaque entre o meio negro,
destaque igualmente concedido às misses negras; obteve direito à fala no Progresso e junto com os
militantes propôs-se a arrecadar fundos para a construção da herma a Luiz Gama. Ainda pronunciou-se a
respeito do “fervor dos corpos dos homens” paulistanos em contraposição aos corpos frios dos ingleses.
Além de falar em prol da comunidade negra, o que ela fez foi registrar sua assinatura em leques que
seriam leiloados e entregues para duas senhoras de “exímia família” (famílias João Alberto e Anhaia
Mello); o pronunciamento em torno da construção da estátua de Luiz Gama comoveu tanto as sociedades
negras quanto a sociedade global297.
Na Revista Cultura Querine, provavelmente nome de uma mulher, teceu severas críticas aos
concursos de beleza femininos ou especificamente ao concurso de beleza que ocorreria, por ocasião do
carnaval, na “cosmopolita e laboriosa Piratininga”. Um “desfile de mulheres bonitas” iria “atrair a
curiosidade popular”. O concurso pouco interessava à autora, pois todos percebiam “as razões pelas
quais os homens às vezes” faziam os concursos de beleza femininos. Os organizadores dos concursos
tinham “negócios” ou “interesses” a explorar durante a coroação das mulheres. Assim como não havia
quem não percebesse e não sentisse que esses concursos concediam “privilégios à raça branca. Isto é tipo
de raças brancas. Amarello, pretos, azeitonas, ou luscos-fuscos” nos desfiles não figurariam. Portanto
não havia razão “para se fazer concurso dessa natureza”. Este seu questionamento parece se dirigir aos
297
Miss Universo e a herma a Luiz Gama. Progresso, São Paulo: 31.05. 1931, pp. 2. Ver figura 14 de Yolanda Pereira.

125
concursos da sociedade branca, pois admitiu que os negros não organizavam concurso para coroar “a
mais bella”, entretanto, informalmente, elegiam suas mulheres bonitas. Demonstrando desconhecer os
diversos concursos de beleza promovidos pelos negros no Estado de São Paulo. Logo seguiu
argumentando que as mulheres negras e mestiças não precisavam ser eleitas nos concursos. Elas já
ocupavam, por natureza, o posto de “almas encantadoras nacionais”. As mulheres

negras, mulatas que provieram de um só destino, mulheres de feições joviaes que


passam por nós prendendo as nossas atenções visuais pelo borborinho plangente de
suas graças, teem já por natureza inspirar, as suas eleições e as suas glórias. Porque
elas representam no cenário das nossas tristes vidas, as almas consoladoras dessas
vidas. Seus olhos como um par de cristais do Oriente parecem revelar os nossos
destinos. Almas encantadoras nacionais, alimentando esperanças, embalam o porvir e
os seus corações humildes (...). Elas, nessa seleção hão de sentir-se felizes em serem
eleitas efetivas, a quem damos a coroa da nossa fidelidade e as eternizamos nos tronos
dos nossos corações298.

O Progresso registrou mais uma nota sobre um concurso de beleza, ou melhor, transcreveu que
os jornais cariocas protestaram contra o critério de eleição da representante de beleza. Numa região do
nordeste, escolhiam uma mulher aparentemente branca. Era, então, a cor da pele que agia na
determinação fenótipica de um corpo. Neste sentido, o caso do Ceará foi bem ilustrativo:

Coisa Interessante
Os jornaes do Rio verberam o Ceara por ter escolhido a sua Miss, entre as moças
louras, da terra de Iracema.
No norte do Paiz, é commum ver-se brasileiros legítimos, loirinhos como trigos.
Mas o mais surprehendente é ver-se filhos de pais caboclos ou cabras apresentarem
laivos de ouro no cabello duro e liso ou mastigado ou até carapinha.
Perto de Fortaleza, na Pajuaçara, há filhas de cablocos loiras, mas de um loiro de
trigo, um loiro escandinavo.
Aliás, o Ceará é entre outras terras brasileiras onde há menos negros.
Os pretos retintos são raros. O que há muito são cabras, filhos de pretos com caboclo,
ou como se diz lá, de jacaré com cobra299. As nossas eleitas

No caso do Ceará, a recriminação em torno da figura do miscigenado provocou a constituição de


denominações corporais desumanizadoras, ou melhor dizendo, essas denominações expressaram que o
miscigenado foi gerado a partir da relação sexual entre uma cobra e um jacaré. No imaginário da
sociedade cearense, o corpo da mestiça era representado de maneira animalesca - como um réptil

298
As nossas eleitas. Revista Cultura, São Paulo: abril de 1934, número 4 e 5
299
Progresso, São Paulo; 28.07. 1929, pp. 2.

126
rastejante, o que concedeu vitória às aparentemente brancas. Aqui está expresso na imaginário da
população cearense a idéia do mestiço como ser hibrido negativado.
Avançaremos na questão da mistura de traços, para mostrar que houve na época pessoas de pele
morena valorizadoras dos traços brancos, que acreditavam ser unicamente de “descendência européia” 300,
apesar da explícita descendência mestiça.
A tendência é considerar execrável a postura desses indivíduos “menos escuros” de fugir do
grupo mais discriminado. A tentativa não é justiçar a postura daqueles mestiços, mas dizer que nunca foi
fácil tornar-se um negro mobilizador.
Pereira de Queiroz afirma o quanto é dificultosa a ascensão das pessoas bem escuras de pele. No
seu entender, é tal fator que propicia uma vantagem para os “mulatos”, pois, dos mais acentuados aos
mais claros, ocuparam no Brasil uma posição superior. Neste ponto a autora faz uma importante
distinção entre os traços e a cor da pele, considerando que a pessoa “de traços negróides” (nariz
achatado, lábio grosso, cabelo encarapinhado), mas cuja cor da pele não é carregada, tem mais facilidade
na ascensão sócio-econômica, aufere privilégios, em relação àquele cujos traços podem ser finos, mas
cuja cor da pele tende para o negro. Quem mais se aproxima dos fenótipos brancos aufere privilégios na
sociedade301.
Os argumentos para expressar a identificação do mestiço com o grupo negro giravam em torno da
pele, do cabelo, dos traços, da vestimenta, do sentimento de solidariedade para com o negro e do poder
aquisitivo, revelando que os militantes compreendiam que o mestiço era exatamente um negro, porque a
sociedade também o repudiava. E por isso mesmo os mestiços tentavam se apresentar na forma de um
índio ou de um branco, principalmente, os de posição social elevada, que podiam se diferenciar dos
mestiços e negros pobres pela vestimenta e pela adoção das mais requintadas técnicas de maquiagem
corporal, sendo desta forma ao mesmo tempo achincalhados (na avaliação dos que cultuavam os traços
negros), e aceitos na avaliação de brancos e negras (que valorizavam os padrões brancos de
embelezamento). A introjeção dos mestiços biologicamente no grupo negro permeou as suas escolhas
políticas; assim, ao aderir às lutas dos negros contra o branco, era imediatamente reconhecido na
comunidade de fenótipos negros.

300
Essa mistura de traços para Pereira de Queiroz, no Brasil, é alarmante, por isso fica “difícil falar de negros puros e de
brancos puros”. É mais prudente utilizar o conceito de “indivíduos aparentemente brancos”, isto é, com traços finos, cabelos
lisos, cor de pele menos escura, e de indivíduos “aparentemente negros”, de pele muito escura. Revista Ciência e Cultura, Op.
Cit., pp. 648.
301
QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. Revista Ciência e Cultura, Op. Cit., 648
127
Esta forte recusa da identidade negra pelos mestiços no período fez o autor seguinte louvar,
dentre os mestiços, a postura distinta de Viriato. Benjamim Costallat apresentou Viriato Correa como
símbolo de resistência ao padrão de beleza corrente na sociedade:

Parabéns, Viriato!
E Viriato proclama e confessa ser um homem de côr.
Viriato diz que a homenagem que recebeu se estendesse a todos os homens pretos do
seu Estado. E atribuiu a sua eleição, não aos méritos litterarios, não á sua actividade
jornalística, e sim, e, exclusivamente, a ser elle um representante legitimo dos negros do
Maranhão!
Parabéns, Viriato!
Você veio dar uma formidável lição a toda essa quantidade immensa de mulatos que
esconde os seus cabellos encaracolados com uma tara vergonhosa!
Você veio ridicularizar, magistralmente, você o homem de letras victorioso, o deputado
eleito, e jornalista efficiente, todos esses cavalheiros que, não sendo nada disso,
esticam, com cosmético, as suas pequenas carapinhas, e negam até a própria mãe, para
não passarem por mestiço!
Nós devemos acabar, de uma vez por todas, com esse preconceito de côr e de sub-côr.
O chinez deve se orgulhar de ser amarello, o índio deve se orgulhar de ser vermelho e o
negro de ter a côr que Deus lhe deu.
Eu só sinto não ser mulato para poder proclamal-o
Também não temos culpa de ser a côr que somos (...) 302
Benjamim Costallat

Costallat argumentou que o homem deveria desconsiderar as transformações afetadoras da obra


divina. Este seu pensamento resistente foi, no entanto, pouco contundente: logo disse que por ter sido
Correa uma figura ilustre tinha liberdade de escolher a qual padrão recorrer, e anunciou um profundo
desejo de ser “mulato” para poder enquadrar o deputado Correa na categoria do mestiço.
A idéia de Veiga dos Santos sobre a representação do que seria uma pessoa mestiça é complexa,
pois ele construiu o miscigenado de cabelos rigidamente carapinhados, descartando sobremaneira a
possibilidade desse branco-negro ter herdado dos seus descendentes, díspares nos elementos corporais,
um cabelo liso:

Mulato
Mulato, para ser bom,
Precisa ter carapinha
É um rigor a condição
Mulato sem carapinha
Vem a ser mulato manco
Não é negro, não é branco
É confusão, na certinha! (...)
302

Progresso, São Paulo: 28. 04. 1929, pp. 3.

128
Conheço muitos mulatos
Em ótima situação
Mas é gente sem jeito
Nessa dúbia situação
São brancos, mas de mentira!
São negros...mas ninguém tira
Da sua boca a confissão...
Conheço muitos mulatos em ótima situação
Quando eles passam na rua
Com o seu cabelo liso
Herdeiro da carapinha,
Aquele cabelo liso
Faz um mal a muita gente
Preta e branca, alternadamente,
Derrotando todo siso,
Quando eles passam na rua
Com o seu cabelo liso
Brancos e Áfricos avós...
Negros de brancos fugidos...
Seu caráter e seus atos
Tem de ser também fugidos
São meio cá, meio lá...
São meio lá, meio cá...
Falsificados mulatos,
Brancos de áfricos avós...
Negros e brancos fugidos

Mulato, para ser bom,


Precisa ter carapinha
Ou é falsificado
Mulato sem carapinha
Vem a ser mulato manco
Não é negro, não é branco!
É confusão, na certinha (...)Do livro inédito Alma do Negro

Se o mestiço não se apresentasse tal como em seu pensamento, seria “um mulato manco”, um ser
corporalmente confuso, sem ser negro e branco. Dentro dessa complexa representação, à figura mestiça
incorporou noções de falso e verdadeiro303 no caráter e nos atos, para enquadrar o que negava a
carapinha, mostrando que a negação dos traços negros avassalava principalmente o mestiço que estava
em ótima situação financeira. Para Veiga dos Santos era como se outros elementos corporais, herdados
do branco pelo mestiço, não tivessem tanto significados quanto os cabelos, símbolo da identidade negra.

303
Pedro Paulo Barbosa, inclusive, propôs uma concepção do que seria a verdade baseando-se na caracterização do “mulato”
traçada pelo presidente da F. N. B. No artigo “Bem entendido” assim ele escreveu : “a VERDADE para ser VERDADE
verdadeira, só mesmo sendo, o que alguém disse ‘mulato para ser bom é preciso ter carapinha’, não quero com isto cabelisar a
VERDADE, nem mesmo por os pingos nos ii, quero somente dizer VERDADES, VERDADEIRAS de todas as
VERDADEIRAS VERDADES”. A Voz da Raça, São Paulo: 11 de novembro de 1933, p.1.
129
O presidente da Frente Negra Brasileira seguiu denunciando o mestiço de posição social elevada
sem identificação com as características negras, mas comumente identificado com o grupo indígena, que
o próprio autor denominou de “Bugre”.

O Doutor Fabiano - Arlindo Veiga dos Santos


O filho da lavadeira
Neto do jongo africano
Graças a muita canseira
Da mãe que o teve em escolas
Agora o Doutor Fabiano

Doutor Fabiano, o mulato


De cabelos carapinhados
Já esqueceu o antigo fato
Diz que procede da tribo de tais índios "Ribeirinhas"

Alisou a carapinha
Que hoje está desta maneira...
E diz a qualquer gentinha
Que lhe pergunta as origens
Que é filho de fazendeira
O filho da lavadeira
Neto do jongo africano
Esqueceu a mãe obreira
Agora é filho de Bugre
E atende: "Doutor Fabiano"304 do livro Alma do Negro

“Bugre” eram os mestiços que esticavam suas carapinhas para parecer com índio. Enquanto o
militante enxergava essa posição do mestiço como um repúdio à identidade negra, o mestiço
compreendia o representar-se índio como valorização ao elemento considerado genuinamente nacional.
“Bugre”305 era, ainda, para Veiga os índios que viviam no mato. Em nome da civilização e do
nacionalismo, antes defendeu um ditador, porque Hitler “no afã violento de repor a Alemanha no
caminho de suas tradições, iniciou a campanha da afirmação prática da raça germânica, única com qual
pode contar aquela nação afim de realizar a imensa obra de resgate nacional”. Assim, fomos logo
concluindo que Veiga defendia o arianismo para o Brasil, tal qual propunham os teóricos brasileiros das
idéias racistas que vigoravam na época, e pensando, que o próprio lançava o extermínio dos negros e,
portanto, de si mesmo. Ao transpor a análise do nacionalismo do autor para Brasil, em seguida,
304

A Voz da Raça, São Paulo: 17.03. 1934, pp. 3.


305
Nas palavras de Gilberto Freyre, a denominção de bugre foi dada pelos portugueses aos indígenas do Brasil em geral e, em
particular, a tribo de São Paulo. O termo “talvez exprimisse o horror teológico de cristãos mal saídos da Idade Media ao
pecado nefando”. Pecado associado pelos cristãos ao máximo da incredulidade ou da heresia. FREYRE, Gilberto de Mello.
Casa-grande & senzala, Op. Cit., pp.119
130
compreendemos que o militante elegia o elemento negro como “tipo nacional” 306, porém num terceiro
instante fomos constatando que verdadeiramente repugnava a chegada de estrangeiros, que ditavam “leis
e conselhos de perdição”, negavam a “Gente Negra” e a formação da “Raça luso-indio-negra”: povos
que ficavam à margem da vida nacional. “Vem encrencando a nossa vida essa mania que inúmeros
imbecis têm de querer fazer da nação Brasileira um povo ariano, destruindo assim a Raça mestiça que o
povo Brasileiro é”:

Nós também temos uma raça! Se não há, como não pode haver, um só Tipo Nacional,
somos uma raça mestiça, com os nossos Negros, Cafusos, Caboclos, Negroides,
Brancoides, e (até!) os Bugres que moram no mato.
Já estávamos definidos mais ou menos na guerra holandesa, na qual demos boas lições
aos “arianos” europeus.(…).
Porquê então, não afirmamos sempre a nossa Raça negro-índio-lusa que era contínua a
ser qualquer coisa de novo e soberbo do mundo?! (…)
Aniquilemos os internacionais que querem mandar em Nossa Casa, sejam
internacionais brasileiros (de nomes) ou estrangeiros 307.
A afirmação de raça

Ficou explícito que o polêmico escritor defendeu a “mistura de raça”, assim como outros teóricos
raciais brasileiros, que viam tal mistura como solução para a “questão racial” brasileira. Entretanto
enquanto uns defendiam a “mistura racial” com os alemães, italianos, o militante apostava na mistura
com o português. É instigante dizer que, de tanto Veiga zombar da figura indígena, terminamos por
acreditar que ele elegia como “tipo nacional” o elemento descendente da mistura entre o negro e o
português. Ou seja, é plausível que idealizasse a mistura entre o negro e o português, pois foi um
ardoroso defensor da monarquia e do catolicismo..
A pesquisadora Teresa Malatian sublinhou que para o movimento patrianovista, defendido por
Arlindo Veiga, uma das conseqüências práticas da afirmação da raça brasileira seria a limitação e a
regulamentação da entrada de imigrantes no país. Estes, para serem admitidos, deveriam ser agricultores
e mesmo assim, desde que não fossem de raça muito diferente da nossa. Em suma, o que o programa de
Pátria-Nova pretendia era o saneamento da Raça e o reerguimento da Pátria por todos os justos processos
modernos, acabando com o cosmopolitismo para atingir o verdadeiro nacionalismo308.
306

Novamente, no texto “do bem comportado à descoberta da raça”, Moura enfatizou que “A Voz da Raça” chegava ao extremo
da “comparação analógica como, por exemplo, a posição de Hitler defendendo a sua raça, e os negros brasileiros, por seu
turno, defendendo também a sua”. Daí chegar ao extremo de “acreditar na necessidade do aparecimento de um Moisés do
Ébano”. MOURA, Clóvis. In: Sociologia do negro brasileiro, Op. Cit., pp. 211.
307

A Voz da Raça, São Paulo: 10.06. 1933, pp. 1.


308
ROY, Teresa Maria Malatian. A ação imperial patrianovista, Op. Cit., pp. 100.

131
Não importava aos negros, “de côr ou de coração”, as “ilusões arianas” que vinham “assombrar
os seus sonhos”. Os “arianos” queriam “instituir aqui, na Terra do Negro e do Bugre, os costumes das
gentes de outra América”. Era “direito absoluto dos construtores da nossa nacionalidade – o Bugre – o
Negro – o Português – terem partes no destino da Pátria; o Bugre por si, o negro pelo negro e o
português pelos seus descendentes”. Infeliz era “o Bugre”: abandonado ao cuidado dos governos que se
sucediam dia após dia309.
Percebe-se no discurso anterior de Veiga, bem como na analise que Teresa Malatian fez de seu
pensamento que o seu discurso sobre os problemas brasileiros delineava-se “o nacionalismo da Pátria-
Nova” pautado na afirmação da raça como principal fator de nacionalidade. A raça brasileira seria
formada por indivíduos nascidos no mesmo território, com tradições, consciência jurídica, religião,
costumes e línguas comuns310.
O escritor Pedro Paulo Barbosa dA Voz da Raça também protestava contra os mestiços que não se
afirmavam como negros, ademais, reclamava dos próprios negros e mestiços que desvalorizavam a
descendência africana e escravocrata. Reconhecer-se negro naquele momento era ter o poder de ação, de
defender as vias de ascensão social propostas pelos líderes da Frente Negra Brasileira. Existia uma
parcela de negros que rivalizava com as ações dos líderes ansiosos por conseguir o que consideravam
fundamental para a população negra paulistana:

O negro precisa de ambiente, mas de um ambiente puro e sadio, de escolas


doutrinarias, de viver respirando o ar puro e ameno dos jardins, de uma atmosfera leve,
e não o ar pesado e viciado dos porões. Precisa ainda, o que de mais útil e necessário é
a todos os povos da era moderna – O CONFORTO (sic).
Conforto familiar, conforto intelectual e espiritual.
Eugenia! Eugenia para a grandeza da raça. Eugenia!
A raça negra sob o ponto de vista familiar, sem exagero, agora é que está começando a
quebrar os grilhões infames do falso casamento, pelo sagrado das leis de Deus. E é isso
que precisamos. Porque, a nação ou a raça, que não adotar o matrimônio pelos laços
sagrados da religião está eternamente condenada a desaparecer.
Precisamos pois, como disse um grande publicista: formar a família pelo casamento, a
propriedade pelo pecúlio, a moral pela religião, a inteligência pela instrução 311.
Delírio da Covardia

Era necessário que negros e mestiços vivessem como a elite paulistana, ou melhor, idealizassem
da mesma forma que a elite paulistana viver respirando o ar puro dos jardins, uma atmosfera leve
(seguindo a risca o estilo de vida europeu). Fundamental era que os negros desfrutassem do conforto da

309
Discurso que eu não disse – Arlindo Veiga. A Voz da Raça, São Paulo: 15 de abril de 1933, p. 1.
310
ROY, Teresa Maria Malatian. A ação imperial patrianovista, Op. Cit., pp. 82.
311
A Voz da Raça, São Paulo: 22 de abril de 1933, p. 3.

132
era moderna: conforto familiar, intelectual e espiritual. O conforto da era moderna também era sinônimo
de branqueamento. Para a “grandeza da raça” o próprio autor apregoava a eugenia. Pela união familiar os
negros conseguiriam se proliferar, mas também se branquear, adquirindo, sobremaneira, os traços
brancos e os elementos culturais defendidos pela elite paulistana: a religião, a propriedade e a instrução.
Por ocasião da festa de São Benedito de 1933 realizada em Sorocaba, A Voz da Raça divulgou um
enorme texto protestando contra o péssimo costume de certos festeiros em instituírem o samba, o
batuque em frente às igrejas onde a gente negra e branca “inconscientemente” era tratada a cachaça. O
escritor frentenegrino afirmava que o seu “meio negro” era católico, gostava das festividades e
aconselhava respeito ao ritual religioso. Se os adeptos da “cultura do vício” não seguissem a religião de
Cristo ou não professassem qualquer religião, pelos menos, deveriam ser “bons brasileiros, trabalhando
lentamente pela regeneração dos costumes”. Já na festa de 1934, segundo o mesmo escritor, os festeiros
souberam demonstrar o quanto eram frentenegrinos e bons católicos. A festa de 15 de janeiro de 1934 foi
uma das melhores de Sorocaba, muito solene e impressionante foram todos os atos de culto
principalmente a procissão que percorreu o itinerário de costume. Não houve na véspera o barulhento
samba, o que demonstrava que a gente negra havia compreendido que os reclamadores frentenegrinos
tinham razão de sobra.312
3.2 - Festas e danças

José Correia Leite, tinha certeza que a forma de trajar-se e comportar-se, nos dias de festa,
garantiria um lugar melhor para o negro na sociedade, ao comparar o modo de vida dos associados
negros da Barra Funda com os desassociados negros do Bexiga. Correia Leite assustava-se ao ver os
moços e as moças da sociedade “Elite Flor da Mocidade” bonitos e bem arrumados, pois estava
“acostumado com aquelas negras lá do Bexiga naqueles porões, naquela labuta tremenda, naquela
promiscuidade, aquela roupinha de brim”313.
O polêmico militante conduziu os comentários elogiadores para outra localidade: narrou que no
Largo do Rosário havia um grande número de negros passeando aos domingos, negros que depois
freqüentavam os bailes. “Era bonito ver as negras de saia-balão, redonda, engomada. Cada uma queria
ser mais vistosa que a outra. Muitas eram cozinheiras de forno e fogão de casa de família importante. Os
homens também procuravam se trajar bem e alguns tinham uma boa situação social” 314.

312
Flores do campo. A Voz da Raça, São Paulo: 17 de fevereiro de 1934, p. 4.
313
QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. Revista Andes, Op. Cit., pp. 656.
314
CUTI. E disse o velho militante José Correia Leite. Op. Cit, pp. 44.

133
Aliás, foi através das reuniões dançantes que surgiram “certos meios negros”. Por volta da
década de 20, existiam dois tipos de reuniões: a promovida pelas sociedades negras, funcionando nos
salões do centro da cidade e que eram freqüentadas “por funcionários públicos de pequena categoria e
por motoristas das famílias tradicionais”. Os homens e as mulheres “bem vestidos, de maneiras delicadas
e finas rodopiavam elegantemente ao som de uma orquestra. Ao lado desse tipo de baile, existiam
reuniões em casas particulares (em geral cortiços) por ocasião de casamentos, aniversários e batizados”,
freqüentadas e promovidas pelos negros que “usavam roupas de brim, tinham maneiras bruscas e
dançavam com sanfona uma dança bastante tosca”. O pesquisador Renato Moreira fez uma comparação
entre o baile das associações negras, que chamou de baile de clube, e o baile de gafieira, caracterizado
pela presença de homens de todos os grupos sociais, inclusive com a presença, na sua grande maioria de
domésticas e comerciarias. E como os padrões sociais da gafieira se diferiam dos dominantes, a
sociedade tendia a ver a gafieira de “modo generalizado, como antro de imoralidade e perdição”. Por este
motivo, nos bailes de clube era terminantemente proibido dançar o “quadradinho” e o “modo de dançar
sambas nas gafieiras”, bem como transgredir as formas de vestimenta (as mulheres deveriam usar meias)
315
.
Maria Aparecida Silva, traçando a trajetória da Associação Cultural do Negro (da cidade de São
Paulo) e de outras associações concluiu que, como os seus interlocutores não eram padrão de beleza ou
de elegância para a sociedade racista, quando se preocupavam com o vestuário, na verdade, estavam
preocupados com sua auto-estima. Então, ao rememorarem os bailes e seu “glamour”, os seus
interlocutores buscavam valorizar culturalmente e etnicamente aquela coletividade da qual fizeram parte.
Essa valorização estética divergiu das visões que acreditavam ter o negro copiado os padrões brancos de
embelezamento da época, isto é, a pesquisadora compreendeu, que os negros buscavam desfrutar das
novidades do ambiente em que procuravam fixar suas raízes316.
Para boa parte dos dirigentes negros a indumentária era um critério para a participação das
festas. Nos bailes das sociedades não havia cobrança de ingresso, mas o traje era a rigor completo: “os
homens deveriam portar a calça listrada, paletó cinza ou azul-marinho, um colete branco, uma camisa
engomada, com colarinho dobradinho”. As mulheres frentenegrinas do Rosas Negras, que organizavam
os bailes na Liga da Lombarda ou no salão das Classes Laboriosas, por exemplo, exibiam-se “todas

315
MOREIRA, Renato Jardim. “Brancos em bailes de negros”. São Paulo: Revista Anhembi, ano VI, n. 71, v. XXIV, out. 1956,
pp.275-278.
316
SILVA, Maria Aparecida Pinto. Visibilidade e respeitabilidade: memória e luta dos negros nas associações recreativas e
culturais de São Paulo (1930-1968). Op. Cit., pp. 128.
134
vestidas de branco com uma rosa no peito” 317. O festival dançante promovido, mensalmente, pelo Grupo
Rosas Negras proporcionava momentos agradáveis,

a boa música, num florido salão, seduzia e encantava as damas elegantes, que em
vestidos luxuosos e multicores, borboleteavam: irradiando a sua graça feminil. Rapazes
elegantes e perfilados como lírios, metidos em alinhadas jaquetas à “Torre”,
ostentavam o seu “aplombe” como cravos dominadores de canteiros. Era bonito o
baile: (..) volteios compassados na dormência de um tango, no andante de um fox
sincopado, ou na cadência de uma valsa que se dansava...pisando calos e...corações. O
que desagradava era a maneira pouco elogiável de certos cavalheiros fricoteiros que se
portavam inconvenientemente. Esses energúmenos despidos de elegância e de civismo
não pertenciam à Escola de Educação e de Cultura que era a F. N. B318.
Comentando-Bailes

O escritor d A Voz da Raça admitiu ainda que “o pessoal das cidades pequenas” gostava, em
dias de festa dos “vestidos novos de chita, das gravatas cor de anil, dos sapatões amarelos e rangedores”.
J. Sotnas, o escritor da nota, não via nenhum mal nisso, mas “o povo das cidades grandes, maldosa e
injustamente” costumava chamar o pessoal que se vestia neste estilo de “caipirada”319.
Havia uma grande mistura de trajes, ainda que alguns depoimentos tentassem classificar as
festas das sociedades negras como um lugar de fina elegância. Depois, é sabido que nem todos os
participantes tinham condições de comprar ornamentos da moda européia e/ou ornamentos adequados
para os ambientes de festa. Ficou explícito que todas as formas de trajar-se simbolizavam desavenças,
pois as festas eram freqüentadas por pessoas de diferentes preferências e procedências.
A versão de rememoração e afirmação aos corpos negros, por exemplo, se pronunciou contra as
mulheres que se apresentavam ornamentadas de acordo com os padrões urbanos de embelezamento nas
diversificadas festas da cidade. Zé da Esquina (nome fictício de um militante) reconstruiu claramente
esta passagem, desdenhando as brancas, negras e “mulatas” que cogitavam as novidades européias: os
pós-de-arroz, os cremes, os alisamentos e as toilletes exóticas. Dos homens, a vestimenta a rigor do
almofadismo: paletó abotoado:

La vae páu!...
Estamos presentemente numa situação repleta de novidades. Há uns dois annos
passados, já se cogitava em todas as cidades européias innumeras novidades às
mulheres e aos homens; hoje as referidas modificações têm alcançado e continuam
diariamente a agregar concorrentes nesta cidade tão progressista.

317
BARBOSA, Márcio. Frente Negra Brasileira, Op. Cit., pp. 51.
318
A Voz da Raça, São Paulo: junho de 1937, p. 2.
319
História, A Voz da Raça, São Paulo: julho de 1937, p.3.
135
É a senhora moda que em tudo mette o seu bedelho, dominando por completo todos os
viventes racionais.
Eil-as que surgem...
Por ventura não vê o Zé da gandaia diariamente passar satisfeito pelas vias da nossa
Paulicéia dengosamente vestido ao rigor do almofadismo, com seu paletó abotoado
quase no final do boleado e grande a multidão de creoulas e mulatas e branquinhas que
aos sábbados e domingos, as quartas e quintas vão aos bailes com seus toiletes tão
exóticos!
Algumas, referindo-me às mais claras não lhe proporcionam boas risadas? Santo
Deus!... e a carapinha diminuta, o pó de arroz, os cremes e as lisadeiras pagas por tão
pouco!
Patrícias! Deixem de phantasias sem limites. Vão aos bailes? Pois bem, esta diversão é
a nossa predilecta. Não assistimos ao nu artístico e muito menos o Velasco: porem
divertimos sempre, essa diversão necessita um pouco mais de polidez 320.
Zé da Esquina

Lino Guedes considerou que muitos negros ainda incorporavam o modelo repudiado, casaca de
botões dourados, smoking de contrastes na gola, modelo que em sua opinião só arrebatava pessoas sem
um ideal de vida. Esse “intelectual do meio negro” desdenhava que os negros sobrepusessem o fascínio
pela moda ao conhecimento da escrita:

Moda Exótica
Ora o passado...que passou passou. Cuidemos do presente. Vamos dar satisfação à
moda. Arranjar um negro. Bem retinto. Vestil-o de Grom ou Hindu. Cores bem gritantes.
Ensinar-lhes gestos, salamaleques, alguns passos de dansa Oriental, para as recepções.
Uma casaca pesada de botões doirados. Um smoking com contrastes na gola. Esses
trajes para o dia commum. Bonito!
Quantos não se prestarão a esses caprichos da moda! Esses são senhores sem ideal.
Perderam a noção do eu. Para elles tanto faz se lhe dé água de um rio que corra para
cima ou para baixo... Precisamos ter um ideal. Viver unicamente para elle (...). O ideal
é o criador dos grandes homens porque é o impulsionador dos grandes feitos.
Coitados... se prestam a isso é porque não sabem ler e escrever (...)321

Nos bailes, dançar ao som da música era bem visto por uma parte dessa imprensa porque
contribuía para o fortalecimento e o delineamento do corpo. Contudo, alguns estilos e locais de danças
foram desaconselhados para a comunidade negra. Entre as críticas ao culto das danças, parte dos letrados
argumentava que os seus associados deveriam dar prioridade ao desenvolvimento do intelecto.

320

O Clarim d’Alvorada, São Paulo: 15.11. 1925, pp. 2.


321
O Clarim d’Alvorada, São Paulo: 26. 04. 1926, pp. 3. A satirização à moda estrangeira feita por Guedes compôs o seu
poema dedicado às mulheres negras ou à uma mulher negra: “Dictinha – (...) desta localidade e´s a mais bela pretinha: se não
fosse profanar-te, chamar-te-ia...francesinha”. GUEDES, Lino. O canto do cysne preto, Op. Cit., pp. 15. Ver figura 18 –
imagem de Lino Guedes.
136
Percebe-se, entre os motivos já arrolados acima, que a dança, não era recomendada para as
famílias associadas devido à ocorrência de alguns tumultos nos ambientes. Alguns deles deviam-se à
diferença de estilo que causava risos entre os participantes. Sem dúvida, o estilo de dança também fora
avaliado e reprovado nestes locais, principalmente aqueles que na realização dos movimentos
expressavam a sensualidade do corpo. Entre as variadas danças, a mais repudiada fora o Charleston,
sendo até mesmo proibida pelos salões da Elite da Liberdade, do Auri-verde, da União Militar e do
Barão do Rio Branco. Os conselhos médicos influenciaram nesta desaprovação, ao argumentar que tais
movimentos poderiam fazer mal ao bom funcionamento do organismo, argumentação exagerada, pois ao
rememorar os movimentos da dança não conseguimos visualizar no que poderiam ferir o bom
funcionamento e o pudor do corpo negro322.
Horácio da Cunha buscou a origem do Charleston na tentativa de provar o quanto a dança tinha
um caráter amoral. Realizada, a princípio, entre trabalhadores e trabalhadoras rurais negros americanos,
o charleston carecia da presença feminina e masculina em círculo.

Essa dansa é a creação dos pretos da América do Norte: ao anoitecer depois de


terminar os seus serviços que é a plantação do algodão, reuniam-se em frente as suas
casas, e ali para passar algumas horas alegres, alguns cantavam pilhérias, e algumas
pretas conservavam-se no chão, e alguns rapazes formavam um círculo e dansavam o
charleston e os demais acompanhavam batendo palmas323.

Esta regra e seus movimentos desagradaram as famílias nobres de Chicago quando a dança foi
difundida por Miss Kimber:

Nessa occasião, achava-se em Carolina do Sul, a filha de um Industrial, Miss Bessy


Kimber, regressou à Chicago, e começou a executar os taes passos dessa dansa que se
chama Charleston.
Dahi a pouco, Miss Bessy Kimber, introduziu-o nos palacetes das melhores famílias, nos
salões e nos palcos, onde obteve a maior consagração mundana.
Nova York adaptou essa dansa com enthusiasmo, embora diversos médicos tenham dado
opinião que, essa é nociva à saúde (...).
Vedes meus patrícios de cor, o que asseveram os médicos, sobre o charleston?
E se não tomarmos uma severa enérgica medida contra essa dansa da morte; eu tenho
certeza que muitos patrícios de cor, terão de dansar no Araçá e no São Paulo 324.
O Charleston

322

Charleston. O Clarim d’Alvorada, São Paulo: 22.08.1926, pp.4.


323
O Clarim d’Alvorada, São Paulo; 26.09.1926, pp. 2.
324
O Clarim d’Alvorada, São Paulo; 26.09.1926, pp. 2.

137
O próprio Cunha trouxe o desabono emitido pelas famílias norte-americanas para com a
referida dança, dizendo que o que foi desaprovado na alta sociedade de lá deveria ser desaprovado na
sociedade daqui. Frederico Baptista de Souza, apesar de salientar a diferença econômica entre a
sociedade norte americana e a sociedade brasileira negra, compactuou da opinião do autor anterior,
considerando que em termos de moral, pudor e fineza as sociedades deveriam estar no mesmo patamar.
Concordaram ainda em enfatizar a importância do conselho médico dispensado ao corpo negro,
assegurando primeiro que se as pessoas desobedecessem aos conselhos científicos estariam correndo
risco de morte em vista do grande mal provocado pela dança: “o charleston sugava muita energia do
passista”. Pelas reclamações de Souza nota-se que nem todas as sociedades ou famílias acatavam as
ordens expressas de aniquilamento da dança, nos permitindo dizer que a modalidade ocupava um lugar
muito especial para os dançarinos, ou seja, de maneira sedutora e febril ia adquirindo adeptos pelos
salões e pelas casas familiares.
Houve quem dissesse que a polícia colaborou na proibição da dança, pois na época a
corporação fazia interferências pelos salões da sociedade, marcados pela “imoralidade”. Os comentários,
da sociedade mais ampla, afirmavam que a ação da polícia ocorrera bem antes da deliberação proibitiva
dos dirigentes das sociedades negras, de modo a argumentar, não terem os líderes e os participantes,
noção do que era determinado como boa conduta e que “só agiam movidos por terceiros”. Em
contraposição a tal questionamento, o autor enfatizou a rapidez da ação tomada pelas associações e
apresentou para seus leitores as danças de um outro tempo que foram esquecidas, bem menos feridoras
da moral paulistana. Estiveram entre as danças, de orgulho dos antepassados, a Polka, a Mazulka, a
Quadrilha e, particularmente, o Lanceiro, tão cativadoras e obrigatórias nas festas antigas quanto o
indesejado charleston nos anos 20 e 30. Junto com o Elihu Ruth e a Nacionalina, as danças praticadas
pelos antepassados foram trazidas para aquele presente na intenção de estimular a sua prática nos salões
da comunidade negra, pensadas pelo autor, como ocupadoras da desencantada dança norte-americana.
Souza parabenizou as comunidades de Campinas e Jundiay por terem aderido à Quadrilha e ao Lanceiro.
Tinha verdadeiramente horror às danças trazidas pela “modernidade”325.
Análoga à idéia dos escritores dO Clarim d’Alvorada, em trazer exemplos de estilos de danças
antigas para a comunidade paulistana, um autor do Progresso rememorou de forma negativa a congada
africana desconhecida pelos paulistanos, mas de conhecimento dos interioranos, talvez, os responsáveis
em parte pela alteração dos aspectos de sua composição. De qualquer maneira, esta dança era
significativa para a comunidade negra paulistana porque permitia que se revivesse um pouco da

325
O Charleston. O Clarim d’Alvorada, São Paulo: 15. 01. 1927, pp. 5.
138
experiência africana em relação ao som propagado pelos tambores, pelas cantigas e pelas usanças: “os
enfeites coloridos e espadas, que com o tempo incorporou nos corpos robustos o terno branco e o chapéu
de palha”. Durante o cerimonial da dança, o rei negro era a figura central, descrita de forma capenga para
denunciar a caótica situação da África.

Pobre rei de uma realeza transitória que come o pão de cada dia varrendo as ruas da
cidade. Na função, elle passeia, orgulhoso, a coroa de metal ordinário, ativo no manto
escarlate que as traças roeram. É elle o senhor do bando. É seu o espectro torto. E
pouco se lhe dá a lama que respinga da estrada para os reais bigodes. Nem lhe ocorre a
vassoura dura nem se lembra da miséria má 326.

As roupas e os versos da cerimônia da congada causaram um completo estranhamento ao autor:


o próprio denominou os versos e as roupas “como coisas ignoradas da pátria africana (Congo e
Senegal)”. Mais detalhadamente, os versos cantados com grande força pelos participantes,
homenageadores das almas dos mortos na escravidão, ele taxou de louvadores “dos deuses bárbaros”.
O procedimento utilizado por Jayme de Aguiar, ao registrar o ambiente festivo da comemoração
da abolição, foi no sentido de trazer para os leitores da imprensa o valor e a forma apropriada daquela
festividade:

13 de maio
Tínhamos sociedades que davam as festividades de hoje o seu valor, o largo da
felicidade era o logar escolhido, para o samba, calpa e congadas, contemplava-se
então, velhos arcados pelos janeiros idos, com suas carapinhas de neve, e as avosinhas
sorridentes, com seus vestidos engomados e cachimbinhos a deliciar, prasenteiras, a
fumaça das cachimbadas que se deslisavam em borbotões serenos, no azul da noitada
de som de bumbos, urucungos, viva a Princesa Isabé, quentões, etc. 327.

Verificamos que as festas promovidas pelas sociedades negras e registradas nestes jornais
alternativos praticamente desprezavam as que ocorriam nos candomblés paulistanos, praticamente
desprezavam aspectos das festas consideradas da cultura negra. Bastide compreendia que o estudo das
festas deveria contemplar uma descrição dos vestuários dos orixás. E estes se explicariam pelos mitos. A
descrição congregaria não somente os vestuários, mas ainda os braceletes, os colares, os acessórios das
danças, “sabres ou leques”, e a forma de sua utilização. Neste estudo poderia ser acrescentado “a queda
dos santos, as transformações da fisionomia e dos costumes, a duração do transe e a duração da festa”.
Não poderia faltar também uma análise da “iniciação”, do momento da entrada do candidato no santuário
326

Progresso, São Paulo: 20.04. 1930, pp. 4.


327
O Clarim d’Alvorada, São Paulo: 13.04. 1930, pp. 2.

139
até os ritos da saída e que compreenderia, obrigatoriamente, o estudo dos banhos, quer dizer a magia das
ervas, considerada por alguns como o que há de mais importante na religião do candomblé. Interessaria
esmiuçar a vida cotidiana dos terreiros, com seus momentos agradáveis, o da preparação das festas: a
lavagem das roupas litúrgicas, a preparação das refeições pelas cozinheiras espertas, a arrumação dos
caprichosos penteados das mais jovens feita pelas mais velhas. Enfim, os seus momentos de consultas, a
busca da cura328 pelos doentes, etc329.
Nina Rodrigues nos esclarece que cada confraria ou colégio se distingue por preceitos especiais,
seja pela alimentação, pelos deveres religiosos (culto de um santo ou orixá) ou pela vestimenta. Assim,
“Oubatalá requer vestimenta toda branca, com grossas voltas de contas brancas, em torno do pescoço e
dos pulsos (...). Sango vestimenta branca e vermelha e voltas de contas brancas e vermelhas alternadas.
Yê-man-já, contas brancas translúcidas. Osun, vestes brancas e contas amarellas”. O pesquisador
afirmou que sempre via nos candomblés, e no Gantois não era diferente, um leito no qual existia uma
grande quantidade de adornos e vestimentas de santos de cores variadas, desde a seda e o veludo custoso
mais até a chita barata. “Faixas bordadas de búzio, voltas collossaes de contas e missangas, enfeites
diversos”. Sendo assim, depois de “conhecido o santo e designado o pai ou mãi de terreiro”, o iniciado
preparava o guarda-roupa do santo. Preparados os animais dos sacrifícios, a iniciada (o) tinha de tomar
um “banho mystico, verdadeira purificação lustral”, em que trocava as vestes por outras novas. Colocar
as vestes e o ornamento representava receber a personalidade do seu deus ou santo. Segundo o estudioso,
o banho, “em certos ritos africanos”, mesmo no Brasil, “se dá com infusões de plantas que gozam de
propriedades e virtudes fortemente estimulantes, e são tidas como plantas sagradas”. Para se obter ou
desenvolver a “faculdade medianica” são necessários “banhos, ingestão de substâncias dotadas de
virtudes especiais, jejuns prolongados, abstinências sexuais”, etc330
Nas notas das festas da imprensa negra, dos bailes e dos espetáculos ganharam expressão
algumas personalidades negras, por terem através da cultura expandido o que era considerado a arte da
comunidade. Teremos, por exemplo, a condecoração de Josephina Baker, que com seu corpo escultural
de muita agilidade na dança, conquistou o público internacional (Paris, Viena, Berlim, Budapeste). Ela

328
Quase sempre se referindo de forma pejorativa ao candomblé e seus participantes, o pesquisador Rodrigues anotou que “a
ação do feiticeiro” era voltada mais para a cura das moléstias. Notava-se que “o feiticeiro, o adivinho, o sacerdote, o médico e
o sábio começaram por se confundir num mesmo indivíduo”. Na sua visão o “negro bahiano” estava ainda “num estado de
evolução mental em que não” admitia “que fora das mortes violentas” havia “moléstias e mortes naturaes”. A moléstia para os
negros era “sempre produto da encantação, de um feitiço”. RODRIGUES, Nina. O animismo fetichista dos negros bahianos,
Op. Cit., pp. 92.
329
BASTIDE, Roger. “Estudos afro-brasileiros – Monografias de candomblés”. In: Revista do Arquivo Municipal, Op. Cit., pp.
89.
330
RODRIGUES, Nina. O animismo fetichista dos negros bahianos, Op. Cit., pp. 92.

140
foi descrita como uma mulher negra que conseguiu através da arte estabilizar-se na vida, por isso os
jornais informaram sobre a sua confortável estadia nos locais de espetáculo (se passeava de carro, se
ganhou bem com a apresentação, etc). Em um telegrama, a artista informou para o Progresso sobre sua
estadia em Berlim local em que fora inaugurar um salão de baile. Tinha necessidade de se apresentar
para a comunidade paulistana como exemplo de uma personalidade negra em ascensão. Em vista do seu
grande sucesso pelo mundo o Progresso atribuiu a ela o título de criação dos estilos de dança, inclusive,
do tão criticado charleston:

Condessa Josephina Baker


A Vênus do ébano. Um telegramma da Americana informa que está em Berlim, a famosa
dansarina negra Josephina Baker, creadora do charleston e do black-botton. A Vênus
do ébano norte-americano fora especialmente na terra de Guilherme II, inaugurando
um grande salão de baile. A dansarina negra passeia a tarde pelas ruas de Berlim, num
custoso carro, tirado por um avestruz331.

“A representante da vitória da raça no Ocidente” cativou o público pelo exotismo do seu corpo:
“trepidante, diabólica na sua cerimônia de comicidade, chocante na sinceridade do seu primitivismo e,
ademais, perturbadora na graça esculptural do seu corpo de ébano”; e pelo seu estilo de dança,
enquadrados na categoria de arte ligeira por parte dos europeus. A arte ligeira apresentada pela artista
ligou-se ao que fora cultuado pelos seus descendentes, mesclada com a novidade e originalidade dos seus
movimentos e ritmos, mas que por outro lado desagradava e contrapunha-se à arte tradicional parisiense.
As figuras contrárias às apresentações da artista, as reverenciadoras do estilo mais tradicional da arte
ligeira européia foram causadoras da sua saída intempestiva de Paris. Em outros tempos, os cultuadores
da arte européia foram causadores da morte das artistas Regine Flory, Claude France, Jenny Golder, que
não suportaram tais protestos. Josephina Baker contagiava a multidão e suas apresentações causavam
furores: era como se os espectadores não suportassem as emoções provocadas pelo corpo da artista e
nem o prolongado sucesso de uma mulher mestiça. Em Budapeste, por exemplo, “houve uma reacção
contra a triumphadora. Acharam que suas vestimentas eram demasiado ligeiras. Fallaram em moral, em
perversão dos costumes e outros termos que se vão tornando archaicos”, sendo preciso a intervenção do
secretário de Estado, Sr Issekut´, para Baker prorrogar as suas apresentações332.

331
Progresso, São Paulo: 7.09.1924, pp. 2.
332
A musa negra e os seus triumphos na Europa. Como um secretário de estado beijou a mão de Josephina Baker.
Progresso, São Paulo: 16.11. 1928, pp. 2.

141
Junto com Josephina Baker, Florence Millis encantou Londres (o London Pavillon), Paris (O
Folies Bergères) e o autor do texto. As norte-americanas foram ganhando destaque na modalidade da
dança e colocando em risco o título dos russos. Júlio Dantas, como os outros escritores que escreveram
sobre esta arte, continuou a homenagear estas duas artistas tendo em vista o destaque que elas
conseguiram para a comunidade negra no cenário internacional, pois para ele, embora praticadas por
estas artistas de renome, o charleston, o fox-trot, o quick-time e o black-botom, ainda eram danças
consideradas excessivamente deturpadoras, sobretudo, do contato discreto entre os sexos, da elegância e
das boas maneiras. Ademais, essas danças eram consideradas sambas selvagens333, convulsões
epilépticas, que foram perdendo pouco a pouco o seu caráter artístico africano, perderam a vivacidade
dos ritmos “da raça bárbara” e passaram a consagrar mais os batuques, o requebro e a violência da
grosseira sensualidade. Estas foram as principais críticas de Dantas, já que todas as características
apresentadas dessas danças novas contemplaram a graça e a harmonia da beleza branca (representada
pelos corpos mestiços norte-americanos, que faziam “os movimentos de Kangurú”, os movimentos do
ventre e das ancas, “a ondulação desregrada, de cada passo, os trejeitos, os pinchos, os uivos”). Nota-se
que Dantas quis rememorar vários aspectos da danças africanas (os maxixes: “tão bellos, cuja
voluptuosidade tem um caráter accentuadamente africano”), embora questionasse a sensualidade que
visualizava nos seus movimentos334.
Josephina, “a negra de pernas geniaes”, desagradou os cultores da arte clássica na Argentina e os
abominadores oficiais brasileiros da expressão da sensualidade (“partido clerical brasileiro – o
espantalho da bailarina negra”). Em todo caso, foi nota do Progresso porque poderia servir de espelho
para suas leitoras, se estas aderissem à moda norte americana, em termos de saltos, passos e movimentos.
Assim, desmerecia atenção as reclamações dos latinos americanos pautadas pelo pudor, porque a
América era a mais liberada em termos de amor e seus derivados, apesar da hipocrisia existente.

333
Samba selvagem é uma idéia que esteve presente no texto denominado de “Samba, o hynno nacional da malandragem”
divulgado pelo “Progresso”. Nele percebemos idéias paradoxais concernentes a propagação desse estilo musical. A princípio o
escritor enfatizou que o samba era “a mais bella música do mundo”. Depois, como se estivesse falando do ponto de vista de
um estrangeiro, enfatizou que o samba exprimia “todo o calor e toda a moleza dos trópicos” que se alongavam “nos seus
rithmos ingênuos, na força, das suas grandes anedotas bárbaras e cheias”. Nas canções e nos movimentos corporais do samba
permaneciam “a selva lasciva e desordenada e a vã exuberância”. O samba era uma filosofia de vida equatorial. E, como todas
as coisas naturais, dotado de complexidade: “as suas dansas syncopes musicaes, os seus retorcidos exquisitos, são ao mesmo
tempo, expontâneos e complicados”. Dentro dessa “música caprichosa, esboçava-se uma philosofia brasileira” que era preciso
não desprezar. As letras dos “nossos sambas cantavam todo um corpo de pensamento”: a indiferença pelo dia de amanhã, o
horror ao “artificialismo da civilização europea” e a resistência as “desventuras do amor”. Uma das originalidades do samba
era “a de ter transformado as questões econômicas em assunto de poesia popular”. Notava-se a insistência em se falar da falta
de dinheiro. A crise passou a constituir “fonte de inspiração para a música maliciosa. Creou-se, mesmo, uma gyria especial”.
Por isso “Nota” e o “Com que roupa”, assinalaram época. Progresso, São Paulo: 31 de julho de 1931, p. 2
334
Progresso, São Paulo; 16.12.1928, pp.2.

142
O autor anônimo anterior também denominou de inteligente a Europa, por aceitar a propagadora
das novas danças, sem fazer as ressalvas dos autores anteriores sobre a manifestação do público
internacional quanto à apresentação do tipo de arte da Josephina. Estava por trás desse esquecimento a
idéia do progresso que tinha da Europa, ou mais especificamente de Paris, isto é, desejava de qualquer
maneira tecer elogios à localidade. “Na cidade mais requintada do mundo, ella causa as delicias da
multidão exigente, que tem visto, através da terra, tudo o que a indústria e a intelligência dos homens
pode descobrir”. Discordou ainda dos escritores que escreveram desvalorizando as danças
contemporâneas em prol das antigas. “Os dançarinos de outrora tinham a furlana, o minueto, os
lanceiros, as quadrilhas...Tudo isso era a exteriorização das almas e das imaginações cavalheirescas de
outros tempos”. Entendeu como positiva a propagação do americanismo, o surgimento do novo nas
danças: “hoje o estado do mundo é outro”. O cortejo ao americanismo acarretou na desvalorização das
danças antigas, por isso saudou os movimentos da artista trazidos dos seus antepassados norte-
americanos. 335
Littlie Esther foi mais uma bailarina do porte de Josephina e diferenciou-se de Baker somente no
início da carreira, bem no início da carreira, porque prematuramente enveredou-se pelos caminhos da
dança (tinha menos de dez anos). Ela, na opinião do escritor, conquistou o público (do “Empire”, do
“Cirque d’Hiver e do Moulin Rouge”) pelas características “próprias da raça negra” ou das dançarinas
negras da época, que apesar de apresentarem uma estatura baixa, ao subirem no palco encantavam a
multidão: “cheia de musicas desenfreadas, de requebros vertiginosos, de attitudes surprehendentes”. A
“rapariguita precoce” eletrizava “no turbilhão da sua dansa (...), cantando em inglês evocações de lendas
da sua terra (as margens do Mississipi)”. Temos a impressão de fazer o autor parte do grupo dos que
discordavam da propagação das danças norte- americanas. Portanto, pela construção da escrita passa a
dizer, embora também encantado com as expressões das artistas, que a “pequena Esther” morreu de tanto
praticar o “charleston endiabrado” pelos “cabarets” de Paris. Sendo os culpados de sua morte também os
briguentos administradores de sua vida, que desde cedo a colocaram no mundo profissional da dança336.
Na segunda apresentação de Baker, em Paris, aconteceu sua consagração nos moldes da
apresentação de Little Éster, no momento em que introduziu no espetáculo de dança o canto, apetrecho
assegurador da sua consagração frente a um público maior, ou com o canto arrebatou aqueles que
ficavam indecisos frente a sua figura, que visualizavam apenas o seu estilo de dança denominado de
exótico. A própria fala da artista para os parisienses desmistificou a antiga imagem sedutora que

335
Uma grande artista, cujo valor não pode ser medido por inteligências medíocres. Progresso, São Paulo: 23.06.1929,
pp. 3.
336
Brilhou lá no ceo mais uma estrella negra. Pequena rival de Josephina Baker. Progresso, São Paulo: 31.10.1929, pp. 5.
143
visualizavam em seu corpo. Na verdade, suas palavras indicaram que, no recinto de alegria, ela desejava
passar a cada espetáculo, um pouco da sua felicidade, um pouco do que expressava o seu coração. Era
como se Josephina Baker ressaltasse o exotismo esperado pelo público mas, ao mesmo tempo, o
colocasse em questão.

Novamente rainha
A <reentre> de Josephina Baker, em Paris, foi uma authentico triumpho.
Venceu em toda linha.
Victoriosa da primeira vês, como mera attenção exótica, a pequena de São Luiz teve
cuticas agora que só se dedicam as grandes artistas.
E a condessa esta nesse rol,
Oscar Duffene e Henri Varna montaram <Paris S’Amuse> no Casino, para o
renascimento da creadora do charleston.
O que ella fês menos foi dansar. Fês a comediante em <Scktches> e cantou com aquela
sua voz de creança, uns versos que a fizeram Rainha de Paris mais uma vês:
“Je voudrais, a chaque spectateur
Donner, quel bonheur!
Un peu de mon coeur”337.

Orígenes Lessa escreveu um texto indicativo de que também na cidade carioca havia discordantes
das apresentações de Josephina. No Rio de Janeiro “Fulano” posicionava-se contra a apresentação das
“mulatas”, enquanto “Sicrano” para justificar a apresentação delas na Companhia das Rosadas
argumentava, sentimentalmente, ser natural e tradicional expor a beleza das “mulatas” (mesmo que sem
rosto) como símbolo nacional, bem como o remelexo, o batuque e o samba: de maneira a interferir o
autor a favor, através da longa fala de “Sicrano”, do tipo de papel desenvolvido pelas mestiças no palco
(incluindo Josephina), exatamente por elas conseguir seduzir o público mais emproado da Europa:
“velhos e fidalgos de puro sangue”. Ele “esqueceu” de completar a escrita argumentando que a imagem
da mestiça sedutora era construída pelo público sem a aprovação da artista, pois, se voltarmos à fala de
Josephina, dirigida ao público parisiense, compreenderemos que sua intenção não era completamente
expressar a sensualidade e sim transmitir um pouco de felicidade a partir da dança a cada espetáculo.
Então, não eram as apresentações das mestiças que as estragavam no palco como replicou “Fulano”, e
sim os olhares, os sentimentos e as opiniões do público que deturpavam as suas imagens, criando outras
completamente representativas dos seus desejos; sem esquecer ainda que tais imagens de exotimo eram
corroboradas pelas artistas para conquista da fama e propagação de sua arte e cultura338

337

Progresso, São Paulo: dezembro de 1930, pp. 3.


338
A Revista “Raça Brasil” trouxe no mês de março de 2001 uma pequena reportagem sobre Josephina Baker que reforça a
imagem de sensualidade difundida pela imprensa negra. O título diz: “Josephina Baker volta a ser moda em Paris 75 anos
depois”. Em comemoração ao aniversário de morte da musa dos anos 20, o Espaço Drouot-Montaigne organizou uma
144
Pré, Pro e Post Josephina
O homen amarrotou o jornal
-Pouca vergonha
-O que é isso fulano (...)
Isto! Isto! E agitava o jornal carioca
Sicrano correu os olhos. Era a noticia da recente organização no Rio, de um novo
elenco de revista <Companhia de Mulatas Rosadas>.
-Companhia de que?
-De mulatas rosadas!
-E o que tem isso?
-Nada! Signaes dos tempos simplesmente. Num tempo em que o theatro anda aos
trambolhões, vilependiando, vae-se arrebanhar um bando de mulatas para levar ao
palco? É demais! É mais clamoroso.
-Não exaggere. Você fala inspirado pelo preconceito (...)
Fulano sorria, amargurado, pelas rugas do rosto.
-Você – continua Sicrano – é injusto. Você não pode imaginar o thesouro das
possibilidades artísticas que há na raça negra. Todos os nossos músicos tinham sangue
africano. As nossas melhores canções são frutos da nostalgia, da ternura, da bondade
do preto. Veja o sentimento que a arrumadeira sabe dar as modinhas que canta. E pense
na bahiana! Pense no samba, no batuque, no remelexo! A revista brasileira sempre
viveu da mulata, falsificada ou não. Pense eu como a Josephina, que nem sequer era
brasileira, conseguiu transformar a cabeça da Europa, enlouqueceu multidões, alucinou
velhos e emproados fidalgos de puro sangue. E não me venha mais falar em pouca
vergonha... Olhe accenda, fume e não seja bobo.
Fulano accendeu. Tirou uma lenta baforada. E explicou:
-Mas dá pena, não dá?
-Pena de quem? Do Theatro?
-Das mulatas, meu velho. Se estragando no palco339.

Os elementos considerados inatos do negro difundidos por Lessa: remelexo, samba e batuque se
compatibilizaram com a fala de uma “mulata entrevistada, candidata à cantora, que expressava uma idéia
dominante na rádio Bandeirante – de que a negritude, aptidão para a música e para o ritmo são atributos
organicamente associados”340. Ou seja, a mestiça incorporou os estereótipos divulgados sobre o corpo
negro pelo rádio, assim como o Progresso, quando ratificou as idéias de Lessa divulgando o texto. Mas
nem por isso tais atributos rendiam cargos para os negros, tendo sido predominante no meio artístico a
cobrança da instrução, da etiqueta e do traquejo social. Tudo isso junto com as características físicas
definia o que era ser belo e atraente dentro de um padrão cultural. Dentro destas idealizações, o negro
ocupava o outro pólo, daí o jornal se reportar excessivamente às poucas figuras do grupo que, na esfera

exposição que relata a vida da artista na França, mostrando roupas que usava em shows no Folies Bergères e no Cassino de
Paris e expõe também a farda de subtenente da Força Aérea usada por ela. Finalizando, a reportagem diz: “Baker
revolucionou as noites parisienses ao se apresentar praticamente nua – vestia apenas um saiote enfeitado com bananas. Os
ornamentos que usava viraram moda em Paris”. Revista Raça Brasil, ano 6, n. 55, pp. 16.
339
Progresso, São Paulo: 31. 07. 1930, pp. 3.
340
BORGES PEREIRA, João Baptista. Cor, profissão e mobilidade. Op. Cit., pp. 138.
145
artística, alcançavam destaque. Os valores na época, responsáveis pela exclusão do negro no meio
artístico, se contrapunham aos estereótipos implícitos na escrita de Lessa, estereótipos abarcados neste
trecho escrito por Neusa Santos: “O privilégio da sensibilidade que se materializa na musicalidade e
ritmicidade do negro, a singular resistência física e extraordinária potência e desempenhos sexuais, são
atributos que revelam um falso reconhecimento de uma suposta superioridade negra. Todos esses dons
estão associados à irracionalidade e primitivismo do negro em oposição à racionalidade e refinamento do
branco”341.
A falsificação do corpo da “mulata” na “Revista do Brasil”, desencadeada no diálogo de Lessa,
tem muito a ver com a história do rosto enunciada na hipótese de Guatarri e Deleuze, segundo José Gil.
Por pequenos exemplos falou “daquilo que aparenta ter mera historicidade ou completa plenitude”.
Sobre a hipótese do rosto, mencionou a importância que o rosto branco adquiriu historicamente. “O rosto
seria uma invenção do Ocidente, como o rosto de Cristo”, e que é certo ser uma das características da
cultura mundial de massa, de hoje, cultura do capitalismo universal, “a produção das faces sem rosto” 342.
Isto é, a face sem rosto seria aquela já enunciada por Bonniol, que se fabrica pelos novos recursos
estéticos da cirurgia, da maquiagem, segundo o qual todos os corpos distintos dos padrões de
embelezamento Ocidental (europeu) devem se adequar.

341

SOUZA, Neusa Santos. Tornar-se negro ou as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social.Op. Cit., pp.
30.
342

GIL, José. Metamorfoses do corpo. Lisboa, Relógio D’Água Editores, 1997, pp. 172-178.
146
BIBLIOGRAFIA

AMARAL, Raul Joviano. Os pretos do Rosário de São Paulo: subsídios históricos. São Paulo: Alarico,
1952.

A ENERGIA do inconformismo. Depoimento de Abdias do Nascimento. Dionysios, Rio de Janeiro, n.


28, 1988.

ANDREWS, George Reid. Negros em São Paulo (1888-1988). Bauru - SP, Edusc, 1998.

ARAÚJO, Ari. "Por um pensamento negro-brasileiro". Estudos Afro-Asiáticos, Rio de Janeiro, n. 12,
ago., 1986.

AZEVEDO, Thales de. As elites de cor: um estudo da ascensão social, São Paulo: Cia Ed. Nacional,
1955.

BACELAR, Jeferson. "A Frente Negra Brasileira na Bahia". In: Afro-Ásia, Centro de Estudos Afro-
Orientais/UFBA, n. 17, 1996.

BAHIA, Juarez. História da imprensa brasileira, São Paulo, Ática, 1990 (2 vols.).

BANNER, Lois W. "The History of womem and beauty since 1921". In: American Beauty, Chicago: The
University of Chicago Press, 1984.

BARBOSA, Márcio. Frente Negra Brasileira – Depoimentos. São Paulo: Quilombhoje, 1998.

BASTIDE, Roger. "A imprensa negra no Estado de São Paulo". In: Estudos Afro-Brasileiros. São Paulo,
Editora Perspectiva, 1973.

---------. & FERNANDES, Florestan. Brancos e negros em São Paulo. São Paulo, Companhia Nacional,
1959.

---------."Estereótipos de negros através da literatura". In: Boletim de Sociologia, n.3, São Paulo:
FFLCH/USP, 1951.

--------. "A criminalidade negra no Estado de São Paulo". In: O negro revoltado. Abdias do Nascimento
(org.). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1978.

---------."Introdução ao estudo de alguns complexos afro-brasileiros". In: Revista do Arquivo Municipal,


XC (maio-junho, 1943).

---------. O negro na imprensa e na literatura. São Paulo: ECA/USP, 1972.

---------. “Estudos afro-brasileiros”. In: Revista do Arquivo Municipal, ano X, vol. XCVIII, 1944.

BERNARDO, Teresinha. Memória em branco e negro. Olhares sobre São Paulo. São Paulo: EDUC,
FAPESP, UNESP, 1987.
147
BERND, Zilá. Negritude e literatura na América Latina. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1987.

---------. O que é negritude. São Paulo: Brasiliense, 1988.

BERRIEL, Maria Maia de. A identidade fragmentada: as muitas maneiras de ser negro. Tese de
Doutoramento, FFLCH/USP, São Paulo, 1998.

BICUDO,Virgínia L. Atitudes Raciais de Pretos e Mulatos em São Paulo, In: Sociologia, Vol. IX, n. 3,
pp. 195-219.

BIRMAN, Patrícia. “Beleza Negra”. In: Estudos Afro-Asiáticos, n.º 18, 1990.

BOLTANSK, Luc. As classes sociais e o corpo. Tradução de Regina A Machado. Rio de Janeiro: Graal,
1989.

BONNIOL, Jean-Luc. "Beauté et couleur de la peau". Beauté, laideur, Paris: Communications, 60,
1995.

BONVINI, Emilio. “Tradição oral afro-brasileira – As razões de uma vitalidade”. In: Projeto História.
São Paulo: EDUC/FAPESP, n. 22, jun. 2001.

BORGES PEREIRA, João Baptista. "Aspectos do comportamento político do negro em São Paulo".
Ciência e Cultura, São Paulo, v. 34, n. 10, 1982.

---------. Cor, profissão e mobilidade: o negro e o rádio de São Paulo. São Paulo: Pioneira, 1967.

---------. "A criança negra: identidade étnica e socialização". Cadernos de Pesquisa, São Paulo, n 63,
nov. 1987.

---------. "A cultura negra: resistência de cultura à cultura de resistência". Dédalo, n. 23, 1984.

BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Identidade e etnia: construção da pessoa e resistência cultural. São
Paulo: Brasiliense, 1986.

BRITES, Olga. Imagens da infância, São Paulo e Rio de Janeiro, 1930 a 1950. Tese de Doutoramento –
PUC-SP, 1999.

BRITTO, Ieda Marques. Samba na cidade de São Paulo (1900-1930): um exercício de resistência
cultural. São Paulo: FFLCH/USP, 1986.

BROOKSHAW, Davi. Raça e cor na literatura brasileira. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1983.

BRUNO, Ernani Silva. História e tradições da cidade de São Paulo. São Paulo: HUCITEC, 1991.

BURKE, Peter (org.). A escrita da História. São Paulo, Editora da Unesp, 1992.

148
CANDIDO, Antônio. "Dialética da malandragem" In: O discurso e a cidade. São Paulo, Duas Cidades,
1993.

CARDOSO, Paulino de Jesus Francisco. "Abolição e branqueamento". In: Ciência Hoje, Encarte
especial vol. 8, n.48, p 228-30, 1998.

---------. A luta contra a apatia - Estudo sobre a instituição do movimento anti-racista na cidade de São
Paulo (1915-1931). Dissertação de Mestrado em História, PUC-SP, 1993.

CATÁLOGO de entidades de movimento negro no Brasil precedido de um perfil das entidades


dedicadas à questão do negro no Brasil. Rio de Janeiro: ISER, 1988 (comunicações do ISER, 29)

CATÁLOGO de exposição da imprensa negra em São Paulo (1918/1965). Pinacoteca do Estado: IEB-
USP, 1977.

CHARTIER, Roger. A História Cultural. Lisboa: Difel, 1990.

COMAS, Juan. "Os mitos raciais". In: Raça e Ciência I. Claude Levis-Strauss e outros (org). São Paulo:
Editora Perspectiva, 1970.

CORBIN, Alain. “O segredo do individuo”. Historia da vida privada – Da revolução à Primeira Guerra.
Vol. 4 (org. Michelle Perrot e Georges Duby). São Paulo: Companhia das Letras, 1994.

CORRÊA, Mariza. As ilusões da liberdade. São Paulo: EDUSF, 1998.

COSTA, Jurandir Freire. Ordem médica e norma familiar. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1989.

CUNHA, Manuela Carneiro da. Negros estrangeiros: os escravos libertos e sua volta à África. São
Paulo: Brasiliense, 1985.

CUNHA, Maria Clementina Pereira da. Ecos da folia – Uma história social do carnaval carioca entre
1880 e 1920. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

CUNHA JR., Henrique. "Uma introdução à história dos movimentos negros no Brasil". Jornal da
Cidade, Campo Grande, 4 a 10 de setembro de 1988.

CUTI. E disse o velho militante José Correia Leite. São Paulo, Secretaria Municipal da Cultura, 1992.

CRUZ, Heloísa da Faria. Na cidade, sobre a cidade - Cultura letrada, periodismo e vida urbana. São
Paulo, Tese de Doutoramento, FFLCH/USP, 1994.

CRUZ e Souza. Poemas escolhidos. São Paulo: Editora Cutrix, sem data.

ENTREVISTA de Raul Joviano do Amaral aos professores João Baptista Borges Pereira e Ana Lúcia
Farah Valente, mimeo, s.d.

DEMARTINI, Zeila de Brito. "A escolarização da população negra na cidade de São Paulo nas primeiras
décadas do século" São Paulo. Revista Andes, n. 14, 1989.
149
DOMINGUES, Petrônio José. Uma história não contada – Negro, racismo e trabalho no pós-abolição
em São Paulo (1889-1930). Dissertação de Mestrado em História, FFLCH/USP, 2001.
FANON, FRANTZ. Escucha blanco! Barcelona, Nova Terra, 1970.

---------. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: Fator, 1983.

FELIX, Marcelino. As práticas político-pedagogicas da Frente Negra Brasileira. Dissertação de


Mestrado em Educação, PUC/SP, 2001.

FERNANDES, Florestan. A integração do negro à sociedade de classes. São Paulo, Editora Ática, 1973.

---------. O negro no mundo dos brancos. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1972.

---------.O significado do protesto negro. São Paulo, Cortez, 1989.

FERRARA, Miriam Nicolau. A imprensa negra paulista (1915-1963). Dissertação de Mestrado, USP,
São Paulo, 1986.

FILHO, João Dornas. “A influência social do negro brasileiro”. In: Revista do Arquivo Municipal, ano V,
Vol. LI, outubro de 1938.

FOUCAULT, Michel. Microfisica do poder. Rio de Janeiro: Editora Graal, 1979.

FRANÇA, Jean M. de Carvalho. Imagens do negro na literatura brasileira. São Paulo, Brasiliense,
1998.

Freyre, Gilberto. Casa grande & senzala: Rio de Janeiro: Editora José Olympio, 1966.

----------. Ordem e Progresso. Rio de Janeiro: Editora José Olympio, 1959.

GAMA, Lúcia Helena (coord.). A trajetória do negro no espaço paulistano. São Paulo, Secretária
Municipal da Cultura, maio de 1988.

GARCIA, Marinalda. Os arcanos da cidadania - A imprensa negra paulistana nos primórdios do século
XX. Dissertação de Mestrado em História, São Paulo, FFLCH-USP, 1997.

GIL, José. Metamorfoses do Corpo. Lisboa: Relógio D'Agua Editores, 1997.

---------. Monstros, Lisboa: Quartzal Editores, 1994.

---------. "No pain, no gain". Cadernos de subjetividade. São Paulo: EDUC, 1997.

GONZALES, Lélia, HASENBALG, Carlos. Lugar do Negro. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1982.

GUEDES, Lino. O canto do cisne Preto. São Paulo: Typ. Áurea, 1927.

HASENBALG, Carlos. Discriminação e desigualdades raciais no Brasil. Rio de Janeiro: Graal, 1979.
150
---------. & SILVA, Nelson do Valle. Estrutura social, mobilidade e raça. Rio de Janeiro:
Vértice/IUPERJ, 1988.

HOFBAUER, Andréas. Uma história do branqueamento ou o negro em questão. São Paulo, Tese de
doutoramento, FFLCH-USP, 1999.

HORI, Ieda Marques Britto. Samba na cidade de São Paulo (1900-1930) contribuição ao estudo da
resistência e da repressão cultural. São Paulo, Dissertação de Mestrado, FFLH/USP, 1981.

IANNI, Octávio. O negro na literatura brasileira, São Paulo: Fundação Nestlé, 1990.

IRAJÁ, Hernani de. Sexualidade e Amor. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1930.

LARA, Silvia Hunold. “Blowin in the Wind: E. P. Thompson e a experiência negra no Brasil”. IN:
Projeto História. São Paulo: EDUC, n. 12, outubro/1995.

LEVI-STRAUSS, Claude. Raça e História. São Paulo, Livraria Martins Fontes, 1975.

LEITE, Ilka Boaventura. "Os sentidos da cor e as impurezas do nome: os termos atribuídos à população
de origem africana". Caderno de Ciência Sociais, UFSC, v. 8, n. 2, 1988.

LIPOVETSKY, Gilles. O império do efêmero - a moda e seu destino nas sociedades modernas. São
Paulo, Companhia das Letras, 1989.

LOBATO, José Monteiro. O presidente negro ou choque entre as raças, Romance americano do ano de
2228. São Paulo: Clube do Livro, 1945.

LOWRIE, Samuel. "O elemento negro na população de São Paulo", Revista do Arquivo Municipal de
São Paulo. São Paulo, 4 (48), pp.5-56, jun., 1938.

LUCRÉCIO, Francisco. “Memória Histórica – A Frente Negra Brasileira”. In: Revista de Cultura Vozes,
ano 83, n.º 3, 1989.

MACHADO, Antonio de Alcântara. Brás, Bexiga e Barra Funda. São Paulo: Imesp, 1982.

MAIO, Marcos Chor & SANTOS, Ricardo Ventura (org.). Raça, Ciência e Sociedade. Rio de Janeiro:
Editora Fiocruz, 1998.

MAUÊS, Maria Angélica da Motta. "Entre o branqueamento e a negritude: O TEN e o debate da questão
racial". Dionysios, Rio de Janeiro, n. 28, 1988.

MELLO, Marina Pereira de Almeida. O ressurgir das cinzas: negros paulistas no pós-abolição.
Identidade e alteridade na imprensa negra paulistana. Dissertação de Mestrado, FFLCH-USP, São
Paulo, 1999.

151
MENDONÇA, Luciana Ferreira Moura. Movimento negro: da marca da inferioridade racial a
construção da identidade étnica. Dissertação de Mestrado em Antropologia, FFLCH-USP, São Paulo,
1996.

MOREIRA, Renato Jardim. “Brancos em bailes de negros”. In: Revista Anhembi, ano VI, n. 71, v. XXIV,
out. 1956.
MOURA, Clóvis. Dialética Radical do Brasil negro. São Paulo, Ática, 1988.

---------.O negro do bom escravo a mau cidadão? Rio de Janeiro: Conquista, 1977.

---------."Organizações negras em São Paulo". In: Brasil: as raízes do protesto negro. São Paulo, Global,
1983.

---------."Organizações negras". In: Paul Singer e Vinícius Caldeira Brant (org.). São Paulo: O povo em
movimento. Petropólis, Vozes/IPEAFRO, 1980.

---------. História do negro brasileiro. São Paulo, Editora Ática, 1989.

---------. Sociologia do negro brasileiro. São Paulo, Editora Ática, 1988.

MUNANGA, Kabengele. "A utilização dos conceitos raça e/ou etnia no processo de pesquisa e suas
conseqüências epistemológicas, São Paulo, Conferência na PUC, mimeog., 1998.

---------."Negritude afro-brasileira: perspectivas e dificuldades". Revista de Antropologia, São Paulo, n.


33, 1990a.

---------. Negritude: usos e sentidos. São Paulo: Ática, 1986.

---------.Rediscutindo a mestiçagem no Brasil. Identidade nacional versus identidade negra. São Paulo,
Tese de livre-docência, FFLH/USP, 1997.

MUSSA, Beto. "Estereótipos de negro na literatura brasileira: sistema e motivação histórica". Estudos
Afro-Asiáticos, Rio de Janeiro, n.16, março, 1990.

NASCIMENTO, Abdias. O Genocídio do negro brasileiro. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1978.

NASCIMENTO, Elisa Larkin. Pan africanismo na América do Sul: emergência de uma rebelião negra.
Petrópolis: Vozes, São Paulo: EPEAFRO/PUC, 1981.

NASCIMENTO, Roseli. "A voz do velho Leite". Revista Memória. São Paulo, Departamento de
Patrimônio Histórico da Eletropaulo, Jul/dez, 1993.

NOGUEIRA, Isildinha Baptista. Significações do Corpo Negro. São Paulo, Tese de doutoramento, IP-
USP, 1998.

NOGUEIRA, Oracy. "Atitudes desfavoráveis de alguns anunciantes de São Paulo em relação aos
empregados de cor". Sociologia, São Paulo, IV-4, 1942.

152
---------. Negro político, Político negro. São Paulo: Edusp, 1992.

OLIVEIRA, Eduardo de. Quem é quem na negritude brasileira. São Paulo: Congresso nacional afro-
brasileiro, 1998.

OLIVEIRA e OLIVEIRA, Eduardo de. "O mulato, um obstáculo epistemológico". In: Argumento, n. 4
(fev.), 1974.

PADUA, Ciro T. “O negro em São Paulo”. In: Revista do Arquivo Municipal, ano VII, vol. LXXVII,
1941.

PIERSON, Donald. “A ascensão social do mulato brasileiro”. In: Revista do Arquivo Municipal, ano
VIII, vol. LXXXVII, 1942.

PINTO, Regina Pahim. Movimento negro em São Paulo: luta e identidade. Tese de doutoramento,
FFLCH-USP, São Paulo, 1993.

----------. “A Frente Negra Brasileira”. In: Revista de Cultura Vozes, n.º 4, 1996.

PEREIRA DE QUEIROZ, Maria Isaura. "Coletividades negras - ascensão sócio econômica dos negros
no Brasil e em São Paulo". Revista Ciência e Cultura, jan. 1977.

QUEIROZ, Renato da Silva (org.) & Schwarcz, Lilia Moritz. Raça e Diversidade. São Paulo: EDUSP,
1996.

QUEIROZ Jr. Teófilo de. Preconceitos de cor e a mulata brasileira. São Paulo: Ática, 1975.

RABASSA, Gregory. O negro na ficção brasileira. Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro, 1965.

RAMOS, Arthur. O folclore negro do Brasil, Demopsicologia e psicanálise. Rio de Janeiro: Livraria
Editora da Casa do Estudante, 1935.

----------.“O espírito associativo do negro brasileiro”. In: Revista do Arquivo Municipal, ano IV, Vol
XLVII, maio de 1938.

----------. “O negro e o folclore cristão no Brasil”. In: Revista do Arquivo Municipal, ano IV, Vol XLVII,
maio de 1938.

----------. “Castigos de escravos”. In: Revista do Arquivo Municipal, ano IV, vol. XLVII, maio de 1938.

----------. “As culturas negras no Brasil”. In: Revista do Arquivo Municipal, ano III, Vol. XXV, julho de
1936.

---------. “Aculturação negra no Brasil”. In: Revista do Arquivo Municipal, ano VIII, vol. LXXXV, 1942.

REIS, Letícia Vidor de S. e SCWARCZ, Lília Moritz (org.). Negras imagens. São Paulo, Edusp, 1996.

RODRIGUES, Nina. Os africanos no Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1976.
153
----------.O animismo fetichista. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1935.

ROLNIK, Raquel. Cada um em seu lugar! (São Paulo, início da industrialização: geografia e poder).
São Paulo, FAU/USP, mimeo, 1980.

----------“Territórios negros nas cidades brasileiras (etnicidade e cidade em São Paulo e no Rio de
Janeiro)”. IN: Estudos Afro-Asiáticos, n. 17, 1989.
----------. A cidade e a lei – Legislação política urbana e territórios na cidade de São Paulo. São Paulo:
FAPESP, Estúdio Nobel, 1997.

ROY, Teresa Maria Malatian. A ação imperial patrianovista brasileira. Dissertação de Mestrado em
Ciências Humanas (História), PUC/SP, 1978.

SANT'ANNA, Denise Bernuzzi de. "Propaganda e História: antigos problemas, novas questões". Projeto
História, São Paulo, PUC-SP, n. 14, fev. 1997.

---------."Cuidados em si e embelezamento feminino: fragmentos para uma história do corpo no Brasil”.


In: SANT'ANNA, Denise Bernuzzi de (org.). Políticas do corpo. São Paulo, Estação Liberdade, 1995.

---------. La recherche de la beauté. Une contribution à l'histoire des pratiques e des représentations de
l'embellissement féminin au Brésil - 1900 a 1980. Tese de Doutoramento. Paris, Université de Paris VII -
UFR de Géographie, Histoire et Sciencies de la Société, 1994.

---------."Entrevista com José Gil". Cadernos de subjetividade. São Paulo: EDUC, 1997.

---------. "O corpo entre antigas referências e novos desafios". Cadernos de subjetividade. São Paulo:
EDUC, 1997.

----------. “Entrevista com Georges Vigarello – O corpo inscrito na história, Imagens de um arquivo
vivo”. In: Projeto História. São Paulo: EDUC, n. 21, novembro de 2000.

----------. “Do glamour ao sex-appel: notas sobre a história do embelezamento feminino entre 1940 e
1960”. Uberlândia: Revista de História da UFU.

SANTOS, Carlos José Ferreira dos. Nem tudo era italiano. São Paulo e pobreza (1890-1915). São Paulo,
Annamblume/FAPESP, 1998.

SANTOS, Deborah Silva. Memória e oralidade: mulheres negras no Bexiga - 30/40/50. Dissertação de
Mestrado em História, PUC-SP, São Paulo, 1993.

SANTOS, Jocélio Teles. “O negro no espelho: imagens e discursos nos salões de beleza étnicos”. In:
Estudos Afro-Asiáticos, n.º 38, 2000.

SARTRE, Jean Paul. Reflexões sobre o racismo. 3 ed. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1963.

SCWARCZ, Lilia Moritz. Retrato em branco e negro. São Paulo, Companhia das Letras, 1987.

154
---------.O espetáculo das raças - Cientistas, instituições e questão racial no Brasil: 1870 - 1930. São
Paulo, Companhia das Letras, 1993.

----------. “Nem preto nem branco, muito pelo contrário: cor e raça na intimidade”. In: História da vida
privada no Brasil. Vol. 3. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

SEYFERTH, Giralda. "A estratégia do branqueamento". In: Ciência Hoje, vol. 5, n. 25, jul./ag., p. 54-56.

SILVA, Ana Maria (org.). Gostando mais de nós mesmos. Perguntas e respostas sobre a auto-estima e a
questão racial. São Paulo: Editora Gente, 1999.

SILVA, José Carlos Gomes da. Os suburbanos e a outra face da cidade. Negro em São Paulo (1900-
1930): cotidiano, lazer e cidadania. Campinas, Dissertação de Mestrado, 1996.

SILVA, Maria Aparecida Pinto. Visibilidade e respeitabilidade: memória e luta dos negros nas
associações culturais e recreativas de São Paulo (1930 -1968). Dissertação de Mestrado, PUC-SP, São
Paulo, 1997.

SILVA, Salomão Jovino da. A polifonia do protesto negro. Movimentos culturais e musicalidades
urbanas anos 70/80 - Salvador, São Paulo e Rio de Janeiro. Dissertação de mestrado em História.
PUC/SP, 2000.

SIMSON, Olga Rodrigues de Moraes von. Brancos e negros no carnaval popular paulistano: 1914 –
1988. São Paulo: Tese de Doutoramento em Ciências Sociais, USP, 1989.

SODRÉ, Nelson Werneck. História da imprensa no Brasil. São Paulo, Martins Fontes, 1983.

SOUSA, Neusa Santos. Tornar-se negro: ou as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em


ascensão social. Rio de Janeiro: Graal, 1983.

SOUZA, Gilda Rocha de Mello e. A moda no século XIX . São Paulo. Tese de Doutoramento, FFLCH-
USP, 1950.

SOUZA, Irene de Sales. Resgate da identidade na travessia do movimento negro: arte, cultura e
política. São Paulo, 1991.

THOMAS, Keith - O homem e o mundo natural, São Paulo, Companhia das Letras, 1988.

TODOROV, Tzvetan. Nós e outros. A reflexão francesa sobre a diversidade humana. Trad. Sérgio Góes
de Paula. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993.

VIGARELLO, Georges. O limpo e o sujo – Uma história da higiene corporal. São Paulo: Martins
Fontes, 1996.

WISSEMBACH, Maria Cristina Cortez. Ritos de magia e sobrevivência, Sociabilidades e práticas


mágico-religiosas no Brasil (1890-1940). Tese de doutoramento em História – USP, 1997.

155
Anexos

156

Você também pode gostar