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60 Cultlira e ratâo pratjca

a antropologia aceitou a especificidade do "primitivo" como sua ta refa acadêmica,


embo ra isso pudesse sig nificar uma amputaçao da sua per linência pelo menas tao
m CULTURA E RAZAo PRATICA
drastica quanta a rclativizaçào d o materialismo hist6 ri co, 1èntei di scu tir ag ui a dois paradigmas d a teoria ant ropo l6gica
plaus ibilidade do ponto d e vista "duas sociedade - duas ciências': lv/as SOnlcnte
para II cga- lo cm U11/ capitulo posterior como uma espéc ie de falsa consciéncia: uma
traduçao de integ raçôes diferentes de c6digo e praxis em uma di stinçao radica l na
natureza das saciedad es, como se uma nao conhecesse ncnhum axioma cancep-
tuaI. da mesma forma que a outra nao conhece nenhu ma conseqüência prât ica.
Acho que isso é "falsa consciència': porque a disti nçao de saida Iegit im a 0 modo de
aparênc ia da sociedade ocidental como sua verdadeira explicaçao. A derivaçao da
organizaçâo a partir da atividad e pratica e da consciência a partir das relaçôes
entre pessoas ignora a qualidade si mb6lica ordenada das nossas pr6prias institui-
ç6es. Mas se por urn lado se conclui que a determinaçao da consc iência pela ser
A oposiçao levantad a recentem en te por Lévi-S trauss entre eco logia e estruturali s-
social, coma é geralmente en tendida, precisa de alguma reava liaçao, pOl' o utro
lad o se conclui tamb ém que ela continua, exatam ente com o é, a rnelhor exp li caçao ma - dentro de uma unidad e de naturalismo mais elevada, ou talvez se trate de
d a ciência social ocidental. Pois muito dessa ciência é a autoconcepçao do capita- um materialismo tra nsce nden tal- nao é nova. Em seus con to m os p rincipais, é
lismo. end èmica à antropologia anglo-saxôn ica. Esst conflito entre a at ividade pratica e
o verdadeiro problema para 0 marxismo e para a antropologia se localiza na os limites da mente se insere em um a contradiçao original e basica, entre cujos
relaçao entre a p raxis e a ordem simb6lica. E esse é um prob lem a m ais bem p6los a teor ia antropol6gica lem oscilado desde 0 século XIX camo UITI pr isioneiro
explicado a pa rtir da h ist6ria da pr6pria antropologia - exatamente porque a que cam inh a compassadamente entre as m ais distantes paredes d a sua cela. Mui -
hist6ria da antropologia é um coroIar io permanente da contradiçao da sua exis- tas da s mes mas premissas que separa m 0 estruturalism o de uma exp licaçao por
tência camo uma ciência ' ociden tal das outras cultu ras. A contrad içao é uma adap ta ça a também diferenciam Boas de Morgan, Radcliffe Brown de Malinowski
i, co ndiçao original: uma ciência do homem patrocinada par um a socied ade qu e, tal - ou mesmo aspectos diferent es d e um unico projeta te6rico, co mo a énfase
como as outras, se definiu exclusivamente a si pr6p ria como humanidade e a sua colocada ao mesmo tempo na definiçao simb6lica da cultura e no seu determinis-
,
1
p r6p ria ordem coma cultura. Apesa r d e tudo, acredito que no C3S0 ant ropol6gico m a tecnoI6gico na ob ra de Leslie White. As alternativas nesse ve neravel conflito
-c;

1
essa sociedad e real~ente aprendeu alguma coisa das outras - sobre si m esma. entre utilitarismo e um enfoque cultural podern ser colocadas da seguinte forma:
se a ordern cultu ra l tem de ser concebida camo a codificaçao da açao int encional
<2~
\ j e pragmatica real do home m, ou se, ao contrario, a açao humana no munda dcve z:~ c
v

~}
1
se r compreendida ca m o mediada pela projeto cultura l, que ordena imediatamen-
1
te a experiência prâtica, a pratica ordinaria, e 0 relacionamento ent re as d uas. A C'
-ç-.
diferença nao é simples, nem sera reso lvid a pela feliz conclusao acad êmi ca de que
\;'
a resposta se encon tra em algum lugar no m eio das duas ou mesmo em ambas as
'---..
partes Osto é, dialet icamente). Afina l, nunca ha um verdad eiro diaIogo entre 0
silêncio e 0 discurso: de um lado, as leis e forças naturais «independentes da
vontade hu mana", e do o utra 0 sentido que os grupos d e hom ens confe rem
variavelmen te a si mesmos e ao mundo. Por taoto, a oposiçao nao l'ode estar
co mprometida; nas palavras de Louis Dumon t, a relaçâo nao pode ser se nao uma
superp osiçao. No fin al, a cultura esta râ rclacionada, na sua especificidade, a lima
ou out ra 16gica dominante - a 16gica "objetiva" da superio ridade pnH ica ou a
l6g ica significativa no "esquema conceituaJ': No primeiro caso, a cultura ~ um

61

$ZII$, ;a;:
62 Cu/furc< e f «ZaO pra/Ica
Dois paradigmas da Icoria alltropol6gica 63
,

sistema instrum en t.al ; no segund o, 0 instrumental se encontra sujeito a sistemas ca da. As determinaçôes gerais da praxis estào sujeitas às formulaçôes espedficas
de uma outra espécie.
da cul tura, isto é, de uma ordem que goza, por suas propriedades de sistema
A relevância dessa controvérsia provinciana para a invocaçao da prâxis de sîmb6 li co, de uma autonomia fundamental.
Marx é patente, muita embora, como veremos, a posiçao de Marx nao possa seT
simplesmente assimilada ao materialismo empirista reconhecido na antropologia.
É através de uma versao moderada do marxismo, "senao do pr6prio Marx", que Morgan
Lévi-Strauss apresenta muita resumidamente sua pr6pria perspectiva:
1
As questôes envolvidas na opçao entre a 16gica pratîca e a significativa travaram,
Se afirmamos que 0 esqucma conceitual comanda c define as prâticas, é porque estas, coma ja disse, em dezenas de campos de batalha, cern anos de guerra antropo16gi-
objcto de cstudo do ctn6logo, sob a forma de realidades discretas, localizadas no ca. Uma reflexào sobre essa hist6ria nos ajudara a clarificar essas quest6cs. Devo
tempo e no espaça c dîstintivas de gêneras de vida e de formas de civilizaçao, nao se
advcrtir, porérn, que a excursao sera uma historia "para n6s" - uma forma de
confundem corn a prâxis que - neste ponta, ao men os, estamos de acordo cam
tomarmos consciência de n6s mcsmos na hist6ria - sem qualquer pretensao ao
Sartre - constitui para as ciências do homem a totalidade fundamental. 0 marxis-
status de uma "verdadeira" abordagem diacrônica. Nesse sentido, estabeleço os
mo, senao a proprio Marx, racl~cinou muitas vezes como se as praticas decorressem
imediatamente da prâxis. Sem pôr em dûvida 0 incontestavel primado das infra-cs- contrastes entre Lewis Henry Morgan e Franz Boas como uma oposiçao paradig-
truturas, cremos que entre praxis e prâticas se intercala sempre um mediador, que é 0 matica, sem referência às outras figuras do contexto intelectual da época, cujas
esqucma conceitual, par ob ra do quaI uma matéria e uma forma, desprovidas ambas influências foraru seguramente crfticas para a controvérsia personificada nos dois.
de existência indcpendente, realizam -se coma estruturas, isto é, camo seres, ao mes- Mais uma vez, deixo de lado ou teço consideraç6es sumarias sobre um grande
mo tempo empfricos e inteligiveis. [1966, p.130-1 .] nûmero de pensadores sérios dos ultimos tempos, tanto cm antropologia quanto
em disciplinas correlatas, que outras poderiam julgar mais importantes e exem-
Lévi-Strauss continua, explicando 0 contraste coma se fosse uma questào de plificadorcs. Talvez esse tratamento cavalheiresco possa ser desculpado por atri -
Itividades complementar.es: buÎ-Io a uma hist6ria corn a quaI os antrop610gos j:i se familiarizaram: uma versao

.t para esta tearia das superestruturas, mal e mal esboçada par Marx, que desejamos
do passa do como ele é realmente 'vivido por um segmento da sociedade, camo 0
.mapa da sua condiçao presente (ver Pouillon, 1975) .
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contribuir, reservando à hist6ria - assistida pela demografia, pela tecnologia, pela Começo por Morgan, mas jâ me antecipo em dizer que a escolha pode ter
geografia hist6rica c pela etl1agrafia - a cuidado de desenvolver a estudo das infra- sido, de certa forma, equÎvoca. Camo todo [undador, 0 pensamento de Morgan
0 ~
estruturas propriarncntc ditas; que nao pode ser principalmente de nossa responsabi-
lidadc, porque a etnologia é, antes de mais nada, uma psicologia. [Ibid. )
tende a ser mais generalizado do que os pontos de vista que divergiram dele,
contendo dentro de si os "germes" de quase toda posiçâo posterior. Isso significa
~. r

que a homem pode ser submetido a muitas leituras te6ri~as, sendo que q1,lalquer

~
A seriedade da crîtica de Lévi-Strauss se apresenta assim dissimulada por esta
uma delas, precisamentc por se tornar uro mapa para a presente discussao, po de
modesta renûncia. Talvcz cIe esteja cedendo uma parte muito grande da sua
sec culpada de desrespeitar a generalidade original. Assim, Morgan foi categoriza ~
ciência. Se 0 esquema conceitual abrange a matéria nos termos de uma existência
do pelos mcios acadêmicos mais recentes camo "idealista", devido à sua ênfase no
humana, ele nao vern ao cenario da açâo pra.tica apenas para acrescentar a inter-
desdobramento dos "germes [originais] do pensamento"j coma materialista, por
pretaçào apropriada de fatos materiais ou das relaçôes instrumentais. Nem a de
firmar a evoluçâ.o socia l sobre 0 desenvolvimento das artes de subsistência; e ainda
codificaçao do esquema seria confinada à "superestrutura'~ Esse esquema é a
camo "dualista filos6fico': por sua dependência simultânea de ambos. Por ter feito
pr6pria organizaçâo da produçào material; ao analisa.-Io, encontramo-nos na pr6~
uma alusâo à "16gica natural da mente", alguns 0 consideravam um "mentalista",
pria base econômica. Sua presença ai dissolve as antinomias classicas de infra-es-
enquanto outros 0 acusavam de "racismo" por ter referenciado a cultura ao orga-
trutura e superestrutura, uma "material" a outra "conceitual': Ë clara que ela nâo
nismo (incluindo a famosa transmissâ.o de habitos "através do sangue"). Sem
dissolve 0 "material" enquanto tal. Mas as chamadas causas materiais devem ser,
pretender resolver todas essas questôes, acho que é importante nao confundir
enquanto tais, a produlo de um sistema simb61ico cujo canüer cabc a n6s investi -
uma certa semelhança da terminologia de Morgan corn 0 discurso do moderno
gar, pois sem a mediaçâo desse esquema cultural nenhuma relaçào adequada entre
estruturalismo, isto é, a invocaçâo dos germes originais do pensamento, desdo-
uma dada condiçào matcrial e uma determinada forma cultural po de ser especifi -
brando-se em resposta aos desejos e n~cessidades humanos, mas de acordo.com a
"1
64 CI/III/ra c razilo prritica Dois paradigfltQ$ da tcoria antropol6gica 65

"J6giea nalueal da mente': A m ente aparct:e Il:1 teo ria de Morga n m ais como 0 aplicada por algum as tribos, dcpois pela maioria, até ser fina lmente un iversalmentc
instrumenta do dcse nvolvimento cul tural do que como se u au tor (cf. Terray, adotada pelas tribos mais evoluidas que se encontrava m ainda no estado selvagem e
1972 ). Mais passiva q ue ativa, simplcsmc nte rac io nal cm vez de sim b61ica, a entre as quais se originara 0 mov imento. Sua adoçao oferece lima boa ilustraçao do
inteligência respond e reflcxivarn cnte a sÎtuaçôes q ue nâo p rod uz nem organ iza, de proces$o segundo 0 quai se realiza 0 principio da seleçào natural. (Morgan, 1963
m odo qu e, no final, 0 que é reali zado c m fOrlll3.S culturais é urna 16gica pratica- (1877), p.433-4; grifo meu. J
bio l6g ica nos primeiros estagios, tecnol6g ica nos ûltimos. 0 esquema co nceitual
nao é a construçâo da experiência hum ana, mas sua verbalizaçâo, como nas clas- h im portante perceber a natureza da intelecçâo humana que Morgan propôe
sificaçôes d e parentesco que sao simples mcnte os termos de uma ordenaçao de aqui. 0 exemplo da punalua é particularmente adequado, um a vez que é comu-
rcla çôes de fato, efetuados pela vantagcm ccon6 mica ou biol6giea. Para Morgan, m ente utilizado no primeiro ano de antropologia para ilustrar a arbitrariedade do
pcnsam ento é reconhecimento; concepçao é percepçâo; e lin guagem é 0 reflexo de sfmbolo pela observaçao de que nenhum sfmio poderia at in gir a distinçao entre
distinçôes que jél têm sua prôpria ra zao. A qualidade simb6lica da cultura nâo "esposa" e "irma", da mesma forma que nao poderia estabe lecer a diferença entre
apu rece no esquema de Morgan; nele, as palavra s sâo simples mente os nomes de agua benta e agua destilada. 1 No entanto, 0 que Morgan esta dizendo é exatamen te
coisas. o oposto, que a diferença entre "marido" e "irm ao" nao é uma const ruçao simb6-
Co nsideremos a discussâo em Ancient Society a respeito do desenvolvimento lica co locada no mundo, mas a decorrência racional d e lima diferen ça objetiva no
do casa m ento punaluano, da gens (elâ ) e, nessas bases, da terminologia do paren- mundo, isto é entre homens biologicamente superio res e inferiores. Trata-se de
tesco turaniano. 0 casamento punaluano fo i para Morgan 0 triunfo da biologia na uma percepçao das vantagens biol6gicas como resulta ntes da diferença, sendo
soc icdade, uma grande refo rma nas uni ôes consangüineas de irmaos e irmas cm portanto uma represe ntaçao em termos sociais de um a 16gica externa a esses
um grupo que ele caracterizou camo possu id or da m ais rudi mentar humanidade. termos. A reforma caracterizada pela punalua foi a prim eira de um a ionga série
A evid ência crîtica desse avanço veio do con lraste corn os padrôes de casamento e que cul minou na monogamia, uma série na quai a espécie hum(l na livrou-se
as c1assificaçôes de pare ntesco dos havaianos contemporâneos. A terminologia do progressivamente de uma promiscuidade original e dos males decorrentes da
parentesco dos hava ianos comprovava 0 esta do consangüineo original, uma vez procriaçao consangüinea. E esse primeiro passa resume a noçao que Morgan tem
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que todos os h omens de uma mes ma geraçâo eram "irmâos': todas as mulheres do. todo: cIe foi efetuado pela observaçâo e pela expùiência; atençâo às conse- -<;
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"irmâs" e os fiIhos de todos, indiscriminadamente, "filhos" e "filhas': Mas a pratica qüên cias deletérias do casamento dentro do grupo - "os males dos quais a
do casamen to, a pUllalua, exigia a exelusao das irmâs do grupo de mulheres observaçao humana naD podia indefinidamente escapar" (Morgan, 1963, pA33)
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0' "(
- ~ a experiência das vantagens mentais, portanto institucionais. do casamento

~
compartilhado pelas irmaos, e dos irmaos do grupo d e homens compartilhado 0'

pelas irmâs. Morgan concluiu que a contradiçâo entre casame nto e parentesco no fora d~ grupo. "É uma inferência correta dizer que 0 costume punaluano chegou ~. ? 'i'
Havai contemporâneo remontava aos primeiros estagios de emancipaçào do esta- à adoçao geral através da descoberta da sua intluência benéfica" (p.509). Portanto, n
do co n sa ngüineo. Eie n ao estava seguro de co mo se produziu exa tam ente a proi- pensamento é reconheClmento e a mente é um veiculo pela quaI a natureza é '\ î
f. ~
compreendida como cultura. V'
biçao de casamentos entre irmao e irmâ; refere-se aos prim eiros passos como
"casos iso lados", algo no modelo das variaçôes ocasion ais, cuj as vantagens foram A explicaçâo posterior de Morgan da gen s como um a derivaçao da sociedade
pouco a pouco sendo reconhecidas: punai uan a e uma codificaçao das suas vantagens leva ao mais alto nivel a mesma
concepçao. Enquanto matrilin ear, a gens original represe nta 0 acabamento natu-
Dada a familia consangüinea, que englobava tanto os i n llllOS e irmas consangüfneos rai da familia punaluana no tempo, dada a imposs ibil idade de se verificar a pater-
quanto os irmâos c irmâs colatcrais na relaçao matrimonial, na familia punaluana n idad e sob as co ndiçôes marita is existentes. 0 co nceito social de d escendéncia é,
bastava excluir os primeiros do grupo, nele consc rva ndo apenas os segundos. Mas cra m ais uma vez, uma consciência de relaçôes jâ prevalecentes (p.442). (Em um
dificil excl ui r os primeiros e man ter os scgu lldos, pois ta l medida implicava uma
mudança radical na composiçâo da familia, para nao dizer na antiga estrutura da vida
domés tica. El a implicava igualmente 0 abandono de um privilég io do quai os selva- ! 0 uso de "si mbol~" c. "signo" na anlropotogia amcricana, ou peto menos cm g rande parte dela,
gens nào podiam desistir facilmente. Pode-se suporquc essn medi da foi IOl/Tada, iniciaI- tende a sc dar no sentldo lIlverso das famosas dcfiniçôes de Saussure, em seu CI/rso dt: liugiiisticagcra/;
na t~ad i çào anterior "simbolo" é 0 verdadeiramente arbitnlrio o u 0 naD motiva do, e "signo" é 0
mente, em casas iso/ados, que SIIt1S valltagellS foram /ellfalllcll te reconhecidns, e que foi
mOIi.va?O (compa r~r Langer, 1957, ou White, 1960. com Saussure, 1966 Il9l 5 J). Coma regra geral
adotada a titulo experimental durante periodos muita longos. A principio, cla foi segulrel a usa amencnno, exccto onde 0 contexto é clarnmente saussuri nno.
.. .
66 Cu/wra e razào pratica
"
Dois paradigmas da teorÎa alltropoMgica 67

lllomentQ posterior no esquema de Morgan, a descendéncia se tornarâ patrilinear Mas entao a tcoria de Morgan é apropr iada a uma cllltllra nào -humana - ou
sob a influência do crcscimento da "propriedade" - termo geral empregado por melhor, a uma humanidade nao -cultural. TaI camo 0 pensamento é a rcconheci -
Morgan para dcsignar a l'osse da "riqueza" estratégica - que é a junçâo na quai 0 mento de uma significaçao exterior, as palavras dos ho mens nao sac a conceito
int eresse econômico, ou 0 desdobramento efetivo dos meias crcscentes de subsis- das realidades externas, mas sim 0 seu signo. Consistindo simplesme nte na capa-
tência, prevalece sobre a vantagem biol6gica como a determinante pratica da cidad e de agir racionalmente sobre a exper iência, a inteligência que Morgan en-
forma social.) Exatamente como a famflia punaluana, cuja funçao nesse aspecta tende coma humana nao difere d a de outras espécies mamfferas, especialm ente do
cJa duplica e generaliza, a gens se tama u accita graças às CCvantagens a ela conferi- castor. Na sua famosa monografia The American Beaver and his Works (1968 ),
d;1S", ou seja, a melhoria genética que deve resultar da regra da exogam ia: Morgan de fend eu vigorosamente a idéia de que "a principio do pensamento" era
comum aos hom ens e aos animais. As qualidades mentais do castor, escreveu eIe,
Vm objeto primario da organizaçao Cfa, evidentemente, isolar uma metade dos
sao "essencialmente as mes mas que aquelas manifestas pela mente humana"
descendentes de um suposto fundador,, evitar 0 casamento entre eles por motivos de (p.252). A diferença ent re essas qualidades e 0 pensamento huma no, "e, por
parentesco ". A gens, que se origina provavelmente da ingenuidade de um pequeno
bando de selvagens, deve ter logo provado sua utilidade na produçao de homens inferência, entre os prindpios que e1es representam respectivamente, é de grau e
superiores. Sua prevalência quase universal no mundo antigo é a maior evidência das n ao de gênera" (ibidem). A semel hança especîfica consiste na capacidade de se
vantagens que da apresentou. (Ibid., p.73-4; cf. também p.68, 389, 442.) fazer urn u so racional" das percepçôes transmitidas pelos sent idos para agir
<C

pragmaticamente sobre a expe riência. Dai, para Morgan, a fonte d e significaçâo


Por sua vez, 0 sistema de parentesco turaniano reflete a organizaçào sobre a que é materializada nas produçôes das espécies, tanto na casa do africano quanta
base da punalua e da gens. Na sua distinçâo entre 0 parentesco paralelo e cruzado, do castor, residir na pr6pria natureza. Morgan retornou rcpet idas vezes à psicolo~
cla apenas expressa as diferenças jâ estabe lec idas na pratica. 0 parentesco turania- gia animal, sem pre preocupado em mostrar "que todas as espécies, incluindo a
no nao é mais que a articulaçao criteriosa das distinçôes sociais desenvolvidas pela hum an.;:!., recebem orientaçtio imediata da natureza" (Resek, 1960, p.SI; grifo
scleçao natura!. meu). 3 Sua teoria do con h ecimento foi, portanto, caracterizada pela suposiçao-
A teoria pode ser r~sumida da seguin te forma: os homens cedo desenvolve- para ficarmos de acordo corn a descriçao gerai de Cassirer - de que a "real" é
ram certas prâticas, formas de comportamento, como a exclusào de irmaos e dada "tout fait, tanto na sua existência como na sua estrutura, e que para a mente
1irmas de uniôes sexuais de grupo, que provàram naturalmente ser uteis e vantajo- (esprit) humana é apenas uma questao de tomar posse dessa realid ade. Aquilo que
sas. As vantagens foram apreciadas e os comportamentos formulados como mo-
existe e subsiste 'fora' de n6s deve ser, por assim dizer, 'transportado' para a
I d os de organizaçâo - por exempIa, a farnilia punaluana, a gens - que, por sua
c~nsciência, alterado em alguma coisa interna sem, contudo, acrescentar nada de
, vez, estavam suj eitos à reflexaa secundâria ou à codificaçao na terminologia do
novo ao processo" (Cassirer, 1933, p.18). Morgan reduziu a lin guagem ao ato de
parentesco. A lin ha geral de força da demol1straçao, a orientaçtio do efeito 16gico,
nomear as diferenças manifestas na experiência. Preferiu respeitar a continuidade
vai dos limites naturais à pratica camportamental, e da ·pratica comportarnen tal à
\ da inteligê ncia, às expensas da criatividade da linguagem, susten tan do que 0
instituiçao cultu ral:
castor era apenas "silencioso", mas nao " mudo': chegando mesmo a afirmar que a
( 1) circu nstância -+ pratica -+ o rga nizaçao e codificaçâo (instituiçao).
faculdade lin güîstica do homem era apenas rudimentar na Selvageria, dese nvol-
Para se cornpreender qualquer segmen ta dado na cadeia de efe ito, deve-se ter
par base 0 segmente precedente; assim como a codificaçao expressa organ izaçao,
também a estrutura institucional coma um todo esta referida à pratica e a pratica
3 Resek, 0 mais perspicaz bi6grafo de Morgan, estabelece uma conexao precisa entre a racional idadc
;\ cxperiéncia no mundo, de tai modo que a seqüê ncia total representa a sedimen~ atribuida aos animais e a pr6pria epistemologia antropol 6gica de Morgan. Desconfiando tanto do
taçao, dentro da cultura, da 16gica da natureza (a vantagem adaptativa).2 instinto quanto da imaginaç50, a longa obra de Morgan sobre a evoluçao social deixou intact a a
i1ist6ria das idéias, mesmo que cie - racio nalista supremo - pudcsse considerar cssa pr6pria obra
in tocada pda ideologia. Morgan "nunca duvidou de q ue seus pcnsa mentos fossem verdadeiros
retlexos da realidadej 0 que ele via na base das Mon tan has Rochosas ou em um povoado asteca pouco
1 Em termos mais gerais, uma vez que nos ultimos estagios do esquema de Morgan 0 interesse ou nada tinna a ver com 0 fato de ser rko ou às vezes mil Whig dissidcntc. Ele teri a re;eitado a noçao
~·.:onômico sc apossa da vantagem biol6gica, a l6gica bâsica poderia ser caractcrizada simplesmente de que fatores subjetivos, irracionais ou subconscientes fazem de cada homem seu pr6prio historia~
como "vantagem pnitica". De uma pcrspectiva ecol6gica, contudo, a diferença se dâ apenas entre dor. As leis da natureza e da socicdade foram dcscobertas em plen a luz do dia, 115.0 nos subterrâneos
modalidades de vantagern adaptativa. (Na realidade, 0 aumento do estoque é uma mctarora que vem da alma ou nas meditaçôes dos fi!6sofos. Elc tentou provar isso aos outras - como sc fosse preciso
d~sde 0 homcm primitivo, passando pelos pastores patriarcais, até 0 capitalismq.)
prova - em seus ensaios sobre psicologia animal" (Resek, 1960, p.151·2).
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1
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68 Culll/ra e razao prdtica Dois parndigma5 da tcoria tinlropoMgica 69

venda-se gradualmente através daquel e lo ngo perfodo. Morgan fo i UI11 antro p61o- o ccrea; é im poss ivel flXar até mesmo 0 valor da palavra que sign ifica "sol" sem <la tes
go pré-simb6lico.4 considerar 0 que h;, ao seu redo r; ha Iinguas onde n50 é possivel dizer "scntar-sc no
Ent retanlo, 0 pr6prio conceito do conceito continua em muitas antropolo- sol". ISaussurc, 1966 (1916), p.I I S-6.]
gias da praxis recentes. Esta é uma premissa implkita,mas decisiva, da filosofia. A
ana lise deve negligenciar a arbitrariedade fundamcntaJ da palavra -reconhecen- No qu e d iz respeito ao conceito ou significado, uma palavra é rcfc rivel nao
do talvez que nào haja qualquer relaçao inerente entre 0 som-imagem e 0 conceito simpl esme nte ao mundo externo, mas antes de tudo ao se u lu gar na lingua, ou
(idéia), supondo, porém, que exista tal relaçâo entre 0 conceito e a realidade seja, a oulras pal av ras relacionadas. Par sua diferença cm relaçâo a essas palavras,
objetiva à quaI ela se refere. 5 Assim, a lin guagem s6 é simb6lica no sentido de que constr6i-se sua pr6pria avaliaçao do objeto, e no sistema dessas diferenças ha uma
represcnta 0 munda de uma outra forma, mas que nao t'cm sentido algum se construçâo cultural da realidade. Nenhuma lingua é uma simples nomenclatura. I'"j';
retirada do mundo; por conseguinte, é 0 comportamento do signo em uso, sc nao Nenhuma se base ia cm uma simples correspondência UI11 -a- UI11 dos seus proprios 1
em inven çao. 1 termos com "as" distinç6es objetivas. Cada uma confere certo valor às distinçôes
Mas a arbitrariedade do simbolo é a condiçào in dicativa da cultura humana. 6 determinadas e const itui, por conseguinte, a realidade objetiva em outra quaI ida-
Isso nao se da simplesmente porque a combinaçao de so ns sheep [carneiro] nào de, especifica àquela sociedade.7 Na realidade, enquanlo projeto social tolal, a
tem qualquer conexào necessaria corn 0 anima l designado desse modo, da ffieSITIa atividade simb6lica é ao mesmo tempo sintética e analitica, lrazendo para 0
forma que a palavra mouton, mas porque 0 conceito de carneiro também varia em conceito toda a 16gica cultural. Se, por um lado, as diferenças nr valor lingüistico
diferentes sociedades. 0 exemplo acima é clara mente motivado por urn farnoso efetuam uma découpage part icular do mundo externo, dividindo-o de acordo com
exemplo de Saussure, no quai ele usa a di fe rença de sign ificado en tre sheep e certos principios, por outra lado os el ementos assim segregados sao reagrupados
mouton para ilustrara diferença entre va lor e sign ificaçao lingüfsticos. As palavras por correspondê ncias significativas en tre eles. Refira-mc aqui nâo apenas a distin-
francesa e inglesa referem-se à mesma espécie, mas 0 fazem "em termos diferen- çôes semânticas, mas também a praposiçôes culturais. E a arbit rariedade simb61i-
tes"; cada uma, em virtude das diferenCÎaçôes semânticas das respectivas Hnguas, ca das segundas é m esmo maior do que a d as primeiras. Ao men os na leo ria ha
exprime uma concepçào distinta das (e em relaçào às) espécies. A palavra inglesa limites naturais no campo semântico de um ûnico lexema: nenhuma ûnica pala-
nao se aplica ao animal quando pronto para ser comido, no seu estado culinario, vra, por exemplo, é capaz de significar, simultânea e exclusivament e, as duas espé-
para 0 quaI ha um segundo termo, mutton; mas 0 francês ainda nâo foi capaz de CÎes, boi e lagosta. Mas 0 mesmo exemplo suger ini aos americanos, entre os quais
participar da distinçao mais elevada entre 0 cru e 0 cozido: a peculiar comb inaçao "bife e lagosta" é uma categoria definida de jantar, que a
cultura nâo se submete a tal tipo de limitaçao. Parece nao haver qualquer limite
o francês moderno mouton pode ter a mes ma sign ificaçao do inglês slleep, mas nao 0 te6rico determinavel a priori em relaçao ao qué sera c1assificado com quê no
mesmo valor, è isso por varias razoes, cm particular porque, ao falar de uma peça de esquema cultural: "Um parente por casamento é uma anca de elefante." A 16gica
carne pronta para ser levada àp1esa, 0 inglês usa l11uttOIl e nao sheep. A diferença de proposicional é rnaravilhosamente variada e assim sào as culturas, dentro deste
valor entre sheep e mutton deve-se ao fato de 0 primeiro ter, ao seu lado, um segundo m es mo e ûnico mundo. 8
tenno,o que nao é 0 caso da palavra francesa.
Dentro de uma mesma lingua, todas as palavras que cxp ressam idéias vizinhas se
limitam reciprocamente ... Assim, 0 valor de qualquer termo é determinado pela que
7 "A rep resenlaçào 'objetiva' - é isso 0 que eu quero tentar cxplicar - Ilao é 0 po nlo de part id a do
processo de (ormaçào da linguagem, mas sim 0 fim ao quai esse processo conduz; ela n5.o é seu
terminus a quo, mas sim seu termi/lus ad qI/cm. A linguagem nào entra em um mundo de perœpç6es
4 Para uma posÎçao scme1hante sobre a Iinguagem na ohr.. do antrop61ogo evolucÎOllista inglês E.B. objetivas acabadas, somentc para acrescen ta r, a ohjetos individuais dados e claramc nte dellmitados
Tylor, ver Hcnson ( 1974, p.16-7). uns cm relaçao aos outros, "nomes" que seriam signos puramen lc cxteriores c arbitrarios; cla mcsma
5 Uma vcz que Îlcm a som-imagcm nem a idéia podcrn ocorrer um se m 0 outro, coma argumentou é um mediador na {ormaçao dos objetos; cm um scntido, é 0 mediador po r excclência. 0 instrumenta
Benvcniste cm seu conhccido comentârio sobre 0 texto saussuriano, sua re1açao é cOll5ubstancial e
absoluta, e nesse sentido nao-a rbitrâria. A verdadeira contingência est:\. entre 0 conccito e a palavra,
mais importante e mais precioso para il conquista e para a eonstruçào de urn verdadeiro mundo de .,
objetos" (Cass irer, 1933, p.23).
um::! re1açào quc Benveniste recusa tratar, por consider:\.-Ia fom do objetivo de lingüistica 09li, Para uma boa discussao antropol6gica sobre a rclatividade cultural da dislinçao entre crcnça e «,
p.4 3-8). experiência, urna distinçao peculiar dessas sociedades ocidcntais que se propôcm fa u r a antropologia
6 "Enquanto encarannos as sensaçoes coma signos das coisas que supostamente lhcs dao origem, das outras, vcr Necdham, 1972 (sobretudo p.173).
qualificando talvez esses signos corn rcferência a scns::!çOes p::! ssadas que (omm scmel hantcs, nem 8 No mcslllo sentido de uma construçao cultural, pode-se observar no p:lr carneiro/carne de ca rnei-
-,
terernos arranh:ldo a superficie dessa mente humana ocupada de simbolos" (Langer, 1957, pA3). ro (sllcep/mlllton) que esse animal, no mundo anglo-saxao, ocupa no açougue um lugal' ao lada de .. '"
~ ........ni..
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il' .""
70 Cu/Jura c razJo pratica Dois paradigmas da leoria antropo16gica 71 ~-

~
Em suma, através da avaliaçao simb6lica e da sintese da realidade objetiva, quando, através de informantes da Costa Noroeste dos Estados Unidos, descobriu
criamos um novo tipo de objeto, com propriedades distintas: a cultura. A lingua- que os SOll.') considerados iguais por um orador de uma lingua podiam ser ouvidos
<- gem é um meio privilegiado clesse projeta. Mas, para Morgan, a linguagem naQ é como algo completamente diferente por pessoas que falavam outra Hngua, e -, ,
'$
li: mais que a percepçao articulada. Dai, a passagem da natureza para a cultura, na vice-versa, na medida em que ca da um percebia no discurso do outra asdistinçôes ,;.... ~ -
~i visao de Morgan, nao ser mais importante do que, digamos, a reduçao da Odisséia
da forma falada à escrita . Coma escreveu recentemente um destacado rnarxista cm
apropriadas ao seu pr6prio. 11
Nesse meio-tempo, ele passou naturaimente por uma fase de psicoflsica fe-
, 1 ~
I --F i

~
, relaçao a Kautsky, 0 mesmo pode ser dito de Morgan. Parà cie, "a hist6ria humana clllleriana que teve a mesma importância: experimentos sensoriais em fenômenos
d
1
l'" é um apêndice da hist6ria natural, sendo a sua lei de movimento simplesmente
\formas de manifestaçao das leis bio16gicas" (Schmidt, 1971, pA?}. 9
liminares que nao apenas reiteraram a conclusao de que as diferenças objetivas a
estimulos llaO engendravam nenhuma diferenciaçao paralela de resposta - que a
;-

i reaçao humana à quantidade efa em si mesma qualitativa - mas também que a


resposta dependia de fatores situacionais e do conjunto mental da pessoa. No r ~' ~l

1
Boas sujeito humano, a percepçao (perception) é reconhecimento (apperception), que b$ ~:
depende, pode-se dizer, da tradiçao mental. A quai, par sua vez, nao é em si mesma
ir, <- ~
Eru contraposiçao ao que foi dito, a odîsséia de Boas "da ffsica à etnologia" torna- decisiva nem unica para 0 homem. Para qualquer grupo humano, a tradiçao em
...1.

-...
1 se significativa, representando uma oposiçao dentro da quai a antropologia pas- questao é um conjunto de significados acumulados, teoria coletiva e hist6rica que
sou por varios ciclos durante todos esses anos. Como George Stocking (1968) faz da sua percepçao uma concepçao. 12
1 descrcve muito bem, foi uma viagem de muitos anos na quaI Boas passou de um Permitam-me aqui fazer uma breve digressao e uma comparaçao aparente-

l'
materialismo monista à descoberta de que "0 olho que vê é 0 6rgao da tradiçao";
uma jornada de muitos estâgios nos quais ele descobriu que, para 0 homem, 0
mente curiosa. É fascinante que tanto Boas quanto Marx tenham passado, no ""
inicio das suas vidas intelectuais, pele mesmo ponto. Em um determinado mo-
:!orgânico nao procede do inorgânico, 0 subjetivo do objetivo, a mente do mundo mento, ambos foram compelidos a recusar um materialismo mecanicista que lhes
1 _ e, finalmente, a cultura da natureza. Os primeiros passos foram dados dentTO vinha do iluminismo. No entanto, escolheram respostas concebiveis alternadas,
da pr6pria fisica. Na sua dissertaçao sobre a cor da âgua do mar, Boas observou a que nao eram em si mesmas muito diferentes, mas 0 suficiente para conduzi-Ios a
dificuldade de determinar as intensidades relativas de Iuzes que diferiam levemen- caminhos fatalmente diferentes. Marx teve de reagir ao materialismo contempla-
te em cor. A variaçao quantitativa no objeto nao evocava uma variaçao correspon- tivo e sensorial de Feuerbach, um materialismo do sujeito hipotético individual
dente no sujeito. lo Boas repetiu, mais tarde, a experiência ao nivel lingüfstico, que responde passivamente à realidade concreta; mas a reaçao de Marx também
foi refreada pelo idealismo de Hegel, que se apropriou do sujeito ativo hist6rico. A
soluçao, como Marx colocou na prime ira tese sobre Feuerbach, era aproveitar 0
porcos e bois, que compartilham uma' declinaçao paralela de termos para 0 estâgio de consumo
(pig/pork, cat/le/bec}), embora todos des difiram ncsse sentido dos cavalas e cachorros. A hist6ria sem
ativismo do idealismo.para remediar 0 defeito de um materialismo que concebia
estrutura da a impressao de nao explicara classificaçao, uma vez que nao possuimos nenhuma palavra "a coisa, a realidade, a sensibilidade ... apenas na forma do objeto ou da contempla-
de inspiraçâo normanda para cheval par analogia às palavras para carnes de carneiro, de boi e de Çao, mas nao como atividade humana sensivel, pratica, nao subjetivamente"
porco. No capitula 4, discuta a 16gica da comestibilidade/nao-comestibilidade no esquema america-
no (p.166-79).
9 Estou em débito com 0 professor Paul Kay pelo muito quc elc contribuiu para a nossa discussao
do problema da "arbitrariedade do signo". Meu débita vai mais além, chegando mesmo ao uso de investigaçao, aprendi a reconhecer que existem dominios da nossa experiênda nos quais os conceitos
certas [rases que sao suas - tanto quanto quaisquer erros SaD de minha intdra responsabilidade. de quantidade, de medidas que podem ser acresccntadas ou subtraidas como aquelas corn que eu
Entre os erros que devo evitar encontra-se a reivindicaçao de um extremo relativismo lingüfstico. Nao estava acostumada a operar, nao sao aplidveis" (Boas [19381 il! Stocking, 1974, p. 42).
quero dizer que 0 pensamento deva coincidir corn as distinçoc$ gramaticais de determinada Hngua. A II "A alternância dos sons é daramente um deito da pcrcepçao obtida atra\'és de um sistema de
idéia coma um todo parece implicar uma paralisaçâo dos poderes simb61icos neccssarios il sua fonética estranho" (Boas, 1966a [1911], p.14; cf. Stocking, 1974, p.72ss.).
postulaçao. Ha também alguma evidência de que 0 falar interior, que se encontra cm "um piano 12 "A primeira impressao obtida de um estudo das crenças do homem primitivo é que, embora as
~ distinto do pensamento verbal': tenna uma cstrutura diferentc c mais simplificada que a estrutura da percepçoes de seus sentidos sejam suficientes, seu poder de interpretaçaa logîca parece deficiente.
II lingua falada. Nem chegamos ainda ao nive! mais profundo dessa relaçao complexa e amplamente Acho que a razao para esse fato pode ser encontrada !laO cm qualquer peculiaridade fundamental da
l desconhecida entre pensamento e palavra (Vygotsky, 1962) . mente do homem primitivo, mas sobretudo no carater das idéias tradicionais pelo quai cada nova
10 ''Ao preparar minha tese de doutorado, tive de usar métodos fotométricos para comparar intensi- percepçào é interpretada; cm outras palavras, no carater das idéias tradicionais com as quais cada
dades de luz.lsso levou-me a considerar os valores quantitativos das sensaçoes. No decorrer de minha nova percepçao se associa, determinando a condusao alcançada" (Boas, 1965 [1938], p.198-9)-

,..
r1 '

pwa:
l 72 CI/III/ra c mziio pralica

(Ma rx, 1965. p.66J; escrito cm 1845). "Feuerbach, naD satisfeito cam 0 pensamen-
Dois paradiglllas da /eoria alllropo16gica

De cert'a forma, a carreira antropol6gica de Boas pode ser caracterizada com o


73

"
/l

,
to abstrato': escreveu Marx em sua quinta tese, "deseja a contemplaçâo; mas cIe
nao con cebe a se nsualidade COIllO atividade pratica, humano-sensorial." Marx
um processo no quai 0 axioma or iginaI,la construS,â o humana da experiéncia.Joi
transposto do nivel psîcolôgico para 0 cuî~St~~ki~·g d es taca 0 velho arli go
f s <
C'

salientou que cssa praxis deve sel' entendida ca mo social e na sua especificidade
hist6rica, nao como a açào de um individuo abstrato e isola do. Entretanto, 0
(1888) "Sobre os sons alternantes" como conte ndo os germes clesse desenvolvi -
mento e, por conseguin te, do modern o conceito de cultura. Mais que um exercicio
'"
1.
1<.
t
'C
c.
v
,
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critico ou metodolôgico, escreve Stocking, esse artigo: <>. ~. 1
reconhecimenlo do social. comum a Marx e a Boas, foi inscrita co m uma diferen -
ça de ênfases. Marx chegou até a l' ratica e as es truturas da realidade, construidas ~> r-
cam base na açào concreta e presente, cm modos historicam en te especificados, de 1 prenuncia muito do pensamento antropol6gico moderno, cm direçao à "cultura". Ao Ç'..
'1menos pa r implicaçao, de vê os fenômenos culturais em termos da ÎlI1posiçilo de i' ~
!
seres hum anos se nsiveis. Boas tran sfe riu 0 mesmo problema do materialismo
tls!!fficaA.o c.o!lxel1c~9!!.!!!39J!.u..~~ da_~periên.ci~: Ele os vê como histori~a7r;;~t;~o'ndi­ r .-
mecânico para os esquimôs, e mais tarde para a Costa Noroeste, para descobrir a ~
. cionados e transmitidos pela processo de aprendizado. Ele os vê co mo determinal1tes
espec ifica çâo histô rica do sujeito qu e age. A esco lha de Marx l evou ~o 30 materia- ',/
de flossa s pr6prias percepç8es do mUl1do externo. Ele os vê em termos mais relativos que 'i'
L.,r
li smo histôrico; a de Boas, à cultura. l ' absolu tas. Grande parte do fin al da obra de Boas, e da dos seus seguidores, pode ser oF
o fato de a viagem de Boas ter acabado no poder estru turan te da tradiçao vista simplesmente camo a acabamento das implicaçôcs presentes nesse artigo. <
pa rece agora, em retrospecto, incre n te às condiç6es do seu in îcio. Boas começou IIbid., p. 159; grifo m,u.]
questionando a essència da tese de Morgan, a exp ressao da natureza na cultura
pela mediaçao de uma mentalidade refl exiva. Em uma série de cartas ao seu tio na De fato, os caminhos pelas quais Boas chegou ao conceito cultural foram
América, em 1882-3, Boas des creve 0 arcabouço de seu proj eto esquim6: diversificados e aigu mas vezes cheios d e meandros (cf. Stocking, 1968, p.195-223;
1974, p.I-20). Vm desses caminhos tem aqui especial importância, jâ que foi
Embora, no inicio, minha intençao fosse esludar matematica e fisica coma meta final, desenvolvido no confronto direto corn Morgan sobre a questao de leis gerais de
fui levad o, através do estudo das ciências natu rais, a outras questôes que logo me evoluçao socia l. A antropologia modern a tende a considerar essa controvérsia em
conduziram à geografia, e esse assunto de lai forma atraiu meu interesse que final- particu lar como infeliz, pois a f~agmentaçao nominalista, operada por Boas no
mente 0 escolhi ca mo meu estudo principal. No entanto, a direçao de meu traba1ho e contet'ido das culturas para provar a diversidade dos processos de desenvolvîmen-
estudo foi fortemente influenciada par meu treinamen to em ciências naturais, espe- to, entronizou aquela concepçao de "far rapos e remendos" do objeto que a etno-
cialmente a fisica. Com 0 passar do tempo, fiquei convencido de que meu Weltans- logîa amer icana leva ria décadas para expiaI'. Na realidad e, Radin criticou, cedo e
chaullIIg materialista anterior - para Unl fisico, algo muito compreensivel- era de form a vigorosa, a noçao "quantitativa" do traço cultural separado que Boas
insuslentavcl, c assim cheguei a um nova ponta de vista, que me revelou a importân- desenvolveu a partir da sua obsessao corn a con testaçâo do evolucionismo (Radin,
cia do estudo da interaçao entre 0 orgânico e 0 inorgânico, sobretudo entre a vida de 1966 [1933]). No entanto, 0 desmembrarnento negativo da cultura gerou, fo rço-
Ulll pava e seu meio ambiente fisico. Assim nasceu meu plana de considerar a [se- sarnen te, um resultado contradit6rio e sintético.:Rara BO,as, <? que racionâlizou a .
guinte J investigaçâo coma minha tarera de vida: até que ponto podemos considera r disparidade de traços aparentemente semelhantes, que rea lm ente existiam em
os fenômenos da vida orgânica, especialmente da vida fisica, de um ponto de vista e
vâriasSoëledaaes.Jor~in as d ifere nças emsignificados usas determinados local- .
mecanicista, e qu e conc!usôes podem ser retiradas de uma conside raçâo desse gêne- .~ente. ~e esses significados implicavam processos dissim il ares d e desenvolvimen- .
ra? fCitadoin Stocking, 1968,p.1 38.1 to, provando que Morgan estava errado, era tambérn pOl' suas implîcaç6es de um
con texto total e arientado: u ma cultura que padronizava os traças de acordo com r~
Il seu prôprio espîrito singular. Dado. qu e Boas argumentava que as mascaras da !~i
13 Dai a rejeiçao paraleJa de Boas do dctcnni nislUo "geogriifico" e "econômico", baseado em uma
noçao de cuhma nao tanto coma uma condiçao da rclaçaodo homem cam a natureza. massobretudo
Il sociedade A, usada s para enganar os espiritos, nao er~I11 comparaveis às mascaras ~
camo a cOllccpplo dela (por exe m plo, 1965 119381. p.1 7S-7). 'Iodas as questoes fu ndamentaÎs do
.! da sociedade B, que comem oravam os ancestrais - e correspondentemente que d
ultimo dcbatc - bem como as discutidas no capitula 1 -eS130 aqui prefiguradas: "nao ha razao para os c1âs, os toten s ou os sistemas de metade variavam em todo 0 mundo - ele teve t·,
denominar as outras rases da cultura de uma superestrut ura sobre uma base econômica, pois as de conduir pela existên cia d e cu ltu ras, de totalidades cujas "idéias dominantes"
condiçôes econô micas sempre agem sobre uma cultura precxistente e elas mesmas dependem de
ou padrôes criam essa diferenciaçào (Boas, 1966b [1940 J, p.270-89, e pass im). Em
outros aspectos da cultu ra" (ibid., p.I7S ). 0 tempo aguç:lria a oposiçao entre a realidade material da
simbo lizaçào c a simbolizaçao da rèalidade material-que para Boas nao efa nem racionalidade nem um artigo muito conhec ido, "Hist6ria e antropolog ia': Lévi-Stra uss observa a
dis(arce. eventualidade conceitual do método:

.,
74 Cul/!lra e razào pratica Dois paradigmas da tcoria alltropol6gica 75

Procurar-se-a entao levar ao extremo 0 nominalismo boasiano, estudando cada um Boas corrcsponderia às posiçôes empirico-racionalistas do tipo que Morgan man-
dos casas observa dos como se fossem outras tantas entidades individuais? Dever-se-a teve, isto é, uma forma caracterîstica de auto-retlexao cultural, um apelo post-fac-
constatar, de um lado, que as funçôes atribuidas à organizaçao dua\ista nao coinci- tum à racionalidade de pratÎcas cuja verdadeira lôgica é nao-explfcita e cujas
dem; e, por outra lado, que a historia de cada grupo social mostra que a divisâo cm verdadeiras fontes sac desconhecidas.
metades procede das origens mais divcrsas. Assim, a organizaçâo dualista pode resul-
Boas afirmou que a formaçao de uma cultura, como um pracesso de tomaI' a
lar, scgundo 0 casa, da invasâo de uma populaçâo par um grupo de imigrantes; da
experiência significativa, se exerce necessariamente cm uma teoda - da natureza,
fusao, por fazoes cm si mesmas variaveis (econômicas, demogrMicas. cerimoniais),
de dois grupos tcrritorialmente vizinhos; da cristalizaçao, 50b forma de instituiçao, de
do homem, do ser humano na natureza. Essa teoria, contudo, continua naD sendo
regras empiricas destinadas a assegurar as tracas matrimoniais no scia de determina- formulada pelo grupo humano que vive nela. A linguagem é um exemplo privile-
do grupo; da distribuiçao no interior do grupo, nas duas partes do ano, de dois tipos giado desse processo inconsciente, mas outres costumes, priticas, crenças e proibi-
de atividade ou duas fraçôes da populaçao,
, de comportamentos antiéticos, mas julga- çôes sac tamb ém baseados em pcnsamentos e idéias nao-retletidos e imemoriaveis.
dos igualmente indispensaveis para a manutençao do equiHbrio social etc. Assim, Todos eles sac baseados na categorizaçao da experiência, na apropr iaçao do perce- , S
).
seremos conduzidos a despedaçar a noçâo de organizaçao dualista camo constituio- bido pelo conceito, exatamente coma nas raizes da palavra ou_'2a, sintaxe de uma
do uma falsa, calegoria e, estendcndo este raciodnio a todos os outros aspectas da \ determinada lingua, a experiência nao é simplesment~_fepresentadâ'- é classifica-- <,
vida social, a negar as instituiçôes em beneficio exclusivo das sociedades. [Lévi- 1\ da. E como toda classificaçao deve ter seus princîpios, cada lingua é, ao rncsmo -
Strauss, 1963b, p.lO-l.]
V tempo, "arbitriria" cm rclaçao a qualquer outra lîngua e cm relaçao ao real, agru-
pando, sob uma significaçao unica, uma variedade de coisas ou eventos que nas
A problematica geral de Boas difere, portanto, radicalmentc da de Morgan. outras lînguas poderiam ser concebidos e denotados separadamente. Boas exp li ca:
Onde Morgan entendia a pratica e suas formulaçôes costumeiras pela 16gica das
circunstâncias objetivas, Boas in tercalava um subjetivo independente entre as
condiçôes objetivas c 0 comportamento organizado, de modo que 0 segundo nao FIGURA 7
-, ~ ,7 "' , _'
derivasse mccanicamente do primeiro. Ao nivel psicol6gico, onde foi primeira-
operaçao mental -
mente anunciado, 0 termo interventor pode ser caracterizado grosso modo como
(2) Nivel psicol6gico
uma operaçao mental, gerado pele contexto e pela experiência anterior, que, ao
governar a percepçao, especifica a relaçao entre estîmulo e resposta (figura 7). Ao
estfmulo resposta
nive} cultural, em direçào ao quaI 0 pensamento de Boas estava cm continuo
desenvolvimento, 0 termo mediador é a tradiçao, 0 VoIkergedanken ou 0 padrao
dominante, que ordena ao mesmo tempo a relaçao com a natureza, as instituiçôes
FIGURA 8
existentes e a sua interaçao (figura 8).
tradiçao
A semelhança das duas f6rmulas corn a de Lévi-Strauss é indiscutîvel (p.61- (V6/kergediinken)
2). Na vcrdade, os termos da afirmaçao de Lévi-Strauss da sua posiçao - em (3) Nrvel cultural
oposiçao a um certo marxismo - descrevem Boas corn exatidao, especificando
até mesmo 0 tCl titl1n quid entre a praxis e as prâticas como um "esquema concei- meio ambiente ~nstituiçao
tuai" (ou c6digo). Adotando esses termos, 0 contraste te6rico entre Boas e Morgan
pode ser estabelecido, de [arma geral, como mostra a figura 9.
É clara que 0 "es que ma conceitual" tem uma qualidade diferente nessas duas FIGURA 9
perspectivas. Para Boas, é a encodificaçao (encoding), enquanto para Morgan é a esquema conceitual
(c6digo)
codificaçao (codiJicntioll) de distinçôes externas. Para Boas, a significaçao do obje- (4) Boas:
to é a propriedade do pensamento, ao passo que para Morgan 0 pensamento é a
representaçao da significaçao objetiva. Se na concepçào de Morgan pensamento e
praxis praticas
linguagcm funciOi}2m comC\..~o"lla de Boas tl-ata-se, essencialmente, de uma
problematica do srmbolo. Na re31idade, a estrutura do simbôlico desenvolvida por (5) Morgan: praxis _ prtiticas_ esquema conceit.ual (c6digo)
'- '" )
'Jill

76
~ .>:
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~
C ulfl/ra c razào pratica
Dois pnrndigmns dn ' carÎn mr'ropo/6gicn 77

As Ii nguas difc rem nao apenas qua nta ao carater dos scus elcmentos fonéticos e
tiva. Por co nsegu inte, nao aparece mais como algo arbitn.hio em relaçâo a uma
grupos de sons COll stitutivos mas também quanta Olos grupos de idéias que e ncon~
realidade objetiv<i, Illas como algo motivado pela re~lidade cultur~J.. . _
tram expressao cm grupos fo néticos flXOS ... Dma vez que 0 âmbi to total de experiên-
As implicaçoes dessa com preensào para 0 proJc to ant ropologlCo alnda nao
cias pcssoais às qua is a lîngua serve é infin itarncnte variado c sel! objc tivo, coma um
Lodo, devc sec expresso através de u m nûm ero Iim itado de palavras-lroncos, de uma es tâo rcso lvidas. E em alguns aspectos, nao fora m ai nd a percebidas. POl" um bdo,
extensa classificaçao de experiências que devem necessariamente ernbasar todo 0 quanto do que considcramos como inst ituiçôes e crenças essenciais de v.e se r a~a ~
discurso articulado. lisado como uma elimologia do povo? Por outro lado, nao parece sel" maIs pOSS IVel
Issa coin cide corn um traça fund amen tal do pensamento humano. Em nossa expe- com part ilhar do otimismo de Boas quanto às catego ri as an trop~I~~icas que, por
riência real, nem dois estados de sen ti do-impressôes ou emocionais sao idênticos. algu ma operaçào positivista continuada , oposta à formaçao das Ide.las e costu mes
N6s os classificamos, de acordo cam suas semelhanças, cm grupos mais au menas às qu ais das se referem , poderiam ser realm en te "derivadas de, COI1s!ste ntes co m c,
amplas, cujas limites padern ser determinadas por uma gra nd e variedade de pontas num ce rto se ntido, internas aos pr6prios fenômenos" (S tocking, 1974, pA) . Em
de vista ... /
todo caso, 0 co mentario sobre a analise racional ista de Morgan implicado pela
Em vârias culturas, essas c1assificaçoes podem ser baseadas em prindpios funda~ noçao de consciência secu ndaria Jlao seria difici l de ser desenvolvido. Se po r um
mel1ta lmente distintos ... Par excrilplo: observou~se que as cores sao c1assificadas em lado "a ori gem dos costumes do homem primitivo nao deve ser procurada e~l .
grupos bem dist intos, de aeor'd o cam suas semelhanças, sem qualquer di ferc nça
. processÇ)s [.~cio nais", como cscre·veu Boas (196S [1938 j, p. 2IS), por outro ~ ~n~
associada à capacidade de distinguir fo rm as de cor ... A importância do fato de que a
..' gem de certos proèessos rac ionais podia ser procurada no costpme. A razoablh.da~ •
palavra faz surgir um quadro diferente na fala e no pensarnento, de acordo corn a
c1assificaçào do verde (com J a arnarelo ou do verde [camI a azul coma um grupo, de das instituiçoes, e acima de tudo sua utilidade, é a forma pela quaI nos exphca~
difici lmente pode ser exagerada. [Boas, 1965 (1938), p.189~90; ver também Boas, mos a n6s mesmos. A racionalidade é nossa racio nalizaçao. Boas fornece a exe m ~
1966, (1 911 ).)" plo do tabu do incesto, que ha algum tempo nos contentavamos em atribuir a
razoes religiosas, mas que hoj e é "um conceito uti li tario, sendo 0 m e d ~ ~e filhos
Boas argumentoli mais tarde - em uma observaçao hoje cJass ica _ que, nào-saudaveis - devido ao casamento dentro do grupo de parentes proxlmos-
embo ra a linguagem e outras cos tumes sejam o rganizados por lima 16gica n ao~re­ ap resentado coma a razao para nossos sentimentos" (I 965. [1 938], p.20B). ~s.
f1 etida) ha lima diferença entre el es no fato de que as class ificaçoes da primeira A questao é que, quando interp retamos 0 conven clo nal. co ma ~ utIl, el:
normalm ente nao atingem a consciência, ao passo que as categorias da cultura a ta mbém se transforma, para n6s, no "natural", no duplo senudo de meren te a
atin gem, esta ndo tipicamente sujeitas a uma reinterpretaçao secu nd aria (1966a, natureza e de normal à cultura. Por isso é que Morga n fez dessa co ntradiçao.uma
p.63). A difere nça desponta essencialmente no m odo de reproduçao. Encaixadas teo ria etnol6gica, 0 status do que poderia se r enUio descrito C?I1"lO .a ap_l"opnaçao
em regras inco nscientes, as categorias de linguagem sao automa ticamente repro- das realidades significativas dOlS vidas de outros povos pelas raclonahzaçoes sec un~
duzi das na fala. Mas a continuidade do costume é sem pre vuln era.vel à ruptura, darias das nossas pr6prias.
qu er so mente p ela comparaçao co'rn outras formas, quer na socializaçao do jovem.
o costume, co nseqüentemente, toma-se um obje to de contemplaçao, bem co mo
um a fonte dela, e emprestamos uma expressao convencio nal que mal parece Variedades antropol6gicas da razâo prâtica
razoaveJ a uma razao convencional q ue permanece n ào~exp ressa . A 16gica cultu ral
reaparece entào sob uma forma mistificada - co mo ideologia. Nào ma is como Anunc iado prim eiramente na obra de Morga n e Boas, 0 desacordo basico ~obre a
um princîpio d e classificaçào, mas como satisfaçao de uma demanda por jus tifica~ natu reza do objeto antropol6gico co ntin ua a se fazer presente, m es mo hOJe, e de

14 As cxplic:lçôcs de Boas dos gr:lus de generalizaçao c difcrendaçlio, cspccialm ell{c 11 0 vocabu/<irio,


15 0 exemplo mais conhecido é a origem do cornpo rtarnen\ o que sc tem ii I.llcsa: "0 easo, ~.o
cram vaganwntc fun cionalistas, apebn do para os "interesses" ou para as "ncccss idades" do POyo. Ele
comport :lInento que se tem à mesa ofereee também um barn exemplo d~ c~pbcaçao secundar.I,I.
enfatizou, po rém, que as categorias de uma populaçào (dai os interessc5 e as necessidades) nao podem
Coma nao é usual se levar a (aca il boca, surge da! a intuiçiio de que a (aca naD e usada dessa manClfa
ser comprccndidas pela invocaçao de processos racionais, isto é, baseados no raciodnio conscien te,
porque, cmprega.ndo-a, co rrer-se-ia a risco de carlar os 1 5bi~s. A tardia i.nvcnçào do garfo e a fato de
ou na lltilidadc pdt ica ( 1965[ 1938 ), p.204-25). Nessa mesma época, Boas recusou~st' a reconhecer a
facas sem co rte serem usadas em muitos pafses, e de que eXIste Ulll penga semelhante d~ se furar a
pnltica camo sen do, de fato, a unica base das categorias terlllinol6gicas, pois poderia facilmente
lfnglla ou os l:ibios cam os garfos de aço pon li agudos comUlllcnte usados I~a Europa, delxam claro
acontecer 0 c~lI1tr:i rîo, isto é, 0 comportamento relletir a d assificaçâo. Foi a partir dessa posiçao que
que eSS<l explicaçao é apenas uma tentativa radonali sta secund dria para expllc;\ r um costume que, de
cIe encarou as teorias de Morgan de tenn inologia de parent esco (por exemplo, 1966a [ 19 11), 1'.68-9).
outm modo, permaneceria inexpl ic;ivel" (Boas, 1965 [1938]. p.65 ).

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78 ClIltura e razao prririca


Dois paradigmas da tcoria flmropolOgica 79

todos os modos - através de outras controvérsias te6ricas. Isto nao significa


subestimar 0 alcance de antinomias famosas tais como "hist6ria/ciência': "cultu-
ra/sociedade': "diacronia/sincronia': Mas se essas oposiçôes foram bem-sucedidas
de "0 h llh ris etnogrJ.fico", "rendimentos decrescentes na explicaçao funcionalista",
"tel [Q I ", "fetlChismo da eco}ogla': "dualismo utihtario" e "desapareClmento da
cul tU! a" A p lll11e lra tem a ver corn a relaçâo partlCular su}elt%b}eto envolvida na
j
1

30 gerarem 0 desdobramento de UI11 momento te6rico para 0 seguin te, isso se


deveu apenas à reproduçào, em cada estagio, das contradiçôes nâo-solucionadas
ênfase pl agmâtIca, que contrasta Iadicalmente corn 0 relatIvismo ~oaslano. ~
"c-"'-"'----""'1 ,. _. ..
na base. No final, as perspectivas posteriores que aparecem demarcando rupturas
o sc ntldo dominante do projeto de MahnowskI cra reduzlr. de todas as . ~, ~ ES ';-l
man cil as, costumes aparentemente bizarros, do Inttcluuma austrahano ao tote- ~~ ~ ~ f ..;,
te6ricas encontram-se, internamente, em pendência ao longo das mes mas linhas
que separam a visao de Morgan da de Boas. Desta forma é que se distingue U111
mlsmo de Trobnand, a valores pratlcos (Jela-se bioI6gicos).l? eVl,dente que Mah- ~~ 5S:-? :
funcionalismo do outro, como também um historicismo do outro, assim como a nO\vskt fOI 01 ientado poruma sllnpatia pecuh:r para corn oS,,~bon~lI1es (~f. Jarvle, 1~ 5-~ ;J '"
, 196 9, P 2-3) Ele gostana de mostrar que a razao subJ3cente as mascaras aparen- ! ~' __ . _,
metade de funcionalistas ou evolucionistas encontra um improvavel aliado na
tribo do outro. Parece muito para'doxal agrupar certas ênfases te6ricas de Lévi- temente sem senti do do que en tao chamavamos de "selvagens" (Richards, 1957, 1r ~ 'V' ' .c... 'l

1 Strauss e Leslie VVhite? (ver mais adiante, p.106-7). 0 acordo em termos de prin- p.IS) era algo que qualquer europeu poderia entender: a vantagem materia1. Isso s~ ~ ~ ,1 :t 3

cipios entre 0 arquievolucionista Morgan e 0 arqu ifuncionalista Malinowski é significava, de fato, uma inversao do relat!vi~mo b~asian~, se informada y.ela ~ g ~ ~
ff

l~
muito mais completo. mesma indulgência. Sob certo aspecto, 0 IntlchlUma e lucratIvo; logo, 0 abongme S ~ ,
australiano é nosso irmao:

Malinowski e 0 "neofuncionalismo" Desde 0 começo ... um interesse na utilidade das mascaras aparentemente sem senti- !k
do do que entao chamavamos "selva gens" foi 0 ponto principal na sua obra [de
De uma forma ainda mais explicita que Morgan, Malinowski considerou a cultura Malinowski]. Seu primeiro artigo foi publicado com a intençâo de demonstrar que as
cerimônias Intichiuma dos aborîgines australianos, corn suas danças selvagens, scus_.,
coma a realizaçao instrumen tal de necessidades biol6gicas, construîda a partir da
corpos pintados e seus escudos simbolicamente esculpidos, desempenham efetiva-
açao pnitica e do in ter;esse, como se orientada por uma espécie de super-raciona-
mente uma funçao na sua vida econômica ... Ap6s a sua viagem de estudo às ilhas
lidade - à quaI a Iinguagem fornece apenas a vantagem de um suporte te6rico (cf. Trobriand, publicou seu primeiro artigo importante sobre a vida econômica dos
Leach, 1957). Devemos ter como base, escreveu Malinowski, dois axiomas: "Ern habitantes das ilhas, no quaI manifestava a mesma determinaçao de provar que
primeiro lugar, e principal mente, toda cultura deve satisfazer ao sistema biol6gico aquilo que aos europeus pareciam trocas de bens cerimoniais sem utilidade desempe-
de necessidades, corno as ditadas pelo metabolismo, reproduçao, as condiçôes nhava, na realidade, um importante papel na sua organizaçao econômica [Richards,
fisiol6gicas da temperatura." E em segundo lugar, "toda realizaçao cultural que 1967,p.18)16
implica 0 uso de artefatos e do simbolismo é um realce instrumental da anatomia
humana, e refere-se, direta ou indiretamente, à satisfaçao de uma necessidade Ha nisso uma dimensâo mais ampla do que a implicaçao 6bvia d~_que, se a
fisiea" (Malinowski, 1960 [ 1944), p.l?!). Utilizando uma frase do soei6logo ffan- interpretaçao for aceitavel ao europeu, ela diz mais 'sobre de do que sobre os
cês Baudrillard, é como se a cultura fosse uma metafora sustentada sobre as "selva gens" - mais geralrnente de que a "ética" do antrop610go é a "êmica" da sua
funçôes biol6gicas da digestao. Em tiltima ana lise, a cultura é referenciâvel à pr6pria sociedade. Aigo deve ser dito sobre a relaçao sujeito/objeto, subentendida
utilidade prâtico-orgânica. Simples ou complexa, é "um vasto aparato, parciaI- pela compulsao em atribu ir um "sentido" pratico a um costume ex6tico que é tao
1 mente mate rial, parcialmente humano, e parcialmente espiritual, através do quai intricado quanto nao é de cara uma questao de necessidade pratica. Ela eleva 0
~ 0 homern é capaz de competir corn 0 concreto em problemas especificos corn os antrop610go à divindade de um sujeito constituinte, de quem emana 0 projeto da
quais se defronta" (Malinowski, 1960 [1944). p.36).
Apresentar a concordância, ponto pOl' ponto, do texto de Morgan corn 0 de
Malinowski seria ca ir no lugar-comum. Por ser mais explicito, Malinowski torna~ 16 Como 0 projeto de Malinowski é popularmcnte descrito: do blzarro ao bazar 0 artlgo d: Leac~
(1957) sobre Malinowski faz uma excelcnte ami!ise clesse processo de "fazer sentido", Malmow~kl
se mais interessante para certas implica ç6es te6ricas do argumento das praxis que cscreveu: "Na realidade, seremos capazes de provar que aigu mas realidades que nos parecem mUlto
sâo apenas sugeridas em Morgan, embora elas estejam, na realidade, contidas ali e estranh:ls il primeira vista (canibalismo, cOtlvade, mumificaçao etc.) estâo essencial~ente ligadas ~
em muitas versôes posteriores, até na mais recente ecologia "neofuncionalista". elemcntos culturais muito univcrsais c fundamcntalmentc humanos, e esse reconhecllllento acabara
admitindo a explicaçao, ou scja, a dcscriçao, cm termos familiares, de costumes cx6ticos" (1960
Abordarei diversas dessas implicaç6es, que podem sel' resumidamente intituladas
[1933 J, pA).

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80 Clllll/ra c razao prtltic(/ Dois paradigmas da teoria ant ropoMgica 81

c lil l ur ~l.
Em vez de submeler-se à compreensào de uma estrutura corn um a exis- revelar ia exatamen te tal como apresentada, através dos textos d e mil receitas de
tênda in dcpendente e autênti ca, cie co mpn.-'ènde a est rutura pela sua compreen- salmâo, se m se benefi ciar de nenhum en tendim ento d a sua parte,17 Tratava-sc
stlO do objelivo dela, fazendo assim cam que sua existëncia 1da estrutura J dependa aqui d e uma relaçâo total mente di fe rente corn 0 objeto. 0 antropô logo foi reduzÎ-
delco do ao status de um aparelho de gravaçao; nem m esm o sua propria in teligência
l'ara Mal inowski cra um p o nta import~l1t e do método etnografico "p crecber podia entraI' em ce na, Para Malinowski, parém, a "selvagem" era negatividade
() ponta de vista do nativo, su a relaçào com a vida, para compreender a sua visâo pura. Ele nào existia; Malinowski 0 criaria: "Ouço a pa!avra 'Kiriwina' ... esto u
do sel! Ill undo" (1950 [ 1922 J p.25 ). Este cra Uffi principio fundamental do seu pronto; pequenas cabanas cinzas, r6seas: sou eu quem as descrevera ou criara"
"cmp irismo radi ca l", co m o chama Leach. Ha, po rérn. uma contradiçao clara entre (Mali nowski,I967, p.140).
esse empir ismo e a compulsao para disso lve r costumes estranhos cm noçô es o funcionalismo utilitario é um a ceguei ra fun cion al para 0 conteudo e para
ul ilit;i ri 3s. 0 "empir is mo" en tao deve cO ll sislir na aplicaçao radical de uma teori a as relaçôes interna s do objeto cul tural. 0 conteudo é ap reciado apenas por seu
- :1 dos in teresses praticos e d o calculo pessoal - que sustenta que as rnaneiras efeito instrum ental, sen do sua consistência interna, por conseguinte, mistificada ,.,
ap:1n.'ntl'mente peculiares pelas quais as pessoas estào agindo nao m erecem em como sua utilidade externa. A explicaçao funcionalista é uma espécie de barganha
na da, nos seus propr ios termos, a nossa alençao. Cer ta vez, Kroeber lançou a feita com a realidade etnografica, na quaI 0 co nteudo é trocado por uma "com-
,sl'gu inte pergunta, pensando obviamen te em Malinowski: "Por que um Yurok nao pree nsao" d e le. Uma teoria, porém, deve ser julgada tallto pela ignorância que
(O ill e l' Ill sua canoa en quanto navega no occano?" A questôes como esta "nao ha
exige, quanto pelo "conhecimento" que oferece. Ha uma enorme dispa ridade
Ilenhuma rcsposta 6bvia coma a que se da a pergunta s do ti po: por que uma flecha entre a riqueza e a complexidade de fen ômenos culturais como 0 Intichiurna e as
é eillplumada ou quai é 0 uso dade a uma rede de pescar" (Kroeber, 1948, p. 307).
noçôes simples d o antrop610go quanto às suas virtudes econômicas. Sornente a
j\ l:tl inowski - fcita esta critica - se recusa a rcconhece r qualquer capacidad e no
fra çao mais infinitesimal dessa rica realidad e, e nada do se u conteudo especifico, é
sis tl'Illa cult ural, quanto men os tenl ar compreender sua 16gica in erente. Areas
avaliad a por sua funçaO. 18 Quando Malinowski demonstrou que "as cerimôn ias
intcÎras da cultura escapam, portanto, a uma explicaçao fu ncionalista, uma vez
Intichiuma dos abo rfgines australianos, corn suas danças selvagens, se us corpas
qut.' IÜO fonnam nenhum, senti do pnHico aparcntc. Leach coloca a feitiçaria corn o
'p intados e seus escudos simbolicamente esculpidos, 'desempenhavarn uma fun çao
\l1ll c:ü'mplo d o que acaba de ser d ito: "De aco rdo cam a dogma d e Malinowski,
na sua vida eco nômica" - ou sej a, que estimulavam a produçao através da ante-
pelo quai essa racionalidad e é natura l à espéc ie humana, as crenças em feitiça ria
cipaçao representada pelos ritos (Malinowski, 1912) - 0 que de fato aprendemos
\ 1) - Il;10 sendo nem sensiveis nem racionais - nunca foram efet ivam ente in corpo-
~ radas ao esq uem a fun cionalista" (Leach, 1957, p.128-9; cf. Nadel , 1957).
t-tlYia muitos outros dom în ios da vida dus îlh as Trobriand - parentesco,
sobre essas danças selva gens, esses corpos pintados e as mil outras propried ades
do Intichiuma?
nu~i.l, polîtica - dos qu ais Malinowski deixou- nos uma avaliaçao in completa e Esse empobrecimento co nceitual é 0 modo fu nciona lista da produçao te6ri-
Il:1o-sist€'matizada, devido a algul1s d esses mesmos escrupulos t'c6ri cos. Ele co nsi- ca. Ele se apresenta exacerbado quando a fun çao é buscada ao nivel biol6gico, 0
Jt'r~lY.l (1$ textos e declaraçôes d e pessoas co mo simples formulaçôes do id ea l, cm qu e é qu ase sempre verdadeiro, nao s6 em Malinowski, como tamb ém em vers6es
lOlll !,.uaç:1o com os motivos rea is pragmaticos q ue governavam as relaçôes dos mai s recen les da antropologia (cf, Vayd a, 1965, p. 196; Vayda e Rappaport, 1967).
hOI11I.'I1~ co m tais regras e entre si (cf. Malinowski, 196611926]). Em tud o isso, Quanto mais 0 fato cu ltu ral se afasla da esfera da utilidade à quai esta referenciado
\\alillo"'ski inverteu nao apenas as prem issas de uma antropolog ia boasiana, - a orgâni ca, a econômica, a social - , m enos intensas e mai s mediatizadas
':O tl1('\ t;lI11bém 0 relac ion amento original do antrop6 lo go com a po pulaçao. Ë d evem ser as relaçôes en tre esse fato e os fen ôm enos dessa esfera; conseqüente- .:: ,

hem wrJade que Boas termi na ria tendo uma co mpreensao do parentesco Kwa-
kiutl i:!ll~ll à que Malinowski teve do sistema Trobriand. De fato, Boas fo i mu ito
17 Radin apresenta resumidamente 0 pri ndpio de Bo as de que "ninguém tem a dircilo de alterar a
1 I1Ul:' illù)t'fe nte, a partir d e um respei to decente pela ininteli gibi lid ade do indi o.
fo rma cxala na quai suas in formaçôes foram recebidas", embora, na mesma obra, critique em profun-
BO.l:' .l.:h.1Y;l que os fatos "falariam pOl' eles m esmos': Hojc cm di a, esta aftrlnaçao didade a tentaçâo do mestre de retalhar a cultura em pedaços, adotando um tratamento difusion ista,
{ / t' (('IIl~ i ~i.('fada como a sign o de um empi ri smo in gênuo, Mas, cm pri m eiro lugar, 0

~ qu I:'" ~;:' !'rocurava cra uma submi ssao à cu hura em si mes m a, um comp romisso em
entre outras imperfeiçôes do método historicista (1966 (l933J). Para uma excelente discussao da
atitude de circunspecç:l.o de Boas para corn 0 fen6meno em si mesmo, ver seu artigo "0 estudo da
geografia" (in Boas, 1966b [ 1940 J),
1 t'n.:('tHr.H o rdem nos fatos, e nao em coloca r os fa tos em ordem (cf. Smith, 1959).
18 Neste ponto, devo muito a Firthjof Bergm3 nn e Raymond C. Kelly, quanto a uma primeira
;\. i n ~;.' n uid ;lde cmpi ri sta d e Boas cons ist ia na ilusao d e que a pr6p ria orde m se formulaç âo da "lei dos rcndimcntos decresccntcs para a explicaçao funcion alista" que deriva .dela.

., .
l 82 Cu/tllra c mzao prarica Dois pamdigmlls da tcoria antropol6gica 83

mente, menas intensas e menas especificas serac as coerçôes sobre a natureza do dar senao 0 esboço da pr6pria forma da cultura, nunca do seu conteûdo; ora, é este
costume cm consideraçao; men as determ inada sera a explicaçâo através de vir tu- illtimo que deve ser compreendido. [Sebag, 1964, p.166-7. ] f Em francês no origina1.]
des func iona is, ou, inversamente, ma ior sera a variaçao de prâticas cultura is alter-
nativas que poderiam servir igualmente (até melh or) ao mesmo prop6sito. D eve É 0 conteudo que deve ser compreendido. Esse é 0 nosso objetivo. No entan-
haver muitas maneiras de estimula r a produçâo além de encenar uma cerimôn ia to, a pratica funciona lîsta, C0l110 ja vîmos, consiste em considerar as propriedades
\j Intich iuma. Na realidade, a explicaçaa sai frustrada no seu objetivo de tomar 0
costume inteligîvel; esta é uma forma bizarra de se ocupa r dos seus pr6prios
culturais simp les mente camo a aparênc ia. 0 concreto-real cultural torna-se um
abs tralo-aparente, apenas uma forma de comportamento assumida pelas forças

~I assuntos. Para nos provar a indeterminaçao de qualquer dessas explicaçôes. basta mais fundamentais da economia ou da biolog ia. Sartre fala, num contexto analo-
inverte r a questao: é vantajoso aumentar a prod uçao - e, conseqüentemente, é go, de um "banho de acido su lfurico". Além d isso, como as forças supostamente
vantajoso 0 Intichiuma? 0 entendi mento func ionalista d e Malinowski teria sido essenciais sac na verdade abstratas - sobrevivência humaI/a, necessidades numa-
tlas, etc. - , a abstraçao do simb6li co atinente ao objeto foi complementada pela
mais convincente se, à la Radcli ffe Br6wn, ele exam inasse a cerimôn ia ao nivel do <.
simbolizaçao de uma abstraçao pertencente ao antrop610go. 0 ataq ue de Sartre
fato social. As relaçôes domi nantes entre os cHis to têmicos, homens e mulheres,
tinha camo alvo um certo marxismo, que se contenta em negligenciar a 16gica
iniciados ou nao~ inic iados, ter~ain de percor rer u m longe camin ho até tornar
autêntica de um "fato superestrutural", lai coma uma obra de arte ou um ato
inteligiveis as danças selvagens e os escudos esculpidos. Quanto ma is se recorre às
poHtico, e as d eterminaçôes especificas do seu autor, em favor das determinaçôes
vantage ns econômicas, menos é dito. E menos ainda teria sido obtido se Mali-
gerais de classe e produçâo. A partir dessa visâo, a poesia de uro Valéry é repudiada
nowski tivesse levado adiante seu projeto, até 0 nivel biol6gico. Ai ent~ o , 0 co n teu-
coma um exe m plo de "idealismo b urguês': A crîtica de Sartre parece apropriada,
do cultural, cuja especificidade consiste no seu sign ificado, ficaria comp letamente po nto par po nto, à p ratica funciona lista clâssica:
perd ido em u m d iscu rso de «necessidades"vazio de significaçao.
Te ntou ~ se fo r mular u ma regra geral dos re ndimen tos decrescentcs para a u formalismomarxista é um projeto de eliminaçao. 0 método é idèn tico ao terror na
explicaçao func ionalista: quanto mais distante e d istinta a prâtica cultu ral do sua recusa inflexîvel do dlferetrte; sua meta é a assim ilaçao total corn um minimo
observador da sua pretensa fu nçâo, menos essa funçao especificara 0 fe nômeno. A . possivel de esforço. 0 objetivo .nao é integrar aquilo que é diferente enquanto tal,
regra deve ser concebida com o uma expressao instrumental da "autonomia relati- preservando para de uma relat iva autonom ia, mas sim suprimi-Io ... Delerminaçôes
va" de d iferentes dominios culturais (ceri m ôn ia/economia), e particularmente d a espedficas despertam na teoria as mcsmas suspeilas que as pessoas despertam na
irredutibilidade do cultural aos nfveis constitutivos da integraçâo feno m enal (su- realidade. Para a maioria dos marxistas, pensar é exigir totalidade e, com esse prelex~
1 perorgânic% rgâ nico). Nesse ultimo aspecto, a fo nte geral de inadequaçâo nas to, substituir a particularidade pele univcrsal. l! nccessario levar-nos de volta ao
explicaçô es pela f~.mçâo nat ural esta relac io nada, p recisam ente,à atividade valora~ concreto [0 material] e conseqüentemente apresenlar-nos com determinaçôes fun-
tiva da simbolizaçao: ma is um a vez, a natureza arbitraria do signo, que envolve 0 damentais mas abstratas ... 0 marxista pensaria estar perdendo 0 seu tempo se, por
objetivo apenas selctivamente, submete 0 natural a uma 16gica espedfica da cul tu- exemplo, tentasse compreender a originalidade de um pensamento burguès. Aos seus
ra. Lucien Sebag demonstra-o bem: 01h05, a ûnica coisa que importa é mostrar que 0 pellsamento é um modo de idealis-
mo ... O marxista, por conseguinte, é levado a tomar por aparência 0 contcûdo real de
por definiçao, toda refraçao de uma realidade através de uma linguagem implica uma um comportamento ou de um pensamento e, quando dissolve 0 particular no Uni-
pe rda de informaçao, podendo 0 que é abandonado, por sua vez, tornar-se 0 objeto de versai, tem a satisfaçao de acrcditar que esta reduzindo a aparência à verdade. (Sartre,
um tratamento da mesma ordem. A atividade lingüistica aparece portanto como um 1963,p.48-9.].
esforço pe rmanente para submeter a um conjunto de formas um dado que sempre
ultrapassa os seus limites. Mas nao é esta uma caractcdstica apenas da linguagem; é a Da mesrna forma, Malinowski disso lveu repelidas vezes a ordem simb6lica
cultura como um todo que se deixa de fini r da mesma rnaneira. A relaçao do dado na verdade âcida da razao instrumental. Qualquer que fosse 0 dominio cultural
natural coloca isso em pie na luz: quer se trate da sexua lidade, dos rirmos do dcsenvol- em questào, seu exame s6 podia começa r livrando-se da co nsistência simb6 lica.
viOlenta do corpo, da gama das sensaçôcs ou'dos afetos, cada sociedade aparece coma Parentesco o u tOlem isl11o, mito ou magia, crença nos espiritos ou d isposiçao do
submetendo a um princip io de organizaçao que nu nca é a ûnico concebivel uma m orto, e até mesmo a anâlise da pr6pria li nguagem - em relaçao a tudo 0
realidade que se presta a urna multiplicidade de transformaçôes. A partir desse fato, p rimeiro passo de Malinowski era negar qualquer 16gica interna, qualquer est ru-
compreende-se por que a explicaçao naturalista é sempre insuficicI11e, po is a essência tura sig nificativa, ao fenômeno coma tal (ver, par exemp lo, a anilise que pe rmeia
da necessidade, descoberta aquém das diversas modulaç5es culturais, nao nos pode todo a seu Magic Science and Religion (1954]). Dai decorria que a i ntel~cçao

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84 CIIltllra c razào pratica Dois paradigllul5 da teor;a IlI!tropolOg;cn 85
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jihum;:ma, a "especulaçâo': como }.[alinowski a considerava, nuo poderia ter qual - Fica evidente tamb ém que 0 significado é limit ado à exp cr iência pela associa·
ïquer papel constitutivo. 0 costume se origina na prâtica, na vida - nao no jogo çao. isto é, a urna referência ori ginal e indicado ra que cont inua senda 0 conccito
Ido pensamento, mas no da emoçâo e do desejo, no do instinto e da necessidade: bâsico da exp ressao vocal através das suas reproduçôes s~bs('qüente s . Pa ra Mali·
Nessa perspectiva, dific il mente urn "selvagem" teria uro Interesse na natureza que nowski, a linguagem. em vez de cJassificar il exper iència, é ela pr6 pria dividida pela
nac fosse ditado pela fome, nem articularia qualqu er concepçâo além da raciona - expe r iência. VIlla palavra se diferencia de outra da mesma fo rma que a contexto
Iizaçâo clesse desejo. Dai a famosa afirmaçâo de Malinowski sob re a mentalidade
do mundo real na q uai a p ri rneira ocorre é perceptivelm en te dis tingulvel d o
m anifesta nas classificaçoes totêm icas: "a caminh o que vai da selva para 0 estô-
contexto do segundo. "A li nguagem esp elha, na sua estru lura, as catcgo rias rea is
mago do selvagem, e conseqüentemente para a sua ca beça, é mu ito curto, e para
d erivadas de atitud es praticas da criança e do ho mem natural ou prim itivo para
ele 0 munda é um indiscr imin ado pano de fund o contra 0 quai se d estacam as
espécies uteis de plan tas e anim ais e dentre elas sobret udo as co mestive is" (1954. com a mundo eircundant." (Malinowski, 1949 [1923], 1'.327-8). Esse tipo d e
recusa fundamenta l do simb6lico. da pa lavra com o categoria. levou Mali nowski a \ .. ,
p.44) . Do mesmo modo) " ha pouco ,.espaço para 0 simbolismo nas suas idéias c
contos" (ibid .• p.97). Qua nto ao mito, nao é "uma raps6d ia inutil ... mas uma força aIgu mas escolhas bévues. Uma deJas foi "a doutrina dos homônimos": uma vez >
cu ltural ativa, extremamen te importante" (ibid., p. 97) : que cada referência cmpi ri camente distinta de d eterminaâa palavra collst itui um
significado dist in to, Malinowski viu-se obrigado a co nc1uir que a "palavra" em
o mito estudado vivo ... nao é simb6lico, mas urna cxpressao direta do obje to cm questao é. na realidade. muitas outras diferentes, urn conjunto ac idental de homô-
questao; nao é uma explicaçao para a satisfaçao de um interesse cientîfi co, mas urna nirnos. 20 Se fosse esse 0 caso, é clare, nem as palavras nem a corn un icaçao pode.
ressurreiçao narrativa de urna realidade primeva, narrada para a satisfaçao de pro·
riam existir como nés as entendenlOs. na medi da em que os contextos de dois u sos
fundos desejos rcligiosos, anseios marais, submissôes sociais, e até mesmo necessida·
des praticas [ibid .• p.l 0 J ... Pademos, certamente, desca rtar·n os de todas as interpre· diferentes d a mesma pa lavra nunca sâo os mesrnOSj portanto, cada um desscs so n s
taçôes expl icativas e simb6licas d ess~s mitas de origcm. Os pcrsonagcns e seres sao 0 é uma "u nidade" d ife rente de todos os o utres. 0 q ue significa dizer que nao
que parcccm ser na superficie, e n30 sirnbolos de realidades ocultas. No que toca à existern pa lavras, mas apen as uma infinidade de sina is co ntextuais fugidios . Difi -
funçao explicativa desses mitas, nâo ha qualquer probJema de que eles dêcm conta, culdades sem elhantes se apresentam pelo fa to de que duas pessoas nao podern
qualquer curiosidade 'que eles satisfaçam , qualquer teoria que eJes encerrem." [ibid. , nunca expe rimentar a mesma realidad e exatarnente da m esrna m aneira. ja que
p. 1261 .
- elas pr6prias. de u m modo ou de outro, sao d iferentes. Ma is uma vez, jj que "no
final das con tas todo 0 significado das palavras é derivado d a experiência flsica':
Esta também foi a famosa abordagem de Malinowski à lin guagem. Pa ce, Boas.
a lin guagem n ao contém teoria aigu m a: ela nada co ntém. n ada além de urn gesto Malinowski insist iria em q ue mesrno os conceitos mais abstratos. co ma os de
verba l. d e " 'apreensao' das c01sas", cujo significado cons iste nos efeitos indu zi dos ciência, derivarn-se realmente do lugar.co murn ou da praxis infantiL "Mesmo 0
sobre os o uvintes. ''As palavras sao parte da açao e sao equivalentes às açôes" rn atermitico puro, lidando corn 0 ma is inut il e arroga nte ramo da sua ciência. a
(Malinowski, 1965 [1935 1 2:9). E eom o as palavras sao aç'a, 0 sign ifieado é a teoria dos nurneros, provavelme nte ;a possu Îa alguma experi ência de contar seu s
reaçao evocadaj as primeiras SaD 0 estimulo, 0 segundo é a resposta; Uluas sao 0
instrumen ta, 0 outra é 0 seu pr6prio produto:
tos. Porexemplo, no artÎga sobre "Cultura", na Ellciclopédia das ciêncÎas socÎais:"O signifi cado de uma
o significado de urna ûnica expressao vocal. que nesses casos é rcduzida quase semprc palavra nao esta misteriosamente conlido nela; é antes um efcito ativo do so m proferido dentro do
a urna palavra, pode ser definido como a llludança produzida pela som no campor· contexto de uma sÎtuaçao. A emissào do som é um ato significa nte ind ispensâvel a todas as forma s de
aç<'io h uma na combinada. Ë um tipo de comporlamento intimame nte comparanl à man ipulaçâo de
tamento das pessoas. ta m an ci ra pela quai um so m, proferido ap ropriad amentc. ê
uma ferrarnenta, ao mancjo de uma anna, à exccuçao de um rituai o u à conclusâo de um contrato. a
correlacionado corn elementos espaciais c temporais e com movimentos do corpo uso d as palavras cm Iodas essas form as de atividadc numana lem uma rebçao mütua e indispens:lvcl
humano que canstitui 0 seu significado; e isso se dcve <1 respostas culturais produzi· corn a compo rt;uuento m anual e fîsko" (Malinowski , 1931, p.622; cf. Malinowski, 1949 !1923] ; 1964
das por treinamenlo, "condicionamento" ou educaçao. Uma palav ra é um esllmulo [ 1963]). Para uma avaliaçâo critica dOlS tcorias da linguagem de Malinowski, ver Henson ( 1974).
co ndicionante da açao humana e torn a·sc. por assim dizer, ullla "aprecnsao" das 20 " Para definir um som, devemos descobrir, através do exame cuidadoso de contexlos \'erbais, cm
q uantos sign ificados distingulveis ele é usado. 0 signHicado nao é algo que rcsida denlro de um som
cOLsas externas 30 alcance de qucm fala, mas dentro de quem ouve [ibid., 1'.59. J 19
lista é, nao é os dois lados d o papcl de Saussure]; elc existe na relaçao do som co m 0 contexto. Da[, se
a palavra é usada cm um contexto diferente nâo pode ter 0 mesmo significado, deixa de ser a mesma
palavra e to rna-se duas ou mais unidades semantkamente d istinguÎveis" (~.. Ialinowsld, 1965! 1935 ]
19 Malinowski d cscnvolveu essa visao instrumentaI·pragmalica da linguagem cm uma séri e de t'seri· 2:72; cf. Leach, 1957, 1'. 130·2).
,.
86 Cu/tum e rf/zao pratica Dois paradigmas da tcoria antropo/6gica 87

trocados" (1965 [1935] 2:58). MalinO\vski ignora agui 0 fato de que 0 sîsterna de Ricoeur observa que no exemplo mais forte do mundo como praxis. a "pala-
numeros deve ter antecedido a contagem, mas é esse tipa de erra que ele sempre vra imperativa", a "efeito" requer a presença de seres simbolizantes em urn contex-
comete nos se us argumentas ontogenéticos (como 0 da pratica classificat6ria do to simbolizado, ja que a "compreensao" inclui ao mesmo tempo um projeto e um
parentesco), confundindo a maneira pela qual 0 indivîduo é socializado no siste~ sistema de va!oraçôes que diferenciam 0 mundo e as aç6es dos ho mens neleY
ma com a explicaçâo - na realidade a "origem" - do sistema (cf. Malinowski, Pode~se fazer a mesma afirmaçao de outra maneira. Pode-se ver na compreensao
1930),21 Finalmente, 0 conceito de significado de Malinowski é inca paz de explicar que Malinowski tem da linguagem como trabalho e do significado como resposta
seu pr6prio projeta etnogrâfico de dar sentido funcional ao costume ex6tico. Na produzida ao ouvinte a mes ma reduçao do sujeito humano ao objeto manipulado
medida em que a forma ostensiva desses costumes é estranha ou mesmo nao-fun- que informa sua técnica etIlografica. Nessa concepçao. 0 Alter é simplesmente um
"
cional, Malinowski nao pode seT orientado pela experiência na sua interpretaçao, meio para um fim. Vma matéria-prima a sel' trabalhada como qualquer outra.
ou pela men os deve categorizar e valorizar seletivamente as atitudes racionais das Mais uma vez, porém, camo insiste Ricoeur, 0 resultado de uma observaçao sobre

l
pessoas sobre seu comportamento nao-racional através de um princîpio n3oO- o comportamento de outra pessoa nâo é 0 mesmo tipo de relaç300 como a do deito
dado pela encontro etnograflco. Malinowski sustentava que 0 mundo nao corpo- de uma ferramenta sobre a forma de um objeto; cIe nao é "produzido" como um
rifica idéia aIguma, que 0 seu significado é externo aos seus "efeitos" empîricos ... bem mate rial é produzido (1970. p.203). Nao apenas porque 0 outrc é um ser
Uma etnografia correta, gerada por uma prolongada socializaçao na vida de Tro- intencional como eu. e sim, mais decisivamente, porque a comunicaçao implica
briand, seria exatamente 0 que um nativo de Trobriand teria escrito. Mas se uma comunidade) e) conseqüentemente. isso intluencia 0 "efeito" de todas essas
Malinowski tem de criâ-Ios, deve organizar sua experiência etnografica através de concepçôes comuns de homens e coisas que, ordenando essas inter-relaçôes, de-
se us conceitos. E é 0 que faz ao admitir isso. embora em contradiçao corn sua termina a "intluência" especîfica da palavra.
noçao de que a palavra nao contém idéia alguma: A eliminaçao por Malinowski do simbolo e do sistema das praticas culturais,
o canibalismo da forma pela funçao, constitui uma epistemologia para a elimina-
Nao existe descriçao destituida de tcoria. Quer se reconstruam cenas hist6ricas, se çao da pr6pria cultura como objeto antropoI6gico prôprio. Sem prcpriedades
leve a cabo uma pesquisa de campo em uma tribo selvagem ou em uma comunidade distintivas por direito nato, a cultura nao tem qualquer condiçao de ser analisada
civilizada ... toda declaraçao e toda argumentaçao têm de ser feitas em palavras. isto é, como uma coisa-em-si-mesma. Seu estudo degenera em uni ou outrc dos dois
cm conceitos. Cada conceito. por sua vez, é 0 resultado de uma teoria que declara que naturalismos vulgares; 0 economicismo do individuo racionalizante (natureza
aIguns fatos sac relevantes e outros acidentais, que alguns fatores determinam 0 curso humana); ou 0 ecologismo da vantagem seletiva (natureza externa). Malinowski.
dos acontecimentos e outros sao simplesmente entreatos acidentais; que certas coisas
é clara, nao pode ser tido como responsavel pela invençao de qualquer das duas
acontecem como acontecem por causa de personalidades e mediaç6es materiais do
problematicas. nem pele desenvolvimento completa de ambas. mas a primeira é
meio ambiente que as produziram. [Malinowski. 1960 (1944). p.7.1
definitivamente integrada em sua obra. enquanto a segunda ja ai se prefigu,ra. 0
economicismo ou 0 utilitarismo se desenvolve a partir de sua distinçao entre
21 Ricoeur (1970, p.197-219) formula uma brilhante cdtica geral da noçao da palavra praxis pura norma cultural e atitude subjetiva. e da submissao, na sua opiniao, do "ideal"a um
(incluindo a palavra imperativa), que se aplica totalmente a Malinowski . Enfocando particularmente interesse pr6prio pragmâtico - que investe 0 segundo como 0 verdadeiro opera-
a matematjca, Ricoeur escreve : ",Ë porque 0 homem exprcssou 0 espaço cm geometria, em vez de dol' da vida social.
vivê-Io e experimenta-lo em suas mcdidas rcais, que a matematica foi posslvel e, através dcla. a fisica
e as técnicas matematicas rcsu!tantes das sucessivas rcvoluçôes industriais. E surpreendente que ' . ,'JO
Platao tenha contribuido para a constmçao da geometria euclidiana através de sua obra de denomi-
naçao dc conceitos tais como linha, superficie, igualdade. similaridade das figuras etc .... que impossi- 22 ''A palavra. tal camo afirmamos. nao 'faz' nada. no maximo incita à açao ... mas se incita à açao é
-
~
bi!it:tvam qualquer recurso e qualquer alusao a manipulaçôes, a transforrnaç6es fisicas dc figuras. Esse porque significa 0 que ha para ser feito e porque a exigência significada para outrem é 'entendida' por
ascetiSlllO da linguagem matematica. a que devemos, em ûltima analise, todas as nossas maquillas de e 'scguida' por cie ... A palavra se articula cm frases. verbos e substantivos. objetos, complcmentos. ."
desde a aurora da era mecânica, teria sido impossîvel sem 0 heroismo 16gico de um Parmênides plurais etc. ... e. por causa disso. somos capazes de controlar nossa açao por uma espécie de 'ftasea-
%.
negando todo 0 mundo do devir c da praxis cm nome da auto-identidade das significaç6es. E a essa mento' de nossos gestos ... 0 significado desse fraseamento nao é uma transformaçao das coisas ou dc
ncgaçao do movimento e da atividade que devcmos as rcalizaçôes de Euclidcs. de Galileu. a maquina- n6s mesmos. nao é uma produçao no sentido literaI, mas uma significaçao. e toda significaçao designa
ria modcrna e todos os nossos dispositivos c instmmentos. Pois todo 0 nosso conhecimento. todas as vaziamente que trabalho realizara. no sentido em que se realiza um piano. um descjo, um objetivo .
palavras quc a princlpio nâo procuraram transformar 0 mundo cstao contidos dentro deJes" (ibid., é através desse v:Ilio de significaçôes, que designam sem nada fazer. que a palavra conecta e as
p.201-21). estruturas agcm" (ibid .• p.204) . '
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1

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88 CUIIl/ra e razao prdtica Doi$ paradigmas da ttoria antropo16gicn 89

Mali nowski podia "ver as cnisi1s COIllO os nativos as viam': contanto que des Mas ao separar dessa forma a ordem cultural do suje ito humano, assim com o
concordassem cm ver as coisas da sua mancira. Eles teriam qu e desenvolver uma a ficçâo é separada da vida real, Malinowski introduz um tipo de esquizofrenia
analise que va lorizasse a açâo prât ica sobre a norma cultural - e de novo corn °
ontol6gica na etnologia - que é pensamento normal da ciência social da nossa
referència à :lçâO --'- 0 afeto subjetivo sobre a forma ostensiva. Pelas noçoes de época. A vida social humana é tomada como dividida contra si mesma, com posta
Malinowski, as regras eram llma coisa, e as açôcs uma outra (oisa e mais verdadei - d e dois tipos d ifercntes de objeto que se mantêm em relaçôes de contraposiçao e
ra, senda as prim ci ras uma si mpl es co nversa ca m a "realidade" das ûltima s. merc- competiçao. Por um lado, ha as regras e formas convencion ais que equivalem à
ccnda as nonn as menas existência e analise do que 0 com portamento motivado "cultura" da situaçao. S6 elas têm direito a esse status, da mesma forma que s6 elas
por um auto-Înteresse iluminado. Todavia, 0 ato- as "da nças selvagens': as trocas sao descritas l'or propriedad es especificamente culturais: descendência matrili -
de ornamentos killa que nac pod iam ser possuidos-co ntinua senda peculiar nas near, exogamia dânica, rituais mortuârios, pagamentos de valores aos afins, pro-
suas propriedad es observaveis. Privilcgi<i-Io sob re a regra em nome do interesse duçâo de inhame, parentesco classificat6rio. Em princîpio, elas também poderiam
racional requereria uma segunda distinçao: ent re essa aparên cia externa, form a ser compreendidas nesse sentido, ou seja. por uma 16gica, ao mesmo tempo, de
incongruente, e as atitud es pniticas que as pessoas conferem a ela. Os dados mais
significaçao e açao, d esdob rada a partir dos atributos simb6licos, da rnesma forma
verdadei ros da etnografia nào consistern em fatos de ordern cultural, mas na
que a valorizaçâo de bens e a divisâo do trabalho, por exemplo, poderiam ser
maneira pela quai essa ordem é subjctivamente vivida, a famosa "imponderabili-
relacionadas às classificaçôes d e parentesco ou às prâticas matrimoniais. Mas a
dad e da vida quotidiana': Muito freqüen ternente, ins iste Malinowski, os antrop6- 1
identificaçâo dos atrib utos culturais como a "norma" ou 0 <Cideal" vis-d-vÎs a vida
logos sac envolvidos pela narrativa das "ficçôes legais" dos nativos, tais como a 1
real deve condenar esse esforço como metafisico. A cultura, ao co ntrario, se subor- '---
solidariedade do da, as regras de exogamia c1ânica, e 0 que 0 valha, que repre-
dîna a uma outra 16gica - que, como nao preserva as propriedades simb6licas,
sen tam somenle 0 "aspecto intelectual, manifesta, totalmente convencio nalizado
nâo pode fazer uma avaliaçao delas.24 Por outro lado, em opos}çâo à nonna da
da atitude nativa". Mas "0 c6digo d a conduta natural, impulsiva, as evasôes, os
cultura esta 0 "comportamento real" da pessoa. E isso, enquanto especificamente
compromissos e os costumes nâo -legais s6 sao revelados a quern faz 0 trabalho de
humano, deve ser descri to e comp reendido em termos retirados de outro universo
campo, a quem observa a vida diretamente, registra os fatos, vive nesses abrigos
junto ao seu 'material' corl1o par.a compreender nao somente a sua lin guagem e as de discurso: necessidades, impuisos, motivos, desejo"s, sentimentos e emoçôes das
\ suas afirmaçôes, mas tamb ém os motivas ocultos do comportamento, a quase pessoas. Neste ponto, uma espécie de inversâo bâsica dos prindpios durkheimia-
nunca formulada lin ha da conduta espontânea" (Malinowski, 1966 11926 ]. p.120- nos, muito embora d e acordo corn a premissa de que "0 homem é duplo", Mali-
1). A imp ortância desse "c6digo natural, impulsivo'~ é que, no final, ele prevalece nowski desloca a dinâmica social para 0 nivel natural, procurando representa- la
1
sobre 0 convencional, e a forma cu ltural se submete à praxis "espontânea': "0 por forças que emanam do pr6prio organ ismo. remos de lidar com a luta do
verdadeiro problema nâo é estudar camo a vida huma na se submete às regras - suj eito individual para alcançar seus pr6prios fins, em face de convençôes cul tu -
isso simplesmente nâo existe; 0 problema real é saber como as regras se tornaram rais coercitivas. Uma anâlise significativa cede portanto lugar a uma racionalidade
adaptadas à vida" (ibid., p.127)." manipulativa, à analise formaI de relaçôes meios-fins baseadas em uma teleologia
das satisfaçôes humanas. Deste outro ponto de vista, a cultu ra aparece simples-
mente coma um instrumento ou urn ambiente da dinâmica constitutiva do pro-
:3 Fortes descreve corn agudeza a oposiçao entre nonna "ideal" e pdtica "l'cal" na obra de Malinows- p6sita humano. É um instrumento no sentido de um conjunto de m eios à dispo-
ki, e documenta a sua transposiçâo para um contraste entre forma e sentimento que n:1o deixou
siçao do sujeito, através do quaI ele alcança se us fins autofixados. E é um ambiente,
qualque r possibilidade de entend imento do parentesco em si mes lllo: "0 que é digno de nota é a
cn fase na prâlÎca (a atÎvidadej a co mportamcnto; os mûtuos serviços concretos; 0 interesse pr6prio, nao somente como um co njunto de coerçôes externas ao individuo, mas coma
a ambiç1io e a vaidacle demonstrad as; 0 amor mat ern o e a afeÎçao paterna; cm suma, as açôes, algo sobre 0 qua I de opera suas razôes e, ao agir assim, ordena as propriedades
sentimentos e pensamentos de indiv(duos cm situaçocs sodais, tal corno diretamcnte obscrvadas pelo
ctn6grafo e admiticla$ pc10s atores) vista coma a realidadc da vida social, cm contraposiçao ao 'ideaJ'
<lU 3 ' teoria', 3S fo nnul açoes simplesmente verbais (Fortes, 1957,1'. 160) ... os fatos das relaçOes e dos
1.
.1 ,~
agrupamentos sociais sao, em seu esquema, fatos meramente de costume e motivo, amplamentc 24 Sorokin caractcriza corrctamente esse procedimento COolO "3 falacia da inadequaçâo 1 6gica~ - 0
cquipafados, par exemplo, com :lS crenças magicas, e que emcrgern cm ûltima instâ ncia de instintos que é dtadocom aprovaçao par Parsons t assim dcscrito: "Consiste cm cx:plic3r um conjunto de f3tos
huma nos universais camo 0 parentesco ou de sent irnentos hu manos comuns coma a va idadc e a corn propriedadcs que 0 diferenciam d aramente de outras, cm termos de um csquema aplic:i.vel da 1 •
:llnbiçào. Assim, nao temos cm parte aIgUilla uma anâlisc artîculacla da organizaçao local, do paren- mesma forma aos outros" (Parsons, 1968 r 19371 1:3 54). A i11esma fahid3 se aplica tante ao ccologismo
tcsco c d3 cstrutur3 po!itîca trobriandesa" (p.164) . quanto ao economicismo (utilitarismo), camo "cremos adiantc.
:- .

90 Cu/wra e razao prdtica Dois paradiglllas da tcoria autropo/6gica 91

clesse meio. 25 Concebida des sa forma, a interaçao en tre "vida" e "cultura" é neces~ Na sociedadc modern a ... 0 Ser Humano é a homem "clementar': indivislvel, sob a
sariamente desigual: uma relaçao de sujeito com objeto, ativo corn passivo, cons- forma de ser biol6gico, ao mesmo tempo em que sujeito pensante. Cada homem
tituinte com constitufdo. Comportando-se corn uma mente singular em direçao particular encarna, em um certo sentido, toda a Humanidade. É a medida de todas as
aos seus melhores interesses pr6prios, as pessoas formulam e reformulam adequa- coisas, em um sentido pleno e totalmente novo. 0 reino dos fins coincide corn os fins
Icgitimos de cada homem, e assim os val ores se invertem. 0 que ainda se denomina
dam ente sua ordem cultural (cf. Firth, 1963). Mas a eficacia da cultura como uma
"sociedade" é 0 meio, a vida de cada um é 0 fim. Ontologicamente, a sociedade nao
ordem significativa é ao mesmo tempo suspensa. A cultura é reduzida a um
existe, nao é mais que um dado irredutivel ao qual se pede som ente que nao contrarie
epifenômeno de "processos de tomada de decisao" intencionais (como dizem). as exigências de liberdade e de igualdade. Naturalmente, 0 que foi dito acima é uma
Essa expressao familiar, é clare, naO é de Malinowski, mas apresenta uma descriçao de valores, uma visao da mente ... Uma socicdade tal como 0 individualis-
conexao aprep riada corn 0 saber atual da ciência social. Esse utilitarismo - a mo a conecbe nunca existiu em parte alguma pela razâo ja apresentada, ou seja, a de
adoçao axiomatica da problemâtic~/do sujeito que calcula, ordenando 0 mundo que 0 individuo vive de idéias sociais. [Dumont, 1970, p.9-10; para outras importan-
social racionalmente de acordo corn desejos igualmente axiornaticos - é uma tes discuss6es do utilitarismo (economicismo, individualismo), ver Dumont, 1965;
consciência instintiva que n6s temos dos outros e de n6s mesmos. Muitos daque- Macpherson, 1962; Parsons, 1968 [1937]; Polanyi, 1944.]
les que podiam criticar 0 funcionalismo de Malinowski estao, nao obstante, satis-
A separaçao economicista da estrutura normativa da açao pragmatica, se nao
feitos corn sua contraposiçao essencial entre interesses pessoais e ordem social (p.
bane completa mente a cultura do alcance antropol6gico, a reduz ao status de uma
ex., ]arvie, 1967, p.77; Kuper, 1973, p.49; ou mesmo Wolf, 1964). É verdade que
1 preocupaçao secundaria. Apenas pressagiados par Malinowski, esses efeitos apa-
Malinowski foi 0 primeiro antrop610go a negar a generalidade de um homem
recem muito mais claramente em uma "antropologia ecol6gica" que homenageia
f. •
1 . econômico (1921; 1950 [1922J). Mas isso nao se deu exatamente para conferir ao
suas fontes intelectuais intitulando-se "funcionalista" ou "neofuncîonalista" (cf.

13 mesmo conceito um alcance maior? "Nas pâginas dos Argonautas e em seus


sucessores", escreveu Leach, "0 'selvagem' deixa de ser uma marionete ... Ete é um
. Collins e Vayda, 1969). Entretanto, como afirmou Marx corn razao, a anatomia do
homem é a chave para a anatomia do macaco. 0 sistema econômico mais desen-
Il ser huma no vivo que opera um sistema bizarro da organizaçao social através do
exercicio de escolhas naturais entre meios alternativos para fins alternativos"
volvido faz uma diferenciaçao explicita de categorias que permanecem combina-

~j
das, ambîguas ou som ente virtuais no sistema econômico menos desenvolvido.
(1957, p.12?). Do mesmo modo, Bateson considerou que 0 método funcionalista
Do mesmo modo, as împlicaçoes prefiguradas em uma determinada perspectiva
de Malinowski "é provavelmente acertado e, pela sua investigaçao cuidadosa, pode

l~
intelectual tornam-se explicitas apenas em versoes mais evoluidas dela. 0 novo
oferecer um sistema coerente de antropoIogia aliado a sistemas de economia
funcionalismo ecol6gico demonstra que 0 efeito da dissoluçao de Malinowski do
baseados no 'homem que calcula'" (1958, p.2?). Pois, como 0 pr6prio Malinowski
conteûdo cultural na funçao biol6gica, particularmente do simb6lico no instru-
i relatou, "sempre que 0 nativo pode fugir à sua obrigaçao sem perda de prestigio,
mental, é uma soluçao final para 0 problema cultural. Ele deixa explicito que a
ou sem provâvel perda de lucfo, ele 0 faz, exatamente como faria um homem de
cultura nao permite qualquer compreensao especial, isto é, distinta de uma expli-
neg6cios civilizado" ( 1966 [19261, p.30). A perspectiva em questâo continua sen-
caçao biol6gica. Nesse caso, a cultura desaparece.
do 0 economicismo nativo do mercado transposto aqui da anâlise da sociedade
Como no funcionalÎsmo de Malinowski, esse processo depende da apropria-
burguesa para a explicaçao da sociedade humana. 0 lugar analitico assim conce-
çao te6rica das qualidades culturais como efeitos orgânicos, interpretaçao que nao
dido à sociedade foi brilhantemente descrito por Dumont:
somente dissolve as especificaçôes culturais como também lh es permite reapare-
cer de forma mais cientîfica (isto é, quantificavel). Explica Rappaport
2S "Os problemas colocados pelas necessidades nutritivas, reprodutivas e higiênicas do homem têm
de ser resolvidos. E sao resolvidos pela construçâo de um nova meio ambiente, secundârio ou artifi~ ~mbora (/s questaes scjant colocadas em termos de fenômenos culturais, elas siio respon-
cial. Esse meio ambiente, que é nada mais nada menos que a pr6pria cultura, tem de ser permanente- didas em fermos dos efcitos de UIII comportamcnto illformado culturalmentc sobre siste-
mente reproduzido, mantido e controlado" (Malinowski, 1960 [1944], p.37; grifo meu). Indicamos mas biol6gicos: organismos, populaçoes e ecossÎstemas. A caracteristica distintiva da
também que a cultura, coma trabalho manual do homem e camo meio através do quai ele atinge os antropologia eco16gica nao é simples mente a de levar cm consideraçao os fatores
seus fins, um mdo que lhe permite viver, estahelecer um padrao de segurança, conforta e prosperida·
ambientais nas suas tentativas de elucidar os fenômenos culturais, mas a de atribuir
de; llm meio que lhe da poder e Ihc permite criar bens e valares que vâa além dos seus dotes animais,.
orgânicos - essa cultura, em tudo isso e por tudo isso, deve ser entendida camo Ilm meio para !/fil significado biol6gico aos termos-chaves - adaptaçao, homeostase, funcionamento
fim, ou seja, instrumental ou fundonalmente" (ibid., p.67-8; grifo meu). adequado, sobrevivência - das suas formulaçoes. [1971, p.243.]
Dois parndigmCJs da leorin flIllropol6~iCfl 93
92 Crlliura e razilo prtitica

como tal nao deve distinguir 0 homem de quai squer outras es pécies, nem a
. A prâtica te6rica poderia sel' chamada de "fetichismo ecoI6gico". Nada do que
antropologia da biologia. Como "comportamento" - ou mcsmo mais abslrata-
e .cultural é 0 ~u e parece; tudo é mistificado como ml1 fato natural que possui a
vlrtude ostenslva de ser bâsico e exato, embora essencialmente abst rato. 0 casa-
mente, "movimentos do corpo" - a cultura pode ser estudada, do l11esmo modo,
como as açôes de qualquer animal, isto é, como boas para a espécic ou mas para
r;
<,
~

~cnt~ tor~a-se. "um intercâmbio de materiais genéticos", ass im coma a caça é


um m tercambiO de encrgia corn 0 meio ambiente", milho, feijâo e ab6bora sào cla, sob as condiçôes seletivas naturalmente constituidas: r -"
-'
ct

r
<:
uma "dicta nao-equilibrada': a sociedade uma "populaçao de organismos huma - (
A atençao a idéias, valores ou eoneeitos culturais nao pode, cOlltudo, ser ca nsidcrada
nos': e 0 canibalismo uma {<atividade de subsistência". ("Ao examinar 0 can ibalis-
uma sine qua 1/011 da analise de eeossistemas que incluam 0 homem. Ao contrario, ~
m.o> operamos a partir da premissa de que toda s as ativid ades que proporcionam pode-se prcferir dar ênfase ao comportalllCllto ftsico real OH aos 1II0villletJtos do corpo
alImentos para os membros do grupo, ali mentos que eles realmente consornem 110 seu IIU'ÎO illllbiente ... Na
através dos qllnis 0 IlOmem efetua diretamellte alteraçoes
1
sao 'atividad es de subsistência' que podern, pois, sel' compa radas individualment~ realidade, uma abordagem posslvel sugerida par Simpson ... entre outras, é oillar n

1 e/o u tomadas em conjunto como atividades constÏlutivas de uro repcrt6rio com·


portamental global>chamado de 'padrao de obtençâo de alimentos'" - Dorns-
wltura hunltwa sÎlIlplesmente como 0 comportamento ou parte do C()/llportflnlCl!to de
lima espécie particular de pril11atas. Encarando·a desse modo, estolJllOS eapacitados
para estuda-Ia e interpreta-la da mesma forma que estudamos e interpretamos a
·17
,
trcich e Moeren, 1974, p.3). Dougl.3S (1966) chamou ao mesmo ti po de pensamen- •
~ i
to, aplicado à descoberta de valo r'es sanitarios cm ta bus de dieta, de "materialîsl11o
médico'~ Trata-se somente d~. uma versao antropol6gica ou ecol6gica particular
da troca do conteûdo signi Qcativo pela verdadc funcional que Sartre descreveu
comportamento de qualquer outra espécie, como, por exemplo, com respeito nao
samente à sua interaçao corn variâveis ambientais, mas também com 0 efeito dessa
interaçao sobre a seleçao natura!. 0 [ato de 0 comportamento humano ser complexo,
{
- ~

coma ~arxismo vulgar. 26 Esse mesquin ho comércio metafisico de pormenores


variado, variavel e, cm uma medida eonsideravel, espedfico de uma populaçâo, pode I ~ ,-
"'
fazer da observaçào e da deseriçao tarefas formidaveis, mas isso nao signifiea que ~ = /

etnograficos nao apresentaria interesse algum, nâo fosse por sua intençao confessa
prindpios basieamente diferentes devam ser usados no estudo do eompartamento
de apoderar- se do conceito de cultura.
humano e no estudo do comportamento de outras espéeies animais. [Vayda. 1965,
Malinowski opunha "cultura" a cornportarnento; para a ecologia ela é "com-
p.4; grifo meu, J
p~rtamento': Pode tratar-se de comportamento aprendido, mas nem pOl' isso
digno de tratamento diferente do "comportarpento espedfico de espécie" de qual- o funcionalismo ecol6gico coloca a cultura em um rÎsco du plo. É ameaçada
1 qu~r outro gr~po de .organismos. Pensemos nele simplesmente como um "reper- de liquidaçao porque nâo pode ser especificada como tal por motivos naturais, e
1
16no cultural (Collms e Vayda, 1969, p.155). Compreendido isso, 0 fe nômeno porque a consideraçâo da sua qualidad e especifica exigiria a invocaçao de uma
1 razâo de outra natureza. A crise torna -se entao ontol6gica cm suas proporçôes. A
1 cultura é trocada pelo "comportamen to". Suas qualidades concretas sao apenas a
26 ~ua nt ? ao pr6pr~0 ~arx, I,?nge de estar envolvido, foi ele quem formulou as crfticas e explicaçôes aparência de "movimentos do corpo", cujo saber é seu efeito biol6g ico. A ontolo-
maiS ger~ls ,desse fehchlSIllO: A aparente estupidez de fundir todas as multiplas relaçôes das pessoas gia recapitula ass im uma metodologia, E a antropologia perd e seu objeto.'Tendo
\ cm uma IImc~ relaçao de utilidade, essa abstraçao aparcntemente m etaffsica resu lta do fa to de que, na sido ignoradas as propriedades da cuttura na pratica da sua explicaçao, presume-
moder~a socledade burgucsa, todas as rcl açôes sao subordinadas na prat'ÎCa a uma relaçaa monctario-
~a n~e."Cia l abs l~ata. Essa tcaria veio à tona corn Hobbes e Locke ... Em Holbach, toda a ativ idade de
se que essas propriedades nâo tenham qualquer autonomia ou valor como tal-
11l?~Vlduos el1~ ~nte~-relaç5.o Illutua, isto é, 0 ato de falar, 0 amor etc., é descrila coma uma relaçao de o que é uma racionalizaçao do fato de que a explicaçao nao pode responder pOl'
utthdade e utl,hzaçao. Dai, as rclaçôes reais que sac aqui pressupostas - 0 ato de falar, a alllor-
elas:
~:rem a~ m,amfcstaçôes definidas ~e qualidades definidas dos ind ivlduos. Assim, essas rclaçôes per-
. m ~ s,lgm!Ïcad? que lhes é peCIIIUlr para se tornarem a expressao e a ma nifestaçao de uma terceira
Iclaçao mtroduzlda em seu lugar, a relaçiio de IIlilidnde Olllllilizaçiio ... Tudo isso realmente se aplica Pareee que uma cîêneia unifieada da eeolog ia telll eontr ibu içôes definitivas a fa1.er no
ao bll~guês. Para ele, apena~ lIIt/a rclaçao é valida por si mesma - a relaçao de exploraçàoi Ioda s as sentido da realizaçao das melas ant ropol6gicas, nao requerendo qualquer saerifjeio
demals rc!açôes s6 têm validade para cie na med ida cm que podcm ser incluidas sob aquela (mica apreei<\.vel de intcresses antropol6gieos tradieionais, Pode, eontudo rcquerer um sa-
rdaçao, e mesmo onde de encontra rclaçôes que niio podelll ser diretamente subordinadas à relaçao erifieio UIll poueo difcrentc, isto é, 0 da noçào da autonomia de lima ciência da
d~ c)(~loraçào, ao menos as subo rdina a d a na imaginaçao. A expressào material desse uso é 0
d~nhelro, a representaçao do valor de Iodas as coisas, pcssoa.s e relaçôes sodais. Conseqüentemente,
eultura (Varda e Rappaport.1967, p.497),
v~ - sc, cm um relance, que a catcgoria de 'utilizaçao' é subtraida das relaçoes reais que cu tenho com
OUi ras pe ss~as (mas de forma alguma como renexo ou simples vontade) e enUio essas rc!açôes passam Esse sacrific io da autonomia da cultu ra (e da ciência cultural) seria à conse-
a sel' a. reahd~~e da categoria quc delas foi abstraidaj urn método completamcnte metafisico de qüência da sua subo rdin açao denlro de um sistcma maior de coerçào natural. Na
procedlmcnto (Marx e Engels, 1965,1'.460-1),
Dois paradigmas da teoria antropol6gica 95 1( .....
94 Cullllra e raziio pra/ica

!- medida em que esta ûltima é concebida como uma ordem cibernética, como é o problema é que os homens nllI1Ca "cortam madcira" simplesmente dessa ,a,.

1
comum nos estudos ecol6g icos, senda a cultura inclufda em uma "ciência unifica-
da", isso também requereria 0 deslocamento da propriedade da "mente" da huma-
nidade para 0 ecossistema. Como conjunto de relaçôes termodinâmicas auto-re-
forma . Eles cortam toros para as canoas, esculpem as figuras de deuses cm clavas
gllcrn?iras, ou mesrno cortam madeira para lenha, mas sempre estabelecem re1a-
çôes corn a madeira de um modo especifico, uma forma cultural, em tcrmos de
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h ~,,~ 2
0 "

gulado ras, que respondem às "informaçôes" ou a alteraçôes significativas dos se us um projeto significativo cuja final id ade governa os termos da interaçao redproca
~%r
1?:~
componentes, 0 ecossistema camo um todo é hoje 0 local de uma "atividade ent re 0 homem e arvore. Se 0 objetivo é produzir uma canoa, a resposta a uma

1,
mental" que deve, logicamente (no interesse da autor idade exclusiva do Behe-
math)," ser negada cm qualquer uma das suas partes. Bateson exp li ca esses siste-
mudança na arvore é uma; se a meta é a obtençao de lenha, é outra. A resposta ao
ultimo golpe depende de um objctivo que nao é dado ao processo coma um
AQ ~
t
~~$
mas: "podemos afirma r que qua/quer co njunto de acontecimentos e objetos em processo natural; esse golpe e todos os golpes que 0 antecedem, desde 0 inicial,
andamento, que possua a complexidade apropriada de circuitos causais e as rela ~ dependem da intençao significativa. A interaçao determinada de arvore-olhos-cé-
çôes apropriadas de energia, exib ira.caracteristicas mentais. Ele comparara, isto é, rehro-etc. foi estipulada par uma o rdem simb6lica; é um exemplo paradigmatico
respondera a diferenças ... <Processa ra informaçôes' e sera, inevitavelmente, auto-
corretivo, quer no sentido de 6timos homeostaticos, quer no sentido da maximi-
da na tureza subordinada a serviço da cultura. A alternativa cibernética prevista
pela teoria dos ecossistemas nao passa de um fetichismo ecol6gico mais apropria-
..
. "
zaçao de certas variaveis" (1972,·p.315 ). Evidentemente, se qualquer um dos C0111- do ao seu pr6prio contexto cultural, do capitalismo industrial e burocratico, cujo
ponentes desse sistema auto-regulat6rio fosse capaz de impor seu pr6pr io projeto projeto consiste igualmente em reduzir os homens e as coisas às suas especifica-
,.
à totalidade, 0 ultimo deles se toma ria uma mera cadeia de conseqüências, gover ~ çôes fUllcionais como elementos de um processo pro dutlVO · auto determmante.
. 27 c<

nado apenas negativamente pelos limites de funcionamento possîvel. (Donde, "" ""..-
para preservar a sistematicidade, a mente s6 poder ser uma propriedade do todo:
"em nenhum sistema que mostre caracterfsticas mentais, qualquer uma das partes G.P. Murdock ~ ::~.•
pode ter um controle unilateral sobre 0 todo. Em outras palavras, as caracteristicas ~ '. ~
mentais do sÎstema siïo imanentes, nao a esta ou àquela parte, mas ao sistema coma
um todo" [ibid., p.316).) ,
Dentro do ecossistema, a trama interativa, ou 0 subsistema q ue envolve 0
o fim do "terror" sera a morte da cultura nobre ..Em George Peter Murdock, a
antropologia pode jâ ter encontrado â seu Robespierre. Murdock aproveitou a
ocasiao aparentemente apropriada da Huxley Memorial Lecture de 1971 para
~h,
~ri..
anunciar a morte da cultura. t interessante observar como ele finalmente chegou ~.

~t .....
homcm e seus arredores Îmediatos, seria caracterizada por relaçôes de retroali-
..> t
mentaçao (feedback) reciprocas e iguais às existentes entre quaisquer outros ele- a esse ponto de autoconsciência metodol6gica. 0 tema central do seu Social ;~ '\- .(
mentos do circuito, apesar de a transaçao homem-natureza ser mediada pela <. (j
Stru.cture (1949);3. repetia em seus pontos essenciais 0 entendimento morganiano
cultura. A cultura é aqui, simplesmente, a automediaçao da natureza. É somente 0 das relaç6es entre circunstância pratica, açao utilitaria e ordem cultural. Murdock
modo humano de resposta, e portanto sistematicamcnte governado, na medida pode ter sida 0 primeiro a dive rgir de Morgan cm questôes de metodologia e r.
~/'"
em que 0 homem é mais que uma variavel fun cional do todo - um compone nte detalhes de in terpretaçao, mas sua compreensâo da estrutura social deriva em
reativo em mutua determinaçao corn variaveis ambienta is, elas mesmas tao suj ei- hnha direta da teoria da praxis. Para Murdock, a formaçao de "grupos de paren-
tas ao seu objeto quanto vice-versa. Um dos exemplos favoritos de Bateso n é a
1 interaçao do homem corn a arvore no corte da madeira:
27 "De fato, no processo de produçao do capital ... 0 trabalho ~ uma totalidade ." cujas partes

4 0 ,
Consideremos um homem que corta uma arvo re cam um machado. Cada golpe do
machado é modificado ou corrigido, de acordo corn a forma do co rte da ârvore
provocada pela golpe anterior. 0 processo aulocorrelivo Osto é, mental) é realizado
componentcs individuais sao estranhas umas às outr<lS, de modo que 0 ~rocesso global como uma
totalidade 11110 é 0 traball/O do trabalhador individual, mas 0 trabalho de dlfcrentes trabalhadores que
Cslào juntos s6 na medida em que esUo agrupados là fo rçai e naD se reûnem Ivoluntariamente] uns
corn os outras. A combinaçào desse trabalho <lpucce exatamente coma subservicnte e controlada l'or
par um sistcma total, arvore-olhos-cérebro-musculos-ùlachado-golpe-arvorc; e é
-I I esse sistema total que tem as ca racterist icas da mente Îmanente. IIbid., p_37 1.J
uma vontade e par uma inteJigência estranhas - cstando a sua IIIr idade dCll1iimaçao cm outra parte
_ assim camo a sua unidade material aparece subordi nada à rmidade objetiva da maquinaria, a

., J-
>
capital fIXO, que, COffiO 1I1O,1$l ro allimado, objeüfica a idéia cicntlfica e é, de fato, 0 coordenador; es~e
nll.o se rclaciona de mancira alguma corn 0 trabalhador individual camo seu instrumento; ao contra-
rio. ex.iste camo um sin al de pontuaçào de um .individuo animado, coma seu acess6rio isolado vivo"
,; • Behemoth - animal descrito no Velho Testamento, provavelmente 0 hipop6tamoi cm sua acepçào
(Marx, 197311857-8], 1'.470).
correllte, a palavra significa algo opressivo ou de dimensües e poder monstruosos. (N.T.)

._- -_. ~
l
1
96 CI/llr/ra c razao pnirica

tesco co nsangüincos" - e pOl" con scqüê ncia, a c1assificaçao de pa rentes - repre-


Dois paradigmQs da {caria mltrop%gica

A rcsidência unilocal nâ.o produz diretamentc li nhagens ou parentes, Simplesmente


97

senta 0 reconh ec imen to d e arranjos baseados cm relacioname ntos determ inados favo rece 0 descnvolvi mento de fa mil ias extensas e demes exogâmicas, corn 0 caracLc-
pelas praticas residcnciais, que pOl sua vez respondem a exigências praticas. A ristico alinhamento nao-linear de parentes, podendo um desses leva r ao rcconheci -
p ratica res idencial é portan to a chave dinâ m ica. A deter m inaçào da composiçao mento de gru pos de parentesco nao-Iocalizados. 0 que a residência mat rilocal ou
rcal dos agru pamcntos 50ciais descmpe nha, no esquema de Murdock, um papei patrilocal realiza é reunir, cm uma proximidade espacial, gr upos de parentes do
anâlogo ao desempen hado pelas uniôes exogâ micas nos primeiros estâgios de mesmo sexo unilinearmente relacionados, junto corn as suas csposas, [Ibid" p, 21O ,]
Morgan: 0 in st rum en ta p elo quai a LO mpulsào obj etiva ou natural é reificada na
fo rma cultura l. As relaçôes de parentesco sac con stituidas por um a consciência Murd ock resume toda a discussâo em um relato do desenvo lvim ento de um
reflexiva da composiçào do grupo en tao estabelecida, Elas sào as exprcssôes arti- sistema patrilocal-patrilinear, a partir de uma orga nizaçao dual d e dis matrilinea-
culadas de arranjos residenciais, arranjos res idenciais esses q ue, por sua vez, refle- res. 0 exemplo é capital sob diversos ângu los, dos quais nâo é 0 menaI' a de que
rem as "condiçôes fundam en tais de vida": Mur'dock é levado a cunhar sua cxplicaçào co ma um mito d e orige m. Ao mesmo
tempo, 0 pr6p rio método d e Morgan despo nta clara mente, nâo SOmeI)te em
As condiçôes de existência de qualqu cr socicdadc estao sempre passando por mudall -
termos gerais, m as através dos detalh es do crescirnc nto d a patrilincaridade a
ças - às vezes nipid as, out ras vezes lentas _ em conseqüência de acontecimen tos
naturais como fomes e ep idemias, de acontecimentos sociais co mo guerras e revolu- partir da m atrilinearidade (embora Murdock, evidentem ente, nao afi rme que essa
çoes, de influências bi o16gicas como uma de nsidade populacional em crescimento, de tenha sido u ma seqüência universal da evoluçao ). Com o diz 0 relato, algurn fator
adaptaçoes internas coma invcn çocs lecnol6gicas, e de conlatos externos que podern apa rece no conj unto m atrilin ear que "co n fe re esta va ntage m à residência pat rilo-
esti mular empréstimos cu lturais, MuÎ tas mudanças nas condiçëies fundamentais de cal", coma a introduçao do gado (0 pr6prio "fato r" de Morgan ), escravos ou
vida podem exercer pressao na direçao da mod ificaçao da regra ex.istente de residên-

:~t .~(.
rnoedas de con cha, acompan hado pela noçao d e que 0 p restîgio é fort alecido pela
1 ciao Tao diversos sao os fatares causais na mudança social, e tao poucas as alternativas poliginia (ibid" p,2 17). Ago ra, todos os homens, "ao adqui:':rem Tiquezas",29 sâo
nas regras de residência, que, pra ticame nte, qualquer sociedade, indepen dente do
1 capazes, ao pagarem 0 preço da noiva, d e p ersuadi r os pais das noivas a perm iti -
nive! de cult ura das for mas existentes de organ izaçao social, pode encontrar, prova-

vclmente, concatenaçôes particub res de circunstâncias que favorecerao 0 desenvolvi- rem que suas filh as se mudem para a casa d eles. E ~odos os ho m en s começam a
1 mento de qualquer um a das regras alternativas de res idência, [Murdock, 1949, d eixar aIgumas de suas propriedades para os filh os, em detrimento dos filh os da
1
p.203.] irma, co ma no sistema matrilinear. Assim, "po uco a pouce': os laços corn a "pa-
rentela patrilinear" sâe reforçados às expensas da "pa rentela matrilinear': até que
1 as pesseas final m ente descubram que estavam u sando a patrilin earidade sem ter
Assim, por exemplo: consciência disso:

A residência patrilocal parccè scr desen cadeada por alguma mudança na cultura das
Pouco antes de a populaçao da aldeia se dar con ta de que algo particula'rmcnte
condiçëies de vida socia l que, significativamente, aumenta 0 status, a importância e a
signi ficativo tin ha acon tecido, ela descobriu que as casas de um lado da rua eslllo
influência dos ho mens em rdaça o ao sexo oposta, Qualquer modificaçao na econo-
agora oc ~padas por homens relacionados patri li nearmen te, corn as suas mulhcres c
mia basica é particularmente influentc, ]-lois po r meio dela as atividades masculi nas
na divisao sexual do trabalho chcga m a prod uzi r os principa is mei os de subsistência. filhos, e que um grupo se melhante vive do outro b do da rua. A residência patriloca l
{Ibid. , p. 206] fo i firme mente estabelecida, a herança pat rilinea r é accita, e os antigos matrietas
foram transformados cm incipientes patriclas. A situaçào esta madura para 0 desen-
Essas prât icas residencia is geram alin hamentos especî ficos de paren tes,28 cujo volvi mento da descendência patrilincar, c isso pode ocorrer mui[O rapidamente, casa
" recon hecimento" - recon hecÎmcn lo este que pode sel' negado - estabelece exislam sociedades pa trilineares nas redondezas para se rvirem como modelos, [Ibid"
grupos d e pare ntesco tais co mo as linhage ns e as costumci ras c1 assificaçoes d e p.216.]
p essoas:

28 Murd ock considera 0 "parcntesco " Uln (;lt O gClle:l16gico- nalural, exa tal11 ente nos termos expostos 29 Murdock, camo Morgan, toma "riqueza" corna tlma catcgoria natural, praticamente do mt!s mo
c crit icados por Schneider ($cbneid,'[', 1968; 1972), modo que aceita "parentcsco" ou "parcntela patrilin ear" como catcgorias gc ncaJ6gicas,

..
;,.,
98 Cu/lura c razao prtilica Dois parndigmas da teoria alltropol6gica 99

A posiçao basica de Murdock pod e sel' ilustrada de outra forma, através de um Mas nao se deve deduzir que essa d er ivaçao da ontologia a partir da metodo* .' ,
1
confro nta c1assico com Leach, no quai a pr6pr ia concepçao de Murdock da rela- log ia represe n te uma exceçao - ao m en os para as ciéncias sociais - da nossa tese ~,

.,
çâo entre a ord cm vivida e a ordem pensada emerge claramente do equfvoco. De
cefto modo, 0 errc de MUI"dock nao chegou a sê-Io, pois reconheceu no fato de
geral de que 0 conceito nao procede da prat ica_ 0 status empfrico da propos içao r
Leach privilegiaI' a escolha individual sobre a regra legal um desvio do paradigma
segundo a quaI a cultura é 0 "epifenômeno" d e uma outra rea!idade é em si mesmo
UIua i1usao. a qu e esta\'a presen te ao longo de todo 0 métod o, e que assoma à
I~
.....,
1"" ••
"--
1 .'•
"
cstrutural -fu ncional semelhante à sua pr6pria p râtica.:W Com relaçâo à aldeia supe rfic ie aqui co mo a verdad ei ra font e da proposiçao, é a sociedade burguesa.
l sinhalesa de Pul Eliya. Leach d isse que "as estruturas sociais sao algumas vezes
JI melhor obscrvadas coma 0 resultado estatistico de multiplas escolhas individuais
Por consegui nte, Murdock simplesm ente prod uz pa ra a antropolog ia 0 mes mo
,,
tipo d e reduçao so lipsfstica que Max \.\leber ten tou para a sociologia, com a
do que como um reflexo direto de regras lega is" (1960, p. 124). Para Murdock,
mesma suspensao do coletivo ou do objetivizado em favor d e intenç6es indiv i-
f entao, foi apen as l6gico co ncordar corn Leach, invertendo a frase de modo a dize r
d uais. ara, consideremos a noçao que Murdock colocaria posteriormente no
que as regras legais sac melhor observadas coma 0 resultado de uma tendência
lugar da chamada cultura, ou seja, "a abordagem da tOIllad a de d ecis6es para 0
estatistica d as escolhas individu ais (Murdock, 1960, p.9). E isso era 0 que de vinha
estudo dos fenômenos sociais" de Frederik Barth, uma abord age m que "focaliza 1
! dizendo pelo menos desde 1949:

~
os acontecimentos d a vida social em Jugar de seus aspectos ffsicos o u estatisticos,

l
E em 197 1 a conclusao l6gica evidenciou-se para ele. Naquele ano, perante a
reuniao dos antrop6logos .d a Grâ-Bretanha e l rlanda, evento cuja insign ificância e vé 0 comportamento social do po nto d e vista das decisôes tomadas por indivf-
te6rica s6 pode ser equiparad a à sua solenidade, Murdock renunciou à sua adesao duos na 'alocaçao de tempo e recursos' dentre as alternativas disponfveis" (ibid.,
_.J...,..... aos conceitos de "c ultura" e "sistema social". Esses conceitos, disse ele, nao passam p.22-3). A anatomia do homem e do ma caco: 0 ultimo paradigma de Murdock é

,
d e "abstraçôcs conceituais ilus6rias" dos "fenô m enos reais" de ind ivîduos que u ma for ma evolufda daquele contido no funcionalis mo de Malinowski - ai nda

)
~.?i'·"I/\.!V I
ÎJ (~LJY\l interage m uns corn os outros e corn 0 seu m eio ambiente em busca dos seus
1 pr6prios e melhores Înteresses. Finalmente, Murdock se consc ientizou da teoria
em sua pratica. Essa nova concepçao da cultura nao era mais que uma "abstraçao
.. ~lo:>~c ~ conceitual il us6ria" do método que ele tin ha utilizado durante tanto tempo:
que 0 cruzamento das li nhas filogenéticas seja aqu i comp lexo, uma vez que, como
se refere Kuper ao modelo de Barth, "A visao de Radcliffe*Brown da estrutura \. . . v
social como u ma rede de relacionamentos didaticos reais tornou -se, iro nicamen- l
' -î'~g
l
2i\
'
t ~f ,f;- 'C-~;
r -
1 .te, a salvaçâo do ho mem manipulativo de Malinowski" (I973, p.230). Mas 0 J
l' , ~I :- ,
{b'1l (ji....i""J ~~ <Chomem man ipulativo" revela a ascendência com um de t?das essas teorias utilitâ-

t~4 '~:. ~
Parece-mc agora desconcertantemente 6bvio que a cultu ra, 0 sistema social e todos os
L~ 1,) ~ YI h conceitos sup~a-individuais. desse tipe, tais com~ re~r~senta~a~ cole.riva, espirito de
rias. A idéia geral da vida social aqui expressa é 0 comportamento particular das
partes no mercado. Toda a cultura é entendida como 0 efeito orga nizado da
grupo e organ lsmo social, seJam abstraçôes conceltualSrlus6nas l11fendas da observa-
economia individua l. A Cultura é 0 Neg6cio na escala da Sociedade. 0 conceito ~ ~- ~,t ~, ~t
1 çâo dos "fen6menos rea is" que sao os individuos interagindo uns corn os outros e
. com 0 seu meio ambiente natural. As circunstâncias da sua interaçâo levam quase
sempre a similaridades no oornportamento de individuos diferentes, que tendemos a
reificar sob 0 nome de cultura, e fazem corn que os indivîcJuos se relacionem uns corn
de cultu ra de Murdock nao veio da experiência an tropol6gica: 0 conceito antro-
pol6gico ja era uma experiéncia cultural. 1tt-"
E mais, a condusao a part ir da "exper iência" de que a cultura nao existe é um a "~ \-Z., '-
os outros de manei ras rcpeti tivas, que telldemos a reificar coma estruturas ou siste* lusao dupla, ja que to ma como mode lo de toda a vida social nao a realidade da lf l,..'· 1 :<
1 mas. Na realidade, cultura e sistema social sao meros epifenômenos - produtos
dcrivados da interaçâo social de pluralidades de individuos. [Murdock. 1972, p.19. } t ocied ade burguesa, mas a autoconcepçao dessa sociedade. Ac!-cdita na a~~.~é?~~ .~
tlda ~ultur.a..o.f.identalS2xnQ. s_ep'_c!.<?*s~j!y~rdade, conspirando portanto para a ~lusaE_ \ .
~de gue ~~<:!mcntc é 0 pro~uto socializado da atividade pratica, igno rando a . S& (' l~~
f o nstituiçao simb6lica da ~~i:.idade pratica.' A ciência social eleva a uma declara- .
30 Nao obsl an tc Leach tenha sido muito influenciado pelas técnicas estruturalistas francesas. ainda
que trcinado nas tradiçôes de Radcliffe-Brow n, ele é capaz de uma discordância malinowskiana corn
ambos. espccilicalllcnte qu:mto 3 interposiçao de inte resses praticos entre ci rcunstância e ordem
t ao de princîpio té6riê"O-ë que a socied~d:_lrtITgae~~ seëreta-<:omo. ll1~~!deol.~~ïa:1
1ir.~~.0 ~~~ cultura é ass im ameaçada co rn um negligenciam ento na antropologia 1
il
social. 1550 é cxplicitado em Pul Efi)'a. a que se rcfcre 0 exemplo acima, m as é também 0 casa cm
Sistemas po/it;cos dos plana/tos de Burina, na medida em q ue ele entende a imposiçao de um ou out ra
[que s6 se equipara à co nsc iència dcla na· sociedade. J'
c6digo alternalivo (gumsa/gumb.o ) coma umOl escalha ditad a pela vOlntagem polftica. Dai. a necessi- a fato de qu e, na li nha da teor ia da praxis iniciada por Julian Steward, esse
dade te6rica de Si.! assumir uma propcnsao natural para compctir par prcstigio, difcrcntc apenas no negligenciamento tenha levado a algum arrependimento, ja pode servir como
conteudo da prcmissa economu:mte da economia cblssica, e para conferir-lhe 0 pOlpel de uma força
motara geral nos assuntos humanos (1954, p. l O). consolo.

- ~ .----- _.
1

f;~I~ 100 Cufll/ra e razao pralica Dois pamdigmas da /caria (lIJ /rol'0l6g ica 101

1 Julian Steward mento" (is to é, de vez que ja conhecem 0 territ6rio ) (I 955, p. 135 L Com a patrilo-
cal idade assim estabelecida corn base na sua superio ridade eco n6 mica, a estrutura
A perspecliva fundamentaJ de Steward sob re a "ecologia cultural" é, cm tcrmas do bando d eco rre como reconhecime nto e articulaçâo - de uma maneira agora
1 gcrais. a mcsma da problemâtica desculturad a de Morgan e, no detalhamento do fami li ar a n6s. A residência patrilocal d eve ag regar pa re nles "p a lrili neares'~ Con-
se u artigo paradigmatico sobre os bandos patrilineares ( 1936), corresponde exa- seqüen temente, 0 tabu do incesto é imposto ao nivcl do ba ndo, e 0 grupo é
tamente à idéia de estrutura social de Murdock. Portanto, s6 valeriaa pena expô-Ia organizado coma uma patrilinhagem exogâmica. Resumindo a questao em ter-
aqui para apresentar 0 contexto paradoxal no quai Steward, e mais tarde Murphy mos gerais: a eficiência econôm ica em um dado conjunlo de circu llstâncÎas técni-

~ eI1~~"..!'.1)riori
[1970J, co locam sua ecologia cultural - como oposiçao à bio16gica. 0 paradoxo cas e ambientais requer certas prâticas e relaçôes sociais (residè ncia patrilocal)

promove~_I?gicaY:a_t~c-" ::~."."_d_~~~~
é instrutivo. Scu esclarecimen to mostrara co mo a mistificaçâo da 16gica cultural que, por sua vez, sào fo rmuladas e cod ificadas como uma estrutura social (bando
\ da açao econômica patrilinear). Pu ro Morgan. 3 !
te da forma cultural. i
A proposiçao tambérn épura praxis. Pois para da os "padr6es comportamen-
Em seu preâmbulo à principal quesUio eco16gica sobre os "bandas primiti- tais de trnba/ho" "exigidos" pela contexto ecol6gico é que se rea lizam sob forma
vos", Stéward, de uma maneira o'u de outra, arrola as mais importantes condiç6es cultura l. Murphy expl ica a posiçâo de Steward:
técnicas e sociais dos caçadores e coletores - referindo aigu mas à vantagem
econômica, outras à natu reza humana, e outras simples mente ao fato empirico. A o rneio ambiente por si mesmo naD é 0 fator critico, t'ois os "padrôes de comparta-
upropricdade" territorial se entende corn base em que "qualquer ani m al pode se mento" ex igidos na sua exploraçâo através do usa de ccrlos "dispositivos econômi-
assegu rar de alim ento e agua de uma maneira n'lais eficiente no terreno que cos" é que sâo os e1ementos-chavcs. Esses padrôes de comportarncnto sac 0 lrabalho
habitualmcnte utiliza"; os grupos d e famflia, co rn base em "uma excitabilidade e a lecnologia, os "dispositivos econômicos': Dc uma fo rma muito simples, a teoriada
ecologia cultural esta envolvida corn 0 processo de Irabalho, sua organizaçao, scus
sexua! crônica" da espécie hunJ..ma; e 0 bando de fammas, corn base no fato de que
cidos e ritmos, e suas modalidades situacionais ... (1970, p.155 J.
"em praticamente todqs os grupos humanos muitas familias cooperam .... Isso ... Os padrôes de trabaillo sao diretalllelite derivados das fcrramclltas e recursos aos
proporciona um tip o d~ seguro de subsistência" (Steward, 1936, p.332). As princi- qua is eles sao aplicados, e esses dois falores servem para limita r as atividades huma-
pais relaçôes de produçâo - a divisao de traba lho por sexo - sao encaradas a nas às quais cstao relacionados [p.156]. E é da (!f/{îlisc da atividadc, emiugarda muilise
partir de sua generalidade empirica entre os caçadores. E isso também em relaçâo das instituÎçôes e vaiores, que a teoria deriva.
à simp les tecnologia existente, nao apenas como um conjunto de ferramentas em Essas atividades sac aquelas pertencentes ao cido de trabalho e delas emerge a
si mcsmas, mas. também como um conjunto evidente em si mesmo de intenç6es: estrutura da sociedade Shoshone [p. 156 J ...
a provisâo da "subsistência': Essa tecnologia se desenvolve em areas de recursos o ponto que desejo enfatizar é que 0 dominio da açào social enyolvido na produçâo
material, islO é, 0 trabalho, encontra-se subjacente ao sistema social Shosho ne como
alimentares limitados; dai, os caçadores nunca ultrapassarem os pequenos agrega-
um todo. Os recursos sao a objeto de trabalho e ai jaz sua importância para uma
dos em b;:mdo, da ordem de 20 a 50 pess03s, e apresentarem baixas densidades comprec ns ~o da sociedade e da cultura .... Como abjctos de trabalha, eles possucm
populacionais. cerlas caracteristicas imadificâveis às qu ais a trabalho deve sc adaptar para fazê-Ios
Dadas essas condiçôes, passa-se a determ inar a base ecol6g ica das varias acessÎvcis à cxploraçao. As ferramc ntas devem sua posiçao central na analisc da
formas de banda; "patrilinear", "matrilinear" e "composta". Como na an,i1ise de socicdade à sua co ndiçaa de instrumentos e mediadorcs do trabal ho. 0 uso de fcr ra-
Mu rdock, 0 elo critico entre 0 meio am bien te e a est rulura social é a prâtica mentas requer certos mados de comportamellto, e a aplicaçao desses inst rumentos a
reside ncial. Steward conce ntra suas atençôes sobre 0 tipo de bando m ais difun di- materiais induz a posteriores ajustes de cornportamento [p.1571 .
do,o patrilinear, que ele entende como a fo n na lizaçao da residência patr il ocal. Na
p rim eira versao do estudo (1936), a patrilocalid ade é explicada pela dominância ~

inata do m acho e pela importânc ia econômica dos homens nas culturas caçadoras 31 0 parildigma praxis - pdticil- estrutura, ~ generalizado por Ste .....ard na forma de "três proce- 1--
dirncn tos fundamentais da ecologia cultural": "Primeiro dcve seT:lI1alisado 0 inter-rdilcionamento
(p.333). Em uma versao posterior, a patrilocalidade é rc1acionada particularmente de tecnologia explorativa ou produtiva cam 0 mdo ambiente ... EI11 scgundo lugar, devem ser
~s suas vantagens econômicas cm areas d e recursos animais dispersos, mas fixos: analisados os padrôes de comportamento envolviclos na exploraçiio de uma ârca particular por mdo 1
"cm um mcio ambiente no q uai 0 p rincipal alimento seja caça nào-migrat6ria e de uma teenologia partieular ... 0 terceiro procedirnen to é para detcnninar ah! que ponto os padroes
de comportamento rcqueridos na cxploraçiio do meia ambicnte aCctam outras aspectas da cuttura"
d ispe rsa, é \'antajoso que os homens permaneçam no seu terr it6r io gera l de nascÎ - 1
( 195 5, pAO-I).
i
'. 102 CI/II/ml c raziio prtilica
Dois paradigmas da teoria anlropo16gica 103

A t",oria e 0 método da ecoJogia .cultural nao sao UIl1 tipa de determÎnismo ambien- citada), a teoria de Steward deriva mais da atividade do trabalho "do que das
uJ. nem ~stao mesmo basicamente preocupados corn 0 mcio ambicn lc. Trata-se de instituiçôes e valores". Essas institu içôes e valores, co nseqüentemente, nao organ i-
~a ~eona cult~ra l , sem ser "culturolôgica" ou «supcrorgâ n ica>~ E mais, é urna tcaria zam a interco nexao huma na COOl a natureza, mas chegam à cena post festum, como
~:: aç"û, no sentldo cm que esse terma foi usado cm sociologia. Embora reconhecen-
uma cristalizaçao das relaçôes estabelecidas na situaçao de trabalho. Por outro
'::0 que 0 c?mportamcnto é, cm boa parle, regulado por normas, vé também as narmas
ù'mo slIrgllldo 110 primeiro piano dc açao- sOCJa
. 1, e sen d0 wl1a cnstaltznçiio
" lado) os padrôes de trabalho "derivam diretamente das ferramentas e recursos";
do comporta_
7:~-nto que, por sua vez, mantém esses padr6es comportamcntais [p.163J ... as ferra-
des sac "exigidos" para a integraçao efetiva dos dois no processo de produçao (cf.
~~nt~ e recurSQS rcquerem [grifo de MurphyJ aIguns lipas de comportamento para Steward, 1938, p.260- 1). Tudo, portanto, leva à noçao de "exigências", e a "exigên-
~~ èm mtegrado~ corn sucesso, e essas exigencias _ 0 processo de trabalho _ pres. cia" em questao é a purarnente objetiva de lidar com sucesso corn 0 meio ambien-
~ !Onam cm segUlda a estrut ura social gcral fp.163; todos os grifos sao meus corn as te. As conclusôes de Murphy sobre as relaçôes de cultura corn a natureza sao
e..., \:(eçoes cxpressas. )32 verdadeiras, mas infelizmente nao sao pertinentes à ecologia stewardiana;

.... . ~[~~phy c~ntin~a ,fa.zendo ~ma eloqüente defesa dessa "ecologia cultural", Os fenômenos de ordem superior ordeoam os fenômenos de ordem inferior de
I.~ n ~.ra. ..;) reduçoes blOloglCas da nova ecologia" (da quaI Vayda, Sweet e Leeds sac aco rdo corn seus objetivos, embora o<io possam altera r suas propriedades. Do mesmo
.:ltJOÙS como expoentes) 33 A der ,_ . modo, os sistemas sociais humanos alcançam e envolvem os ecossistemas, e nao 0
.:: . , . '.. lcsa, porem, nao se faz sem contradlçôes e, no
unl1. das contas, é dlflctl dlstmguir as duas posiçôes, a nao ser por diferenças de contrario, e a cultura reordena a natureza e realça as partes deia que sac relevantes
~nUmento.
para a situaçao humana. f 1970, p. 169.)
. ~e aco rdo corn Murphy, Steward pensava a sociedad e como um modo distin-
rl.... ~e llltegraÇao. e, co mo tal •.nao-subord inada à natureza. Ordenada por idéias e "".= ~I
1 ~tl\.dad.es~ a soc~edade goz3na de uma relativa autonomia. Mas para apresentar a É justam ente assim. No entanto, toda a filosofia de Steward se encaminha exata- S-'
~
~

\
~,O iltradl~3? sucmtamente, as idéias sac sobre atividades, enquanto que a razao mente no sentido oposto. A morfologia cultural se toma inteligîvel precisamente <:"
1 -:6$3.5
.
atI\ïdades nao passa
'tas de mod
~. •
'
da sua eficJ:.·
. , . d
, . d ' ,
1 dC l a pratlCa em eterrnmadas clrcunstân-
0 que 0 pnnclplO a ordem cullu ral permanece sendo 0 princfpio
.:ultural da vantagem adaptativa. Como 0 pr6prio Murphy observa (na passagem
nas mes mas bases que as asas de um passaro ou as guelras de um peixe. A cultura
nao reo rdena a natureza através dos seus pr6prios objetivos porque, para Steward,
~

e- " .
todo objetivo, a nâo ser 0 pratico, desaparece no momento da produçao. A sabe- ~".
do ria ecol6gica consiste em esquecer a ordenaçao cultural da natureza em todos os L
.~.: A. intere:ssante obra te6rica de Murphy (297!) cl ' rnomentos decisivos. A interaçâo da tecnologia corn 0 rneio ambiente segundo
, •d uI . parte a mesma duahdade de açao e norma
K"«la e e c tura, e das premissas irreconcTâ . cl . . . . ' determinadas relaçôes de produçao - sobre a quaI se erige uma morfologia
• ~ • ~ _ru! al 1 t vels e que a atlvldade gera Idélas e a percep\âo é
,'. I,;.:n .. w: tur mente de modo qu 'l'
'.' d' - .' _ . ~se sempre 1 us6no (por exemplo, p.34-5, 55, 90- 1, 100-2). As cultural - é considerada por Steward coma um fato instrumental. Dai a ordem
. ~n~ IÇoeS de uma Interaçao dlalétu:a tornam-se en tao contradiçô d 6' M h
! t:.\1 d..;.de anles da idéia que é a recondi :1 d .. es 0 pr pno urp y, corn a que é transmitida através da açao à estrutura se r a eco-16gica da adaptaçao efetiva.
~ . . . . ' p. ç 0 a atlVldadc, estando essas duas proposiçôes rclaciona-
_;J!> po. uma negatlvldade aleat6na ' I)o r ex 1" b A problemâtica de Steward é um padrào para 0 negli genciamento, no princî-
• ,. .;~ 1 - 1 - . COlI' 0, cm ora cu tenha argumentado que as idéias sâo
~,,".;l...,~ ~ a açao, e as nào sao apenas um rc(\cxo 1 . 'd d
~ . L.:. , ; 'cl ai '. . (essa atl\'1 a cou uma reafirmaç:1o dela na form a pio te6rico, da ecologia como sistema cultural. Isso é cm parte uma questao de
~'•.;l1l""Il.iCa el': . Ao contnlno as Idélas in 1 . d _ .
.... "·d d d ' , c ll1n 0 as que sao 1l0nnatlvas elll uma sociedade podern
::~ ..:l.! a rea.u a e a comporlamento IJode " . ' ornissao, incapacidade de desenvolver ao nivel do co nceito 0 que é reconhecido de
, : ; ••- d cl '. .' III rCJI1tcrprcta_la de acordo corn outras estruturas de
~run ..... 0, po em sunphfic:i· la e dlstorcê la ou d . cl fato. Steward estâ bem dente de que 0 carMer particular da tecnologia determina
.' _ '.' 1 .. -, po em:llll aem rar cmconflitoabertoeconscientc
,. fi a aÇ30 SOCldJ. sso n:1o slglllfica que 0 sist . '.
... _ . cilla Ilormaln'o n:1o esteJa relaclonado à condula pois o ca rMer do meio ambiente, isto é, confere significân cia a recursos por um critério
J.; !~·m.s s.ao <i precondlç:1o da atividadc" (p.158). ' "
~.~.:~~~~:a ne..(, "~~gia', como dey? c~)all.):\-I:l p:r:1 distingui_la da ecologia cultural de Steward, estâ de re levância cultural. No entanto. no modo de argumentaçao de Steward, isto é .':
~:: .. ' . 1 ....

fIIf ~,
.. aptaçào c coerCJlCI<l slslcmal lcas ('l1lre cultura e mcio ambientc, cessa busca lM urn dado, juntamente corn as relaçôes de famHia e de produçao (divisao de traba - .
• • ... :l <.: ... mento e ordem na I"claçào caUS:1 0 ob .'
" '" . '.' SCUrCCll1lCnto c 0 des:1parccimcnto das distinçôes entre Iho por sexo: hom ens caçando, lTIulheres colhendo). A ordenaçao cultural da
..' ... 015 ... As conexôes entre um SISlcma soc' · J ' .
,.; ... . . . .' 1.\ e 0 St.'11 melO :1mblente podem ser cfetivamente
. , ~.:n~d:u, mas ISSO dlficllmente elllllina as frolltt'ir:1s enlrt' os d o 's A cl ',' • ' d natureza é portanto disfarçada como premissa para uma ordenaçao naluralista da
,,">-!:.:ma social derivam d t: t d . _. 1 ... 15 mç 0 e a 3utonomla a
"';~ ' . d cl 0 a ~ e que sua IIllegraçao n.'side no dominio das idéias e das atividades cul tura. Na realidade) a intencionalidade completa do processo produtivo é negli-
....:-..: •.:1..1>., .: mo 0 que estas se 3}Ustam pm I"od ,', cl '
' . d • . U7.11 um mo 0 de \'Ida coerente e orde nado Elas est:io ge nciada na suposiçâo de que essa seja uma economia de "subsistência". conde na-
~.~~~~.n,l as 2 natureza, mas suas moda!idades ellcontrarn-se alél~l da natureza" (Mur~hy, ! 970, "
da pela pobreza do s meios técnicos a LIma rnisedvel existência.

1
"•
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~
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CI/hum c mzdo prtlticil 105
104 Dois paradigmas da tcoria alllropolOgica
f
iQ.-.
Essa naturalizaçao da econonù:-. do caçador-coletor é. evidentcmen te, 0 saber cada esco la eco16gica em particular) camo engajada na reproduçao d e si mcsma [ti
an tropo16gico aceito.3~ E isso km a ver dire lam cnte com uma exp licaçâo "ecoI6 - enquanto cultura ou na man utençao da populaçao huma na dentro d e limites de ~.

gica" da cultura total. Por ignoraf 0 c" rater hist6rico dos objetivos econ6micos, viabilidade biol6gica. Em qualquer caso, a praxologia é "objetiva" no scntido de IV
f <
tanta cm qualidade coma em quantidade, ta illa nos bens particulares que se tenta que a explicaçao consiste em determ inar as virtudes mate riais ou bio16gicas de
produzir quanta na intcnsidade do processo. carece ainda da organizaçao cultural
da relaça o corn a cultura. 3S Neill l11CSIllO os caçadores estâo engajados cm lima
determin ados traços cultu rais; naO ha qualquer demanda te6rica de que os atores
façam seus calculos diretamente em utilidades adapta tivas; pelo contrario, os mais
!,
1

simples economia de subsistência. Toda grupo distingue a comestivel do nao-co- triunfantes eurekas! serao reservados para a d emonstraçao de que 0 fa zem malgré L....
m estîvel e nâo apenas para a popula ~·.ao como um tod o, mas para classes especifi- eux. 0 ato fina l para a cultura consiste n a su a abso rçao, de uma m aneira ou de
cas de idad e, sexo e cond içôes rituais tais C0l110 sao local mente defin idas. Além do outra, dentro da natureza. Ou a pratica cultural é um modo comportame ntal de
mais, uma porçao de exemp los do s aborigines australi anos serve para rnostra r que aparên cia das leis da seleçao natura l, exatamente como qualq uer "cornportamen-
diferentes tipos de troca intergrup al têm imp licaçôes correspondentes sobre a ta especîfico de espécie>l, ou ela se in clui dentro de um ecossistema mais geral que, ... 1

intensidade e os padrôes sociais do traba lho. Os australianos sao mesmo capazes sozinho e camo uma total idade, d esfr uta dos poderes de auto -regulaçao ou "men -
de um totemismo concreto, no quai os grupos de vizinhança se esp ecializam na te': e cujas li mitaçôes se dâo sob formas cu ltu rais.
produçao de diferentes objetos utilitarios para comerciar a partir de materia is Mais do q ue par u ma pragmatica de formas culturais, a utilitarismo subjeti- ~.'. ~
igualmente disponîveis para todos, duplicando, desse modo, no plana econômica, va esta, em contraste) preocupado corn a atividade intencional dos indiv îduos na
t..-
os ritas e a in terdependência de grupos imaginados no sistema totêmico. Em p ersecuçao dos seus pr6prios interesses e das suas pr6prias satisfaçôes. Pode-se
suma,O que Steward deixa d e lado é a organ izaçâo do trabalho como um processo
simb6 lico que opera tanto nas reIaçôes de produçâo co rn a nas suas fin ali dades. A
atividade d a produçâo é) ao co nt rario, desconstituida culturalmente, para dar
dizer que este segundo tipo de teoria pragmatica pressupôe um Homem Econô-
mica Universal, corn um conju nto relativizado de preferências, isto é, um homem
agindo racio nalm ente em direçao a metas que variam contudc je sociedade para
.-
e
-
~-,
'-

<:.
luga r à constituiçao da cuhura pela at ividade da produçao. sociedad e. Essa relativizaçao é, portanto, uma acomodaçao à variaçao cu ltural , ~
A quesUio real colocada à antropologia par essa raZaO pratica é a da existência
da cultu ra. As teorias da utilidad e jâ mudaram muitas vezes de roupa) mas a
mas também sua apropriaçao) coma premissa, par tl,m a explicaçâo que pretende
representa-la camo conseqü ência. Nessa praxologia, a cultura é tom ada coma um
ç -
desfecho é sem pre 0 m esm o: a eliminaçao da cultura - camo objeto di stintivo da C)......
meio amb iente ou 0 conjunto dos meios à di sposiçao do "individuo que age': e ç
d isciplina. Vê-se, através da va ri edade dessas teorias, dois tipos principa is qu e também camo uma resultante sedimentada de su as maquinaçôes au to-Î nteressa- ':o..
co rrem ao 10ngo de dua s eSlradas diferentes em direçao a esse fim comum. Um das. A soluçao caracterist ica da cultura é portanto solipsistica na forma. Apenas os
::1
tipo é naturalist ico ou eco l6gico - por assim dizer, objetivo - enquan to a
segundo é utilitario no se n tid o c1assico, ou economidstico, invocando a familiar
atores (e os interesses considerados a priori como seus) sao reais; a cultura é 0
ep ife nômeno das suas intençôes.
'"
.~

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· 0
rclaçao m eios-fins do sujeito humano racional. a os esses tipo?ae râzio pratica tallÏoénlfêiTïefilèomüm uma conœpçao ~ç'
o n aturalismo compreende 3 cultura coma 0 modo humano da adaptaçao. A c ~ )_ .
empobrecida da simbolizaçao hu ma na. Para todos eles, 0 csquema cu ltural é 0 ,,-. ç:>. \.
cultura, desse ponto de vista, é uma ordem instrumental; concebida (segundo signo de outras realidades, obedecendo no final em se u arra nj o interna a outras ~
,~.
ç:~-
leis e outras 16gicas. Nen hum deles foi capaz de explorar a fu ndo a d escoberta 0-
antropol6gica de que a criaçao do significado é a qualidade q ue distin gue e cons- 1 ;- ,
H "Um hom em que passa a vida seguindo animais apenas para mata-los e comê- Ios, ou passando de
titui os homens - a "essência humana" de um d iscurso mais an tigo - de modo 0
urna moita de fruteiras para outra, na realidadc vive coma um an imal" (Braidwood, 1957, p.122j cf.
$ab lins, 1972, cap.l j Lee e De Vore, 1968). que, pelos processos de valor izaçao e significaçao diferenciais, as relaçôes entre os
35 a que esta falt:mdo especificamentc é a intencionalidade cultural corporificada no c6digo de
objetos descj:\.\'eis, Coma l3audrilJard explica cam muila propriedade, um "objeto de consumo le
pOl'tanlo de produç:io] existe da mesma forma que um fonema tem um significado absoluto em
~ ---------- --
1ho mens) bem coma entre eles e a natureza, sao orga nizadas. ____ ,__
.... J'
/,~.
1 ;S
~
lingüistica. Esse objeto naD adquire signific:ldo nem numa rclaçao espedfica corn 0 sujeito, .. nem 1

numa relaç:io operativa COrn 0 mundo (0 obje to·utensîlio)j cie s6 adquirc significado através de sua
di ferença dos outras objetos. de acordo cam um c6digo herarqu ico" ( 1972. p.61). Sendo este 0 casa,
A razao cultural
1 (,
~
.-
..
o!lo h:\. "necessidades a nao ser aqueJas Inecessidadesl de que a sistcma nccessita" e isso nao se da 0
porque 0 consumo é uma funçao da. produçao, mas porque a cOI!SIII11/nalivité é um modo estrutural
Nos paragrafos iniciais deste capitula. referi -me à rel açâo ex isle nte ent re a propos- '"
de produçao (ibid., p.89). ta cultural e a proposta prâtica coma uma oposiçao dclica e repetitiva à q,ual a '"
.$

l ,
106 Cul/u ra e raziio pra/ica
,~
<
-
"
Dois paradigmas da tcoria alltropoMgica 107
"
,f'..
antro polog ia se m anteve presa nos ultimos cern a nos. Assim , exatamente coma na
, soc iedade no rte-amer icana, onde tud o que é essencialmente 0 m a is co nvencio nal
é tido com o 0 mais natural, começo u em desvantagem a luta p elo reco nhecimento
filosofia co up de poing hem como de uma tecnologia coup de pOÎng ... Vm determinado
tipo de tecnologia enco ntra cxpressao na filosofia do lotemislllo, outro tipo na astro-
logia ou na mecânica quân tica. (\o\'hite, 1949, p.365-6.)
r
I!
) _~ Il ... 1. ) da perspectiva cultural q ue pode ria ser qualificada co mo uma tentativa de Iib ertar ~
...'~,'., .,,-, f) ) ~ a an t ropo logia dos g rilhô es do naturalism o. D esenvolvida tanto na Eu repa com a 13-
,~

; nos Estados Un idos, essa luta se tem caracterizado nao som ente po r uma m aio r Com o as id éias decorrern das co ndiçôes técn icas da percepçao, a evoluçao da '- ~

_,1 l • 1
!co n sc iên cia an t rop ol6gica a resp eito d o simb6lico, m as também por uma penetra- fil oso fia é, e m sua essé n cia, concebid a por \'\Thi te co mo a passage m do estagio d a c
, • ~. '" ;\~- ; '1 çao cresce n te no cam po d a a nalise do p ratico. falsa co nsc iência pa ra 0 estagio da verdade ira con sciência, a travessa ndo 0 curto
t\ 1) ,ép l . ; No q ue se refe re aos Estados Unidos, os pr6 prios discipu los de Boas tomaram periodo de tra nsiçao da m etafîs ica. Ao dispor de recursos tecnol6gicos cada vez
\",(.,. . :,a si a defesa do seu co nceito d e cultura com a es tru tura sign ific ativa interposta m a is efi cazes para tidar corn 0 mundo, 0 sup ern aturalism o pri m iti vo) correspo n-
~ èn t re a s circu nstân cias e 0 cost u mé . Esse conceito foi posterio rm en te d esenvolvi- d ente à rep rese ntaçao a ntropom6rfica de uma igno rânci a fu nda m enta l, d eve ria
do, sobretudo pa r Ruth Be nedict, que sustento u a idéia de uma 16gica o r ienta do ra fo rçosam ente dar lugar a u ma fil oso fi a cientifica baseada no co nh ecimento obje-
q ue re un ifica ria os fragm en tos espalhados por Lo wi e, alin havand o-os para for- tivo.
ma r padrôes con siste n tes d e cultura . Segundo Bened ict, a ordem seria produto da Pa r out ro lado, W h ite insiste no ca rater u n ico do "com porta m ento simb6li-
in fusao d e significados e .atitud es compa raveis enco ntrados em todas as praticas co': isto é, u m sistema d e sign ifi cados q ue indepe nde da realid ade fisica. Co nse-
d a cultu ra. Nao se tratava, é clare, d e um c6digo di fe rencia l, mas de um opératoire qü entemente, 0 mod o pelo quaI 0 mund o é "experimentado" nao constitui um
global que organiza 0 mei o ambiente, as relaçôes socia is e, acima d e tudo, a simp les processo sensorial determin ad o pela exposiçao direta da rea lidade à per-
h ist6ria , u m filtro seletivo q ue reduz iria 0 ca os em potencial dos empréstimos cepçao por m e io d a tecnolog ia. 0 p ode r que 0 ho m em tem de co n fe rir significado
c ulturais (a difusao) po r m eio de um critério de ace itaçao e uma atribuiçao de - experiênda com o atribu içao d e si g ni ficado - co nstr6i o u t re tipo de mundo :
significad o (Benedict, 1961 11934]J .
N a obra d e Lesli e Whi te, o utro co nheddo a nt rop61ogo norte-am erica no, 0 o homem difere do macaco e, ao q ue sabcmos, de todos os out ros sercs vivos po r ser
p arad igma d e Boas coiwive corn 0 de Morgan, se m que, no en ta nto, seja alcan çada capaz de um comportamen to simb6lico. Corn palavras , 0 homem cria um novo
a unidad e dos opostos te6ricos. Essa ambivalência presente na filosofi a de White mundo, um mundo de idéias e filosofias. Nesse mun do, a existência do homem é tào
pod e nao se r idiossincni tica; constitui um reconhec imento leg ftimo de quea razao real quanto no mundo fisico de seus sentidos. Em verdade, 0 homem sente que a
pratica e 0 simb6lico coabi tam, sem suscitar muitos comenta rios ou escândalos, qualidade essencial de sua cxistência consiste em ocupar esse m undo de sfmbolos e
n a maioria d a.s teori as antropol6gicas. Para "White, as id éias sào, por um lado) a idéias - ou, como às vezes cie 0 chama, 0 mund o da me nte ou do espirito. Esse
refI exo da base tec nol6gica, seja d ireta m ente, seja por m ediaçao das relaçô es so- mundo das idéias da provas de uma continuidade e de uma perma nência que 0
d a is igu alm en te dete rminad(\,s por essa base. Aqui) sua form ulaçao te6rica provém mundo externo dos sentidos jamais podeni ter. Ele naD é feiro apenas do presente,
di retamen te da epistemolo gia de Morga n. As id éias qu e os ho m ens elaboram mas de um passado e tambérn de um fu turo. Tcmporalmente, nao co'nsiitui uma
sob re 0 mundo d eriva m n ecessa ria m en te do m odo peio q uaI 0 conhece m pela sucessao de epis6d ios desconcxos, e sim um continuum que se estendc ao infinito em
experi ênda, e essa expe ri ência, por sua vez, depende d o m odo pela q uai se articu- amhas as direç6es, da ctcrnidade à etern idadc. (Wh ite, 1942, p.372.]
lam tecnicam ente ao mund o:
Mas en tao, n essa pe rspectiva simb6lica - que se opoe à co nsc iência p ositi-
Os sistcmas ideol6gicos ou filos6ficos sac 0 produto da organ izaçao de crenças nas vista e utili ta ria através da exposiçao tecnolôgica - a ferrame nta é, ela p r6p ria,
quais a experiência hum ana encontra sua interpretaçào. Mas a experiência e) em uma idéia. A ferra m enta "nao é um me ro objeto mate rial o u mesmo u ma imagem
conseqüênci a, as in tcrpretaçôcs sa o pro fund amente condicionadas pelas tecnolog ias. se nsorial como pode se r para um macaco. Ë també m u ma id éia" (White, 1942,
A cada tipo de tccnolog ia corresponde um tipo de filosofia. A interpretaçao de um p.373). Se um m achado de pedra gera deter mi nado tipo de filosofia, ncm po r isso
sistema de experiência do q uai m TI coup de pOÎnt é um traço caracterfs tico refletira deixa d e sel', ele pr6prio, u m conce ito cujo significado e uso - co m o oco rre co rn
neccssariamente esse tipo de experi éncia. Nao seria impr6prio falar em um tipo de todos os conce ito s - sào flXados, n ao por suas propri edad es o bjetivas, mas pela
sistem a d e relaçôes en tre simbolos. Assim, a d ete rm in açào tecnol6gica d a cul tu ra
n a teori a evolucion ista de White atu a lado a lado com a d eterm in açao cultural da
• 50co (cm franc~s no original).
tecnologia em sua teo r ia simb6lica:

!' ..
, :

Dois paradigmas da leoria {!llI rop ()IJ~ îCll 109


108 Cultura c razao prdtica

CO ll ceiwal por obm do quaI t/l1U1 maté- Entre 0 IlO1IIC 111 e a WHll reza, illterpu-
Um machaclo lcm um co mponentc subjetivo; n30 teria scntido algum sem UI11 COll-
ceito cuma atit ude. Por outra Jado, um concei to ou uma 3titude nao teriam sentido ria e lima forma, desprovidas al1lbas de /l iul-se a Véll da W/lH rrI , e ele nada po-
algum sem uma clara expressao, através do comportamento ou da (ala (que é uma existéllcia independel'lte, realizam -sc derja cllxergaf" (j lU'i O scr arTavés desse
véu. Ele ainda usa\'a seus sentidos. ...
~~
forma de comportamen to) . Toda eleme nto cultura l, tod a traça cultural, lcm um COIIID cstrul'ura s, isto é, co mo seres ao
:.;
aspecta objetivo Csubjetivo. M as as con cepçëies, a titudes e scnt îmentos - fen ômcllos mesmo te mpo empi ri cos e inteligi- Lascava pcd ras. caçavtl ccrvos, acasa-
que têm seu lugar no organ ismo huma no - podem ser considerados, para fin s de
interprctaçao cicntifica, num contexto extra-sol1latico, isto é, a partir da sua relaçâo
voi s. [1966, p. 130; grifo rneu ·1 lava-se e procriava . Mas tlldo cra per-
meado pela essêllcif"! Jas palavras: os
~ } ..'"'",
corn outras coisas e acontecimcntos simbolizados, cm vez de cm sua relaçâo COOl 0 significados e valores ql/e estamm além
"
~

organismo h umano ... [Desse modo, um mach ado pode ser co~side ra do a partir da dos sell tidos. E esses sigl/ificados e va/o-
sua relaçao 1 corn out ras co isas e acontecÎmentos si mbol izados, tais como arcos, enX2- res 0 orie ll ta 1'L'111J, a/ém cfe oricl/tar seus
das e costumes que regem a d ivisao de tra balh o na sociedade. [White, 1959a, p.236.J36
/ selltidos, tendo /nlliras vezes precedê/!- •
c
cia sobre eles. [19 58 ms; grifo meu.Jl7 •
Em oposiçao ao parad igma fund amentalmente prat ico e tecnol6gico que 0
Iiga a Morgan, White é capaz de .assumir uma perspectiva simb6lica que 0 cola ca ~

.
em co mpanhia de um nome inverossimil. Permitam -me justapor uma citaçao de Ao que parece, se mpre que se incu rsiona pela antro.polagia norte-an:ericana,
~

k<"j _.. ~

Lévi-Strauss, transcrita anterio rmente, a um texto extraido do d iscurso pro ferido ,-'~
verifica-se. se nao exatamente essa ambivalência de White, uma ap ropnaçâo, de
por White na condiçâo de presidente da seçao de An tropolagia da MAS [American certo modo inescrupulosa, do objeto cultural pelo significado. A imp ressionante
Associati on for the Advance ment of Science - Associaçao America na para 0 etnociência dese nvolvida por Goodenough, Lounsbury, Co nkl in e outros, sobre-
Progresso da Ciência]: tudo a partir do legado lîngü istico da escola de Boas, foi agrilhoada por um
conceito positivista de cuttura co mo competência compar tam en t ~l ou e tnogra ~a ,
UVI -STRAUSS WHITE conseq üe nt eme nte do significado coma significância rcfe.rel.1Clal e. d(~ a~â~l~e
camo traduçao, em termos de um.c6digo aparentemente Ob)l2! tIVO, CUp ob! e~'Vl­
1
Se afi rmamos que 0 esquema concei - Assim [corn simbolosl 0 homem
1
! tuaI comanda e define as prâticas, é èriou um novo mun do pa ra nele vi- dade" encerra uma teoria. Ou, para mencionar exem plos de natureza bem dlstmta
porque essas prMicas, objeto de estu- ver. Ce rtamente ele nâo deixo u de (ainda que igual mente imp ression antes pela qualidade inte l ectu~l ), os esfo rç~s ~e
1 Geertz ou Schn eider, por caminhos diferentes, esbarraram tambem em ~ma hn:'-
do do etn61ogo, sob a forma de reali- palmilhar a terra, de sentir 0 vento no
dades discretas,lacalizadas no tempo rosto, de escuta- lo suspirar nos ra- taçao especifica do simbolo, concebido a parti r da disti nçao en~ re açao e l~eolog,a,
e no espaço, e distintivas de gêneros mos dos pinheiros; ele bebeu a agua sociedade e cultura. Essa distinçao, cm particular, é caracteristlca do s melOS euro-
de vida e de form as de civili zaçao, nâo dos rios, dormiu sob as estrelas e le- peus. mu ito mais di fundida na antropologia soci~l inglesa q.ue na n orte-an;eri~a ­
1 se confund em com a praxis que ... va n tou-se para sa ud ar 0 sol. Mas ja na. Como suas implicaçoes remontam a Durkh eim e, de pOiS, ao 111oderno es tt u- '.'
1
constitui a tota lidad e fundam ental nâo era 0 mesmo sol! Nada mais era turalismo francês _ que també m incorpora a tradiçâo de Boas através de Lévi-
i para as ciências do homem ... Sem como antes. Tudo estava "banhado Strauss- pareceu-m e mais correto dedicar maior aten çao à maneira pela quaI fo i
pôr cm duvida 0 incontes tavel prima- por luz celestial" e havia «sugestôes de concebida a relaçao entre util itarismo e cultura nessa tradiçao. Começo pOl' Durk-
do da s infra-estruturas, cremos que imortalidade" em cada mao. A agua hei m.
entre prâxis e prâticas se intercala ja nâo servia mais apenas para saci ar Embora se t'cnha tornado a her6i de um cer to "funcionalismo" posterior,
sempre /lm medindor, que é 0 esquema a sede; poderia torn a r a vida ete rn a. Durkheim dese nvolveu sua pr6p ria posiçâo a respeito da sociedade em co ntra po-
siçao à moda lidadc de economicisl11o e individualismo radical qu e vimos conti~o
no projeto de Malinowski (cf. Parsons, 1968 [19371; Lukes, 1972) . Durkheim
l6 Nesse artigo, \Vhite confere dcsncccssariamente à cultura um a definiçi'io contextual; cm outras
palavras, os "simbo13dos" \listos no contexto de outros "s imbolados':o que coloca a ca rga da deu'nn i-
naçao no antrop61ogo - mesmo quando 0 local do simb61ico permanecc no sujeito humallO - e
37 Ë evidcntc que essa comparaçao é IC\le l11ente maliciosa, pois a frase fin al do paragrafo ~de Vlhite é
ignora 0 proccsso real pelo quai as prod uçôes hum3113s si'io reificadtls ou "ohjeti\ltldas'; ou scja,
uma proposiçao que Lévi-Strauss nao endoss a ria, embora scja le propre da escol;} de Boas: 0 homem
torn am-se "cxt ra-sornâticas". Vcr Berger e Luckmann pa ra ll!l1tl di scussilo rcccnte de "objctivaçao",
presa, cOlltudo, às ll ot6rias origens na pr:ixis. to rnou-se 0 animal irracional."
110 Cul/lira c razao pratica Dois paradigmas da feoria alltropoldgÎca 111

elegclI Spencer coma seu principal adversario socio16giço no que se [cfere a essas Indo provém, é nccessariamen te através dcle que tudo devc ser explicado. Além disso,
questocs, cm par ticular na obra A divisiio do traba lho (1949 [1893J). Porta nto, ha nas socicdades apenas consciências individuais; portanto, é nelas que se encontra
paralclamente ao contraste entre Morgan e Boas, é passivel estabelecer uma COI11- a fonle de Ioda a evoluçao social.
paraçao paradigmatica entre Spencer e Durkheim, cujo deba te mais recente estava Em conseqüência, as leis socio16gicas s6 podem ser um carola rio das ieis mais gcrais
cent rado no utilitarismo pr6prio ou na sua açao eco nomicistica, logo, na oposiçao da psicologi a. /Ibid., p.97-9.]
en lre ind ivîduo e sociedade, estanda es ta ûltim3 relacionada à 16gica materi aI da
prod uçao e, por conseguinte, à oposiçào global entre cultura e natureZ3. Por varias Desde cedo, observa Luke, Durkheim convenceu -se de que a econornia poH-
razoes, contudo, 0 exerdcio dessa comparaçâo entre Durkheim e Spencer nao tica conslÎluia UIl1 eSlagio do desenvolvimento da ciênc ia soc ial que precisava ser
seria tao valioso. Uma delas é a grande seme lhança res idual en tre 0 "superorgâni- superado. Obrigada a part ir do pressuposto de que "nada ha de real na sociedade
co" de Spencer e a "sociedade" d e Durkhe im. Ma is importante é que D urkh eim
forjo u seu conceito de social n u m confronta gera! corn a economia poli tica clJ.ss i-
além do indivfduo'~ tai ciênc ia nao oferec ia qua lquer espaço te6rico para a socio-
logia. Com retaçao a esse individuo eterno do quaI fora abstraida a sociedade, ....."",,
ca, e n~o apenas corn Spencer, e portanto é mais correto entendê- Io camo uma
Durkheim nao poderia deixar de nutrir 0 mesmo desprezo que Marx. Esse p r6- ... ,.
prio "individuo" era uma abstraçao. Privado de todas as coordenadas de tem po,
profunda crîtica à autoconcepça6 do cap italismo que se exibia como teoria da
espaço e h ist6ria, tudo que restava era "0 triste retrato do puro egoÎsmo" (D urk- ."
,~

socied~lde. Tratava-se de uma crîtica gera l à adoçao da f6rmula racio nalista d o


heim [ 1888 [, citado par Lukes, 1972, p.80).
indivîduo q ue acumula como 0 modelo da produçao soci al, m odela que elevava a
sociedade ao status de predicado das su postas fin alidades e necessidades humanas.
Ncm Malinowski nem Weber. Durkheim recusava-se a conceber a socied ade =1
como 0 objeto externo da manipulaçao huma na ou troca- la pela realidade exclu- . ;'
A esse vo Iu ntar ismo e intencion alismo, Durkheim opôs 0 fato soc ial. As esmaga- c
siva do sujeito intencional. Como en lâo se co loca Radcliffe-Bro wn ? Seguramen te,
. do ras prop riedades e poderes qu e Ihe atr ibui em relaçao ao individuo repre- ""
~., -
c~
as mesmas consideraçôes imped iriam Durkheim d e ser in dulgente corn a utilita-
sentam um ataque d ireto à idé ia que 0 economÎsta liberal fazia da sociedade como ç:~ J ~._
rismo mal disfarçado do func ionalisIl1o sociol6gico. Nem mesmo se u entusiasmo
produ to publico do Interesse privado. f;: f"
pela "solidariedade" 0 levou a supor, em pri ncip io, que a funçao de u m costume
Po rlan to, a célebre advertência contida em As regras do tnétodo socio16gico-
" tratar os fatos sociais coma coisas" - represen tava mais que uma liçào aplicada
9U seu papel na satisfaçao dos b~soil1s sociaux poderia dar conta de sua natureza
especifica. l8 Nâo obstante, os deli neamen los do fu ncio n alismo de Radcliffe-
e- <0
l
à ret ificaçao positivista. Ressaltar a fac ticidade do fato social efa precisamente uma !'!Î'.
Brown transparecem na onto logia de Durkheim . Ao negar a economia politica, 1::
fo r ma de removê- lo da produçâo individ ual: "Pois tu do q ue é real possu i uma
natu reza defi n ida que impôe con trole, que deve ser levada em conta e que ja mais
Durkhe im foi obrigado a reproduzi r ao nivel da sociedade, encarada como .uma f.cc-
espécie de supersuje ito, 0 m esmo economicismo qu e se h avia recu sado a admitir
é com pletam en te superada, m esm o q uando conseguim os neutra li za-Ia." (1950a
como const itut ivo ao n ivel do in dividuo. Pode-se perceber m u ito bem essa uniao
, S -:·~
{1895J, p.iv-vi). Todos os aspectos afirmativos da sociabilidade no esquema de ·C
de opostos em um ensaio (1887) que escreveu sobre a ciência moral alema, on de ~.
Du rkh eim sao, simultaneamente, aspectos negativos da individualidade. A qu es-
enaltece as perspectivas sociais d os historiadores econômicos G. Sch ~ofIer e A. .~

tao nao se reduzapenas a que 0 fato soc ial seja coletivo. Trata-seda consc iência em
o pos içJo ao desejo, do convencional em oposiçao ao espontâneo; e em vez de se
Wagner, combatendo os liberais da "escola de Manchester': Co rn relaçâo a estes
ft ..:;,
,."

~
ultimos, escreve:
o ri gin~r das necessidades, que sac internas, ela se impôe como coe rçao, que é
extern:l. "De fato, a ma is impor tante caracteristica de u m a 'coisa' é a impossib ili-
~ '4,'

a economia politica consiste na satisfaçao das nccessidades dos indivfduos, em parti-


dade de que seja modificada po r u m simp les esforço de vontade" (ibid ., p.28) . De cular de suas necessidades mate riais. Segundo CSSa concepçao, 0 individuo supôe-se .,;,
mane ir;l a naloga, 0 m6vel rea l das incursôes de Durkhe im no terreno da psico lo - camo 0 unico hm das relaçôes econômÎCasi tudo é feito par e1e e para de. Asociedade, "'

~
gia ach;l\'n-se em sua critica à economia. Entendia de que a origem real do redu- par sua vez, é uma invcnçao do pensamento, uma entidade metafisica que 0 estudioso
cionisillo era a ideologia do homem que calculava: .,
-;:s
D..' tato, se a sociedade é apenas um sistema de meios instituidos pelo horncm para 38 Mostrar em que sentido um fato é l'tlll nào é explicar par que é verdadeiro nem por que é a quê é,
s ~
atingir determinados fins, esses fins 56 podem ser individuais, pois somente os indi- pois os usas aos quais serve pressupèiem as propriedades espedficas que a caracterizam. mas flao a
viduos podcriam tcr existido anles da sociedade. Do individuo, portanto, cmanaram criam. A necessidadc que temos das coisas nâo pode determinar que elas sejam desta ou daquela
forma c, par conseqUência, nao é cssa nccessidade que pade retira-las do nada C conferir-lhcs
'"
~
ns nçc:essidades e dcscjos que determinam a formaçao de socicdades; e sc é dele que
existência (Durkheim, 1950b [1895], p.90; cf. p.94-5, 109- 11; e 1965, p.42-4).

Il
,
..~ ~~-- _. _- -- ~ -- - --

112 CI/hura e. razao pra/Ica Dois paradigmas da teoria alltropo/6gica 11 3

pade c devc ignoraI'. Essa pa lavf(l apcllas [ol ula 0 conj unto de todas as atividades produzia grande numero de efcitos permanentes sobre a idéia do obje to social.
individuais; trala-se de um fodo que ,Sc redu?, à soma das suas partes ... Vê -se que, Um deles cra a visao de qu e a sociedadc cstava continuamente ameaçada a pa rt ir
basicamçn te, os ecoll omi stas libcrai s s:io. sem 0 sabcr, disdp ulos de Rousseau , a quem de dentro por uma guerra da parte contra 0 toda, e que era construida de modo a
repud iam par cngano. É ycrdadc que reconh cCè I1l que 0 cstado de isolamcnto nao é evitar esse peri go; esse conceito, que inspirou profundamente a m aioria das obras
id eal, mas, tal como Rousseau, vêcm no do soc ial nada mais que um a aproximaçao do grupo do Am1ée Sociologique, enca ntrava-se também por detrâs da preocupa-
supcrficial, d ctermin ada pela conjunçao de înl ercsses individuais. [D urkheim , 1887, çao de Radcliffe-B rown corn a "cooptaçao" e corn a ordem legal em geral (cf.
p.3 7. Em um cnsaio postcrior (1965) sobre Rousseau, sua opiniao muda . J Sahlins, 1972, cap. 4). Pode se r que essa noçao de luta subterrânea e dos problemas
funcionais que ela apresenta à sociedade permaneça como 0 legado mais impor-
tante conferido à ciência socia l pela ideologia capitalista. B 6bvio que a ênfase na
Quer di zer entào q ue 0 argu menta iilvocaclo contra 0 scr individual é exatamente vida da sociedade em oposiçao ao pro 6s~:.in ividual proporcionou a base
o da existência de u m ser social - e contra 0 l'ode r orde nado r da necessidade 16gica para a apropriaçao de toda a metafora orgânica omo a idéia basica da
individual esta 0 da l1ecessidade social. A negaçao de que determinada pratica- constituiçao social. A tradiçao da socieda e co ITm organismo foi mantidal)Or
econ6mica, por exemplo - seja produto do desejo indi vidual adquire a forma de ltaa.êïTffé~·s;ow·n; -é "co m ela a divisao da antropologia social ou sociologia, nos
uma insistênci a em sua utilidade social: ra mos das ciências natu rai s: morfologia, fisiologia e evoluçao. Ela requeria apenas
a proposiçâo de que a " funçâo social" de um a instituiçâo, ou sua contribuiçao à
ao
Para [Wagner e Schmoller], con ù êlr io, a sociedade é um verdadeiro ser que nao continuidade social, fosse também sua miso,t d'être (Radcliffe-Brown, 1950, p.62)
esta, sem duvida, acima dos indivîduos que a co mpôem, mas que, nao obstante, tem para completar em um mesmo movimento a reversâo da maxima de Durkheim
sua pr6pria natureza e personalidade. Essas express6es utilizadas na linguagem cor-
para 0 seu contrario - e a transferência do utilita rismo do indivîduo para 0
rente - consciência colctiva, cspirito coletivo, corpo da naçào - nao possuem
apenas uma dimens âo puramcnte verbal, mas expressam fatos que sac emÎnente- sllpersujeito que a pr6pria linha inicial de argumentaçâo de Durkheim tornou
men te concretos. :Ë errado dizer que 0 todo é igua l à soma de suas partes. Pelo simples inevitavel.
(ato de que as partes man}êm relaç6es dcfinidas Lunas com as outras, porque estao o conceito de simbolizaçao de Durkheim, incluindo a muito conhecida
dispostas de determinada maneira, algo de nova resulta de sua combinaçao: um ser "epÎstemologia sociol6gica': acabou viti ma do mesmo tipo de dualismo, da mes-
composto, é certo, mas dotado de propriedades especiais e que, em ci rcul1stâncias ma forma que se tornou, nas mâos dos seguidores antropol6gicos, outra forma de
especia is, pode inclusive tom ar-se conscien te de si mesmo ... Como ... 0 ser social lcm 16gica instrumental. Lukes e o utros antrop61.~.~~_~~!mar_am, em OPOSiÇ.~q__àS~
necessidades pr6prias. entre as quais a necessidade de objetos materiais para satisfa- objeçôes de Lévi-Sffairs'Sà-aëriVaçâo~ repr~se nt~!? c~~eti:,a. da mo.r~ol~gia i
zê-las, cie institui e organiza uma atividade econômica que nao é a ativid ade deste ou
daquele individuo, tampouco a maioria dos cidadâos, Illas a atividade da naçao cm ilsocial, que Durkheim se tornara cada vez malS consciente da auto nomla e da
Uri'ivêtsalidade do sÎgnifj.JCadoJIalyeZ __e~se sej~-",~eJ~emplo da_ '!i~er_':."-!~_e~tr:.m
~

..
i J;:

-..
se u conjunto. [Ibid., p.37 -8.] estar consciente de um fato e conhece r seu lugar.. te6ricq açi!!_~a..QQ:_ Os lextos que lfJ -' ...·1
..- .~
A.
[ ~,
poderiam ser pe ~;~;s i~~;nent;~-it·~ d~;e·~ -a-mbos os lados da questâo equivalem a
A sociedade, po rtan to, tem os seus propr ios fins. qu e nào sao aqueles do ap enas um conjunto de paradoxos dentro da co mpreensao do m est re da relaçâo "
ind ividuo, e é através da sociedade, e nao do indivfduo, que a atividade social po de do pensamento com a mundo. Outro conjunto de paradoxos é 0 problema (mu ito
~ ,
~

ser comp reendid a. "Para um fa to ser sociol6gico, ele deve in teressar nao apenas semelh ante ao de Malin owski ) da diferença entre 0 modo de conhecimento do d~ ~,

aos individuos considerados separadamcnte, mas tamb ém à pr6pria sociedade. 0 soci610go e a maneira pela qual 0 conhecimen to é co nstituido na infância e na •
exé rcito, a industria, a fa mflia possuern fun çëies sociais na medida cm que têm sociedade - processos tao di stintos na concepçao de Durkheim qu e isso 0 deixa
coma se us objetivos um a defesa, a outra a alimentaçâo da sociedade, e a terceira a inca paz de abarcar seu pr6prio programa positivista. Esse programa afirmava que
sua renovaçao e continuidade" (D urkheim, 1886, p.66). Nesse casa, a telcologia os fatos sociais, precisamente porque eram "coisas", s6 podiam ser penetrados de
utilitaria nâo pode se l' evitada. 0 paradigma meies-fins camo U1n tode foi cons- fora, contanto que guiados pela percepçao e sem preconcepçao. No entanlo, Durk-
truide co rn base na cOll cepçao do rata social, na medid a em que esse fato foi hei m nun ca acred itou qu e 0 nosso pr6prio con hecimento como m embros da
determinado por oposiçiio à necessidade individ ual. Assim, a vida da sociedade era sociedade ou, a fortiori, os fatos sociais tivcssem a mesmo tipo de gênese. Esse
a fin alid ade relevante. Mas, alé m di sso, precisamente porque foi definida camo dilema pode ser exemplificado por duas curtas passagens das Regras. Por urn lado,
exterior e por distinçao ao bem -esta r individua!, es sa idéia de sebrevivència social Durkheim escreve que "toda educaçao é um esforço continuo para irnpor na

~e.. -=..om=-..",,~~"""oa....-----------------'-
,,
r
(
1.
114 Clllwra e raziiQ prl!/ica DaÎs paradigmas da tcaria lZlltrapolOgica 115
1
cf iança maneiras de ver, sentir e agir às quais ela nao poderia chegar espontanea- ~al-tkJacto (voltaremos-a-essa~.q uestao m ais ad iante). Entretant o, como os ,
m en te" (1950a [1895], p.6). Todavia, al gu mas paginas adiante, ele diz: "Os mora- ( ~c:~~~_s.. ~1.
: a~.!!.!. dill~~al~dade ~oci.J;eles transcen~em .especificamen te a expe-
listas pensam qu e é necessario d eterminar co rn precisao a essência d as idéias de lei
e élic3. Eles ai nd a nao chegararn à ve rd ade muita simples de q ue, como nossas
n ênc la IOdlvldual. Em vez d e arttcularem essa expe n êncla, eles se eleva m a uma
metalinguagem pela quai a experiência é organ izada. 40 E uma vez que ascategorias
,.
idéias (représentations) das coisas fisicas sâo derivadas dessas pr6prias coisas e as nao sao as particularidades d a experiência, mas antes idéias gerais das particulari- ,f 'l

exp ressa m mais ou menas exatamente, ass im [como estudiososJ nossas idéias de
clades (que fazem de um a exper iência um a particularidad e), elas nao refietem
ét ica devem ser derivadas da manifestaçao observavel das regras que estao funcio -
especifica m ente a percepçao, mas aprop riam-na dentro de um siste ma cultural
nando 50b nossos olhos" (ibid., p. 23). Durkheim se apegou simultaneamente a 41
relativo. Finalmente, Durkheim reconhece 0 cara ter arbitrario do signo direta-
uma re'laçao mediada e nâo -medi ada entre suj eito e objeta. Se 0 segundo se
mente, como uma conseqüência 16gica da distinçao entre 0 fa to individual e 0
adaptava ao projeta cientîfico, 0 primeiro era 0 d estino do homem na sociedade,
social, exatamente porque a sensaçâo individual é so m ente um fato transit6rio l
No en tanto, a co ntradiçao era m a{s complexa e nao deixava de apresentar certa
que 116s. como seres sociais. temos os meios e a liberdade para representar em
determi naçao, No caso mediado, a soc iedade co nfrontava o .ho mem como um
outros termos:

!
supersujeito cujos pr6prios c;onceitos do mundo dominavam e suhstitufam suas
sensibilidad es e depois, como um objeto, a experiência direta do que explicava
empiricamente esse processo de imposiçao co nceitual. Na condiçao de locus desse Urna sensaçao, urna irnagem, relaciona-se sempre corn um objeto determinado ou
dualismo antagônico entre sociedade e se nsibiJidade, 0 hom em era «duplo" na corn uma coleçao de objetos desse tipo c expressa 0 estado momentâneo de uma
consciência particular; ela é esscncialmente individual c subjetiva. Por isso, podemos
visao de Durkheim, e a dualidad e d o seu ser correspondia a uma oposiçâo entre
dispor, corn relativa liberdade, das reprcsentaçôes que têm essa origem. Sem duvida, f
percepçao (individual) e concepçao (social), bem como entre gratificaçao egoista f
quando nossas sensaçôes sac reais, se impOem a n6s de [ato. Porém, de direito, somos
~ e moralid ade coletiva. 39
livres 'para concebê-las de modo diferentc do que realmente sâo, de representa-las a
,~ ) Menc~on.o essas ~o nvoluçôes ?ialéticas ~or~ue e1as ajuda~ a explicar as vir-

D., Ij~udes
!(' . . e as hm ltaçôes da problemahca durkhelmlana como te~na
da cultura.Essas
n6s como se desenvolvendo em urn a ordem difercnte daquet a na quai realmentc se
produzirarn. Frente a elas. na.da nos prende, cnquanto nao intervenham considera-
1 iJ . Ur. virtudes sao apenas parcialmente docum entadas pela mfluencla do concelto de çôes de outro tipo [ou seja, sociais). [Durkheim, 1947 (1912), p.14.r12
. ,1
Jw.. , fato social de Durkheim na formulaçao de Saussure da d istinçao entre langue e
\1 l " ..l·V al-1 <"parole (Doroszewski, 1933). Na Classificaçao primitiva (juntament~ corn Mauss) e

~ ! ,\ \ i ~.l ~~ i em t~ f0;JPas~~le~1:~tar~~.~~~_~_4~_r::!.~~~:::! 0 ~r6pr:,o Dur~ei~ desenvolve,u u ma 40 "De fato, ha um nûmero muito pequeno de pal avras que empregamos normalmente cujo signifi-

Unoçao~o signo, particularmente em r~ferêncla às c~teg.o~las de classe, num~ro, cado nao ullrapassa, cm maior ou menor medida, os limÎtes da nossa experiência pessoa!. Com muita

~ espaço, te'rhpo, causa, etc, qqe em mUltos pontos essenClalS era bastante pr6Xlma
frequ ência, um termo expressa coisas que nun ca percebemos ou experiências que nunca tivemos ou
das quais nunca fomos testemunhas" (Durkh eim, 1947 [19121, 1'.434).
à d e Sa ussure. Observa-se outra paradoxe do ponto de vista do carater arbitrârio 41 "0 pensar através de conceitos nao é apenas ver a realidade do seu lado mais geral, mas é projetar
uma luz sobre a sensaçao que a ilumina, penetra-la e transform a-la. 0 conceher algo é aprender
do sig no, uma vez que para Durkhei m as categorias representavam a morfologia mclhor seus c1ementos essenciais e tamhém situa-Io cm seu lugar; cada civilizaçao tem seu sistema de
conceitos organizado que também a caracteriza" (ibid., 1'.435).
42 Em outra pa rte da sua obca, Durkheim escreve sobre a alien açâo envolvida nessa apropriaçao da
experiência individual de uma forma semelhante à que Ma rx aprcsenta nos Manl/s,ritas de 1844:
39 Em outro artigo ( 1914 ), q ue da seguimento às Formas elementares, Durkheim esc reve~: "Nossa "N6s s6 comprecndemos quando pensamos soh a forma de conceitos. Mas a realidade sensorial n:ïo
inteligência, como nossa atividade, apresenta d uas formas muito. diferentes.: ~or um lado, sao sensa- é fcita para en trar no quadro de conceitos, nem espontaneamente nem por si mesma. Ela resiste e,
çoes e tcndèncias $ensoriais; por outro, sao 0 pcnsamento conce.tual e a atlVldade moral. Cada uma para submetê-Ia, temos de cometer aigu ma violência para com cla, temos de submetê-Ia a todos os
o dessas duas partes de n6s mesmos representa um p610 scparado do !lOSSO ser, e esses d.ois p610s ~li.O tipos dc operaçoes laooriosas que a alteram de modo que a mente possa assimila-la. No cntapto,
san apenas distintos um do outro, mas também sao opostos um ao o ut ro. Nossos apetl~ es sensonalS nunca somos completa mente bcm-sucedidos ao controIar nossas sensaçôes e ao traduzi-Ias t·otal.
sao neccssariamente egolstas: des têm a !lossa indiv id u ali d ~dc , e apenas da, como o~Je t ? Quando mente em termos inteligiveis. Elas s6 tomam forma conceit ual perdendo 0 qu e ha de mais concreto
satisfazemos nossa fome, nossa sede etc., sem colocar em Jogo qualquer outra tendencla, é a n6s nelas, aquilo que as fazem ralar ao nosso se r sensorial e a comprometê.lo na açâo; desse modo,
m esmos, c apenas a n6s mesmos, que satisfazemos. [0 pensamento conceitualj e a ~ t.ividade moral, tornam-se algo ftxo e morto. Portanto, n:io podemos comprecnder as coisas sem renunciar parcial-
ao contrario, distin guem-se pelo fato de que as regras de condutas às quais estao su}eltos po~em sel" mente a um sentimento sobre a sua vida, e nao podemos sen tir aquela vida sem renunciar à sua
univers:lIizadas. Assim, por definiçao, perseguem fin s impessoa is. A moral co meça com 0 desmteres- compreensao. Sem duvida, às vezes sonhamos co rn uma ciência que expresse adequadamcnte tod<l a
se, com a ligaçao com alguém que naD n6s mesmos" (1 960 ( 19 14], p.327; cf. 195 1, e Lukes, 1972, realidade; isso, porém, é um ideal do quai nos pod emos incessantemen te aproximar, mas nunca
() 1'.23-4). atin gir" (Durkheim, 1960 [1914], p.329). '
Dois paradigllws 1'1/1 tcoria fill/ropo16gica 117
~" 6
Cl/IIUnI e razào pra/Îca

Portanto, para Durkheim, 0 fato social, acima de toda consc iênc ia coletiva, Esse conceito da apropriaçao soc ial da I1Jtureza, da ordem na lural (OIllO
nao é um simp les reconhecim ento da circu nstância mate rial. A oposiçào a essa ordem moral, con ti nua a in fo rm ar a rnclhor antropologia es trutural, inglesa ou
recluçao levaria Durkheim, ao menos momentaneamente, além de seu pr6prio francesa. Ele foi esse ncÎal ao lraba lho de Radcliffe-Brown sobre a crcnça e 0
reflexio ni smo soc iol6gico. Da determinaçao do esquema significativo pela morfo - .• cerimon ial dos andamaneses, assim como aas seU5 estudos de totemismo, tabu c
Jogia socia l, ele passa u a uma determinaçao da m orfolog ia social camo significa- :" reli giao cm ge ral. Ele também foi dcte rrn in ante para as in iciativas etnograficJs de
tiva, e da si ntaxe significativa coma sui ge/leris: "A sociedade ideal", insistia ele, Evans-Pritch ard e seus alunas, bem como às ana lises mais rceentes de c1assificaçâo
l "nao se enco ntra fora da socied ade real; é pa rte integra nt e dela .... Villa socicdade de Douglas, Leach, BuJrrier e Tam biah. Além di ssa. reconhece-se nesse problem a-
1. nao é constituîda somente da massa d e ind ividuos que a com p6em, 0 chao que mat riz da antropologia social inglesa a mesma "i530 geral da relaçào de costume
': el es OCUP~J!:1, ~~~oisas que eles usa~1 e os n~,ovimentos que executa~, ma.s acima corn a natureza que distingue Boas de Morgan. Se a funcionalismo in glês reprodu-

I l de tudo é 'l lde 'VIue ela for ma de SI mcsma (1914 [1 9121, p.422). Dlvergmdo do
i m aterialismoh ist6rico em gestaçao, Durkheim con trap6s "todo um mundo de
, se ntimentos, idéias e imagens que, uma vez nascidos, obedecem a Ieis pr6prias.
ziu certo tipo de eco nomicismo, e se 0 exagerou pela transposiçao de uma telcolo -
gia utilitâria ao supersujeito social, èsse mesmo rnovimen to evitaria a naturalismo
vu lgar, ou a ecologismo. The Nuer (1940), de Evans-Pritchard, dcsen'lolve lad a a
Eles se atraem, repelem, u ne m, dividem e multiplicam, embora essas combinaç6es questao na sua co nst ruçâo, permeando 0 contraste entre as detenn inaçôes gc rais
nao sejam comandadas nem compelidas pelas condiç6es da realidade subjacente" , ~ da ecolog ia e a especificidad e do sistema de linhagem pelas suas famosas passo. gens
(ibid., p.424; compara r com as primeiras observaçôes d e Labrio la, em Lukes, 1972,
p.23!). Observem que mesmo dentro da epistemologia sociol6gica surgiu um
Il sobre a constituiçao social do tempo e do espaço. Mas entao Evan.)-P ritchard ja
hi'vi~î dês~~volvido os 'pOÎ1toS essen'ciaisde uma v~rdadeira ecolog ia cultural em
t
desvio fundamental na relaçao en tre sociedade e natu reza qu e podia afastar qual- sua ob ra sobre a bruxaria Zande (1937). Por que, perguntou cIe, pessoas essencia\- r
quer reflexio nismo. A sociedade, DurkJ1eim costumava dizer, ab ra nge os "moldes mente racionais camo os Azande, sabendo perfeitamente que suas hortas ti nham
d entro dos quais é formada a experiência humap-~': Conseqüentemente, 0 mundo sida destroçadas par elefa ntes e suas casas que im adas pela fogo, ainda assirn r
conhecido do homem era um mundo soc ial, precisa mente nao um reflexo, mas dc acusava rn disso seus vizinhos e parentes e ernpreendiam aç6es magicas de defesa e r
dcntro da sociedadc. A hi ~t6 ria do mu ndo era a narrativa da existência da tribo,
exatamente coma 0 espaço geogrâfico podia ser explicado a partir do ponto
represâlia? A resposta que ele mesmo deu foi que a efeitb socialhâo resulta da
ca usa natural. Embora a fogo passa ter a propri edade de qu~eirii3r'uma casa, nao é
~. ..
central de um a aldeia. Os objetos dessa existê ncia social nao eram simp lesmen te
, -
propriedade do fogo quc imar a sua casa. A respos ta poderia se r enco ntrada tam- t.
1 .
classificados isomorficamente corn a homem, em co rrespondência corn as catego- bém especificamente no nivel cultural; nao estâ na natureza do fogo queimar uma t_ , ' .
rias de homens, por isso fo i dado a eles um Iugar dentro des grupos huma nos. . casa; a fogo s6 queima madeira. Uma vez incorp orado ao dOl11lnio huma no, a • ••
("Para os australianos, as pr6prias co isas, tudo que existe no universo, sao um a . açao da natureza nâo é mais um J'nera fato empirico, mas um sign ificado social. E
parte da tribo; sao elementos const itutivos dela e, por assim dizer, membros entre a propriedade de 0 [ogo queimar madeira e 0 fato de um homem perder sua
rcgulares dela, e, exatame nte camo os home ns, elas têm um lugar determ inado no propriedade nao existe q ualq uer relaçào comensurâvel. Nem ha uma resposta
esquema geral da organizaçao da soc iedade" [Durkheim, 1947 (1912 ). p.141 ).) Se,
camo Durkheim colocava, 0 universo s6 exis te na medida em que é pensado, entao
comensurave l. POl' nenh uma 16gica natural a açao nl<\g ica contra um tipo especi-
fico d e pessoa é conseq üência do processo d e comb us tao. Um fato natural abran-
.
ele foi abrangido d en tro d e uma ordem até m esmo maior; desse modo, ele nao gido pela ordem cultural. se nao cede suas propriedades fîsi cas, nao dita mais suas
pode m ais ser pensado para agir sim plesme nte de fora, de uma maneira puramen-
te natu ral. A oposiçao 30 marxismo foi exagerada nesse exemplo te6rico. Do
conseqüê ncias. 0 "resultado" cultural particular nào é qualque r p redicado d ireto
da causa natu ral. Em um ~e ntid ~ crit ico, é até m esmo 0 o posto.
..
mesmo m odo que Du rkJle im concordaria corn Marx quanto ao recon hec imento 'ft epistem o logia sociol6gica 2te Durkheim tinha seus lim ites enqua nto teoria •
'Ide que "a homem nao é um ser abstrato, pairando for a do mundo': ambos estào { do significado, limites esses, contudo, que parece m estaI' reproduzidos nos melho -

l J
Ide aco rd o quanta à proposiçao corolarÎa de uma natu reza sociali zada ou)h'1mani-
, zada. A descr içao feita por Lukâcs é valida para os dois: \'A natureza ,/
lé u ma
categoria social. Issa significa tudo que éco nsiderado natural em Ùhl d e(ermi nado
lesta gio d e desenvolvimento soc ial; contudo, essa natu reza é re lativa 30 homem, e
:/ res traba lhos mod ernos. Nào me refiro ao sentimentalismo da exp licaçao de
Durkheim do totemism o austral iano, a derivaçao de forma 16gica do afeto inqis-
tinta pe le q uai Lévi-S trauss a censuro u - um problema tam bém co locado··pelo
papel que Durkhei m e Mauss (1963 [1 90 1-2]) emprcstaram à "confusào" na
J. tudo que fo rm a seu envolvimento com cie, isto é, a forma da natureza, seu conteu- geraçâo de categorias conce ituais. Foi antes a diferenciaçao fatal entre morfologia
! do e sua objetividade sâo todos soc ialm en te condicionados" (1971, p.234) . soc ial e representaçâo coletiva - recriada por auteres mod ern es coma socicdadc

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118 Cl/flLlra e razao prritica Dois paradigmas da tcoria mrtropolOgica J119 t ~~: C:~ '~
(ou sistema social) versus cultura (ou ideologia) - que arbitra ria mente limitou a r! Durkh ei m formulou um a teor ia sociol6gica da simboli7..açao, ma~ll.a.9_uma t- ~~ ~,.(} u:;:
extensao de simb61ico e deixou 0 campo aberta ao habitua i dualismo funcionalis- Ul teoria sim,~6Iic3, d3 sociedad:,: A soc iedade nao er~ vista co~o constitufda pelo , ~ ',>$,. t ~
ta. uA sociedade", escreveu Durkheim. "sup5e uma organizaçào autoconsciente ~ processo slmb6 hco; ao contrano. s6 0 reverso parecI3 verdadelro, Que dizer enHio .~- f- il: 1Ol . t.!!<

que nada mais é qu e uma classificaçiio" (194711912 J, p,443). A dificuldade foi que dos suporles das categorias, da pr6pria sociedade? 0 problema da sua natureza "' , ,S. . (\ <:::5~: QI

Durkheim derivou as catego rias que a sociedade "sllpôe" de sua constitu içâo jâ tornou -se particlllar~nente
agudo ao nî vel ~piste~016gico,
pois Durkheim tinha E t ~ ~~ :
concretizada, deixando assim a forma da sociedade sem explicaçâo, a nao sec que d e enfrentar a questao de como as categonas denvadas de uma formaçao social f' , ~w.- m
ft!
particula r podiam provar-se adequadas para a compreensâo do mund9' A respo~ -. - _ _,
Cfa "natural': Daî 0 dualismo de estrutura social e conteudo cultural, que conti-
I1uamente ameaçava 0 segundo corn uma reduçâo funcional aQS modelos e prop6- ~a. cm um sentido, foi amplament~ ~atisfat6ria, ja q~e reconc~iou ..(totlt à coup))
todos os paradoxos do superorganiClsmo de Durkheull, combll1and~.! "poLas-'"
r . .f-l. " ";1
,,- L
sitos utilitarios da primeira.
1" ~ Na visâo de Durkheim, como vimos, as noçôes fundamcntais dos ho mens -
sim dizer. cm um superpa radoxo que as futuras geraçôes teriam de combater, A (~ ~
resposta a coma as categorias mOd. eladaS'TIa'.s~ciedade podiam aplicar-se à natu~ ~
{de classe, tempo, numero, etc. - foram dadas, BaO inata ou transcendentalmente,
!I mas na pr6pria organizaçao e açâo da vida social:
reza foi que a pr6pria sociedade et:,a natural: )
----- ~ ' ......... -... '. -
'--- _/ ' "
.-.J

-u
Porém sc as catcgorias nao traduzem originariarncnte nada além de estados sociais,
1 As primeiras categorias 16gicas foraru categorias sociais; as primeiras classes de coisas
nao deriva dai que elas possam ser aplicadas ao resta da natureza apenas camo
t~ foram classes de homens, nas quais as co isas estavam integradas, Foi porque os rnciâfo ras? '" '"'
1i homens (otam agrupados, e pensavam em si mesmos sob a forma de grupos, que em
:i
Porém. intcrprctar dessa maneira uma teoria sociol6gica do conhecimento é esque- ....
c

suas mentes e1es agruparam outras coisas, e no inkio os dois modos de agrupamento cer que, se a s,ocie~~de é uma real idadc espcdfica. naD é ~em duvida oum império ,V ~
se misturavam ao ponto de serem indistintos, As metades foram os primeiros gêne- den tro de um IInpenoj forma parte da natureza. é sua mamfestaçao mais elevad!:l2_ fi ' ,.
I
1 .
ros; os clàs, as primeiras espécies, As coisas cram pensadas coma partes integrantes da ..!.:~i no s,oc iaI é um reine n?,t~.r!l, que s6 dif~re dos ~utr~~ por sua mais>r complexidade, .1\ \
\..::rW - •
1 sociedade. e foi seu lugar na sociedade que determinou seu lugar na natureza, [Durk- ": É po r isso que noçoes ~ue se elaboraram sobre 0 modela das coisas sociais podem ,,~1..:~ .. i~
heim e Mauss, 1963 (1901-2), p.82-3; cf. Durkheim, 1947 (1912), p.431-47.} 3)udar-nos a pensar as COJsas de outra natureza lobse~vem a idéia exatamente oposta dvo 1 -:!"1
de Lévi-Strauss do "chamado totemismo''J. Ao menos, sem duvida, quando elas se .
desviam da sua significaçao primeira, essas noçôes descmpenham, em um senti do. 0 ÇO~ t!L
No entanto, as metades sac el as mesmas categorizaçôes (de ho mens), e por
isso representam operaçôes mentais das quais eles sao. supostamente. 0 modelo
1"",;"",-. original. Rodney Needham, convincentemente. fez a seguinte objeçâo:
papel de shnb~los; trata-se de simbolos bem fundamentados, Se, pela fato mesmo de
que sâo conceilos construfdos·. entra neles a artificialidadc. é uma artificialidade que
-

-
........
i

-,,...-,,,
segue de perto a natureza e que se esforça par se aproximar dela cada vez mais, ,,*,,.1
l a 110çao de espaç~ teve de existir antes de os grupos sociais poderem ser percebidos IDurkheim, 1947 (1912), p.18-9.} ~,

J para cxibir. cm sua disposiçao, qualqucr relaçao espacial que pudesse entao ser apli-
cada ao universoj as categorias de quantidade têm de existir a fim de que uma mente ~ao yale a pena est~nder-se nessa recuperaçao da sociedade pela natureza, ou
i individual passa ser capaz de rcconhecer uma. muitas e a totalidade de divisoes da sua n_a n~raliz~çao do sig~)e de,outras contradiç?es par~ u~la melhor compreen- _i
sociedade; a noçao de classe precede necessariamente a apreensao de que os pr6prios saD soclO 16gJc ~ do que DurkheIm apresenta aqu J. Basta md lca r certas conseqüên-
1 grupos sociais, em concordância corn os qua is os fen6menos naturais sac dispostos c ias da distinçao-en tre eStrutura social e conceito mental coma realizadas em um a
f em classe. sac c1assificados, Em outras palavras. 0 pr6prio "modelo" social deve ser a,ntropologia posterior, A rÎ1ësmaaprec~çao incompleta do sfmbolo. isto é, como ...- ....-
: percebido para possuir as caracterfsticas que a tornam util na classificaçao de outras sun pies representaçao de realidades so~ iai s. continua a perseguir 0 funcionalismo
coisas. mas isso nao pode ser feito sem as pr6prias ca tegorias que Durkheim e Mauss est rutural desenvolvido por Radcliffe-Brown e outros em uma base durkheimia-
derivam do modelo ( 1963, p,xxvii ),4 3 na,44 0 "simb6li co" fo i. na maior parte dos casos, tomado no sentido secundârio
J

43 Durkheim rcecbcu edtieas do mesmo teor do fil6sofo contempon'lOeo D, Parodi, que contestou a gruças à intervençào anterior dOlS idéias de tempo, espaça e causalidade" (1919, p,155ss,). Gostaria de
idéia de que nossas categarias de eomprecnsao e 16gica derivasscm cm primeiro lugar da "maneira ugradecer a Mark Franci!lon por chamar minha atençào para cssa passagem e para esse livro.
pela quai determinada tribo armara suas tcndas". D. Patodi cscteveu: "Parcee manifesta, ao contrario, 44 Jamesoll atriblli, qllase à maneira de VVhorf, ao reflexo representaciona l na ciência social anglo-
". que a simples cristència de cerimônias ou de trabalhos rcgulates, que a simples distinçao entre dis amcricana a prcferéncia pelo termo "simbolo" em oposiçiio à utilizaçiio (rancesa de "signo", e a
e tribos e os seus respectivos lugares no campo pressupoem as categorias 16gicas e s6 sao possivcis tendência dM resultante de se relacionarem os termos em \llll sistema scmi6tico cujos principios de

"

po
--- -----~." ---_.---- ._ ,

120 Cllttura c ra ziio prtftica Dois paradigmas da tcoria alltropo/6gica 121

c derivalivo de uma m oda lidade ideal do fato socia l, uma expressao articulad a da pod eria espe ra r que a 16gica simb6lica fosse m ais sistematica que «as m aneiras
.,
sociedade, tend.o a funçao "de ,apo io para rc lac Îonam entos farm adas por pro cessos inco rretas pelas quais as pessoas usam a 16gica para lidarem umas corn as ou tras"
t polîticos e econôl-qicos reais. O~nesmo cfcito é dada pe la arbitnl ria diferenciaçào (Douglas, 1973a, pAl). Pelo lado dos objetos e das re~6cs soc~s, essa rcduçao, !
J entre "cultura" e dsistema social" na escola in glesa, como se as relaçôes sociais simb6lica envolve um esvaziamen to progressivo €~.Ï!?~n~?!i~ uma d es-'i
também nac fosse m compostas e organizadas pela sign ificado. Na realidade, à consideraçâo para corn a sua estrutura em favor d e propri edades pu ra m en tell·
m cdida que 0 sign ificado é considerado como 0 m era "conteudo cultural" de formais de distinçao e categorizaçao. Vma d iscussâo do significado corn a atençào~ ­
relacionamentos cuja estrulura form ai é a preocupaçao verdad eira, 0 simb61ico é particularmente vo ltada para a diacritica social permite - apenas parcialm ente
simplesmente uma condiçao variavcl ou acide ntal do objeta antropol6gico. cm - a liberdade analitica para considerar 0 que é simbolicamente variavel e proble-
vez de sua pro pr iedade d efi nido ra. Mesmo os trabalhos m ais valiosos sobre a m atico - digamos, uma divisao trip artida de espécies entre terra, céu e agna -
conceitualizaçâo da natureza, 0 de Mary Do uglas, po r exemplo, tendem a troca r 0 como a priori e normal. 0 mais importante é que, de u m modo paralelo ao ,
valor scmântico das categorias pelos se us efe itos sociais. Em termos mais precisos,
dualismo malino wskiarf6?~ ~c·uitûral n nâ?yo~sü(q~~qu:: 16gica n~cessar ia em sG'---
~ um tende a ser id en tificado corn 0 outre - conteudo significativo corn valor
l~ocial (no sentido dado ppr Radcliffe-B rown)~ 'po'r uma ifàaiçao -q ue"toma
m esma, ass im como sua o rdem verdadeira é ul1l_refle?o:9 d os grupos .e rel.aç6~s r
a:.?~'!~9Ividos.~ e!ati~ social: _Antes de serern Iistados para os prop6sitos .de · ,
como ce rto que 0 pensam ento huma no se rve aos interesses humanos e, consc-
d iferenciaçao de grupa, os elemen tas de um c6d igo de objeto, tais como diferenças
"j qüentemente, traz cons igo mesmo, cm qualqucr mo men to, as configu raç6es so-
alimentares, possuem apenas a co erência de um "fluxo arnbiente d e simbolos"
. ciais daquele tempo e lugar" (Dc:Jglas, 1973b, p. 11 ). 0 efeito disso é uma visao
(Douglas, 197 1, p.69 ). Entretanto, ap6s esse processo pelo quai sao selecionados t.
u nilateral do significado como diacritica social, e da o rdem cultural total como
do "meio ambiente cultural" e assim classificados e inter-relacionados, eles nao ~

um projeto utilitario. .,....--...
Reconhecendo .e"~a lor d ai doutrin as epistemol6gicas de A s formas elemetlta- estao realmente em melhor condiçao semântica, uma vez que seu signi ficado nao
res da vida religiosa, Douglas promove a adoraçao de Terminus, 0 deus dos marcos é mais que a intençâo social dirigente. "Se a com ida é tratada COlüO um c6digo",
escreve Douglas, «as m ensagens que ela codifica serao encontradas no padrâo d e
fronteiriços. Para eIa, a ordenaçao da natureza é uma objetificaçao, ou m elho r,
u ma expressâo nas regra s para lidar corn os objetos, da d iferenciaçao dos grupos relaçôes sociais que estao se ndo exp cessas. A. mensagem trata d e diferentes graus ..
r __ ,,-_·1 . î Jhumanos. 0 significado é coerentemcnte sacrificado à marcaçao social. Os c6di- de h ierarquia, de inclusâo·e exclusao, de fr'o nteiras e transaç6es através das fron-
teiras ... As categorias de comida, por conseguinte, codifica rn eventos sociais"
".- . :~ ...,;~os culturais de pessoas e objetas, como as co rrespo ndências entre eles, sac co nsu-
':::. ~ J) 1midos em implicaç6es abstratas de inclusao e exclusâo. Pois no projeto te6r Îco (ibid., p.61). Do mesmo modo, nào sao os aspectes contrastantes de espécies
. l ' j total,o sîmbolo nao é mais que um signo que nao é gerativo d e sign ificância em liminares que merecem atençâo, possibilitando portanto uma d iscussâo da ma-
c~J".f'~ 06··ïl virtude do scu luga l' em um sistema de simbolos, mas empiricamente motivada neira pela quai 0 m undo é culturalmente construfdo em relaçao aos homens, mas
t:
(f'l ,! por realidades sociais existc nt es, as qua is, coma os "interesses humanos" que se apenas m ais abstratamente se a espéc ie é olhada cam benevolência, ma vontade ou
ambivalência, visto que isso pode sec comparado às relaç6es entre grupos, contan-
d f" ~: sup6e constituf- las, fogen\ a qua lquer exp licaçao sÎgn ificativa. 45 Mas, en tao, nao se
. n to que um deles esteja preparado para definir essas relaçôes corn 0 rnesmo grau de
':.., 0 ') ,j.z. .
indete rm inaçao. E observcm que ao prestar-se a ess'e empobrecimento, 0 soc ial
diferenciaçao ordcnariam a referênCÎa objctiva. A diferc nça de predileçôes analiticas pareee rcal, também d eve sofrer uma decomposiçâo estrutural. Um exem plo apropriado disso
rncsmo se a expllcaçao nac for inteiramente convÎncente (accitando-se 0 USQ corrente do (rancrs da é a tentativa de Do uglas d e correlacionar a co nsideraçao atribu ida a espécies
palavra signe): " 3 etidcia da terminologia anglo-americana, da palavra 'sim1>olo', é a de di ri gir nossa
atençaÇ! para 0 relacionamento entre as palavras e scus objctos o u refcrcntcs no mundo Tcal. Na
realidade, a pr6pria palavrn '51I11bolo' implica que a rclaçao entre patavra t,coisa J.1li.q s_cja totalme'!!.c
~fbj trar~'1-, que exista alguma adcquaçao basica na situaçâo inicial. Aco nlece que, desse ponto de vista, sentisse em sua pr6pria carne, que fadamos? Prometer a seus descendentes uma terra fér lil e ce rca· la
a tàref:rmais importa nte de in\'cstigaçao lingü ist ica consiste cm uma busca de referentes, frase por de impérios ini migos. Isso, par si mesmo. seria q uase a suficiente. Vma cadcia politîcamente ascen-
fr ase, uma a,uma ... Saussu re, por outra lado, dcsviou·sc, devido à sua pr6pria terminologia, de Ioda dente asseguraria a hostilidade crcscentc de se us vizinhos. Sua desconfiança dos estranhos seria
a quesU'io dos referentes tiltimos do signa lin gülstico. As linhas de Irajct6 ria do seu sistema sac validada ainda m ais completamente. Fiel ao nosso santuario e à nossa lei, ser-lhe· ia evidente que
laterais, de lin signo plr~ outro, ein vez de front ais, da pabv!"a à {eoria. um movirnenlo ja absorvido nenhuma irnagem de animal, nem mesmo um bezerra, nem que fosse de ouro. poderia relratar seu
e interiorizado no pr6prio signa coma a ll1ovimento do signifi canle ao significado" (Jameso n, 1972. deus 1ou scia, na medida em que um grupo humano que se concebe coma uma espécie disl.inta deve
p.3I·2). ver 0 resta do mundo com a composto desse modo, cie seria 1110 pouco capaz de aceitar uma divindade
45 "Se fosse mos Deus, pode riamos 1er imaginado um pIano melhor? Se quiséssemos cscalher um beneficente sob forma extra-humana quanta de acolher um genro nao-judeuJ" (Douglas, 1973a,
pava para n6s mesmos, revclar-lhe Ul1l l yisào l1l onoteistica e dar-Ihe um conceito de santidade que pAO).

!a 1 ii . HilL L 1 IH .
,.,

122 CrI/film c razao pnftica Dois paradigmos da tcoria all tropol6gica 123

1 anômalas corn tipas de tracas matrimoniais, na medida em que as varias regras- praticas. 47 Desse modo, no final, a verdadeira 16gica do todo socioc ultural é utili~
:1 como 2 da troca gcnera lizada, as exclusôes Crow-Omaha, ou 0 casamento da filha taria. Es te é 0 resultado da adesào à decisiva separaçao durkheimiana da morfolo-
.j do irmao do pai - situa riam a pessoa intercalada, isto é, 0 afim. Douglas 56 chega tl gia social da represe ntaçào cole ti~ - - .-
~ A recusa deffil-Strauss de conferir status ontoI6gico a essa di stînçâo, por
ij a essa correlaçao entre a consideraçao para corn 0 afim e as relaçàes corn as
espécies intersticiais através de uma operaçao dupla na estrutura de troca que a outra lado - sua apropr iaçao do social pela simb61ico - foi um passa decisivo
disso lve (às vezes falsamente) em uro coeficiente de integraçao entre grupos. n
no desenvo lvimento de uma teoria cultura1. 48 bem verdade que essa recu sa nào
Primeiramentc, Douglas prefere ignorar as armaduras espedficas e bem-conheci- desvinculou inteiramente 0 trabalho de Lévi-Strauss das preocupaçôes fun cio na-
das das relaçôes intergrupais, as varias formas de ordem intergrupal, coma sac listas (cf. Baon e Schneider, 1974), mas ao menas concedeu m enos espaças para
geradas por regras de troca marital elementares e complexas. Em segundo lugar, essa preocupaçào atuar, evi ta ndo todo e qualquer reducion ismo na rel açào entre

J ela traduz essas regras e formas determinadas em implicaç5es de d istância social,


nao considerando mais uma vez as régras, mas sim invocando praticas de facto que
sociedade e ideologia. Também é verdade que Lévi~Strau ss, ao leva r a em.presa
durkheimiana a uma conclusào consisten te incluindo as rel açôes sociais dentro •
Ih e permitem ignora-las {as regras}. Argumenta, par exempla, que vista que se Il do sistema geral de represen.taçôe~ coletivas, chega, no processo, a U1~. n~tura lis.m~ <
padern casar membros c1assificat6rios das categorias preferenciais de parentesco, t,BlE~riOr. Pode ~ se obse rvar lllcluslVe um aparente fecham ento do clrculo te6 nc~.
as estruturas elernentares (inc1uindo a forma LeIe da troca generalizada perm item da insistência de Morgan de que 0 crescimento das instituiçôes estava predeterml-
uma incorporaçao mais radical de estranhos do que.as_p_roibiçôe.s Crow-Omaha nado e limitado pela "16gica naturai da mente humana" a uma analise estrutura-
(que proîbem a repetiçâo de inter\aSamentos corn as m~sn1'a\liriliâ~ens).46 Em lista cuja coda é composta por uma frase semelhante (Lévi-Strauss, 1971; 1972).
suma, a anâlise de Douglas ,d é "éo~ o·s- signifj.cados s~o constituidos" (1973a, Mas 0 curso desse processo foi mais um a espiral do que um circula, uma vez que ,1'-"'-"-
1, p.31) tende a tornar-se um feichismo ae--sociabj@ je, similar..ao-{çoI6gico, por toda a apropriaçao do simb6 lico intervém eH route; como jâ vÎmos, seria um erro
, substituir os efeitos sociais abstratos por forrn conceituais espedficas, sendo equiparar a invocaçao da mente de Lévi-Strauss ao "princîpio de pensamento" de
estas t'iltimas tratadas coma me;;~' à-parênéias dos primeiros, corn 0 resultado Morgan, que nao podia senao limitar-se a reagir racionalmente a valores pragmâ-
,
sernelha nte de dissolver 16gicas estruturais definidas em in teresses funcionais ticos inerentes à experiência. "0 homem nunca pode sel' imediatamente confren-
incipientes.
'-1 Nao quero corn isso negar 0 sentido apurado que Douglas demonstra corn
i relaçao à construçao humana da experiência. E menos ainda negar a impor tância
crftica das correspondências estabelecidas nas sociedades hurnanas entre catego- 47
.. d ..., ""~:. r !
fi
utra Corma de pensar essas Iimitaç6es é observar que Douglas esta }ogan 0 pnnclpd.lmente co~ 1 . ' • , ' ~

rias de pessoas e: categarias de coisas, ou entre as respectivas diferenciaçôes dessas i - .


açôcs motÎvadas entre sfrnbolos, assim a definiçao do sign Îficado de um pela conexa~..t6gica.com.d,
outro (a . 3.0) fara necessariamente corn que a maior parte do eonleudo cultural se evapore.'
taxonomias. Desejo apenas sugerir as limitaçôes de uma anâlise que almeja fazer oug as esta realmente preocupada com 0 fundonamento de e1ementos j a simb6licos (relaçoes corn f :'fY,·.· .-
desmoronar a estrutura coocei.tuaI de um c6digo de objetos em uma mensagem afins, linhagens, conceitos de animais, labus a!imentkios etc.) como signos uns para 'os outros - '
funcional, como se as co isas culturais fossem s i mplesme~te versôes substanciali- O usando agora "slmbolo" e "signo" no sentido anglo·americano costumeiro (na verdade, a maior parte r;.: .: .
dos estudos antropol6gicos endereçados ao "simb6Iico" estao mais preocupados corn essa funçao de 1
zadas de solidariedades sociais, sendo estas entend idas aqui co mo privilegiadas e
segunda ordem do signo do que corn a constituiçao da forma e ~o signi~cado sim.b6Iicos). Entreta~l' '~
ij to, como aponta Roland Barthes, uma importante caracterlstICa do Slgno motJvado lem frances,
symbole], cm contraste corn 0 nao· motivado, é que no primeiro ' nao existe qua!quer adequaçao
46 De Corma seme!hante, Douglas nem sempre é cuidadosa cm seus estudos de diferentes culturas ao conceitual entre significante e sign ificado: 0 conceito "ultrapassa" 0 signo fisico, por exernplo, como
comparar "grupos" ou processos de diferenciaçao da mesma ordem. Assim, a exclusividade social dos a cristand ade é maior que a cruz (1970 [ 19641, p.38). J: fkil constatar, portanto, que q U3 i1do 0
israelitas como povo é comparada às relaçOes entre linhagens Ka ram ou Leie, embora a implicaçao do significante e 0 significado, em mTIa relaçâo de signo motivada, sao slmbolos pa r dircito mlto, essa
casamento da filha do irm ao do pai entre os judeus, entendida par Doug!as coma uma indicaçao de inadequaçao é composta duplamente. Dada a relaçao logiea entre e1es, cada u m dos e!ementos, como
desprezo pela estranho, dividiria. igualmente, linhagem minima por linhagem minima dentro da por exemplo no caso dos tabus alimentarcs e dos grupos sodais exclusivos, pade agiralternadamente,
mesma tribo israelita (cC. Douglas. 1973a) . Mais uma vez se coloca a questao da pretensa conexao ara como sigoificante ora camo significado do outra. No cn taoto, cada um continua sendo, além do
entre os afins e as espécies anômalas, através de estudos que Douglas prefere ignorar: Leach (1964) signo do outro, simbolo no seu pr6prio d om inio. Conseqü entemenle, é muito difidl sc exaurir 0
sobre os camponeses Kachin e Tambiah (1967) sobre os carnponeses Thai. Nesscs exemplos, a ,. significado de um pela a nalagia (Cracîonaria) corn 0 outro. A amilise semi6 ti ca das praticas alirilenta~
categoria da afinidade é identifid.\'c1 co rn um conjuntode animais normalmente constituido, baseada res deve transcender de longe a transCerência aos grupos sociais, e vice· versa.
em uma l6gica de grau de distAncia do Jar, e portanto da domesticidade das espécies. Inversamente, as 48 "Lévi-St rauss Coi bem-succdido porque n ao olhou os fatos culturais co mo expressoes, de algu m
espécies anôma!as na Polinésia sao muitas vezes identificadas especificamente corn as suas pr6prias modo, de Corças sociais; ao contrario, ambos roram analisados dcntro de um unico qU:ldro de
linh agens ancestrais, como no aI/makI/a havaiano (cf. Kamakau, 1964). referência" (Kupcr, 1973 p.223) .

...
Dois /Ulnldig/luu da Icoria alllropolôgicn 125
124 CI/Ill/ra e raziio puitÎca
,
tado ccm a natureza da man eifa pela quaI 0 materialismo vu lgar e 0 sensualismo odores _ qu e a mente emprega para ~~1~1preendê-la, ha en lr~ c~~s um a cumPlîci-l\ :~~~ ~~~ l 0
dad e ultima que é a co ndiçao da posSlblhdade de compree nsao. ! 1..'
empirico a concebem': escreve Lévi -Strauss. Seu apelo ao esprit humain, entao,
Pareceria, co n tu do, que 0 problcma principal do "reduc io nisdmo " qUd~ aOige ' '. - ).~~ .I;/':
nâo provocaria curto-circuÎto no simb6lico, mas antes arcaria ca m as co nseqüên-
constantemente 0 cstru turali smo moderne consis te em um 1110 0 de Iscurso 'r. 'K''''''
cias de sua pr6pria ub iqüidad e. 0 argumenta se desenvolve com base na simples
que, dando à me nte todos os poderes da "lei" e da " ~im~taçâo'~ acabou por ,c~ lo car
prernissa de que, na medida cm que 0 mundo humano é simbolicame nte cons ti -
a cultura em um a posiçao de submi ssao e dependencla. Todo 0 vocabulano das
tUldo, q uaisquer sim ilaridades nas operaç5es pelas quais os diferentes grupos
leis "subjacentes" à mente confere toda força de coerçao 30 lado m e ntal;~o.qual 0 Y: ;.J :,. ...'" ',,~
constroem ou transfo rmam se u projeto cultural padern sec atribuidas à maneira 0 ..
cultural pode apenas responder, como se 0 prime iro fosse 0 clemento allvO e_ ;'11 \);; .i'~ l
pela quaI a pr6pria mente é construida. Segu ndo a mes ma premiss3, as "similari-
segundo apenas passivo. Talvez fosse melho r dizer que as cstruturas da m:nte s~.o
clades" nâo padern aqui significaro contcudo daquele projeta. mas apenas 0 modo --fiï.ê-Il0S-0S- iinpera tivos da 'c ultura do que se us impIe.me ntos. EI ~s co mpoem um
-:: (1 //f
de ordenaçao. Nunca é uma questao de significados especfficos, qu e cada grupo conjunto de possibilidades orga ni zaciona is à disposlçao do pro)e to .cultural hu-
executa po r sua pr6p ria iniciativl, mas a maneira em que os sign ificado s sâo mano, projeto, no entanto, qu e governa se u entrosamen to d e ac?rdo ~on: a su.a
sistematicamente relacionados .que, em formas do tipo "oposiçâo bimiria", pode natureza exatame nte como governa seu investimento cam con teud os slgOlficatl -
se r observada como gerais. Conseq üenlemente, também nâo se trata de uma vos dive:sos. Como explicar a prese nça na cultura de estrutu ras universais ~ue)"
t:-':',......,.~.... questâo de "reducion ismo biol6gico", um encargo que, no co ntexto da mente, (~ nao obstan te~ -n~o ~ao ~~i_~~~lm~ te 'presentes? F, em url! outr~ I~i~el,como hdar ,., ,.
uma discussâo da cuttu ra 'poderia igualmente provocar. Nenhum costume part i· t~niOpdarnvocaçao de um superorga nismo, ~o~ ess~s cont radlçoes ~m. termo~
cular podera ser atribuido à natureza da mente hurnana) pela dupla razao de que de "consciência coletiva", "representaçao,cole tlva ou pensa men to ob)etlficado
em sua particularidade cultural ela esta para a mente como uma diferença esta que atribu,em a uma entidade quc~ socia.I'uma funçao .que n6s con hec,e~10s. C01~0
: para uma constante e uma pratica para uma matriz. Ô natureza-humana,~qq.a l îndividual? Para responder a todasns questôes des se tlpO, sera necessano slt~ al 0
, _tëvi:Str:uss~~~<:?~?~~:liâOde~ufiïraSsubstanëi~~ ~xa:;;':' èquipaTÎ~ento mental humano anteS como instrumento do que como determman -·
~~_~as riI!ff~ ~; ~s estruturas Ee_~!~~?~~,a~ ~esmo conJ'!nto sâ~nge~ lêCa cultu ra. - -_:--;..---~:-
ilradas"t 197 1, p.56 1).\' Portanto, 0 objeto cultural, na sua integndade slmb6liëa, -- - Nâ realirlade, nosafastamos muito do "prindp io de pensa mento" d: Morgan.
perm;~e inteira e exclusivamente den tro da esfera da interpretaçao signifi cati- Porém. ai nd a falta fazer a crHica especifica da posiçao morganiana connda dCI~tro
va. Apenas os pontos comuns da estruturaçao podem ser referenc iados à mente, da perspectiva estruturalista. Eu ilustraria essa cr~tica lançando mao do notavel
incluindo especificamente os sentidos e a· transmissao senso ri al, que parecem trabalho de Lucien Sebag, Ma rxisme et structuralrsme, onde se pode rec~nhecer
F ,......"...- operar por prindpios sim ilares ao contraste binario (cf. Lévi-Strauss, 197 1). Para uma tese que também é essenciamente de Boas. Aq~i. 0 olho que vê ~ conslderado
alérn disso instaura-se 0 mais alto naturalismo, no .qual Lévj·Strauss une-se a em sua particularidade cultural. :Ë impossivel denvar 0 ~~ltural dlretamente da
~l M~rx e a Durkheim atr~vés d,? seu método pr6prio de Iiga r men~e e natureza, ou ~p eriência ou-dô-acoi1teèimento. na medida cm que a pratlca se desdo~ra cm um
1· seJa, 0 de que, na med lda em que a natureza usa, na st.:'a pr6pna construçao, 0
l t m es mo tipo de processos - por exemplo, 0 c6digo genético, a estereoqu imica de
50 "A nalurela aparece cada vez ma is como construfda de propriedades estrut~rais ~ndubitavelmcnte
mais ricas, embo ra nao diferentes em espécie dos c6digos est ruturais nO_5 quais 0 slstcma n ervos~ as
interprcta. nem das propriedades estruturais elabo radas pela compreensao a fim de voltar, na medlda
49 Nessa passagem de L'Homme 1/11, Lévi-Strauss emprega uma frase de Piaget - baseada, ao que me do posslvel, às estruturas originais da rcalidade. Reco nhccer que apenas a mente écapazde compree~­
parece, em um estrutul'alismo fa lho de compreensilo cultural (Piaget, 1971) - como uma crH ica der 0 ll111ndo que nos ccrea porque da. em si mesma, é parte c produto deste mesmo mundo nao
nitida a varios reducion ismos biol6gicos. Piaget observou, corn efeito, que toda fo rma é um conteudo
\r~ signifiea sel' mcnlalista ou ideali sta. POl' consegu inte, a mcnte,enquanto tenta com~rcender 0 mllnd7,:
1:
relativo à sua forma circundante, assim coma todo conteudo é um a form a dos conteudos que ele
s6 apliea operaçôcs que nao difcrem em espécie daquelas que ocorr:m ~o. pr61: rLO mundo n.at~lr::l
ab arca. 0 projeta do redueionismo. prossegue Lévi-Strauss. é 0 de explicar um tipo de ordem ; (Lévi-Strauss 1972 p.14) . Lévi-Strauss vê css:! perspectiva como 0 UI1I CO tlpo de matcn~hsmo
referindo-se a um conteudo q ue nao é da mesma natureza e que age sobre ele a partir de fora. "Vm ', consisten te c;m a ~aneira pela quai a ciéncia se desenvolve" (.ib~d:). E ela é totalmente conSlS,tente
estruturalismo autên tico. ao contrario. procura acima de tudo apreender (saisir) as propriedades 11 \ cam a vis3.o de Marx: UA pr6pria Hist6ria é lima parte real da Iu sfona lUlli/rai: da natureza gue \em a
intrinsecas de certos tipos de o rdens. Essas propricdades li do expresjam Nada do que esra fora de si
ser homem. As ciências naturais chegarao a incluir a ciència do hom~.m, .d~ mesma forma que a
mcsmas {grifo meuJ. Mas se é forçado a referi-las a algo n'terno, sera necessârio vohar-se no sentido ciência do homem induira as ciências da natureza; havera ruila s6 cl:ncla (Marx, 1961 ! l84.4 j,
da organizaçao cerebral, co ncebida coma um a rede da quai as mais diversas ideologias. interprctando p.lll ). Ver às p.269-73 algumas ten tativas de uma integraçao substanclal de estruturas cullurals C
esta ou aque1a propriedade nos termos de um a estru tura parlicular, reveJ:lm, da sua pr6pria maneÎ ra,
os modos de inlereonexao" (1971 , p.561). perceptivas.

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126 Cu/lZlra e raziio prtitic(/ Dois p(/radigmas da leori(/ antropo16gica 127
,:
f}". 'b mundo jâ simbolizado; assim, a
( :.1 0
' exp~riênCia)
mesmo quando ela se depara com As ressonâncias da primeira v iagem d e Boas aos esquÎm6s aparecem clara-
~ ~ , 'C. ~- uma realidade externa à Iin guagcm 'p,o r meio da quai é compreendida, é construi- m ente no texto de Seb ag. Mais que uma p ratica ou interesse "econômico", a
~.~ " da coma uma realidade humana pelo:conceitodela (cf. Berger e Luckmann, 1967). sociedad e com porta sign ificados d esenvolv idos por toda a ordem culturaL Para os
f '.. Ci} .• ·;"·\ A tese nao é mais que uma deduçao im ediata da natureza do pensamento simbo- homens, nâo pode have r qualquer interesse ou sign ificância prâticos nos objetos
\\~) ,,'V"" li.co'Fi? signi fi cado é sem pre ar~~0-üo em relaçao às propriedades fisicas doobj~t~ de consumo, tal como é caracterîstico no s animais, cuja relaçâo corn 0 objeto é
't\ " .-.J '. ~~.) ~Ignl ~cado; por con seguin te, ~once~ere-se, em primeiro lugar, a um côdigo prccisamente con fin ada às coisas como elas sâo:
_~: distinçôes pr6prio à cultura em quéstao. Scbag desenvolve a idéia no contexto
. _da alternativa marxÎsta corrente, que, objeta ele: A Fecutldidade da geografia huma na, sem duvida, nunca é tao grande quanto a
. ... ~ . <")
possibilidade que ela tem de estudar como, a partir de condiç6es naturais globalmen-
,
remete a totalidade das significaç6cs ao sujeito em fornccer, entrelanto, os meios de te idênticas, certas sociedades do mesmo tipo organizam 0 espaça, 0 cielo de ativida-
tematizar efetivamente essa constitui çào de sentido, des produtivas, a preparaçao do terreno, os ritmos de utilizaçao do solo etc. Os
determinismos entrevistos sao de uma ordem diferente da daqucles que impôe 0
É cm direçao a essa tematizaçâo que tendem as distinç6es que retomamos depois de
meio; cada sociedade poderia ter feito a mesma escolha que a vizinha e nao a fez por
outras; elas excluem a possibilidade de uma gênese hist6rica ou l6gica da sociedade
motivos que sac 0 signa de seus objetivos essenciais.
em seu conjunto a partir da praxis constitutiva dos indivfduos e dos grupos, pois essa
Vê~sc entao cm que sentido a noçao de infra-estrutura pode encontrar um sentido
prâx.is se desenvolvc em um universo ja simbolizado e nao é concebivel qualquer ,:1,
relativo: trata-se sempre do limite do espîrito, do que é irredutiv€l a certo nivel de
surgimento anterior dessa simbolizaçao. {1964, p.142.1 lEm francês 00 original.]
funcionamento da socîedade. A criaçao de detcrm inada espécie de animais, a pratica ,,'
,~
de determinado tipo de cultura sao 0 p roduto de um trabalho permanente do in telec ~
Mas seus comentârios sobre a experiência da natureza também sac direta- to que sc exerce sobre um certo meio natural; a fabricaçao de Înstrumentos, 0 tra~a- '"
!'
!i '.•
mente relevantes para a antropologia convencional da praxis: . Iho da terra, a utilizaçao ordenada e regular do universo animal supôem grande
,\ ~ quant idade de observaçôes, de pesquisas, de analises que nao podern, de modo al~
A ioterferência entre natureza e cultura nao provém entao da sua colocaçao em ' j gum, ser !evadas a termo de maneira "Cragmentada; €las s6 tomam forma através da
il
relaçao extrînseca, mas de uma culturalizaçao da realidade naturaI. A natureza torna-
se cultura nao em razao da existêncïa de um sistema de equivalências que faria
corresponder a cada unidade de mn dominio uma unidade emprestada a um outra
domfnio,51 mas através da integraçao de certo numero de elementos naturais a um
l 1mediaçao de u~~ma .de pcnsan:e~~),em mais vasto que ultrapassa 0 pIano
l tecnol6glco ou SimPlesmeOfleCOri.ômiCO. Nesse sentido, estes Ultimos nao possuem
~ um carMer malS natural do q e qualqucr outro aspecto da cmtura de uma sociedade.
\) [Sebag, 1964,p 216.J
li
1
'""
..,

tipo de ordem que caracteriza a cultura. Ora, essa caracterfstica é pr6pria de todo
"'"t
sistema simb6lico e mais profundamcntc de todo discurso, desde que a mensagem l,' Ao confron tar os ultimos desdobramentos do estruturalismo corn Morgan e "
que eJe veicule 'suponha urna codificaçao suplemcntar em relaçao à da lingua; da i\Boas, tentei mostrar a continu{dade da luta da antropologia contra seu pr6prio
pode ser definida como se segue: utilizaçao de uma matéria retirada de outre registra l <~aturalismo, que é também, po ç assim dizer, uma luta contra sua pr6pria natureza '1
que nao este onde funciona 0 sistema, matéria que pode ser natural (cores. sons,
gestos etc,) ou cultural (a forne cida par sistemas semiol6gicos jâ construfdos) e
I
Il
bItturai herdada. Mas a passive) relaçao que essa paroquial co ntrovérsia passa ter
. 1"
1
1
"
l
\ com 0 marxismo requer outro capltu 0 llltelro: 0 pr6XIffiO.
.
aplicaçao a essa matéria que é ordenada em si mes ma d e um prîncfpio de oTganizaçao
que Ihe scja transcenden te.
! 0 arbit rario do signa, resmtado da associaçâo de do is planas distintos do real.
1 en contra-se red uplicado pela integraçao de cada un idade significa nte (integraçao que
L~ ~tMk.
1 é a pr6pria lei dessa associaçao) em um sistema difcTenciado que perm itc 0 surgimen-
1) to do efeito de sentido. 1Ibid., p. l 07 -8.1 lEm fTancés no original. 1

5! Compare-se corn Rappaport (1967), que encontra oculto no "meio ambientc apropriado concei.
tualmcntc" c nas praticas rituais da sociedade a maior sabedoria biol6gica da adaptaçao. As distinçoes
.
da natureza reaparccem portanto na traduçao cultural, sen do a segunda apcnas um mcio de forçar ,
uma aderência às primeiras (cf. Friedman. 1974).
"
"
"

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