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A Rotina e a Quimera (quase toda

literatura brasileira é literatura de


funcionários públicos)
Carlos Drummond de Andrade | 28 abr 2014 | Crítica

Durante doze anos, de 1937 a 1945, Drummond foi chefe de gabinete de Gustavo
Capanema, ministro da Cultura do “Estado Novo”, ou seja, do período ditatorial do
primeiro governo Vargas, marcado pela forte atuação do Departamento de Ordem Política
e Social(DOPS) e pela criação da Direção de Imprensa e Propaganda (DIP), o primeiro
responsável por prisões arbitrárias e torturas, o segundo pela censura e pela publicidade
do regime. Em particular, a gestão de Capanema foi caracterizada pela “oficialização” do
modernismo brasileiro, com a cooptação, adesão, aproximação ou termo equivalente de
nomes como Villa Lobos, Oscar Niemeyer e Lúcio Costa, entre muitos outros. A crônica
abaixo passa ao largo de tudo isso – bem como de tudo o que possa ser realmente
moderno em termos de serviço público. Mas não, talvez, da ironia.
Sempre se falou mal de funcionários, inclusive dos que passam a hora do expediente
escrevendo literatura. Não sei se esse tipo de burocrata-escritor existe ainda. A
racionalização do serviço público, ou o esforço por essa racionalização, trouxe
modificações sensíveis ao ambiente de nossas repartições, e é de crer que as vocações
literárias manifestadas à sombra de processos se hajam ressentido desses novos métodos
de trabalho. Sem embargo, não se terão estiolado de todo, tão forte é, no escritor, a
necessidade de exprimir-se, dentro ou fora da rotina que lhe é imposta. Se não escrever no
espaço de tempo destinado à produção de ofícios, escreverá na hora do sono ou da
comida, escreverá debaixo do chuveiro, na fila, ao sol, escreverá até sem papel – no
interior do próprio cérebro, como poetas prisioneiros da última guerra, que voltaram ao
soneto como uma forma que por si mesma grava na memória.
E por que se maldizia tanto o literato-funcionário? Porque desperdiçava os minutos de seu
dia, reservados aos interesses da nação, no trato de quimeras pessoais. A nação pagava-
lhe para estudar papéis obscuros e emaranhados, ordenar casos difíceis, promover
medidas úteis, ouvir com benignidade as “partes”. Em vez disso, nosso poeta afinava a
lira, nosso romancista convocava suas personagens, e toca a povoar o papel da repartição
com palavras, figuras e abstrações que em nada adiantam à sorte do público.
É bem verdade que esse público, logo em seguida, ia consolar-se de suas penas na trova
do poeta ou no mundo imaginado pelo ficcionista. Mas, sem gratidão especial ao autor, ou
talvez separando neste o artista rond-de-cuir [burocrata], para estimar o primeiro sem
reabilitar o segundo.
O certo é que um e outro são inseparáveis, ou antes, este determina aquele. O emprego
do Estado concede com que viver de ordinário sem folga, e essa é condição ideal para om
número de espíritos: certa mediania que elimina os cuidados imediatos, porém não abre
perspectiva de ócio absoluto. O indivíduo tem apenas a calma necessária para refletir na
mediocridade de uma vida que não conhece a fome e nem o fausto: sente o peso dos
regulamentos, que lhe compete observar ou fazer observar; o papel barra-lhe a vista dos
objetos naturais, como uma cortina parda. É então que intervém a imaginação criadora,
para fazer desse papel precisamente o veículo de fuga, sorte de tapete mágico, em que o
funcionário embarca, arrebatando consigo a doce ou amarga invenção, que irá maravilhar
outros indivíduos, igualmente prisioneiros de outras rotinas, por este vasto mundo de
obrigações não escolhidas.
Retire-se tal rotina ao temperamento literário a que me reporto, e cessará sua veia
criadora. Instalado confortavelmente num escritório de capitão de indústria, já não se
produzirá essa inconformidade entre o real e o individual, que tantas vezes gera a obra de
arte. As forças de ação aplicam-se ao objeto imediato, e o homem fabricará as coisas de
uso cotidiano, planejará a competição nos mercados, desprezará tanto o ofício das letras
como as frágeis produções de seus oficiais.
Cortem-se os víveres ao mesmo temperamento, e as questões de subsistência imediata,
sobrelevando a quaisquer outras, igualmente lhe extinguirão o sopro mágico. Há, é claro,
os exemplares da boêmia ou da miséria fecunda, que nos legaram obras imperecíveis. Mas
aqui se trata de certo tipo de criador literário, aquele que não ama velejar por mares
lendários nem ancorar à sombra do botequim: o escrito homem-comum, despido de
qualquer romantismo, sujeito a distúrbios abdominais, em geral preso à vida civil pelos
laços do matrimônio, cauteloso, tímido, delicado. A organização burocrática situa-o,
protege-o, melancoliza-o e inspira-o.
Observa-se que quase toda a literatura brasileira, no passado como no presente, é
literatura de funcionários públicos. Nossa figura máxima, aquela que podemos mostrar ao
mundo como a que mais e desenganadamente aprofundou entre nós os negócios do
coração humano, foi o diretor-geral de contabilidade do Ministério da Viação, Machado de
Assis; e nas suas mãos, como lembra a sra. Lúcia Miguel Pereira: “a pena de burocrata não
foi menos tocante instrumento de trabalho, nem menor penhor de independência e
dignidade do que a ferramenta de operário nas de Spinoza”.
Raul Pompeia, diretor de estatística do Diário Oficial e da Biblioteca Nacional; Olavo Bilac,
inspetor escolar no Rio; Alberto de Oliveira, diretor de instrução no estado do Rio, como
também o foram José Veríssimo e Franklin Távora, respectivamente no Pará e em
Pernambuco; Aluísio Azevedo, oficial-maior no estado do Rio e cônsul; Araújo Porto-Alegre,
cônsul; Mário de Alencar, diretor de biblioteca na Câmara; Mário Pederneiras, taquígrafo
no Senado; Gonzaga Duque, oficial da Fazenda na prefeitura do Rio; B. Lopes, empregado
nos Correios, como Hermes Fontes; Ronald de Carvalho, praticante de secretaria e depois
oficial do Itamaraty; Coelho Neto, diretor de Justiça no estado do Rio; Humberto de
Campos, inspetor federal de ensino; João Ribeiro e Capistrano de Abreu, oficiais da
Biblioteca Nacional; Guimarães Passos, arquivista da mordomia da Casa Imperial; Augusto
de Lima, diretor do arquivo público de Minas; Araripe Júnior, oficial do Ministério do
Império; Emílio de Menezes, funcionário do recenseamento, Raimundo Correia, diretor de
Finanças do governo mineiro em Ouro Preto; Luís Carlos Pereira e Silva, da Central do
Brasil; Ramiz Galvão e Constâncio Alves, respectivamente diretor e chefe de seção da
Biblioteca Nacional; José de Alencar, diretor e consultor da Secretaria de Justiça; Farias
Brito, secretário de governo no Ceará; Lúcio de Mendonça , delegado de instrução pública
em Campanha; Manuel Antônio de Almeida, administrador da Tipografia Nacional e oficial
da Secretaria da Fazenda; Lima Barreto, oficial da secretaria da Guerra (escrevia romances
nas costas do papel almaço, usado, da repartição); João Alphonsos, funcionário da
Secretaria das Finanças em Minas; o grande Gonçalves Dias, oficial da Secretaria de
Estrangeiros… Mas seriam páginas e páginas de nomes, atestando o que as letras devem
à burocracia, e como esta se engrandece com as letras, mesmo através de contato
fortuito, como foi o caso de alguns exemplos citados sem método.
Sem método, escrevo tais coisas pensando nos poetas, nos contistas, nos ensaístas que a
esta hora ainda não sabem o que o são, e lentamente se elaboram na Diretoria de Águas,
no lapse, na Divisão de Fomento da Produção Vegetal. Há que contar com eles, para que
prossiga entre nós certa tradição meditativa e irônica, certo jeito entre desencantado e
piedoso de ver, interpretar e contar os homens, as ações que eles praticam, suas dores
amorosas e suas aspirações profundas – o que talvez só um escritor-funcionário, ou um
funcionário-escritor, seja capaz de oferecer-nos, ele que constrói, sob a proteção da Ordem
Burocrática, o seu edifício de nuvens, como um louco manso e subvencionado.

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