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Existência no Espaço e Tempo1

Por muitos séculos e mesmo desde o começo da nossa tradição filosófica, supôs-
se que o problema mais geral e mais fundamental da filosofia era: o que é ou o que nós
queremos dizer com ser? E considerou-se o centro do problema como sendo a questão
concernente ao ser de substâncias e indivíduos. Nos tempos recentes essa concepção
tradicional da ontologia recebeu golpes aparentemente devastadores em ambos os
aspectos: na sua concepção de um problema filosófico mais geral – o problema do ser – e
na sua convicção da questão central dentro do problema – o ser das substâncias.
Quanto ao problema geral do ser, a opinião comum corrente é que não há um tal
problema e que a crença num tal problema estava baseada numa simples ambigüidade da
palavra indo-européia para “ser”. Desde que eu não vou hoje tratar desse problema,
deixe-me somente ressaltar que essa reação tem sido precipitada. Como Charles Kahn
mostrou em sua profunda pesquisa dos usos do verbo ser na Grécia Antiga 2 não existe
realmente um uso do verbo ser que possa servir como uma pista para o que os filósofos
querem dizer com o problema geral do ser. É aquele uso do verbo ser que Aristóteles
chamou de  e que Kanh chama de senso verídico (veridical) de ser, que
fazemos em expressões tais como “assim é”, “é o caso de...”; o significado deste uso do
verbo ser é determinado pelo contraste com “parecer ser”.
O problema do ser verídico é, numa terminologia que nos é mais familiar, o
problema da forma da sentença assertiva (assertoric). E o estado fundamental
(fundamental status) que foi outorgado pela ontologia tradicional dentro da estrutura do
ser verídico para o ser de substâncias corresponde ao estado fundamental que alguém
pode alegar para indivíduos dentro da estrutura de discursos assertivos. Entretanto, de
acordo com a concepção tradicional, indivíduos não somente têm um estado fundamental
dentro da estrutura de ser verídico; nós podemos falar do ser de indivíduos; nós podemos
falar de qualquer coisa que ela é; e este ser – que também tem sido chamado ser no senso
absoluto (em contraste com o ser relativo expresso na cópula) – é ele mesmo um tipo de
ser verídico; ou, para pôr em termos mais familiares novamente, as declarações assertivas
básicas, declarações sujeito-predicado, pressupõem, de acordo com a concepção
tradicional, no seu termo sujeito, uma outra declaração que diz de alguma coisa que ela é.
Este ser no sentido absoluto não tem sido sempre chamado de existência. Aristóteles, por
exemplo, não usa uma tal expressão, e isto não é, como veremos mais à frente, somente
uma questão de terminologia. Mas da ontologia medieval tardia em diante o termo
existentia entrou em uso e, se aceitarmos isso, nós podemos expressar a doutrina
tradicional como segue: cada declaração sujeito-predicado “Fa” pressupõe uma
declaração existencial da forma “a é”, “a existe”. Mas aqui encontramos o segundo golpe
sofrido pela concepção tradicional: não só não há um conceito geral de ser, é dito ao
ontologista tradicional, como também não há uma tal coisa como um ser que possa ser
atribuída a um indivíduo. Todas as declarações de existência são também declarações
gerais.
Uma vez que vou pressupor, no que segue, que essa moderna teoria do ser é
correta, deixe-me brevemente dizer porque penso assim. A teoria começa com as assim
1
Unveränderte FAssung eines Vortages, der im Mai 1973 am Balliol College in Oxford gehalten wurde.
2
Charles H. Kanh, The Verb “be” in Ancient Greek, Dordrecht 1973
chamadas declarações gerais de existência tais como “tigres existem”. Uma tal
declaração, a teoria nos diz, não pode ser entendida como uma declaração predicativa na
qual existência está sendo atribuída individualmente aos tigres. Ao contrário, a palavra
“existem” deve ser tomada no sentido do quantificador existencial da lógica moderna. O
que a declaração diz é que, dentre todas as coisas no espaço e no tempo, algumas são
tigres. Vários filósofos deram diferentes razões para essa explicação e alguém pode
pensar qual realmente é a razão, desde que uma explicação correta pode ter apenas uma
razão. A razão clássica dada por Russell e Quine foi que, se nós entendêssemos a
existência predicativamente, nós seríamos compelidos a falar de não existentes. Este
argumento é problemático por duas causas. Primeiro, é meramente negativo: ele objetiva
explicar porque a existência não pode ser entendida como um atributo, mas não dá uma
razão positiva do porquê a existência deve ser entendida no mesmo sentido do
quantificador exixtencial. Segundo, nunca nos foi dado, tanto quanto eu sei, qual quer
razão decisiva do porquê nós não estaríamos aptos a nos referir a não existentes. Em
tempos recentes vários trabalhos têm sido publicados, que lidam com existência
imaginária ou dentro de uma estória e que mostram que nós realmente e freqüentemente
dizemos de algo que somente pressupomos como algo imaginário ou possível que esse
algo existe realmente ou não3. Os argumentos decisivos e positivos para a concepção
moderna das declarações gerais de existência me parecem ser os seguintes. Como
mostrou Wittgenstein, o que temos de fazer quando queremos saber qual é o significado
de uma certa forma de oração é perguntarmos a nós mesmos como nós poderíamos
explicar o uso dessa forma de oração. No caso da forma de uma oração assertiva, explicar
para alguém o seu uso, significa apontar-lhe as condições de verdade de uma oração
dessa forma. E, apontar a alguém as condições de verdade de uma oração termina por
explicar-lhe como dizer se tal oração é verdadeira. Até aqui, a velha teoria
verificacionista do significado, apesar de suas falhas, ainda está correta. Agora vamos
aplicar isso ao nosso caso. Se formos explicar a alguém o que é dizer se uma oração
predicativa – digamos “tigres rugem” – é verdadeira, nós deveríamos mostrar-lhe que
significa proceder um exame nos objetos referidos – os tigres – e verificar se o predicado
é verdadeiro para eles. Mas se formos dizer se uma declaração existencial como “tigres
existem” é verdadeira, obviamente é inútil verificar tigres possíveis. O que fazemos é
investigar coisas no espaço e no tempo para verificar se algumas delas são tigres. O modo
de dizer se uma declaração geral de existência é verdadeira é idêntico ao modo de dizer
se uma oração em que o predicado é precedido por um operador existencial é verdadeira;
e esta é a razão porque elas têm o mesmo significado.
O próximo passo na moderna teoria da existência foi entender declarações
singulares de existência fundamentalmente do mesmo modo como declarações gerais de
existência. Uma declaração da forma “o diabo existe” deve ser entendida como dizendo
“entre todas as coisas há uma e somente uma que é um diabo”. Que esta explicação
também seja a única correta deve ser visto, novamente considerando-se as condições de
verdade de uma tal oração e como nós determinaríamos se uma tal oração é verdadeira.
Agora, dessa moderna teoria da existência parece seguir-se que o conceito
tradicional de ser absoluto – um ser que seja o ser de um indivíduo – deve ser descartado.

3
Cf. R. Cartwrigth. “Negative Existentials”, Journal of Philosophy LVII (1960), 629-39; W.P. Alston, “The
Ontological Argument Revisited”, Philosophical Review, LXIX (1960), 452-74; P.F. Strawson, “Is
Existence Never a Predicate?”, Critica I (1967), 5-15.
Isso tem sido freqüentemente observado e facilmente visto considerando que a
combinação do quantificador existencial com um termo singular resulta em um sem-
sentido sintático. Declarações de existência onde a existência é definida pelo
quantificador existencial são essencialmente declarações gerais. Para citar Russell:
“Assim os indivíduos que existem no mundo não existem, ou antes, é sem-sentido dizer
que eles existem, bem como é sem-sentido dizer que eles não existem” 4. Aparentemente a
maioria dos filósofos analíticos que têm escrito sobre o assunto da existência pensaram
que com o ser de indivíduos nada substancial foi perdido; que foi apenas uma idéia
confusa da ontologia tradicional. Por que não seria suficiente usar a palavra “existe”
quando falamos de indivíduos geralmente e, quando falamos de um indivíduo
singularmente, usar, como na última análise, um demonstrativo ou pronome pessoal e
encerrarmos a questão? Alguém também poderia argumentar que mesmo garantido que
faz sentido sintático dizer “isto é”, o “é” é uma adição vazia. Mas penso que este
exemplo, mesmo que Moore tenha conseguido fazer alguma coisa com ele5, foi mal
escolhido; ele pertence a um período da filosofia quando os objetos reais primários eram
pensados como os dados dos sentidos. Em vez disso, vamos tomar um exemplo da vida
normal: a questão de Hamlet “ser ou não ser”. Aqui o tipo de ser concernido é o ser de
um indivíduo que perdura através do tempo e a respeito do qual faz sentido dizer que o
indivíduo existe para um certo período de tempo e que ele cessa de existir e não existe
mais.
Agora, foi precisamente essa noção de ser temporal que era significado pelo ser
de substâncias na tradição aristotélica. Para Aristóteles, estar vivo é uma espécie de ser.
“No caso de coisas vivas”, ele diz em De Anima, “ser é viver” (415 b13). Isto Aristóteles
pôde dizer ainda que ele notoriamente não tivesse o conceito de existência. Precisamos,
parece, estar preparados para distinguir entre a noção Meinonguiana6 tardia de existência
e o conceito mais antigo da tradição de ser dos indivíduos. A crítica perante a qual o
conceito de existência de Meinong sucumbiu não se aplica automaticamente ao ser
temporal.
Na filosofia analítica contemporânea, depôs que os dados dos sentidos saíram de
moda e o ser dos objetos no espaço e tempo é visto novamente como um tópico
fundamental da filosofia, alguns filósofos se deram conta desta noção de existência
temporal e sua irredutibilidade ao quantificador existencial. Mas não consegui encontrar
qualquer tentativa de examinar essa noção para esclarecer suas conexões sistemáticas
com outros conceitos ontológicos como o quantificador existencial e os conceitos que são
tidos como fundamentais para nossa habilidade para nos referirmos a indivíduos no
tempo e espaço. Certamente é insatisfatório apenas distinguir os dois conceitos de
existência. Parece também haver uma conexão entre eles, assim como parece óbvio
quando nós fazemos tais questões como “Rômulo existiu e, se existiu, se uma tal pessoa
existiu, quando ela existiu?”. No presente trabalho, desejo empreender alguns passos
rumo ao esclarecimento da posição sistemática do conceito de ser temporal dentro da
estrutura conceitual que subjaz nosso entendimento de ser verídico e, em particular, sua

4
Russell. Logic and Knowledge, London 1956, 252
5
Moore. Philosophical Papers, London 1959, 124-126
6
NT. Meinong Alexius Ritter von Handschuchsheim. Filósofo Austríaco (1853-1928) que distinguiu vários
níveis de realidade (existência, ser, subsistência e ser-assim).
conexão sistemática com os conceitos que determinam nossa referência a indivíduos no
espaço e no tempo.
Uma vez que eu vou restringir-me à significância da existência temporal dentro da
estrutura teórica do discurso assertivo, deixe-me, antes que eu inicie, apenas mencionar o
fato deste conceito poder cumprir um importante papel nos problemas a que a filosofia
analítica chegou na esfera prática. Parece-me uma importante realização que Ryle e
outros tenham redescoberto a teoria aristotélica do prazer (enjoyment), de acordo com a
qual o prazer não é alguma coisa que possamos desejar, mas algo que experimentamos
quando podemos fazer o que nós desejamos. Kenny mostrou em seu livro “Ação,
Emoção e o Desejo (will)” que as únicas coisas que se qualificam como objetos últimos
do desejo são atividades ou estados. Tendo atingido uma tal posição, a questão seguinte
que seria natural colocar-se é se existe alguma atividade ou estado para o qual nosso
desejo é dirigido primariamente que possa servir como ponto de referência para nossas
decisões relativas a atividades particulares. Para Aristóteles essa atividade abrangente era,
é claro, a atividade de viver, que é uma espécie de existência temporal. Desde que o
hedonismo foi abandonado em favor de uma teoria aristotélica do desejo e da atividade,
dificilmente parece satisfatório seguir Aristóteles apenas metade do caminho. Parece ser
característico dos animais humanos que eles tenham consciência da sua existência
temporal, uma consciência que não é apenas teórica, mas prática, no sentido que nós não
apenas tomamos conhecimento da existência, mas continuamente, ainda, é claro, que
raras vezes explicitamente, escolhemos entre continuar existindo ou deixar de existir.
Essa escolha pode, como Heidegger advogou, ser considerada fundamental em relação a
todas as outras escolhas, não somente no sentido que somente se nós decidirmos
continuar existindo nós podemos decidir fazer isto ou aquilo, mas no sentido que cada
decisão para fazer alguma coisa consiste numa especificação de como nós desejamos
conduzir nossa existência.
Mas eu somente quis mencionar ente lado do problema. Eu não vou segui-lo. Meu
trabalho estará interessado somente no conceito geral do ser temporal, não com sua
especificação biológica ou mesmo antropológica.

I.
Não atacarei o problema da existência temporal diretamente, mas começarei com
um problema que, em minha opinião, está intimamente conectado com ele e que, em
contraste, recebeu muita atenção na literatura recente. Refiro-me ao problema de como
nos referimos a indivíduos no espaço e no tempo, aqueles indivíduos que Strawson
chamou de particulares. Parece plausível que a questão do que significa ser par um
indivíduo não seja independente da questão de como nós podemos falar sobre ele. Além
disso, nós podemos dizer desde o começo que ambos os problemas tem algo em comum
em tal grau que em ambos os casos da moderna teoria da existência tenderam a substituir
o que é singular pela declaração geral de existência, uma tendência que chegou à plena
realização com o trabalho de Quine. E, a respeito da referência, uma contraposição foi
desenvolvida por Strawson. Não poderíamos então tentar utilizar os resultados de
Strawson concernentes à referência par nosso problema do ser de indivíduos?
Mas quais são exatamente os resultados de Strawson? Preciso confessar que isso
me parece longe de estar claro. Numa série de publicações nos anos cinqüenta e início
dos sessenta Strawson atacou a posição de Russell e Quine desde muitos ângulos; alguns
argumentos dos primeiros artigos foram deixados de lado nos posteriores, mas sem
explicação; além disso, Russell e Quine, mesmo tendo tomado fundamentalmente as
mesmas posições, como o próprio Strawson notou uma vez, foram atacados por Strawson
com diferentes argumentos. Infelizmente não existe até aqui um post scriptum de
Strawson em que ele revisse retrospectivamente seus diferentes argumentos e dissesse
onde ele pensa que a controvérsia esteja agora. Isso levou, em minha opinião, a enganos.
Argumentos secundários foram confundidos por alguns como assunto principal.
Nós não podemos então nos apoiar em qualquer resultado fixo e temos que ver
por nós mesmos, através de uma revisão rápida dos artigos de Strawson, o que é o
assunto realmente. Claro que preciso restringir-me aos pontos que considero
absolutamente central. Essa revisão irá finalmente, por si mesma, levar-nos ao conceito
de ser absoluto, o ser dos indivíduos. Tentarei mostrar que o que eu considero ser o
núcleo da posição de Strawson só pode ser mantido com ajuda desse conceito.
Começo com o artigo “Sobre a Referência”. Na literatura sobre a assim chamada
controvérsia Russell-Strawson o principal argumento de “Sobre a Referência” é
considerado como sendo o argumento exposto na terceira seção do artigo. E muitas
observações que o próprio Strawson fez em artigos posteriores parecem dar suporte a
essa visão. Na minha opinião isso é um completo mal-entendido sobre o assunto. O
argumento da terceira seção de “Sobre a Referência” é somente um desvio e tem levado a
maioria dos intérpretes para fora do caminho. Vamos dar uma olhada nele. De acordo
com a teoria das descrições, uma frase que consiste de uma descrição mais um predicado
é uma declaração existencial única. Contra esse ponto de vista Strawson mantém que
quando nós fazemos uma declaração por meio de uma frase dessa forma nós não
asseveramos a existência de um e somente um objeto ao qual a descrição se aplica, mas
somente sugerimos (imply) num sentido especial de “sugerir”. Para explicar e
simultaneamente provar seu ponto, Strawson diz que quando fazemos uma tal declaração
e acontece que o objeto ao qual nos referimos não existe nós não deveríamos dizer que a
declaração é falsa, mas que a questão de sua verdade ou falsidade não aparece.
Uma vez que a controvérsia entre Russell e Strawson foi pensada geralmente
como girando em torno desse assunto, algumas pessoas pensaram que eles poderiam
decidir a questão de um jeito ou de outro fornecendo evidências de que nós usualmente
consideramos, ou não, uma declaração desse tipo falsa caso a descrição revele não ter
uma aplicação única. Em minha opinião, isso é ridículo. O que Strawson tentava mostrar
era, por fim, que a teoria das descrições continham um erro fundamental concernente ao
modo como tais declarações funcionam. Mas então, o que deveria ser mostrado era que
tais declarações não podem funcionar no sentido de Russell, não simplesmente que elas
não podem funcionar de fato. Agora, se de fato nós somente pressupomos ou realmente
afirmamos, no uso normal de tais frases, que a descrição tem uma única aplicação, nós
certamente poderíamos dizer tudo o que dizemos se afirmássemos o que de fato nós
poderíamos apenas estar pressupondo. Se a diferença entre as concepções de Russell e
Strawson para tais frases consistiam somente em se nós pressupomos ou afirmamos uma
certa proposição existencial, o erro de Russell – se é que seja um erro – consistiria
simplesmente em dizer algo supérfluo. O que esperaríamos que Strawson estivesse
alegando não seria que Russell tenha dito coisas demais, mas de menos. Não que ele
tenha dito algo supérfluo, mas que ele tenha falhado em explicar alguma coisa. E essa
alegação está contida no artigo de Strawson. O que, de acordo com Strawson, a teoria das
descrições não explica nem poderia explicar é o que Strawson considera ser a função
genuína de uma expressão descritiva, e esta é, assim como a função de qualquer outro
termo singular, a função de referência unívoca que consiste em “habilitar o ouvinte ou
leitor a identificar aquilo de que se está falando”7. Agora, parece óbvio a Strawson que
esta função de identificação não pode ser cumprida por uma declaração existencial. Uma
declaração existencial, mesmo uma declaração existencial única (unívoca) é
essencialmente uma declaração geral sobre todos os objetos e, portanto, uma tal
declaração não pode, por si mesma, cumprir a função de habilitar o ouvinte a identificar
aquele objeto ao qual o falante se refere.
A teoria da referência por identificação é o novo importante ponto trazido por
Strawson; é aqui que ele diz algo mais que Russell e é aqui, portanto, onde o está situado
o assunto real. O próprio Strawson parece ter pensado que este assunto no qual Russell
disse muito pouco é idêntico ao outro assunto ande Russell falou muito, mas eu penso
que nós podemos ver que os dois assuntos são realmente independentes um do outro. De
acordo com ambos os filósofos há uma afirmação envolvida numa declaração descritiva
que, de acordo com Russell, é afirmada e, de acordo com Strawson, é apenas sugerida e,
de acordo com Strawson a expressão descritiva tem em adição uma função de
identificação. Que os dois assuntos são independentes, pode ser visto do fato de alguém
poderia sustentar que a expressão descritiva serve para identificar e também inclui uma
asserção explícita de existência. Se isso for verdade, nós podemos esquecer o que
algumas pessoas pensaram ser a questão entre Strawson e Russell e nos concentrar no
assunto principal.
Nosso próximo passo deve ser conseguir um entendimento mais firme daquela
função que, de acordo com Strawson, está ausente na teoria das descrições. Como uma
expressão lingüística realiza a função de identificar que está sendo falada? Podemos aqui
fazer uso da descrição completa que Strawson deu mais tarde em “Individuals”. Um
particular, ele demonstra ali, pode ser identificado, ou sendo diretamente localizado por
meio de uma expressão demonstrativa ou “por uma descrição que o relacione unicamente
a um outro particular que pode ser demonstrativamente identificado”8. Então, é o
elemento demonstrativo da linguagem que é essencial para a identificação de particulares
e que está ausente na teoria das descrições. Se formos falar de um particular particular
(particular específico?), terá que ser ou diretamente, ou indiretamente através de um
demonstrativo.
Agora, o próprio Russell, é claro, não alegou que a teoria das descrições poderia
dar conta do modo como nós falamos de particulares. Há, de acordo com Russell, um tipo
irredutível de expressão, unicamente pela qual podemos nos referir a um particular
particular, o nome próprio lógico. E, desde que, de acordo com Russell, nós podemos
nomear apenas aquilo com o que estamos familiarizados, o nome próprio lógico tem
também um elemento demonstrativo. Mas a noção semântica, na qual Russell baseou sua
concepção, foi aquela da concepção tradicional errônea de um nome próprio como uma
expressão que simplesmente representa a coisa que ele nomeia. Os nomes próprios
lógicos de Russell não funcionam, se é que cumprem alguma função, de demonstrativos.
Duas coisas são características de um demonstrativo: primeiro, o que Strawson
ressaltou em “Sobre a Referência”, que a referência de uma tal expressão, mas não seu

7
Strawson, Lógico-Linguistic Papers. London, 1971, 19
8
Strawson. Individuals London 1959, 21
significado, muda normalmente com cada ocasião de seu uso; e segundo, é da essência de
um demonstrativo que a coisa que, de um ponto de vista, é referida por um demonstrativo
pode ser identificada, de um outro ponto de vista, como a mesma coisa por meio de um
demonstrativo diferente, ainda que sistematicamente conectado; por exemplo: isto que eu
vejo aqui é a mesma coisa que você viu ali. É importante ver que na identificação que é
efetuada por demonstrativos, eles a efetuam por meio dessa referência cruzada com cada
outro. Agora, desde que Russell concebeu os seus quase-demonstrativos como nomes
próprios, eles não poderiam funcionar da maneira dessas referências cruzadas e, portanto,
sua função não poderia ser aquela de identificar. Strawson estava certo, portanto,
afirmando que a função lingüística básica da identificação fica perdida na teoria de
Russell; nem a teoria das descrições, nem seu complemento russeliano, a teoria dos
nomes próprios lógicos, podem dar conta dela. Entretanto os nomes próprios lógicos
foram uma ficção de qualquer modo, e, portanto, foram abandonados nos
desenvolvimentos posteriores da teoria de Russell por Quine. Para Quine, a teoria das
descrições é aplicável a todas as declarações-sujeito-predicado; conseqüentemente todos
os termos singulares tornam-se supérfluos e todas as declarações que parecem ser sobre
um particular particular mostram-se ser declarações existenciais unívocas, e quer dizer
declarações sobre todos os particulares.
Então Strawson foi confrontado com a teoria das descrições novamente, e desta
vez, numa forma radicalizada. Enquanto Russell deu, com seus nomes próprios lógicos,
uma descrição errônea de como nós podemos nos referir a um particular particular, Quine
parece abolir a função da referência unívoca totalmente. “Somos agora convidados”, diz
Strawson, “a considerar uma linguagem possível na qual referências identificadoras a
objetos não são feitas de modo algum”.9 Num artigo publicado em “Mind” de 1956,
Strawson se encarrega de mostrar que, se nós nunca estivéssemos aptos a falar de um
particular particular, nós também não poderíamos falar de particulares em geral. Para
estabelecer esse ponto Strawson produz o seguinte argumento10. Para entendermos
qualquer predicado, nós temos que ter aprendido alguns predicados “por confrontação
direta”. Agora, se um predicado deve ser aprendido – como um predicado aplicado a
particulares - numa situação de confrontação direta, então deve ser aprendido como um
predicado de um particular identificado demonstrativamente. Assim, o entendimento de
uma declaração da forma “existe alguma coisa que é F” pressupõe o uso de declarações
da forma “isto é F”.
À essa crítica Quine respondeu numa nota ao § 38 de “Mundo e Objeto”. De
acordo com essa nota Strawson cometeu um erro fundamental assumindo que a
eliminação de termos singulares implica a eliminação de demonstrativos. Quine concorda
com Strawson que demonstrativos não podem ser eliminados, mas eles podem, ele diz,
ser muito bem acomodados dentro da própria teoria das descrições, por maio de dar-lhes
um estado de predicados. Nós podemos dizer, ao invés de “este F é G”, “Existe um e
somente um F que está aqui e é G”.
Há muitas indicações de que Strawson aceitou essa crítica: primeiro, apesar de
que ele mesmo a tenha antecipado em seu artigo de 1956, ele em nenhum lugar, tanto
quanto eu posso ver, respondeu a ela; segundo, ele em nenhum lugar retomou o seu
próprio argumento de 1956, nem em “Individuals”, nem em seu segundo artigo contra

9
Strawson, “Singular Terms, Ontology and Identity”, Mind LVI, 1956, 445
10
Op. Cit. 446
Quine, o artigo “Singular Terms and Predication” (1961); terceiro, Strawson não incluiu
o artigo de 1956 em seu “Lógico-Linguistic Papers”. Parece, então, que depois da contra
crítica de Quine, Strawson abandonou tacitamente seu argumento do artigo de 1956. Mas,
se é assim, alguém poderia imaginar o que fica da posição de Strawson como um todo. Se
o argumento decisivo de Strawson contra a teoria das descrições era que ela não poderia
dar conta da referência identificadora de particulares, então o argumento de Quine de que
os demonstrativos podem cuidar da identificação numa posição predicativa é, se correto,
um contra argumento decisivo.
A situação parece mais crítica para Strawson do que poderia, a princípio, parecer.
Isso se torna aparente tão logo nós perguntemos como Strawson explica a própria função
de identificação a seguir. Devemos lembrar que em “Individuals” dois tipos de
identificação foram distinguidos, identificação demonstrativa direta e identificação
relacionando-se o particular referido unicamente a um particular que seja identificado
demonstrativamente. Agora Strawson continua mostrando que em ambos os casos a
referência identificadora repousa ou remonta a uma proposição unicamente identificadora
(p 180 ss). Portanto uma expressão da forma “este F” identifica com sucesso um
particular caso a proposição “Existe somente um F aqui onde eu estou apontando” seja
verdadeira (p. 190)
Chegamos a um ponto crucial. Vamos recordar que Strawson afirmou que o que é
perdido na redução de declarações-sujeito-predicado é a função de identificação, e agora
nos é dito (e isso é claramente correto) que a função de identificação por sua vez depende
de uma proposição existencial unívoca. Strawson, para se claro, é cuidadoso ao
caracterizar essa dependência de tal modo que a proposição existencial unívoca é
somente pressuposta, não afirmada. Mas nessa altura é difícil ver a força que fica nesta
distinção. Nada seria perdido se, no lugar de dizermos “este F é G”, nós sempre
disséssemos “há somente um F aqui e ele é G”. A razão pela qual nós não falamos desse
jeito é simplesmente porque seria enfadonho; a função de identificação seria cumprida
igualmente bem.
Assim nós chegamos a um resultado surpreendente. Strawson tinha, no início,
afirmado que o que seria perdido pela redução a uma declaração identificadora unívoca é
a função de identificação; e agora parece que a função de identificação não somente é
compatível com uma declaração identificadora unívoca, mas também que essa função
pode ser cumprida somente por meio de uma tal declaração, quer seja afirmada ou
pressuposta. Chegamos então, por meio de um argumento do próprio Strawson a uma
defesa ainda mais forte da teoria das descrições que aquela que encontramos em Quine.
Quine argumentou somente em favor da dispensabilidade dos termos singulares como
uma possibilidade teórica. Mas agora nós vemos que a única coisa que é indispensável
para a própria função que Strawson apresentou é a declaração existencial unívoca.
Pareceria então que o assentimento tácito de Strawson à crítica de Quine de seu
artigo de 1956, combinado com sua própria demonstração do papel fundamental de certas
proposições existenciais para a função de identificação, decidiu finalmente o assunto em
favor da teoria das descrições e contra Strawson.
Pode ser, porém, que este resultado negativo não seja fatal para o pensamento
subjacente de Strawson, especificamente que identificar um particular particular não pode
ser reduzido a dizer de todos os particulares que existe um e somente um que tenha certas
propriedades. A distinção que Strawson tinha em mente não deve ser, como ele a
apresentou, uma distinção entre termos singulares e declarações existenciais, mas entre
dois tipos de declarações existenciais. Agora que temos visto que a função de
identificação está, na última análise, baseada em certas declarações existenciais, o
próximo passo mais natural é perguntar se essas declarações existenciais que têm a
função de identificar não diferem em tipo de outras declarações existenciais.
Strawson distinguiu identificação direta e indireta. Penso que há uma
característica comum e distintiva das declarações existenciais que subjazem esses dois
tipos de identificação. Para vermos isso, nós devemos primeiro olhar mais de perto a
identificação indireta. De acordo com Strawson, nós identificamos uma coisa
indiretamente “por uma descrição que a relacione unicamente a um outro particular que
pode ser identificado demonstrativamente”. Em algum sentido de identificação isso pode
ser verdadeiro. Mas no uso da palavra “identificação” feito por Strawson parece haver
certa ambigüidade. Um falante, como ele explica, identifica um particular para um
ouvinte se ele possibilita a escolher ou selecionar (separar) o indivíduo de que está
falando.11 Agora, as expressões “escolher” e “selecionar” não significam exatamente a
mesma coisa. Nós podemos selecionar alguma coisa dando-lhe uma descrição única, mas
isso por si só não nos coloca ou nossos ouvintes numa posição de escolhê-lo no sentido
de saber como encontrá-lo, de saber qual seria a situação em poderíamos dizer “é este
um” (é este aqui). Agora, se identificação for entendida no sentido amplo de
simplesmente selecionar, não haveria diferença entre identificação e descrição única. Se,
por outro lado, for entendida no sentido restrito de habilitar alguém a escolher, então a
caracterização de identificação indireta de Strawson é muito ampla. Quando alguém
caracteriza uma coisa de que está falando como a única coisa que tem relação R com esta
coisa aqui, coisa não é mais identificada do que quando é caracterizada como a única que
tem a propriedade F. Em ambos os casos nós devemos esperar a resposta: mas que coisa é
essa que é assim caracterizada ou está em tal relação com essa aqui? Não nos é dada
nenhuma indicação da situação em poderíamos dizer “é este aqui”. Uma tal indicação só
é dada no caso de ralações espaço-temporais, quer dizer, onde a posição espaço-temporal
da coisa referida é identificada em relação à própria posição da pessoa. O próprio
Strawson chamou a atenção, em “Individuals”, para o “sistema de relações espaço-
temporais” como um único e abrangente sistema de identificação indireta. Entretanto,
para Strawson, é só a abrangência desse sistema de ralações que dá a essas relações uma
posição especial entre todas as outras relações pelas quais alguma coisa pode ser
unicamente relacionada a alguma outra coisa que seja identificada demonstrativamente.
A localização espaço temporal de uma coisa não tem uma significação especial para a
identificação como tal. Eu penso, entretanto, que pode ser visto facilmente que o sistema
espaço-temporal é mais que só um sistema abrangente em que cada coisa está unicamente
relacionada a esta aqui. A característica importante desse sistema é que cada posição sua
é por si só um potencial aqui e agora e, por outro lado, a identificação de alguma coisa
como aqui-e-agora essencialmente implica sua possível identificação de uma outra
posição como ali-e-então que tem aquela tal relação espaço-temporal com um novo aqui-
e-agora. Pronomes demonstrativos e pessoais são todos essencialmente espaço-temporais,
e seu uso implica a referência cruzada espaço-temporal aos outros demonstrativos que
estão sistematicamente conectados com eles. A menos que essas referências cruzadas
estivessem implicadas elas não teriam função e então não existiriam. Se nós não
11
Cf. Mind, 1956, 445, 439; Individuals, 16,18
pudéssemos datar, não teríamos uso para “agora”. Se portanto a identificação de um
particular e conseqüentemente o próprio particular é entendido em conexão com nosso
uso de demonstrativos, como o é para Strawson, devemos entender que o sistema espaço-
temporal forma um sistema de identificação demonstrativo. Deveríamos também prestar
atenção ao fato de que, se o particular a ser identificado é um objeto material, qualquer
identificação demonstrativa única é somente uma identificação parcial. Uma identificação
completa através de sua existência significaria segui-la através de todas as localizações
que ela ocupa durante sua vida, e não seria parte dessa identificação completa enumerar
quaisquer predicados ou relações, ainda que sejam eles tão únicos que fosse verdade do
objeto durante algum ou todo o tempo de sua existência.
No sentido restrito de identificação cada identificação indireta consiste, então,
numa localização espaço-temporal. Nós somos levados, portanto, ao resultado em que
todas as declarações existenciais que têm a função de identificação, quer seja direta ou
indireta, são de um tipo, tanto quanto todas afirma a existência única de um F em um
certo lugar e um certo tempo. Se meu raciocínio estiver correto, o problema inteiro de
identificação-de-particulares é direcionado para a questão de como nós iremos entender
um a tal declaração existencial locativo-temporal.

II.

Deixe-me iniciar a segunda parte da minha comunicação retomando o contexto da


controvérsia entre Quine e o artigo de 1956 de Strawson a que temos chagado. Vou tentar
mostrar que a posição e Quine pode ser ainda reforçada, mas que esse reforço conduz a
uma defesa não de sua própria posição, mas de Strawson, ainda que não nos próprios
termos de Strawson. Contra o argumento de Strawson que termos singulares não são
elimináveis porque demonstrativos não são elimináveis, Quine respondeu primeiro que
“Este F” pode ser convertido em “há um F que está aqui e que” e, segundo, que “aqui”
pode ser entendido como um predicado. Desses dois pontos, o primeiro precisa ser ainda
mais fortalecido e o segundo, pelo menos suplementado. Vamos tomá-los em ordem.
Não só é possível substituir a expressão “este F” por “há um F aqui que”, mas
essa última frase é, de fato, a mais fundamental, simplesmente porque, quando alguém
diz “este F” é sempre possível que não haja um F aqui. A expressão “este”, mas não as
expressões “aqui” e “agora” podem falhar em referir. E isso se aplica igualmente a toda
localização espaço-temporal. Ainda que Strawson nunca tenha explicado porque toda
identificação pressupõe uma declaração existencial, a razão porque isso é assim fica
agora aparente. A necessidade de apoiar o termo singular identificador direto ou indireto
em uma declaração existencial não é idêntico, mas análogo ao que levou Russell à teoria
das descrições. Para Russell, a declaração existencial geral dava conta da possibilidade de
não haver uma coisa a que a descrição se aplicasse univocamente; no caso do termo
identificador singular a declaração existencial locativo-temporal dá conta da
possibilidade de que, no lugar e tempo identificados, não haja um F. A razão porque um
termo identificador singular deve ser fundamentado por uma declaração existencial
locativo-temporal é, então, que a identificação de objetos é efetuada via identificação da
localização.
Procedo á segunda afirmação de Quine de que expressões de localização e
datação em declarações existenciais locativo-temporais podem ser entendidos como
predicados. Isto pode, à primeira vista, parecer muito natural, mas devemos notar que, se
entendemos tais expressões como predicados, eles são predicados diádicos (2-place), isto
é, eles expressam uma relação. Agora, se estar em um lugar é uma relação, então a
expressão que indica um lugar é um termo singular. Assim chegamos ao resultado algo
paradoxal que, seguindo o argumento de Quine contra Strawson, nós vemos que a
declaração fundamental de Strawson, é que está sendo defendida; de que se a
identificação é possível, termos singulares não podem ser eliminados.
O próprio Strawson não devia estar muito contente com essa defesa de sua
posição. No sétimo capítulo de “Indivíduals” ele rejeitou a concepção de expressões
locativas e temporais como termos singulares. Mas ele não apresentou uma alternativa
positiva de como essas expressões deveriam ser entendidas. O que ele conseguiu
demonstrar é, penso, somente que nenhuma identificação de lugares e tempos é possível
sem a identificação de coisas e eventos. E, no primeiro capítulo do livro, ele, de fato,
mostrou que há uma mútua dependência entre identificação de coisas e a identificação de
lugares uns nos outros. Eu penso que a identificação de particulares dependem de dois
fatores essenciais: primeiro deve haver alguma coisa como um campo para uma
pluralidade de particulares, e, segundo, deve haver um fator de distinção que permita
delimitar um particular nesse campo. O fator de distinção torna-se possível através de
coisas e eventos, enquanto que o campo subjacente seja mobiliado por espaço e tempo.
São espaços e tempos e não coisas e eventos que formam um sistema para a identificação.
As relações que constituem a estrutura de identificação são espaciais e temporais. E esta é
a razão pela qual expressões locativas e temporais não podem, ainda que haja (como
Strawson reforçou) uma certa indefinição quanto a sua referência, falhar em referir. É
neste sentido e somente neste sentido que elas são o tipo mais fundamental de expressão
singular. Coisas e eventos podem ser identificadas somente como estando em um lugar e
num tempo.
Agora é nesse ser/estar em um lugar e um tempo que a noção tradicional de ser
absoluto reaparece dentro do contexto moderno do problema da referência. Neste
contexto a significância do ser absoluto pode agora ser explicado como segue. Existem
duas pluralidades de particulares ou, se preferir, dois universos de discurso sobre
particulares: lugares e tempos de um lado e objetos – coisas e eventos – de outro. A
primeira pluralidade possui uma unidade sistemática intrínseca; cada item é identificado
por uma relação como cada outro item da mesma pluralidade. Em contraste, os itens da
segunda pluralidade estão espalhados; eles somente podem ser identificados em termos
da primeira, a pluralidade sistemática, pela sua presença em um lugar e um tempo. É essa
presença de um objeto no tempo e no espaço que constitui seu ser, que nós chamamos, no
caso de um objeto material, sua existência e, no caso de um evento, sua ocorrência.
Vou desconsiderar os eventos, uma vez que é discutível se eventos não são, como
estados, objetos de segunda ordem, baseado no nosso uso de predicados. Vou me
restringir ao ser de objetos materiais ou, de forma mais geral, coisas extensas. Elas são
caracteristicamente itens espaciais que preservam sua identidade enquanto mudam sua
posição no espaço; sendo extensa, uma tal entidade é uma parte de nosso sistema espaço-
temporal de identificação, e ainda, enquanto muda sua posição no sistema, ela é,
relativamente ao sistema, uma unidade independente. O que chamamos de sua existência
é o fato de sua independência dentro do sistema e, desde que essa independência é aquela
de um item espacial relativa às coordenadas espaciais do sistema, o quantum de
existência pode somente ser medido pela coordenada temporal. É por isso que, apesar de
tempo e espaço serem igualmente essenciais para a identificação de uma coisa, a
existência da coisa é essencialmente temporal; os limites dentro dos quais ela existe são
datas, não lugares. Para uma coisa extensa ser, então, significa estar presente em algum
lugar no espaço durante um certo tempo.
Como entenderemos essa presença? Ser/estar em algum lugar e em algum tempo
realmente um atributo relacional como eu acabei de conceder a Quine? Uma expressão
verbal é um predicado? A fim de que se mantenha uma relação, no sentido normal da
palavra, entre dois particulares, os particulares devem ser identificáveis
independentemente da relação e, ainda que uma data seja identificável
independentemente do fato de haver uma certa coisa naquele tempo, a coisa não é
identificável independentemente de sua existência temporal. Um dos poucos filósofos
contemporâneos que levou em conta a existência temporal, C. J. F. Williams, apontou em
seu artigo “Sobre Morrer (on Dying)” em “Philosophy” de 1969 que um predicado não
intencional pode ser verdade de uma coisa num certo tempo somente se a coisa existe
naquele tempo e que disso se segue que, quando uma coisa tenha cessado de existir, sua
inexistência num tempo t2 não é um predicado, então sua existência num tempo t 1 não é
também um predicado. Obviamente vir-a-ser e deixar-de-ser são aspectos essenciais da
existência nós estamos agora lidando e, uma análise da existência temporal só pode ser
adequada se os levarmos em conta.
A teoria de Aristóteles do ser das substâncias era essencialmente determinada
pelo fato de que ele tentou levar em conta o nascimento e a morte e nós podemos
entender agora como ele poderia desenvolver uma teoria do ser absoluto sem o conceito
de existência da tradição posterior. Se, para uma coisa vir a ser de deixar de ser significa
adquirir ou perder o atributo da existência, uma pessoa acabará junto a Meinong.
Aristóteles não estava aquém, mas além de sua tradição. Ele fez duas assunções que eu
penso estarem corretas; primeiro que cada mudança pressupõe um fundo fixo que ele
concebeu como um substrato da mudança e, segundo, que o substrato de uma coisa
nascendo e morrendo não pode ser a coisa mesma. De acordo com Aristóteles não é o
objeto material que adquire ou perde sua presença, é a matéria que perde ou adquire seu
predicado qualificador12 (sortal predicate) que é constitutivo do objeto. Aristóteles então
interpretou o fato de ser um objeto como a presença do predicado qualificador
correspondente na matéria e essa presença foi entendida por ele como uma estrutura
quasi-predicativa. Isso explica porque o ser absoluto, o ser de uma substância, foi
entendido por Aristóteles como um tipo de ser relativo, como uma predicação, com a
tipificação como um predicado. Apesar de essa teoria do ser absoluto não ser satisfatória,
ela é certamente superior à teoria posterior que entendeu o próprio ser absoluto como um
predicado.
Se formos voltar às suposições de Aristóteles no contexto presente, poderíamos
entender o fundamento subjacente do nascer e o morrer de uma coisa como sendo o
espaço em vez de a matéria. Ainda que coisas materiais normalmente se decomponham
em suas partes materiais quando deixam de existir, a noção de deixar de existir de uma
unidade espacialmente independente é em si mesma mais geral e simplesmente conota
desaparecimento no espaço. Se a existência de um F consiste em estar presente um F

12
NT – Um predicado qualificador (sortal predicate) é aquele que constitui a coisa, que permite distingui-la
e contá-la, como “árvore”, por exemplo. Já “vermelho” não é um predicado selecionador.
numa série contínua de lugares durante um certo tempo, sua saída da existência consiste
no fato de que o caminho traçado no espaço se rompe. A existência de uma unidade
independente no espaço tem caracteristicamente a seguinte seqüência: um F aparece em
algum lugar no espaço, ele pode ser seguido como o mesmo F numa série contínua de
lugares, ele desaparece. Os dois estados que determinam o deixar-de-ser de uma coisa
deveriam ser entendidos como estados, não da coisa, mas do espaço. Mas como isso deve
ser formulado? Deveríamos, em analogia com a concepção de Aristóteles, dizer que a
presença de uma coisa é um quase-atributo do espaço ou parte do espaço? Isso não iria
servir obviamente. O rótulo “quase-atributo” sustenta sua incorreção em sua face e
certamente um termo singular por meio do qual nós nos referiríamos a uma coisa não
pode ser usado como predicado. Os dois estados que determinam o deixar-de-ser de uma
coisa não deveriam realmente ser descritos com o mesmo nome da coisa como um sujeito
– nós teríamos, então “a está presente em algum lugar em t1”, a está ausente de qualquer
lugar em t2” -, mas eles também não podem ser descritos com um termo singular
referindo-se a uma coisa como predicado. Se tomarmos o espaço como o fundamento
fixo do deixar-de-ser da coisa, nós teríamos antes algo como isso: “existe um F em algum
lugar”, “não há F em lugar algum”. Nós seríamos levados ao pnto de vista em que a
existência temporal seria expressa por um quantificador existencial. Mas, desse modo,
parece mais insatisfatório desde que tais sentenças são gerais; se dizemos “há um F em
algum lugar” a identificação da coisa única a é perdida.
Deveríamos, então, como Williams, chegar à conclusão de que a expressão para
existência temporal não deve ser entendida nem como um predicado, nem como nesse
sentido de quantificador existencial, e que ela, então, deve parecer ininteligível com base
nos conceitos que estão presentes à nossa disposição? Vamos em, vez disso, voltar à
minha afirmação que declarações existenciais locativo-temporais diferem em tipo de
outras declarações existenciais. Talvez elas tenham uma característica que nos permitam
encontrar um caminho fora do presente dilema.
Começo retornando uma vez mais à controvérsia entre Strawson e Quine. Resta
um argumento de Strawson contra a eliminabilidade de termos singulares que eu ainda
não mencionei. Este é o único argumento que ele parece ter mantido depois de 1956. É o
único que aparece em “Indivíduals” (p. 194-98). Este é o argumento de que orações com
quantificadores existenciais e um predicado somente podem ser entendidas se
entendermos também orações com um termo singular e um predicado. Neste argumento,
o pensamento que estava no centro do inteiro ataque contra Russell e Quine é uma vez
mais tomado numa forma generalizada. Ainda que Strawson não dê nenhuma razão que
suporte este argumento geral, eu penso que sua razão deve ser que não poderíamos falar a
respeito de coisas em geral se não pudéssemos também falar de coisas singularmente. E
isso, eu penso, é correto. Se digo “de todas as coisas algumas são F ou uma é F”, eu estou
dizendo algo como isso: “se você pegar todas as coisas, uma após a outra, você vai
encontrar uma ou alguma F”, e isso pressupõe que nós sabemos o que significa tomar
uma coisa após a outra que, por sua vez, pressupõe que possamos falar delas
singularmente. Mas está assim claro que de modo a falar de coisas singularmente nós
devemos usar termos singulares? Certamente não é claro como Strawson explicaria este
argumento abstrato concretamente depois de ter reconhecido que o uso de termos
singulares sempre pressupõe uma declaração existencial. Como tenho mostrado, nós
poderíamos substituir uma declaração existencial por cada predicação singular e, então,
poderíamos muito bem fazê-lo sem termos singulares contanto que mantivéssemos
expressões singulares para tempos e espaços. Somos levados, então, a transferir o
impacto do argumento de Strawson de termos singulares para a declaração existencial
que tem uma função identificadora, às declarações existenciais locativo-temporais. Não
deveria ser característico dessas declarações existenciais locativo-temporais, que as
distinguem de outras declarações existenciais, que elas possam ser usadas para fazer uma
referência singular?
A primeira coisa a se notar é que, se nós dizemos “há um F aqui”, nós não
estamos dizendo “se você tomar todas as coisas uma após a outra, você encontrará uma
delas que é F aqui”. Nós não podemos estar dizendo isso porque a idéia de tomar as
coisas, uma após a outra, já inclui a idéia de percorrer vários lugares. Que um F esteja
aqui não é algo que eu possa afirmar depois de tê-lo identificado, uma vez que se estar
aqui pertence à própria identificação. Nós precisamos portanto entender as declarações
existenciais locativo-temporais não como declarações sobre todas as coisas no espaço e
no tempo, mas sobre todas as coisas dentro dos limites espaço-temporais indicados pelas
expressões locativas e temporais. As declarações existenciais locativo-temporais são
essencialmente delimitativas. Quando dizemos “há um F aqui”, não estamos dizendo que
uma entre todas as coisas que são F tem a propriedade de estar aqui, mas que, de todas as
coisas que estão aqui, uma é um F. Parece, então, que deveríamos entender as expressões
temporais e locativas como índices que restringem o escopo do quantificador.
Agora, isso pode ser entendido de dois modos. Um seria que as expressões de
localizações espaciais e temporais têm uma primeira posição necessária não expressão
predicado que segue o quantificador. Nós diremos “de todas as coisas que estão aqui,
uma é um F” a não “de todos os F’s, um está aqui”. Tais regras de ordem necessária entre
diferentes categorias de predicados não são pouco comuns. Por exemplo, filósofos
contemporâneos aprenderam a apreciar uma nova afirmação de Aristóteles de que
predicados especificadores ontologicamente, ainda que não logicamente, precedem
predicados caracterizadores. Com respeito a expressões de localização espacial e
temporal, entretanto, me parece plausível tomar uma posição mais radical. Em vez de dar
a eles uma posição inicial seguindo o quantificador existencial, nós podemos concebê-los
como estando mesmo antes do próprio quantificador. Enquando, de acordo com a
primeira interpretação, a restrição espaço-temporal deve ser entendida como uma
restrição de todos os objetos, de acordo com a segunda interpretação, a restrição consiste
numa restrição anterior da totalidade do espaço e do tempo. Esta parece ser a
interpretação mais natural se é verdade que espaço e tempo constituem nosso campo
sistematicamente conectado de pluralidade, pois então o uso da palavra “todos” está
primariamente conectado com espaço e tempo e somente secundariamente com objetos.
Quando nós falamos de todos os objetos no sentido de todos os objetos reais, todos os
objetos no espaço e no tempo, o que queremos dizer é os objetos presentes dentro de todo
o espaço e tempo. Nossa noção primária de uma universalidade aberta é aquela do espaço
e tempo. Posso me referir aqui à concepção de Kant de espaço e tempo como sendo
ambos, singular e universal, cada tempo e espaço sendo parte do tempo e espaço unos, e
cada espaço e tempo sendo infinitamente divisível. Agora, se nosso uso irrestrito do
quantificador existencial, quando aplicado a objetos reais, contém uma referência
implícita à totalidade do tempo e espaço, é obviamente possível usar um quantificador do
mesmo modo como quando nós o restringimos a uma parte do espaço e do tempo . Cada
tempo e espaço restrito contém , por sua vez, uma pluralidade de partes espaciais e
temporais e constitui um campo potencial para uma pluralidade de objetos presentes em
si.
Podemos agora retornar ao nosso problema concernente à noção de presença, a
noção de existência temporal no espaço. Uma vez que um lugar particular tenha sido
singularizado, nós podemos formar dois tipos de declarações existenciais relativos a ele:
“existe M neste lugar” onde “M” significa um substantivo de massa (mass noun), e
“existe um F neste lugar” onde “F” é um classificador (sortal). No primeiro tipo de
declaração a expressão “existe” não possui o significado de um quantificador existencial,
ela conota simplesmente a presença do material em questão neste lugar e uma tal
declaração aproxima-se de uma declaração-sujeito-predicado, e aqui cabe obviamente
dizer que o lugar é o substrato do nascimento e morte do material. No segundo tipo de
oração, “há um F aqui”, o significado da presença e do quantificador existencial estão
combinados. “Há um inseto aqui” significa “das coisas que estão presentes aqui, uma é
um inseto”. Parece que não fizemos nenhum progresso. “Há um inseto aqui” é, ainda,
uma declaração geral mesmo apesar de restrita espaço-temporalmente. Uma tal
declaração convida a uma possível réplica: “Há vários insetos aqui; de qual você está
falando?”. Mas agora me parece importante que nós não tenhamos outro modo para
identificar e distinguir um inseto particular exceto por uma posterior restrição do lugar
em que ao qual nos referimos, por exemplo, apontando com nosso dedo e nós não temos
outro modo de continuar identificando e distinguido de outros insetos do que seguindo
continuamente seu caminho pelo espaço. Eu não desejo dizer que a restrição espacial é
por si só constitutiva para escolher (picking out) um particular; é somente onde a
restrição espacial vai lado a lado com o critério de identidade contém um classificador
(sortal) que um particular está sendo identificado. Onde a declaração existencial espaço-
temporal, que é essencialmente restringível, vem de encontro a um classificador
especifico, ela perde a generalidade do operador existencial e expressa simplesmente a
presença de uma coisa no espaço e tempo identificados. Poderia ser respondido que o
operador existencial não pode simplesmente perder sua generalidade; em si mesmo é
geral e somente pela combinação da restrição espacial e do classificador que nós
chegamos a um objeto. Isto é correto, mas seria errado concluir, da generalidade que uma
declaração existencial possui, em princípio, que nós precisamos ter uma outra
possibilidade de escolher o objeto particular. Nós simplesmente não temos. “Existe um F
aqui e, sabendo que tipo de coisa F’s são, não pode haver mais F’s aqui” parece ser o
melhor que podemos fazer. Uma vez que tenhamos selecionado um objeto desse modo,
não podemos, é clara, falar “este F” ou dar-lhe um nome, digamos “inseto1”. Para inseto1
existir no tempo t1 significa que existe um tempo t1, algum espaço restrito, algum lugar
em que exista um inseto cujo caminho de vida possa ser seguido continuamente ao lugar
em havia um inseto que tenha sido batizado assim e, para que inseto1 não exista no
tempo t2, significa que não há um tal lugar. Agora deixe-me a propósito de uma
elucidação complementar voltar ao exemplo que dei no início do artigo, “existiu Rômulo
e, se sim, quando?” A primeira parte da questão significa: “existiu, entre todos os objetos
que estiveram presentes em algum lugar em algum tempo, algum a quem a se aplica
unicamente a descrição que nós associamos ao nome ‘Rômulo’?” Então a declaração
geral de existência, desde que seu universo de discurso compreende objetos no tempo e
no espaço, contém já uma referência indefinida à existência temporal. Esta é razão
porque, se a primeira questão – “existiu Rômulo?” – é respondida afirmativamente, a
segunda questão – “quando ele existiu?” naturalmente se segue sem aquebra do
significado da palavra “existir”.
Para concluir, deixe-me voltar à doutrina da ontologia tradicional que sustenta que
todo ser verídico é ser absoluto, o ser de indivíduos. Se minha argumentação estava
correta, essa doutrina não está (como pensou Russell) simplesmente errada, mas deve ser
modificada em dois aspectos. Primeiro, a existência de um indivíduo não é um predicado,
é o fato de que alguma coisa está presente no espaço por algum tempo. Segundo, nem
toda expressão singular refere-se a objetos. Essas predicações que atribuem alguma coisa
a um lugar em um tempo não pressupõe que o termo sujeito se refere a alguma coisa que
exista. No caso de lugares e tempos só há lugar para o operador existencial. Não há
sentido em dizer de um espaço ou tempo particular que ele existe. Em vez dizer que toda
predicação pressupõe que o termo sujeito se refere a alguma coisa que existe, nós
simplesmente dizer que é pressuposto que o termo sujeito possui um valor de verdade
potencial, isto é, dizer que produzirá declarações verdadeiras ou falsas quando
suplementadas por um predicado apropriado. E, para um termo sujeito possuir um valor
de verdade potencial não é, em geral, o caso de que ele deve se referir a alguma coisa que
exista; o que é, em geral, verdade é que ele deve referir-se a alguma coisa identificável.
Quando falamos a respeito de alguma coisa, nós freqüentemente estamos contentes em
saber que ela poderia ser identificada; este é o caso em que nós dizemos que existe uma
tal coisa – onde “existe” tem o sentido que ele é um do todo, não importa qual. Mas nós
podemos prosseguir e requisitar a real identificação, o que especificamente do todo. E
então, se o particular concernido for ele mesmo um membro do sistema universal de
identificação – se ele for um lugar ou data -, nós temos que especificar sua relação
espacial ou temporal com nossa própria posição no sistema; mas se ele mesmo não for
um membro do sistema, especificar o que do todo, significa especificar em que parte do
sistema universal existe tal coisa.

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