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Os princípios da prática analítica com crianças

Cristina Drummond

Palavras-chave: indicação, tratamento, criança, princípios.

As indicações de um tratamento para crianças


Gostaria de partir de uma interrogação em relação às indicações do tratamento
psicanalítico de uma criança. O que leva as crianças ao analista nos dias de hoje? Em nossa
contemporaneidade, quando não é o inconsciente freudiano, como diz Graciela Brodsky,
que ocupa a frente do cenário, será que a clínica com crianças nos traria novas questões a
respeito de seu manejo?
Devemos nos perguntar com J-D. Matet1 quais seriam as condições da transferência
em nossa época, quando as demandas nos confrontam com sintomas sem suposição de
saber ou ainda sem transferência prévia à psicanálise. Sintomas muitas vezes silenciosos,
em relação aos quais o sujeito não pensa em se responsabilizar.
As crianças estão inseridas no mercado como consumidores e nos mostram de
forma evidente, com a ajuda dos objetos que a tecnologia colocou à sua disposição, a
impotência do Outro. Quantas crianças temos recebido com dificuldades de se enturmar,
passando as noites no computador, nas lan-houses, devotadas a uma versão atualizada do
gozo autista? Quantas crianças desinteressadas pelo que se passa na escola e com a atenção
inteiramente tomada pelo mundo virtual? E aquelas diagnosticadas como hiperativas e
portadoras de déficits neurológicos, em número cada vez maior, e cada vez mais
medicadas?
O que a investigação dessa clínica nos traz com toda a força é o desejo do analista
como aquele que vai contra a “criança generalizada”, vai contra tomar o ser falante como
objeto e deixá-lo sem palavra e sem responsabilidade. Ocupando um lugar no discurso
analítico, nos tornamos destinatários do sofrimento da criança, nos oferecendo como seu
complemento a partir do manejo de nosso ato e interpretação.
Miller2 nos diz que se o analista souber ser objeto, não querer nada para o bem do
outro e não ter preconceitos quanto ao uso que se possa fazer dele, o campo das contra-
indicações ao tratamento psicanalítico se reduz enormemente. Não haveria uma contra

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indicação ao encontro com o psicanalista, com a condição de que haja, por parte do sujeito,
um sintoma do qual ele sofre e a partir do qual ele demanda uma análise.
Um outro aspecto importante para o qual Miller nos chama a atenção é o de que o
próprio sentido daquilo que chamávamos tratamento psicanalítico mudou. Assim, se em
muitas situações a psicanálise não seria indicada, novas demandas de tratamento, a partir de
novos sintomas, foram surgindo. Isto porque como os sintomas são estruturados
discursivamente, eles mudam de acordo com as mudanças do Outro simbólico. Esse real
nos leva a ter que responder por essas mudanças.
O que Lacan nos ensinou, e que determina nossa orientação, é que o psicanalista
deve responder ao mal estar na cultura de sua época, ao avanço da ideologia científica e da
tecnologia que gera um mercado globalizado cujo ideal de universalidade não dá lugar à
particularidade de cada sujeito. Se a psicanálise é uma só, temos, no entanto, tratamentos
psicanalíticos de crianças tomadas uma a uma. É nesse sentido que devemos pensar nas
queixas que nos são endereçadas na atualidade e na política da presença e função do
analista em nosso mundo contemporâneo.

Quem receber?
Muitas vezes quando somos procurados para atender uma criança, ficamos sem
saber se é a ela que devemos realmente tomar em análise. Já me ocorreu recusar atender a
criança, já aconteceu que quem ficasse em tratamento fosse a mãe, assim como já recebi
crianças cujas entrevistas funcionaram como uma espécie de passagem para que um dos
pais fizesse sua demanda de análise.
Algumas vezes recebi crianças muito pequenas, de dois ou três anos, com um sintoma
muito localizado (arrancar os cabelos, dificuldades em fazer a digestão, recusa de evacuar,
febres e vômitos sem causas orgânicas) que desapareceu depois de algumas entrevistas.
Crianças neuróticas, certamente, e que sofriam de sua relação com seu Outro materno. Em
várias destas situações, os encontros com a criança foram alternados com encontros com a
mãe para que esta pudesse interpretar, dar palavras ao que se passava com seu filho,
tomando-o como um sujeito separado. Afinal de contas, o sintoma da criança concerne os
pais por estrutura, mesmo que eles o ignorem.

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Certa vez recebi um menino com dificuldades escolares. Ele pôde precisar que se
tratava de uma recusa a fazer cópias. O sentido desse copiar nos remeteu a seu pai, policial
(guarda) que trabalhava com apreensão de traficantes e que havia nomeado seu filho com o
nome de um corredor que havia sobrevivido à morte. Um dia, esse pai me pede uns minutos
de conversa, ocasião em que me fala de sua fobia de chuva. Algum tempo depois seu filho
desenha um guarda-chuva e me diz que aquele desenho, ele iria levar para o pai e que seria
ele quem deveria vir conversar comigo. Realmente, depois desse endereçamento da criança
pude acolher a demanda do pai. O filho, pouco tempo depois se despede, e é o pai quem
fica em análise.
Outras vezes, apesar da mãe trazer uma queixa de um sintoma significativo do filho,
preferi adiar um encaminhamento para a criança e manter a mãe em entrevistas que muitas
vezes se desenrolaram numa análise. Pareceu-me ser importante intervir sobre essa queixa e
sobre a maneira pela qual a criança era falada. Em alguns casos a intervenção junto à mãe
tinha efeitos sobre a criança, em outros, ocorreu o momento em que foi buscado um outro
analista para o filho.
Como tomar essa decisão?A partir de quais princípios poderíamos decidir a respeito
de quem tratar? Como dizer que nessas situações praticamos uma psicanálise lacaniana ou
mesmo uma aplicação dela?
A resposta a esta interrogação é bastante complexa e, no entanto, não podemos
deixar de nos posicionar diante dela. Essa dificuldade decorre do fato de a prática da
psicanálise ser anterior a qualquer teoria e a qualquer regulação, já que a única lei que a
rege é o ato do analista. É justamente esta lei que devemos buscar preservar.
Lacan nos indica que podemos falar de contra-indicação quando a estrutura do
discurso analítico não está colocada. Há contra-indicação quando a estrutura discursiva da
psicanálise é suplantada pela de um outro discurso e o analista não se posiciona no lugar de
agente desse discurso como objeto a. Isto implica em dizer que a indicação ou a contra
indicação de um tratamento é uma questão de ética. Para responder às contra-indicações ao
tratamento psicanalítico lançamos mão do desejo do analista e também de sua
responsabilidade e podemos falar de contra-indicação quando o analista coloca, mesmo que
à sua revelia, por um instante que seja, seu próprio objeto parcial, seu agalma, no paciente
com quem está lidando.

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Nossa prática vai contra a orientação da ciência que não considera os efeitos de
sentido, e ela visa um descolamento das identificações do sujeito com o significante mestre,
introduzindo a falta de sentido no sem sentido ao qual o sujeito está submetido. Tal como já
dizia Eric Laurent por ocasião do XI Encontro do Campo Freudiano em 2000 3, o que
importa é que o ato do analista “produza efeitos significativos para seu paciente”. Para tal é
necessário cuidar da “adaptação do tratamento ao paciente”. Isso implica em ir contra
aquilo de standardisado que cada analista tem “na maneira com a qual suporta as
necessidades de seu ato” e se tornar “o mais disponível possível para se adaptar ao que o
analisante necessita”. De uma certa maneira ele nos aponta que o standard do lado das
patologias do sujeito suposto saber devem ser constantemente tratadas por nós.
E. Laurent nos lembra ainda que é preciso perceber a particularidade da demanda
que nos é dirigida a fim de que nossa prática seja “orientada pelo real em jogo”.

Princípios orientadores de nossa prática


Penso que, a partir da concepção de Lacan do tratamento psicanalítico como
visando incidir sobre o real do gozo, podemos tomar dois princípios como orientadores de
nossa prática psicanalítica com crianças.
O primeiro é o de que só existe uma psicanálise, de que a criança é “um analisante
com plenos direitos”, tal como formularam Rosine e Robert Lefort. Esse princípio indica
que só existe psicanálise quando há um sujeito em questão, sujeito tal como Lacan o
concebeu, como aquele que pode ser representado por um significante para outro
significante. Trata-se, portanto, na análise de uma criança, de uma experiência de
construção do saber inconsciente e para tal é preciso que ela formule sua demanda de saber
sobre seu sintoma.
É importante lembrar que muitas vezes nos deparamos com crianças cujos sintomas
são nomeados pela ciência (caso freqüente nas hiperatividades) ou por seu Outro familiar
ou escolar e não pelo próprio sujeito. Nesses casos temos uma criança na posição de objeto
falado pelo Outro. Fazer com que o sujeito formule sua própria demanda é uma condição
que às vezes leva algum tempo, já que a criança, muitas vezes alienada em seu Outro, não
se reconhece como tendo uma relação de responsabilidade com respeito a seu sofrimento.
Há situações em que a própria relação da criança com a palavra, por estrutura, está

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comprometida. Ainda assim é na posição de tomar a criança como um sujeito que nos
endereça seu sofrimento que nos colocamos.
O segundo princípio que orienta nossa prática está formulado por Lacan em 67 na
sua Alocução sobre as psicoses da criança. Lacan nos diz que há uma ética a ser
sustentada na clínica com crianças e que é aquela de “se opor a que seja o real do corpo da
criança que corresponda ao objeto a”4. O perigo está justamente na situação em que a
criança se reduz a ser objeto dos caprichos da mãe, posição de refém da subjetividade
materna, o que determina um apagamento de sua posição de sujeito.
A oposição com a qual Lacan caracteriza o lugar do analista é a de oposição ao
gozo, oposição ao que “deixa a criança exposta a todas as capturas fantasísticas” e que faz
dela a “realização” da presença e da verdade do objeto na fantasia da mãe5.
Lacan nos lembra, ainda em sua Alocução, que é fundamental que a criança ocupe a
posição de objeto para sua mãe, e é verdade que todo sujeito já foi uma criança objeto do
Outro. O importante é “que a criança sirva ou não de objeto transicional para sua mãe”6
Toda criança passa pela posição de objeto precioso ou de objeto dejeto de seu Outro
materno e separar-se dessa posição é resultado de um processo às vezes longo, outras vezes
impossível.
Ao abordar a relação mãe-criança, Lacan retoma Freud, situando a castração
materna como o cerne dessa relação. Sua tese apresentada no Seminário IV é a de que o que
é determinante para a criança é a relação da mulher que é sua mãe com sua própria falta. É
essa relação que vai orientar o lugar que uma criança pode vir a ocupar no desejo materno.
É o desejo da mãe que Lacan apresenta em oposição ao amor da mãe, tão presente na
clínica dos pós-freudianos. Ele aparece na escrita da metáfora paterna particularizado pelo
Nome-do-pai. A castração do sujeito mãe, enquanto Outro da criança, aponta, ao mesmo
tempo, a falta que funda seu desejo ( -ϕ ) e o objeto que responde a ela no fantasma.
Levar em conta o lugar que o inconsciente materno dá ao objeto criança, que surge
no real, nos orienta quando optamos, por exemplo, em tomar a mãe e não a criança em
tratamento. Criar a oportunidade para que esta mãe fale de seu filho, o recubra com
palavras, dê a ele atributos que sejam inseridos numa ordem fálica, pode ser essencial para
que ele obtenha um estatuto de sujeito. E esta mãe que se apresenta como caprichosa pode,

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a partir de suas próprias palavras articular essa criança à sua falta, operando algo da
separação entre sujeito e objeto criança.
A criança busca encontrar a resposta para a questão do que ela é para o Outro na
decifração da língua materna, e às vezes é preciso que os significantes dessa língua estejam
mais articulados. Entretanto, o desejo da mãe, que o fantasma sustenta, e o gozo por ele
assegurado, participam do impossível de dizer. A criança só pode se aproximar desse
impossível pela via da interpretação do discurso que o recobre. É através do discurso do
Outro do qual a mãe é o primeiro representante pelo fato de introduzir seu filho na demanda
articulada, que o enigma do Outro barrado se atualiza para a criança sob a forma do
mistério de seu desejo ou ainda sob a forma da opacidade de seu gozo. É só quando o
sujeito encontra seu valor na medida fálica do desejo do Outro que ele pode se separar do
lugar de objeto a e alcançar algum grau de liberdade.
Separar mãe e Outro, criança e objeto nem sempre é tarefa fácil, mas é nessa via de
promover a separação do sujeito desse objeto primitivo que ele foi para seu Outro que
nossas intervenções deverão se orientar. Afinal, quando a criança pode produzir seu próprio
sintoma ela vai construir suas ficções, sua própria neurose. O sintoma surge como resposta
ao que não se pode apresentar no inconsciente, no furo de sentido e atesta que a criança não
se encontra mais numa posição de puro objeto.
Nos encontramos também diante de algumas situações traumáticas que levam o
sujeito a ser colocado na posição de objeto do gozo de um outro, agora não mais o Outro
materno e que não deixam de ter efeitos nefastos sobre ele. Tal foi, por exemplo, a situação
de uma menina que foi estuprada, espancada e permaneceu no CTI durante vários dias em
estado de inconsciência. Em seu tratamento ela foi aos poucos dando palavras ao ocorrido
até poder um dia me perguntar o que queria dizer a palavra estupro.
Nessas situações também deveremos avaliar muito bem a maneira de abordar esse
encontro com o real. A questão de se separar outra vez desse objeto que um dia ela foi se
coloca novamente, e é preciso se opor a que a criança corra o risco de se identificar com
ele. A estrutura da criança também aponta diferenças nas formas possíveis de subjetivação
desses encontros traumáticos.
Na verdade deveremos ainda verificar mais de perto as conseqüências desses dois
princípios orientadores para a prática com crianças psicóticas. Com estas crianças mais

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ainda nos deparamos com sujeitos apagados, às vezes precisando se colar a seu Outro para
se apresentarem como vivos. A oposição por parte do analista, então, vai depender de um
cálculo a respeito de que posição ele deverá ocupar para que o sujeito possa se
presentificar. E estar ali, à sua espera.

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1
J-D Matet, Conclusion des Journées d’étude de l’ECF et de l’ELP, in Lettre Mensuelle n. 223, p. 7-8.
2
J.-A. Miller, “Les contre-indications au traitement psychanalytique, in Mental n. 5, julho de 1998, p. 9-17.
3
E. Laurent, “Une séance orientée par le réel”, in La lettre mensuelle n. 188, maio de 2000, p. 14-16, entrevista
publicada primeiramente no boletim Signos del 2000.
4
J. Lacan, Alocução sobre as psicoses da criança, in Outros Escritos, Zahar Ed., 2003, p. 366.
5
J. Lacan, Nota sobre a criança, in Outros Escritos, Zahar Ed., 2003, p. 369.
6
J. Lacan, Alocução sobre as psicoses da criança, in Outros Escritos, Zahar Ed., 2003, p. 366.

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