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TRABALHO – Fabricação de sofrimentos?

CARDOSO, J. C. Aguiar*

INTRODUÇÃO

O presente escrito trata-se de uma resenha crítica a respeito do livro “A Loucura do


Trabalho”, de Christophe Dejours, e de temas abordados em aulas e estudos individuais do
curso de Especialização em Psicologia Organizacional (FACID/FIEPI, Teresina-PI, 2006). É
de se presumir que o texto apresenta limitação, pois mostra de modo sucinto o eixo essencial
da obra sob um prisma interpretativo. Explica-se inevitável que outros estudos sejam também
citados, bem como exemplos de conhecimento do autor que tenham alguma relação com o
tema ora enunciado a partir do citado livro.

As páginas a seguir apresentam, de forma resumida, uma percepção acerca de


parte do conteúdo da obra de Dejours, na qual traz o tema da “psicopatologia do trabalho”.
Observou-se que o livro tanto contém comentários históricos quanto questões contemporâneas
sobre o sofrimento humano em relação ao trabalho, tudo com o objetivo de demonstrar que a
organização do trabalho exerce forte impacto sobre o “aparelho psíquico” do homem.

Inicia-se assim essa resenha buscando os conceitos dos vocábulos “Trabalho” e


“Loucura”. De acordo com um dicionário de língua portuguesa, trabalho é “s.m. 1. Exercício
material ou intelectual para fazer ou conseguir alguma coisa. 2. Esforço, labutação, lida, luta.
3. Esmero que se emprega na feitura de uma obra” e loucura é “s.f. 1. Estado de quem é
louco. 2. Med. Desarranjo mental; demência; psicose. 3. Ato próprio de louco. 4. Insensatez.”
(Michaelis, CD-ROM Uol, 2003).

Sabe-se que a expressão “loucura” em muitas obras tem conotação positiva:


Erasmo de Roterdã, por exemplo, escreveu no século XVI uma obra enaltecendo suas
qualidades – O Elogio da Loucura e o apóstolo Paulo, em suas cartas bíblicas, incentiva os
cristãos a aderirem ao que ele designou de “a santa loucura”. Mas na obra de Dejours e, por
conseguinte, aqui neste trabalho, a “loucura” é abordada em seu aspecto negativo (e de certa

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José Carlos Aguiar Cardoso, o autor deste estudo interpretativo, é graduado em Administração com
especialização em Psicologia Organizacional (FACID/PI) e Padrões Internacionais de Auditoria Interna
(UCB/DF), natural de Teresina-PI, atualmente exerce a função de auditor interno em um banco público, tem 47
anos de idade e reside na cidade de Fortaleza.
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forma metafórico ou hiperbólico), pois o termo será utilizado para designar sofrimento,
patologia ou síndrome mental no contexto do trabalho.

Quanto ao termo “trabalho” é necessário ponderar que, numa visão isolada, é um


assunto que provoca polêmica. Os empreendedores, por exemplo, o exaltam. Alguns
idealistas, idem. Houve época na história humana em que a formação e educação do ser
humano eram-lhe completamente atribuídas. O ideal das famílias era formar homem
trabalhador e mulher prendada e quem não se ajustasse a esse paradigma seria rotulado de
preguiçoso. Assim, os momentos de “não trabalho” são julgados como casos de “preguiça”.

Atualmente, uma corrente de pensadores propõe uma forma diferente de enxergar


os momentos de não trabalho. Domenico de Masi parece ser um dos maiores expoentes dessa
corrente, com a publicação do livro “Ócio Criativo”. Mas bem antes dele, na década de 1930,
o inglês Bertrand Russel publicara “O Elogio ao Ócio” (uma das publicações feitas no Brasil
ocorreu em 2002 pela Editora Sextante). Russel já defendia que o trabalhador necessitava
diminuir sua carga de trabalho para que pudesse ter tempo para se dedicar também às artes, ao
lazer e outras atividades prazerosas. Em uma época em que a maioria dos trabalhadores tinha
um carga de 12, 14 ou 16 horas por dia, ele insistia que

[...] quatro horas diárias de trabalho deveriam ser suficientes para dar às pessoas o
direito de satisfazer as necessidades básicas e os confortos elementares da vida, e
que o resto de seu tempo deveria ser usado da maneira que lhe parecesse mais
adequada. [...] Uma condição fundamental de um tal sistema social é que a educação
ultrapasse as suas atuais fronteiras e adote como parte de seus objetivos o cultivo de
aptidões que capacitem as pessoas a usar seu lazer de maneira inteligente.(RUSSEL,
2002. p.33).

É possível intuir que as idéias não foram bem aceitas na sua época, haja vista a
conotação difundida de que “ócio” seria sinônimo de “preguiça” e historicamente a preguiça
tem sido vista como algo abominável pelas organizações, especialmente as organizações
religiosas, grandes influenciadoras na formação dos alicerces conceituais das pessoas.

A propósito do tema “trabalho”, nunca se falou tanto em empreendedorismo,


cultura empreendedora e intraempreendedorismo nos diversos tipos de organizações como
nos nossos dias. Continua se percebendo um verdadeiro culto ao trabalho. “Deus ajuda a
quem madruga” está impregnado nas cabeças de todo mundo. “Quem não trabalha não come”
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parece atemorizar muita gente ainda hoje. E o cinema, em vários filmes, difunde uma cultura
workaholic, promove uma necessidade de um trabalho árduo. O tema muitas vezes não é
tratado diretamente, mas as metáforas das batalhas e guerras são muito eloquentes. E até em
letras de músicas pode ser observado o incentivo: “Vamos ao trabalho, vamos ao trabalho/ E
só há uma maneira de fazê-lo/ direito, bem feito/ Se não, é melhor nem começar.” (Titãs,
2001).
Pois é nesse contexto que se procede à análise sumária da obra de Dejours, feita
de uma forma crítica, propiciando uma opinião de que há muitas forças contribuindo para as
situações de sofrimento no trabalho. E muitas vezes esse sofrimento é provocado pelo próprio
estado mental do trabalhador e não somente por forças externas. A partir do próximo item,
apresenta-se um resumo dos assuntos tratados no livro e somente no item “Reflexões Finais”
é emitida uma opinião sobre o tema abordado pelo autor da obra analisada.

A LOUCURA DO TRABALHO

O livro é composto de 6 capítulos, além de uma parte destinada à Introdução, uma


para Conclusões e um Anexo (em que é apresentado um guia metodológico para realização de
pesquisa em psicopatologia do trabalho), sobre o qual não há nenhum comentário nesta
resenha.

Dejours começa refletindo sobre um paradigma do seu tempo (o livro foi


publicado em 1980, na França), que se observa ainda vigorar nos dias atuais: “Falar de saúde
é sempre difícil. Evocar o sofrimento e a doença é mais fácil”. Deixa entender que o tema do
seu trabalho são questões de “doença” no trabalho, mais especificamente sobre suas
psicopatologias, em função de toda a carga de sofrimentos que este quase sempre traz
consigo; não é sobre a busca da “saúde” no trabalho. Ainda que não seja a sua pretensão
(como deixa expresso), o livro provoca reflexões sobre a necessidade de se buscar saúde e
qualidade de vida no trabalho. “Nós procuraremos divulgar aquilo que, no afrontamento do
homem com sua tarefa, põe em perigo sua vida mental”. (Dejours, 1992. p.11). E considerou
que, diante do quadro de subsistência, não caberia a ele falar em luta pela saúde; a
identificação do trabalhador era com a luta pela sobrevivência. Então, a obra,
propositadamente, seria feita num tom de diagnóstico dos ambientes de trabalho e de suas
repercussões no aspecto mental do trabalhador, frisando aspectos patológicos e não
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higiênicos, deixando para outros (Dejours sugere os representantes de classes, políticos) a luta
para mudanças necessárias à eliminação das desconformidades denunciadas.

O autor tenciona a “elucidação do trajeto que vai do comportamento livre ao


comportamento estereotipado”, explicando que acha uma tarefa muito difícil a de identificar
“o processo de anulação de um comportamento livre” (Dejours, 1992. p.26).

Ele realiza inicialmente uma abordagem histórica e, nesse enfoque, relata que,
apesar do desenvolvimento das ciências humanas nos últimos cem anos, o mesmo não ocorreu
com os estudos da psicopatologia do trabalho. Nessa descrição, ele identifica três etapas
históricas importantes para o tema: (1) período de desenvolvimento do capitalismo industrial
– séc. XIX, até primeira década do séc. XX; (2) período entre a primeira guerra mundial e o
ano de 1968; e (3) período posterior a 1968.

No seu passeio histórico, ele narra a evolução das condições de trabalho da classe
proletária, lembrando que no primeiro período a literatura designava aquele momento
histórico de “miséria operária”; depois, no segundo período, veio a etapa de lutas, resistências
e conquistas valiosas geradas pela liberdade de verbalização e pela força organizada da
“solidariedade operária”; até chegar ao terceiro período, o período pós-68, marcado por
buscas de condições cada vez melhores nas organizações do trabalho. “Por organização do
trabalho designamos a divisão do trabalho, o conteúdo da tarefa [...], as relações de poder, as
questões de responsabilidade etc.” (Dejours, 1992. p.25) . O caráter qualitativo do trabalho
“não pode ser traduzido em termos de custo ou de itens orçamentários. [...] A partir de então
se confrontam, sem intermediário, a vontade e o desejo dos trabalhadores e o comando do
patrão, concretizado pela organização do trabalho.” (p.25).

Cumpre destacar os seguintes detalhes no cenário histórico exposto na obra: “A


duração do trabalho [...]de 12, 14 ou 16 horas por dia. [...]Salários muito baixos, insuficientes
para as necessidades básicas do trabalhador e sua família. [...]Falta de higiene, esgotamento
físico, acidentes de trabalho, alimentação insuficiente, alta morbidade e mortalidade, baixa
longevidade. [...]A mortalidade cresce em razão inversa ao bem-estar”. (p. 14).

Após a exposição do panorama histórico, o autor faz uma série de abordagens,


cujos textos são organizados em seis capítulos: 1) As estratégias defensivas; 2) Que
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sofrimento? 3) Trabalho e medo; 4) Um contra-exemplo: a aviação de caça; 5) A exploração


do sofrimento; e 6) A organização do trabalho e a doença.

Capítulo 1 – “As estratégias defensivas” – aqui Dejours fala de como o tempo do


trabalhador (não apenas o tempo no trabalho mas também fora do trabalho) é “contaminado”
pelos efeitos das ideologias “aprendidas” nas organizações na forma de mecanismo de defesa
contra os efeitos danosos dos sistemas de trabalho. Os efeitos do trabalho repetitivo, do
anonimato, da separação entre a tarefa e seu significado, todos estes aspectos são citados
como provocadores de estratégias ideológicas de defesa que contaminam a atividade psíquica
dos operários, não apenas em suas vidas na organização, mas com repercussão na sua vida
familiar e social. Sobre a “ideologia da vergonha”, por exemplo, ele explicita claramente a
necessidade do trabalhador ou trabalhadora silenciar, como atitude defensiva, diante de certas
situações, como a doença, a gravidez, as injustiças, etc., de forma a continuar assegurado seu
emprego e o sustento familiar. “O corpo só pode ser aceito no silêncio dos órgãos; somente o
corpo que trabalha, o corpo produtivo do homem, o corpo trabalhador da mulher são aceitos;
tanto mais aceitos quanto menos se tiver necessidade de falar deles” (p.32). A partir desse
exemplo da ideologia da vergonha, é possível trazer a característica principal do que o autor
chamou de ideologia ou estratégia defensiva: “a ideologia defensiva[...] tem por objetivo
mascarar, conter ou ocultar uma ansiedade particularmente grave”. (p.36). O autor manifesta
seu antagonismo ao taylorismo e expressa que o “tempo de trabalho e tempo fora do trabalho
formam um continuum dificilmente dissociável”, concluindo que isso gera “um círculo
vicioso sinistro da alienação[...], onde o comportamento condicionado e o tempo, recortado
sob as medidas da organização do trabalho, formam uma verdadeira síndrome psicopatológica
que o operário, para evitar algo ainda pior, se vê obrigado a reforçar ele também”.(p.47).

O Capítulo 2 – “Que sofrimento?” vem explicitar como o aparelho mental dos


trabalhadores é atingido pela insatisfação e ansiedade quanto aos fatores: (a) ausência de
significado das atividades. “O sofrimento proveniente do pouco conteúdo significativo do
trabalho taylorizado não é mais um mistério”.(p.52). (b) inadequação das condições
ergonômicas dos locais de trabalho. “[...]a insatisfação resultante de uma inadaptação do
conteúdo ergonômico do trabalho ao homem está na origem, não só de numerosos
sofrimentos somáticos, mas também de outras doenças do corpo que atinge o aparelho
mental”.(p.53).
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Ao enfocar a questão, o autor chega a defender que é preciso uma adequação entre
o conteúdo ergonômico do trabalho e a estrutura da personalidade do trabalhador, sob pena de
possivelmente “levar a um sofrimento e até a uma síndrome psicopatológica caracterizada”.
(p.59). Segundo Dejours, esse sofrimento existe por causa do conflito que o aparelho psíquico
sofre em “arranjar” satisfações para compensar as inadequações existentes. “O aparelho
psíquico seria, de alguma maneira encarregado de representar e de fazer triunfar as aspirações
do sujeito, num arranjo da realidade[...].”(p.62).

Assim, ele identifica as satisfações concretas, que dizem respeito à proteção à


vida e à saúde do corpo, e as satisfações simbólicas, que tratam da vivência qualitativa da
tarefa. E esses dois tipos de satisfação, segundo Dejours, andam juntos.

Com relação ao Capítulo 3 – “Trabalho e Medo”, o autor propõe que se distinga o


foco no “medo” do foco na “angústia” (que é uma produção individual). Segundo ele, “o
medo está presente em todas as atividades profissionais, inclusive nas tarefas repetitivas e nos
trabalhos de escritório, onde parece ocupar um papel modesto”.(p.63).

Ao falar dos riscos desencadeadores do medo no trabalho, enumera: risco exterior,


risco coletivo, risco mais personalizado, risco residual, risco real, risco suposto. E registra que
há sinais diretos (fatos referentes a atividades perigosas ou insalubres, por exemplo) e sinais
indiretos do medo (cultura de algumas categorias de usar ideologia defensiva para esconder
problemas como o medo ligado a riscos reais). O medo é produzido também em tarefas
submetidas a ritmos de trabalho, exemplificando que “a situação do trabalho por produção é
completamente impregnada pelo risco de não acompanhar o ritmo imposto e de perder o
trem.”(p.73).

E ainda comenta sobre a “ansiedade e as relações de trabalho”, como: ansiedade


provocada por pressões da hierarquia, das metas por produtividade, manipulações
psicológicas, rivalidades e competições grupais, etc. E classifica a ansiedade em três
diferentes formas: (1) ansiedade relativa à degradação do funcionamento mental e do
equilíbrio psicoafetivo; (2) ansiedade relativa à degradação do organismo; e (3) ansiedade
gerada pela “disciplina da fome” (necessidade de sobrevivência).
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No Capítulo 4 – “Um contra-exemplo: a aviação de caça”, o autor relata as


características degradantes da profissão de piloto de caça, tanto nos aspectos físicos do
ambiente de atuação (a cabine de um avião de caça), quanto nos aspectos psicológicos e até
sociais desse tipo de profissional. Apresenta as diferenças entre as profissões de piloto de
transporte e piloto de caça (estes têm muito mais exigências a cumprir, desde a seleção,
passando por treinamento e processo de adaptação rígidos e por toda a vida profissional, que
os fazem adquirir traços de personalidade, estrutura mental, motivação e capacidade de
adaptação característicos da profissão). “[...]Todos os pilotos de caça operacionais
apresentam características psicológicas verdadeiramente padronizadas. Qualquer variação em
relação a este modelo leva cedo ou tarde a uma desqualificação, mutação ou acidente”.(p.91).
Todo esse rigor na formação e as respostas defensivas conseqüentes, promova o seguinte:
“Seja um combate aéreo ou a morte infligida ao adversário, nunca se vê um único traço de
remorso. A agressividade, muito valorizada, é uma exigência fundamental da profissão; ela só
encontra uns poucos obstáculos e, caso contrário, ela leva inevitavelmente à incapacidade
psíquica de voar.”(p.90).

Mas, segundo Dejours, é exigido desse profissional não apenas a modelagem


psíquica, como também uma bagagem invejável de conhecimentos técnicos e científicos os
mais diversos, como física, mecânica, geografia, geometria, psicologia, para citar apenas
algumas. Além disso, precisa ter “um bom controle da realidade” e muita disciplina e
motivação. Ele expõe que “A boa qualidade da relação satisfação-motivação e,
particularmente, o prazer proveniente do conteúdo significativo e simbólico do trabalho são
absolutamente necessários à manutenção da performance [...].”

Ao concluir o capítulo, o autor manifesta que “a estrutura mental muito particular


dos pilotos de caça contém talvez um ‘grão de loucura’ que não é inútil para ousar desafiar
assim a morte a cada dia”. (p.95). E revela desconhecer se a “loucura” dos pilotos de caça não
é explorada racionalmente pelo comando e pela organização de trabalho.

Quanto ao Capítulo 5 – “A exploração do sofrimento”, são mencionadas diversas


formas de exploração dos sofrimentos tanto físicos como mentais, sensoriais e emocionais em
diferentes atividades, frisando as principais diferenças entre os prejuízos do sofrimento físico
e os do sofrimento mental. No que diz respeito às tarefas repetitivas, o autor cita que “A
erosão da vida mental individual dos trabalhadores é útil para a implantação de um
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comportamento condicionado favorável à produção”, e complementa que “o sofrimento


mental aparece como intermediário necessário à submissão do corpo”.

As principais ilustrações deste capítulo referem-se ao caso das telefonistas da PTT


(estatal de comunicações francesa) e o da indústria petroquímica. No primeiro, demonstra que
o sofrimento advindo da insatisfação é utilizado para aumentar a produtividade das
telefonistas, que, no atendimento dos assinantes, são proibidas de desligar, de irritar o outro, e
como são permanentemente acompanhadas, sua insatisfação leva a reduzir o tempo da
comunicação, pois o interlocutor é induzido a desligar mais depressa. “De modo que não é
tanto exortando-as a trabalhar mais rápido mas provocando irritação e tensão nervosa nas
telefonistas que a controladora pode obter melhor rendimento.”(p.103).

Quanto ao segundo caso, Dejours explica que a organização do trabalho nesse tipo
de indústria tem o medo, em função da ignorância proposital, como fator determinante. “Essa
ignorância, que permeia o funcionamento da empresa, tem um papel fundamental na
constituição do Risco e no Medo dos Trabalhadores”, enfatizando que a empresa não tem
interesse de que todas as etapas dos processos de trabalho sejam difundidas entre as diversas
categorias de trabalhadores, como forma de controlá-los, levando-os a se ocuparem com a
produção de um sistema de macetes. “Quanto mais a relação homem/trabalho está calcada na
ignorância, mais o trabalhador tem medo”.(p.107). Para Dejours, a permissão de instalação do
medo. E finaliza a reflexão propondo que “a exploração do medo aumenta a produtividade,
exercce pressão no sentido da ordem social e estimula do processo de formação de macetes,
dicas, indispensáveis ao funcionamento da empresa.”(p.115).

O Capítulo 6 – “A organização do trabalho e a doença”, trata de como estratégias


defensivas afetam o trabalho e algumas vezes podem ser usadas pela organização do trabalho
na forma de mecanismo da administração. Dessa forma, o sofrimento pode provocar neuroses,
psicoses e depressões em algumas situações de trabalho, que ficam invisíveis face as
compensações criadas pelos indivíduos como estratégia defensiva. “As neuroses, psicoses e
depressões em situação de trabalho são compensadas, precisamente, pela utilização de
sistemas defensivos.”(p.120). Mas as descompensações neuróticas e psicóticas dependem da
estrutura das personalidades que, segundo o autor, são formadas muito antes do engajamento
do trabalhador no sistema produtivo. Ele defende que, quando há descompensação, a chefia
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intervém para garantir a eliminação da manifestação do sofrimento. “Basta diminuir a pressão


organizacional para fazer desaparecer toda manifestação do sofrimento.”(p.120).

Quanto à norma de produção, diz que esta é criada de acordo com o nível médio
de tolerância da maioria dos trabalhadores às exigências laborais impostas pela organização. É
um capítulo muito rico de conteúdo, em que volta a comentar de forma enfática a questão das
ideologias ocupacionais como mecanismo defensivo, trazendo um novo enfoque: quando algo
impede que o trabalhador se sintonize com sua ideologia de defesa, podem surgir
descompensações ou até distúrbios psiconeuróticos. Como exemplo, traz o caso de um
trabalhador da construção civil que, após o nascimento do primeiro filho, tem sua ideologia
ocupacional colocada em cheque. A coragem, a virilidade e o desafio ao medo, próprios da
profissão, não estava se “encaixando” na atitude profissional desse trabalhador, o que o estava
levando a apresentar distúrbios neuróticos constantes, e cujo diagnóstico foi difícil, mas foi
como se o tal trabalhador houvesse se convencido da realidade quanto ao risco, o que o estava
excluindo da ideologia da profissão. E, segundo Dejours, “A consciência exata do risco
presente durante o trabalho torna impossível a continuidade da tarefa. [...]Seria, de algum
modo, reconhecer sua falência, sua impotência, seu medo.”(p.124).

Agora, esse tipo de situação leva a um problema administrativo difícil de resolver,


uma vez que esse tipo de ansiedade não é considerada doença pois não se trata de doença
mental. Uma vez o trabalhador ficando inapto face a se reconhecer impotente devido ao medo
consciente, deveria mudar de atividade ou se afastar do emprego. Apenas o sofrimento físico
ou distúrbios mentais podem ser reconhecido pela organização como situação de invalidez. O
tipo de sofrimento mental aqui narrado não é tido como motivo de invalidez, a interpretação é
de incompetência para o trabalho.

Diante desse quadro, fala da Síndrome Subjetiva Pós-traumática, apesar de ainda


limitada a aceitação prática nas organizações. Para a questão das “estratégias defensivas”,
apresenta um enfoque diferente da abordagem feita no capítulo 1: em algumas atividades
(principalmente repetitivas), há o risco de o trabalhador acumular energia pulsional de que
não é capaz de descarregar no trabalho, casos em que podem aparecer doenças somáticas.
Dejours, como saída, sugere uma estruturação, uma arrumação do modo e do tempo de
trabalho. “A organização do tempo em fases de trabalho e em fases de descanso respeita as
necessidades da economia psicossomática, protege o corpo contra uma sobrecarga
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comportamental que poderia ser prejudicial, e possibilita ao sujeito meios de canalizar suas
pulsões durante o trabalho.”(p.128). E ele faz menção ao que designa de “fadiga misteriosa”,
sobre a qual comenta que “a fadiga é simultaneamente psíquica e somática. É psíquica porque
corresponde a um obstáculo para o psicossomático; e também por ser uma vivência subjetiva.
Mas é também, e principalmente, somática porque sua origem está claramente no corpo.”
(p.130).

O capítulo final da obra – “Conclusões”, traz o reforço sobre a convicção do autor


de que “a organização do trabalho exerce sobre o homem uma ação específica cujo impacto é
o aparelho psíquico”(p.133); repassa resumidamente vários tópicos do livro: o sofrimento do
trabalho, os efeitos danosos do trabalho repetitivo, a repercussão da desestruturação do
trabalho sobre a saúde física e mental do trabalhador, a carga psíquica do trabalho, a
construção de sistemas defensivos, a fatiga, a alienação como psicopatologia do trabalho,
conceito de vivência coletiva do trabalho.

E conclui que o embrião para a “evolução da relação saúde mental – trabalho”


requer um “duplo movimento”: (1) de transformação da organização do trabalho; e (2) de
dissolução dos sistemas defensivos. Dejours reconhece na sua obra que “é provável que não
exista solução ideal”, mas encontra esperança na possibilidade dessa evolução, deixando a
questão reflexiva quanto a se buscar “saber que tipo de homens a sociedade fabrica através da
organização do trabalho”. E, considerada a importância que o trabalho representa para
existência humana, observa-se que essa sentença final é substancial para o entendimento do
pensamento do autor acerca da “loucura” (sofrimento) produzida ao ser humano em torno do
seu trabalho.

REFLEXÕES FINAIS

Nestas considerações, propõe-se retomar a ideia contida nas últimas linhas da obra
ora comentada, onde se frisa que o trabalho é muito representativo para a existência das
pessoas que se encontram em fase produtiva. Observa-se que essa assertiva é ponto pacífico
quanto à sua veracidade. Basta que se converse com algum desempregado ou algum familiar
sem ocupação para se perceber o que o trabalho representa na vida de uma pessoa. E
conforme anunciado na introdução desta resenha, a obra foi analisada à luz dessa importância
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e representação do trabalho para o homem e mulher, que tem raízes não apenas históricas,
mas também filosóficas e biológicas. Dito isso, aduz-se que o trabalho é uma necessidade
humana. Ponto.

Quanto à predominância corrente de valorizar mais o negativo (doença) do que o


positivo (saúde), entende-se que o autor foi feliz em fazer sua abordagem com foco na doença
do trabalho e não no ideal de saúde; dessa forma, foi facilitado o rapport com os leitores. O
que dá mais audiência nos noticiários, jornais, revistas: páginas/programas sobre cuidados
com a saúde ou páginas/programas sobre tragédias, violência, doenças sociais? Claro que a
segunda opção. Apesar do apelo eficaz, cabe dizer que o enfoque no “problema” dificulta o
encaminhamento de soluções para mudança de status quo, pois uma abordagem positiva tem-
se mostrado mais eficaz. Aprende-se na ciência da Administração que é na comparação da
situação real com a situação ideal que os planos de ação são construídos. Apenas o
diagnóstico de uma dada situação nada representa para mudar essa situação. E Dejours deixa
claro já no início do livro que sua obra, propositadamente, seria apenas diagnóstico dos
ambientes de trabalho e de suas repercussões no aspecto mental do trabalhador; que não seria
seu papel traçar uma situação ideal, nem traduzir o conteúdo técnico, nem incentivar lutas
para mudanças. “Revelar as aspirações não é nosso projeto, nem mesmo traduzir-lhes o
conteúdo. Esta tarefa é do militante político que pretende, sobre essas coisas, possuir luzes, e
quer, aquecendo os desejos hibernados, desencadear a tempestade”.(Dejours,1992. p. 26).

Nesse sentido, o autor desejaria ficar apenas no denuncismo estéril, no reporte frio
de seus estudos, sem projetar ou instigar processos de cura do trabalho. E essa postura ele
consegue durante quase todo o livro, mas em alguns momentos (e principalmente do final) ele
trai essa pretensão, não conseguindo deixar de dar sinais de caminhos, não conseguindo calar
de todo sua vontade humana de iluminar e até sonhar com soluções. Diante da exacerbação
das conseqüências das condições de trabalho (que se encontram resumidas na parte 2 desta
resenha), o autor demonstra existir nele “um pessimismo em relação ao futuro da maioria das
profissões, atravessadas progressivamente por uma organização do trabalho cada vez mais
autoritária, rígida e parcelizante”(p.135), e ele até pretende que esse pessimismo prevaleça
(talvez com o objetivo de provocar nos líderes sociais o mesma tipo de reação que os
sintomas das doenças funcionam para o médico), mas em alguns trechos ele desafina com o
discurso de falar apenas da “doença” organizacional. E esse desvio de propósito foi
positivamente uma surpresa.
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Observe-se como ele mostra sua preocupação e também esperança com o futuro
quando sugere nas suas conclusões caminhos para a evolução da saúde mental no trabalho. “É
de um duplo movimento, de transformação da organização do trabalho e de dissolução dos
sistemas defensivos, que pode nascer uma evolução da relação saúde mental-trabalho”
(p.139).

E nesta altura cabe acrescentar o ingrediente que foi comentado na introdução: a


exagerada atenção e preocupação do ser humano com o trabalho não é apenas em função de
fatores externos, como as exigências do patrão, a exploração econômica dos mais fracos etc; é
também (e em grau talvez maior) devida à própria cultura e à condição de luta que reina desde
que o homem deixou de ser nômade. Faz parte da estrutura biológica do ser humano e o
próprio trabalhador não sabe como sair dela, pois é uma questão de longuíssimo prazo, tal
qual a evolução biológica apregoada por Darwin.

Assim, entende-se preocupante a forma como no início Dejours coloca todas essas
questões que assolam as relações homem-trabalho, como se fosse possível apontar culpados
para as mazelas que se percebe que existem. Se há culpados, é todo mundo. Certamente que,
se fosse possível perguntar ao próprio autor quantas horas de trabalho seguidas ele realiza por
dia, ou realizou na época da pesquisa que deu origem ao livro, ele reconheceria que estaria
trabalhando além do normal; sacrificando suas relações familiares para concluir um trabalho
já começado; deixado de lado algumas questões pessoais para jogar luz num problema da
humanidade. E então, caberia a pergunta: quem o teria obrigado a fazê-lo? Se ele, como
cientista, tem autonomia para iniciar e terminar sua jornada de trabalho, quem o haveria
imposto um tempo de trabalho fatigante? Ninguém... Ou todo mundo, já que se trata de uma
cultura universal e afeta a quem tem responsabilidades por um ofício ou tem uma missão ou
causa na qual acredita muito.

Sabe-se que há pessoas que, mesmo em tempo de férias, trabalham. Os


empreendedores, aqueles que são donos do próprio negócio, não conseguem nem tirar férias.
Não há nenhum superior o explorando, mas ele próprio se impõe um ritmo alucinante.

No tocante à importância do livro estudado, é inegável sua contribuição para o


conhecimento e reflexão sobre as situações dos trabalhadores de muitas profissões. É possível
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perceber que todas as profissões trazem sua carga própria de sofrimento, o que muda é a parte
e a intensidade do ser humano que é mais atingida, seja física, mental ou emocionalmente.

Acerca da assertiva contida no livro de que, mesmo físico, o sofrimento do


trabalho repercute no mental, não há como se refutar, posto que o ser humano é um todo
indivisível. E nesse sentido, Merlo (2003) apresenta o caso de trabalhadore(a)s de chão de
fábrica de empresas submetidas a programas de qualidade total, que acabaram atingidos de
LER/DORT devido aos movimentos repetitivos do trabalho. Essas pessoas foram acometidas
de mazelas não apenas físicas, mas também psíquicas. Tanto pelas dores quanto pela
ocultação inicial do problema, o resultado é o medo que o(a) trabalhador(a) tem de ser
excluído(a) do trabalho.

“O medo, neste caso, é o medo bastante premente da demissão, e que aparece como
fundamental para que estes efeitos possam ser levados a cabo. Percebemos o que
talvez possamos caracterizar como estratégia defensiva coletiva: o silêncio. Esse,
tendo sua base no medo, quebra a solidariedade entre os trabalhadores, engendrando
o individualismo e caracterizando o que Dejours denomina de "pressão social do
trabalho"”. (Merlo et al, 2003. p.127)

E, para completar a gravidade do quadro, surge o medo de ser denunciado(a)


pel(a)s companheiro(a)s ao patrão, que amplia o sofrimento psíquico com a falta de
cooperação e com a solidão decorrentes.

Mas toda essa situação não é construída pela administração sendo, em grande
parte dos casos, resultado do apego do próprio trabalhador ao trabalho e do medo de perdê-lo
ou de parecer pouco útil diante dos semelhantes e da sociedade.

Outra situação que se propõe discutir refere-se ao sofrimento dos líderes.


Pesquisas recentes demonstram que, dentre as maiores cargas de trabalho diárias atualmente,
as mais exacerbadas estão entre os presidentes, diretores e gerentes de empresas. Além de
uma jornada média geralmente superior a 12 horas, estes profissionais ficam na realidade
ligados 24 horas por dia, já que são munidos de equipamentos remotos da empresa, como
celulares e laptops. O sofrimento deste tipo de profissional é ampliado ainda pela cultura de
crescimento profissional apregoada nas corporações, criando um ambiente de competitividade
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estressante, tudo isso para concorrer a vagas cada vez mais reduzidas à medida que se sobe na
hierarquia da corporação.

Sobre esse tema, a revista Você S/A de julho publicou um artigo intitulado “A
vida dura dos gerentes”. Dentre outros comentários, o artigo aborda que “para conseguir uma
promoção[...], muitos acham que têm de dar o sangue pela empresa, bater todas as metas em
cada vez menos tempo e sacrificar a saúde e a vida familiar como prova de
comprometimento.”(Diniz, 2006. p.22). Observa-se nessa rotina uma fábrica de profissionais
cada vez mais estressados, pouco produtivos e sem tempo para a criatividade. Pior ainda
quando se trata de líderes, que são multiplicadores de comportamentos. E mais uma vez
observa-se que a situação não foi construída pela administração da empresa.

Com os dois exemplos acima, um de trabalhadores de chão de fábrica outro de


trabalhadores ocupantes de cargos de administração, vê-se que as circunstâncias foram
construídas em função não apenas das regras corporativas, mas também com o consentimento
e até provocação dos próprios atingidos, numa demonstração de que há uma causa bem maior
do que a própria organização do trabalho para a existência e proliferação de sofrimentos
físicos, mentais e emocionais.

De toda sorte, corrobora-se com Dejours sobre o conteúdo das linhas finais da sua
obra, quando ele reconhece que “é provável que não exista solução ideal e que, aqui como em
tudo o mais, seja sobretudo a evolução a portadora de esperança”. E é preciso mesmo ter
esperança de que haverá ainda mais evolução na relação do homem com o seu trabalho do que
se tem percebido até aqui, em que já se observa a existência de uma série de leis que regem a
segurança no trabalho, as relações trabalhistas, a duração da jornada de trabalho; fiscalização
atuante de órgãos governamentais, éticos e sindicais, etc. O lamentável é que as leis e
regulamentos são quebrados pelos próprios trabalhadores (ou com o consentimento explícito
destes), seja qual for o tipo de trabalho ou a posição na pirâmide empresarial.

Agora, é preciso reconhecer que as relações do homem com o seu trabalho já são
bem mais evoluídas do que o eram no início da era industrial, por exemplo, num sinal de que
a cultura laborativa vem mudando para melhor, lentamente, sim, mas vem mudando. E é lenta
porque, como já se falou, não é diferente de qualquer outro processo evolutivo que cerca a
existência humana.
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E com a mesma esperança expressa por Dejours, chega-se à conclusão deste


trabalho. Esperança de que, evoluindo sempre, se possa construir cada vez mais qualidade de
vida no trabalho e com o trabalho. Dessa forma, será possível entender o que a música do
grupo Titãs quer realmente comunicar. “Vamos ao trabalho, vamos ao trabalho/ E só há uma
maneira de fazê-lo/ direito, bem feito/ Se não, é melhor nem começar.” Que o trabalho bem
feito de cada um possa, cada vez mais, ser sinônimo não apenas do serviço realizado com
excelência, mas também signifique o equilíbrio saudável das relações entre os trabalhadores e
seus semelhantes (usuários, familiares, acionistas, líderes) e do trabalhador consigo mesmo.
Afinal, que tipo de homens a sociedade e as organizações de trabalho estão fabricando?

REFERÊNCIAS

DEJOURS, Christophe. A Loucura do Trabalho: estudo de psicopatologia do trabalho. 5ª.


ed. São Paulo: Cortez, 1992.
Dicionário Michaelis. CD-ROM. São Paulo: UOL, 2003.
DINIZ, Daniela. A Vida Dura dos Gerentes. Revista Você S.A. 97, p.20-34. São Paulo:
Editora Abril, julho 2006.
MERLO, A.R.C. et al. O Trabalho entre Prazer, Sofrimento e Adoecimento: a realidade dos
portadores de lesões por esforços repetitivos. Psicologia & Sociedade. 15 (1): 117-136,
jan/jun 2003.
RUSSEL, Bertrand. O Elogio ao Ócio. Rio de Janeiro: Sextante, 2002.
TITÃS. A Melhor Banda de Todos os Tempos da Última Semana. Rio de Janeiro: Warner
Chappell, 2001. 1 CD.

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