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A VARA DA DISCIPLINA
O novo ministro da educação parece ter voltado atrás quanto a preconizar punição
dolorosa como instrumento para disciplinar crianças. É o que sugere o fato de haver
retirado de circulação o vídeo em que defende a prática. Caso tenha mudado de ideia,
certamente perderá o apoio de grande número de pessoas – sobretudo as cristãs
fundamentalistas – para as quais o uso de castigo físico por meio de uma vara é
exigência divina que não pode ser negligenciada sem incorrer em pecado.
Há pelo menos dois fatores importantes subsidiando essa posição. O primeiro tem por
base passagens bíblicas como “A vara e a disciplina dão sabedoria. Mas a criança
entregue a si mesma vem a envergonhar a sua mãe.” (Provérbios 29.15); “O que retém a
vara aborrece a seu filho, mas o que o ama, cedo, o disciplina.” (Provérbios 13.24). O
uso literal de uma vara, ou algo equivalente (p. ex. “uma colher de pau”), é chamado de
“método de Deus”. Todo o método se baseia em uma psicologia behaviorista em tudo
igual a que se usa no adestramento de animais; ou se usava porque uma de minhas
filhas, especializada nessa área, afirma que, hoje em dia, nem com animais se
empregam esses processos punitivos.
O bombardeio é intenso e repleto de ameaças explícitas quando se trata de convencer os
leitores de que a punição corporal e sistemática é o que Deus quer e requer deles: “O
espancamento é ideia de Deus. – Anuncia Roy Lessin – Ele é quem ordena aos pais que
espanquem seus filhos como uma expressão de amor. O espancamento não é opcional.
É um assunto que o amor não pode fazer transigir. A questão que encaramos como pais
é a seguinte: amamos a Deus o suficiente para obedecer-Lhe, e amamos nossos filhos o
suficiente para trazer a suas vidas a correção do espancamento quando necessária?”
Em um livro que vendeu mais de um milhão de cópias no mundo todo, incluindo o
Brasil, Larry Christenson observa, no capítulo intitulado “A Ordem de Deus para os
Pais”: “Deus afirma que você é responsável pela disciplina de seus filhos. Se você os
disciplina e educa seus filhos de acordo com a Sua Palavra, você terá Sua aprovação e
Sua bênção. Se você falha em fazê-lo, você incorrerá em Sua ira.”
A finalidade básica da “disciplina”, entendida sempre como “castigo”, é obter imediata
e completa obediência por parte da criança. O pano de fundo que dá sentido a essa
forma de educar é a representação de um Deus que castiga e que condena aos tormentos
eternos do inferno, como fica evidente pelo que escreve o Rev. Jack Hyles: “O pai ou a
mãe que espanca a criança protegem-na de ir para o inferno. Provérbios 23:14, ‘Tu lhe
baterás com a vara e livrarás a sua alma do inferno.’ Uma criança que é espancada será
ensinada de que existe um Deus santo que pune o pecado e o erro. Assim, ela aprenderá
a atender à autoridade e a obedecer às leis e às regras. Quando ela ouvir a Palavra de
Deus, obedecerá ao que ela ouvir e aceitará o Evangelho como ele é pregado. O pai ou a
mãe livraram seu filho do inferno ensinando-lhe verdades que só podem ser aprendidas
pela disciplina e pelo uso da vara.”
Toda e qualquer desobediência, por menor ou mais justificada que seja, deve ser
prontamente reprimida, como se lê em um livreto intitulado "Crianças – Prazer ou
Irritação?" publicado originalmente em 1969 e até hoje muito lido. Eles contam que,
certo dia, durante o culto doméstico, um dos filhos pequenos recusou-se entre lágrimas,
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a fazer alguma coisa que o pai lhe ordenara. Mais tarde, quando a criança já estava
dormindo: “Sentados, um ao lado do outro, conversamos e chegamos à convicção de
nós é que não estávamos obedecendo e devíamos começar a obedecer imediatamente,
por amor a nosso filho. E assim, o pai foi ao quarto dele e o acordou. Sentou-o no colo e
contou que nós não sentíamos paz a respeito do que acontecera. Confessamos ao nosso
filho que não tínhamos obedecido ao Senhor, o qual desejava que levássemos nosso
filho a nos obedecer. O pai disse que teria de usar a vara da correção. E o fez. Depois,
tomou-o em seus braços, confortou-o, levou-o a fazer o que ele tinha pedido antes,
depois colocou-o de volta na cama.” Os autores, Anselmo e Patrícia Fabrzio, descrevem
como a criança se tornou dócil em consequência de que o Senhor lhes “deu a graça” de
usar a vara sempre que não eram obedecidos. Resultado: aprendeu a “viver acima de
suas emoções” (p. 15). Ou seja, o medo do castigo passou a sobrepujar todas as outras
emoções, mesmo as espontâneas e legítimas que, eventualmente, contrariassem a
vontade dos pais. É provável que em tais condições, a criança não apenas deixe de
expressar o que sente, como também deixe de entrar em contato com seus sentimentos;
ela passa a querer o que as autoridades querem, a gostar do que lhe exigem que goste;
seus sentimentos mais autênticos lhe causam ansiedade e são logo reprimidos. O casal
Fabrizio relata como “educaram” uma de suas filhas que se mostrava rebelde: depois de
suplicar que Deus a ajudasse na tarefa e sentindo que fora atendida, dispôs-se a usar a
vara seguidamente, enquanto a menina não obedecesse prontamente a suas ordens. A
cada espancamento. Para “ensiná-la a ouvir” falava uma vez e aplicava a vara,
sentando-a em seguida no colo, procurando acaricia-la e confortá-la. O êxito do método
fica evidenciado logo a seguir, segundo a autora, quando a pequena dá graças no almoço
expressando algo como “Obrigada, Senhor, (...) porque não preciso mais tomar todas as
decisões. Estou contente porque eu não sabia mesmo o que devia fazer.” Eis aí um
exemplo da “pinoquização ao contrário”, isto é, de como uma menina saudável é
transformada em boneco de pau, usando a feliz expressão do teólogo e educador
brasileiro Rubem Alves para descrever um triste fenômeno. E tal resultado é apregoado
como um sucesso do método e como uma prova da sabedoria dos pais, fruto de sua
obediência à “Palavra de Deus”.
A citada fala do atual (até quando?) titular da Educação menciona que para ter
resultados, as crianças precisam “sentir dor”. Suponho haver se abeberado em
ensinamentos como: “Alguns pais que dizem que batem nos filhos conseguem poucos
resultados nos aspectos da obediência e das atitudes certas. O problema talvez esteja no
fato de que, quando eles falam que batem, estão se referindo apenas a uma ou duas
palmadas leves. Não é assim que se deve bater, pois isto não produz o efeito desejado.”
(R. LESSIN, R. “Disciplina, um ato de amor”). Ou, então, no que instrui J. R. Fugate:
“As crianças variam quanto ao número e intensidade de pancadas que requerem antes de
se submeterem (...) (Algumas crianças, mais renitentes) ... precisarão receber tantos
golpes que podem resultar marcas ou mesmo vergões. Algumas crianças têm a pele tão
sensível que surgirão vergões ou mesmo machucaduras com bastante facilidade. Os pais
não devem ficar excessivamente preocupados se pequenas lesões como essas resultarem
da sua punição, uma vez que são perfeitamente normais”.
Cabe observar, acompanhando o psiquiatra cristão Ross Campbell (no livro “Como
Realmente Amar Seu Filho, de longe o que de mais saudável pode ser lido na área
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religiosa) que “a vara do pastor, mencionada nas Escrituras, era usada quase
exclusivamente para guia-las e não para espanca-las”.
O segundo fator, estritamente ligado ao primeiro, tem a ver com uma subcultura que
coloca a obediência como alta prioridade. É certo que há lugar para obediência na
educação de filhos; no entanto, uma coisa é procurar impô-la por meio de castigos e
ameaças, sendo percebida pela criança simplesmente como um arbítrio de quem tem
poder sobre ela; outra, bastante diferente, é aquela resultante da percepção de que o que
se está exigindo é o respeito a normas e valores aos quais os educadores também se
submetem ou, eventualmente, quando aos pequenos desagrada a medida, podem, no
entanto, confiar em que os cuidadores estão do seu lado, a seu favor.
A imposição da obediência por meio de força ou de alguma forma de violência, é
prática bastante disseminada no trato com crianças. Tem consequências nocivas e, o
mais das vezes, permanente, tanto para o indivíduo quanto para a sociedade. No que se
refere à pessoa, o dano maior é o que poderíamos chamar de atrofia da personalidade
ou, como já escrevi em outro lugar, de “lobotomia não invasiva”. E, quando o número
de tais pessoas atinge massa crítica, abrem-se as portas para políticas autoritárias ou,
mesmo, totalitárias.
Quando falo em atrofia da personalidade, sirvo-me de um critério que diverge daquele
normalmente utilizado em meios psiquiátricos e psicológicos, e que considera saudável
o indivíduo que não apresenta transtornos enquadráveis nos manuais de diagnóstico, que
não se preocupam em detectar e tratar (Maslow) (
Pode ser útil investigar mais de perto o processo e as consequências envolvidas nesse
apequenamento de um ser humano. E um dos autores que pode nos nessa empreitada é
um psicólogo inglês pouco conhecido, de nome Peter Fletcher. Em seu livro “Emotional
Problema”, de 1972, ele mostra o encadeamento de fatores que resultam

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