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O problema da tecnologia como redenção

por Aron Pilotto Barco

1) Introdução
A mal avaliada crença nos poderes mágicos da tecnologia abriu confortável
espaço para a segurança de que o amanhã vai ser ‘ainda melhor’ e de que o conserto
das agressões contra o ambiente pode ser confiado aos nossos filhos, pois eles terão
herdado a tecnologia-resolve-tudo-e-resolverá-ainda-mais. Eis o problema com que
vou me debater no texto que segue. Note que não estou pondo em questão se há ou
não estrago ambiental; admito prontamente que há problemas e que são latentes.
Mesmo que seja pedir demais para um texto tão mal calibrado alcançar
efetivamente esse objetivo, prezo pela visada de algo maior. Por isso, e também pelas
imperfeições na execução, peço logo a paciência do leitor e que as leituras críticas não
sejam rigorosas demais.

2) A supervalorização da tecnologia
Ferramentas são, por essência, facilitadores (ou, lembrando McLuhan,
extensões do homem), e todo dano ambiental só atingiu graves proporções devido as
poderosas ferramentas tecnológicas em mãos humanas. É importante evitar
interpretações do tipo: a tecnologia é “má”, ou o são os homens. O que se mostra
apenas é que da ação que modifica o mundo com vistas unicamente para o conforto
humano não se pode tirar qualquer estabilidade (importante lembrar que por
‘conforto humano’ está também incluído a satisfação com o conhecimento, na medida
em que abarca tudo aquilo que a tecnologia nos possibilita conhecer. Logo, toda
finalidade da tecnologia pode ser resumida à satisfação de necessidades, mesmo as
mais ‘nobres’).
Ainda podemos pensar numa tecnologia limpa, ou numa reciclagem muito
eficiente?... A fundo não faz diferença, pois é contra-senso depositar na tecnologia a
capacidade de resolver os problemas que o próprio “depositar responsabilidades na
tecnologia” criou. Ou seja, confiar a nossa produção tecnológica a responsabilidade de
eliminar os efeitos colaterais da própria produção tecnológica não tem o menor
sentido. Eis o paradigma tecnológico: acreditarmos que qualquer coisa pode ser

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construída, inclusive a solução para todos os nossos problemas, sem levar em
consideração que com isso ganhamos novos problemas resultantes dessa atividade (já
ouviu a frase “problema só muda de lugar”?), e conseqüentemente caindo no erro de
que estamos evoluindo, de que estamos ‘melhores do que antes’; esquecendo
fundamentalmente que toda conquista de horizonte nos mostra novas sombras e
mergulha o horizonte anterior na incerteza.
Mas ainda pairam perguntas como: e remédios, processadores, o Large Hadron
Collider, não são benefícios? E como reverteríamos os danos ao ambiente sem
tecnologia?... Para atingir a verdadeira clareza do problema que é o paradigma
tecnológico é preciso abalar a fé na tecnologia com mais do que os argumentos que
acabei de fornecer. Até porque, pela própria lógica de criação, é sempre possível
recorrer o argumento à possibilidade de alguma tecnologia ainda não feita ou
‘descoberta’. Tenho que mover o tema para o essencial: a crença de que a tecnologia
necessariamente torna a vida melhor, ou mesmo que até nos faz melhores e,
conseqüentemente, de que necessitamos dela.
É preciso pensar a questão em nível existencial e assim ter em vista a
necessidade humana de modificar seu mundo. Conquistado esse campo, podemos
pensar o porquê se trata de uma necessidade. Por enquanto deixo como resposta o
conforto, ao qual voltarei mais à frente. Antes, é preciso deixar claro que não se trata
da qualidade ou eficiência tecnológica, mas antes da atitude que perante seus avanços
e satisfação da necessidade de conforto lhe concede a qualidade de melhorar a vida,
independendo dos seus efeitos colaterais. Sem contar que no termo ‘melhorar a vida’
está implícita a ingenuidade de achar que uma vida confortável é uma existência
melhor. No que segue, meu empenho será mostrar que do alto de nossa capacidade de
modificar o ambiente em nosso favor não é possível falar de qualquer ‘melhora’ ou
‘qualidade’ existencial, e em que sentido assumir essa atitude permanecerá sempre
negativo.
A primeira conquista de pensar a questão do campo existencial é percebemos
que o homem não precisa da tecnologia, ela apenas facilita a ‘fábrica’ da vida – a
constante consumação do estrangeiro seja para assimilá-lo como comida, para deixá-lo
habitar sua intimidade, para destruí-lo por ser um impedimento às atividades
anteriores, entre outros casos da auto-afirmação característica da vida. Esta vida que

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goza das facilidades tecnológicas sofre até a ilusão de estar num patamar acima das
restantes: estamos mesmo acostumamos a pensar que nossa vida é melhor da de
quem não tem tecnologia (o plural de onde falo é esta civilização ocidental nascida no
Mediterrâneo, da qual o Brasil faz parte). Até acreditamos que precisamos manter a
civilização altamente tecnologizada como se encontra hoje, independendo se daqui a
50 ou 100 anos as crises dos recursos naturais cheguem a fins trágicos. Estamos
convictos que não devemos abandonar nosso estilo de vida.
Mas o que sustenta a ligação última da tecnologia com esses valores? Eis que
chegamos ao primeiro e mais fundamental problema de supervalorização da
tecnologia: ela é entendida em relação direta com a verdade. Para nossa civilização
‘esclarecida’ as ciências naturais são o bastião da verdade, e por acaso são exatamente
elas que impulsionaram o avanço tecnológico principalmente por se utilizarem de
ferramentas para obter dados do mundo. O primeiro problema está em acreditar que
o que é captado pela máquina é a realidade como um todo invés de um recorte da
mesma e em não enxergar problemas na posterior compreensão dos subseqüentes
dados. É preciso cultivar o cuidado com o próprio raciocínio para entender o que se
mostra do mundo naquele recorte. Outro problema está em seguir a seguinte lógica:
uma vez que o alimento das experiências científicas são tais dados e se a tecnologia de
fato for sem-limites, então todo o problema do conhecimento humano estaria
resumido a encontrar a tecnologia adequada para extrair os corretos dados brutos –
teríamos toda a verdade como que embrulhada para presente. Já mencionei que
pensar a tecnologia como sem-limites é um contra-senso, cabe agora esclarecer a
questão mais detalhadamente.

3) Desmanchando o paradigma tecnológico


Observando o que foi desenvolvido até aqui, determinei o problema em quatro
níveis: 1º) o de insistir na própria atitude que causou o problema ambiental; 2º) a
atitude positiva perante as modificações em prol do nosso conforto; 3º) o de tomar a
civilização tecnológica como necessária e melhor; e 4º) o de atribuir aos resultados e
dados obtidos pela tecnologia todo o valor de verdade necessário para resumir as
questões do conhecimento humano. Estes níveis nos mostram o problema em sua
forma mais visível até a mais oculta e fundamental (isso até onde minha visão analítica

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chegou, claro). Se a pedra fundante de todo esse nexo é o 4º problema, então
começarei por tratá-lo para que todos os outros restem sem fundamentação.
Lembrando que essa é uma briga extensa e de cachorro grande, então peço
novamente a paciência do leitor e a licença para usar conceitos sem o devido cuidado.
Os dados que as ferramentas tecnológicos nos apresentam não são nada mais
do que recortes que devem ser interpretados, além de que o próprio conceptualismo
tecnológico contém interpretação prévia: para se desenvolver uma ferramenta,
alguma compreensão de mundo sempre já estará em movimento. Mesmo que seja
simplesmente pegar uma pedra no caminho e usá-la como arma, perceber na pedra os
atributos necessários para alcançar a finalidade bélica já envolve compreensão de
mundo, da pedra, de si e do outro a ser atingido. Mesmo o cientista físico, quando
quer descobrir se nêutrons se comportam do jeito X ou Y, está limitado pelos conceitos
em que pôde pensar muito antes do que está limitado pela tecnologia que pode criar
para adquirir tal dado de comportamento. Isso significa dizer que o mundo não é um
constructo científico ou filosófico, não ‘aparece’ só depois que determinamos a
comportamento dos nêutrons ou que me descubro como um eu existente como tal.
Trata-se de uma grande cegueira empirista confiar nas nossas ferramentas mais do
que no nosso raciocinar; fechando com uma citação de Husserl (em Ideen I, §79): “o
conhecimento das possibilidades tem de preceder o conhecimento das efetividades”.
E ainda, na outra ponta, os dados coletados em experiência, recorte da
totalidade dos fenômenos, precisam ser interpretados. Até mesmo o que é
considerado dado trata-se de uma interpretação que independe da ferramenta. Para
gerar conhecimento – ou seja, ciência – é imprescindível ascender à linguagem
humana, o que envolve sempre os problemas internos da linguagem. Para não me
alongar mais, basta dizer que é de imensa ignorância reduzir a importância do
autoconhecimento proposto pelas ciências humanas, pela filosofia, pela arte e pela
história por estes não atenderem ao método e às experiências das ciências da
natureza. E isso, no horizonte da nossa questão tecnológica, significa dizer que a
tecnologia jamais pode nos dar a verdade, mas só um dado bruto em dever-ser
compreendido.
Cortada a inocente conexão entre verdade e desenvolvimento tecnológico, a 3ª
questão fica particularmente fácil de ser resolvida. A fé de que ‘estamos melhores

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assim’ é inclusive um erro secular: muitos povos foram esmagados sob o rótulo de
‘selvagens’, de não-evoluídos; a história da nossa civilização do Mediterrâneo é a da
expansão e sistemática eliminação de todos os outros povos encontrados no caminho.
É preciso encarar que ter em mãos tecnologias complexas nada tem com sermos
melhores. A tecnologia certamente abriu inúmeras portas, mas também muitas outras
se fecharam – escolher uma atitude é também não escolher várias outras. Nem faz
sentido falar de melhora. A verdadeira dimensão das questões do passado permanece
conosco na forma da tradição e de fato nunca se resolveu; por exemplo, nunca demos
uma solução definitiva para perguntas formuladas desde os gregos. Ainda estamos às
voltas com o problema da nossa finitude, o problema do entendimento mútuo, entre
tantos outros. Não temos nenhuma primazia sobre a paisagem de questões das
sociedades não-tecnológicas, pois não há, em absoluto, uma escala evolutiva entre os
povos. A existência humana em toda sua história não é uma partida de Civilization, e
se não estiver claro ao leitor o absurdo que é pensar a História como se tivesse ao lado
uma régua medindo a qualidade do progresso humano, nenhuma colocação desse
texto fará sentido.
Agora, clareadas as questões 4 e 3, temos novamente o desafio da 2ª questão
(a atitude positiva perante as modificações em prol do nosso conforto). A civilização
tem hoje o potencial de desertificar toda a face da terra e pintar o céu num inverno
nuclear. E o que é pior, temos consciência disso. A recém-nascida consciência
ecológica não está ai por acaso: há um problema sério em continuar como estamos.
Mas, mantendo-se no solo existencial que propus anteriormente, notamos que
estamos atendendo a nossa necessidade de conforto, isto é, não só reduzindo enorme
parte do desafio que é manter-se vivo, mas expandindo nossa experiência de mundo
com novas cores e texturas: a tecnologia nos deu o cinema, os jogos eletrônicos, a
expansão na comunicação, entre várias outras experiências. Podemos entender isso
aludindo ao conceito nietzschiano de “vontade de potência” (não devo levá-lo muito a
fundo, pois este conceito puxa inúmeras estruturas da filosofia de Nietzsche, então
vou me deter em só falar dele superficialmente): ou seja, a vida sempre toma as
possibilidades que lhe aparecem para expandir-se e se auto-afirmar, como um buraco
negro sempre crescendo.

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Mas, se somos autoconscientes, não poderíamos bem escolher não alterar a
face do planeta? Em termos heideggerianos, nossa compreensão (de qualquer coisa
que seja) é sempre um compreender-se-em-vista-de-algo enquanto compreender-se-
como-algo. Tal expressão entende que nós mesmos constituímos o que somos no
engajamento da experiência prática de vida, no estar-no-mundo e impregnar de
sentido as coisas ao redor, sempre no chão histórico-temporal. Para a questão desse
texto, isso significa que nos formamos exploradores do mundo porque assim nos
compreendemos e nos autorizamos a agir. Visto que dessa ação brotaram a
instabilidade e a insustentabilidade, porque ainda nos convencemos disso?
Tomando aqui emprestado alguns conceitos de Julio Cabrera (o cara é um tipo
em extinção: filósofo brasileiro), estamos mergulhados numa estrutura cultural
cegamente positiva, isto é, que atribui um valor qualitativo inerente e gratuito para a
vida humana. É assim: simplesmente por você nascer e ser um humano, você tem todo
um valor especial; dane-se se um gorila tem maior capacidade cognitiva que você (ao
menos até os teus 3-4 anos de idade), ele não tem o mesmo valor até que um ecofreak
(um humano) vá lá morar com ele. Está no coração da nossa civilização do
Mediterrâneo dar tal valor a vida humana e por tal nos conceder a permissão de fazer
o que bem entendermos com a fauna e a flora, convertendo tudo ao nosso conforto.
Lembrando de uma célebre passagem de Milan Kudera (em A Insustentável Leveza do
Ser, p. 283): “O verdadeiro teste moral da humanidade (o mais radical, situado num
nível tão profundo que escapa a nosso olhar) são as relações com aqueles que estão à
nossa mercê: os animais. E foi aí que se produziu a falência fundamental do homem,
tão fundamental que dela decorrem todas as outras”. (Observação: com essa citação,
não estou defendendo o vegetarianismo ou qualquer ideologia que seja, o problema
em questão é a atitude humana, e só). De cara para toda a anunciação dos danos ao
planeta, para a possibilidade de auto-exterminação, se ainda nos compreendemos
como tendo todo o direito de continuar a agir só com vistas aos nossos benefícios,
então estamos todos cegos.
Eis que o último argumento acerca do conforto onde pode se esconder o
paradigma tecnológico pode esquecer-se do planeta e narcisicamente dizer: ‘Ah, mas
dando conforto a tecnologia nos ajuda a sermos felizes’... Mesmo em termos somente
humanos, sem se importar com qualquer outra coisa, não é difícil perceber que ‘ser

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feliz’ é uma tarefa extremamente complicada para ser imposta à vida: ‘felicidade’ é um
estado volitivo fugaz e sem endereço. Também é fácil perceber que tal tarefa (ser feliz)
invariavelmente não será concluída, principalmente se nos forçamos a alcançá-la. É um
grande peso postular para toda uma vida uma necessidade dessas. Não só ‘ser feliz’ é
um péssimo objetivo para uma vida, como dar qualquer objetivo que seja para uma
vida é uma péssima idéia. A vida não parecer ser algo que comporte apenas um único
e rígido sentido; nem mesmo uma pequena palavra comporta um único sentido.

4) Conclusão
Agora podemos finalmente regressar a questão inaugural (a 1ª questão, sobre
o erro de insistir na própria atitude que causou o problema ambiental) e respondê-la
propriamente: estamos em vias de sérias tormentas e elas foram causadas exatamente
por nosso modo de vida que dá um valor inerente para nossa existência mantendo
uma atitude positiva para com o que for a favor do nosso conforto, e como tal,
legitimando a exploração excessiva dos recursos do planeta. Não importa qual
tecnologia que está a ser ‘descoberta’, nenhuma linha de chegada vai alterar um erro
de princípio.
O termo redenção foi escolhido para o título porque todo esse paradigma
esconde a fé no potencial da tecnologia que nos redimirá de todos os erros cometidos
com a (perdão pela expressão) alteridade não-humana, e garantirá um devir melhor,
um futuro incrivelmente melhor. É o peixe vendido pelo mito moderno, pela ficção
científica do tipo Clean Sci-Fi. Contra isso, afirmo categoricamente: todos os estragos
que causamos ao nosso planeta não serão resolvidos se mantermos a mesma postura
frente a eles (a que sempre tivemos). É preciso repensar nosso próprio estar-no-
mundo. Talvez até mesmo redescobrir algumas visões de mundo dos nossos
antepassados os dos tantos povos que foram atropelados pela civilização. Por mais que
tenhamos mais velocidade de comunicação, ambientes mais limpos, remédios mais
afiados, etc. no fim das contas a morte ainda ronda a casa, a existência ainda é ríspida
e precisa muito de uns abraços, e permanecemos inocentes perante nossos próprios
paradigmas cuidadosamente construídos pelo tempo sobre a areia movediça da
tragicomédia que é existir e ter consciência disso.

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