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A SIMBÓLICA DA VIOLÊNCIA

E DA TRANSGRESSÃO NO UNIVERSO
DA QUIMBANDA

SULIVAN CHARLES BARROS

Resumo: este artigo parte da premissa de que o simbolismo ‘diabólico’ e transgressor


dos exus e das pombas-giras – entidades espirituais que pertencem ao
universo da quimbanda – constitui o cerne principal que dá sustenta-
ção e legitimidade aos rituais de quimbanda que fazem uso de deter-
minados símbolos de inversão e transgressão e acabam por se contrapor
e subverter àqueles claramente associados ao universo cristão.

Palavras-chave: violência, transgressão, quimbanda

UMBANDA X QUIMBANDA: O ETERNO DILEMA ENTRE


A ‘ESQUERDA’ E A ‘DIREITA’

A questão referente ao Bem e ao Mal e aos seus limites se coloca,


conforme toda religião, de alguma forma, moralizada, como ele-
mento central na umbanda. Esta não é, contudo, uma questão
teologicamente equacionada, como no universo simbólico cristão,
que é plenamente definida.
No universo cristão, o mal está configurado na figura do diabo,
personagem mítico essencial, pois sem ele a bondade divina seria
sem sentido. Bem e Mal, Deus e diabo, anjos e demônios existem,
opõem-se drasticamente e não comportam gradações entre si.
Na umbanda, inicialmente, não é bem assim. Se o bem é
inquestionável e identificado a Deus, os espíritos vistos aparente-
mente como “maléficos” não são necessariamente maus, eles po-
dem ser batizados, dogmatizados, doutrinados e evoluir nesta direção.
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Utilizando-se neste momento de literatura religiosa, pode-se perceber
que Kardec (1999), ao empreender seu trabalho de racionalização
do mundo dos espíritos, equacionou as diferenças do universo sa-
grado baseado na classificação dos espíritos em relação ao seu grau
de adiantamento, nas qualidades que adquiriram e nas imperfei-
ções de que ainda devam se livrar. Os espíritos admitem geral-
mente três categorias principais ou três grandes divisões:
• Espíritos puros: anjos, arcanjos e serafins: são espíritos que passa-
ram por todos os graus da escala e se libertaram de todas as impu-
rezas da matéria. Possuem superioridade intelectual e moral absoluta
em relação aos espíritos das outras ordens.
• Espíritos de segunda ordem ou bons espíritos: são espíritos que têm
ainda que passar por certas provas. Há a predominância do espírito
sobre a matéria; desejo do bem. Suas qualidades e poder para fazer o
bem estão em conformidade com o grau que alcançaram.
• Espíritos imperfeitos: são espíritos caracterizados pela arrogância,
orgulho e egoísmo. Há a predominância da matéria sobre o espíri-
to e, geralmente, são propensos ao mal (KARDEC, 1999).
O pensamento umbandista, de caráter acentuadamente dualista, estabe-
leceu um corte no segundo plano, simplificando esta hierarquia
mística: missionários do bem e missionários do mal. A essa divisão
dicotômica entre bem e mal, reino das luzes e reino das trevas,
direita e esquerda corresponde, no cosmos religioso, uma nova se-
paração: umbanda, prática do bem; quimbanda, prática do mal.
A umbanda se opõe desta forma à quimbanda, que opera (em princípio)
exclusivamente com espíritos imperfeitos que se situam nos con-
fins da escala espiritual. Entretanto, o mal é um dado da realida-
de, ele representa uma dimensão importante da vida cotidiana; o
pensamento umbandista deve, portanto, levá-lo em consideração.
O problema que se coloca é o de como interpretá-lo no quadro
religioso. Segundo Ortiz (1984; 1999), a oposição entre reino das
luzes e reino das trevas vai encontrar, assim, uma solução interes-
sante no seio da linguagem sagrada.
Em relação ao domínio da direita (quase) não há polêmica: agrupa os orixás,
guias de luz ou mentores espirituais inquestionavelmente bons, apesar
de diferenciados em termos de graus quanto à evolução espiritual.
Neste domínio convivem caboclos, pretos-velhos, crianças.
Entidades espirituais como os boiadeiros, marinheiros, ciganos, baianos
e malandros podem ser identificadas também como de direita,
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embora suas características sejam de seres pouco moralizados, im-
pedindo-os de uma convivência mais estreita com caboclos, pre-
tos-velhos e crianças. Em geral, dizem que estes personagens fazem
parte de uma linha mista ou intermediária.
Não se duvida de que estes possam praticar o bem, mas acredita-se que
boiadeiros, marinheiros, ciganos, baianos e malandros devam ser
doutrinados e controlados, evitando que bebam, falem palavrões
etc., ao menos em excesso.
Os exus e as pombas-giras, independentemente de onde possam traba-
lhar, são sempre entidades de esquerda. Jamais poderiam ser de
direita, embora lá possam estar; no máximo, na linha mista, inter-
mediária, na meia-esquerda, pois indubitavelmente fazem ou po-
dem fazer o mal (NEGRÃO, 1996).
Dessa forma, a quimbanda passa a ser definida, pelos umbandistas, como
a linha ritual da umbanda que pratica a magia negra. Ela só traba-
lha com exus e pombas-giras, que são representações do mundo da
sombra, entidades telúricas cuja disponibilidade para o mal su-
planta as intenções de auxílio fraterno. Mediante encomendas, estas
entidades realizam feitiços ou contra-feitiços, visando favorecer ou
prejudicar determinadas pessoas.
A zona da quimbanda aparece como fonte potencial de distúrbios; os
exus, agindo no mundo, ameaçam a ordem umbandista. Os pró-
prios adjetivos que qualificam o substantivo exu evocam a dimen-
são sinistra da magia negra: corcunda, capa, caveira, “tranca rua,
come fogo, meia noite, encruza, cemitério. Uma primeira aproxi-
mação dos exus ao universo do estranho, do oculto, do maléfico
realiza-se, assim, no nível do semântico (ORTIZ, 1999).
A quimbanda passa a ser apresentada como a dimensão oposta da umbanda.
Ela é sua imagem invertida, “tudo que se passa no reino das luzes
tem seu equivalente negativo no reino das trevas” (ORTIZ, 1999,
p. 88). Diante da realidade insofismável do mundo dos homens, o
mal é considerado um “mal necessário”, ele é a contrapartida do
bem, fonte e justificação da miséria humana.
Esta oposição entre luz versus trevas corresponde a domínios e situações
sociais e não simplesmente um universo moral. Os pedidos para os
espíritos são singulares. Por exemplo, somente os exus e as pombas-
giras podem atender as necessidades conotadas como imorais ou
impróprias: a morte de alguém, o desejo sexual, os pedidos finan-
ceiros que impliquem na ruína de outros (fraude, roubo etc.). Isto
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mostra que as entidades sobrenaturais cultuadas na umbanda estão
em consonância com a ideologia da sociedade global brasileira.
Assim, para dar melhor suporte a este argumento, utilizo aqui os frag-
mentos das entrevistas realizadas com dois pais-de-santo da cida-
de de Codó, no Maranhão, em que eles afirmaram trabalhar, naquela
época, tanto na linha da direita (magia branca) quanto na linha da
esquerda (magia negra). Ambos pais-de-santo explicitam a exis-
tência de uma dicotomia entre umbanda e quimbanda:

Na umbanda você só procura praticar o bem, fazer o que é bom. E na


quimbanda não, você só trabalha com forças diabólicas. Cada um
tem um ponto de vista. Agora só tem uma coisa, o trabalho da quimbanda
também ajuda. Ele ajuda porque a gente às vezes tá com uns fluídos
pesados e você na umbanda, você é difícil conseguir fazer sua ‘limpeza’.
Então essa atividade é justa. Faz um despacho e aquilo alivia rapidamente.
A quimbanda tem isso também. Ela prejudica e tem um fim, mas ela
tem um ponto positivo também, ela tem (Pai-de-santo M., entrevista,
Codó(MA), ago. 1999).

O lado da esquerda é o seguinte, pega pro bem e pega pro mal. Que se
uma pessoa procura lhe atrair, pelo um progresso de sua vida, de seus
trabalhos, de seus negócios. Aí a gente tem que pegar um frango preto
pra cortar em cima do teu nome e do nome daquela pessoa pra cortar
a intimidade dela pro teu lado. Deixar a tua vida viver em paz. E o
que nós queremos é paz, sossego e tranqüilidade pelo estabelecimento
da nossa vida, dos nossos trabalhos e dos nossos negócios. E é isso que
pedimos pra Deus. Mas Deus deixou que essa pessoa que procura atrair,
e esse não é da parte de Deus, esse é da parte do diabo. Então nós temos
que entrar com a magia negra. Que é pra mode que nós podemos
vencer. Porque ele pode ser cruel, porque tem gente de muita natureza.
Tem uma d’uma natureza boa e tem outra da natureza miserável que
procura só mesmo nos atrair. Então nós temos que fazer um corte pra
cortar ele da nossa frente. É justamente isso, pois é (Pai-de-santo J.
R., entrevista, Codó(MA), ago. 1999).

Segundo a fala desses dois interlocutores, a separação entre umbanda/


magia branca e quimbanda/magia negra apresenta dimensões ba-
seadas geralmente na distinção entre práticas do bem e práticas do
mal, da parte de Deus e da parte do diabo. Contudo, essas duas
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dimensões fazem parte de um mesmo fenômeno e estão intima-
mente interligadas. Se a umbanda é sempre vista como benéfica,
na ótica de seus praticantes, a quimbanda é, na maioria das vezes,
condenada porque se acredita nos seus poderes maléficos.
Dependendo das circunstâncias, a magia negra, mesmo relacionada a for-
ças diabólicas, que na visão de outra mãe-de-santo, “é aquela que
deixa Deus prum canto” (Mãe-de-santo R. F., entrevista, Codó (MA),
ago. 1999), em determinadas ocasiões, pode ser vista como justa,
positiva, “pega pro mal”, mas também é aquela que “pega pro bem”.
Dependendo da situação, o uso da magia negra, para esses interlocutores
torna-se necessário e o único meio eficaz para o restabelecimento
da vida do indivíduo que necessita de seus préstimos.
A grande maioria de pais e mães-de-santo entrevistados ao longo
destes quase dez anos de pesquisa alega utilizar os serviços dos exus
apenas para a prática do bem. No máximo, admitem apelar a essas
entidades com finalidades defensivas e contra-defensivas. “Eles fa-
zem, nós desfazemos”, esta é a frase mais comum ouvida por eles.
Defendendo seus clientes e seus próprios terreiros dos ataques e da
inveja dos demais, os exus são tidos como seus principais guardiões.
Partindo para a análise e interpretação do cosmos religioso, é possível
notar que às sete linhas rituais da umbanda correspondem as sete
linhas rituais da quimbanda, comandadas pelos seguintes exus:
Exu 7 Encruzilhadas, Exu Pomba-Gira, Exu Tiriri, Exu Gira-Mundo,
Exu Tranca-Ruas, Exu Marabô, Exu Pinga Fogo.
Cada Exu, no seu plano espiritual, comanda sete chefes de legiões; por
outro lado, eles se comunicam com as linhas da umbanda, o que
torna mais complexa a rede de mensagens divinas. A existência do
mundo das trevas, habitado por exus e pombas-giras, é funda-
mental para a existência do mundo das luzes.
Montero (1985), ao afirmar que se esses dois universos opõem-se pela sua
natureza, demonstra também que eles permanecem intimamente
ligados, uma vez que um existe em função do outro: o Bem só o é à
medida que tem como meta combater o Mal; este, por sua vez, só
ganha sentido sendo a inversão de uma ordem definida como Bem.
As representações coletivas embutidas na construção das personagens dos
exus e pombas-giras explicitam o compromisso dessas entidades
com a área urbana marginal. Dizem respeito à imagem social de
insubmissos, criminosos e vagabundos que em vida foram seres
anônimos e ao morrerem tornaram-se deuses.
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Freqüentemente os exus são associados ao estereótipo do malandro (em-
bora se tenha também uma categoria mítica própria para estes),
tipo social que se caracteriza pela astúcia com que utiliza, em pro-
veito próprio, de artimanhas mais ou menos ilícitas. Representam
o avesso da civilização, das regras, da moral e dos bons costumes.
Sua versão feminina, a pomba-gira, representa o estereótipo da
prostituta ou de mulheres de conduta moral condenável e sua se-
xualidade se manifesta, sobretudo, no nível da linguagem.
Em oposição aos chamados espíritos de luz ou de direita, os exus e as
pombas-giras constituem a esquerda. Isso significa que, ao contrá-
rio daqueles, exus e pombas-giras são vistos como perigosos e maus
ou ao menos potencialmente capazes de atuar maleficamente.
Constituem a categoria mítica mais controversa para os umbandistas e
a mais instigante para os pesquisadores. Exus e pombas-giras são
entidades mais próximas das fraquezas humanas e as aceitam sem
constrangimentos. Estes são considerados a escória da sociedade
astral.
De acordo com a divisão do trabalho espiritual1, quando há um pedido
equívoco do ponto de vista moral a ser feito, exus e pombas-giras
são os guias apropriados. Um agrado os satisfaz e amortece suas
consciências em processo de formação. São problemas concretos
do cotidiano que são tratados por eles. Sem terem sido doutrina-
dos, isto é, carentes de consciência moral, os exus realizam o que
lhes pedirem, em troca de bebidas e comidas.
Nos terreiros em que existem as práticas de quimbanda se usam os exus
para práticas maléficas contra desafetos, desde aquelas conside-
radas mais brandas, como terem os caminhos fechados na sua
vida pessoal e profissional ou prejuízos materiais, até aquelas con-
sideradas mais graves, como acidentes, doenças e até mesmo a
morte.
Analisando os tipos de demandas que os homens endereçam aos espíri-
tos, observa-se que a morte forma uma categoria à parte, podendo
somente ser considerada pelos exus. Jamais um fiel ousaria pedir a
morte de alguém a uma entidade de luz; ele se arriscaria certa-
mente a ela se indispor e a ser punido. Ora, um exu, mediante
certas oferendas e donativos, pode realizar tais desejos.
Questões de amor, sexo e de amarração constituem-se, contudo, no cam-
po específico de atuação das pomba-giras. Se Exu é em parte dia-
bólico e animalesco, a pomba-gira, vista pelos umbandistas como
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a mulher de exu ou exu fêmea, é a estereotipia da “meretriz, mu-
lher da zona, mulher do mundo, dona de mil nomes e de mil
amantes” (Mãe-de-santo M. J., entrevista, Brasília(DF), set. 2000).
Por ter tido uma vida passada que espelha certamente uma das mais
difíceis condições humanas, a prostituição é a condição que dis-
pensa à pomba-gira um total conhecimento e domínio de uma
das áreas mais complicadas da vida das pessoas comuns, que é a
vida sexual e o relacionamento humano fora dos padrões sociais de
comportamento aceitos e recomendados.
A um pedido sempre corresponde algum tipo de oferenda. Veja-se, a
título de ilustração, um caso contado por uma interlocutora, de
um trabalho feito por uma pomba-gira, em que um homem deseja
despertar o interesse sexual de uma conhecida:

Fui no quintal, fiz o ponto da pomba-gira, chamei ela, que ela vem
no redemoinho, meu filho. Eu amostro a qualquer pessoa. Eu fiz o
serviço. Comprei o material do jeito que ela mandou: meio metro de
pano vermelho, meio metro de pano preto, sete caixas de fósforos, sete
velas vermelhas, sete velas pretas, sete velas brancas. Uma garrafa de
cachaça pra banhar ele. Foi só isso que ela mandou eu fazer e chamar
ela na hora (Dona M. J., entrevista, Codó(MA), ago. 1999).

Descobrir qual é a oferenda certa para agradar a exus e pombas-giras e


assim conseguir os favores almejados representa sempre um gran-
de desafio para pais e mães-de-santo que presidem os cultos. O
prestígio de muitos deles vem da fama que alcançam por ser con-
siderados por seus seguidores e clientes bons conhecedores das
fórmulas corretas para esse agrado.
Segundo Negrão (1996), a quase universalidade da presença dessas enti-
dades deve-se a uma razão bastante simples: são eles os agentes
preferenciais para desfazerem os males provocados por eles própri-
os, mediante um pagamento mais compensador. Desfazer o traba-
lho realizado significa reverter sobre quem os pediu os malefícios
pretendidos.
Apesar de ser essa reação considerada moralmente justificável, os guias
de direita têm seus escrúpulos. Apela-se então aos exus e às pom-
bas-giras doutrinados ou batizados para os serviços de contra-ma-
gia da esquerda.
Apenas os exus devem defrontar-se com os próprios exus, sobretudo quando
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estes, ao agirem maleficamente, revelam ausência de elevação espi-
ritual, sendo incompatíveis, portanto, com os guias de luz. Por
outro lado, exus e pombas-giras entram em locais que, pela sua
santidade, são vedados às outras entidades: cemitérios e encruzi-
lhadas. E há a necessidade de adentrá-los, pois é somente ali que
se pode desfazer o mal, no mesmo local engendrado.
Na interação entre orixás, caboclos e exus, um ponto que reflete as dife-
renças entre o culto a cada um está na relação praticante e entida-
de. Enquanto se zelam pelos orixás, caboclos, pretos-velhos e demais
entidades espirituais, cuidam-se dos exus e das pombas-giras.
Estes comportamentos não podem ser entendidos apenas em uma pers-
pectiva semântica, mas por meio da prática cotidiana de propriação
religiosa. Segundo Caroso e Rodrigues (2001), para com as pri-
meiras entidades citadas, pode-se manter um relacionamento di-
reto e pessoal, isto é, cotidiano e amigável. O zelar, neste caso,
corresponde a uma expectativa de reciprocidade positiva, paulati-
namente, a uma espécie de devoção.
Por outro lado, a interação entre a pessoa que cuida de um exu e a enti-
dade cuidada é mediada muitas vezes de modo tenso por uma
espécie de contrato. Por pertencerem ao escalão mais baixo do de-
senvolvimento espiritual e, sobretudo, porque as vias de ascensão
social estão para eles de antemão bloqueadas, os exus podem per-
mitir-se trilhar atalhos que levem ao êxito com maior eficácia que
aqueles pautados na lógica da caridade, do conformismo e da hu-
mildade. O cuidado para com exus e pomba-giras talvez possa ser
melhor entendido muito mais como proteção ou precaução pessoal,
espiritual e social que como devoção religiosa.
O caráter ambíguo de trickster e de demônio atribuídos a essas entidades
é assim expresso por esta mãe-de-santo:

Eles são bem brincalhão. É por isso que a gente gosta. Mas eu acho que
eles são um pouco zangado, né?. Porque se não fizer direito, eles se
zangam e as coisas ficam mais pesadas. [...] Eu considero eles todos,
porque eu preciso deles também. Pra mim eu considero eles também.
Tá certo que eles são da parte do outro [diabo]. Mas eu também não
posso dizer que eles não são da parte de Deus. Nós tamos sabendo que
eles são outro povo, né? Mas tudo também é deixado por Deus, porque
se Deus não querendo, nada acontece. Não é não? (Mãe-de-santo
M.S., entrevista, Codó (MA), ago. 1999).
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Com o fragmento do discurso acima, é possível perceber sentimentos
contraditórios dos adeptos para com essas entidades. As pessoas
ligadas aos cultos afro-brasileiros expressam admiração e respeito,
aliados a um certo temor a tudo que se encontra relacionado aos
exus e às pombas-giras.
Essas entidades invariavelmente aparecem associadas ao diabo, na acepção
cristã, do qual são destacados seus aspectos negativos como divin-
dades promotoras e veiculadoras do mal, daí advinda a capacidade
de proporcionar ganhos para alguns às custas de perdas muito al-
tas para outros, por meio dos trabalhos de magia.
Se exus e pombas-giras têm o poder de interferir na vida das pessoas, tanto
positiva quanto negativamente, não resta escolha àqueles que eles
escolhem senão buscar obter efeitos favoráveis dessa interferência.
Segundo Caroso e Rodrigues (2001, p. 354), “esta tentativa é ex-
pressa no cuidado ritual para com estas entidades que significa, para
os adeptos, encontrar a justa medida entre as exigências dela e as
compensações materiais e simbólicas resultantes”.
No mundo do santo, geralmente as pessoas têm medo dos exus ou pelo
menos dizem que têm. Mesmo representando entidades de baixo
nível hierárquico de religiões de baixo prestígio social, sua presen-
ça no imaginário extravasa os limites de seus seguidores para se
fazer representar no pensamento das mais diversas classes sociais
do país. Assim, estabelecem-se as relações de reciprocidade entre
exus e seus adeptos, que favorecem aos segundos com resultados
proveitosos e aos primeiros com perpetuação de seu culto.

Exus e Pombas-Giras: conhecendo um pouco mais os reis e as


rainhas da quimbanda

Difícil falar em exu sem comentar a controvertida face do mal que se


formou no imaginário popular. Não há quem ignore a força e o
perigo potencial atribuídos pela umbanda aos exus. Eles repre-
sentam, antes de tudo, o outro lado da civilização, o lado mar-
ginal, caótico e ambíguo, aquele que deve ser eliminado,
esquecido.
São cinco as características principais dos exus que aparecem nos depoi-
mentos dos meus interlocutores, nos pontos de saudação a essas
entidades e em suas próprias falas por intermédio de seus cavalos:
para muitos, eles são vistos como perigosos e maus, são os repre-
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sentantes em potencial da esquerda. A controvérsia principal é:
eles são ou não são demônios?

Os exus, a gente tem que tomar o maior cuidado com eles. Eles são bem
perigosos, podem até matar alguém porque eles são da ‘esquerda’. Todo
o cuidado com eles é pouco, tá entendendo? (R. N., entrevista,
Brasília(DF), ago.2003).
Eu tenho por mim, que eles foram espíritos muito maus, entende? E
eles vem pra se vingar. Os crentes dizem que eles são os demônios, mas
sobre isto eu não posso dizer nada. Mas é muito bom a gente tomar
cuidado com eles, né? Damos a comidinha, a bebidinha deles e aí não
carece de ter problema não (A., entrevista, Brasília(DF), ago. 2003).

Alguns de seus pontos cantados demonstram a proximidade dos exus


com a figura do diabo:

Meu Santo Antonio pequenino


amansador de touro bravo
Quem mexer com exu
Tá mexendo com o diabo.

Satanás, Satanás
Lúcifer é Satanás
Satanás, Satanás
É um exu, é Satanás,
Lúcifer é Satanás.

Em entrevista, uma entidade que se apresenta como da linha de exu


faz a seguinte afirmação, quando manifestada no corpo de seu
cavalo:

Eu sou ruim, eu sou maldoso. Eu quero matar, eu quero ver os outros


no chão2.

Outros, entretanto, demonstram que os exus devem ser vistos como a


“polícia de choque” da umbanda, isto é, são eles os responsáveis
por “cobrar o que tem de ser cobrado”, não havendo nenhuma
ligação dos exus com a figura do demônio. Alguns pais e mães-de-
santo falam o seguinte a esse a respeito:
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Exu não é demônio. Isso de pensar que exu é demônio. Isto tudo é
ignorância das pessoas. Eu não acredito nisso. Porque nós trabalhamos
com exus que ajudam as pessoas, curam, abrem os caminhos, e, se fosse
demônios, eles não fariam tudo isso, né verdade? (Pai-de-santo A.,
entrevista, Brasília(DF), ago.2003).

Olha, os exus são muito bons. Eles têm uma missão religiosa a cumprir.
Eles são os espíritos mais próximos da gente, aqueles que sofreram muito
na vida quando encarnados. Por conhecerem bastante esse lado da dor,
da tristeza, das coisas ruins, eles são a nossa ‘polícia de choque’. Eles são
os únicos que podem entrar em cemitérios, encruzilhadas e outros lugares
de energia negativa pra desfazer o mal feito por espíritos sem luz, como
é o caso dos exus pagãos e dos quiumbas, que são espíritos muito atrasados,
sem nenhum tipo de luz. Estes sim, estes não têm consciência do que estão
fazendo e são muito maus. Então os nossos exus, que já são batizados,
evoluídos, eles já têm responsabilidade, já tem conhecimento e eles vão
cobrar o que tem que ser cobrado. Porque tudo o que a gente faz aqui
nessa Terra, a gente tem que pagar. E eles também são da justiça porque
ninguém passa na vida por aquilo que não é de seu merecimento, não é
verdade? (Mãe-de-santo C., entrevista, Brasília(DF), set. 1996).

Um cavalo incorporado com o seu exu afirma o seguinte:

Eu ajudo as pessoas boas e destruo as pessoas ruins. [...] Eu faço apenas


o que tem que ser feito, sem nenhum tipo de arrependimento. Eu sou
da justiça e se pra isso acontece de eu ter que matar, eu mato3.

Um ponto de saudação ao Exu Tranca Ruas, importante figura da umbanda,


fala a respeito desse assunto:

Oh luar, oh luar, oh luar...


Ele é dono da rua, oh luar
Quem cometeu os seus pecados
Peça perdão a Tranca Ruas.

É interessante notar que as duas primeiras características dos exus aca-


bam por definir uma terceira, isto é, os exus não devem ser vistos
nem como bons nem como maus, mas, sim, como entidades espi-
rituais neutras:
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Exu não é bom e nem mal. Exu possui uma característica dupla; tanto
pode ser ativado para abrir como para fechar os caminhos. O que as
pessoas precisam saber é que exu é neutro, o responsável pelos atos é
quem os pratica (Pai-de-santo R. N., entrevista, Brasília(DF), ago.
2003).

As pessoas é que usam os exus para praticarem o mal. Se eles pedissem


o bem, com certeza os exus fariam o bem porque eles só fazem o que lhes
manda. Então o povo tem que saber disso que o culpado não são os
exus, mas as pessoas que pedem as coisas ruins. A maldade maior está
no coração das pessoas (O. B., entrevista, Brasília(DF), ago. 2003).

As características listadas acima definem uma quarta característica: a


ambigüidade moral dos exus. Um ponto cantado fala sobre essa
dualidade, em que eles podem tanto fazer o bem quanto o mal,
sem nenhum tipo de constrangimento:

Exu tem duas cabeças,


Mas ele olha sua banda com fé
Uma é Satanás no inferno,
A outra é de Jesus de Nazaré.

Por causa dessa característica, os exus são vistos como bons mediadores,
capazes de quebrar “qualquer galho”, além de serem excelentes
“abridores de caminho”:

A gente sabe que exu tanto pode fazer o bem quanto o mal. Que eles
conhecem muito bem os dois lados, né? Então se você precisa de uma
coisa urgente, você tem que pedir é pra exu, porque exu faz tudo rápido
e também porque eles conhecem muito bem tanto o lado da ‘direita’
quanto o lado da ‘esquerda’, né? Então se você tá passando por alguma
dificuldade, você tem que se consultar é com exu, ele é que vai poder
abrir o seu caminho (M. J, entrevista, Brasília(DF), ago. 2003).

Uma quinta característica se refere à proximidade dessas entidades com o


mundo dos homens, justamente por serem os exus a própria re-
presentação daqueles que já padeceram dos mesmos sofrimentos
pelos quais os homens comuns padecem. Talvez daí venha a sua
grande força e popularidade:
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Eles [exus] são muito fortes, muito poderosos. Eles sofreram muito em
terra. Foram humilhados, explorados como a gente, né? E por isso eles
sabem muito bem o que nós passamos. Eles podem ter acesso a domínios
que as ‘entidades’ de luz não poderiam entrar (M. G., entrevista,
Brasília(DF), ago. 2003).

Os exus são ‘entidades’ muito fortes, de muito poder. Só um exu consegue


desmanchar um mal feito por um espírito sem luz, só eles tem esse dom.
Então é muito importante o trabalho deles, porque sem eles a gente
não consegue muita coisa, né? Eles sabem muito bem o que se passa na
cabeça da gente, né? Afinal eles passaram por tudo isso e não condena
a gente (O. B., entrevista, Brasília(DF), ago. 2003).

Os dois relatos anteriores demonstram que os exus estão mais próximos


do homem, são entidades mais humanas nesse sentido. Contudo,
essa maior proximidade para com as fraquezas humanas é o que os
coloca numa situação de espíritos inferiores, que devem ser sub-
metidos, antes de tudo, a uma doutrinação.
Na versão dos exus, prevalece a imagem do subalterno, bárbaro, demô-
nio e sanguinário. Aqueles que não são confiáveis e, portanto, de-
vem ser evitados.
Já com relação às pombas-giras, estas entidades são vistas pelos umbandistas
como a mulher de Exu ou Exu fêmea. Elas se referem, antes de
tudo, segundo os umbandistas, aos espíritos de prostitutas, corte-
sãs, cafetinas, mulheres sem família e sem honra. Além de possuí-
rem as mesmas características que seus parceiros, essas entidades
carregam consigo toda a ambigüidade dos exus aliada a uma ima-
gem feminina fortemente sexualizada.
Augras (2000) demonstra que a umbanda deu ensejo ao surgimento da
figura da pomba-gira como a representação da livre expressão da
sexualidade feminina aos olhos de uma sociedade ainda dominada
por valores patriarcais. Para a autora, a pomba-gira representa, no
imaginário umbandista e popular, uma figura potencialmente pe-
rigosa e também carregada de imenso poder, em função da própria
condição em que se encontra e/ou representa:

Pomba-gira, rainha da marginália, tem sua morada no corpo das mulheres,


nos lugares de passagem de um ponto para outro ou deste mundo para
além. Maria Molambo, mais especificamente, assume às claras a ligação
119 , Goiânia, v. 5, n. 1, p. 107-127, jan./jun. 2007
com aquilo que a sociedade rejeita para a periferia. Chamada também
de Pomba-Gira da ‘Lixeira’, recebe despachos arriados nas bordas dos
depósitos de lixo, local onde fica rondando. [...] Maria Molambo, tal
como suas irmãs Rosa Caveira, Maria Padilha, Rainhas do Cruzeiro e
da Calunga, reúnem em si a escuridão, a sujeira, a desagregação, a
presença da morte. Seus trabalhos são de demanda, isto é, de magia
destinada a fazer o mal (AUGRAS, 1000, p. 40, grifo da autora).

As pombas-giras são as figuras da umbanda que talvez mais se vinculam


à fantasia, à criação e ao desejo coletivo. Ao ser indagada quem
seria ela, como havia sido sua vida na Terra, uma pomba-gira in-
corporada em seu cavalo faz a seguinte afirmação:

Você quer mesmo saber quem eu sou? Então eu lhe respondo: Eu sou o
mistério, o segredo, eu sou o amor, sou a esperança e o desejo. Sou de ti,
sou de todos. Sou pomba-gira, sou mulher!4

Em sua maioria foram consideradas como mulheres bonitas e, sobretu-


do, sedutoras. Segue a fala de outra pomba-gira incorporada em
seu cavalo:

Eu era muito linda, podia com o corpo conseguir tudo e tentava. [...]
M5. era muito elegante, muito, muito. M. era morena, mas não era
morena que nem caboclo, M. era cor de pêssego, tinha o cabelo nos
ombros. M. tinha o corpo lindo, M. sempre foi bonita para os homens6.

Seus pontos de saudação fazem referências a essas características:

Quem não gosta de Pomba-Gira


Tem, tem que se arrebentar
Ela é bonita,
Ela é formosa,
Ó bela vem trabalhar.

De garfo na mão
Lá vem mulher bonita
Bonita e muito formosa
Lá vem Pomba-Gira
Lá vem Maria Padilha7.
, Goiânia, v. 5, n. 1, p. 107-127, jan./jun. 2007 120
Contudo, a beleza da pomba-gira é também um sinal de perigo. Deve-
se, portanto, tomar cuidado:

Meu caminho é de fogo


No meio da encruzilhada
Quem quiser me demandar
Eu lhe cuspo e vou pisar
Quanto inimigo na terra
Querendo desafiar
Sou Pomba-Gira formosa
Formosa pra lhe quebrar.

Por serem consideradas também como “mulheres da noite”, as pombas-


giras adoram“festas”:

Eu sou a Pomba-Gira
E estou sempre presente
Quem confirma é minha gente
Estou sempre nas festanças
Brincando com alguém
Eu saravo minha rainha
E o meu rei também.

Por outro lado, a figura da pomba-gira, ao mesmo tempo, que afirma a


realidade da sexualidade feminina como um dos seus atributos de
poder, devolve-a ao império da marginalidade: “O povo diz que eu
sou puta, mas eu sou puta mesmo. [...] Mas qual é o homem,
macho de verdade, que não gosta de uma puta?”8.

Eu era promíscua. Podia conseguir tudo com o meu corpo. Mas os homens
me exploravam também. Eu também fui muito usada9.

São, sobretudo, as mulheres que se consultam com as pombas-giras, pro-


curando solucionar seus males de amor. Como essas, as pombas-
giras também foram mulheres que sofreram grandes desilusões
amorosas e ninguém melhor do que estas entidades para saberem
tão bem o sofrimento que um amor mal-sucedido pode desenca-
dear na vida de um ser humano.
Assim, uma pomba-gira incorporada discorre sobre como era a sua vida
na Terra:
121 , Goiânia, v. 5, n. 1, p. 107-127, jan./jun. 2007
M. teve nove filhos com vinte e três anos. Era um assim, assim, assim...
M. foi mãe acho que com onze anos. M. nunca foi feliz com homem.
Batiam em M. e eu aprendi a beber e a fumar, isto era um escape. Eu
nunca descobri o que era o amor de verdade10.

Contudo, assim como os exus, as pombas-giras podem ser doutrinadas,


moralizam-se. A mesma pomba-gira, incorporada na médium,
continua a sua fala:

[...] Hoje eu vejo que o meu problema é o amor. E eu queria investir


muito nos homens e às vezes eu vejo uma coisa que não é, como eu
sempre vi, entendeu? Eu pensava assim: se você tá bem hoje, você vai
ficar o amanhã e depois... E não é assim. Eu continuo pensando que o
amor é o amor. Mas só que os espíritos mais evoluídos falam que eu
confundo o amor com sexo. Eu gosto muito de sexo. Então eu penso que
o sexo é amor e eles falam que eu tenho que conseguir definir essas
coisas para eu me iluminar e eu ainda não consegui, porque eu penso
que amor é transar e não é. Mas não aquele sexo promíscuo e sim
aquele com prazer, aquele que você geme, que você chora. Mas eu chorava
com todos...11

Em outra ocasião, esta mesma entidade, posta no corpo de seu cavalo,


discute a sua posição subalterna e desabafa:

M. hoje está tão triste, porque você pensa que lá [no outro mundo], lá
é pior do que aqui neste mundo. M. veio pra aproveitar a tristeza pra
fazer essa entrevista. E outra coisa: tive que ter permissão! E M. fala
muito e eles não gostam de M. por isso, e agora desliga... [...] Lá é
muito ruim, lá exige. É tudo vigiando pra obter luz as custas do seu
sofrimento. Eu sei que falando isso com você, eles vão me aprisionar.
Me aprisiona! Mas que eu vou falar, eu vou. E M. tá pouco me lixando
pra isso, pra eles, pra eles [‘entidades’ de nível superior]. Mas M. têm
que agradecer. Mas lá é ruim sim. Eu tive uma exceção daquele espiritual
[Deus], mas acho que ele pensa que eu tô falando muito e eu tô. Mas
eu tô porque, porque eu nunca posso falar e hoje eu posso falar12.

Este relato é bastante sugestivo para se pensar que a representação da


pomba-gira, ao manifestar no corpo de seu cavalo, parece atender
a muitos aspectos reprimidos que, clamorosamente, pedem passa-
, Goiânia, v. 5, n. 1, p. 107-127, jan./jun. 2007 122
gem e, nos terreiros de umbanda, seu comportamento permanece
escandaloso. Segue o mesmo relato:

Aqui pelo menos nesta casa [terreiro] eu posso beber, eu posso fumar, eu
só não posso transar... Aqui eu sou feliz, eu sou linda, que todos querem
e eu quero a todos!13

Com esse fragmento é possível perceber que essa personagem, ao se mani-


festar no corpo da médium, posiciona-se, num primeiro momento,
como a expressão do marginal que necessita desabafar, que quer ser
escutado, embora as conseqüências dessa ação possam lhe custar
muito caro. Mais uma vez, aqui se demonstra a metáfora da voz
subalterna que está em constante negociação para ser ouvida ...
Já num segundo momento, esta mesma entidade ao possuir o corpo de
seu cavalo, demonstra, em sua fala, que é possível, mediante nego-
ciação, manifestar a sua verdadeira identidade ou pelo menos o
que se espera que ela realmente seja. A liberdade pode ser conquis-
tada, basta querer! Mas é necessário estar atento ao preço a ser
pago. Contudo, na maioria das vezes, pode custar caro demais...
Aqui, mais uma vez, a metáfora da prostituição pode ser utilizada
como promessa de disponibilidade para o gozo!
Já em outra ocasião, respectivamente, numa gira de exus, uma outra
pomba-gira, C. S. E., incorporada na mãe-de-santo daquele ter-
reiro visitado, dona O., ao se aproximar de mim – neste momento
me encontrava filmando aqueles rituais –, discorre sobre a ima-
gem que as pessoas têm do seu povo, sobre a importância da dou-
trinação dessas entidades e, sobretudo, a importância do trabalho
espiritual que as pombas-giras desenvolvem nos terreiros de umbanda.
Segue o diálogo, gravado em fita de vídeo em 13.06.2003, na
festa de encruza, em Planaltina(DF):

C.S.E. [incorporada na mãe-de-santo]: O que está fazendo aqui, moço?


S: Estou filmando a festa de vocês, para uma pesquisa.
C. S. E.: Pra contar a nossa vida pros outros, né?
S.: Sim.
C. S. E.: E você tá gostando?
S.: Estou.
C. S. E.: Nossa vida é assim, moço, é na rua, é sambando, é nas
calungas. E nós tamos aí pra ajudar aqueles que diz que não precisa
123 , Goiânia, v. 5, n. 1, p. 107-127, jan./jun. 2007
de nós, mas aquele grande que manda nisso tudo aí [Deus], ele dá
ordem pra nós chegar a cá, entendeu? Porque sem a ordem dele, a
gente não faz nada. Como vocês aqui não são nada sem ele, sem aquele
grande. E nós respeita o grande. Nós não faz nada sem a ordem dele,
entendeu? Tá assistindo nós, né? E Nós tamos aí. Nós somos assim,
como diz assim: Dizem que nós tem chifre, que nós tem rabo. Se não
fosse nós pra ‘trabalhar’, os filhos dessa terra tava tudo no buraco, sem
saída. E nós não, nós abre as estradas pros filhos caminhar. Pode ter
certeza que a sua estrada nós estamos seguindo. Eu sou a C. S. E., com
muito prazer. Estou aqui pra ‘trabalhar’ pra que você quiser. Boa Noite!
S: Boa Noite!

Como mulheres bonitas, atrevidas e impetuosas, as pombas-giras carre-


gam consigo toda a idéia de ambigüidade. Elas parecem represen-
tar, no contexto umbandista, uma imagem invertida da concepção
que situa o espaço doméstico como o espaço feminino por excelên-
cia e onde os recursos femininos estão definidos complementar-
mente aos personagens masculinos. As pombas-giras, ao contrário,
são percebidas como uma ameaça a esse espaço doméstico e às
relações aí legitimadas.
Sendo a imagem modelar da liberdade, da não padronização dos costu-
mes, posturas, atitudes e da livre realização do desejo, a pomba-
gira coloca-se como a mascarada, a anti-esposa, a negação da mãe
de família, na medida em que sua imagem é definida na forma não
complementar aos homens.
A sua sexualidade, por exemplo, não está a serviço da reprodução. Ela
usa a sua sexualidade em benefício próprio. Os poderes e perigos
de sua imagem estão certamente associados a essa liminaridade.
Em outras palavras, a imagem da pomba-gira seria a contraface de
uma outra: aquela da mulher associada à casa, à família, às esferas
mais controladas socialmente.

CONCLUSÃO

Para se compreender a quimbanda é preciso entender de que maneira ela


opera com as representações simbólicas da violência e da trans-
gressão que estão contidas em seu universo. Se, de um lado, a
umbanda busca se posicionar como uma forma de suavidade, com-
portada, filtrada da cultura brasileira, a quimbanda, por outro lado,
, Goiânia, v. 5, n. 1, p. 107-127, jan./jun. 2007 124
afirma-se como uma contracultura reprimida, que em seus rituais
busca exprimir sempre o desejo total de libertação.
Os representantes da quimbanda são os exus e as pombas-giras, referidos
habitualmente, nos terreiros afro-brasileiros, como o povo da rua.
Esses personagens representam facilmente a massa anônima que
circula pelas cidades, os trabalhadores, os vagabundos, os malan-
dros, os gigolôs, as prostitutas etc. enfim, as pessoas comuns que
ocupam o espaço público nas suas idas e vindas. Eles são, sobretu-
do, as marcas da marginalidade, do anonimato e das relações im-
pessoais que permeiam o cotidiano urbano.
A rua apresenta igualmente um valor de metáfora: significa o que se põe à
margem dos valores familiares, mas do quais também dependem para
que possam subsistir com firmeza e vitalidade (a sexualidade, por exem-
plo). São acusados, sobretudo, de ser espíritos violentos e transgressores,
visto que expressam as vontades e os anseios de seus clientes, tornan-
do possíveis os desejos mais ilícitos mediante oferendas rituais.
Talvez venha daí, segundo os adeptos dos cultos afro-brasileiros, a fonte
maior dos poderes dessas entidades. Esta condição implica em perigo
e poder, conforme assinala Douglas (1976, p. 20): “ter estado nas
margens é ter estado em contato com o perigo e ter ido à fonte de
poder”. As margens são, assim, perpetuamente o santuário dos
conflitos sociais e também o lugar do trânsito. É evidente que
essas duas lógicas se cruzam, interpenetram-se, chocam-se.
É esse sugestivo poder simbólico das margens que é tão plenamente exer-
citado pelos que participam dos rituais de quimbanda. Exus e
pombas-giras convidam ao público à diluição das regras, da or-
dem e à entrega total aos desejos emocionais e à sexualidade de-
senfreada numa forma simbólica.

Notas
1
Baseando-se em Durkheim (1996), na sua obra Da divisão do trabalho social, vemos
que a “divisão do trabalho espiritual” existente no imaginário umbandista apre-
senta características em comum com aquela estudada por Durkheim em nossa
sociedade. A “divisão do trabalho espiritual” na umbanda é vista também como
fonte de coesão entre espíritos de diferentes categorias, dando origem a um certo
tipo de solidariedade que produz, ao mesmo tempo, uma moral, onde cada divin-
dade, ao desempenhar um determinado papel, marca o seu lugar dentro da hierar-
quia espiritual.
2
Exu N., “incorporado”, entrevista, Brasília(DF), mar. 2003, Médium M. R. femi-
nino.
125 , Goiânia, v. 5, n. 1, p. 107-127, jan./jun. 2007
3
Exu P. P, “incorporado”, entrevista, Brasília(DF), mar. 2003, Médium R., mascu-
lino).
4
Pomba-Gira da P., “incorporada”, entrevista, Brasília(DF), ago. 2003, Médium L.,
feminino).
5
Embora pareça estar falando de uma terceira “pessoa”, a pomba-gira M., “incor-
porada” em seu “cavalo”, faz menções a acontecimentos que teriam sido de sua
suposta vida terrena.
6
Pomba-gira M., “incorporada”, entrevista, Brasília(DF), mar. 2003, Médium M.
R., feminino).
7
Para uma versão individualizada do mito de Maria Padilha e sua configuração
como pomba-gira da umbanda, consultar: Meyer (1993).
8
Pomba-gira C., “incorporada”, entrevista, Brasília/DF, set. 2003, Médium O.,
feminino.
9
Pomba-gira M., “incorporada”, entrevista, Brasília(DF), mar. 2003, Médium M.
R., feminino.
10
Pomba-Gira M., “incorporada”, em entrevista, Brasília(DF), mar. 2003, Médium
M. R., feminino.
11
Pomba-Gira M., “incorporada”, entrevista, Brasília(DF), mar. 2003, Médium M.
R., feminino.
12
Pomba-Gira M., “incorporada”, entrevista, Brasília(DF), mar. 2003, Médium M.
R., feminino.
13
Pomba-Gira M., “incorporada”, entrevista, Brasília(DF), mar. 2003, Médium M.
R., feminino.

Referências

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NEGRÃO, L. N. A construção sincrética de uma identidade. Ciências hoje, São
Paulo, 1991.

Abstract: the article part of the premise of that all known symbolic ‘devilish’
and the transgressor of exus and the dove-turns – entities spirituals
that belong to the universe of quimbanda – constitute main essence
that it gives to sustenance and legitimacy to the rituals of quimbanda
that they make use of definitive symbols of inversion and transgression
that finish for if opposing and subverted the those that they are clearly
associates the universe christian.

Key words: violence, transgression, quimbanda

SULIVAN CHARLES BARROS


Doutor em Sociologia pela Universidade de Brasília. Especialista em Antropologia
e Mundos Contemporâneos pela UCB-DF. Professor no Centro Universitário Unieuro
e nas Faculdades Espam.
127 , Goiânia, v. 5, n. 1, p. 107-127, jan./jun. 2007

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