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BÍBLIA E OBEDIÊNCIA. A QUEM?

[Capítulo do livro ELLENS, J. H. (org.) ((2007). "Text and Community – Essys in Memory of
Bruce M. Metzger", Shefield, England: Shefield Phoenix Press.

Zenon Lotufo Jr.

to the Doctrine of Annihilationism (1995);19


Em 1988, o teólogo anglicano Robert A. Peterson, Hell on Trial: The Case for
conservador John Stott, respeitado pregador e Eternal Punishment (1995).20 Todos estes livros
escritor prolífico, com livros publicados em argumentam mais ou menos elaboradamente
inúmeros países, em diálogo com o seu colega contra o aniquilacionismo. O debate continua.
liberal David Edwards, expôs suas ideias a James I. Packer Evangelical Annihilationism
respeito do “destino dos ímpios”. [EDWARDS, in Review. Disposable in http://www.the-
D. L. & STOTT, J. (1989), Evangelical highway.com/annihilationism_Packer.html,
Essentials – A Liberal-Evangelical Dialogue. accessed in June/17/2006. Este artigo apareceu
Downers Grove, Illinois: Inter Varsity.] Ele originalmente em Reformation & Revival
declarou que havia base bíblica para defender a magazine, Volume 6, Number 2 - Spring 1997.]
doutrina da aniquilação dos não salvos, isto é, a Outro importante teólogo anglicano,
ideia de que não existe um Inferno, com seu James I. Packer, escreveu extenso artigo
sofrimento eterno, destinado aos que não são contestando as ideias de Stott e reafirmando o
beneficiados pela salvação em Jesus Cristo. Para que considera ser a
Stott, a motivação para cuidar do assunto era de verdade bíblica: os ímpios sofrerão o merecido
ordem emocional, embora não se devesse fiar castigo nas chamas do inferno, artigo este que
nas emoções para a busca da verdade. Escreve recebeu intensa divulgação, podendo ser
ele: encontrado com facilidade em sites de
Eu acho o conceito de tormento organizações evangélicas conservadoras.
consciente eterno emocionalmente intolerável e
não compreendo como as pessoas conseguem O episódio fornece oportunidade
conviver com isso sem cauterizar seus interessante para refletirmos sobre algumas
sentimentos ou esfacelá-los com a tensão. Mas questões que considero importantes e que giram
as nossas emoções são um guia instável, não em torno de um eixo recorrente na história do
confiável para nos conduzir à verdade e não pensamento cristão: qual é a suprema autoridade
devem ser exaltadas ao lugar de suprema nas conclusões e decisões que se nos impõem
autoridade em determiná-la ... minha pergunta em situações cruciais da existência? A que ou a
deve ser __ e é __ não o que me diz o meu quem estamos obedecendo nesses momentos?
coração, mas, o que diz a Palavra de Deus?
[Op.cit. pp. 314-315] A Bíblia como autoridade suprema
Tendo em vista a relevância do autor, o Stott e outros teólogos conservadores
artigo suscitou intenso debate, do qual parecem não ver muito problema em afirmar
resultaram inúmeros artigos e diversos livros. que a Bíblia – Palavra de Deus, regra única e
[Livros semipopulares reafirmando a realidade e infalível de fé e prática - deve ser a fonte de
aeternidade do inferno começaram a fluir: Ajith todos os seus conceitos teológicos e de suas
Fernando, Crucial Questions About Hell escolhas morais. Mas os problemas existem e
(1991);13 Eryl Davies, An Angry God? (1991);14 são muitos, a começar pela possibilidade de,
Larry Dixon, The Other Side of the Good News com base nos textos bíblicos, chegar-se a
(1992);15 William Crockett, John Walvoord, conclusões bem diferentes entre si, como o
Zachary Hayes and Clark Pinnock, Four Views ilustram as acesas controvérsias teológicas que
on Hell (1992);16 David Pawson, The Road to permearam a cristandade no correr de toda a sua
Hell (1992);17 John Blanchard, Whatever história, das quais é bom exemplo o debate que
Happened to Hell? (1993);18 David George se seguiu à publicação das ideias de Stott sobre
Moore, The Battle for Hell: A Survey and o aniquilacionismo.
Evaluation of Evangelicals’ Growing Attraction
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No meu modo de ver, a opção de colocar - mas for imposta por leis eclesiásticas e
a Bíblia – ou qualquer outra fonte externa - doutrinárias." (Op. cit., p.14.)]
como autoridade suprema resulta em algo passa a desempenhar o papel característico do
bastante grave, (seja na formulação de ídolo. [Uma abordagem interessante, que
doutrinas, seja) nas decisões morais; priorizar a valoriza os aspectos positivos da Bíblia, ao
obediência à Bíblia é com muita freqüência mesmo tempo em que descarta a interpretação
um empecilho para ouvir e obedecer a Deus literal, é a que Marcus Borg apresenta em
e, talvez, com freqüência maior ainda, um Reading the Bible Again for the First Time,
estímulo para desobedecer-lhe. [Quando me New York: Harper, 2001, e em The Heart of
refiro a obedecer ou desobedecer a Deus estou, Christianity, New York: Harper, 2003.]
evidentemente, associando o aspecto ético ao
epistemológico: não ouvir a voz de Deus resulta
em erros no que se acredita e no que se faz.] A recusa a ouvir
Colocar a Bíblia em segundo plano com relação Há nas considerações de Stott uma
ao Espírito, à voz de Deus falando-nos questão intrigante: até onde sei, trata-se de um
diretamente à consciência, não significa homem bom e compassivo que seria certamente
desvalorizá-la, mas devolvê-la a seu devido incapaz de submeter outro ser humano a um
lugar como uma esplêndida coleção de textos, castigo cruel; no entanto, chega a admitir que
heterogêneos na forma, no conteúdo e no valor Deus o faça, mesmo que por curto tempo, antes
espiritual, que eventualmente apontam para de executar a sentença final da “morte eterna”,
Deus e que, eventualmente, relatam como a voz da aniquilação da alma. Outros teólogos,
de Deus se fez ouvir por determinadas pessoas provavelmente também gente bondosa, podem ir
em determinadas épocas, lugares e situações. ainda além e defender encarniçadamente a idéia
Destaque-se aqui, a palavra “apontam”; tem – que eles encontram, ou julgam encontrar, nas
tudo a ver com a advertência dos sábios: “Não páginas da Bíblia – de que os não salvos
confunda a lua com o dedo que aponta para ela.” sofrerão para todo o sempre uma tortura terrível,
Vistos como “dedos”, meios apontando para inútil e sem esperança, resultado de uma
uma realidade além deles, a maioria dos textos “justiça” divina que, de fato, não passa de feroz
que compõem a Bíblia são preciosos; vistos vingança. A questão é: como explicar essa
como “regra única e infalível de fé e prática”, formidável dissonância? Que tipo de processo
mensagens ditadas por um Deus que não mais mental pode levar um indivíduo
nos fala [“A autoridade da Bíblia se tornou tão presumivelmente razoável e de bons
‘fundamental’ que ela nem mais necessita de sua sentimentos, a recusar-se a ouvir a voz do
fundamentação através da atuação presente e Espírito falando claramente à sua
livre do Espírito. o Espírito que outorgou consciência?
autoridade à Bíblia é praticamente supérfluo, o A busca de uma resposta começa por
ato da inspiração se tornou um fato do passado.” tentar esclarecer um ponto que, para muitas
[BRANDT. H., (1977). O risco do Espírito. pessoas provoca confusão: se o Espírito nos fala
São Leopoldo: Sinodal, p.13.] e, mais grave, diretamente, de que modo ele o faz, ou melhor,
como instrumento de autoridade para que um que “órgão” ou sentido de nossas mentes seria
grupo de homens exerça domínio sobre a mente responsável por ouvir sua voz? A frase de Stott
de outros, impedindo-os de ouvir a voz interior desconsiderando as forças internas que o levam
de Deus, [O dogma da inspiração verbal a sentir grande tensão por se tratar de emoções
subordinou a Bíblia à lei da doutrina. O que, para ele “são um guia, oscilante e pouco
próprio Espírito de Deus foi submetidos a esta confiável para a verdade” exemplifica essa
lei. A insistência com que ainda hoje se confusão, entre outras coisas por dar a entender
conclama à fé na Escritura como fundmanto que a opção pela “verdade” expressa pela Bíblia
doutrinário intocável, revela claramente que se pode ser isenta de emoções. Já desconfiávamos
está consciente do seguinte: O espírito vivo de que não pode. A possibilidade de um raciocínio
Deus representa uma ameaça para qualquer lei puro, livre da interferência dos sentimentos já
da fé, ele ameaça até mesmo a Bíblia, na vinha sendo descartada por pensadores que se
medida em que sua autoridade não consistirt dedicavam ao tema. [Veja-se, por exemplo, o
em seu conteúdo - o Evangelho de Jesus Cristo que escreve Gilles-Gaston Granger,
comentando as funções da razão fria, formal,
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que se desinteressa do objeto: “(E)la é uma Em um livro valioso, [LAZARUS, R. S.
forma sem conteúdo e um mecanismo sem & LAZARUS, B. N., (1994) Passion and
programa”. GRANGER,G-G., (1962) A Reason – Making Sense of Our Emotions.
Razão. São Paulo: Difusão Européia do Livro, Oxford: Oxford University Press.] Richard e
pp. 60-61.] No entanto, a moderna pesquisa Bernice Lazarus tentam dar uma resposta a essa
sobre o cérebro afastou definitivamente, ao que questão. E a análise que eles fazem aplica-se,
parece, a idéia de que possa haver, nas pessoas mutatis mutandis, a alguns aspectos daquilo que
normais, um pensamento puramente racional, Stott escreve sobre o papel das emoções.
livre de qualquer emoção. [É essa a opinião de Os Lazarus iniciam o capítulo intitulado
dois dos mais conceituados pesquisadores “The Logic of Our Emotions”, discutindo a
contemporâneos, os neurologistas Joseph Le maneira como tradicionalmente no Mundo
Doux e António Damásio, Escreve o primeiro: Ocidental temos considerado toda e qualquer
“A ciência cognitiva surgiu recentemente, em emoção como algo que perturba e desencaminha
meados deste século, e costuma ser descrita a razão. Para exemplificar as conseqüências de
como a ‘nova ciência da mente’. Contudo, na tal posição, citam o que escreveu um respeitado
verdade ela aborda um lado do cérebro apenas, e distinto diplomata americano “sobre a decisão
aquele que tem relação com o pensamento, o do presidente Bush de enviar marines para a
raciocínio e o intelecto. A emoção é excluída. E Somália para enfrentar a fome e o caos
a mente não existe sem a emoção. As criaturas generalizados que estavam fora de controle
tornam-se almas de gelo – frias, sem vida, naquele país”.
desprovidas de desejos, temores, tristezas, Não pode haver dúvida de que a razão
sofrimentos ou prazeres.” (LE DOUX, J., (1998) para a aceitação (do público quanto à decisão)
O Cérebro Emocional, Rio de Janeiro: reside primariamente na exposição da situação
Objetiva, p. 34.). Por sua vez, Damásio descreve da Somália pelos meios de comunicação,
o caso de um paciente que, afetado por um sobretudo a televisão... Mas essa é uma reação
tumor no cérebro e pelas conseqüências de uma emocional, não o fruto de reflexão e
cirurgia a que teve de se submeter para removê- ponderação... (Foi) ocasionada pela visão do
lo, conservava perfeitas as faculdades sofrimento do povo morrendo de fome. É uma
intelectuais tais como memória e raciocínio decisão que não estava sob o controle refletido
lógico, mas que se mostrava incapaz de e ponderado.
prosseguir com as atividades normais da vida “O problema com essa afirmação—
porque haviam sido lesadas as áreas do córtex comentam os Lazarus—é que ela joga a emoção
cerebral relacionadas à vida emocional. Esse contra a razão, muito embora a emoção,
paciente, cuja capacidade de raciocinar responsabilizada como sendo a base da
permanecia intacta, não conseguia tomar aceitação do público—simpatia por um povo
decisões, por simples que fossem, porque para que morria de fome—é ela mesma o resultado
fazê-lo precisava do auxílio de um recurso da razão, se bem que não a razão que Kennan
mental com o qual não mais contava: suas gostaria de ter visto ser utilizada. Foi, ele
emoções. [A descrição do caso está sobretudo acredita, um julgamento precário. Mas é
no capítulo intitulado “Um Phineas Gage incorreto ver essa reação como sendo mais
Moderno” em DAMASIO, A. R., (1996). O emocional do que se a decisão tivesse sido não
Erro de Descartes. São Paulo: Companhia das fazer nada. (...) [É] um costume descuidado,
Letras.] embora freqüente, sugerir que, quando
Contudo, se é impossível, como tudo tomamos decisões erradas, elas foram baseadas
indica, um pensamento intocado por emoções, é em emoção, mas quando chegamos a decisões
evidente que certas emoções exacerbadas, corretas, elas foram baseadas somente na
comumente chamadas de “paixões”, tornam razão. [Op. cit., pp. 198-199]
impossível o uso adequado da razão. É evidente o paralelo com o que diz
Será possível estabelecer uma Stott: se optasse por descartar a ideia da tortura
classificação que distinga emoções cujo papel eterna dos não salvos com base no fato de ser
seja positivo na tomada de decisões e sem as “intolerável o conceito” e em total contradição
quais seríamos menos que humanos de outras com a imagem de Deus que Jesus apresenta,
que, ao contrário, podem nos desumanizar? estaria apenas cedendo “irracionalmente” à
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força de suas emoções. Mas parece não lhe vingativa); é compassivo e perdoador mas exige
ocorrer que a opção por restringir-se a “o que a que sangue seja derramado como condição para
Palavra de Deus diz” também tem por base uma perdoar e castiga com torturas eternas os que
(ou mais) emoção . E uma emoção, como não são alcançados por esse perdão.
veremos, muito menos digna de confiança do Em termos jungianos, acompanhando
que a compaixão, que ele considera “um guia Ellens [ELLENS, J. H., (2004). Religious
não confiável para chegar à verdade”. Metaphors Can Kill, in ELLENS, J. H. (Edit.),.
Essa emoção é o medo causado por uma The Destructive Power of Religion. Westpoint,
imagem interior de Deus que o representa como CT: Praeger, Vol. 1, passim.] podemos nos
um ser cujas principais características são o referir a essa imagem como um arquétipo que,
poder e vingatividade. [É certo que, em nível presente no inconsciente coletivo da cultura
conceitual, se elaboram explicações que tentam ocidental (e não apenas nesta), produz em nós a
conciliar a ideia de que Deus é compassivo, tendência a sentir Deus como um ser muito
perdoador e amoroso com doutrinas como poderoso, inflexível e ameaçador, que desperta
aquelas que, como escreve Ellens, representam- em nós, como também acontece frequentemente
no como: “um monstro divino que, quando fica com relação aos pais humanos, sentimentos
um pouco perturbado com algo como nossas ambivalentes, entre os quais predomina o medo.
fraquezas humanas, sai por aí procurando Há pouca dúvida de que a imagem de
alguém para assassinar.” (ELLENS, J. H. (2002) Deus presente em um indivíduo reflete a
Psychological Legitimization of Violence by qualidade da relação que essa pessoa teve com
Religious Archetypes in STOUT, C. (Edit.), seus pais, isto é, os sentimentos que seus pais
The Psychology of Terrorism, Westpoint, CT: despertam nos filhos tendem a ser transferidos
Praeger, Vol. 3, p.156.). O quanto tais para a imagem de Deus. [Veja-se, p. ex.
explicações são absurdas é algo que salta aos RIZZUTO, A.-M. (1979). The Birth of the
olhos de qualquer observador não contaminado Living God. Chicago: University of Chicago
pelo pavor theologicum.] De fato, é difícil Press.; GOOD, J. A., (1999).Shame, Images of
conceber outro fator, que não o medo, que seja God and the Cycle of Violence. Lanham, MD:
capaz de gerar obediência incondicional a uma University Press of America; DAYRINGER, R.
autoridade externa. O exame de como se forma & OLER, D. (Eds.) (2004). The Image of God
no indivíduo a imagem de Deus corrobora o que and the Psychology of Religion. Binghamton,
tenho dito sobre o papel do medo. NY: Haworth Press.
HOFFMAN, L., JONES, T. T.,
A imagem de Deus WILLIAMS, F. & DILLARD, K. S. ( 2004).
A “imagem de Deus” é constituída por The God Image, the God Concept, and
um complexo de crenças das quais, em geral, Attachment. Paper presented at the Christian
temos pouca ou nenhuma consciência. Não Association for Psychological Studies
deve ser confundida com o “conceito de Deus”, International Conference, St. Petersburg, FL.
que pode ser descrito como um conjunto http://www.godimage.com/Papers, accessed in
consciente de ideias que temos a respeito dele. Febr./2006; ROWATT, W. C. &
Naquela sobressai o aspecto afetivo; nesta o KIRKPATRICK, L. A., Two Dimensions of
intelectual. É ao fato de coexistirem na mente Attachment to God and their Relation to
humana que se devem confissões com as que Affect. Journal for the Scientific Study of
ouvi de um pastor: “Eu creio na graça e que Religion 41:4 (2002) 637-651; SPILKA, B.,
Deus me ama incondicionalmente; prego HOOD, JR., R. W. & GORSUCH, R. L., (1985).
frequentemente sobre isso, mas não é o que eu The Psychology of Religion: An Empirical
sinto.” Pelo seu conceito de Deus, este o ama e Approach. Englewood Cliffs, New Jersey:
acolhe; pela sua imagem de Deus, jamais se Prentice-Hall; KIRKPATRICK, L. A., (1997).
sente aprovado, e é esta sensação que realmente An Attachment-Theory Approach to the
lhe domina a vida interior. É bem verdade que, Psychology of Religion in SPILKA, B. &
mesmo no domínio dos conceitos, a teologia McINTOSH, D. N., The Psychology of
cristã conservadora sustenta ideias Religion: Theoretical Approaches. Boulder,
contraditórias entre si: Deus é amor mas Colorado: Westview. ]
também é justiça (entendida como ira
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Existem formas de educar que conduzem eram obedecidos. Resultado: aprendeu a “viver
quase que inevitavelmente a que se desenvolva acima de suas emoções” (p. 15). Ou seja, o
medo dos pais e, consequentemente, também medo do castigo passou a sobrepujar todas as
medo de Deus, medo do qual a pessoa pode não outras emoções, mesmo as espontâneas e
estar consciente mas que é identificável através legítimas que, eventualmente, contrariassem a
de suas atitudes e comportamentos. São formas vontade dos pais. È provável que em tais
nas quais se desenvolve na criança o medo da condições, a criança não apenas deixe de
punição para que ela obedeça sem questionar. expressar o que sente, como também deixa de
É bastante difundido no meio evangélico entrar em contato com seus sentimentos; ela
um método de educação que se descreve como passa a querer o que as autoridades querem, a
“método de Deus” e que, utilizando numerosas gostar do que lhe exigem que goste; seus
citações do Antigo Testamento e linguagem sentimentos mais autênticos lhe causam
piedosa, alegando levar a sério as ordens de ansiedade e são logo reprimidos. Eis aí um
Deus, recomenda o uso sistemático da vara – ou exemplo da “pinoquização ao contrário”, isto é,
outro instrumento do gênero como uma colher de como um menino saudável é transformado
de pau – para punir toda e qualquer em boneco de pau, usando a feliz expressão do
desobediência, por menor ou mais justificada teólogo e educador brasileiro Rubem Alves para
que seja. Todo o método se baseia em uma descrever um triste fenômeno. E tal resultado é
psicologia behaviorista em tudo igual a que se apregoado como um sucesso do método e como
usa no adestramento de animais; ou se usava uma prova da sabedoria dos pais, fruto de sua
porque uma de minhas filhas, especializada obediência à Palavra de Deus.
nessa área, afirma que, hoje em dia, nem com [ Na educação de crianças, nem sempre é
animais se empregam esses processos punitivos. possível evitar algum tipo de punição. Algumas
Para se ter idéia de como funciona esse método, formas de castigo, no entanto, têm efeito apenas
basta mencionar o que escrevem Al e Pat transitório, ou seja, não criam
Fabrizio em um livreto intitulado "Crianças – condicionamentos. Assim, à medida que for
Prazer ou Irritração?" (Under Loving amadurecendo, a criança poderá optar por
Command, publicado originalmente em 1969 continuar ou não a obedecer determinada
sob o título Children – Fun or Frenzy), até imposição paterna. Essa possibilidade de opção
hoje editado e muito lido. Eles contam que, fica descartada quando são criados
certo dia, durante o culto doméstico, um dos condicionamentos baseados no medo.]
filhos pequenos recusou-se entre lágrimas, a Uma conseqüência inevitável dessa
fazer alguma coisa que o pai lhe ordenara. Mais forma de educar, como já apontei acima, é a
tarde, quando a criança já estava dormindo introjeção da imagem de um Deus sem
Sentados, um ao lado do outro, compaixão, pronto a castigar, que não tolera
conversamos e chegamos à convicção de nós é nada que possa parecer desobediência a sua
que não estávamos obedecendo e devíamos Palavra. A consciência, que poderia e deveria
começar a obedecer imediatamente, por amor a ser o “locus” da conexão com o divino, passa a
nosso filho. E assim, o pai foi ao quarto dele e o ser dominada por essa imagem amedrontadora,
acordou. Sentou-o no colo e contou que nós não geradora de um temor que barra a possibilidade
sentíamos paz a respeito do que acontecera. de ouvir a voz do Espírito.
Confessamos ao nosso filho que não tínhamos Seria simplificar demais as coisas
obedecido ao Senhor, o qual desejava que imaginar que apenas a educação em família e
levássemos nosso filho a nos obedecer. O pai somente o castigo físico têm como resultado o
disse que teria de usar a vara da correção. E o medo de desobedecer a autoridades externas, já
fez. Depois, tomou-o em seus braços, confortou- que são vários os fatores que podem levar ao
o, levou-o a fazer o que ele tinha pedido antes, conformismo despersonalizador, destacando-se,
depois colocou-o de volta na cama. dentre eles, a pressão de grupo. De qualquer
[FABRIZIO, A & P. (1972). Crianças – Prazer forma, as experiências em família são sempre
ou Irritação? São Paulo: Sepal, p.14.] Os elementos predisponentes para uma maior ou
autores descrevem como a criança se tornou menor resistência ao conformismo.
dócil em conseqüência de que o Senhor lhes Cabe observar que podem ser
“deu a graça” de usar a vara sempre que não distinguidos dois tipos de obediência: é possível,
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evidentemente, obedecer a ordens externas e schizophrenia appeared in Behavioral Science,
demonstrar adesão às normas de um grupo sem 1956, 1, pp. 251-264. Uma interessante
que interiormente se aceitem tais normas; já o discussão sobre a presença de double binds em
tipo de obediência que aqui nos interessa é a âmbito cristão pode-se ler em COHEN, E.J. &
“aceitação íntima”, ou seja, na qual a atitude Colabs. (1982). Induced Christian Neurosis: An
interior do indivíduo é de concordância com Examination of Pragmatic Paradoxes and the
crenças e comportamentos do grupo. [Ver Christian Faith. Journal of Psychology and
KIESLER,C. A. & KIESLER, S. B., Theology. Spring 1982, Volume 10, No 1.
Conformity. (1969) . Menlo Park, CA: BENOIT, J.-C. (1981). Les Double Liens. (The
Addison-Wesley.] Double Binds). Paris: Presses Universitaires de
Há outro ponto que merece destaque: France traz boa exposição sobre o tema. Ver
quando os métodos de disciplinar se baseiam em também BATESON, G, (2000/1972), Steps to
produzir medo do castigo, ou seja, no uso da an Ecology of Mind. Chicago: University of
força violenta por parte dos educadores, o Chicago Press and WATZLAWICK, P.,
mundo passa a ser percebido pela criança, e BEAVIN, J.H. & JACKSON, D. D., (1967).
depois pelo adulto, em função de relações de Pragmatics of Human Communication. New
poder ; ao aproximar-se de outra pessoa, o que York: W.W. Norton.]
importa a quem passou por uma educação
autoritária é saber se esse outro pode contribuir Se acredito que Deus é essencialmente bom, não
para sua própria sensação de poder, se deve haverá grande problema em duvidar de ou
submeter-se ao controle dela ou, ao contrário, se questionar o que alguns creem que seja sua
pode controlá-la. A fraqueza, e a consequente Palavra. Este problema só surge se acredito que
inferioridade em situações de competição, é ele é autoritário e vingativo. Mas admitir que ele
vista como um defeito fatal ao qual estamos é bom a ponto de ser condescendente com quem
expostos. [Minhas considerações sobre esse não se submete à sua vontade, contrariaria a
tema—educação autoritária e deformação da Bíblia, a sua Palavra, que diz (assim acreditam)
consciência moral—baseiam-se que ele castiga com tormentos eternos no
substancialmente no que diz Peter Fletcher em inferno quem lhe desobedece; se ele é de tal
seu notável livro Emotional Problems. modo vingativo, é altamente perigoso
(London: Pan Books, 1972.)] O que domina sua desobedecer-lhe; questionar o que diz sua
atenção em qualquer ambiente humano é Palavra é desobedecer-lhe e expõe ao castigo.
descobrir quem manda em quem. Como não Então, á altamente perigoso duvidar de que ele
poderia deixar de ser, em suas concepções se vinga com tormentos eternos. Ou seja, vendo
teológicas, o atributo que melhor caracteriza as coisas por esse prisma, corre grande perigo
Deus é o poder; todas as outras qualidades quem acredita que ele é compassivo, perdoador
divinas tais como a justiça e o amor e amoroso. É mais seguro obedecer-lhe. Mas a
subordinam-se ao poder absoluto e são por este, Bíblia diz também que devemos amá-lo de todo
de tal forma contaminadas que podem tornar-se o coração e entregar nossas vidas em suas mãos;
irreconhecíveis. Esse tipo de mentalidade, aliás, e não podemos fazer nada disso com
é o terreno em que vicejam todas as ideologias espontaneidade se, no mais íntimo de nosso ser,
totalitárias. temos medo dele. (Ver o texto anexo Tio
George, o Bom Velhinho)
Duplo vínculo A coexistência com esse conflito interior
A imagem interna de um Deus cruel cria é obtida através do sacrifício de aspectos
também um duplo vínculo [Esta é uma situação importantes da personalidade plena. Obtém-se
criada quando a pessoa é alvo de mensagens um simulacro de paz interior que reduz a pessoa
contraditórias entre si e, por alguma razão, ela àquela “normalidade” a que se referia Maslow
está impedida de metacomunicar, ou seja, de como: “a espécie de doença ou aleijão ou atrofia
discutir o contexto e os pressupostos do que está que compartilhamos com todos os demais e de
sendo comunicado. [The concept of double bind que, portanto, não nos damos conta.”
was proposed in 1956, in a paper signed by [MASLOW, A.H. (1976). The Farther Reaches
Gregory Bateson, Don D. Jackson, J. Haley and of Human Nature. Harmondsworth,
J.H. Weakland: Toward a theory of Middlesex: Penguin, p. 25. ]
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Só discordo de Maslow na excessiva e consciência moral como a citada doutrina das
pessimista generalização. Eu colocaria um penas eternas.
“quase” antes de “todos os demais”. Mas para Mas Whale não está certo se, sob o
ser justo com o autor, é preciso dizer que, alguns conceito de “fantasias privadas”, incluir a
parágrafos antes da frase citada, ele escreve: atuação da força interior que nos impele a
“Somente uma pequena proporção da população repudiar doutrinas perversas como a das penas
humana atinge o ponto de identidade, ou de eternas.
autenticidade, plena humanidade, auto- 2. Tendência a depreciar o histórico e o
realização, etc.” Ou seja, ele admite exceções a factual. Uma tendência que, na verdade é uma
essa espécie de normalidade neurótica a que se forma abusiva e distorcida de recorrer à voz do
referia. Espírito, como se ela tivesse, entre suas funções,
a de substituir o estudo e a reflexão. A Voz não é
A consciência moral e a escuta mensageira de novas informações [Em meu
É preciso reconhecer que não há entender, profecias e outros fenômenos em que
nenhuma solução simples nem definitiva com há aparentes revelações de fatos aos quais quem
relação a reconhecer como, quando e o que os manifesta não teve acesso por meio dos
Deus nos fala. Atribuir à consciência o papel de sentidos comuns, seriam apenas exemplos de
“órgão” dessa escuta envolve uma série de percepção extrassensorial, mesmo porque tais
problemas, mas é a opção a que se chega após fenômenos aparentemente ocorrem em situações
eliminar todas as outras possibilidades porque destituídas de qualquer valor espiritual, das
são fontes externas e inevitavelmente humanas. quais seria exemplo a atuação de videntes e
Estas podem, evidentemente ter o seu valor e sensitivos(as) que revelam fatos sobre a vida dos
devem ser consideradas, mas não podem servir consulentes dos quais não poderiam ter
como autoridade suprema em questões morais conhecimento pelas vias normais. Contudo, na
decisivas na medida em que, nessas questões, maioria das vezes, essas revelações não
obedecer a uma autoridade externa tira do contribuem em nada para o crescimento
indivíduo a responsabilidade e o transforma em psicológico e/ou espiritual de seus
algo menos do que verdadeiramente humano. destinatários.] que nem tem o papel de avaliar
a verdade ou falsidade daquelas que chegam até
Objeções nós. Para isso temos a razão. O que o Espírito
As objeções mais relevantes que são nos transmite é coragem moral e compaixão
costumeiramente levantadas contra a para pensar com a própria cabeça e para
supremacia da “Luz Interior” como instrumento discernir aquilo que é ou não compatível com a
da comunicação do Espírito focalizam, em geral boa nova de que Deus é bom e nos ama.
dois aspectos:
1. Subjetivismo excessivo. “Quando as Deus é bom e nos ama?
fantasias privadas de cada homem pretendem ter A partir de um texto de Eduard Spranger
autoridade absoluta em nome da inspiração [SPRANGER, E. (2nd. ed. enlarged, 1949). Die
divina direta, é bem pequena a distância entre a Magie der Seele. Tübingen), escreve Arnold
Luz Interna e a Escuridão Interna.” escreve o Brecht:
teólogo inglês Se o critério fundamental para o caráter
J.J. Whale. [WHALE, J.J. (1963). Christian autêntico de uma voz exterior, clamando ser a
Doctrine. London: Fontana, p. 16.] Ele de Deus—de um Deus “bom”--, é a sua
certamente tem razão se o que ele chama de concordância com a voz interior, dentro de nós,
“fantasias privadas” são supostas revelações então essa voz [intima é a mais profunda fonte
cujo objetivo é atrair honrarias para quem as de nosso conhecimento sobre o bem e o mal, o
anuncia ou, através do medo que provocam, juiz final. O simples fato de que nos fala parece
alcançar o controle de mentes desavisadas. Mas constituir uma garantia de que, se porventura
é muito difícil saber se o que é hoje tido como existe um Deus todo-poderoso, ele deve ser
fonte confiável de autoridade, não passa de bom.[BRECHT, A., (1965). Teoria Política –
“fantasias privadas” que o tempo transformou Fundamentos do Pensamento Político do
em verdades públicas. Muito provavelmente, Século XX. (Political Theory. The Foundations
esse é o caso de certas idéias que repugnam à of Twentieth-Century Political Thought). Rio de
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Janeiro: Zahar, Vol. II, p. 479. No capítulo em nossas mentes fabricam, acreditamos ter
que discute a função ética da voz interior, chegado à compreensão de aspectos da
Brecht, para dar um exemplo de quanto realidade: por um caminho no campo, seguiam
podemos nos enganar com o que julgamos ser a um cego e seu companheiro. Às tantas, ouvindo
voz exterior de Deus, narra o caso do limpa- um mugido, pergunta o cego de onde vem
chaminés que, trabalhando na casa de um aquele som.
clérigo, chamou pela chaminé seu assistente - É uma vaca, explica o outro.
que, por coincidência, tinha o mesmo nome do - Vaca? Como é uma vaca?
religioso. Quando este ouviu seu nome ampliado - É aquele animal grande que dá o leite.
e ecoado, vindo de cima, caiu de joelhos - Leite? O que é leite?
exclamando: “Fala, Senhor, teu servo escuta.!”] - Aquele líquido branco que a gente
Esse é um argumento lógico e digno de bebe.
atenção. Contudo, neste assunto, não sinto que - Branco? O que é branco?
os argumentos lógicos sejam convincentes. Se - Ora, branco... a cor dos cisnes.
nós não sabemos que Deus é bom muito - Cisne? O que é um cisne?
dificilmente seremos convencidos por - Aquela ave grande, de pescoço torto.
argumentos lógicos. Não é este o local para me - Torto? O que é torto?
estender nesta questão mas é importante deixar - Ora, torto é uma coisa assim, como o
dito que quem lida melhor com ela são as cabo de sua bengala.
epistemologias de corte oriental para as quais o Ao apalpar o cabo da bengala, um
raciocínio conceitual pode ser muito útil até sorriso ilumina o rosto do cego.
certo nível da realidade, mas são um empecilho - Ah! Já sei como é a vaca!
com relação a outros níveis. O essencial aqui é
se dar conta de que o conhecimento baseado na Assim, a segurança que sentimos quando
articulação de conceitos, embora essencial para acreditamos que conseguimos compreender
o domínio do mundo físico, é inevitavelmente algo, é quase sempre uma ilusão porque na
limitado quando se trata de abordar o universo maioria das vezes, o que fizemos foi prender o
dos valores, daquilo que dá sentido da vida objeto em uma teia de conceitos surgidos em
E é fácil cair na armadilha de acreditar determinado contexto cultural e por este
que estamos em contato com a realidade inevitavelmente contaminados, condicionados e
quando, de fato, só estamos de posse de suas distorcidos. Por isso os grandes místicos de
representações. Ou, como escreve Erich Fromm: todas as grandes religiões demonstram pouca ou
Acredito ver - mas vejo apenas palavras; nenhuma apreciação pelos esforços em se
acredito sentir, mas apenas penso sentimentos. abordar os aspectos mais profundos da realidade
A pessoa que se entrega à cerebração é a espiritual através de construções lógicas, as
pessoa alheada, a pessoa na caverna que, à quais, segundo eles precisam ser superadas ou
semelhança do que acontece na alegoria de dissolvidas pela via negativa (Em Latim
Platão, só vê sombras e as toma pela realidade caminho negativo) ou teologia apofática (do
imediata (...) Não obstante, a pessoa Grego apophanai, "dizer não").
interessada não se adverte disso. (...) Quando Rigorosamente falando, a via negativa
ela julga estar apreendendo a realidade, é também descarta a afirmação de que Deus é
apenas o seu eu cerebral que a apreende, ao “bom”, na medida que essa palavra O limita.
passo que a pessoa, o homem todo, seus olhos, Podemos, sim, dizer que Deus não é mal.
suas mãos, seu coração, seu ventre, não Eventualmente, ao dizer que Deus é bom,
apreendem nada – na verdade, ela não podemos ter em mente que isso não o define -
participa da experiência que acredita ser sua. uma vez que definir significa delimitar – mas
[SUZUKI, D. T; FROMM, E. & DE aponta para a forma como ele se relaciona com
MARTINO, R. (1970). Zen Budismo e suas criaturas, forma essa que se torna visível
Psicanálise. (Zen Buddhism and em todos aqueles nos quais sua presença se faz
Psychoanalysis). São Paulo: Cultrix, p.. 127. mais visível, que dele se “intoxicam”.
Grifos de Fromm.] Quando Ellens, por exemplo, escreve :
Esta historinha é uma boa metáfora de Meu pai era, sem exceção e por ampla
como, confiando na rede de conceitos que margem, o melhor homem que eu conheci. Ele
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era a epítome da graça, da paciência e do mais alto,” (Idem. Mais abaixo, volto a tratar
autocontrole. Eu ficaria bem mais satisfeito dessa notável página de Mark Twain.)
comigo mesmo se eu fosse mais parecido com Para Wink, essa dimensão não
ele. (...) Eu facilmente projeto sobre Deus a contaminada pelo Sistema de Dominação revela
imagem e a metáfora que meu pai se tornou em o Ser Humano dentro de nós.
minha mente consciente e inconsciente; e assim, É algo de Deus dentro de nós, “esse
para mim Deus é a epítome da graça, da aspecto do self que traz sobre si a qualidade
paciência e da decência. Há muito na Bíblia moral de ser capaz de funcionar através do ego
que ilumina e certifica isso. Jamais pude nas decisões concretas do dia-a-dia." [Citando
conhecer ou acreditar em nenhum outro tipo de HOWES, E. B., (1971). The Son of Man –
Deus. [ELLENS, J. H., (2004), pp. 203-204.] Expression of the Self, in Intersection and
ele não está certamente afirmando que Deus seja Beyond. San Francisco: Guild for Psychological
igual a seu pai mas que a limitada visão que Studies Press, p. 177. ]
podemos ter do ser supremo nos permite O Ser Humano parece ser codificado
vislumbrar um ser que se assemelha à de um pai com a especificidade da imago Dei em cada
humano cujas atitudes demonstram graça, pessoa, de uma forma não estandardizada
paciência e autocontrole. É o que permite a capaz de infinitas variações sem um padrão
Jesus mostrar o que de mais importante fixo. [Idem.]
podemos conhecer a respeito do Pai quando, por Como se vê, embora preferindo atribuir à
exemplo, nos conta a parábola do Filho Pródigo consciência o papel de representar , mais
(ou do Pai Perdoador). comumente, os valores internalizados da cultura,
Wink considera inevitável pressupor a
A consciência nos torna corajosos existência de algo no interior de cada um de nós
Acompanhando Hamlet e King Richard cuja função é a de “escutar” a voz de Deus. A
III, a maior parte de nós pensa na consciência maneira como Wink se refere a essa força ou
como aquela voz interna cujo principal papel é o impulso apresenta a vantagem de contornar uma
de nos acusar, enchendo-nos de medo. "Na possível objeção: a de que essa voz interna,
maioria dos casos—escreve Walter Wink—a vindo de Deus ou de qualquer outra fonte, não
consciência não é nada mais do que o superego passaria, em última análise de uma interferência
cultural.” [WINK,W., (2002). The Human exógena que privaria ou isentaria a pessoa da
Being: Jesus and the Enigma of the Son of responsabilidade por suas decisões morais. A
the Man. Minneapolis: Fortress, p. 72.] Uma idéia de que o Human Being, como o conceitua
vez que a consciência com tanta freqüência é Wink, atende a essa voz porque ela vem de sua
cooptada pelos valores tradicionais da própria essência e de que essa essência partilha
sociedade, “Jesus não incentiva seus discípulos alguma coisa da essência de Deus, abre caminho
a que deixem que a consciência seja seu guia.” para a possibilidade de conciliar a presença
(WINK, Loc. cit.). Um exemplo da atividade da interna de Deus com o livre arbítrio e a
consciência controlada, no caso, pelos “valores responsabilidade pessoal.
internalizados dos senhores de escravos sulistas” Eliminar de todo o ato verdadeiramente
é o que Wink vê no caso de Huckleberry Finn, moral a possibilidade de interferência externa é
quando este tem de decidir entre denunciar e uma preocupação importante em Tillich. Para
fazer prender seu amigo Jim e, caso não cada um de nós, ouvir o imperativo moral é
denunciasse, arder para sempre nas chamas do atender a sua própria natureza que tende a se
Inferno. Uma vez que o menino, depois de manifestar:
árduo conflito interno, resolve não denunciar o “O imperativo moral é a exigência de nos
amigo, Wink vê aí os indícios da atuação de tornarmos naquilo que potencialmente somos,
uma instância mais elevada no interior do ser uma pessoa dentro de uma comunidade de
humano: pessoas.(...)
“Mas isso deve significar que existe uma O imperativo moral é a exigência de nos
dimensão transcendente que não é socializada tornarmos realmente aquilo que somos em
mas que representa a inerradicável imagem de essência e, portanto, potencialmente. É o poder
Deus em nós. Huck respondeu a esse impulso do ser humano, que lhe é dado pela natureza e
que ele manifestará no tempo e no espaço. Seu
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verdadeiro ser tornar-se-á seu eu manifesto - significa, isto sim, razão autônoma unida com
este é o imperativo moral. E, uma vez que seu sua própria profundidade.[TILLICH, P., (1967).
verdadeiro ser é o ser de uma pessoa em uma Systematic Theology. Chicago: University of
comunidade de pessoas, o imperativo moral Chicago Press, p. 85. ]
envolve isto: tornar-se uma pessoa. Cada ato Não parece difícil perceber que estamos
moral é um ato no qual um eu individual se diante de dois tipos de consciência ou, talvez
revela como pessoa. mais precisamente, de duas diferentes funções
da consciência moral. Ela pode ser – e muito
Portanto, um ato moral não é um ato em
comumente de fato é – o repositório das
obediência a uma lei externa, humana ou
ameaças de que fomos objeto desde os primeiros
divina. É a lei interna de nosso verdadeiro ser,
anos de vida e, nesse caso, atuar como juiz
de nossa natureza essencial ou criada, que
implacável acusando-nos e gerando medo ou
exige que manifestemos aquilo que dela
pode ser a instância interna que nos põe em
decorre. E um ato antimoral não é a
contato com Deus, gerando coragem moral e
transgressão de um ou de muitos mandamentos
compaixão. A primeira é fruto de fatores
minuciosamente estipulados, mas um ato que
autoritários e punitivos presentes na educação e
contradiz a auto-realização de uma pessoa
na cultura; a outra é o resultado do
enquanto pessoa, o que produz desintegração.”
florescimento da personalidade em um ambiente
Paul Tillich, “Morality and Beyond”. London: amoroso, ou de um processo de crescimento
Fontana, p. 12. pessoal libertador, ou mesmo de uma autêntica
Neste mesmo livro, Tillich faz breve histórico conversão. Ambas estão em ação, em diferentes
das idéias sobre consciência e apresenta seu proporções, em cada um de nós de forma que se
próprio conceito de consciência transmoral: torna extremamente importante distinguir
quando é uma, quando é outra que quer fazer
Uma consciência pode ser chamada ouvir a sua voz. Nesse sentido, Peter Fletcher, ,
"transmoral" se ela julga em obediência não a apresenta um critério bastante útil:
uma lei moral, mas de acordo com a sua Com muita frequencia, o que chamamos de
participação em uma realidade que transcende "consciência" é a voz interior daqueles que
a esfera dos mandamentos morais. Uma estabeleceram a lei quando éramos pequenos e
consciência transmoral não nega a esfera trataram nossa desobediência com punição. É
moral, mas é impulsionada para além dela esta falsa consciência que nos faz entreguemos
pelas tensões insuportáveis da esfera da lei. (p. a orgias de auto-elogio e auto-acusação e nos
75). Para Tillich, a transcendência pode se dar faz sentir como santos ou um pecadores, cheios
pelo restabelecimento da moralidade, a partir de orgulho ou de vergonha, em consequência de
de um ponto acima da moralidade, ou pode termos feito algo em conformidade ou em
significar a destruição da moralidade a partir desacordo com alguma regra rígida. (...)
de um ponto abaixo dela. (p. 79) A verdadeira voz da consciência pode ser
Destruição essa que, segundo Tillich, seria distinguida da falsa por este teste: ela nunca
exemplificada por pensadores como Nietzsche fala para nos amedrontar, mas sempre para
e Heidegger, cujas ideias oferecem alguma nos lembrar que o medo é o inimigo que deve
justificativa para que se os considerem ser expulso antes que possamos entrar na
conectados com movimentos antimorais como o posse de nós mesmos. [FLETCHER, Op. cit., p.
fascismo e o nazismo. 31. Ênfase acrescentada]
No entanto, a consciência transmoral não é Ou seja, a verdadeira consciência nos faz
relacionada com clareza por Tillich à lei moral corajosos.
interna de nosso verdadeiro ser. Essa relação é
sugerida com mais nitidez pelo conceito de A consciência de Abraão.
“Teonomia” que ele discute em outra de suas O episódio do quase sacrifício de Isaac
obras: tem lugar privilegiado sempre que se reflete
Autonomia e heteronomia estão enraizadas na sobre a questão da obediência a Deus. A
teonomia, e cada um se perde quando a sua interpretação tradicional e conservadora [De
unidade teonomica se rompe. Teonomia não certa forma acompanhando Tiago 2.21],
significa a aceitação da lei divina imposta à apresenta a passagem como prova da fé do
razão por uma autoridade autoridade mais alta,
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patriarca; sua obediência teria sido testada por ambientes militares, revelando como é fácil para
Deus e ele passou na prova. A versão da Bíblia certos indivíduos que, de resto, são bons
que tenho em mãos, tradução de Almeida vizinhos e bons chefes de família, cometer
Revista e Atualizada – Bíblia de Estudo, atrocidades quando aqueles que ele vê como
acrescenta a seguinte nota explicativa para Gn autoridades lhes ordenam que o façam. [Veja-se
22.1-19: “Abraão se mostra disposto a cumprir MILGRAN, S., (1974). Obedience to
essa ordem divina, e por se haver mantido fiel Authority: An Experimental View. New York:
no momento da prova suprema, Abraão se HarperCollins.]
tornou o modelo de fé e de obediência à palavra Em seu La Fe de Abraham y el Edipo
do SENHOR.” Naturalmente, tem sido uma Occidental, [HINKELAMMERT, F. J.,(1991).
grande dificuldade explicar que esse modelo de La Fe de Abraham y el Edipo OccidentalSan
fé e de obediência não deve ser seguido, ou seja, Jose, Costa Rica: Departamento Ecuménico de
na verdade, não serve de modelo para ninguém. Investigaciones.] Franz Hinkelammert
O problema das diferentes vozes falando através mantém a idéia de que Deus está provando
da consciência coloca-se aqui com agudeza. Em Abraão, mas inverte, com relação à
sua exegese do texto, depois de registrar que o interpretação tradicional, o significado de sair-se
sacrifício humano era prática comum entre os bem no teste. Para Hinkelammert “[U]ma
cananitas em meio aos quais vivia, Walter leitura que leve em conta o contexto, teria que
Russell Bowie escreve que Abraão chegar ao resultado de que a fé de Abraão fica
[V]ia as pessoas ao seu redor oferecendo seus comprovada pelo fato de que ele rechaça o
filhos para mostrar sua fé e obediência a falsos sacrifício de seu filho.” [Op. cit., p. 106.]
deuses. Apesar do tormento que isso Analisando outras passagens na Bíblia, como
representava para o seu amor humano, ele não aquelas em que Deus ordena a Davi que faça o
podia deixar de ouvir uma voz interior senso do povo israelita (II Sam. 24.1) e, depois
perguntando por que ele não devia fazero o recrimina por tê-lo feito (II Cr. 21.7-8), esse
mesmo e, uma vez que esse pensamento parecia autor conclui que Deus espera de suas criaturas
pressionar sua consciência, ele acreditava que que demonstrem maturidade, coragem e
era a voz de Deus. O clímax da história é a compaixão suficientes para se rebelar contra
revelação de que o que a voz de Deus acabaria suas ordens, propositadamente iníquas.
por dizer era algo completamente diferente do Hinkelammert asssim se refere quanto à prova
que Abraão, em sua agonia inicial, havia de Abraão:
imaginado. [BOWIE, W.R., (1952). Exposition Neste caso, a prova consiste em algo que
of The Book of Genesis in Interpreter’s Bible, deveria ser rechaçado para ser aprovado. Deus
Nasville: Abingdon-Cokesbury, Vol. I., p. 643.] exige o sacrifício de Isaac como prova. Se
Bowie não discute um ponto que me Abraão efetivamente o sacrifica, perde a prova
parece crucial: se Abraão prontificou-se a e se revela um homem sem fé. Um homem que
sacrificar Isaac pensando ouvir a voz de Deus, faz o que todos fazem, que cumpre a lei que
mas uma voz que, falando a sua consciência exige esse sacrifício. Seria um homem do seu
provinha de um “Deus de fora” -- o que poderia tempo. Ao renunciar ao sacrifício e rechaçá-lo,
ser identificado porque era a esse Deus que os ele se transforma em um homem de fé frente à
que estavam à sua volta ouviam e a idéia de que lei vigente. Ao fazer o que ninguém faz, ele é o
a Deus agradavam os sacrifícios chegara-lhe por homem da fé para todos os seus descendentes,
meio de seus vizinhos – terá também a ordem de todos os tempos. Aparece o Deus vivente dos
para não matar o filho vindo de fora? Porque se vivos, ao qual entrega o filho através do ato de
este for o caso, se Abraão é um mero cumpridor não sacrificá-lo. [Idem.]
de ordens, não vejo nele nenhum valor moral. A idéia de que Deus espera que o ser
Pessoas assim, além de facilmente humano revele coragem e compaixão a ponto de
manipuláveis, são perigosas porque não antepor-se a ele, está presente também no
costumam recuar no cumprimento do que lhes é pensamento do rabino Harold Kushner
solicitado pelos superiores. [Estudada pelo já conforme ele expõe em seu pequeno e excelente
clássico experimento de Stanley Milgran, a livro Quando Tudo Não É o Bastante
obediência cega à autoridade é um problema que [KUSHNER, H. S., (1990). Quando Tudo Não
se manifesta a todo o momento, sobretudo em É o Bastante. São Paulo: Nobel]. Imaginando
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uma conversa entre o Eclesiastes e Deus em que and Religion. in ELLENS, J. H. (Edit.),. The
o primeiro se queixa de que obedeceu fielmente Destructive Power of Religion. Westpoint, CT:
às ordens de Deus e, mesmo assim, continua se Praeger, Vol. 2, pp.131-153.]
sentindo insatisfeito com a vida: Em nenhum outro lugar encontro esse
O Eclesiastes, ao final de sua fase momento decisivo exposto de forma tão
religiosa, bem pode ter dito a Deus: “Que mais adequada quanto na passagem em que Mark
o Senhor quer de mim? Humilhei-me, dediquei Twain descreve o conflito que enfrenta o garoto
ao Senhor a mais cega obediência, fiz tudo o Huck Finn quando se vê diante das alternativas,
que o Senhor mandou. Por que, então, o Senhor ambas terríveis para ele, de denunciar Jim, o
me nega o sentimento de inteireza, aquela escravo fugido – e condenar o amigo a uma
promessa de eternidade que estive vida de maus-tratos – ou de omitir-se e, como
procurando?” E Deus bem pode ter acreditava em decorrência dos ensinamentos que
respondido: “Que prazer você acha que eu recebera na Escola Dominical, pagar por seu
posso obter com sua humilhação? Você acha pecado nas chamas do Inferno. Não é difícil
que Eu sou tão inseguro que preciso vê-lo imaginar a aflição por que passa o menino: por
rebaixado para me sentir grandioso? Eu um lado, tem bem presente tanto as várias
gostaria que as pessoas parassem de repetir o demonstrações de amizade e carinho que já lhe
que disse à espécie humana em sua infância e dera o amigo quanto a perspectiva de como seria
ouvissem o que lhes digo hoje. Das crianças, e a situação dele se vendido para senhores cruéis;
das crianças em espírito, espero a obediência. por outro, entende que sua propensão para livrar
Mas, vinda de você, a ‘obediência cega’ é só um o companheiro decorre de más inclinações de
outro nome para o fracasso em agir como sua natureza; acredita, pois aprendera na igreja,
adulto e assumir a responsabilidade pela que deixar de denunciar um escravo fugido
própria vida. Quer se sentir íntegro e completo? significa quebra do mandamento “não
Quer sentir que finalmente aprendeu a viver? roubarás” e teria por conseqüência a perdição
Então pare de dizer que ‘só fiz o que o Senhor eterna. Decidido a escrever a carta com a
me mandou’ e comece a dizer: ‘Quer o Senhor denúncia, sente-se aliviado. Mas o alívio dura
goste ou não, pensei muito e é isto que pouco; recorda-se dos bons momentos em
considero certo’.” [Op. cit., p. 74.] companhia de Jim e chega a uma decisão final:
Não resta dúvida de que superar a “Eu procurava suavizar as coisas
obediência cega e imatura é um passo dos mais apresentando-as sob uma luz que me
importantes para o crescimento psicológico e favorecesse, dizendo a mim mesmo que havia
espiritual e Kushner o coloca muito bem nessa sido educado na maldade e, por isso, ninguém
bela passagem. O que talvez precise ser podia me censurar muito; mas havia uma voz
acrescentado é que, ao optar pelo que considera dentro de mim que insistia: ‘Por que não foi à
certo, a pessoa está, sem que normalmente tenha Escola Dominical? Se você a tivesse
disso plena consciência, conciliando sua frequentado, ter-lhe-iam ensinado que as
capacidade de livre escolha com a obediência à pessoas que agem como você agiu com relação
voz interna de Deus, a qual pode ser considerada a esse negro, ardem eternamente no inferno.’
ao mesmo tempo, uma manifestação do mais Este pensamento me deu um calafrio. Estava já
íntimo do seu próprio ser. quase resolvido a orar e a me esforçar para
A meu ver, Abraão só pode ser visto deixar de ser o tipo de menino que eu era e
com o “Pai da fé” se a história do sacrifício passar a ser alguém melhor. Assim, me ajoelhei.
de Isaac for entendida como paradigma de Mas não me ocorriam palavra para orar. Por
um momento decisivo, pelo qual todos que não me ocorriam? Era inútil procurar
aqueles que querem de fato obedecer a Deus ocultar o fato de Deus. E, também, de mim
precisam passar, embora felizmente não de mesmo. Compreendia perfeitamente porque não
maneira tão dramática, no qual superamos – ou me vinham as palavras. Era porque meu
não - todas as forças que nos levam a obedecer coração não procedia honradamente, não
ao “Deus de fora” para obedecer à voz interior procedia de forma limpa, porque jogava
de Deus, falando à nossa consciência. [Já trapaceando. Por fora, eu renunciava a
escrevi sobre isso em outro trabalho: LOTUFO continuar pecando; mas lá no meu íntimo, me
JR., Z. & MARTINS, J. C., (2004). Revenge apegava ao maior de todos os pecados. Eu me
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esforçava para fazer que minha boca dissesse que eu era o melhor amigo que o velho Jim
que eu agiria de forma correta e limpa jamais tivera no mundo, e também o único que
escrevendo à proprietária do negro e contando- lhe restara. Nesse instante minha vista deu com
lhe onde este estava; mas, no mais profundo de o papel que eu acabara de escrever.
meu coração, sabia que isso era mentira, e Ele Minha situação era difícil. Agarrei o papel e
também o sabia. O que descobri então é que fiquei com ele na mão. Eu tremia; tinha que
não se pode orar mentindo. decidir para sempre entre duas coisas e estava
Estava desconcertado com tudo isso até não perfeitamente consciente disso. Meditei um
poder mais. Não sabia o que fazer. Finalmente, momento, segurando a respiração. Disse para
veio-me uma idéia. ‘Vou escrever uma carta - mim mesmo em seguida: ‘Pois bem; nesse caso,
disse a mim mesmo - depois verei se consigo irei para o inferno.’ E fiz o papel em
orar. Foi espantoso como todo aquele peso me pedacinhos.
saiu de cima; senti-me leve como uma pena e Pensamento terrível e palavras terríveis; mas
minha preocupação desapareceu. Peguei papel eu as disse. E continuei firme em minha
e lápis, sentei-me cheio de alegria e de emoção decisão, sequer cogitando em me corrigir.
e escrevi: Afastei da cabeça todo aquele assunto e disse
‘Senhorita Watson: O negro Jim que fugiu se para mim mesmo que reiniciaria minha vida de
encontra aqui, duas milhas abaixo de pecado, que parecia ser a que me cabia, uma
Pikesville, e quem está com ele é o Sr. Phelps. vez que havia sido criado nela e em nenhuma
Este o entregará em troca da recompensa.” outra. Para começar, iria dar um jeito de outra
vez roubar Jim, tirando-o da escravidão; se me
Pela primeira vez em toda a minha vida, senti
desse na telha fazer alguma coisa pior, faria
minha consciência tranquila e limpa de pecado;
também; se tinha entrado na dança, e entrado
compreendi que já podia orar. Não o fiz
para valer, uma má ação a mais ou a menos,
imediatamente mas, deixando de lado o papel,
não ia fazer diferença.”
comecei a pensar..., comecei a pensar que havia
sido uma sorte que as coisas tivessem Mark Twain, “As Aventuras de Huckleberry
acontecido daquela maneira e de como estive Finn” [Twain, M.. The Adventures of
muito perto de me perder e de ir para o inferno. Huckeberry Finn, Cap. 31. http://www.online-
E continuei pensando. Cheguei a repassar em literature.com/twain/huckleberry_finn/31/.
meu pensamento toda a viagem que havia feito Accessedo em 15/02/. Tradução minha.]
rio abaixo; Jim estava a todo o momento diante Parece-me notável o paralelo entre
de meus olhos: de dia e de noite, algumas vezes Abraão e Huck: para obedecer ao que
à luz da lua, outras entre tempestades, enquanto acreditavam ser a vontade de Deus – do “Deus
flutuávamos arrastados pela corrente, de fora”, precisavam sacrificar alguém a quem
conversando, cantando e dando risada. Não sei amavam. Como acontece com outros
bem o que acontecia, mas a verdade é que não personagens importantes, notadamente Paulo, a
conseguia descobrir nenhum motivo que me Bíblia não entra em pormenores sobre o
indispusesse com Jim, muito pelo contrário. inevitável conflito que se passava no interior
Via-o dobrando sua guarda e encarregando-se deles antes dos momentos decisivos; no caso de
da minha, sem me despertar, para que eu Huck, esse conflito está descrito com maestria.
pudesse continuar dormindo; via-o Tanto Abraão—se minha interpretação está
transbordante de alegria quando eu subi na correta—quanto Huck acreditam estar
balsa na noite da neblina, e quando fui buscá-lo desobedecendo a Deus quando, de fato, estão
na ilhota do pântano, naquela região da ouvindo a voz dele falando a suas consciências.
vingança entre as duas famílias, e em outros Ambos necessitam de compaixão e coragem
momentos parecidos. Como ele procurava me para chegar à decisão final de obedecer a suas
agradar, me dizia palavras carinhosas, fazia consciências, com isso desobedecendo ao “Deus
por mim tudo que lhe passava pela cabeça, e de fora”. Quanto a Huck, nada sabemos sobre os
como era sempre bondoso. Me lembrei, rescaldos do episódio; Abraão, aparentemente,
finalmente, aquele dia em que o salvei dizendo termina por perceber a quem, de fato, havia
que a bordo de nossa balsa havia doentes de obedecido ao decidir não sacrificar o filho.
varíola. Como ele ficou agradecido, dizendo
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dimensão transcendente. Em algumas dessas
publicações predomina uma visão biologista em
Quem tem a Vida? que se pretende que genes e seleção natural
Em um de seus livros, o já citado The expliquem tudo aquilo que fazemos ou
Human Being, Walter Wink desenvolve a idéia deixamos de fazer como indivíduos ou como
provocante de que central à missão de Jesus espécie. Noutras, tenta-se atenuar a influência
estava o convite e o desafio para que todos nos da herança genética introduzindo fatores
tornemos plenamente humanos. Apresentando- ambientais que condicionariam a expressão dos
se como modelo de ser humano, Jesus nos genes. Em outras, ainda, o eixo das explicações
chama para que nos desenvolvamos plenamente é a fisiologia do cérebro. Mas também há
na direção daquilo que podemos ser. A ideia de aqueles textos que, passando para um segundo
que temos todos pela frente a missão de nos plano o papel da Biologia, afirmam a primazia
tornarmos no que podemos ser não é da aprendizagem ou das experiências da
propriamente novidade; muitos pensadores, de infância associadas a determinadas pulsões.
diferentes maneiras já expressaram ponto de Pois bem, o que impressiona em todas
vista semelhante. Original em Wink é a ideia de essas posições, é que elas fazem sentido –
que a expressão “Son of the Man”, encontrada dentro de certos limites. As explicações que elas
com frequência nos evangelhos e entendida oferecem são aparentemente válidas para a
tradicionalmente como um título que Jesus grande massa de indivíduos que não
outorga a si mesmo, significa na realidade desenvolveram a coragem de pensar e de agir
“plenamente ou verdadeiramente humano” e por conta própria (ou com teonomia) nem têm a
aponta para um objetivo a que todos podemos e compaixão como princípio-guia de suas vidas.
devemos aspirar. Estes têm vida mas não têm a Vida.
Assim, na visão de Wink , "[T]ornar-se humano
é a tarefa que Deus estabeleceu para os seres Coragem Moral e Autenticidade
humanos. E os seres humanos têm apenas uma Dito isso, pode surgir uma questão: seja
vaga idéia do que significa ser humano. A como for que se conceba a idéia de “salvação”,
humanidade erra em acreditar que é humana. seja ela um estado individual ou coletivo,
(...) Somos apenas fragmentariamente humanos, alcançável nesta vida ou no post-mortem, como
fugazmente humanos, irrregularmente se situam frente a ela essas pessoas que só
humanos.” {Op. cit. p. 26.] pensaram, sentiram e agiram em obediência a
Não são poucos os autores que, de outras forças que não sua própria consciência
diferentes maneiras, expressam opinião sintonizada com a voz interna de Deus? Falando
semelhante: a maioria de nós é apenas um a um grupo de filósofos e teólogos, em um
projeto de ser humano que pode ou não vir a encontro que anualmente se realiza em Genebra,
atingir seu “telos”, a inteireza para a qual foi o teólogo protestante francês Roland de Pury
planejado. A grande maioria, muito sugere uma resposta que, de fato, obedece a uma
lamentavelmente, jamais se aproxima desse lógica inexorável. Refere-se de Pury à angústia
nível de humanização; vive e se move dirigida que lhe causa perceber que uma pessoa a quem
por condicionamentos, medos, ilusões, ambições você estima e respeita e com a qual julgava
mesquinhas que um meio desumano implantou manter relações pessoais, em dado momento
em seu cérebro. Obedecem a tudo menos à voz passou a ser apenas o porta-voz de uma
de Deus falando-lhes no íntimo do ser. E, no ortodoxia política ou religiosa pela qual. foi
entanto, acreditam-se livres e autores do seu envolvido. Daí em diante, não é mais uma
próprio destino, o que torna difícil que pessoa que você tem diante de si, mas uma
verdadeiramente se libertem pois “os sãos não instituição: um movimento, um partido, uma
precisam de médico”. igreja. Já não mais diz “Eu, no fundo, penso...”,
Paralelamente grande quantidade de mas “Eu, como um evangélico comprometido...”
publicações sobre o comportamento humano, Recorrendo à metáfora de um Espírito
acadêmicas ou de divulgação científica, carreia Maligno, diz de Pury que o grande interesse dele
água para os moinhos de uma visão do ser é que representemos um papel, seja ele qual for,
humano na qual não há espaço para o livre bem ou mal representado, mas um papel que
arbítrio, muito menos para a presença de uma esconda nosso verdadeiro eu:
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Pouco importa ao Espírito Maligno, permitem sentir a dor de cada parte do corpo e,
contanto que seja um papel e que o meu eu assim, são essenciais na produção de uma
profundo não esteja nele; contanto que, entre reação adequada.
mim e as coisas boas ou más que eu faço e que Por outro lado, como notam Nouwen,
eu digo, a mentira se tenha introduzido, McNeill e Morrison, “a compaixão não faz parte
separando a minha vida de mim mesmo; que das nossas respostas mais naturais”. [Idem.]
importa ao Espírito Maligno o que eu digo, o Está longe de ser uma reação comum, mesmo
que eu faço, o que eu creio, contanto que eu porque só se manifesta de forma ampla e
esteja alienado e não seja completamente eu irrestrita naqueles que atingiram a Vida.
que o diga, que o faça e que o creia; e que, E obter a Vida não pode ser motivo de
assim, quando a personagem que eu tiver orgulho nem sentimento de superioridade com
representado durante cinqüenta anos for citada relação a ninguém pois isso, é claro, seria o
diante do Tribunal da Verdade, não haja oposto da compaixão.
simplesmente ninguém, porque não terá havido Enfim, sem coragem moral e compaixão
ninguém na minha existência de cristão ou de estamos apenas obedecendo a nossos temores e
ateu, de homem honesto ou de salafrário, de aos humanos que deles se servem para nos
reacionário ou de progressista, ninguém que controlar; vítimas de uma ilusão causada por
fosse inteiramente verdadeiro, que emanasse do esses mesmos temores, acreditamos estar
meu eu autêntico e livre, de um eu sob a obedecendo a Deus. Com coragem moral e
exigência do Espírito. ‘Você representou bem ou compaixão, no mais profundo de nosso ser
mal o seu papel, mas nunca existiu, nunca foi podemos ouvir e obedecer à voz do Espírito e
você mesmo, não o conheço’, dirá o Espírito. encontrar a Vida.
[DE PURY, R., (1964). O Espírito e as Suas
Exigências in Os Direitos do Espírito e as ==++==++==
Exigências Sociais (The Spirit and Its Apêndice.
Exigences in The Rights of the Spirit and the
Social Exigences) anais do V Encontro Tio George, o Bom Velhinho*
Internacional de Genebra. Lisboa: Publicações Eu (Dennis) cresci com uma imagem de Deus
Europa-América.] que se assemelha ao tio George, o Bom
Não há como fugir à conclusão de que Velhinho, tal como descrito por Gerard Hughes:
quem não expressou seu ser mais profundo, seu
ser autêntico, pode ter vivido ou estar vivendo, "Deus era pessoa da família, muito admirado
mas não chegou à Vida. E esta é uma questão de por papai e mamãe, que o descreviam como
coragem moral. alguém muito amoroso, grande amigo da
família, muito poderoso e interessado por todos
Compaixão nós. Ate que um certo dia nós fomos visitar 'tio
Agora, a outra face dessa coragem é a George, o Bom Velhinho'. Ele vive numa
compaixão; quem não a manifesta em sua formidável mansão, é barbudo, carrancudo e
existência, tampouco manifesta a Vida pois, da ameaçador. Não pudemos compartilhar da
mesma forma que a seiva, o sangue e os nervos admiração declarada de nossos pais por essa jóia
integram os órgãos em um sistema maior, assim da família. Ao final da visita, tio George dirigiu-
também é a compaixão que pode integrar cada se a nós:
um de nós na rede por onde flui a Vida. - Escutem, meus queridos - começou ele
Não é preciso dizer que compaixão nada mirando-nos severamente -, quero ver vocês
tem a ver com pena nem é uma “uma simples aqui uma vez por semana. Se vocês deixarem de
benevolência ou uma sensibilidade exagerada”. vir, vou mostrar o que lhes vai acontecer.
[NOUWEN, J. M., McNEILL. D. P. &
MORRISON, D. A. (1998). Compaixão – E então nos levou para baixo, até os porões da
Reflexões sobre a vida cristã. São Paulo: mansão. Era escuro, ia-se tornando cada vez
Paulus, p. 14.]. Tem a ver, isto sim, como indica mais quente à medida que descíamos, e
a etimologia da palavra, com a capacidade de começamos a ouvir barulhos que não pareciam ser
sentir em si mesmo o que sofrem os demais, da deste mundo. As portas do porão eram de aço. Tio
mesma forma como os nervos saudáveis George abriu uma delas:
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- Agora deem uma olhada aí, queridos - disse
ele.
O que se apresentou a nós era uma visão de pesadelo,
com fileiras de fornalhas ardentes atiçadas por
pequenos demônios, que lançavam às chamas aqueles
homens, mulheres e crianças que falhavam em suas
visitas ao tio George ou que não agiam do modo que
ele desejava.
- E se vocês não vierem me visitar, queridos, é
para aí que com certeza vocês irão - disse tio George.
Em seguida, levou-nos de volta escada acima, ao en-
contro de nossos pais. Na volta para casa, enquanto
agarrávamos fortemente as mãos de papai e mamãe,
ela se inclinou sobre nós e perguntou:
- E agora, vocês não vão amar tio George de
todo o coração, de toda a alma, de todo o
entendimento e com todas as suas forças?
E nós, abominando o monstro, respondemos:
- Sim, vamos - porque responder qualquer outra
coisa significaria entrar na fila para a fornalha.
Já desde a mais tenra idade, a esquizofrenia religiosa
se havia instalado, e nós continuamos a dizer ao tio
George quanto o amávamos, quão bom ele era, que
nós queríamos fazer apenas aquilo que lhe agradava.
Agíamos conforme os seus desejos e sequer
ousávamos admitir, ainda que só para nós, que nós o
detestávamos."

* Gerard Hughes, SJ, em "God of Surprises"


(Londres:Darto Longman & Todd, 1985) citado por
Matthew Linn, Sheila Fabricant Linn & Dennis Linn
"Curando Nossa Imagem de Deus" (Campinas:
Verus, 2002).

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