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120·- Cór e mobilidade social '.

dentes. ' As mudanças recentes apenas afetaram as con...· .~: i


dições nas quais êles prestam, regularmente, os seus CAPÍTULO II
serviços. Tornando;se trabalhadores livres e assalaria.. '
dos, nem por isso conseguiram a~é recentemente, em Economia e Estrutura Social: '. Aspectos do I'
escala apreciável, novas oportunidades de especialização
e classificação social. .. No presente, a aceleração do desenvolvimento da situação de c~ntacto
rítmo de mudança econêimica parece tender a mvorecer
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o aproveitamento mais amplo dos negros no 'sistema i~"t ,~~,!, , I


ocupacional da cidade, abrindo, dessa forma, maiores· '(l_
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possibilidades de ascensão social.' Tal processo, entre; • ; ...'jf'

tanto, ainda é inciplente, e, no conjunto, a posição do


grupo negro na estrutura profissional da cidade apre...
:':1M/. A análise que desenvolvemos, no capítulo prece...
"1.iJ;L~' dente, do sistema económico de Florian6polis é da posi;
senta traços de muita similaridade com a do passado. '~"~;.,.:';~,f, .:,:, " ção que o grupo negro assume nêle, permite que se
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;~'~l~.~~ mover;se o ajustamento dos brancos e dos negros e ,,
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~·jl~~r· ': tigada. No presente capítulo serão estudados alguns
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:/r.~~'. l,: mentos assumiam valor social eram controlados social;
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~~V~~. :,~: ~amente, pobre. Permite..nos,; toda.via, sele:ionar e ana;
" "I'~~+'~":. ". IIsar alguns problemas que merecem atençao por causa
:~\;:~:<.,. , da sua provável relevância para a compreensão dos
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.;~/r~.~. . sociais, vigentes na sociedade brasileira do passado.
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~, J.*'~' ,Discutiremos, entretanto, apenas os processos sociais
..;, 'I'o~,~~::, mais importantes que interferiram, em Desterro, no
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ajustamento dos negros e dos brancos à sociedade escra...
.:; vocrata.
Procuraremos evidenciar, também, em que sentido
os referidos ajustamentos tenderam a modificar;se depois
da abolição, e quais os processos sociais que atuaram
na reelaboração do sistema de relações sociais, que se
verificou em conseqüência das mudanças económicas
pelas quais a cidade ·passou. Em outras palavras, o
, "

122 - C6r e mobíÍidade social Desenvolvimento da situação de contacto - 123

objeto do presente capítulo é a análise' dos principais o contacto mais íntimo entre o senhor e o escravo em
aspectos do sistema de acomodação inter...racial em FIo... nada contribuiu para suavizar a dura condição do ca...
rianópólis, no período escravocrata e quandó da emer... tivo, consagrada pela lei.
gência da sociedade de classes. Quanto à discriminação económica, os dados são
Nêsse capítulo<não precisamos retomar a análise suficientes para esclarecer que, pelo menos em dois as..
das formas e da natureza do preconceito e da discrimi... pectos, ela era exercida de forma plena: a) nas condições
nação raciais como se manifestaram socialmente no de existênda material do escravo e b) nas possibilidades.
Brasil, tão ampla e sàlidamente discutidos por FIo.. de inserção dos escravos e dos negros e mulatos fôrros
restan Fernandes (1), nem, tampouco, insistir sôbre o e seus descendentes no sistema ocupacional da cidade.
i:
significado da cór da péle na classificação social das { As condições de vida material do escravo em Des...
pessoas no sistema escravocrata e no sistema de classes ,têrro eram as piores ossíveis. Dom Pernetty, numa
sociais em formação, também analisados por Roger descrição que Taunay considera algo exagerada (3), mas
Bastide e pelo referido autor. Preocupar... nos~emos apenas que nos pareceu fidedigna, diz que em 1763 os escravos
"'7'com a descrição das formas de manifestação da discri... viviam semi.. nús e na "sua maioria s6 se cobriam com
minação racial e com a análise de suas funções numa uma espécie de simples xale em tôrno dos ombros.
sociedade do tipo da de Destêrro, tal como a caracteriza... Raros os que usavam camisa e véstia". Quando libertos,'
mos' no câpítulo precedente: uma comunidade po~re podiam trajar roupa e manto, como _os brancos. A
onde, por isso, a escravidão, não foi extensa e h(;>uve situação dos escravos de sexo feminino não era dife..
coexistência do trabalho livre com o trabalho' escravo. rente: "As negras escràvas .andavam nuas, a não ser
Em primeiro lugar, é preciso ressaltar' que' a discri... quanto a uma espécie de faixa, larga que lhes ia da
minação mdal, pelo fato mesmo de ser inerente à crga... cinta aos joelhos" (4). O aoade distingue o modo de
nização da sociedade escravocrata, manifestava':se plena.. trajar dos escravos daquêle dos mulatos livres. ~stes, ,I
mente em Destêrro, tanto sob a forma de Qjscfiminaçi'ío "andavam descalços e de cabeça ao vento, com as gafo..
económica,- quanto sob a forma de discrÜD!D~Ç[õ-=P]1í. . tinas imensas, muito desgrenhadas. Como trajes usavam
tlca-e-rêgal ou de discr~~n~ç-ª?social (2). Em tô~as camisa, calça e, às vêzes, pala à moda espanhola. 'Os
essas formas, a discrimmação racial se
exercia, primeIra menos pobres sustentavam uma espécie de cartola muito
e naturalmente, na pessoa do escravo; mas ela se estehdia alta, com abas enormes, horizontais, de suas' dez pole...
, aos negros em geral, como procuraremos evidenciar neste gadas". (5). É verdade que; numa comunidade pobre
capítulo. como era Destêrro no século dezoito, as mulheres pobres,
A disdiminação legal e política, vigente em Destêrro, de "peles alvíssimas", vestiam.. se pobremente também,
não diferia da existente nas outras áreas do Impérjo. Isso o que contrastava com o traje do governador, da oficiali... -
porque a condição de escravo era definida de maneira dade e dos soldados, que se vestiam à francesa. No início
uniforme em tôdas as áreas do Brasil pelo chamado do século dezenove (1822), Lesson descrevia as condições
Código Negro, e em Destêrro, as condições de existência de vida material dos escravbs dizendo: "Pertencendo
social não eram de molde a amenizar a vida dos es.. a senhores pouco abastados andavam mal alimentados
cravos. Apesar do predomínio da pequena propriedade, e mal vestidos. Apresentavam aspecto de profunda

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124 - C~r e mobilidade social D.esenvolvimento da. situação de contacto - 125

miséria e completo embrutecimento" (6), o que mostra mações de Brito (12), situavam..s e em posição um pouco
,não ter havido melhora essencial nas condições de vida superior à dos escravos em geral, como artífices. É
dos escravos (7). Aliás Southey confirma êsse depoi.. ,verdade que também o artesanato não era exclusiva...
menta, quando assevera: "O escravo negro nada mais mente exercido pelos escravos e por libertos, pois que,
trazia senão um par 'de calças curtas, a negra uma saia como vimos, até os soldados dedicavam~se a ,êfe, para,
a té meia perna, às vêzes com uma camisa velha, ou' compensar a falta de pagamento do sôldo. Além disso,
algum trapo prêso aos ombros, e caídos sôbre o peito" sabe.. se' que o número de brancos era superior ao tie
(8). Em 1851 vestiam apenas calças de riscados (tecido negros nessas atividades. Dessa situação peculiar de
da 'terra) e camisa de algodão, segundo o noticiário do coexistência de trabalho livre e trabalho escravo numa
Novo Iris (17.. 1.. 1851). O aspecto de miséria e embruteci.. comunidade pobre" de um império essencialmente escra~
mento dos escravos revela.. nos ainda a precariedade da vocrata resultou que os padrões senhoriais de vida .i
dieta alimentar que lhes era imposta, tão escassa que ociosa, vigentes para a população branca, e que sem
·z:nesmo nas reuniões festivas, que vez por outra reali... dúvida operavam com certa eficácia também em Des~
zavam nas Yendas da cidade, se restringia ao peixe sêco têrro, não encontravam condições reais que: 1) ser...
e à aguardénte. (9) vissem de apôio às racio,nalizàções, 'selecionadas pelos
Sôbre 6 tipb de ocupação exercida pelos escravos brancos, para justificar, éticamente, a escravidão e a
os dados que apresentamos são suficientes para mostrar exploração do escravo como coisa e fôrça bruta, ta ª
que, em Sànta Catarina, como no resto do Império, e~clusiva~~~para o .-!!abalh.23_a~al (13), por que
êles se dedlcaram, essencialmente, ao trabalho braçal, o ranco tamnem tra ãIFiava mánualmente. De tal forma
para o quali no dizer de Miguel de Brito, eram aptos (1 Õ). que Saint.. Hilaire se referia à classe popular ·dizendo que
,Em um ponto, apenas, a posição do -escravo lia estru.. , ."i' essa "se compõe de brancos, e a gente da camada verda..
tura ocupadonal de Santa Catarina diferia, entretanto, deiramente inferior tem tostumes mais ou menos tão
da posição ,do escravo no resto do império. É que o baixos como os homens de.igual esphera social nos países
trabalho braçal- 'não lhe era exclusivo como já mostra.. povoados pela raça caucásica" , (14) o que distanciava
mos. Porém, se na lavoura o açoriano também tniba.. pouco, pelos hábitos, os escravos dos trabalhadores bran...
,lhava, "no serviço doméstico (pelo menos até o -terceiro cos pobres;, e 2) que por causa da disponibilidade real
quartel do Século XIX) os misteres mais árduos e de meios de vida, permitisse desviar da produção o
degradantes eram exercidos pelos escravos (11). E em tempo e as energias de parte da população, como no
Destêrro havia álguns fatores, que discutiremos adiante, caso dos fazendeiros de café e dos senhores de engenho,
que reduziam eis efeitos favoráveis à amenização das ,ii sem que com isso houvesse o risco da ruína. (15)
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relações senhor.. escravo que se verificava em geral nas :.:~ ~~>.
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tt" No que diz respeito à discriminação social, os dados
,zonas urbanas do Império e no atinente aos ~scravos disponíveis obrigam.. nos a discutir apenas alguns dos
domésticos. seus aspectos. Êles são suficientes, contudo, para carac~
-Os libertos, geralmente mulatos como o demonstram terizá~la em face da situação vigente noutras áreas do
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as' estatísticas e o depoimento dos cronistas e viajantes, .'.
Brasil. Em primeiro lugar, tôdas as restrições legais
a crêr.. se na descrição de seus vestimentos e rias afir.. rela tivas às possibilidades de acesso a determinadas

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126 - CÓ'r e mobilidade social Desenvolvimento da situação de contacto - 127

carreiras, eram vedadas aos escravos, graças à sua inca.. proibido para os escravos e para a plebe (isto é, para
pacidade civil. E assim também com relação a todos os libertos também), sob pena de cadeia. (11l)
os demais impedimentos legais estipulados pelo Código Aliás, as medidas discrimina tórias não. se circuns..
Negro. A êsses somavam.. se as discriminações estabele.. creviam à imposição de barreiras entre o senhor e o
cidas pelas posturas municipais,' como por exemplo a escravo, o branco e o negro, quanto às possibilidades de
que proibia a existência__!1as casas comerciais de caixeiros convivência inter...racial. Atingiam também a liberdade.
e administradores cativos, a proibição de alugar casas de convivência intra.. racial do grupo negro. Assim, os
aos escravos etc. (16) escravos que fossem encontrados jogando nas ruas e
Em segundo lugar, numa comunidade pequena e praças seriam punidos, com vinte e quatro horas de
pouco diferenciada como Destêrro, onde portanto o cadeia (20); os que fossem surpreendidos dizendo "feiti..
contrôle social direto exercido através de grupos ·pri... çarias ou bangalez" seriam considerados e punidos como
mários era de fundamental importância, havia condições perturbadores do sossêgo público (21); bem como ficavam
para q,ue as regras de exclusão do escravo de certos proibidas as danças e os folguedos para os escravos e
círculos de convivência social do branco se mantivessem os libertos. A referência textual aos libertos, nessa Pos..
rigidamente e fossem estendidas aos que, pela côt, pu: tura, é significativa como te~temunho da transformação
dessem ser identificados como escravos ou descenoente's da discriminação exercida sôbre os escravos em discri..
de escravos, ainda, que libertos. O contr61e da "pureza minação exercida sôbre o neg'ro liberto, ex.. escravo: "São
racial" dos mémbrós de uma comunidade como Destêrro prohibidos daqui em diante QS ajuntamentos de escravos
era relativamente fácil. E o fato de um escravo se ter ou libertos, para formar dánças ou batuque, ficando <I-
tornado liberto não apagava da memória coletiva a inteiramente prohibidos os referentes ajuntamentos de
nódoa da antiga condição, que deveria pesar ainda sôbré supostos Reinados Africanos que pelas festas costumam ~
seus descendentes. (17) . fazer, encomodando aos Povos e prejudicando os seus I
Até mesmo quando os negros acompanhavam os Senhores com semelhantes funções e todos os que con.. <·1
seus senhores na condição de escravos a tais círculos
de convivência que lhes eram vedados, as normas rígida~
de exclusão eram postas em funcionamento: "Não po,:.
derão passar da primeira porta do edifício os criado~
trariarem serão multados em 4$000; sendo liberto - e
não tendo com que pagar terâ de. 4 a 8 dias de Cadeia,
e sendo cativo e achando.. se sem iicença de seu Senhor
será castigado conforme a Lei e o Senhor que der li...
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e escravos que acompanharem os sócios ao baile; e aí cença pagará a mesma multa de 4$000 para as despe"sas
poderão aguardar a sua volta". (18) municipais". (22)
As regras de exclusão do escravo e do negro se É verdade ·que tais posturas raramente eram obede...
formaliza'vam em Posturas e Ordens da Chefatura de cidas ao pé da letra. Sem embargo disso, havia oposição
Polícia, principalmente quando se tratava de regular o latente na comunidade.a êsses festejos, e sempre que
comportamento dos habitantes da cidade em situações possível êles eram impedidos.
que poderiam favorecer a intensificação .do contacto As medidas discriminatórias atingiam também a
. inter.. racial e o abrandamento dos padrões discrimina.. liberdade de locomoção e disposição do tempo pelos es....
t6rios 'e anti.. igualitários. O carnaval, por exemplo, era cravos. Êstes não podiam reunir.. se (23), não podiam
I:

128 - GÓr e mobilidade soe:íal Desenvolvimento da situação de contacto - 129

sentar~se às portas das casas de negócio, devendo nelas unicamente 10 eram casados, não sendo um só da cidade
permanecer o tempo suficiente para fazerem as compras de Santa Catharina, cuja população negra era de 1.019
de seus senhores; não podiam permanecer na rua depois almas" (26). Dessa situação resultava," na opinião do
do anoitecer, mesmo que estivessem vendendo as qui~ naturalista, "que alí não existia muita moralidade" (27).
tandas de que lhes encarregavam os senhores; a essas Como prova disso, Sain~Hilaire mostra que em tôda
regras só faziam ,~xceção àqueles que vendessem, em
barracas, "comidas "feitas", pois êstes tinham permissão
de ficar na rua até o "toque de recolher" (24) etc. Dessa
forma elaboraram,se normas que disciplinavam a rotina
I a Província não existia se não 246 mulheres escravas
casadas, e, sem emba rgo, nasceram 417 filhos de ês~
cravas, apesar de que o abôrto era praticado usualmente .
As esta tísticas que di~inam o estado civil da· popu,
diária do escravo e limitavam sua possibilidade de livre .f lação escrava confirmam a declaração de Saint)-lilaire. I I

disposição do corpo, do ócío, do espaço físico, etc. Criava~ No relatório apresentado à Assembléia, em 1886, pelo
se ria cídade"uma regulamentação compatível com a vida \ presidente da Provincia (28), vê,se que havia: em Des~
I
urbana que disciplinava o labor e os lazeres dos es~ têrro: 405 escravos solteiros, 2 casados, um viuvo. Na
I' cravos, como uma espécie de contrapartida da disciplina Província: 487 escravos solteiros, 45 casados, 6 viuvos.
I
I
do eito, em que o toque do sino da fazenda senhorial Daí a "relaxação dos costumes", a prática pública
I era substituido pelo toque de recolher de uma cidade de "atas imorais" pelos escravos, a prostituição até
f
militarizada. mesmo nas "barraquinhas do mercado" (29) etc. Note~
Em terceiro lugar, aos escravos não e<ram dadas se que a concupiscência sexual do branco fomentava o
as condições mínimas necessárias para que a vid9- sexual desregramento a que o escravo 'era obrigado em sua
"t vida sexual. Laogsdorff; tratando da extensão do coo'
e a procriação ficassem ao abrigo dos efeitos disnômicos
que a ordem escravocrata acarretava, nesses setores da tágio venéreo. na populaçãó desterrense, apresentava
vida SOelaI. O matrimônio e a família, em geral, não "como uma de suas causas o fato de que: "a precocidade '1
eram instituições reguladoras da atividade sexual e pro~ e o instinto Sexual impelia Crianças de 12 a 13 anos
criadora do escravo. Daí que a "moral da~ senzalas" ao conúbio de escravas e de 'outras criaturas dissolutas, "
encontrasse plena vigência numa comunidade que não que lhes transmitiam o terrível contágio"" (3 0). Além ': ~'!
conhecia a senzala no sentido a ela atribuido nos domí~ disso, o número crescente de mulatos, apontado págiI!as . .....)" I
nios senl10riais' (25). Sàint~Hilaire notou, quando de atrás, indica que o intercurso sexual do branco com o N'<:" , i

sua" viagem, que além da existência da disparidade negro existia em Destêrro da mesma forma que nas "
já referida por nós entre o número de escravos de sexo outras áreas do Império, assumindo proporções e efeitos ,.("
masculino (predominantes) e os de sexo feminino, "os similares ao de outras regiões do país.
escravos não se casavam". A~os mais tarde, na época Ao lado do quadro de desregramento existente nas
da publicação de seu relato, dizia: "parece que atual~ populações escrava e independente da Ilha, (31) e que
mente não é tão grande a diferença entre o número de era imposta pelo próprio desinterêsse que os senhores
escravos e o de negras; mas, os casamentos de escravos manifestavam na realização de uniões mais ou menos
continuam a ser tão raros como outrora., De 2.535 estáveis entre os escravos, é preciso atentar ainda para
escravos existentes em 1841 na Ilha de Santã Catarina, o fato de que as relações sexuais dos escravos não s6

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130 - Cór e mobilidade social
I
D.esenvolvimento da situação de contacto - '131
deixavam de encontrar meios normais e regulares de ,assimétrico. De um lado, estavam os que podiam "man..
I
atualização, 'em termos da cultura cristã vigente rio dar" e "conceder"; de outro, os que deviam "obedecer"
grupo branco, como também que as relações de mães e "consentir" (34). Que em Destêrro, e na Ilha, hayia
e filhos eram solapadas (em Destêrro como no resto a !~ªçãQ_pr.op..!!..e_t:§ri09Sjl entre os senhores e os eg... ~
do país), pela mercantilização do homem escravo. As cravos a discussão acima demonstra. Que em Santa " t'
conveniências ,pecuniares, lá como alhures, reg,uJavam a
Catarina essa desigualdade fundamental entre os eg... V . d \'..
permanência' ou; sep~,ração da e~crava e seus ~llhos (3,2).
Quando no penodo, de expansao da economia cafeelra 'cravos e a "camada senhorial" (que na Ilha, como,\,,~'{',' .
a valorização dos escravos foi grande noutras partes mostramos, não existiu nos têrmos típicos da situação, f' .

brasileira, a ponto de ser mais exato dizer.. se camada


do Império, os senl10res de Destêrro não hesitara:n em
auferir lucros com a mercadoria~homem, A evasao de 1
de pequenos proprietários de escravos) se transformou
escra vos da Província foi enorme, como já apontamos. em desigualdade branco.. escravo, e, depois, branco.. negro,
parte da documentação que expusemos sugere. Inci..
E, então, a tragédia humana da mercadoria que ,se
valorizava não foi objeto de consideração pelos propne.. dentes, não diríamos corriqueiros, ma.s frequentes, de..
tários, monstram que o branco, mesmo pobre, se arrogava o
direito de tratar o escravo alheio em têrmos da relação
O Conservador, jornal local, comentando :a tenta~ , ~ proprietário.. coisa. A descrição de um dêstes incidentes
tiva de suicídio de um escravo que fôra embarcado pa~a é sugestiva: "Ontem de manhã um carvoeiro da ca...
o Rio, perisando, como afirmava seu senhor; que :a nhoneira Maracanã, espaÍ1cou gravemente um escravo
para Canav!,eiras:, dizia: "A lei Ade eIl}anc~pação dev:na do sehhor Manoel JoaqÜim da Costa Cardoso, dei~
ser mais benévola em f~vor desses Infelizes; às vezes
xando.. o por morto com uma grande brecha na cabeça
o amor à ganância para obter.. se. na Côrte um al~o pr'eç? e recólheu.. se a bordo dó seu navio ( ... )" (35). Da
faz desprezar e entorpecer os sentimentos de ru,?anJ~ mesma forma, o administrador do mercado, em 1872,
dade, obrigando~se assim a esta classe desfavo~e:lda a dava chibatadas nos escravos que, devidamente licen..
abandonar afeições caras e até o amor do torrao em dados, vendiam pão para provento de seus senhores (36)., , I

que nasceram que pode ser nela um sentimento mui ,


natural". (33) E os brancos se achavain igualmente no direito de
estender· aos libertos, aos negros, pois, "os direitos"
Em quarto lugar, a assimetria nos padrões de com.. que se arrogavam com relação aos escravos: "O Argos
portamento social e de contacto inter~racial dos senho~ de 19/4/1860 aponta o fa to de uma preta forra te~ sid?
res, melhor, do homem branco livre e dos escrav'os, surrada na Santa Casa, adiantando que êsse procedi'"
era intensa. O que se disse sôbre a relação senhor.. i' .' mento era corriqueiro no Hospital (3 i). A cr6nica de
escravo, branco~negro, em São Paulo, vale para Santa um incidente ocorrido entre um menino branco e um
Catarina: "Nas relações sociais, o escravo estava para , . menino mulato ilustra, em grau extremo, a ãssimetria
o senhor ou os familiares e dependentes brancos dêle, de tratamento social vigente em Destêrro: um mula..
na mesma posição que uma "coisa" está para o seu tinho escravo brincava com uma pandorga, quando
"dono". ( ... ). A .uma desigualdade tão fundamental, chegou um menino querendo o brinquedo. O menino
tinha que corresponder, forçosamente, um tratamento escravo não quis cedê.. lo, resultando disso que o branco
ii
:1
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I
I,
132 -:- car e mobilidade social Desenvolvimento da situação de contacto - 133

espancou-o, no que foi revidado com um empurrão. reagissem automàticamente a t6das as situações con-
"
O pai do menino branco, que estava perto, não hesitou forme as expectativas dos brancos, e que somente um
em surrar o moleque pela ousadia demonstrada, Não sistema rígido de contrôles e sanções sociais .poderia
contente com isso, o pai br~nco puniu exemplarmente contrabalançar os efeitos negativos, para a ordem social,
o escravo insólito: no dia seguinte, mandou um mili- que tal situação acarretava. (39) Mas, dêsse desajusta-
ciano esperar que 'ô mulatinho saísse com sua pandorga, mento latente entre as expectativas de comportamento
para então detê-lo e levá-lo ao quartel de polícia, onde do branco e do escravo, não resultava apenas o apêlo
lhe foi aplicada "formidável tunda de vara". (38) O ao suicídio. No passado, pode-se registrar várias formas
chocante da situação, mesmo em se tratando de rela- de reação contra os senhores em Destêrro. A mais
ções entre homens livres e homens escravos, está no comum era a fuga, de que dão notícias os jornais e
fato de que a rigidez na expectativa dos comporta- as medidas policiais tomadas contra os fugitivos. Parece
mentos e nas sanções aplicadas à sua quebra, se veri- mesmo ter havido 9J.1ilombos em terras catarinerises no
ficou, no caso vertente, numa situação social em que i!fíci_~ _~<?_ .§éculo_X:lX.J 4O). Nrerios freqüéiite, 'embora
estavam envolvidos menores, com relação aos quais os tentado algumas vêzes, havia o recurso à violência contra
padrões ·de contacto entre brancos e negro~ operavam, os senl1ores, também como conseqüência de expectativas
na sociedade escravocrata, com menor intensidade. Mas' frustradas. (41)
por isso mesmo, o exemplo ilustra bem até gue ponto o Em quinto lugar, ~ preéiso ressaltar que a violência,
branco esperava submissão do escravo aos seús caprichos, I a repressão e a coerç~o apontadas como as principais
e que a isso o compeliria, pela violência sé necessário, \ formas do contrôle social do comportamento do escravo
quando.por qualquer motivo não houvesse, como contra- noutras áreas do Bra~il (42) encontravam igualmente,
partida,. a aceitação tácita e efetiva pelÇ> E:stravd do seu \ em Destêrro, onde a escravidão foi essencialmente domés-
direito à dominação. tica e os senhores possuíam poucos escravos, a mesma
As eXpectativas de comportamento do .senhor e do espécie de aplicações, .como o recurso mais eficaz para
escravo (e J em sentido mais amplo: do branco e do a manutenção da ordém estabelecida. A documentação
negro) deveriam, pois, ajustar-se mediante~um sistema que apresentamos demonstra tal fato de forma eloqüente.
de direitos e dé·deveres que estipulava, de f~rma irrevo- Existia a coerção, a r~pressão, e a violência legal, -seja
gável, as obrigações de um e de outro nás diferentes a exercida pelos senhdres, seja a exercida pelas autori-
situações sociais de vida. Entretanto, nem sempre os dades policiais. Para isso havia, naturalmente, o tronco
escravos agiam de modo a corresponder às suas obriga- d,a Câmara (43). AléIP dessa é preciso considerar-se o
'ções, como estas eram entendidas pelos branços. A tenta- tipa de punição que ultrapassava, em violência, os limites
tiva de suicídio do negro enganado pelo senhor, a que do que era estabelecida pela lei ou pelo consenso da
nos referimos atrás, demonstra isso. Aliás, os suicídios população branca. Poucos exemplos bastam para com-
que ocorriam em elevada freqüência entre os escravos, provar empiricamente essas informações. Por um lado,
como o noticiário dos jornais atesta, demonstram que havia as penalidades impostas por avisos da chefatura
os mecànismos de socialização vigentes não eram sufi- de polícia ou por disposições legais (várias das quais
cientemente eficazes para fazer com que os escravos já referidas por n6s) â que os escravos estavam sujeitos
~
d4 - C6r e rnobilidacle social Desenvolvimento da situação de contacto - '135 ,I
,'" "- II
.I
em circunstâncias diversas ~ que deveriam ser cumpridas consciência. Por vêzes os casos acima referidos corres--
na cádeia. Era comum os senhores entregarem seus es- pondem a situações extremas, mas por isso mesmo
cravos à R9Jícia para que fossem punidos (44), Por ~~~" revelam certos aspectos da realidade que de outra forma
outro lado, vigorava também a "justiça pelas pr6prias . i'." ' ficariam obscurecidos. Além disso, sempre que possível
mãos" a que os senhores se entregavam, Além dos .. ,'"
.,z "';:';.

fornecemos meios para que o leitor possa controlar a


;: 'r.
casos já referidos, citemos mais dois, ambos extremos: generalidad~ presumível de uma forma de comporta..
, .;. ~.
Sob o título de "Procedimentos escandalosos", conta o' ,

. . ':,~, ot:~ menta. Por fim, sabemos perfeitamente que em Des..


Argos (45) - "Mora no sobrado de propriedade do ' .. ti·,. r.•
"'/' e-:: - têrro, nem sempre a discriminação econômica, legal e
Senhor Costa Melo, na rua do Principe, uma senhora ~.o t
. . ~ social, bem como seu suporte mais eficaz - a violência
um pouco deshumana (sic.) para com os seus desgra.. "
- se inseriram nos mores da comunidade com a mesma
çados captivos, maxime uma criola. Esta pobre criatura intensidade. A partir· de determinado período, certos
hé martirizada com castigos sucessivos a toda hora do padrões discriminat6rios, perfeitamente válidos em ter..
dia e da noite, a ponto de incomodar os vizinhos em mos da moral senhorial, passaram a ser postos em dú...
horas remotas. Todos os extremos são perniciosos". vida e criticados. Os text9s que trouxemos à discuss~o
Noutro jornal, o Mensagei.ro (46), apa~ece a n~~ícia :de servem, freqüentemente, para mostrar isso: parte das
uma senhorá, Dona FranCisca Leopoldma da SIlva, que ocorrêncjas registradas pelbs jotnais o foram como pro';
respondeu juri por ter matado, sob espancamento, duas testo, E que também em' Destêrro, à medida em que
escravas. O juri absolveu..a (47). se pode falar da sua urbàniza'ç'ão incipiente (histôrica.. :l
~sses dois casos são significativos também p~ra mente localizada por n6s po período posterior a 1870) I I
ilustrar os limites usualmente impostos aos senh?res na desenvolveram..se novas cóndições de existência, de tal I I
repressão dos comportamentos indesejáveis dos escravos sorte que a instituição da. escràvidão pôde cair crítica.. I I
("todos os extremos são perniciosos"), e a soFdariedade mente no nível da consci~ncia social da comunidade, ,I
existente entre os proprietários de escravos: o senhor Porém, mais do que por causa da emergência de novas i
. homicida é absolvido por um juri' de proprietários. (48) condições de vida ,que pusessem em jôgo a eficácia da "
! "
Pela descrição que fizemos da discri~inaç~o que instituição da escravidão e que. permitissem sua crítica'
se exercia com relação aos escravos e aos negros em por grupos sociais não comprometidos com ela (artesãos,
Destêrro, poaem ?-rguir..nos de subjetividade e ~~rciali .. bacharéis, pequenos funcionários etc.), foi como conse..
dade. Talvez, interessados em aferir os efeitos do qüência da campanha abolicionista, que surgiu, cresceu,
sistema escravocrata no plano das inter~relações raciais e atuou noutras áreas do pâís, que se processou a, reação 4,'--
aQti..escr<:lyagista em Destêrro.
nos tivéssemos orientado por uma perspectiva de análise,
que retém apenas as formas discriminat6rias de ô)n:J?or~
- --- -- -- . -
A análise da luta travada 'pelos jornais da cidade
tamento. Por outro lado, o fa,to mesmo de que utllIza~ em tôrno do problema da àbolição permite verificar até
mos largamente documentaçãõ dos jornais da époc~, que ponto isto é verdadeiro (49). O que não significa,
pode condenar..nos a uma visão uni)ateral do, problema: .. '. ~videntemente, que tôda luta contra a escravidão e sua
seriam objeto de noticiário os fatos não rotineiros, a crítica tivessem assumido em Destêrro o caráter de
sensação. Todavià, êsse risco foi assumido com plena repercussão .local de um acontecimento nacional. Havia,
_~ •.l."'!!: ... ~••.••..
I
-----~-.""'---i-;"-_
---_ .......
~
i .'

.'1' .'

136 - C6r e mobilidade social Desenvolvimento da situação de contacto - 137

na própria dinâmica da vida urbana, elementos que pelas antigas' camadas sociais, em que se estratificava
impeliam a isso. Além de que, havia em Santa Cata.. a sociedade de castas do passado. Se formalmente o
,
e
rina, como já indicamos, forte pressão de "opinião ú.: ' negro liberto passou a ,inscrever.. se no sistema de 'classes
I> •
º-liÇ?~ favor da imiggção estrangeira, porque o tra.. como cidadão, lado a lado dos demais cidadãos d'e outros
balho livre vinha obtendo êxitos. E os catarinenses grupos raciais que compartilhassem com êle, em têrmos
sabiam, po~ experiên:cia própria, que a escravidão amor.. das su~s posições no mercado, as mesmas oportunidades_
tecia os efeitos favoráveis e o rítmo da imigração. Foi e limitações de participação no sistema social da p1'o..
sob êsse fundamento, por exemplo, que Taunay, conser.. dução, com tôdas as conseqUências resultantes disso,
vador, apoiou o projeto de 1885 sôbre os escravos, apre.. realmente, dessa possibilidade meramente formal não
sentado pelo gabinete liberal de Dantas. (50) resultou nenhuma ascensão social do grupo negro. É
A reação à escravidão foi feita com amplo apêlo verdade que tal situação fDi geral no Brasil. Entre...
à argumentação humanitária. Além disso, na sua crítica, tanto, em várias outras regiões do país o processo de
argumentos do tipo "a escravidão é uma nódoa para urbanização e industrialização acelerou a desagregação
o Brasil diante do concêrto das nações civilizadas" eram da antiga ordem estam~ntal. e abriu possibilidades reais
freqUentemente usados. Não implicou, pois, 'Uma rede.. de ascensão social parà as camadas que se localizavam
finição do negro aos olhos do branco, e aquêle se tórnou na base da pirâmide sÇlcial, como os negros, enquanto
antes objeto de comiseração, do que ser hÜmario ao em Florianópolis só nos últimos vinte anos as condições
qual se devesse fornecer os meios para reparar a espo.. econômicas e sociais começáram a alterar.. se de forma
liação social e econômica de que fôra vítima- na escra.. a permitir, no futuro,.um processo semelhante.
vidão. ão surgiu nenhum grupo de bran~os ou de A Abolição em Florianópolis não acarretou, por (J
negros (51) que tivesse feito uma crítica mais profunda outro lado, a desorganização imediata da vida econô..
da escravidão e que propusesse medidas mais raâicais mica do ex.. escravo: o artesão, possuindo qualificação
na solução do problema do escravo, em têrmos do homem profissional, continuou· a dispôr dos meios indispensá..
negro. l, .
veis à vida; o escravo doméstico manteve.. se como
Por outro lado, a análise desenvolvida no capítulo .criado doméstico; 9_do_campo comõ:':"]prnaelr.o 52).
precedente, comá, indicamos, demonstra que as condi.. Não houve, pois, de maneira imediata, nenhum fa'tor
ções estruturais da economia de Florianópolis e os pro.. .' ~' " ... que contribuisse para alterar as avaliações sociais dos
cessos sociais e econômicos que operaram nessa área negros, mantidas pelos brancos. À medida que êstes
não encontraram estímulos, depois da Abolição, para se transferiram pa'ra o negro avaliações desfavoráveis ela..
organizar de forma a propiciar um surto acentuado boradas para justificar a escravidão, estas não deixaram
de crescimento econômico. Em conseqüência, as trans.. de existir depois da Abolição. Acresce que em Des..
formações pelas quais passou a estrutura soci~l da rtêrro o nún:ero de libertos nunca foi muito grande e
cidade com a abolição da escravatura, no sentido da que nem mesmo o mulato claro teve condições de inte..
ordenação das posições e das relações sociais em têrmos grar.. se no grupo branco como um igual, já porque i!
do sistema de classes, assumiram um rítmo lento, contri.. as possibilidades de mobilidade vertical eram restritas,
buindo muito pouco para alterar a posição ocupada já porque o contrôle da pureza racial era grande (53).
-- .......
-, ps

138 ....:. CÓ1' e mobilidade social Desenvolvimento da situação de contacto - 139

Por isso, as condições que poderiam, como noutras na década de 1920, permite essa suposição. O rigor da
areas do Império, ter agido no sentido de atenuar as etiqueta dessas sociedades, que nos foi descrito por um
avaliações socillis negativas que o branco fazia do ne~ velho do grupo negro, indica que houve esforços no
gro, não' encontraram condições. de atualização. A sentido de reagir às avaliações desfavoráveis do branco.
rejeição social do mestiço e do liberto dos círculos de Simbàlicamente, a casaca de baile e o "mestre de salão"
convivência do branco,'e as avaliações que êsses faziam deveriam assumir, aos olhos do grupo negro, um sigJ1ifi~
daquêles em têrmos da personalidade~status do escravo, cado bem mais profundo do qEle à primeira v.ista pode
encontravam justificativas nas condições de interação parecer. Era a tentativa de mostrar à "sociedade dós
social para que sua intensidade fosse equivalente à da brancos" que o refinamento nas maneiras, a vida de
rejeição social do escravo negro. família e a distÚ1ção social não eram apanágio de um
Os comentários de Saint~Hilaire sôbre a violência grupo racial; e também que os negros já não eram mais
da reação de um negro fôrro à sua possível identificação escravos, podendo comportar~se como quaisquer outros
como escravo comprova essa análise: "Ninguém se iguala cidadãos, como iguais . .. :" Aos olhos do branco, entre~
em orgulho ~ êsse homem, e ninguém, aliás, se ,iguala tanto, pareceria ridículo que seus criados procurassem
nesse ponto aos negros libertos. Como a sua CÔ1' pode ostentar, pernósticamente; o que resultava numa reafir~
induiir qualquer pessoa a tomal~os por escravos, ellés .mação de suas avaliações negativas.
s6 pensam nàs meios de desfazer o engano e re-cusam Como as condições de exis~ência material do grupo
a fazer diversos serviços que não repugnaria a n~nhuIÍ1 negro não melhoraram, não hbl:lve recursos para que
branco razoável executal~os" (64). Essa disposição subje~ essas sociedades bailantes pudessem manter,se. Assim,
tiva do liberto de reagir às avaliações sumárias do seus efeitos, em têrmos de uma possível redefinição
branco, não encOlitrando apoio em diferenças reais na subjetiva da auto~concepção dos negros, não puderam
posição ocupada Relo escravo e na ocupada pelo liberto fazer~se sentir de modo ~ais profundo. Hoje, apenas
na estrutura s6cio~econômic(l da cidade, podia. levar, os velhos do grupo rememoram, I11uito ajudados pela
entretanto, quando muito, a formas insolentes de compor~ imaginação, o seu "período áureo".
tamento, que seriam verberadas, e cotejadas negativà~ Houve, também, tentativas de despertar entre os
mente, pelo. branco, "com o comportamento do bom " "
negros de Florian6polis a "consciência de raça", como"
negro, escrav9 e submisso, ou então levar à ten"dência .:i.l,;;: ' pré~requisi to pa ra atitudes reivindica tórias. Mas êsses
de restringir~se as áreas de interação entre o negro livre esforços, que foram recent~s,' não encontraram apóio na
e ° branco, como forma de evitar situações equívocas. "população de côr". Além disso, tratava~se de movi...
Nunca, porém, à redefinição das "concepções do branco mentos de âmbito nacional que se ramificaram local~
sôbre o negro, 'já que, para tanto, faltava exatamente mente, empolgando poucos indivíduos, que logo desis~
o móvel maior: a mudança efetiva de posição social tiram do empreendimento, dado o desinterêsse da maior
do ex~escravo. parte dos negros. (55) Em Florian6poJis não houve,
É provável que tenha havido, no grupo negro, "
pois, condições para que se desenvolvesse oenb.11.!.D.JI!Qvi~ 7
tentativas de reagir criticamente à situação de contacto mento que pretendesse reagir contra a discriminação
então vigente. A existência de "sociedades bailantes". racial, e que pudesse, dessa forma, interferir criticamente
140 - Côr e mobilidade social Desenvolvimento .da situação de contacto - 141

nas auto.. avaliaçães dos negros. Nem mesmo a "lei de sua posição como grupo' e do gráu de solidariedade
Afonso Arinos" é sequer conhecida pela maioria dos intra.. grupal desenvolvido, se bem que êsses qua tro
elementos do grupo negro. sub.. grupos não se situem, pràpriamente, em quatro es..
Em têrmos da análise que fizemos no capítulo tratos sócio.. econômicos da estrutura social local. As
precedente, compreende.. se que numa sociedade que atitudes dos brancos e as dos próprios negros no pro..
guarda tantos traços -d~ similaridade com o passado, no cesso da interação racial flutuam, de certa maneira,
que diz respeito às posições recíprocas de brancos e em função dessas camadas, como veremos nos· próxi..
negros na estrutura social, dificilmente haveria, como é mos capítulos. r •
óbvio, condições para tentativas deliberadas de alteração
do sistema de acomodação racial vigente. Existiram e . Em primeiro lugar, há os que ascenderam social..
existem reações. Porém,' elas são esparsas e assumem mente; ocupando no presente posições correspondentes
freqüentemente o caráter de lamentações, que são .às dos indivíduos que pertencem às camadas interme..
racionalizadas (porexemplo:acflscriminaÇão seria pro.. diárias da população: são professores, (predominante..
duto da fal,ta de educação, e só existiria por parte dos mente do sexo feminind), inâivíduos portadores de di..
brancos ignorantes e mal educados), e suporta,das com plomas de gráu médi~ ou superior, empregados no
resignação. Determinados processos de socialização e comércio, funcionários pÚblicos civís ou militares, funcio . .
de contrôle' social operam no sentido de aconl0dar os nários autárquicos ou de emprêsas mistas, etc. Entre
negros ao ,sistema de relações wciais vigente (como êles existe latente um pr?cesso de tomada de consciência
veremos no próximo capítulo), bastando perisar, por de sua posição na sociedade como e enquanto grupo
'exemplo, que o ideal, afirmado verbalmente pai brancos de côr. Em virtude de sua posição na estrutura ocupa..
e por negros da comunidade, da "igualdade racial brasi.. cional precisam conviver com os brancos mais intensa,
leira" e a "moral cristã", de resignação, age ~omo po.. mente e, em várias circunstâncias, em posições sociais
deroso elemento de acomodação, permitindo certa eu.. simétricas. Apesar de se beneficiarem dessa possibili..
faria subjetiva do negro com relação à situação de con·· dade, sentem as restri~ões impostas pela barreira da
tacto vigente. côr. Doutro lado, suas condições materiais e culturais
de existência distanciam;nos do resto da população negra.
É pre~iso pon,derar, finalmente, que a diversificação Por isso, tendem a isolar.. se socialmente da populaçiio
do 'sistema ocupacional de Florianópolis possibilitou
alguma diferenciação social interna no grupo negro,
)' negra e dos demais grupos da comunidade. A flutuação,
como vimos. Por isso, embora a discriminação e as
I. nos membros dêste grupo, da consciência de spa posição
I e da orientação da sua lealdade em têrmos do grupo
avaliações desfavoráveis mantidas pelos brancos atinjàm branco ou do grupo negro é muito grande (56).
os negros em geral, é preciso considerar que há alguma
oscilação na atitude dos brancos diante de negros que I Em segundo lugar, há os que se inscrevem no siste..
pertencem a camadas diversas. Baseando.. nos no survey ,t. ma artesanal e semi.. industrial do rriunicí pio, consti..
que realizamos, poderíamos distinguir quatro sub.. gr~~_s tuindo a élite da população trabalhadora negra. ~sse
grupo tanto numérica quanto socialmente desempenha,
principais de negros, do ponto de vista da-sua integração
à- comunidade, dã sua organização interna, da consciência
1 um importante papel na população negra. São os descen..
í
I I'
iI
iI
II 144 - Cór e mobUidade social Desenvolviment'o da situação de contacto - 145

I!
11
.I
dos antigos proprietários ~e escrav?s" ou c?m bran~os cidade. Isto significa que não existiria estratificação
das camadas superiores e mtermedlánas da: populaçao, "intra--racial" no grupo negro. Com relação à posição
!
. !I etc. Dessa forma, os limites entre os dois: grupos são do "grupo negro" na comunidade de Florianápolis, dado
II relativamente permeáveis, assim como os limites entre que sua ascensão social como um todo, e sua difereo"
!I êste terceiro grupo e aquêles indivíduos que, não obtendo dação interna, são incipientes no município, não, há
I! i~ posições definidas no sistema oc~paci~nal do muni<:ípi?, diferenças essenciais nas posições sociais ocupadas pelos
!I vivem "de expediente", numa sltuaçao de dependencla "mula tos" \ ou pejos, "negros", que se djstri~uem de
I, e de sub~emprêgo crônico, bem como os desocupados. forma mais ou menos indiscriminada na estrutura ocupa,
i!
,I
:I
ii
Na sua grande maioria, 'os membros dêste, terceiro grupo
vivem nos morros que cercam a área da cidade que se
danaI da cidade.
.
Esta tentativa de classificação da "população de
I'
,I localiza na Ilha, ou então na área sub~urbana do Es~ côr" de Florianópolis é precária .por duas razões princi"
i :
treito. pais. Primeiro, porque se baseia na observação direta
: !
Por fim há os negros recém~vindos das demais ár~as
t
, ;

do Estado o~ de o~trãs regiões eque,' embora na' maioria


e em entrevistas feitas num suruey que implicou num
contacto pouco prolongado. Segundo, porque o pro~­
t i 'dos c~sos participem do sistema ocupacional da cidade cesso de mudança social encontra no presente, como

~: como trabalhadores não qualificados e, em menor es" acentuamos, condições para desenvolver~se num rítmo
cala, como trabalhadores semi~quali ficados ou artes~os, mais intenso que no passado. Isto se reflete na popu~
ainda não se integraram na população negra local. Eles lação negra; pois favorece a alteração de posição do grupo
não participam de sua vida associa tiva nem mantêm negro na corq.unidade e tende a acentuar cada vez mais,
as diferenças de posição social entre os indivíduos do
relações de amizade ou mesmo de vizinhança, com os
grupo de côr. Será mesmo difícil prever se no futuro
membros daquela população, pois que se localiz~m geral" a expressão "grupo de côr': terá algum sentido opera--
mente no Estreito, e não na Ilha, como a maIOr parte
eional nas análises sociológicas que se desejar fazer na
da pop~ra antiga. . comunidade. E possível, pór outro lado, que os fa tores
Note"se que em todos êsses grupos é possível r7co~ irracionáis que se prendem às avaliações sociais em
nhecer tanto indivíduos que fenotlplcamente podenam têrmos da côr tendam a interferir no processo de for,.
ser classificados' éomo negros, quanto aquêles ql~e ? mação do sistema de classes sociais de forma mais inei..
seriam melhor como mulatos. Excetuando,se os mdl" siva que no presente, à medida em que êste se desenvol"
vícluos pertencentes ao primeiro grupo, ,que ating,ira:n ver. Assim como é possível que a tendência incipiente que
os estratos intermediários da estrutura SOCial de Flonano" poderia ser apontada na seleção dos "menos escuros" nas
polis, pois entre êles o número de mulatos, s_em ser ~xclu... camadas intermediárias da população se acentue, dando
i sivo, é predominante (por razões que serao analisadas lugar a que aos grupos socialmente estratificados da
I nos próximos capítulos)" seria di~íc!1 :stabe17ce~ ~ual-­
quer tendência quanto a predOrnll1anCla de IOd.IVlduos
população negra venham a corresponder variações de
coloração da pele, Tanto mais que o ideal de branqui.. Q=
fenotlpicamente negros ou mulatos nos demaiS sub" dade encontra plena vigência em Florianópolis, como
grupos em que se poderia dividir a população negra da veremos nos próximos capítulos e os membros do grupo

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I11l 1,1
i ,I de côr que ascendem socialmente têm maiores' oportu... Como explicar isso? Ainda em termos de aproxi... I!
j II nidades para atingir êsse desiderato, na escolha do mação, gosta~íamos' de sugerir, que, em primeiro lugar, I
i I! próprio cônjuge ou na de seus filhos, por causa de suas a~esar ?as dIferenças das formas de exploração econô.. !
I~ posições sócio.. econômicas mais vantajosas. Então, ascen... mlc,a vigentes das duas áreas (grande propriedade e)
III .são social e branqueamento talvez possam vir a ser mUltas escravos - pequena propriedade e poucos es.. \
',: ~ processos que correm paralelos. cravos), a escravidão era uma instituição que vigorava
~ em todo o Brasil; em segundo lugar, alguns padrões
: fi\1 * * * de ,c.o~portamento e as racionalizações a respeito da
; ~I legItImIdade da escravidão' foram àbviamente elaborados
li nas áreas de grande propriedade e grande densidade de
,I! Forçados a ater.. nos ao material empírico disponível ~opulaçãBo negra, : dessas difundidas para as outras
,~ e a descrever sumàriamente algumas situações sociais areas. asta a leltUrR dos editoriais dos jornais de
, iI a partir das quais se pode inferir as condições e padrões Destêrro sôbre a Abolição para que se perceba tal fa to:
o

~ que regulavam a interação de brancos e negros no pas... a atitude anti.. abolicionista era defendida através de
fi sado, em Destêrro, cremos, entretanto, poder ressaI tar uma argumentação que tendia a mostrar que a libertação
l , d o s . _ e s c r a v o s traria a ruina econômica, e isso, numa
l,
I: certas hipóteses, que possuem interêsse para a compre... reglao onde a economia não repousava essencialme11te
: ensão d~ situação de contacto inter.. racial do presente, no braço escravo (58). Pensava.. se em Destêrto como
I,I: e mesmo para a análise dos contactos inter.. raciais na ~em ~êrmos do Rio de Jãneiro. O ideal de ociosidade
i' sociedad~ brasil.eira em geral. ' a c i m a ICIescritÕ; Clã "mesma-'forma, não se justificaria em
Em primeiro lugar, parece...nos que a discussão' feita têrmos das condições reais de'existência social dos brancos
é suficiente para mostrar que, nos pontos abordados, d: I!ha, e assim por diante. A explicação, pois, da exis..
há sil1}ilitude3 n.tr.e .os_R.~9~ões de S,ontacto--""inte.r~La.cial ten~Ia de padrões de comportamento gerais para a
e as formas de comportamento social vigentes em Santa SOCIedade brasileira no atinente <:lOS contactos inter..
Catarina e aquelas que operavam em São Paulo,' des... ra~iais depe~~eria de ~ma análise mais amplfl ares..
critos por Roger Bastide e Florestan Fernandes, A pelt? da s~mlhtude. de estilos ,de. vida, m~dos de pensar:
exposição que fizemos procurou, intencionalmente, res... ., sentir e agir na socledad~ brasIleIra, atraves da influência '
saltar tal fato, e o cotejo com a obra dêsses autores pode de certas áreas do país sôbre outras, notadamente das
confirmar essas afirmações. Isso nos faria supor a exis... n~gjões que, em determinados períodos, beneficiaram.. se
tência de determinados padrões gerais de contacto inter... duetamente com o desenvolvimento econômico da Co~
racial aos quais corresponderiam formas similares de l~nia e do Império, e, especialmente, da influência exer...
comportamento social, se não em todo o Brasil, ao clda pela Côrte, como sede central do govêrno e da
menos em boa parte dêle (57). Somos tentados a essa ..;:i" administração, sôbre o resto do país (59). '
generalização tanto mais quando sabemos, como temos· , .?-m segundo lugar, é importante notar que esta
.insistido, que as diferenças estruturais entre as duas stmthtude . d~ padrões de relações raciais e consequente...
áreas que estámos comparando eram grandes. mente a sImlhtude das formas de comportamento social
148 Cór e mobilidade social Desenvolvimento da situação de contacto 149

por êles orientados, se verificou em áreas cujas dife.. os meios de sobrevivência; entre as expectativas de
renças estruturais e de grau de desenvolvim~nto econô.. comportamentos assimétricos do branco pobre e do negro
mico eram acentuadas. Se a vigência de algqns padrões e suas condições similares de vida, e assim por diante.
similares de contacto inter..racial pode ser explicada pela Ora, numa situação de contacto inter..racial dêsse tipo,
hipótese de terem sido elaborados numa das áreas e havia incentivos poderosos para que' as polarizações ne.. )
transferidos para outr?, é preciso discutir se as funções gativas, que na sociedade escravocrata se concentra..
que preenchiam eram semelhantes. Em outras palavras, vam no escravo, fossem transferidas plenamente para;'
se causalmente poderíamos compreender a emergência o negro.
de determinados tipos de contacto inter..racial similares Se é verdade que a côr e as diferenças raciais torna..
em termos de que havia algumas condições gerais nas ram;se elementos funcionalmente significativos e ope..
duas áreas em. questão (que a própria existência da rantes por causa da elaboração social que sofreram nas
escravidão implicava), e que, apesar da variação de áreas de grande propriedade eseravocra ta (60), e que a
outras condições específicas, haveria determinados pro.. discriminação racial não se praticava "por causa de pre..
cessas sociais que permitiam a difusão de padrões .de venções ou o}erizas inevitàvelmente ou voluntCtriamente asso..
comportamento elaborados numa área para outra área, dadas a diferenças raciais ( ... )" (61), e que sua explicação
funcionalmente· haveria similaridade entre as formas de i"
estaria antes na existência da dominação senhorial de I
interação racial vigentes nas duas áreas? uma raça sôbre outra, à qual correspondia uma estrati...
Aqui,' comparando..se as duas situações em questão, ficação social em castas que produzia desigualdade de
deveremos procurar' isolar no que é específico à situação direitos e de deveres que se traduziam em medidas
que ora nos interessa (Santa Catarina) os fatores que discriminatórias (62), não deixa de ser verdade que,
permitirão explicar nela o funcionamento do sistema numa- região como essa de Santa Catarina que esta..
de contacto inter..racial. Além disso, se havia bàsica.. mos analisando, não havendo o suporte material da
mente similaridade. nos padrões de contacto, havia tam.. dominação senhorial e existindo a estratificação social
bém diferenças,' e essas, como as funções sociais dos em castas, a dominação senhorial confundia..se ainda
padrõeiae contacto e das formas de comportamento mais que noutras áreas com a dominação racial: não
inter..racial vigent~s, devem ser explicadas em termos era ao senhor que o escravo devia obrigações sem
dos fatores que variam tõpicamente na comparação das contrapartida de direitos, era ao branco que o negro
duas séries de eventos com que estamos lidantlo. as devia. -. . _. -- -
Não precisamos insistir na significação empírica dos - - N~m mesmo o abrandâmento da desigualdade entre
dados selecionados para caracterizar a situação de con.. o senhor e o escravo, que, o' patriarcalismo tradicional
tacto vigente em Destêrro. A todo instante proc,uramos "? . permitia, poderia haver. em Destêrro: fáltav'a a dife..
mostrar o flagrante contraste entre as avaliações do '.-
rença real nas posições recíprocas do branco e do negro
escravo e do negro em termos do branco e a posição no sistema social da produção, para permitir que o
de ambos no processo social de produção; entre a avalia.. "
paternalismo não fosse confundido .com igualitarismo, e
ção negativa da vida laboriosa que os brancos parti..
lhavam e sua necessidade de produzir de motu proprio que dêle não adviesse perda de status. Daí que numa

1.
"'-'1;:'_.
.'

150 - Cór e mobilidade social Desenvolvimento da situação de contacto - 151

cidade onde a escravidão era essencialmente doméstica das raças brancas, a inferioridade das raças negras e o
vigorasse uma disciplina de vida para os escravos tão direito natural dos membros daquelas violarem o seu
rigorosa quanto a que descrevemos, e que a violência próprio código ético, para explorar outros sêres hu~
fosse utilizada tão amplamente como recurso para acomo~ manos" (64). E através dela se legitimava, o direito à
dação do negro à ordem social escravocrata. Essa situa~ discriminação e ã espoliação, mesmo quando jurldica...
ção contrasta com a descrição da vida dos escravos mente não houvesse entre os branet>s e os negros uma
domésticos e urbanos apresentada pelos cr9nistas ou lelação senhorial de domínio.
comentaristas de outras regiões do Brasil. Na cidade,
com relação aos escravos domésticos, have'ria maior , . Foi por isso que, numa comunidade onde o mundo
. rural era plebeu e onde não emergiu nenhuma fonte de
suavidade. que na vida dos, escravos do campo, mais riqueza urbana capaz de permitir, em grande escala,
liberdade e menos castigos, o que não poderia ocorrer
um estilo de vida senhorial, as relações entre os brancos;
plenamente em pestêrro, pelas razões que sugerimos.
Não havendo. por outro lado, condições para que o rnesJ!lo pobres, e os negros, mesmo livres, se processavam
mestiço viesse a fazer parte da família tradiCional, ou , em têr.mos das relações entre dominadores e dominados,
ascendesse socialmente, como mostramos, à r~jeição senhores e escravos.
violenta do branco se exercia sôbre todo aquêle que Compreende~se) pois, que mesmo depois da Abolição
, tivesse mistura rio sangue. "Escapou de branco, é negro", não houvesse impulsos suficientemente vigorosos para
como diz o ditado que ainda hoje serve, mais freqüente~ alterar o sistema de a'comodação inter~racial vigente.
mente, para a identificação sócio~ràcial do mulato em Os libertos e seus descendentes continuaram sendo negros,
têrmos do branco. isto é, naturalmente inferiores. Tanto mais que a socie~
A rigor, numa comunidade como a que descrevemos, dade local não proporcionou muitas oportunidades de
ascensão social aos negros, que continuaram a desem~
o preconceito de côr e a discriminação racial além de
penhar, como antes, os serviços para os quais êles eram
se completarem como processos sociais de preservação naturalmente aptos: o trabalho braçal econômica e social~
da ordem social escravocrata (ã medida em que essa mente desqualificado. Numa situação social como essa
vigorava em Destêrro) (63), preenchiam ainda outra existem, obviamente, muitos estfmulos para a preser~
função social importante,' que se relaciona com e histàri~ vação da antiga ideologia racial. dos brancos.
camente emergiu da situação de contacto inter~racial na . A polarização das justificativas dás avafiações des~
sociedade escravocrata brasileira: por causa da incon~ favoráveis dos brancos sôbre os escravos em tôrno de
sist~ncia das condições para a exploração escravocrata características físicas permitiu que, mesmo alterando~
e da coexistência do trabalho livre com o trabalho es~ se, com a Abolição, as condições sociais responsáveis
cravo, deparamos em Destêrro com uma situação em pela emergência da discriminação racial, essa, e as prin...
que a côr da péle e as marc~~ciai~J'9Iam. ~ele_c~s .',< .;J.,.... cipais racionalizações que a justificavam, se mantivessem
l con: o eleilleQtos_"c.ap.az~Lde expnmI2J._mai~. .9..l2.-. ue l!g]a :. ),;. --;:7"q~a~ ina~ter~veis na so~iedad.e de classe~ ~~ for~ação.
I de~~gualdade social, uma desigualQã([e natural entr~Jlelll9s Por outro lãâó, como a mtensldade da reJelçao SOCIal do
ér'12.rallc~-Essadesiguã1dade slgníflcariã"ãsupremacia negro era grande e as transformações na estrutura ocupa~
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152 -' C6r e mobilidade social \


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cional, e consequentemente no sistema global de posições li,


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sociais, foram 'relativamente pequenas até há mais ou ,

menos vinte anos, os padrões de contacto inter..racial


elaborados no passado puder.am preservar"s~. Isso equi.. r
~
vale a dizer que mesmo com a emergência do' sistema de
elas,ses sociais em 'Florian6pois, fatores irracionais ligados
, ' a diferenças raciais continuaram a operar no processo
de Classificação social vigente na comunidade, e por êsse
meio, manteve..se ~ exploração social, sob fundamento
supra..econômico, de um "grupo racial" sôbre outro: dos
brancos sôbre os negros. '

SEGUNDA PARTE
por
OCTÁVIO IANNI

.~.

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