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ARTIGO
Primo Levi?
MARIO BARENGHI
TRADUÇÃO: PEDRO SPINOLA PEREIRA CALDAS
P
ara evitar equívocos, adianto que não falarei agora de com o Doutor Pannwitz: “Hoje – neste hoje verdadeiro, en-
negacionismo. Não porque o tema seja pouco impor- quanto estou sentado frente a uma mesa, escrevendo -, hoje eu
tante, é óbvio que não: é sabido que, para Primo Levi, mesmo não estou certo de que esses fatos tenham realmente
este tema representou uma fonte de amargura indignada e acontecido”.2
alarmada. Ao fazer a pergunta “por que acreditamos em Pri- Se isto não basta para invalidar a credibilidade do acerto
mo Levi?”, tentarei, por outro lado, refletir sobre o tipo de de contas, narrar Auschwitz exige nada menos que um esfor-
veracidade que concordamos em atribuir aos seus escritos tes- ço inaudito. A memória e a consciência do memorialista estão
temunhais, e principalmente a É isto um homem? A questão do postas a uma prova de fogo: por vezes, como no trecho citado,
título pode ser desmembrada em dois aspectos ou momen- chega a roçar o limite da ruptura (que Levi consegue evitar,
tos, sendo o primeiro inerente ao objeto, o outro à motivação. como notou Domenico Scarpa, lançando mão de sua maestria
Quando dizemos que acreditamos em Primo Levi, de nos fiar- no uso dos tempos verbais)3. A memória tem um grau de elas-
mos em suas palavras, que coisa nos sentimos determinados ticidade e plasticidade mais ou menos variável de acordo com
a tomar como verdadeira? E, em segundo lugar: quais são as os sujeitos, mas que, de toda forma, não é ilimitado. No caso
razões de nossa atitude? Sobre que base se fundamenta o cré- da recordação de experiências extremas talvez pudéssemos
dito que lhe concedemos? falar, tomando emprestado um termo da geologia, de um risco
No fim do prefácio em prosa de É isto um homem? – fi- de clivagem da memória. Por clivagem se denomina um tipo
nalmente reconduzido à posição inicial na recente edição de de fratura que se pode verificar em uma interface entre mate-
Cavaglion, isto é, antes da poesia da qual saiu o nome do livro riais diferentes entre si. Aqui não se trata de materiais, mas
– Levi declara: “Me parece supérfluo acrescentar que nenhum de tempos. Chamado a conectar presente e passado – aquele
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dos fatos foi inventado”. Esta declaração modesta se coloca passado – o discurso é submetido a uma solicitação totalmen-
no sulco de um uso plurissecular típico das memórias. Todos te excepcional: por esta razão ele racha, corre o risco de ceder
os autobiógrafos, com maior ou menor ênfase, proclamam que e de se desagregar.
o que contarão corresponde à realidade; e os leitores, em um Retornemos à pergunta feita anteriormente. Que coisa
primeiro momento, aceitam com boa-fé esta declaração. Na- exatamente Levi nos pede que tomemos como verdadeira? O
turalmente, os mais cautelosos não deixam de ter suas reser- final do mesmo capítulo, “Prova de Química”, nos dá a opor-
vas. Dizer a verdade nunca é simples, mesmo quando se tem tunidade para uma consideração que, espero, não soe muito
as melhores das intenções. Dizer toda a verdade é, portanto, absurda. Todos se lembram da cena na qual o Kapo Alex, de-
impossível por princípio (algo constatado pelo fundador da pois de haver sujado acidentalmente as mãos em um cabo de
autobiografia moderna, Rousseau). Inclusive, dizer nada além aço, as limpa esfregando na camisa do prisioneiro 174 517:
da verdade é menos fácil do que parece, mesmo quando não se “Ficaria surpreso, o inocente bruto Alex, ao saber que é por
está imbuído com a intenção de mentir. esse ato que hoje eu o julgo – ele, e Pannwitz e todos os que
No caso dos sobreviventes do Lager, todavia, o pré-re- foram como ele, grandes e pequenos, em Auschwitz e em toda
quisito elementar da vontade que as palavras correspondam a parte”.4
aos fatos ocorridos é dificultado por uma conseqüência per- Nenhum de nós duvida que tal episódio tenha verdadei-
turbadora. As experiências extremas, objetos da evocação ramente ocorrido. Mas estaríamos prontos para jurar que
da memória, estão suscetíveis de aparecer irreais aos olhos tenha se dado exatamente naquela ocasião? Ou melhor: é im-
de quem escreve. E isto acontece também com Primo Levi portante que ele tenha se dado exatamente após a conversa
quando ele, no capítulo “Prova de Química”, narra o colóquio com Pannwitz? Qual seria a nossa reação se viéssemos a saber
– não me perguntem como – que aquele gesto tivesse ocorrido
* Nota do Editor: agradecemos ao Centro Internazionale um dia antes ou depois? Ouso presumir que não importaria
di Studi Primo Levi e à Einaudi Editore pela concessão do grande coisa. Certo (desnecessário dizê-lo) que a hipótese é
direito de tradução para o português e de publicação na totalmente teórica: checar o testemunho de Alex não somente
Revista Digital do NIEJ. é impossível, mas não pode nem mesmo ocorrer, justamente
ências vividas impede ao liberto de percebê-lo como passado, ainda que não monocórdica (é tudo menos isso), nem unifor-
isto é, de afastá-lo do primeiro plano da consciência. Parafra- memente assertiva (ao contrário, as interrogações são bastan-
seando Ricoeur, poderíamos dizer que, neste caso, o “gradien- te freqüentes). Se quisermos, poderíamos nos deter por mais
te de distanciamento” é zerado.38 tempo na “voz” que fala em É isto um homem?: e, neste caso,
Os termos, então, trocam de lugares. Não ocorre recor- seria necessário sublinhar a amplitude de suas modulações, o
dar para narrar, mas sim narrar para recordar. Narrar, des- percurso dos tons mais destacados e meditativos até as raras
tilar em forma de narrativa, é o meio para conferir a aqueles (mas nem por isso menos significativas) irrupções de desdém,
eventos o estatuto de passado, para imprimir-lhes aquela mar- percurso este que atravessaria uma vasta gama de estados de
ca de anterioridade sem a qual não há memória: “a memória ânimo, que varia da amargura mais constrita até uma estupe-
é do passado”, diz Aristóteles. Só neste modo, isto é, gra- fação chocada, chegando a alguns toques de inesperado hu-
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ças à conquista de uma distância temporal, os eventos podem morismo. Se quisermos, poderíamos confrontar este diagrama
ser considerados como qualquer coisa que, de fato, aconteceu, tonal entre o protagonista e o narrador, entre o deportado e
mas não corre o risco de confundir-se com o presente: que não o liberto. Um dado fundamental, porém, não mudaria: o que
o ofusque, não o contamine, não o perturbe, não o incomode. confere credibilidade ao relato de Levi é, sobretudo, o seu es-
E, por outro lado, somente distanciando-os de si, empurran- forço em transformar a experiência do Lager em uma opor-
do-os para o passado, estes eventos podem ser representados tunidade de conhecimento: “Uma obra de químico que pesa
- fazendo-os presentes – aos outros. Assim, as vivências pes- e divide” etc. Isto nos diz a experiência imediata da leitura, e
soais, primeiramente tornadas lembranças, depois narrativas devemos considerá-lo um dado incontestável.
– isto é, recordação narrada – poderão, assim, se tornar memó- Mas, na minha visão, existe uma razão mais profunda e
ria coletiva. O verso “pensem que isto aconteceu” exemplifica mais sólida para a credibilidade de Primo Levi. O argumento
o sentido mais fértil da designação gramatical italiana “passa- poderá parecer paradoxal; mas como todo o fenômeno de Aus-
to prossimo” (passado próximo): o ser “passado” a respeito do chwitz constitui um colossal, enorme paradoxo, a persistência
qual se narra é condição necessária para se tornar “próximo” de aspectos paradoxais só faz valorizar a fiabilidade do tes-
(nos limites do possível) para quem escuta. temunho. Portanto, da forma como vejo, Primo Levi é crível
Eis, então, a resposta para a primeira questão. Que coisa sobretudo porque, em seu esforço cognitivo – que, na verdade,
Levi nos pede para tomarmos como verdadeira? “Isto”, na- constitui a conditio sine qua non de seu testemunhar – os fatos
turalmente. Ao advérbio demonstrativo correspondem três não lhe acrescentam nada.40
termos escalonados de maneira diversa. Acima de tudo, o Uma rápida digressão. É isto um homem? narra uma