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1, 2016 2

[-] Sumário # 12, vol. 1


EDITORIAL 4

DOSSIÊ ANSELM JAPPE


PROJETO As Aventuras do Sujeito
Nota introdutória, por Pedro Henrique de Mendonça Resende 11
ENTREVISTA com Anselm Jappe 13

NARCISISMO E FETICHISMO DA MERCADORIA 18


Algumas observações a partir de Descartes, Kant e Marx
Anselm Jappe

NARCISO OU ORFEU? 30
Observações sobre Freud, Fromm, Marcuse e Lasch
Anselm Jappe

DA “AURA” DOS ANTIGOS MUSEUS


E DA “EXPERIÊNCIA” DOS NOVOS 65
Anselm Jappe

DOSSIÊ JAMES JOYCE


FORMA, ESTILO, PASTICHE 74
Considerações sobre o Ulysses de Joyce
Raphael F. Alvarenga

HAMLETS DE FARDA NÃO HESITAM 95


Uma leitura materialista do Ulysses
Raphael F. Alvarenga
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PERIFERIA/PARALISIA 141
A figuração do inferno colonial no primeiro Joyce
Cláudio R. Duarte

ARTIGOS
O TRABALHO EM MARX É ONTOLÓGICO, #SQN 158
Crítica categorial da forma limitada da atividade humana
Thiago Ferreira Lion &
Thiago Arcanjo Calheiros de Melo

POR UMA NOVA CRÍTICA DA MÚSICA 199


Primeiras notas
Fred Lyra

ENTRE UMBRAIS E VIRTUALIDADES 219


Mundos possíveis?
Helena Castellain Barbosa de Castro

COMO AGIR COMO SE NÃO SE FOSSE LIVRE 228


Uma defesa contemporânea do fatalismo
Frank Ruda

...

IMPEACHMENT 256
Memória do 1º ato da farsa brasileira de 2016
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Editorial

Após outro longo intervalo, publicamos aqui mais uma edição dupla de Sinal
de Menos.

O mundo do capital segue seu curso de colisão, como diagnosticamos em


números anteriores da revista. De 2014 para cá, passando pelo “golpeachment” de
2016, o Brasil confirma-se na vanguarda dos processos mundiais de retrocesso. A
retomada do poder por uma camarilha de conspiradores e tecnocratas blindados pela
mídia, verdadeiros usurpadores profissionais da pilhagem social, que por uma
década toleraram os aprendizes da rapina sistemática oriundos do meio sindical para
fins de “gestão da barbárie”, só pode nos conduzir agora a uma maior destruição dos
direitos sociais e a um domínio cada vez mais rígido da lógica do mercado – na
verdade, do capital global em fase de esgotamento de sua valorização real.

Um processo de estilhaçamento social para o qual a palavra “golpe” começa a


parecer inadequada, como Paulo Arantes notou ainda há pouco, considerando-se que
tudo foi conduzido aparentemente na mais estrita conformidade das leis. É claro que
com as devidas torções interpretativas de sentido, deixando coexistir lado a lado
casos em que elas se aplicam e não se aplicam, tudo em certo grau dependendo do
casuísmo do bloco de poder mais forte do momento. Por outro lado, parece que o
próprio estado de exceção redefine suas formas quando um ordenamento social que
já o aplicava em certos espaços não é cancelado e suspenso para implantar uma outra
Ordem, dessa vez mais rígida e com um projeto de integração abertamente
autoritário como o de 1964, mas para implantar a rapina e a desintegração social sob
a capa ideológica da “legalidade democrática”, da restauração das “liberdades” e da
“lógica do mercado”. Na consciência social e na opinião forjada pela indústria da
cultura pode até parecer que tudo vai voltando ao normal. Se não estamos
enganados, hoje vivemos algo como uma renaturalização das estruturas fetichistas
do capital. O resultado mais claro disso foi o avanço da direita em todo o país nas
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últimas eleições municipais e a impotência da massa diante da “ponte para o


retrocesso” que vai sendo construída.

Contudo, de maneira mais ou menos prevista após a crise de 2008, o declínio


do preço das commodities, o aumento do déficit fiscal, da frustração de receitas, além
da ampliação insana de pagamentos de juros da dívida pública, o Brasil entra na rota
do desfiladeiro das modernizações retardatárias. A normalidade é pura ideologia.
Não por acaso as reformas arrasa-quarteirão planejadas surgem no momento exato
do agravamento da crise, logo após o novo tipo de golpe palaciano inventado. Da
destruição prometida pela reforma previdenciária à reforma trabalhista, da reforma
do Ensino Médio e do SUS à liquidação geral do patrimônio público até, enfim, a
chamada “PEC do fim do mundo”, o que aparece claro já na superfície é a imposição
do mais puro economicismo, para o aplauso dos mercados. O que é imposto o mais
velozmente possível através de um governo ilegítimo e inimigo do debate público,
mediante a estratégia terrorista-midiática “suave” campeã em indignação seletiva,
um setor comprado por gordas verbas de publicidade, vale lembrar. Um conjunto de
forças conservadoras que insufla uma incontável perseguição antiesquerda, digna
dos dias da Guerra Fria. “Ordem e progresso”: até mesmo o lema positivista da
bandeira foi ressuscitado. Eis aí a nossa contribuição para a renovação da Doutrina
do Choque, tal qual anunciada por Naomi Klein.

Como estamos na periferia, porém, o buraco é sempre mais embaixo e parece


não haver limite para a rapina e a degradação social, bem como para a violência
repressiva que se seguirá, e que no momento, aliás, deve estar sendo preparada. O
ritmo brasileiro daqui para diante parece ser então o de uma espiral paradoxal de
“reformas destrutivas” em doses cavalares, também conhecidas eufemisticamente
como “ajustes neoliberais” e “políticas de austeridade”. Se tudo isso se confirmar,
teremos um claro desmonte do Estado nacional, não evidentemente como sua
superação por formas de democracia direta, participativa e descentralizada, mas
antes como sua anexação quase imediata pelas forças do capital e dos estratos
burocráticos corrompidos. O aumento das disparidades sociais é certo, embora não
esteja fora de cogitação a retomada de investimentos e de um certo crescimento de
tipo “canibal” sobre a força de trabalho e os recursos naturais. Se uma tal
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decomposição social assim se realizar ela também será passível de ser virada
dialeticamente do avesso, prenunciando a ruptura do novo consenso de aço que
renaturalizou o fetiche. Que tipo de lutas e práticas sociais isso suscitará é uma
página inteiramente em branco.

Ocorre que no momento em que as forças produtivas atingem níveis que


poderiam libertar a sociedade não apenas do trabalho excedente, mas do trabalho
abstrato em geral e do sistema produtor de mercadorias como totalidade, mais ela se
enreda nessas formas, mais trabalho ela exige de suas criaturas deformadas, que, por
uma espécie de “encantamento”, como diria Adorno, começam a incorporar
positivamente a lógica do desmanche e da dessolidarização como destino inevitável e
até mesmo como oportunidade de ganhos extraordinários. É que o estado de exceção
inaugura todo tipo de suspensão de regras da civilidade burguesa, incluindo seu
sujeito histórico liberal “responsável”, subjugado pelas formas de um
sobrevivencialismo narcísico e de uma regressão que traz à tona formas de
preconceito e ódio reativo. É assim que a CAPA da revista elaborada por FELIPE
DRAGO, inspirada em desenho do “Proyecto Cabra”, remete aos sonhos malignos de
ódio sem direção que estão sendo destravados. É como se na ausência do grande
Outro uma série de pequenos outros desabrochasse sem pautas, a não ser a da
(auto)destruição. Após a queda do pai e da erosão da Lei, ainda mais corroída pela
acumulação digital e flexível, a massa neoliberalizada pelos fundos “foge para as
colinas”, nas asas de governos conservadores, francamente autoritários ou apenas
austericidas, como se vê em diversas partes (EUA, Ucrânia, Hungria, Turquia,
Filipinas, Tailândia, Egito, Brasil, Grécia, Espanha, França, dentre outros), e isso
sem falar no Estado Islâmico e nas dezenas de regimes monárquicos,
fundamentalistas e ditatoriais espalhados pelo mundo. A incorporação da lógica da
concorrência no caráter e no comportamento por meios tão diversos quanto o
emprego, a mídia e as redes sociais, a escola e a cultura do empreendedorismo só
encontrará seu limite se a objetividade da crise aparecer como crise do sistema do
capital e não deste ou daquele governo isolado. Para isso servirá a teoria crítica que
se acumula à margem da práxis existente, necessária e urgente como momento de
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um longo processo de transição, mas frágil e limitada para as tarefas que despontam
no horizonte.

Esses temas não deixam de comparecer neste novo número de Sinal de


Menos, em que temos dois dossiês: ANSELM JAPPE e JAMES JOYCE.

A revista inicia-se com uma nota explicativa ao DOSSIÊ JAPPE – As


Aventuras do Sujeito – traduzido por Fred Lyra e Pedro Henrique de Mendonça
Resende, aos quais a revista gostaria muito de agradecer publicamente. Partindo da
teoria da Wert-Spaltung (que vem sendo traduzido por “dissociação-valor”, ou
“valor-cisão” [de gêneros]) de Kurz e Scholz (entre outros), ANSELM JAPPE tece as
relações entre fetichismo da mercadoria e narcisismo, que poderia ser interpretado
como o lado subjetivo do primeiro. Em questão – para nós aberta – fica a forma do
eu moderno ou a forma do sujeito em geral (nesse caso, incluindo toda a estrutura
pulsional freudiana). O dossiê reúne primeiramente um pequeno excerto de
ENTREVISTA concedida a um colaborador da editora portuguesa Antígona, em que
o escritor apresenta o projeto de seu livro intitulado As aventuras do sujeito, a ser
publicado na França em 2017. Seguem-se três artigos publicados entre 2012 e 2016
por Jappe, que gentilmente autorizou sua tradução: NARCISISMO E
FETICHISMO DA MERCADORIA – Algumas observações a partir de
Descartes, Kant e Marx; NARCISO OU ORFEU? – Observações sobre Freud,
Fromm, Marcuse e Lasch; e DA “AURA” DOS ANTIGOS MUSEUS E DA
“EXPERIÊNCIA” DOS NOVOS.
O segundo DOSSIÊ, dedicado a JOYCE, inicia-se com dois ensaios corajosos
de RAPHAEL F. ALVARENGA. No primeiro deles – FORMA, ESTILO,
PASTICHE – Considerações sobre o Ulysses de Joyce – o autor expõe alguns
pressupostos para uma leitura crítica e materialista do escritor irlandês,
especialmente dessa obra maior do modernismo literário que continua sendo
o Ulysses. No segundo – HAMLETS DE FARDA NÃO HESITAM – Uma leitura
materialista do Ulysses –, uma crítica refinada desse romance é buscada de acordo
com o trajeto anteriormente apresentado, através de uma série de interpretações de
pontos cruciais em cada capítulo da obra. Tal leitura redescobre o coração pulsante
de sua forma heterogênea, capaz de incorporar estilos os mais variados sem perder
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nada em sua determinação pelo conteúdo social, fundado que está na penetração da
lógica do capital numa sociedade semiperiférica e dependente, com personagens
moldadas e mobilizadas pelo processo, numa espécie de mimese construtiva
exuberante de uma base de vida miserável. E que apenas em sua desolação e
identificação negativa pode suscitar algum desejo de ruptura. O dossiê finaliza com o
artigo de CLÁUDIO R. DUARTE – PERIFERIA/PARALISIA – A figuração do
inferno colonial no primeiro Joyce. O ensaio mostra a evolução do escritor
de Chamber Music a Dubliners, no início do séc. XX, interpretando sua recriação
paródica do Inferno de Dante, especialmente no conto cortante intitulado
“Counterparts”. Temos aí um Joyce mais seco, mais objetivo, mais econômico, mas já
afinado às dissonâncias de uma sociedade neocolonial que delineia incessantemente
uma espécie de “movimento paralítico”: cristalizado entre o mito e a história, o
ensaio de mudança e o seu desaparecimento, soçobrando na mesmice do estado de
exceção irlandês e da abstração real capitalista. De certo modo, os dois dossiês da
revista parecem formar um vínculo subterrâneo na medida em que pensam os
antagonismos estruturais constitutivos do sujeito e do indivíduo modernos.

A revista prossegue com questões relacionadas ao trabalho, à crítica musical e


aos movimentos possíveis na sociedade urbana. No artigo de título irônico – O
TRABALHO EM MARX É ONTOLÓGICO, #SQN – Crítica categorial da forma
limitada da atividade humana – THIAGO FERREIRA LION e THIAGO ARCANJO
CALHEIROS DE MELO destrincham o suposto caráter ontológico da categoria
trabalho em Marx. O artigo traz diversas citações nas quais o revolucionário alemão
deixa entrever uma diferente forma de lidar com tal categoria, concebendo-a como
radicalmente histórica. O texto visa tratar o tema de maneira simples e renovada,
partindo de perguntas como: “regar as plantas é trabalho?”. Tal abordagem tem o
intuito de demonstrar que a atividade materialmente determinada em si importa
menos para sua categorização que sua relação com outras atividades abstratamente
comparadas por meio do mercado, afinal, poucos considerariam regar seu próprio
jardim como sendo trabalho, mas ninguém negaria que um jardineiro que “ganha”
para regar o jardim de outrem está trabalhando. Apesar do esforço em dialogar o
mais amplamente possível, o artigo expõe formulações bastante complexas, todas
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postas a partir do panorama histórico do desenvolvimento das relações mercantis e


da oposição entre realidade e consciência. Esta última reflexão, por sua vez, nos
revela identidades entre a crítica categorial esboçada em Marx - e desenvolvida pela
Crítica do Valor - e aspectos fundamentais da teoria de Hegel.

A seguir, temos o ensaio de FRED LYRA, intitulado POR UMA NOVA


CRÍTICA DA MÚSICA – Primeiras notas, que busca introduzir algumas ideias
para a renovação deste que é, historicamente, um dos principais eixos da crítica da
arte e ideologia: a crítica musical. Inicia com um diagnóstico feito a partir das ideias
do filósofo Paulo Arantes sobre a temporalidade atual da música. No segundo
momento, nos deparamos com uma crítica e análise daquela que parece ser a forma
de escuta predominante no mundo presente: a forma do condomínio. Na sequência,
o texto discute Simbolismo e Sentido, Função e Utilidade onde aparecem algumas
questões fundamentais em torno desses quatro conceitos. Por fim, o artigo sintetiza
algumas diretrizes básicas em relação à posição do personagem ou sujeito que é um
dos eixos da questão: o músico – muitas vezes esquecido em detrimento do objeto
música.

Ao final temos dois ensaios que articulam reflexões sobre um processo de


reversão prática do existente. Em ENTRE UMBRAIS E VIRTUALIDADES –
Mundos possíveis?, HELENA CASTELLAIN BARBOSA DE CASTRO dá um tempero
mais otimista à revista, relembrando as questões lefebvrianas que nascem no seio de
uma “sociedade urbana” em vias de se completar, concentradora que é das mais
agudas contradições do espaço, apontando-nos que o trem desgovernado em que
viajamos pode descarrilar assim que forem ultrapassados certos umbrais teóricos e
práticos. Já no artigo de FRANK RUDA (gentilmente indicado e traduzido por Luiz
Philipe de Caux), COMO AGIR COMO SE NÃO SE FOSSE LIVRE – Uma
defesa contemporânea do fatalismo, o autor baseia-se em Descartes, Kant, Hegel e
Marx – tirante este último, eis a tradição duramente criticada por Jappe – a fim de
oferecer uma abordagem crítica do estado subjetivo hoje predominante: a
indiferença. Suas coordenadas conceituais são elaboradas sistematicamente e é
mostrado em que sentido ela implica, em última análise, uma concepção
problemática e mal compreendida de liberdade. Tendo como pano de fundo essa
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análise, o artigo defende o fatalismo como um meio possível para enfrentar estados
de indiferença e, desse modo, dar um passo da análise crítica à formulação afirmativa
de um princípio de orientação: “age como se não fosses livre”. Se isso é ou não uma
questão plausível, para dizer o mínimo, fica para o leitor julgar e decidir. O fato
menos controverso parece ser que a realidade degradada atual não pode deixar as
pessoas indiferentes ad eternum.
Por isso mesmo a revista termina com a salada de palavras grotescas, colhida e
servida na hora da sessão de admissibilidade do IMPEACHMENT de Dilma, na
Câmara dos Deputados, captada por uma arguta observadora, CAMILA PAVANELLI
DE LORENZI, a qual agradecemos pelo registro da farsa tragicômica do desmanche
nacional.
Em outros termos, e como reforçará nosso segundo volume, o fim do mundo
da mercadoria já chegou para a maioria – talvez não apenas no seu condomínio.

Novembro de 2016.
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NOTA INTRODUTÓRIA
AO DOSSIÊ JAPPE
Projeto As aventuras do sujeito

Este dossiê reúne três artigos publicados entre 2012 e 2016 por Anselm Jappe,
o qual gentilmente autorizou sua publicação. Além dos artigos, o dossiê inclui, como
“prefácio”, o excerto de uma entrevista em que esse teórico apresenta o projeto do seu
livro intitulado As aventuras do sujeito, a ser publicado na França em 2017.
Por meio da crítica de dois clássicos da filosofia moderna, Descartes e Kant, o
primeiro artigo do dossiê expõe a constituição do sujeito moderno, bem como do seu
“outro” necessário: o não-sujeito. A fim de formular uma teoria crítica consistente da
sociedade contemporânea e da difusão de comportamentos narcísicos como
exasperação da mentalidade da concorrência, o segundo artigo debate a relação entre
marxismo e psicanálise, particularmente o modo como Freud foi interpretado por
Fromm, Marcuse e Lasch e as críticas que estes teceram tanto a seus precedentes
quanto a determinados aspectos da sociedade capitalista do século XX. Finalmente,
no último artigo do dossiê – sobre a transformação da função dos museus – Jappe dá
continuidade às reflexões da “Pars ludens” do seu livro Crédito à morte (2011),
referindo-se à (im)possibilidade de realização de uma experiência artística autêntica
no atual contexto de “disneylandização do mundo” e narcisismo.
Os temas deste dossiê foram apresentados em seminários dirigidos por Jappe,
em Paris, nos últimos anos: houve sessões, entre 2012 e 2014, sobre “As aventuras do
sujeito moderno: sociedade de mercado e narcisismo”, na École des Hautes Études en
Sciences Sociales, e, entre 2015 e 2016, sobre “O sujeito moderno entre o fetichismo
da mercadoria e a pulsão de morte”, no Collège International de Philosophie.
Com o pano de fundo teórico formado pela “crítica da dissociação-valor” -
corrente internacional de crítica social baseada em uma releitura original da obra de
Marx -, os artigos deste dossiê consistem em momentos da elaboração de uma teoria
do sujeito moderno. Considerando, por um lado, que a sociedade contemporânea é
dominada pelo que Marx chamou de “fetichismo da mercadoria” e, por outro, que
nela os indivíduos têm tendência a conhecer apenas a si mesmos e a negar a realidade
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exterior, Jappe discute como o narcisismo, na acepção de Freud, poderia ser


interpretado como o lado subjetivo do fetichismo da mercadoria.
Afinal, qual seria o vínculo entre os dois fenômenos? Enquanto concepções
provenientes do “marxismo de caserna” são incorporadas deliberada ou
inadvertidamente a interpretações psicologizantes da sociedade capitalista em crise –
à maneira do ecletismo pós-moderno –, os artigos deste dossiê, por sua vez,
aprofundam o debate acerca da relação entre a teoria freudiana e a crítica radical da
“dissociação-valor”.

Pedro Henrique de Mendonça Resende


Belo Horizonte, setembro de 2016.
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ENTREVISTA
Sobre o projeto As aventuras do sujeito
com ANSELM JAPPE

(ANTÍGONA) O seu livro As aventuras da Mercadoria constitui


uma introdução clara e simples aos fundamentos originais da crítica do
valor. Teciam-se nele algumas reflexões sobre o conceito de “sujeito” e
também uma breve referência ao princípio do valor-dissociação,
desenvolvido por Roswitha Scholz, que defende a necessidade de
pensarmos a relação entre os sexos ao mesmo nível conceptual que a
relação de capital, e de vermos a própria dissociação sexual e o valor
como pressupostos recíprocos. Tem entretanto projectado um novo livro,
intitulado Les aventures du sujet, onde, pelo que sabemos, pretende
averiguar as relações entre o fetichismo da mercadoria e o narcisismo,
fazendo uso de investigações antropológicas e psicanalíticas, e
procurando desse modo aprofundar a constituição histórica do sujeito
moderno e a sua relação destrutiva com o mundo. Pode falar-nos um
pouco desse projecto e em que medida ele prossegue as reflexões
realizadas anteriormente?

(JAPPE) Em As aventuras da Mercadoria (2003), esbocei um quadro


bastante vasto. O seu ponto de partida é constituído por uma análise quase filológica
da obra de Karl Marx, e as categorias da crítica da economia política ocupam nele um
grande espaço. Depois, pareceu-me necessário analisar o lado “subjetivo”, “vivido”,
da sociedade assente no fetichismo da mercadoria, bem como o conceito de “sujeito”.
Por um lado, trata-se de traçar uma genealogia do sujeito, a partir do dado
irrefutável que é o carácter propriamente religioso do capitalismo: a sociedade de
mercado é uma metafísica secularizada. A projeção do poder do homem já não se
limita ao céu ou aos objectos religiosos, mas invadiu a esfera da reprodução diária,
que se tornou opaca: é o trabalho abstrato, indiferente a qualquer conteúdo, que
garante a “síntese social” que liga os indivíduos entre si. É uma forma de socialização
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em que os indivíduos não se encontram directamente, mas tão-só através de uma


mediação autonomizada – o trabalho, representado pelo dinheiro. Mas não se trata
apenas da forma-valor no sentido “económico”. O que caracteriza a época moderna, a
partir do Renascimento, é o instalar progressivo de uma forma separada do seu
conteúdo, de uma forma sem conteúdo. O “sujeito” é a forma que foi chamada a
dominar um conteúdo que se tornou estranho e indiferente. O valor “económico” não
é senão um aspecto particular da forma vazia que se encontra na base da sociedade
capitalista.
A filosofia moderna e, sobretudo, as obras de Descartes, Hobbes, Rousseau,
Kant, Hegel, Schopenhauer, Stirner e Nietzsche, entre outros, podem considerar-se
teorizações da forma vazia e do sujeito que lhe corresponde, bem como fases da sua
formação. É preciso analisar a história como uma história das relações fetichistas,
onde os homens produzem as suas relações sociais sem saberem como, e é preciso
analisar de perto a evolução histórica destas formas fetichistas. Enquanto formas
gerais da consciência, elas não dizem respeito apenas à produção material, mas
também à relação entre o objecto e o sujeito, entre o indivíduo e o mundo, a
constituição quer “transcendental” (Kant) quer psicossocial dos sujeitos, os princípios
de síntese social, as mediações culturais e simbólicas. Isto permitirá ultrapassar de
uma vez por todas o esquema “materialista” que fala de “base” económica e de
“superestrutura” cultural. Este sujeito é estruturalmente masculino, ocidental e
branco; ele projectou para fora de si, enquanto “não-sujeito”, tudo o que parece
ameaçar a sua autonomia, a partir do seu próprio corpo, da mulher e dos povos não
ocidentais, para se identificar ele mesmo – mas apenas o que resta depois destas
expulsões, ou seja, a razão desencarnada – com o papel antes detido por Deus. O
sujeito é sujeito na medida em que interiorizou a necessidade de executar a lógica
sem sujeito do sistema e, sobretudo, o trabalho abstracto; é o que caracteriza o macho
branco, que disso se orgulha. A história da constituição capitalista é a história da
constituição do sujeito, e não a da “dominação” do sujeito. Da constatação deste facto
deriva igualmente uma crítica do conceito de “dominação”, bem como das
reivindicações de “democracia-real” ou “directa” e da “autogestão”, porque estas
pressupõem sempre a existência das formas de dominação pessoais e subjetivas
contra as quais é preciso mobilizar os outros sujeitos. Seria mais necessário,
sobretudo, emanciparmo-nos da própria forma-sujeito.
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Les aventures du sujet será consagrado a confrontar a teoria do fetichismo da


mercadoria com a psicanálise e, sobretudo, com o conceito de “narcisismo”, que tanta
importância ganhou nas últimas décadas, dentro e fora psicanálise. Esta confrontação
será feita, sobretudo, com a “metapsicologia” das últimas obras de Sigmund Freud,
mas também com a escola de Melanie Klein e de Donald Winnicott, com Heinz
Kohut, Béla Grunberger e Alexander Mitscherlich, e com autores contemporâneos
como Dany-Robert Dufour, Charles Melman e Jean-Pierre Lebrun, bem como com
Christopher Lasch e o seu modo pioneiro de utilizar o conceito de narcisismo para
analisar fenómenos sociais, incluindo correntes artísticas e movimentos políticos. O
conceito de “constituição fetichista-narcisista” serve para descrever uma figura
central da modernidade, que também é o ponto da convergência entre o seu aspecto
“objetivo” e o seu aspecto “subjetivo”. A forma vazia de conteúdo, radicalmente
separada do seu mundo e que só pode ter com esse mundo uma relação de sujeição,
realiza-se diariamente no trabalho abstracto, exprime-se ideologicamente, por
exemplo, na ética kantiana e concretiza-se psicologicamente no facto de o narcisismo
se ter tornado a principal psicopatologia do nosso tempo. Trata-se então de
demonstrar que o narcisismo descrito pela psicanálise não é apenas uma patologia
individual, associada a perturbações sobrevindas na primeira infância, mas também
um produto – simultaneamente uma causa – da sociedade fetichista, estando
portanto sujeito à mutação histórica. Deste ponto de vista, a metapsicologia freudiana
não surge como enunciação de um dado ontológico ou biológico, de uma “natureza
humana”, nem, pelo contrário, como simples descrição do homem do tempo de Freud
que já estaria obsoleto na época contemporânea, em que a família clássica, por
exemplo, perdeu muito da sua importância. É necessário que a psicanálise passe a ver
o homem mais como um ser histórico, e admita, portanto, que também o
inconsciente evolui no tempo. Deste modo, Marx e Freud surgirão de novo como
autores essenciais para a compreensão do mundo moderno, mas de uma maneira
muito diferente do “freudo-marxismo” dos anos 60-70 do século passado.
O conceito de “constituição fetichista-narcisista” e da sua crise actual deverá
contribuir para a compreensão de numerosos fenómenos contemporâneos, sobretudo
os que estão ligados à destruição e à autodestruição: criminalidade, toxicomania,
guerras “de baixa intensidade”, kamikaze, etc. A “pulsão de morte” surge então, à
margem de qualquer metáfora, como o ponto final da constituição fetichista-
narcisista, como o desejo desenfreado de acabar com o mundo por parte do sujeito
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vazio. Esta pulsão é menos uma constante biológica do que a última forma de uma
sociedade baseada no trabalho abstrato e que, no mais fundo dela, instalou o nada: o
seu único objectivo é a transformação tautológica do dinheiro em mais dinheiro, e o
mundo inteiro é o material que consome para atingir esse fim. O declínio da
sociedade da mercadoria expressa-se, pois, também na exasperação do narcisismo,
na incapacidade do indivíduo contemporâneo de estabelecer uma verdadeira relação
com o mundo.
Finalmente, esta reflexão sobre o “niilismo real” da sociedade de mercado
pretende ser um contributo para a compreensão do regresso das ideologias do
ressentimento e dos fundamentalismos de toda a espécie, do antissemitismo e do
racismo, do etnocentrismo e da violência sexual. O sujeito moderno, que se identifica
com a forma vazia, precisa de expulsar de si tudo o que não admitir como parte de si
mesmo. Kant, com toda a sua candura, já descrevera este processo, estabelecendo
como fundamento da sua moral uma vontade que não é manchada por nenhum
conteúdo, e que não quer nada senão ela mesma. Os conteúdos concretos recalcados
regressam agora sob formas terríveis. A própria existência de um mundo real,
irredutível à vontade do sujeito, estimula no sujeito narcisista o desejo de eliminar
este mundo que lhe é refractário. A oscilação entre os sentimentos de omnipotência e
de impotência perante um mundo experienciado como radicalmente estranho, e as
tentativas violentas de sair deste círculo fechado são umas das principais
características da constituição fetichista-narcisista. Esta é em si mesma contraditória
e, por conseguinte, dinâmica: tende para uma saída catastrófica, com tentativas de
aniquilamento daquilo que foi prejectado para fora: é a sua “pulsão de morte”. A
razão moderna tem sempre o seu reverso oculto e “irracional”; o marquês de Sade é a
face oculta de Kant. O atomismo social, isto é, a separação radical que existe entre os
membros da sociedade, causada pelo trabalho abstrato quando ele constitui o
princípio de síntese social, dá lugar às fantasias de fusão total que caracterizam o
narcisismo. Tornam-se então visíveis as ligações a fenômenos contemporâneos tão
diversos como o neo-religioso, os desportos radicais, as rave parties, a droga, a
evanescência do corpo, a cultura do “virtual”, mas também a guerra de bandos e os
atentados suicidas (não só islamistas). A “crítica do sujeito” tem sempre, pois, um
duplo sentido: não considera apenas o sujeito em sentido filosófico, mas também o
modo como os “sujeitos” – as pessoas de carne e osso – vivem, no dia-a-dia, a crise da
sociedade do fetichismo da mercadoria. Aliás, na percepção cada vez mais difundida
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do seu próprio corpo como um ser estranho, os níveis do sujeito “transcendental” e


do sujeito “empírico” encontram-se.

[Excerto (páginas 82 a 88) da “Entrevista a Anselm Jappe por um colaborador da


Antígona”. In: JAPPE, Anselm. Conferências de Lisboa. Lisboa: Antígona, 2013.
Pedro Henrique de Mendonça Resende agradece à Editora Antígona por autorizar a
republicação deste excerto, assim como ao Anselm Jappe pela atenção e autorização
para publicar este dossiê].
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NARCISISMO E
FETICHISMO DA MERCADORIA
Algumas observações a partir de Descartes, Kant e Marx1

Anselm Jappe

Fetichismo da mercadoria e narcisismo: é em torno destes dois conceitos e de


suas consequências que vai se articular este texto. Seu pano de fundo teórico é
formado pela crítica do valor, do trabalho abstrato, do dinheiro e do fetichismo da
mercadoria, tal qual ela foi desenvolvida notadamente por Robert Kurz 2 e as revistas
Krisis e Exit!, na Alemanha, e por Moishe Postone,3 nos Estados Unidos, desde o fim
dos anos 1980.
O fetichismo da mercadoria é um conceito introduzido por Karl Marx no
primeiro capítulo de O capital. Pretende-se geralmente compreendê-lo como uma
forma de falsa consciência ou uma simples mistificação. Todavia, uma análise mais

1[As notas de tradução estão entre colchetes].


2 Estão disponíveis as seguintes traduções das obras de Robert Kurz, em francês: Lire Marx. Les
principaux textes de Karl Marx pour le XXIe siècle. Paris: La Balustrade, 2002; Avis aux naufragés.
Chroniques du capitalisme mondialisé en crise. Paris: Lignes/Manifestes, 2005; Critique de la
démocratie balistique. La gauche à l’épreuve des guerres d’ordre mondial. Paris: Éditions Mille et
une nuits, 2006; Vies et mort du capitalisme. Chroniques de la crise. Paris: Nouvelles Éditions
Lignes, 2011. Em Les Aventures de la marchandise. Pour une nouvelle critique de la valeur (Denoël,
2003), eu resumi a critica do valor. Em “Kurz, voyage au coeur des ténèbres du capitalisme”,
publicado na Revue des livres, n. 9, janvier 2013, eu resumi Dinheiro sem valor, o último livro de
Robert Kurz [Foram publicados em português estes livros de Robert Kurz: O colapso da
modernização: da derrocada do socialismo de caserna a crise da economia mundial. São Paulo: Paz e
Terra, 1992; O retorno de Potemkin: capitalismo de fachada e conflito distributivo na Alemanha. São
Paulo: Paz e Terra, 1993; Os últimos combates. Petrópolis: Vozes, 1997; Com todo vapor ao colapso.
Juiz de Fora: Editora UFJF - PAZULIN, 2004; Razão sangrenta: ensaios sobre a crítica
emancipatória da modernidade capitalista e de seus valores ocidentais. São Paulo: Hedra, 2010;
Dinheiro sem valor: linhas gerais para uma transformação da crítica da economia política. Lisboa:
Antígona, 2014; Poder mundial e dinheiro mundial: crônicas do capitalismo em declínio. Rio de
Janeiro: Ed. Consequência, 2015; o livro e o texto de Anselm Jappe estão disponíveis em português:
As aventuras da mercadoria. Para uma nova crítica do valor. Lisboa: Antígona, 2006 e “Viagem ao
coração das trevas” do capitalismo. Revista Crítica Marxista, n. 42. São Paulo: Editora da UNESP,
2016, p. 113-123].
3 A tradução brasileira da sua obra principal, Tempo, trabalho e dominação social. Uma

reinterpretação da teoria crítica de Marx [1993], foi publicada pela Boitempo (2014). Além dessa
obra, em francês também está disponível POSTONE, Moishe. Critique du fétiche capital. Paris:
Presses Universitaires de France, 2013.
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aprofundada4 demonstra que se trata de uma forma de existência social total que se
situa a montante de toda separação entre reprodução material e fatores mentais: ela
determina as próprias formas do pensamento e do agir. O fetichismo da mercadoria
compartilha estes traços com outras formas de fetichismo, tal como a consciência
religiosa. Ele poderia, assim, ser caracterizado como uma forma a priori.
O conceito de forma a priori evoca evidentemente a filosofia de Immanuel
Kant. Todavia, o esquema formal que precede toda experiência concreta e por sua vez
a modela, aqui em questão, não é ontológico, como em Kant, mas histórico e sujeito à
evolução. As formas dadas a priori, nas quais se deve representar necessariamente
todo conteúdo da consciência, são, para Kant, o tempo, o espaço e a causalidade. Ele
concebe estas formas como inatas a todo ser humano, sem que a sociedade ou a
história desempenhem nenhum papel. Seria suficiente retomar esta questão, mas
retirando das categorias a priori seu caráter atemporal e antropológico, para chegar a
conclusões próximas da crítica do fetichismo da mercadoria. O fato de a percepção do
tempo, do espaço e da causalidade variarem fortemente nas diferentes culturas do
mundo foi notado mesmo por certos kantianos.5 Entretanto, não se trata apenas do
conhecimento, mas também da ação. O fetichismo da mercadoria do qual fala Marx, e
o inconsciente do qual fala Sigmund Freud, são as duas formas principais que foram
propostas, após Kant, para dar conta de um nível de consciência do qual os atores não
têm uma percepção clara, mas que, em última instância, os determina. Mas,
enquanto a teoria freudiana do inconsciente foi amplamente aceita, a contribuição de
Marx para compreender a forma geral da consciência restou como a parte mais
desconhecida da sua obra.6 Com as fórmulas do “fetichismo da mercadoria” e do
“sujeito automático”, Marx lançou as bases de um inconsciente de caráter histórico e
submisso à mudança, ao passo que o inconsciente de Freud é essencialmente
receptáculo de constantes antropológicas, quiçá biológicas. Em Freud, a questão é
sempre a relação entre um inconsciente tout court e uma cultura tout court, e, para
ele, esta relação não mudou muito desde a época da “horda primitiva”. Na sua teoria,
não há lugar para a forma fetichista, cuja evolução forma precisamente a mediação
entre a natureza biológica, enquanto fator quase invariável, e os eventos da vida
histórica. As relações entre o a priori de Kant, o inconsciente de Freud e o fetichismo

4 Eu posso apenas indicar as minhas Aventuras da mercadoria, op. cit.


5 Porexemplo, por Ernst Cassirer na sua Filosofia das formas simbólicas.
6 É necessário acrescentar ainda a obra de Durkheim, na qual as “representações coletivas” são

igualmente uma tentativa de descrever os a priori sociais.


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de Marx foram raramente objeto de pesquisas aprofundadas. Devemos tentar operar,


em certo sentido, uma unificação dessas abordagens, mas sem negligenciar as suas
grandes diferenças e, eventualmente, os seus antagonismos – sobretudo entre Kant,
que anunciava esta nova forma de consciência, e Marx, o seu primeiro crítico bem
acabado. Geralmente, compreende-se por “sujeito” o simples fato de que
necessitamos sempre de um suporte humano da ação e da consciência – mas esta
definição genérica não explica nada. O que nomeamos habitualmente “sujeito” não é
idêntico ao ser humano, ou ao indivíduo: ele constitui uma figura histórica que
apareceu não faz muito tempo.
O que é, então, o “sujeito”? Qual foi a sua história? É possível escrever uma
história das constituições psíquicas paralela à história das formas de produção, e de
compreender as suas relações, para chegarmos a uma compreensão da “forma social
total”?
Não se trata aqui de estabelecer os vínculos diretos entre as formas de
pensamento – como, por exemplo, os grandes sistemas de filosofia – e as relações das
classes e de outros grupos sociais, como fazia o “materialismo histórico”. Este,
invariavelmente, via, em quase todo pensamento entre o século XVII e o XIX, uma
expressão da “ascensão da burguesia” e de suas aspirações a se liberar da dominação
feudal e clerical. Esse gênero de análise não é falso, e ele constantemente permitiu a
obtenção de resultados importantes. Mas o que nós propomos aqui concerne a outro
nível – outra “camada geológica” – da história da sociedade burguesa. Trata-se de um
nível de análise que toca a constituição do sujeito e os seus aspectos psicológicos
profundos, na esperança de que se possa obter um dia uma história “materialista” da
alma humana: “materialista” não no sentido de pressupor uma preeminência
ontológica da produção material ou do “trabalho”, mas no sentido de não conceber a
esfera simbólica como autossuficiente e autorreferencial.
As obras de Descartes e Kant, Sade e Schopenhauer (e vários outros) podem
ser consideradas como etapas na instituição do narcisismo e do solipsismo modernos,
em escala social. Eles são “sintomas” da instauração de uma nova constituição
fetichista que é, ao mesmo tempo, “subjetiva” e “objetiva”, forma de produção e
forma de vida cotidiana, estrutura psíquica profunda e forma do vínculo social. De
fato, a formação do sujeito moderno, a difusão do trabalho abstrato, o nascimento do
Estado moderno e várias outras evoluções se desenrolaram em paralelo, ou, melhor
dizendo, não passam de diferentes aspectos do mesmo processo. Neste processo não
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existe hierarquia predeterminada dos fatores, e nenhum “deriva” unilateralmente do


outro.

Um mau sujeito

A forma-sujeito não é uma invariante da vida humana, como é o indivíduo no


sentido biológico. O sujeito é uma construção cultural devida a processos históricos.
Todavia, sua existência é bem real. Não se trata de um erro de interpretação, como
gostariam o estruturalismo e a teoria dos sistemas sociais. Uma diferenciação nítida
entre o sujeito (do conhecimento, da vontade) e o objeto não ocorre por “si” mesma e
não existiu antes do nascimento da forma-sujeito moderna, que instalou uma
oposição absoluta entre esses dois fatores. É suficiente pensar que, no universo
religioso, o sujeito não é imaginado como o criador autônomo do seu próprio mundo:
o homem crê ser largamente determinado por sujeitos exteriores, como os deuses e os
espíritos. Ele compartilha então parte do status de objeto. Ao mesmo tempo, a
natureza não é concebida como simples objetividade que apenas obedece a leis
sempre iguais, mas é considerada como uma espécie de sujeito, com a sua própria
vontade insondável. Uma diferenciação entre sujeito e objeto se encontra em todas as
culturas humanas, mas as suas formas variam enormemente.
A forma-sujeito configurou-se pouco a pouco a partir do Renascimento, e,
sobretudo, a partir da época do Iluminismo. Mas ela não é apenas contemporânea à
ascensão do capitalismo, ela lhe é consubstancial. Sobre o ponto de partida desta
evolução existe um acordo geral: o sujeito é o resultado da “secularização”. O homem
declarou – em algum lugar entre Pic da la Mirandole e Nietzsche – a sua
independência em face a Deus, ele saiu da sua “menoridade” (Kant), da sua relação
filial com as potências superiores, para se tornar adulto e compreender que é ele
mesmo que constitui e governa o seu mundo.7 Mas será que o homem “secularizado”
deixou realmente para trás a metafísica, ultrapassou, como um estado infantil, a sua
confiança na religião? Ou a metafísica apenas mudou de aspecto e continua a
determinar a nossa vida? O sujeito moderno não seria porventura o resultado da
transformação de formas passadas do fetichismo social? O famoso desencantamento
do mundo foi, sob muitos aspectos, um reencantamento do mundo. A metafísica não

7 “A resposta de Édipo ao enigma da esfinge: ‘É o homem!’ é a informação estereotipada


invariavelmente repetida pelo esclarecimento”. HORKHEIMER, Max; ADORNO, Theodor. Dialética
do esclarecimento. (Fragmentos filosóficos). Rio de Janeiro: Zahar, [1947] 2006, p. 19-20.
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se limita mais ao mundo do além: ela se infiltrou aqui em baixo. Desta forma, ela não
é nem mesmo mais reconhecível como tal, porque, ao invés de constituir um reino à
parte, ela se mesclou às relações cotidianas dos homens, à produção e reprodução das
suas vidas. Desde o início, a formação histórica do sujeito não se desenrolou como
uma ruptura com o cristianismo, mas como a sua continuação por outros meios. O
dualismo radical entre o corpo e espírito, e a desvalorização do corpo em favor das
partes do homem que se comunicam com o transcendente, são talvez os elementos
principais que o cristianismo transmitiu à subjetividade moderna.
Na impossibilidade de podermos apresentar aqui uma história detalhada da
gênese da forma-sujeito, examinemos ao menos dois autores entre os principais
fundadores da modernidade: Descartes e Kant.
Com a distinção rígida entre res extensa e res cogitans, Descartes radicalizou a
separação entre o sujeito, identificado apenas ao pensamento, e o resto do universo,
rebaixado ao status de simples objeto, a partir do próprio corpo do sujeito pensante.
O homem é sujeito apenas enquanto pensa, as faculdades humanas que não são
requisitadas para esta atividade saem do circulo da subjetividade.8 A fronteira entre o
sujeito conhecedor e o objeto conhecido, entre o pensamento e o corpo, entre o
sujeito e o objeto em geral, passa agora através do próprio homem, que começa então
a sua carreira moderna feita de separações e cisões. Para Descartes, não é mais Deus
que é a fonte do conhecimento e o fundamento do entendimento. Este papel é
desempenhado agora pelo eu, e sobretudo por um “eu” abstrato, o resultado de um
processo de redução que o despojou de toda qualidade concreta e individual. Assim,
esse “eu” se encontra com apenas duas qualidades: existir e pensar, em um sentido
totalmente formal, e vazio de determinações concretas. Esse “eu” não tem mais a
mesma substância que o mundo, a res extensa, e são necessárias construções
auxiliares, quase cômicas, em Descartes e seus sucessores (a glândula pineal, o golpe
ao mundo dado no princípio por Deus, ou o Deus relojeiro), para ainda estabelecer
uma ponte entre o sujeito e o mundo dos objetos, que, de outra forma, corriam o risco
de se separarem para sempre. O sujeito nasce, portanto, historicamente com o perigo
de incorrer em um solipsismo radical no qual a existência de um mundo exterior, e
mesmo de outros homens ou de um corpo sensível, não é mais que uma vaga
hipótese. Na filosofia de Descartes, o homem se encontra radicalmente estrangeiro

8 Enquanto o cristianismo reconhecia a possessão da coisa mais importante, de uma alma imortal, a
cada ser humano.
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[étranger] ao mundo. A maior parte das características do sujeito moderno já está


reunida: esse sujeito é solitário e narcísico, ele é incapaz de ter verdadeiras “relações
de objetos” e se encontra em antagonismo permanente com o mundo exterior. Para
estabelecer a filosofia em que uma forma vazia se opõe a um mundo elusivo,
Descartes teve que, segundo as palavras de Edmund Husserl, operar primeiro um
“aniquilamento do mundo” no pensamento. Mas, naquela época, tal aniquilamento
não era mais que uma experiência puramente mental na cabeça de um pensador
adormecido ao lado da sua chaminé...
O discurso se torna mais complexo na época das Luzes, que foi decisiva para a
formação do sujeito moderno. Era também a época do que foi chamado – mas em um
sentido um pouco diferente – a passagem da “sociedade disciplinar” à “sociedade do
controle”, bem exemplificada no tristemente famoso “panopticum” de Jeremy
Bentham. Uma sociedade, portanto, em que a violência exercida do exterior, em
direção aos indivíduos, está em vias de se transformar em autodisciplina. Tudo o que
os dominadores deviam até então impor aos dominados no momento do chicote, os
dominados começavam agora a interiorizar e a executar contra si mesmos. O sujeito
moderno é precisamente o resultado desta interiorização de restrições sociais. Tanto
mais se é sujeito quanto mais se aceita esses constrangimentos e se consegue impô-
los contra as resistências que provêm do seu próprio corpo, de seus próprios
sentimentos, desejos, etc. É a violência contra si mesmo que define em princípio o
sujeito: sobre este ponto, os filósofos da época são extremamente claros. As mulheres,
os “negros”, as crianças, os criados domésticos e geralmente os membros das classes
subalternas são vistos como inferiores justamente na medida em que não chegam a
interiorizar tais constrangimentos. Por exemplo, os criados domésticos, que fogem do
trabalho a partir do momento que ficam sem vigilância, ou as mulheres, que se
deixam governar pelos seus “sentimentos”. Ao mesmo tempo, a forma-sujeito
ultrapassou efetivamente o quadro do sistema feudal, pois ela não está ligada de
forma estrita ao nascimento. Viu-se na sequência que os excluídos, eles também,
poderiam, ao menos individualmente, chegar ao status de sujeito, na condição de
demonstrar uma interiorização dos constrangimentos sociais ao menos iguais àquelas
vividas pelos machos brancos e adultos.
Em seguida, a questão de saber quem é um sujeito e quem não é não depende
mais apenas do pertencimento a certo grupo, mas depende, também, da capacidade
de cada indivíduo de se submeter às exigências da produção e de fazer silenciar em si
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mesmo tudo o que se lhe opõe. Neste contexto, podemos apenas lembrar o fato bem
conhecido de que a palavra “sujeito” significa etimologicamente (e mesmo hoje em
dia, em alguns contextos) o “sujeitado” [sub-jectus]. Tornamo-nos sujeito aceitando a
submissão, e renovando-a todos os dias.
O sujeito é definido como um trabalhador. Não necessariamente como um
operário, mas como qualquer um que submeteu a sua vida às exigências da produção
– não da produção de objetos de uso, mas da produção de “valor”, de valor de
mercado que encontra a sua representação em uma quantidade de dinheiro. É
alguém que modela a sua vida segundo o que demanda a acumulação do trabalho
passado, “morto”. O sujeito é o outro lado do valor de mercado, o seu “portador” vivo.
Portanto ele não é apenas aquele que interiorizou a “necessidade” de trabalhar. É
aquele que interiorizou a mesma indiferença pelo concreto, pelo mundo exterior,
pelos conteúdos, que constitui a essência do trabalho abstrato. Uma forma de vida,
uma vontade sem conteúdo, uma indiferença pelo exterior – é lá que reside o
profundo isomorfismo entre o sujeito moderno e o trabalho abstrato. A recusa
eventual desta denegação de toda relação real com o mundo acaba por desqualificar
um indivíduo dentro da sociedade dos sujeitos e o torna “indigno” de participar do
status de sujeito.
O sujeito moderno se caracteriza por um falso universalismo: aparentemente,
ser um sujeito é uma qualidade puramente formal que caracteriza todos e cada um.
Ora, olhando de perto, descobre-se que se trata de uma forma profundamente
contraditória, que contém uma fratura interna: o sujeito é necessariamente parcial, e
não universal. O sujeito moderno, no sentido pleno do termo – sem mais delongas –,
é somente o macho branco e ocidental. Trata-se de um indivíduo que existe
essencialmente como portador da sua força de trabalho e que sabe subordinar a ela
toda outra consideração, começando por aquelas que se relacionam ao seu corpo.
Tudo que não entra neste esquema é recalcado para fora do sujeito e projetado sobre
outros seres. Por conseguinte, estes não são considerados como sujeitos, ou, em todo
caso, não no sentido pleno do termo, pois as qualidades que lhes são atribuídas são
aquelas consideradas incompatíveis com o status de sujeito. Esses outros sujeitos,
esses sujeitos menores ou não-sujeitos, são, em primeiro lugar, as mulheres e as
populações não-brancas. Os sujeitos estabelecem com eles relações ambíguas, feitas
de repulsão – que pode ir até o desejo de eliminá-los – e de atração, porque eles
representam tudo que o sujeito teve que expulsar de si mesmo para aceder ao status
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de sujeito. Desde o princípio, o sujeito se fundamenta, portanto, no sentido lógico


como no sentido histórico, sobre uma cisão interior. Apenas uma parte da
humanidade é definida como sujeito, e mesmo neste quadro já restrito é apenas uma
parte das qualidades humanas possíveis que constituem o ser-sujeito. Todo o resto –
a partir da própria natureza sensível do homem – vem a formar um “lado obscuro” do
sujeito, onde reina um recalque que suscita o medo, justamente por causa da sua
existência separada. O sujeito se sente o tempo todo ameaçado por este não-sujeito
exterior, que é, no entanto, sua própria criação e que, em contrapartida, justifica a
sua existência. Esta dissociação é constitutiva do sujeito e define a sua própria
essência. Ela não é apenas uma coisa que aparece em um segundo tempo, um
acidente que poderia ser destacado da substância, e é ilusório acreditar que poder-se-
ia igualmente criar um sujeito que não partilhasse este defeito de origem.
O que é recalcado para fora do sujeito moderno para permitir a sua
constituição é, sobretudo, tudo o que não pode assumir a forma de um “trabalho” e,
por via de consequência, não pode assumir a forma de um “valor” e, finalmente, se
tornar dinheiro enquanto representação do valor. A parte mais importante deste
processo de recalcamento – ou de dissociação – é constituída por numerosas
atividades que são necessárias para assegurar a reprodução cotidiana do sujeito do
trabalho e a sua perpetuação, mas que não entram diretamente na reprodução do
valor, não se encontram no mercado e não se exprimem em dinheiro. Essas
atividades são tradicionalmente as atividades atribuídas às mulheres. A estrutura do
sujeito moderno se baseia, portanto, na subordinação das mulheres. Estas,
evidentemente, têm seu lugar na produção do valor, elas são mesmo indispensáveis,
mas somente como auxiliares. Se várias dentre elas conseguiram sair
(aparentemente) desta condição, é porque outras entraram nos seus lugares. Com
efeito, esta lógica de recalcamento é uma lógica objetiva, que pode se separar
largamente de seus portadores empíricos. Assim, os machos também são obrigados a
expulsar sua parte culturalmente “feminina” (por exemplo, os seus sentimentos,
quando estão no trabalho), e eles também podem se encontrar na condição de
“mulher” (por exemplo, efetuando certos trabalhos considerados “femininos”,
sobretudo quando estão desempregados). A definição do sujeito e do não-sujeito
pode variar segundo os contextos; mas a existência do sujeito demanda logicamente a
existência de um não-sujeito.
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Kant, pensador da liberdade?

Existe um testemunho de exceção deste nascimento do su eito moderno:


mmanuel Kant. fil sofo de K nigsberg descreveu sem falso pudor este novo
patrono do mundo, o que curiosamente lhe deu a reputação de “filosofo da
liberdade”.9 Ele anunciou de maneira radical – e afirmativa, não crítica! – a
separação acabada entre a forma e o conteúdo e a expulsão de toda “inclinação e
emoção” (são as suas próprias palavras) para fora do sujeito. Este se encontra, enfim,
reduzido a uma vontade vazia que não quer nada senão a si mesma. Com efeito, para
Kant, a vontade é livre somente quando não está condicionada por nada do exterior.
A “autonomia” do sujeito é adquirida ao preço da redução de tudo que não seja “razão
pura” – a partir das suas próprias “inclinações” – a uma objetividade morta e amorfa
que demanda ser dominada pelo sujeito. Na verdade, esta autonomia desmente a si
mesma, porque em face da objetividade totalmente separada, o sujeito oscila entre os
sentimentos de todo-poder e impotência. Para Kant, a “liberdade” só possui valor
quando ela é idêntica ao vazio, à ausência de qualquer conteúdo. No mundo empírico,
no mundo regido pelo tempo, espaço e causalidade, não pode haver a liberdade para
Kant: as ações do sujeito estão submissas à rígida causalidade da objetividade, quer
dizer, às leis naturais. A liberdade não pode consistir, portanto, senão no esforço para
se emancipar desse mundo estrangeiro [étranger] e opressivo, em face do qual o
sujeito vai se refugiar nas esferas da razão pura e da moral pura. Ao mesmo tempo, é
precisamente o sujeito que “cria” o mundo objetivo, porque é com suas categorias a
priori que ele imprime uma ordem no mundo das sensações – sem as quais este não
seria mais que um “caos sem forma”. A única coisa comum aos indivíduos, que no

9 Os marxistas fizeram julgamentos muito diversos a respeito de Kant. O próprio Marx ignorou quase
completamente este pensador. Em seguida, os marxistas que reclamavam principalmente as raízes
hegelianas de Marx, como Lukács, subscreveram às críticas que Hegel havia dirigido à Kant. Algumas
correntes “revisionistas”, tal qual o “austro-marxismo” do início do século XX, indicaram na ética
kantiana um fundamento possível para o engajamento socialista. Mesmo sem referência direta aos
seus antecessores, existem atualmente numerosos marxistas tal qual André osel, autor do livro
ant révolutionnaire. Paris: PUF, 1998) ou lacanianos (tal qual Dany-Robert Dufour no L’art de
réduire les t tes. Paris: Deno l, 2003) que veem em Kant o teórico da liberdade e da dignidade
humana: aquele que teria anunciado esta autonomia do sujeito que é apresentada hoje em dia como
o baluarte contra a ofensiva neoliberal e a barbárie. Mesmo quando parece difícil transformar Kant
em pensador da revolução, esforçam-se geralmente para fazer dele um crítico virtual da sociedade
capitalista. Outros, como Lucio Colleti na Itália, apelaram a Kant, como testemunha, para pronunciar
a condenação de Marx e Hegel, e sobretudo dos aspectos “hegelianos” de Marx Marxismo e
dialettica. Bari-Roma: Laterza, 1976). [O livro de Dany-Robert Dufour está disponível em português:
A arte de reduzir as cabeças: sobre a nova servidão na sociedade ultraliberal. Rio de Janeiro:
Companhia de Freud, 2005].
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plano empírico são diferentes um do outro, é a unidade de apercepção que opera


nesta síntese do diverso.
Portanto, para o sujeito dotado de razão, a realidade existe somente enquanto
apreendida através das categorias do sujeito – todo o resto é para sempre
incognoscível e, portanto, no fundo, inexistente. Os objetos existem apenas nas
representações do sujeito, que, ao mesmo tempo, resta radicalmente separado destes
objetos. Quanto mais a razão é “pura”, separando-se do sensível, mais ela é
assombrada por este sensível, e mais ela tem medo deste “caos amorfo” que ela deve
tentar controlar recorrendo ainda mais à razão. Vemos facilmente a ligação desse
“recalcamento” com o inconsciente freudiano. Com uma grande diferença: a razão
kantiana não é apenas uma reação à inquietante esfera do sensível – ela mesma
produz esta esfera enquanto separada e inquietante. O “irracional” moderno é o
produto da “racionalidade” moderna; esta projeta seu lado “irracional” sobre seres
empíricos.10 Enquanto a vontade permanece na esfera da razão pura, ela é todo-
poderosa e não submissa a condicionamentos externos. Mas quando ela quer se
tornar prática, ela encontra a mesma heteronomia que na natureza – e, para Kant, o
fato de ser condicionada por um mundo exterior ao sujeito é incompatível com a
liberdade. A resposta kantiana é uma retração para uma esfera da moralidade pura. A
vontade “pura” não deve desejar nada de concreto, porque então ela dependeria deste
objeto e não seria mais livre. A “faculdade de desejar” aparece em Kant como uma
escravidão, como uma submissão à heteronomia das leis naturais, que desmente
dolorosamente o todo-poder que o sujeito se viu atribuir na esfera da razão pura. Do
ponto de vista da “faculdade superior de desejar” (“oberes egehrungsverm gen”),11
nenhum objeto é, jamais, digno do sujeito. Os objetos são, portanto, simples
substitutos, sem importância enquanto tais, em relação ao que a vontade deve
procurar para ser “pura”. Os desejos verdadeiros (que são de saúde, de glória, de
riqueza, etc.) significariam, finalmente, dependência, e a vontade não seria, então,
mais livre. Isto constituiria uma ofensa insuportável para o sujeito, que vive toda
dependência vis-à-vis a outros homens ou à natureza, como uma negação total da sua
autonomia.

10 Por exemplo, sobre as populações não-ocidentais: “ s negros da frica não possuem, por natureza,
nenhum sentimento que se eleve acima do ridículo” (Observações sobre o sentimento do belo e do
sublime. Tradução de Vinicius de Figueiredos. São Paulo: Papirus, 1991, p. 75).
11 KANT, Immanuel. Critica da razão prática. Tradução de Afonso Bertagnoli. São Paulo: Brasil

Editora, 1959, p. 21.


Disponível em: <http://www.ebooksbrasil.org/adobeebook/razaopratica.pdf>.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016
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Qual é então, segundo Kant, a verdadeira liberdade, e mesmo a sua única


forma possível? A obediência voluntária às leis e, sobretudo, à lei moral enquanto tal,
à sua forma pura – eis o famoso “imperativo categórico”. Deve tratar-se do simples
cumprimento de um dever, sem nenhum prazer. 12 Muito se criticou, até mesmo se
ridicularizou, esta moral kantiana; mas existe alguma coisa de verdadeiramente
sinistra nesse preceito de obedecer à simples forma da lei – à sua “majestade” –, à
“legalidade” enquanto tal, sem considerar o conteúdo destas leis. Kant concebe estas
leis como vazias de qualquer conteúdo particular, mas, na verdade, ele introduz de
uma maneira sub-reptícia conteúdos concretos, que não são de forma alguma “puros”
(por exemplo, o respeito à propriedade privada no exemplo bem conhecido do
“depósito”). Vemos novamente que o universalismo da forma vazia é fictício: na
verdade ele contém já conteúdos concretos, mas que não são declarados como tais. O
sensível, expulso pela porta, retorna pela janela, sem se identificar como tal.
Naturalmente, em tal quadro, toda forma de “sensibilidade” – a “faculdade inferior
de desejar” (“unteres egehrungsverm gen”) – é tomada por um inimigo e deve ser
reprimida o mais severamente possível. O próprio Kant deu um bom exemplo:
mesmo amando café, ele quase nunca o concedia a si, e ele encontrava mil outras
maneiras masoquistas de enganar a vida,13 chamando-as de “exercícios de virtude”.
Isto não é anedótico, mas sintomático da sua filosofia. Kant fala do “contentamento
de si mesmo, que, na sua significação apropriada, designa constantemente só uma
satisfação negativa em sua existência, que nos faculta a consciência de não necessitar
de nada”.14
Esta tentativa de se tornar independente do mundo sensível – de todas as
necessidades e desejos – para gozar de uma calma total, apresenta semelhanças com
a “pulsão de morte” que Freud define como tentativa de retornar à calma inorgânica
da morte que precedeu a vida. Para Kant, de fato, um

12 este contexto é significativo que: “todo o respeito por uma pessoa é propriamente s respeito pela
lei” Fundamentos da metafísica dos costumes. Tradução de Paulo Quintela. Lisboa: 70, 2007, p.
32): a moral kantiana não se preocupa com os homens reais, mas apenas com as “leis gerais”. A
pessoa existe apenas como representante da lei, o concreto existe apenas como representante do
abstrato: é a mesma lógica de inversão que na sociedade da mercadoria impregna todas as esferas da
vida, a partir da relação entre o valor de uso e o valor de mercado.
13 Ver BÖHME, Hartmut; BÖHME, Gernot. Das Andere der Vernunft. Zur Ent ic lung von

ationalit tsstru turen am eispiel ants [O outro da razão. Kant como exemplo do
desenvolvimento de estruturas racionais], Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1983, último capítulo.
14 KANT, Immanuel. Critica da razão prática. Tradução de Afonso Bertagnoli. São Paulo: Brasil

Editora, 1959, p. 92.


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[...] alívio interior […] tem como efeito um respeito para com algo
totalmente diverso da vida [a saber, a lei moral, AJ] sendo que esta,
comparada e oposta a esse algo, em que pese à sua deleitação, não tem
nenhum valor. Mas esse homem continua vivendo ainda que seja só por
dever, não porque encontre nisso qualquer prazer. É essa a natureza do
verdadeiro motor da razão prática pura; não é este nenhum outro que
não seja a lei moral pura em si mesma, enquanto nos faz sentir a
sublimidade da nossa existência supra-sensível”.15

Colocando portanto a liberdade humana distanciada de toda sensibilidade, a


formulação de Kant constitui o apogeu da longa luta para separar o sujeito do mundo
sensível e empírico, e para fazer justamente o sujeito “transcendental” radicalmente
distinto do sujeito “empírico”. O “sujeito automático”, que segundo Marx rege a
sociedade fetichista do capital, não é então, de forma alguma, uma negação do
“sujeito autônomo” de Kant, mas sua realização.
O sujeito kantiano não é, portanto, simplesmente a criação de um filósofo
particular, por mais importante que ele tenha sido, mas é a representação filosófica
de um fato real. A autonomia presumida do sujeito kantiano é, na verdade, adquirida
ao preço de uma dolorosa interiorização dos constrangimentos do capitalismo
nascente; ela se descarrega no desprezo por tudo que se encontra fora do sujeito, e no
ódio em direção a tudo que o sujeito teve que expulsar de si mesmo e projetar sobre
outros. Ao final, este ódio pode se tornar ódio em direção a si mesmo. O resultado
extremo da forma-sujeito que Kant soube tão bem descrever pode ser uma “pulsão de
morte”, o desejo de acabar com o mundo que proporciona aos sujeitos somente uma
alternância de sentimentos de impotência e todo-poder, e de acabar com o sujeito, ele
mesmo, que, finalmente, sofre com o seu vazio interior e com o muro que o separa de
toda relação real com o mundo.

[Original: “Narcissisme et fétichisme de la merchandise: quelques remarques à partir


de Descartes, Kant et Marx”. Revue Rue Descartes, n. 85-86, 2015.

Tradução: Frederico Lyra de Carvalho. O tradutor agradece as contribuições de Pedro


Henrique de Mendonça Resende, Cecília Maria Gomes Pires e Carla Castagnet Vial
para a revisão do texto].

15 Ibidem, p. 70.
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NARCISO OU ORFEU?
Observações sobre Freud, Fromm, Marcuse e Lasch 1

Anselm Jappe

Nós nos propomos compreender e comentar as críticas que Christopher Lasch


– o autor de A cultura do narcisismo2 e de O mínimo eu3 – endereçou, nos anos
1980, a Herbert Marcuse e a Norman Brown - o autor de Vida contra morte (1955)4.
Estes últimos criticavam os revisionistas neofreudianos (notadamente Erich Fromm)
por terem criticado, por sua vez, certos aspectos da obra de Sigmund Freud. O que é
notável nessas “bonecas russas” é o fato de que, nesse debate, todos – exceto o
próprio Freud – argumentam em nome de uma forma de emancipação social e de
crítica do capitalismo, mas cada um de maneira diferente, até mesmo opondo-se uns
aos outros. Cada um deles assume o ponto de vista de uma crítica de fundo do
capitalismo consumista e acusa seus precedentes de fazerem apenas uma
pseudocrítica, ou uma crítica que resta, à sua própria revelia, no quadro da sociedade
que ela pretende ultrapassar.5
A psicanálise de Freud constituiu, para o pensamento, um grande desafio no
momento de sua aparição, no começo do século XX – e ela permaneceu até hoje.
Poucas teorias foram objeto de debates tão polêmicos durante mais de um século, e, à
frente tanto de seus partidários como de seus adversários, sempre se reuniram
pessoas muito diversas, inclusive no plano político. A psicanálise representava um
desafio até mesmo para o campo da crítica do capitalismo. O marxismo mais
“ortodoxo” geralmente se opunha a ela como algo inadmissível. Em A destruição da
razão (1954), em que estabelece um grande quadro das correntes do pensamento
1 [As notas de tradução estão entre colchetes].
2 LASCH, Christopher. The Culture of Narcissism: American Life in an Age of Diminishing
Expectations. New York: Warner Books, 1979 [A cultura do narcisismo: a vida americana numa era
de esperanças em declínio. Rio de Janeiro: Imago, 1983].
3 LASCH, Christopher. The Minimal Self: Psychic Survival in Troubled Times. New York: Norton, 1984

[O mínimo eu: sobrevivência psíquica em tempos difíceis. São Paulo: Brasiliense, 1986].
4 BROWN, Norman O. Life Against Death: The Psychoanalytical Meaning of History. Middletown:

Wesleyan University Press, 1959 [Vida contra morte: o sentido psicanalítico da história. Petrópolis:
Editora Vozes, 1972].
5 “Meu amigo Marcuse e eu, nós somos Rômulo e Remo disputando para saber qual dos dois é o

verdadeiro revolucionário” – assim começa a réplica de Norman Brown à resenha – bastante crítica
– que Marcuse havia publicado, em 1967, em seu livro Love’s ody (BROWN, Norman O. A Reply to
Herbert Marcuse. Commentary, n. 43, 1967, p. 83).
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burguês que qualifica de “irracionais”, György Lukács aproxima Freud até mesmo do
fascismo.
A psicanálise foi proibida na União Soviética nos anos 1930, depois de ter
inicialmente suscitado um interesse que se expressa em particular no livro
Freudismo,6 de Mikhaïl Bakhtin, publicado em 1927 (livro publicado com a
assinatura de Valentin Voloshinov). O behaviorismo de Pavlov, doutrina psicológica
oficial da União Soviética, era evidentemente mais útil para a manipulação das
massas. Freud sempre foi um liberal (ou um “conservador esclarecido”) e um
adversário do “bolchevismo”. Ele nunca incentivou as tentativas de tirar da
psicanálise conclusões revolucionárias no plano social e político; escritos como O
mal-estar na civilização foram geralmente considerados até mesmo “reacionários”.
Uma parte da esquerda estava convencida que a psicanálise era inconciliável com o
programa de emancipação social, ou, de toda maneira, que ela não trazia nenhuma
contribuição e podia ser negligenciada. Essa desconfiança continua, aliás, a existir,
sem nunca ser declarada, mas não sem revelar, às vezes, verdadeiros problemas.
Em um nível primário, as correntes mais “classistas” da esquerda podiam
desdenhar das temáticas sexuais, entendendo-as como “pequeno-burguesas” e, mais
geralmente, considerar as neuroses como um problema apenas da burguesia e de
outras pessoas que não trabalhavam. E, mesmo para as abordagens mais elaboradas,
a psicanálise parece apresentar o grande defeito de reivindicar uma “natureza
humana”, um substrato antropológico e biológico – portanto imutável. Ora, a
referência à “natureza” é geralmente característica da “direita”: nos discursos
reacionários, ao menos na sua versão clássica, é a natureza que fez os homens
desiguais e que estabeleceu as hierarquias entre raças, classes e sexos. Os homens
nascem diferentes, proclamam esses discursos, em inteligência e talentos, e a
concorrência e a busca do interesse individual são “naturais”. O homem é, por
natureza, egoísta e busca somente vantagem pessoal para si mesmo ou sua família.
Outros acrescentam que o homem tem, por natureza, necessidade da religião, e
até mesmo de um “mestre”, ou afirmam que a homossexualidade ou a mulher que
trabalha e quer ser igual ao homem, são “contra a natureza”. Toda tentativa –
continua essa apologia da sociedade burguesa que compreende igualmente o
liberalismo – para mudar a “natureza” do homem não conduz senão ao totalitarismo

6 Ver BAKHTIN, Mikhaïl. Freudismo: um esboço crítico. São Paulo: Perspectiva, 2001.
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e à violência. Compreende-se facilmente que Thomas Hobbes, com seu homo homini
lúpus, é o verdadeiro fundador dessa naturalização das relações sociais que levou até
o social-darwinismo e à eugenia.
Para a esquerda, ao contrário, a cultura, a sociedade e a educação importam
mais do que uma hipotética natureza humana eterna. Esse predomínio assegurado da
cultura sobre a natureza no homem constitui o fundamento mesmo da asserção de
que o homem, agitando-se coletivamente, pode tomar nas mãos seu destino – pivô de
toda teoria revolucionária. Todos os males, ou quase todos, seriam consequência da
sociedade de classe, e não do homem enquanto tal. Pode-se, então, ultrapassá-los, e
mesmo criar um “homem novo” que, por exemplo, não conheceria o egoísmo.7
A teoria de Freud não se insere nesse entusiasmo prometeico. Para ela, o
inconsciente, cuja estrutura seria muito fixa, possui bordas estreitas para a
variabilidade dos comportamentos humanos. As pulsões, de origem somática, não
são modificáveis, elas são no máximo controláveis. O grande papel que Freud atribui
à infância, a parte menos “social” da vida e quando os indivíduos são menos
diferentes segundo fatores culturais e sociais, limita necessariamente a possibilidade
de uma autocriação consciente da sociedade. As concepções de vida coletiva que
Freud desenvolveu, sobretudo a partir de Totem e tabu (1913), reforçaram a
característica “antiutópica” da psicanálise: a sociedade não é para Freud senão a
versão multiplicada do indivíduo e da sua estrutura pulsional. Ela repete uma
estrutura arcaica e reatualiza o drama da “horda primitiva”: assim, a ontogênese
repete a filogênese, mesmo no campo psíquico.
O mal-estar na civilização (1930) parece encerrar esta constatação desiludida,
e mesmo reacionária: Freud sustenta que a felicidade [bonheur] é impossível tanto no
plano individual quanto no plano social. Pode-se somente limitar a infelicidade (por
exemplo, com uma moral sexual um pouco mais permissiva), mas Freud jamais chega
à ideia de uma “libertação sexual”.8 Ele introduz, além disso, o conceito de “pulsão de
morte”, anunciado desde 1919: guerras e agressão, destrutividade e sadismo não
seriam consequências de uma sociedade doente, mas fariam parte de nossa bagagem
humana.

7 Essa ideia de uma plasticidade quase infinita do ser humano retorna em seguida, de certa maneira,
nos discursos pós-modernos: tudo é construção, até mesmo o sexo biológico.
8 [O termo libération pode ser traduzido tanto por “liberação” quanto por “libertação”, o qual, via de

regra, preferimos utilizar neste texto].


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Parece muito difícil colocar essa visão da vida a serviço de uma modificação
social profunda tal como a esquerda acreditava possível. Entretanto, a potência e a
evidência das ideias de Freud seriam tais que, mesmo à esquerda, alguns não
tardaram a tentar utilizar essas ideias para promover alguma forma de emancipação
social. Otto Gross e Wilhelm Reich foram os primeiros, seguidos por Georg Groddeck,
Sandór Ferenczi, Otto Fenichel, Géza Róheim e outros, cada um à sua maneira.9
O Instituto para Pesquisa Social de Frankfurt (que está na origem do que se
chama habitualmente “Escola de Frankfurt”) esteve, a partir do momento em que
Max Horkheimer assumiu sua direção em 1931, na origem do projeto maior de unir
instrumentos do materialismo marxista à psicanálise. Com efeito, para os autores do
Instituto, a psicanálise é “materialista”, mas em um sentido bastante amplo: aqui,
materialismo não coincide com economicismo. No início, essa abordagem foi muito
marcada pela figura de Erich Fromm, como testemunham os Estudos sobre
autoridade e família, publicados em 1936.
Seus autores tentavam, sobretudo, vincular os “caracteres” psicológicos – os
“tipos” – às classes sociais criadas pelo capitalismo. Um exemplo típico, e central, era
a vinculação estabelecida entre o caráter “anal”, voltado para a acumulação e a
poupança, e a classe burguesa, para a qual esses comportamentos não são neuroses,
mas constituem as bases de seu papel social. Esse caráter tende à obediência cega e
transforma-se facilmente em “personalidade autoritária”, repleta de preconceitos e de
ressentimentos, o que o faz a presa ideal da propaganda fascista.
Nos anos 1940, os membros do Instituto, emigrados para os Estados Unidos,
continuaram essas pesquisas com o amplo estudo – meio teórico, meio empírico –

9 Fala-se, então, de uma esquerda freudiana (como da esquerda hegeliana) (ver ROBINSON, Paul. The
Freudian Left. Wilhelm Reich, Geza Roheim, Herbert Marcuse. New York: Harper & Row, 1969 [A
esquerda freudiana: Wilhelm Reich, Geza Roheim, Herbert Marcuse. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1971]; DAHMER, Helmut. Libido und Gesellschaft. Studien über Freud und die Freudsche
Linke. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1973, segunda edição aumentada em 1982, terceira edição
aumentada em Westfälisches Dampfboot, Münster, 2013). Lasch também utiliza este termo em O
mínimo eu. Mas a distinção entre uma “ala esquerda” e uma “ala direita” da psicanálise á se
encontra em MARCUSE, Herbert. Eros and Civilization. A Philosophical Inquiry into Freud. Boston:
Beacon Press, 1955 [Eros e civilização: uma crítica filosófica ao pensamento de Freud. Rio de
Janeiro: Zahar, 1968]. Não se pode verdadeiramente falar de uma direita freudiana em termos
explícitos (com efeito, Marcuse refere-se à Jung quando fala da ala direita do freudismo): aqueles
que queriam apenas ser terapeutas e curar os indivíduos foram levados “naturalmente” a aceitar a
sociedade capitalista como um horizonte inultrapassável e a colocar seus pacientes para se adaptar
ao mundo tal como ele está [comme il va]. Nos Estados Unidos, estes terapeutas chegaram desde o
começo da difusão das ideias de Freud, e, depois da Segunda Guerra, em todos os lugares. Fora do
campo dos analistas de profissão, o surrealismo francês constituía a primeira grande tentativa de
utilizar os resultados da psicanálise com o objetivo de “mudar a vida”. Marcuse, aliás, faz referência a
isso. Mas nós devemos deixar esse assunto para outro ensaio.
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sobre A personalidade autoritária, publicado em 1950. Contudo, o olhar a respeito


de Freud, daqueles que constituíam nesse momento o núcleo do Instituto – isto é,
Horkheimer, Adorno e Marcuse –, tinha, nesse meio tempo, fortemente se alterado.
Erich Fromm, que havia entrado progressivamente em conflito com o Instituto –
sobretudo com Adorno –, a partir de 1937, acabava por ser o alvo de ataques e se via
associado a um empreendimento de “revisionismo neofreudiano”.10 Em face do
revisionismo, o Instituto desejava operar um retorno em direção ao “verdadeiro”
Freud, mesmo nos seus aspectos aparentemente mais difíceis de integrar em uma
teoria crítica da sociedade capitalista.11 Os últimos escritos de Freud, evitados pelos
revisionistas, pareciam, ao contrário, muito importantes aos olhos dos autores de A
dialética do esclarecimento, que queriam compreender a ascensão do fascismo
através da interiorização dos constrangimentos sociais e o caráter violento de toda
civilização.
Os neofreudianos (essencialmente Fromm, Karen Horney e Harry Stack
Sullivan) diminuem a importância atribuída por Freud às pulsões, notadamente as
sexuais; eles insistem a respeito do papel da educação, dos fatores sociais e da
cultura, e buscam relações com a antropologia e a sociologia. A teoria deles reduz o
peso da infância na história individual e o do complexo de Édipo, cujo caráter
universal eles questionam. Eles negam, a fortiori, a existência da pulsão de morte.
Em geral, não admitem a existência de conflitos insuperáveis no interior do homem.
Para os neofreudianos, trata-se de “humanizar” Freud, de libertá-lo da bagagem
biologicista, do pessimismo de suas últimas obras, do conceito desesperado de
“pulsão de morte”, para, ao invés disso, encontrar as premissas da felicidade
individual e da harmonia social.

10 termo “revisionismo neofreudiano” utilizado por Adorno e Marcuse é evidentemente depreciativo


e faz alusão ao “revisionismo” marxista do início do século (aquele de Bernstein). Os membros dessa
corrente dizem de si mesmos que eles pertencem à escola “culturalista” ou “interpessoal”.
11 Para um breve resumo da relação entre Fromm e o Instituto para Pesquisa Social, ver LE RIDER,

Jacques. L’allié incommode, precedido de ADORNO, Theodor. La psychanalyse révisée. Paris:


L’ livier, 2007 [AD R , heodor. Ensaios sobre psicologia social e psicanálise. São Paulo:
Editora da Unesp, 2015, p. 43-69]; MAISO, Jordi. Soggettività offesa e falsa conscienza. La
psicodinamica del risentimento nella teoria critica della società. Costruzioni psicoanalitiche, n. 23,
2012 [segunda versão: MAISO, Jordi. Subjetividad dañada. Teoría crítica y psicoanálisis.
Constelaciones. Revista de Teoría Crítica, v. 5, diciembre de 2013, p. 132-150]; e RICKERT, John.
The Fromm-Marcuse Debate Revisited. Theory and Society, n. 15, 1986, p. 351-400 (tradução alemã:
Die Fromm-Marcuse-Debatte im Rückblick. Jahrbuch der Internationalen Erich-Fromm-
Gesellschaft, band II, Erich Fromm and die Kritische Theorie, Münster, LIT-Verlag, 1991, p. 82-127).
Além disso, pode-se reportar às obras clássicas de Rolf Wiggershaus e de Martin Jay sobre a história
da Escola de Frankfurt.
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Freud enganava-se, segundo eles, postulando uma incompatibilidade entre as


pulsões e a civilização; é suficiente abolir o excesso de repressão para chegar a um
equilíbrio individual e coletivo – uma espécie de social-democracia psíquica, um
corolário do welfare state. Mas, ao menos em Fromm, isto sempre está acompanhado
de uma visão muito crítica da sociedade capitalista, que parece deixar aberta a porta
para uma autotransformação emancipadora da sociedade, em oposição ao
pessimismo hobbesiano de Freud.12 O que Fromm havia abandonado por volta de
1941 era a teoria freudiana da libido.13 Ela parecia-lhe incompatível com uma leitura
marxista das origens socioeconômicas das características das diferentes classes
sociais. Se o caráter anal é típico da burguesia, por que explicá-lo com os rituais de
limpeza da primeira infância, iguais nas diferentes classes? Para Fromm, essas são as
relações sociais correspondentes às condições socioeconômicas que formam
diretamente o caráter a partir da infância, sem passar pela fase da libido.
O primeiro ataque público contra Fromm foi lançado por Adorno em uma
conferência, pronunciada em 1946, diante da Sociedade Psicanalítica de São
Francisco.14 Ele se detém, para dizer a verdade, sobretudo em Karen Horney –
psicanalista alemã igualmente emigrada para os Estados Unidos e durante certo
tempo próxima de Fromm –, mas as críticas de Adorno visam, de fato, Fromm.
Adorno antecipa o essencial das críticas expressas quase dez anos mais tarde por
Marcuse. Para ele, o atomismo de Freud exprime uma realidade social: a clivagem
entre o indivíduo e a sociedade. Os revisionistas querem “tratar as relações inumanas
como se já fossem humanas”, eles emprestam dessa maneira “a uma realidade
inumana o brilho da humanidade” e “indignam-se com o reacionário Freud,

12 Sua crítica reivindicava as categorias de Marx. Entretanto, ela estava formulada principalmente em
termos de “classe”, mais do que na análise das formas de vida e de consciência fetichistas que dizem
respeito a todos os membros da sociedade. Daí porque ela parece, hoje em dia, bastante datada: para
Fromm, os caracteres psicológicos correspondem estreitamente à posição socioeconômica do
indivíduo. Isso constitui também um limite das primeiras tentativas mencionadas anteriormente,
feitas pelo Instituto, nos anos 1930, de utilizar conjuntamente as categorias de Freud e de Marx.
Mesmo nesse plano, a visão de Marcuse parece hoje mais atual do que a de Fromm.
13 RICKERT, John. Die Fromm-Marcuse-Debatte im Rückblick, art. cit., p. 6. [No presente artigo, as

expressões latinas art. cit. e op. cit. foram utilizadas referindo-se à mesma edição de obra citada
anteriormente, no mesmo idioma, mas não necessariamente na mesma página].
14 Publicado em 1952, em alemão. Ver ADORNO, Theodor W. “A psicanálise revisada”. In:__. Ensaios

sobre psicologia social e psicanálise, op. cit. (ele repete observações bastante similares sobre a
psicanálise nos §§ 36-40 de Minima moralia, publicada em 1951, mas escrita a partir do fim dos anos
1930).
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enquanto seu pessimismo intransigente testemunha a verdade sobre as condições de


vida das quais ele não fala”.15
O argumento de Adorno, como mais tarde o de Marcuse, parece paradoxal à
primeira vista: por que dois autores que não se interessam essencialmente pelo valor
da clínica – terapêutica – da psicanálise, mas por sua contribuição possível ao projeto
de “progredir para além do estágio patricêntrico-aquisitivo”,16 acusam Fromm de
“sociologismo” e defendem a teoria da pulsão de Freud, a qual considera as relações
intersubjetivas – e, portanto, a sociedade – como secundárias em relação a uma
estrutura pulsional em grande parte inata e que existe apenas no nível individual? A
insistência dos “culturalistas” sobre a importância que tem o “meio” e as relações
interpessoais, desde o começo da vida individual, parece muito mais próxima da
teoria marxista, que coloca o acento principal na dimensão social da existência,
enquanto a visão freudiana do homem parece próxima do liberalismo burguês, para o
qual a única realidade verdadeira é o indivíduo com sua pursuit of happiness e que
sempre pensou isto que Margaret Thatcher disse abertamente: “There is no such
thing as society!”
Para compreender a posição de Adorno e de Marcuse, é necessário fazer alguns
esclarecimentos. Marcuse formulou o essencial de sua crítica a Fromm em um artigo
de 1955, publicado no mesmo ano como posfácio a seu livro Eros e civilização. Ele
explica primeiro as honrosas razões iniciais do revisionismo neofreudiano:

A concepção psicanalítica do homem, com sua crença na imutabilidade


básica da natureza humana, impôs-se como “reacionária”; a teoria
freudiana parecia implicar que os ideais humanitários do socialismo
eram humanamente inatingíveis. Então, as revisões da Psicanálise
começaram a ganhar impulso.17

Para Freud, mesmo os “valores mais altos da civilização ocidental” pressupõem


a alienação e o sofrimento. “As escolas neofreudianas promovem esses mesmos

15 ADORNO, Theodor. La psychanalyse révisée, op. cit., p. 39 [ a edição brasileira: “tratar as relações
humanas (sic) como se á fossem humanas”; “ela empresta um brilho humano a uma realidade
inumana”; “indignados com o Freud reacionário, enquanto seu pessimismo irreconciliável
testemunha a verdade sobre as relações das quais ele não fala”. AD R , heodor. Ensaios sobre
psicologia social e psicanálise, op. cit., p. 63].
16 MARCUSE, Herbert. Eros e civilização, op. cit., p. 209; tradução modificada.
17 Ibidem, p. 205 [No presente artigo, a expressão latina ibidem foi utilizada referindo-se à mesma

edição de obra citada anteriormente, no mesmo idioma, mas não necessariamente na mesma
página].
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valores como cura contra a falta de liberdade e o sofrimento – como o triunfo sobre a
repressão”.18
Os revisionistas priorizam as relações entre adultos, e, portanto, a realidade
social, enquanto Freud, “focalizando as vicissitudes dos instintos19 primários,
descobriu a sociedade na mais recôndita camada do gênero e do indivíduo”.20
Marcuse admite que Fromm, no começo da sua carreira, tentava libertar a teoria de
Freud de sua identificação com a sociedade atual. Nos seus artigos dos anos 1930,
publicados na Zeitschrift für Sozialforschung do Instituto, “o caráter histórico das
modificações dos impulsos viciaram a sua equação do princípio de realidade com as
normas da cultura patricêntrico-aquisitiva”.21
Mas Fromm não permanece fiel aos seus princípios, segundo Marcuse, e
mesmo quando ele continua, mais tarde, a denunciar o capitalismo, sua crítica
permanece superficial, reduzindo a problemática a uma questão de “valores” a serem
realizados no próprio quadro de uma sociedade não-livre. Fromm não quer ver – ao
contrário de Freud – que esses “valores superiores” se realizam à custa dos indivíduos
e de sua felicidade [bonheur] libidinal22: os revisionistas eliminam os conceitos mais
explosivos e cedem a um “desejo positivo”.
Reconhecer o “direito à felicidade” aqui e agora, como quer Fromm, implica,
no entanto, segundo Marcuse, defini-lo em termos compatíveis com esta sociedade –
e, assim, estes valores tornam-se eles mesmos repressivos. A metapsicologia de Freud
contém um potencial crítico maior do que sua terapêutica: esta necessariamente tem
em conta a realidade dada e a necessidade de curar os pacientes, sem atingir uma
mudança de civilização.
Os revisionistas opõem uma leitura “sociológica” a uma visão centrada no
indivíduo. Entretanto, mesmo Freud sustenta que o indivíduo depende do “destino
geral”, mas que esse destino geral se manifesta essencialmente na primeira infância.
É aí que a “repressividade geral molda o indivíduo e universaliza até mesmo seus

18 Ibidem, p. 206; tradução modificada.


19 A Standard Edition das obras de Freud em inglês traduz o termo alemão Trieb por “instinto”, e, por
consequência, a tradução francesa [e para o português] de Marcuse, e de outros autores anglófonos,
emprega esse termo – ainda que a palavra “pulsão” se a muito mais apropriada em francês [e
português], e se encontre efetivamente mais utilizada. Aqui, nós não corrigiremos as traduções
existentes, mas n s mesmos utilizaremos o termo “pulsão”.
20 MARCUSE, Herbert. Eros e civilização, op. cit., p. 207; tradução modificada.
21 Ibidem, p. 208.
22 Ibidem, p. 223.
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traços mais pessoais”.23 Segundo Marcuse, os revisionistas superestimam as


diferenças individuais: “As relações decisivas são, assim, as que são menos
interpessoais. Em um mundo alienado, os espécimes do gênero confrontam-se
mutuamente: os pais e a criança, o macho e a fêmea, depois o senhor e o escravo, o
patrão e o empregado”.24
Marcuse afirma que é justamente Freud, o mais “duro”, o mais “biologicista”,
que mais contém verdade crítica acerca da sociedade capitalista, além até mesmo das
intenções do próprio Freud:

Em contrapartida, os conceitos “biologicistas” de Freud vão mais longe


do que a ideologia e seus reflexos: sua recusa de tratar uma sociedade
reificada como uma “rede crescente de experiências interpessoais”
[como fazem os neofreudianos “humanistas”, AJ], e um indivíduo
alienado como uma “personalidade total”, corresponde à realidade e
contém o verdadeiro conceito dessa realidade. Se ele se impede de
considerar essa existência inumana como um aspecto negativo
passageiro de uma humanidade que caminha adiante, ele é mais humano
do que os críticos, tolerantes ao grande coração, que estigmatizam sua
frieza inumana.25

O conceito freudiano “estático” da sociedade, segundo Marcuse, está mais


próximo da realidade do que o conceito “dinâmico” dos revisionistas, porque toda
sociedade funda-se na repressão das pulsões. O programa mínimo de Freud é o de
limitar a infelicidade; crer que se possa fazer mais nesta sociedade significa ter uma
concepção demasiado “rosa”.
Os revisionistas querem desenvolver o “potencial” de seus pacientes. Mas se a
sociedade é tão alienada quanto Fromm diz, como seria possível criar pessoas
responsáveis, produtivas e radiantes [épanouies]? Assim, eles retornam a uma ética
idealista, diferente de Freud, que, mesmo recorrendo à ironia, “evita designar a
repressão por qualquer outro nome senão esse; os neofreudianos, por vezes,
sublimam-na em seu oposto”.26 Fromm critica efetivamente a sociedade de mercado e
a competição, mas pensa, ainda assim, que se pode realizar os “valores superiores” e
um “trabalho construtivo”. Ele esquece igualmente o fato de que as pulsões eróticas
estão sempre misturadas, de alguma maneira, às pulsões destrutivas.

23 Ibidem, p. 217; tradução modificada.


24 Ibidem, p. 217; tradução modificada.
25 Ibidem, p. 217; tradução modificada.
26 Ibidem, p. 221.
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Freud, ao contrário, sabe que na “nossa civilização” não existe espaço para um
amor que seja ao mesmo tempo tenro e sensual. Mas, para os revisionistas, pode-se
encontrar uma solução harmoniosa. Para eles, os conflitos essenciais, como a
repressão social, não são sequer sociológicos, mas banalmente morais: assim, eles se
voltam para a desvalorização das necessidades materiais. Eles não acreditam em um
conflito fundamental entre princípio de prazer e princípio de realidade: a natureza
instintiva do homem pode encontrar uma felicidade socialmente reconhecida. Assim,
seu “humanismo” permanece muito aquém da lucidez terrível de Freud, para quem a
infelicidade fundamental da repressão não pode jamais ser compensada pela
sublimação no “amor produtivo” e outras pseudofelicidades.
Os revisionistas espiritualizaram a felicidade e a liberdade, e, assim, eles
podem acreditar que a felicidade é possível até mesmo em uma sociedade repressiva.
Em contrapartida, é o recurso ao biológico em Freud que desvela a extensão da
repressão e não permite as ilusões fáceis dos “culturalistas”. Mais do que
“acrescentar” uma dimensão cultural ou sociológica à teoria de Freud, é necessário
extrapolar o conteúdo sociológico e histórico dessas categorias aparentemente
biológicas. O enfraquecimento do indivíduo tornou impossível a aplicação da
psicologia aos eventos sociais; é necessário agora “desenvolver a substância política e
sociológica das noções psicológicas”27: a sociedade encontra-se no indivíduo, muito
mais do que o contrário. Uma psicologia autônoma, então, não é mais possível.28
Fromm não poderia senão se surpreender com a virulência dessa polêmica
lançada por um ex-companheiro de percurso. No contexto dos Estados Unidos dos
anos 1950, conformista e anticomunista, ele compreendia, sem dúvida, que sua
própria posição estava já muito exposta, herética e subversiva. Ademais, ele opunha-
se à redução, muito comum à época nos Estados Unidos, da psicanálise a uma
simples cura de uma neurose individual, lembrando que o indivíduo doente é, antes,
a consequência de uma sociedade doente, e que mesmo os princípios fundadores da
sociedade americana – como a concorrência – são patogênicos enquanto tais. Devia
lhe parecer estranho que outro marxista lhe desse tal lição de radicalismo, acusando-
o de ter feito exatamente o que ele afirmava sempre ter combatido: a adaptação da
psicanálise a um contexto repressivo, retirando dela todo caráter autenticamente
27 Ibidem, p. 25.
28 ensaio de Adorno “Sobre a relação entre sociologia e psicologia” 1955) [ n: __. Ensaios sobre
psicologia social e psicanálise. São Paulo: Editora da Unesp, 2015, p. 71-136 ] o afirma com muita
força.
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subversivo. E como um marxista podia reprochá-lo29 de ter sublinhado o papel das


relações entre adultos, e, portanto, da sociedade, na estrutura psíquica dos
indivíduos?
E, com efeito, Fromm replicou severamente na mesma revista Dissent.30 Ele
começou lembrando que Marcuse amalgama as posições, geralmente divergentes, dos
diferentes “revisionismos”, e que lhe atribui indevidamente opiniões que são mais as
de Horney ou de Sulliver31 – que eram muito menos sensíveis do que ele à crítica
social. Mas Fromm admite que ele também tem críticas importantes a endereçar ao
próprio Freud: este tinha uma visão “darwinista” do homem e identificava o homem
de sua época com o homem de toda civilização possível. Ao reduzir todo amor ao
desejo sexual, Freud pode somente conceber um conflito irredutível na base de toda
civilização. Nenhuma sociedade pode escapar disto – são possíveis apenas algumas
reformas no domínio da moral sexual, como diz o próprio Freud. E isso, pergunta
Fromm, seria uma crítica radical da sociedade alienada?
O “materialismo” que Marcuse elogia em Freud (para opô-lo ao
“espiritualismo” suposto dos revisionistas) não seria o materialismo fisiológico do
século XIX, “burguês” e pré-marxiano? É, ao contrário, sustenta Fromm, sobre a base
do materialismo de Marx, enquanto relação dialética entre a natureza e a cultura sob
o signo da “práxis”, que se chega a conceber um ser humano que não se limita à
satisfação das necessidades pulsionais. Em contrapartida, a demanda de satisfação
sexual ilimitada não tem nada de radical: os nazistas no seu tempo, e sobretudo a
sociedade de consumo no pós-guerra, propuseram-na igualmente. Pelo Brave New
World, de Aldous Huxley, ela foi prevista. Essa demanda produz pessoas sem
conflitos, felizes, que não precisam ser forçadas para obedecer. 32
Fromm sublinha que suas concepções de felicidade e de amor são bastante
diferentes das concepções dominantes, mas que não é impossível – somente muito
difícil – praticá-las em uma sociedade alienada. Realizá-las, acrescenta ele,
equivaleria inclusive a uma forma de crítica social e de rebelião. A negligência do

29 [Reprocher, o que corresponde em português a reprochar, censurar, repreender].


30 Para uma crítica detalhada da interpretação marcuseana de Fromm, ver RICKERT, John. The
Fromm-Marcuse Debate Revisited, art. cit.
31 Ver FROMM, Erich. The Human Implications of nstinctivistic “Radicalism”. A Replay to Herbert

Marcuse. Dissent. A Quarterly of Socialist Opinion, volume II, 1955, p. 342.


32 Essa crítica parece muito justa e ainda mais hoje em dia. Mas Marcuse certamente não enaltece esse

tipo de sexualidade liberada, que, ao contrário, corresponde a isso que ele chama de “dessublimação
repressiva”.
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41

“fator humano”, mais precisamente a atitude niilista acerca do homem, era um dos
defeitos do leninismo e do stalinismo. Fromm conclui: “a posição de Marcuse é um
exemplo de niilismo humano disfarçado de radicalismo”.33
Na sua resposta a Fromm, Marcuse afirma que nem Freud nem ele mesmo
jamais identificaram a satisfação sexual ilimitada e imediata à felicidade. Mas
sublinha também que toda sublimação contém uma parte de não-liberdade e de
repressão. As implicações da teoria de Freud (para além da sua permanência efetiva
no horizonte do seu tempo) são bem mais anticapitalistas do que as tolices de Fromm
sobre a participação dos operários na gerência [management]. Não existe
materialismo do século XIX na metapsicologia freudiana, a qual se refere, por vezes,
bastante a Platão!

“Niilismo”, como denúncia das condições inumanas, pode ser uma


atitude autenticamente humanista – como parte da “Grande recusa” de
jogar o jogo, de se comprometer com o mau “positivo”. Nesse sentido, eu
aceito quando Fromm chama minha posição de “niilismo humano”.34

Na sua última resposta, Fromm ainda cita Freud para demonstrar que, para
este, a felicidade reside efetivamente em uma sexualidade não restrita, e para criticar
esta visão – confirmando assim que não diverge da leitura marcuseana de Freud, mas
da concepção freudiana da própria sexualidade.
Nem Fromm nem Marcuse fazem referência, mas poderiam ter aludido ao
aforismo de Adorno na Minima moralia, publicada, alguns anos antes desse debate,
na Alemanha: “não há vida certa na falsa”. Marcuse ofereceu sua própria leitura de
Freud em Eros e civilização, publicado em 1955.35 Ela é inegavelmente perturbadora
para quem pensa que uma recuperação do pensamento de Freud em uma perspectiva
marxista (da qual, como se sabe, Marcuse havia permanecido muito mais próximo do
que os outros autores do Instituto) somente poderia consistir em uma explicação das

33 FR MM, Erich. he Human mplications of nstinctivistic “Radicalism”. A Replay to Herbert


Marcuse, art. cit., p. 349.
34 FROMM, Erich; MARCUSE, Herbert. A Reply to Erich Fromm e A Counter-Rebuttal. Dissent. A

Quarterly of Socialist Opinion, volume III, 1956, p. 81.


35 Quatro anos mais tarde, o filólogo Norman O. Brown publicou Life Against Death. Na sua

introdução, Brown lembra a proximidade de sua obra com aquela de Marcuse. Além disso, os dois
autores geralmente haviam ficado próximos durante os anos 1960. É notável que nos Estados Unidos
dos anos 1950, do qual os quadros de Edward Hopper ou o romance Lolita de Nabokov, entre outros,
descrevem-nos o espírito puritano e tacanho, produziram-se ao mesmo tempo questionamentos tão
radicais da cultura puritana, em nome de uma espécie de erotismo cósmico.
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neuroses individuais pela repressão social, eliminando as “constantes antropológicas”


tão presentes no pensamento do último Freud.
Todavia, é exatamente o Freud metapsicológico que Marcuse valoriza,
notadamente o conceito de “pulsão de morte”36 e a importância concedida à pré-
história da humanidade para explicar as sociedades presentes: a “horda primitiva” e a
“morte do pai” estariam na origem de um sentimento de culpabilidade que perdura, o
qual explicaria até mesmo os “Thermidores”, quer dizer, os retornos das revoluções
ao estado precedente.37
Para Marcuse, a grandiosidade de Freud residia precisamente na sua
insistência impiedosa sobre a existência da pulsão de morte e sobre o fato de que a
satisfação não sublimada das pulsões libidinais ameaça efetivamente o edifício da
civilização na sua forma atual. Freud não sugere aos homens que eles poderiam viver
em harmonia com esta sociedade; ele lhes propõe somente limitar suas satisfações
pulsionais – sem jamais negar que se trata de uma renúncia muito difícil – a fim de
não entrar em um conflito devastador para o indivíduo.
Mas será que é necessário, então, aceitar a repressão e a sublimação,
considerando-as como o preço inevitável a pagar quando se quer manter a
civilização? A análise de Freud, diz Marcuse, é exata – sob a condição, entretanto, de
não situá-la em um plano ontológico. Ela se aplica somente à sociedade capitalista
(ou a outras sociedades repressivas). A abolição do trabalho – a redução radical do
tempo de trabalho e sua transformação em atividade libidinosa –, tornada possível na
sociedade do pós-guerra pelo desenvolvimento capitalista das tecnologias que
substituem o trabalho vivo, abre a via para uma mudança histórica da estrutura das
pulsões e para sua reconciliação com a civilização. É, portanto, uma “utopia
concreta”: Narciso e Orfeu vão suceder Édipo.
Nenhuma intervenção terapêutica, nenhum esforço moral pode conseguir
harmonizar o indivíduo e a sociedade enquanto o trabalho alienado e a mais-
repressão continuarem a existir. Os neofreudianos enganam-se apresentando esse

36 Marcuse não interpreta a pulsão de morte somente como desejo de destruição, mas também, e
sobretudo, como forma extrema do princípio de prazer, como “princípio de irvana” e como busca
de uma calma absoluta e de um apaziguamento de todas as tensões. Para ele, não é a pulsão de morte
que paralisa os esforços com vistas a um porvir melhor (como diz Karen Horney), mas são as
condições sociais que impedem os instintos de vida de se desenvolverem e “desencadearem” a
agressão (MARCUSE, Herbert. Eros e civilização, op. cit., p. 231).
37 O poder do Universal sobre os indivíduos aparece com uma força particular nessas sobrevivências

arcaicas no fundo de cada indivíduo. Mas isso indica, mesmo em Freud, uma origem histórica do
inconsciente.
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acordo como possível. Mas Freud se enganava igualmente afirmando que o princípio
de prazer deve permanecer, para todo o sempre, subordinado ao princípio de
realidade, porque nada poderá parar a dominação exercida pela Ananque (a
necessidade, a precisão, a falta, a penúria). Até aqui, consente Marcuse, as diferentes
sociedades efetivamente evoluíram no quadro da insuficiência dos recursos
arrancados da natureza. Portanto, a vida era uma luta pela sobrevivência. Nesse
contexto, a repressão das pulsões e o constrangimento do trabalho eram, ao menos
em parte, condições para assegurar a sobrevivência do homem.
Mas o resultado dessa longa história de repressão e alienação é a criação dos
pressupostos de sua superação: a sociedade, graças às tecnologias, está agora madura
para viver com um mínimo de alienação e repressão. Tudo o que ultrapassa esse
mínimo inevitável constitui uma “mais-repressão”, um excedente de repressão, sem
outra função senão manter as estruturas atuais da dominação em benefício de uma
minoria. A mais-repressão não tem, portanto, uma justificativa verdadeira. Uma
mudança profunda da estrutura pulsional do homem é então viável, até mesmo em
curto prazo. A pulsão de morte pode ser fortemente reduzida se a sociedade permitir
às forças construtivas de Eros ocupar o maior espaço possível na vida individual e
coletiva.
De certa maneira, Marcuse inverte a afirmação freudiana segundo a qual a
estrutura pulsional, bastante fixa, estabelece limites estreitos a toda modificação
social possível. Para Marcuse, ao contrário, as pulsões, tanto agressivas quanto
libidinais, permanecem pouco integráveis à sociedade capitalista, e continuam a
constituir um potencial de rebelião e de descontentamento – de mal-estar! – que fará
ecoar toda tentativa de criar uma sociedade “lisa”, “pacificada”, no sentido da
dominação.
Eros e civilização é hoje geralmente percebido como um livro ligado à
atmosfera dos anos 1960, quando ele suscitava discussões intensas em numerosos
países.38 Contudo, ele não pode ser reduzido a um vade-mecum da “revolução sexual”
ou identificado com os estudantes que se enrouqueciam nas manifestações, gritando
“Marx-Mao-Marcuse”. Com efeito, esse livro tinha nascido sob um contexto
profundamente diferente, como acabamos de lembrar e, por outro lado, ele continuou
a alimentar os debates até hoje, como mostram suas reedições frequentes.

38Entretanto, Daniel Cohn-Bendit afirma em Le grand bazar que não tinham sido vendidos 40
exemplares da tradução francesa antes de 1968.
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Lembremos algumas críticas que podem ser feitas a ele do ponto de vista da
crítica do fetichismo de mercado. Nota-se – como, aliás, em Adorno – que sua
superação do marxismo tradicional é bastante importante em numerosos elementos,
mas não o impede de permanecer, em certos aspectos, no quadro marxista
tradicional. Assim, Marcuse critica o “trabalho alienado” (sem o definir), mas jamais
chega à categoria do trabalho abstrato, e, então, muito menos às categorias de valor,
de dinheiro e de fetichismo da mercadoria. A crítica da “mercadoria” volta-se menos
ao produto do trabalho na sua dupla natureza (concreto e abstrato) do que aos
objetos de consumo, geralmente considerados de uma maneira que provém
principalmente de Thorstein Veblen e do “consumo de prestígio”. É um traço que
Marcuse partilha com quase todos os autores que visaram a “mercadoria” nos anos
1960.
Marcuse, como em geral os marxistas tradicionais, manifesta uma grande
confiança no “progresso” e nos benefícios da tecnologia, ainda que seja necessário ela
ser bem utilizada! Ele vai muito longe nessa via, vendo na automatização da produção
uma conditio sine qua non para o estabelecimento de uma sociedade erótica!39 A
“missão civilizatória do capital” faz uma volta curiosa. Marcuse acredita que a
automatização ameaça a “dominação” e que esta tende a limitá-la! Ele afirma que
Fromm tem razão ao dizer que

[...] jamais anteriormente o homem esteve tão próximo da realização de


suas mais queridas esperanças quanto hoje. As nossas descobertas
científicas e realizações técnicas permitem-nos vislumbrar o dia em que
a mesa será posta “para todos os que desejam comer”.40

Mas, acrescenta Marcuse, nunca tantos obstáculos opuseram-se a essa


realização. Nunca a libertação esteve tão próxima, e é somente uma dominação de
classe anacrônica, que perdeu toda função histórica, que ainda se opõe. O que está
muito distante de um pensamento do fetichismo! 41
O progresso tecnológico permanece, em Marcuse, importante enquanto
pressuposto para a libertação. Ele constitui uma astúcia da razão, uma inversão

39 “Quanto mais a alienação do trabalho é total, maior é o potencial de liberdade: a automação total
seria o ponto timo”, porque a produção material “não pode nunca ser o domínio da liberdade e da
satisfação”. MARCUSE, Herbert. Eros e civilização, op. cit., p. 144; tradução modificada.
40 Ibidem, p. 227; tradução modificada.
41 Mesmo se Marcuse, falando dos “mecanismos de defesa” da sociedade capitalista contra a “ameaça

da liberdade”, indica efetivamente certo grau de inconsciência na dominação.


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45

dialética: é o princípio de realidade que tem como resultado final sua transformação e
a superação de seu antagonismo com o princípio de prazer. Pode-se ver nessa
dialética otimista outra versão da concepção marxista tradicional segundo a qual as
forças produtivas, criadas pela burguesia, acabarão por reverter as relações de
produção. Mas esse progresso técnico não é para Marcuse um objetivo enquanto tal, e
a quantidade de televisores ou de tratores (uma alusão à União Soviética) não define
a boa vida.42
A este propósito, Marcuse cita a belíssima frase de Mon cœur mis à nu [Meu
coração a nu], de Baudelaire: “A verdadeira civilização (...) não está no gás, no vapor
ou nas mesas giratórias. Está na diminuição dos vestígios do pecado original”.43
Pode-se, decerto, encontrar no pensamento de Marcuse igualmente as premissas de
um pensamento ecológico.44 Mas a confiança nas tecnologias expressa em Eros e
civilização não pode hoje em dia senão nos surpreender por sua ingenuidade –
mesmo se ela é compartilhada com quase todo pensamento de sua época, e com o
pensamento “de esquerda” mais ainda!
Esse elogio da tecnologia e sua importância para abolir o trabalho alienado
apresentam paralelos notáveis com as ideias que a Internacional Situacionista tinha
desenvolvido na mesma época. Notadamente Asger Jorn, 45 Constant e Pinot Gallizio,
mas também o próprio Debord, mostraram-se convencidos de que a tecnologia havia
tornado objetivamente caduco o modo de produção capitalista e que ela permitiria
uma livre associação de indivíduos que não seria mais baseada no trabalho. Se, na
sociedade do pós-guerra, tornou-se possível passar para uma civilização dos “lazeres”

42 “A posse e a obtenção dos bens vitais de consumo são a condição prévia mais do que o conteúdo da
sociedade livre”. MARCUSE, Herbert. Eros e civilização, op. cit., p. 172; tradução modificada.
43 Ibidem, p. 142; tradução modificada.
44 Ver MARCUSE, Herbert. « Écologie et critique de la société moderne e Écologie et révolution» .

Revue Illusio, n. 12/13. Theorie critique de la crise. Volume II. Du crépuscule de la pensée à la
catastrophe. Caen: Le ord de l’eau, 2014, p. 599-613 [Ecology and the Critique of Modern Society.
In: KELLNER, Douglas (Org.). Philosophy, Psychoanalysis and Emancipation. The Collected Papers
of Herbert Marcuse – vol. V. New York: Routledge, 2011, p. 206-222; Écologie et révolution. In: Le
nouvel Observateur. Paris, 19 juin 1972. O primeiro texto está disponível em português: Ecologia e
crítica da sociedade moderna. In: LOUREIRO, Isabel. (Org.). Herbert Marcuse: a grande recusa
hoje. Petrópolis: Vozes, 1999, p.143-154].
45 Ver, por exemplo, o artigo “Les situationnistes et l’automation”, de Asger Jorn, no primeiro número

da Internationale Situationniste 1958), no qual ele diz notadamente: “a automatização s se pode


desenvolver rapidamente a partir do momento em que estabelecer como objetivo uma perspectiva
contrária a seu próprio estabelecimento, e se souberem realizar tal perspectiva geral à medida que a
automatização se desenvolva”. Para Jorn, é necessário conhecer as oportunidades oferecidas pela
automatização: “Conforme o resultado, pode-se chegar ao total embrutecimento da vida humana ou à
descoberta permanente de novos dese os”. JACQUES, Paola Berenstein (Org.). Apologia da deriva:
escritos situacionistas sobre a cidade. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2003, p. 74-77.
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e do jogo, foi como consequência direta da “vitória sobre a natureza”, o que incluiria a
possibilidade de abolir o trabalho e a economia.
Para a Internacional Situacionista, trabalho e economia não são mantidos
vivos senão para salvaguardar a dominação de classe. Trata-se agora, para os
situacionistas, de executar essa sentença já enunciada pela história. A abertura
recente dos arquivos de Debord permitiu conhecer suas fichas de leituras e suas notas
preparatórias para a redação de La société du spectacle, nas quais ele sublinha
algumas semelhanças entre as teorias de Marcuse e a sua própria teoria do
espetáculo. Debord reconhece em Marcuse uma “ideia de base da Internacional
Situacionista, em termos psicanalíticos”, notadamente a propósito desta passagem de
Marcuse:

Se a civilização deve progredir em direção a um estágio superior de


liberdade, deve-se examinar seriamente a possibilidade histórica de uma
supressão progressiva dos entraves colocados ao desenvolvimento
instintivo e talvez até mesmo a necessidade histórica dessa supressão.46

Mas Debord sempre alimentava reservas em relação à tecnologia, 47 e operou, a


partir de 1971, uma virada muito forte em direção a uma crítica cada vez mais
pronunciada do papel das tecnologias.
Marcuse atribui às tecnologias um papel indispensável para sair de uma
condição histórica original de pobreza em que toda a vida do homem volta-se
somente para a sua simples reprodução. Ali onde os recursos disponíveis são raros, é
a Ananque que domina, e nenhuma emancipação é possível. As tecnologias, criando a
abundância, são, portanto, aos olhos de Marcuse, uma espécie de “mal necessário”.
Essa visão, segundo a qual o capitalismo seria uma etapa terrível, mas, afinal,
inevitável, para tirar a humanidade da miséria material, é, em verdade, contradita por
numerosas pesquisas históricas e antropológicas que surgiram, de modo geral, um
pouco mais tarde.48
As sociedades que precederam o capitalismo não viviam sempre nem em todos
os lugares com dificuldade: frequentemente a existência era menos penosa do que na

46 MARCUSE, Herbert. Eros e civilização, op. cit., p. 127; tradução modificada. Ver, a esse propósito,
ZACARIAS, Gabriel Ferreira. « Éros et civilisation dans La société du spectacle. Debord lecteur de
Marcuse ». Revue Illusio. Theorie critique de la crise. Volume II. Op. cit., p. 329-343.
47 Ele estabeleceu durante alguns anos, lembre-se, uma relação de estima recíproca com Jacques Ellul.
48 Para citar apenas uma: SAHLINS, Marshall. Stone Age Economics. New York: Aldine and de

Gruyter, 1972.
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47

sociedade moderna. A hipótese de uma penúria material original, de uma falta de


recursos, que teria formado a condição de base da humanidade, é, antes, ela mesma
uma construção ideológica burguesa. Marcuse, como muitos dos marxistas, aceita
sem questionar esse pressuposto do utilitarismo moderno. Esse assunto mereceria
aprofundamento, impossível de efetuar aqui.
Outro traço que, hoje em dia, pode parecer ultrapassado em Marcuse é a
sobrevalorização da sexualidade em geral, e da “sexualidade perversa polimorfa”, em
particular. O conceito de dessublimação repressiva queria denunciar a insuficiência
de um simples crescimento da “tolerância” nas sociedades do pós-guerra em relação à
sexualidade genital, “normal”. Ele designa, na recuperação do erotismo infantil e
total, o verdadeiro desafio da libertação.
Mas, atualmente, vê-se que mesmo certa progressão da perversão polimorfa
(que ocorreu indubitavelmente, ainda que sempre nas formas mercantilizadas e
tornadas inofensivas a priori) evidentemente não subverteu a sociedade. É difícil não
admitir que a sexualidade, enquanto tal, não é revolucionária. Ela não é incompatível
com o trabalho ou ela o é somente com o trabalho físico pesado. O “terceiro espírito
do capitalismo”, tal como analisado por Zygmunt Bauman, Luc Boltanski e Ève
Chiapello ou Dany-Robert Dufour, libidiniza, ao seu modo, o trabalho e as relações
humanas.
A plena recuperação contemporânea da energia erótica, pela valorização do
valor, e o tornar-se total, da forma-valor, podem mudar o olhar sobre certos
elementos da crítica social precedente. O que pretendia ser uma instância de
libertação pode se revelar, retrospectivamente, como uma contribuição involuntária à
passagem ao próximo estágio do desenvolvimento capitalista. O mesmo se passa com
a crítica do autoritarismo, das estruturas edipianas e dos interditos, característica dos
anos 1960. Tal crítica parecia o nec plus ultra da contestação.
Hoje em dia, pode-se dizer que esses rebeldes apenas aplicaram a exortação de
Nietzsche: “ao que cai, deve-se ainda empurrar”. A identificação do coração do
capitalismo com as estruturas da autoridade pessoal e com um supereu “edipiano”
era, no mínimo, unilateral (mesmo se essa identificação persiste em muitas cabeças
até hoje). Viu-se, em seguida, que o sistema de mercado pode funcionar muito bem
com uma dose menor de autoritarismo (mesmo se este não pode desaparecer
totalmente) e com muitas estruturas “líquidas” (Bauman). O verdadeiro
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autoritarismo é, então, o do “sujeito automático” (Marx): o valor e sua lógica


fetichista.
No seu tempo, Marcuse foi algumas vezes acusado de promover uma “utopia
regressiva” que teria indicado nas etapas menos “maduras” do desenvolvimento
psíquico a verdadeira dimensão humana, a qual ele mais teria pretendido valorizar.
Essa objeção tinha facilmente um tom conservador e assumia o ponto de vista de uma
“condição adulta” difícil de distinguir da simples adaptação social. Marcuse, aliás,
tomou distância do que lhe parecia regressivo e acusou o “primitivismo radical” de
Wilhelm Reich, que “não faz nenhuma distinção essencial entre a sublimação
repressiva e a sublimação não-repressiva”,49 visando apenas à libertação sexual.
Para Marcuse, a “libertação” da libido deve se acompanhar de sua
“transformação”, da transformação da sexualidade em Eros e de uma erotização do
corpo inteiro, e, igualmente, de uma erotização de todas as relações sociais, o
trabalho incluído, até o ponto em que “a própria Ananque se converta no campo
primário do desenvolvimento libidinal”.50
No entanto, é todo o desenvolvimento da sociedade de mercado desde os anos
1970 que assumiu traços regressivos, impelindo-os a uma infantilização galopante e a
uma denegação de todo princípio de realidade. Frequentemente, os indivíduos não
chegam, no seu primeiro desenvolvimento, ao complexo de Édipo e à formação do
supereu, agente da repressão. Eles param anteriormente, salvaguardando seu
narcisismo primário por meio de um narcisismo secundário que dura toda a vida.
Esse narcisismo não se exprime sempre nas formas explicitas de um
comportamento a-social e predador (a “perversão narcísica” que é atualmente a
alegria das mídias), mas também de mil formas mais sutis. Estas conduzem, no
entanto, sempre às tentativas de negar a separação original entre a criança e a mãe,
como nos explica Christopher Lasch.
O narcisismo é geralmente considerado como o distúrbio psicológico maior de
nossa época – mesmo se as ideias associadas a esse conceito variam enormemente
entre os especialistas e no uso cotidiano. O narcisismo parece tão ligado ao
capitalismo pós-moderno e líquido, flexível e “individualizado” (que encontra sua
expressão mais típica na “rede”), quanto a neurose obsessiva estava ligada ao

49 MARCUSE, Herbert. Eros e civilização, op. cit., p. 206; tradução modificada.


50 Ibidem, p. 186; tradução modificada.
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capitalismo fordista, autoritário, repressivo e piramidal (que encontrava sua


expressão característica na linha de montagem).
A valorização de Narciso em Eros e civilização é, portanto, problemática. 51
Mesmo admitindo que Marcuse pensava em alguma coisa muito diferente do
narcisismo consumista de hoje, é preciso dizer que sua interpretação de Orfeu é mais
convincente do que a de Narciso, e que seu elogio de Narciso era profético, para além
do que o autor pudesse pretender. Mas, ao mesmo tempo – e isso faz parte da riqueza
de seu pensamento –, Marcuse sublinhava, já em 1963, que a criança nascida em uma
família “permissiva” é somente menos capaz, em seguida, de opor-se ao mundo tal
qual ele está [tel qu’il va].52 Ele previa a evolução em direção a uma “sociedade sem
pais”.53 É justamente o título de um livro publicado na Alemanha, em 1963, cujo
autor, o analista Alexander Mitscherlich, era próximo da Escola de Frankfurt.54
A introdução do conceito de narcisismo no domínio da crítica social
permanece ligada ao livro A cultura do narcisismo, de Lasch, publicado em 1979 nos
Estados Unidos, cujas análises prolongam-se em O mínimo eu (1984).55 Esse autor
inclassificável propôs uma leitura devastadora da sociedade ocidental, da norte-
americana em particular, dos anos 1960-1980.56 Sua crítica, muito rica e original,
resume-se, através de análises detalhadas, a encontrar em toda parte os signos de um
narcisismo fundamental.
O que ele entende por narcisismo? Ele passa em revista a concepção de Freud,
de Melanie Klein, de Béla Grunberger e de muitos outros autores, para chegar a esta
definição: o narcisismo secundário é o esforço patológico para negar a separação

51 Dentre outros aspectos, Marcuse queria valorizar a relação inicial “narcisista” com a mãe, ao invés de
celebrar o pai como salvador em face da ameaça de uma absorção esmagadora na matriz (MARCUSE,
Herbert. Eros e civilização, op. cit., p. 199). Já Adorno, na sua conferência de 1946, considerava o
narcisismo como uma defesa do indivíduo contra a sociedade repressiva: ele constitui uma tentativa
desesperada do indivíduo para compensar a injustiça sofrida na sociedade da troca universal. Além
disso, o indivíduo deve dirigir para si mesmo as energias pulsionais quando as outras pessoas
tornaram-se inacessíveis (ADORNO, Theodor. La psychanalyse révisée. Seguido de LE RIDER,
Jacques. L’allié incommode, op. cit., p. 3).
52 Ver MARCUSE, Herbert. “ bsolescence of the Freudian Concept of Man”, conferência de 1963,

publicada em MARCUSE, Herbert. Five Lectures. Psychoanalysis, Politics and Utopia. Boston:
Beacon Press, 1970 e em Kultur und Gesellschaft. Volume II. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1965 [A
obsolescência da psicanálise. In: MARCUSE, Herbert. Cultura e sociedade. São Paulo: Paz e Terra,
1998].
53 Ibidem, p. 259.
54 Ver MITSCHERLICH, Alexander. Auf dem Weg zur vaterlosen Gesellschaft: Ideen zur

Sozialpsychologie. Zurich: Buchclub Ex libris, 1963.


55 Da obra de Lasch, nós consideraremos apenas esses dois livros.
56 Outros aspectos de seu pensamento nos parecem mais contestáveis. Entre os aspectos fracos de

Lasch, encontram-se seu populismo, a ausência de qualquer crítica da economia política, sua
nostalgia da América do século XIX, a apologia do esporte e, sobretudo, do trabalho...
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originária em relação à mãe e compensar a sensação assustadora de impotência do


recém-nascido com um todo-poderoso imaginário. Este se exprime tanto através das
fantasias fusionais quanto através dos desejos de dominação. Assim, tanto uma
aspiração pseudomística a se fundir com o cosmos, ou a natureza, como acontece com
a New Age, quanto os projetos de controle tecnológico de uma natureza submetida ao
homem – e, portanto, de uma autossuficiência total do sujeito –, podem ser
abrangidos pelo narcisismo no sentido de Lasch.57
Sua concepção do narcisismo encontra-se bem resumida neste parágrafo:

A expressão psicológica desta dependência é o narcisismo. Em sua forma


patológica, o narcisismo se origina como uma defesa contra sentimentos
de dependência impotente na primeira infância, que ele tenta combater
com um “otimismo cego” e ilusões grandiosas de autossuficiência
pessoal. Como a sociedade moderna prolonga a experiência da
dependência pela vida adulta, ela encoraja formas mais brandas de
narcisismo em pessoas que, de outro modo, poderiam enfrentar os
limites inevitáveis de sua própria liberdade e poder pessoal – limites
inerentes à condição humana – ao desenvolverem competências como
trabalhadores e como pais. Contudo, ao mesmo tempo em que a
sociedade torna cada vez mais difícil encontrar satisfação no amor e no
trabalho, ela cerca o indivíduo com fantasias manufaturadas de
gratificação total. O novo paternalismo prega não a abnegação, mas a
realização pessoal. Ele favorece os impulsos narcisistas e desencoraja sua
modificação pelo prazer de tornar-se autoconfiante, ainda que em um
campo limitado, o que, em condições favoráveis, acompanha a
maturidade. Enquanto encoraja sonhos grandiosos de onipotência, além
do mais, o novo paternalismo mina as fantasias mais modestas, erode a
capacidade de suspender a descrença e, assim, torna cada vez menos
acessíveis as gratificações substitutivas inofensivas, notadamente a arte e
o jogo, que ajudam a mitigar a sensação de impotência e o medo da
dependência que, de outro modo, expressam-se eles mesmos em traços
narcísicos.58

Em geral, o narcísico não é necessariamente um egoísta, mas é, sobretudo,


alguém que não sabe definir as fronteiras entre o eu e o não-eu.
No interior de seu edifício teórico, o que nos interessa aqui é a crítica que
Lasch dirige a Marcuse – malgrado uma filiação revindicada à Escola de Frankfurt e
ao seu representante mais conhecido nos Estados Unidos. Nós precisaremos seguir os
argumentos bastante sutis de Lasch quando ele aprova, no essencial, a crítica que
Marcuse endereça aos neofreudianos, mas rejeita, por sua vez, a revisão particular
57 Os comentadores de Lasch prestam em geral muito mais atenção no seu lado descritivo do que nas
suas bases teóricas e na sua leitura de Freud. Ele suscitou pouco interesse entre os próprios
psicanalistas, como geralmente é o caso de toda perspectiva aberta pelos não-psicanalistas.
58 LASCH, Christopher. A cultura do narcisismo, op. cit., p. 277; tradução modificada.
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51

que Marcuse, assim como Norman Brown, operam a respeito de Freud. Lasch propõe
sua própria versão de retorno ao último Freud. Ele acusa Marcuse de permanecer,
contra a sua própria intenção, no interior da cultura do narcisismo.
Lasch vê o narcisismo em prática tanto na cultura mainstream quanto nas
suas pretensas contestações:

As estratégias narcísicas de sobrevivência apresentam-se agora


como a libertação de condições repressoras do passado, dando,
assim, origem a uma “revolução cultural”, que reproduz os piores
aspectos da civilização em colapso que ela pretende criticar.59

Mas este “radicalismo cultural” não critica senão os valores e os modelos


doravante ultrapassados pelo próprio desenvolvimento do capitalismo. Ele se
apresenta como a colocação em questão das estruturas autoritárias em nome do
florescimento do indivíduo. Trata-se, então, de um ataque ao “pai” e ao supereu; o
supereu seria o agente de uma sociedade repressiva. Para ser livre, diz a cultura da
libertação pessoal, o indivíduo deve se libertar do supereu. Entretanto, isso é uma
ilusão, segundo Lasch: existem supereus que são muito piores do que o “pai” clássico
e seus prolongamentos sociais. O declínio da família apenas suscita um supereu
arcaico e feroz no interior do próprio indivíduo “libertado”. Ele escreve:

As condições alteradas da vida familiar levam não tanto a um “declínio


do supereu”, mas a uma alteração de seus conteúdos. O fracasso dos pais
em servir de modelo de automínio disciplinado ou em reprimir o filho,
não significa que a criança cresça sem um supereu. Ao contrário, ele
encoraja o desenvolvimento de um supereu punitivo e severo, baseado,
em grande parte, em imagens arcaicas dos pais, fundidas com
autoimagens grandiosas. Sob essas condições, o supereu consiste em
introjeções parentais ao invés de identificações. Ele mantém para o ego
um padrão exaltado de fama e sucesso e o condena com selvagem
ferocidade, quando fica aquém do padrão. Daí as oscilações da
autoestima tão frequentemente associada ao narcisismo patológico. A
fúria com a qual o supereu pune os fracassos do eu sugere que ele extrai
muito de sua energia de impulsos agressivos do id, não misturados à
libido. A supersimplificação convencional, que relaciona o supereu e o id
com o “autodomínio” e a “autoindulgência”, tratando-os como se fossem
radicalmente opostos, ignora os aspectos irracionais do supereu e a
aliança entre agressão e uma consciência punitiva. O declínio da
autoridade parental e das sanções externas em geral, enquanto de muitas
maneiras enfraquece o supereu, paradoxalmente reforça os elementos

59 Ibidem, p. 14; tradução modificada.


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agressivos e ditatoriais no supereu e, assim, torna mais difícil do que


nunca aos desejos instintivos encontrar saídas aceitáveis.60

A aliança entre o supereu e Thanatos “dirige contra o eu uma torrente de


críticas ferozes, implacáveis”.61 Essas observações parecem hoje em dia ainda mais
verdadeiras do que na época de Lasch. Para citar um fenômeno particularmente
difundido: na depressão vivida por aqueles e aquelas que não são bem sucedidos em
“manter seu peso” ou em seguir os critérios de beleza, afirma-se um supereu feroz
sempre prestes a sobrecarregar o eu com reprovações e a lhe atribuir toda
responsabilidade por seus fracassos na vida. Um supereu tanto mais insidioso e difícil
de escapar que ele não fala mais em nome das exigências exteriores (o dever, a pátria,
a religião, a honra, etc.), mas em nome do gozo do próprio indivíduo que peca contra
si mesmo apenas se não for bem sucedido na vida, a qual lhe asseguram depender
somente dele...
O indivíduo contemporâneo sente-se eternamente culpado por não satisfazer
as expectativas que, no quadro do capitalismo em declínio, são completamente
irrealistas, e para a satisfação das quais lhe faltam todos os meios.62 Assim, os
cidadãos da sociedade contemporânea oscilam permanentemente entre sentimentos
de todo-poder e impotência. Daí a conhecida vontade de tudo controlar – “gerir” – na
vida individual e coletiva (é “a extensão do domínio da gestão” a todas as esferas da
vida de que fala a socióloga Michela Marzano).
As instâncias de libertação, que detinham alta reputação [le haut du pavé] nos
anos 1960-1970, propunham, então, lutar contra o supereu, cuja origem encontrar-
se-ia na resolução do complexo de Édipo: a criança (macho) aceita sua derrota e
acaba por se identificar com o pai que interdita o acesso à mãe. Isto se torna o modelo
de todas as interdições sucessivas e de todas as estruturas de poder. A luta contra o
pai castrador é, então, o início da luta contra todas as formas de repressão. O
freudomarxismo revitalizado nessa época propunha unir, dessa maneira, libertação
pessoal e revolução social.
Ora, Lasch rejeita esta perspectiva. Mas ele a recusa porque a considera como
uma armadilha, como outra forma de adesão ao narcisismo que está no coração do

60 Ibidem, p. 219-220; tradução modificada.


61Ibidem, p. 220; tradução modificada.
62 Isso que está bem descrito, sem recursos particulares às categorias psicanalíticas, nas obras de

Zygmunt Bauman.
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capitalismo contemporâneo. Para efetuar sua crítica do “radicalismo cultural”,63 ele


revindica o último Freud.

O supereu representa o medo interiorizado da punição, no qual os


impulsos agressivos são redirigidos contra o eu. O supereu – em
todo caso, a parte primitiva e punitiva do supereu – representa
não tanto os constrangimentos sociais interiorizados, como o
medo da retaliação, evocada por poderosos impulsos para destruir
a própria fonte da vida.64

O complexo de Édipo é “uma outra variação sobre os temas subjacentes da


separação, da dependência, da inferioridade e da reunião”,65 depois do fracasso das
fantasias orais diante da realidade. Em Inibição, sintoma e angústia (1926), o
próprio Freud aludiu a uma “camada creto-micênica” abaixo do conflito edipiano,
dizendo que “‘a angústia devida à separação da mãe protetora’ é a fonte original do
conflito mental”,66 o conflito edipiano incluído. “Parece agora que é a consciência
crescente da criança com relação à disparidade entre o seu desejo de reunião sexual
com a mãe e a impossibilidade de realizá-lo que precipita o complexo de Édipo”. A
imaginação da criança ultrapassa suas capacidades físicas efetivas.

A precocidade do desenvolvimento mental e emocional da criança, a


precocidade de suas fantasias [sexuais] em comparação com as suas
capacidades físicas, é a chave não apenas para o complexo de Édipo,
como também de todo seu desenvolvimento posterior.67

Não são somente as interdições paternas, mas também a falta de maturidade


física que impedem a realização dos desejos incestuosos da criança (dos dois sexos).
“A inve a do pênis corporifica a ‘tragédia das ilusões perdidas’, como afirma
Chasseguet-Smirgel”, uma psicanalista francesa que Lasch reivindica com frequência.

Ela chega a argumentar que, como jamais podemos nos reconciliar com
o abandono dessas ilusões, continuamos a elaborar fantasias que negam
qualquer conhecimento das diferenças sexuais. 68

63 Esse termo significa em Lasch uma espécie de “esquerda cultural” que compreende a “nova
esquerda”, o feminismo, o pensamento ecol gico, o movimento de autoconsciência e outras formas
de contestação nascidas em torno de 1968.
64 LASCH, Christopher. O mínimo eu, op. cit., p. 155; tradução modificada.
65 Ibidem, p. 157.
66 Ibidem, p. 157; tradução modificada.
67 Ibidem, p. 157; tradução modificada.
68 Ibidem, p. 158; tradução modificada.
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54

Não se trata, certamente, de uma questão individual, mas de uma condição


humana: “O nascimento prematuro e a dependência prolongada são os fatos
dominantes da psicologia humana”.69 E ainda:

Se a designação da cultura contemporânea como cultura do narcisismo


possui mérito, é porque tal cultura tende a favorecer as soluções
regressivas ao invés das soluções “evolucionistas”, como denomina
Janine Chasseguet-Smirgel, para o problema da separação. Três linhas
de desenvolvimento social e cultural destacam-se como particularmente
importantes no estímulo a uma orientação narcisista para a experiência:
a emergência da assim chamada família igualitária; a crescente
exposição da criança a outras agências socializadoras além da família; e o
efeito geral da moderna cultura de massa, que rompe as distinções entre
ilusões e realidade.70

Lasch retira daí sua versão particular de crítica da sociedade contemporânea:


esta impede justamente as “soluções evolucionistas”. Em que elas consistiriam?

Os fatos inevitáveis da separação e da morte somente são suportáveis


porque o mundo reconfortante dos objetos feitos pelo homem e da
cultura humana restaura o sentido de conexão primária em uma nova
base. Quando esse mundo começa a perder a sua realidade, o medo da
separação torna-se quase esmagador e a necessidade de ilusões passa a
ser, consequentemente, mais intensa que nunca.71

A melhor resposta a essa necessidade de ser tranquilizado é, segundo Lasch, o


“objeto transicional” de que fala Donald Winnicott. Ele não é somente um substituto
do seio, mas permite ir à conquista de um mundo exterior que está ao mesmo tempo
reconhecido na sua autonomia. Ele permite assim sair da fusão. Ao final, a infância
ultrapassa a necessidade dos objetos transicionais porque os fenômenos transicionais
difundiram-se para todos os lugares e ocuparam todo o terreno intermediário entre o
interior e o exterior.
Para Winnicott, lembra Lasch, o brinquedo e seu desenvolvimento na arte não
são, portanto, como para muitos dos psicanalistas, gratificações substitutivas, mas
constituem mediações essenciais entre a separação afetiva e a união.

69 Ibidem, p. 155.
70 Ibidem, p. 169-170; tradução modificada.
71 Ibidem, p. 178; tradução modificada.
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55

Portanto, é o reino intermediário dos objetos feitos pelo homem que


ameaça desaparecer nas sociedades baseadas na produção em massa e
no consumo de massa. É certo que vivemos circundados por objetos
feitos pelo homem, mas eles não servem mais para a mediação efetiva
entre o mundo interior e o mundo exterior. [...] O mundo das
mercadorias tornou-se uma tipo de “segunda natureza”, como indicaram
inúmeros pensadores marxistas, cuja receptividade ao controle e direção
dos homens não é maior que a da natureza propriamente dita. Ele já não
porta o caráter de um ambiente feito pelo homem. Simplesmente nos
confronta, de uma só vez excitante, sedutor e aterrorizante. Em vez de
proporcionar um “espaço potencial entre o indivíduo e o ambiente” – na
descrição de Winnicott do mundo dos objetos transicionais –, ele
esmaga o indivíduo. Desprovido de qualquer caráter “transicional”, o
mundo das mercadorias situa-se como algo completamente separado do
eu; porém, ele assume simultaneamente a aparência de um espelho do
eu, um deslumbrante conjunto de imagens nas quais podemos ver tudo o
que desejamos. Ao invés de fazer uma ponte sobre a distância entre o eu
e seu ambiente circundante, ele oblitera a diferença entre estes.72

Lasch distingue nitidamente sua própria leitura da realidade social e sua


interpretação da psicanálise daquelas de Marcuse. Ele distingue três “partidos”: o do
“supereu” (os conservadores), o do “eu” (os humanistas e os liberais culturais, mas
também a velha esquerda) e o do “ideal do eu” (o partido da “revolução cultural”, que
não é somente contra o capitalismo, mas também contra o industrialismo). Ele situa
Marcuse no último campo, o qual ele chama também de “partido de Narciso”.
Segundo Lasch, que consagra a Marcuse algumas páginas do último capítulo
de O mínimo eu, intitulado “O assalto ideológico ao eu”,73 este autor, assim como
Norman Brown, teve boas razões para atacar o radicalismo precedente, aquele de
Reich, Fromm, Horney e de outros neofreudianos que insistiam sobre as causalidades
culturais e queriam libertar Freud da ciência mecânica e da cultura burguesa e
patriarcal do século XIX. “O feminismo, o marxismo e a psicanálise pareciam
convergir na revelação da família autoritária e da personalidade ‘patricêntrica’, que
experimenta o sofrimento como culpa e não como injustiça”74 e se identifica com o
agressor.
Lasch resume as acusações que Marcuse e Brown endereçaram aos
neofreudianos, e aprova o essencial.75 Mas ele expressa reservas a propósito da

72 Ibidem, p. 179-180; tradução modificada.


73 Ibidem, p. 207-240.
74 Ibidem, p. 211.
75 Lasch critica Fromm por ter identificado no seu escrito The Heart of Men o narcisismo com o

simples comportamento antissocial e individualista (LASCH, Christopher. A cultura do narcisismo,


op. cit., p. 63).
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56

centralidade do complexo de Édipo em Marcuse, o qual considera até mesmo sua


origem como um fato histórico (a horda primitiva, uma teoria que Lasch declara
“duvidosa”). Segundo Lasch, Freud, nos seus escritos sociológicos tardios, sobretudo
em Psicologia das massas e análise do eu e no Moisés e o monoteísmo, baseia-se “em
um modelo de conflito mental descartado nos escritos mais estritamente psicológicos
de sua última fase”.76
Nestes, como já mencionamos, Freud reconduz o essencial do conflito mental
para um estágio anterior do desenvolvimento do indivíduo, em que não é o pai que
impede a realização do desejo incestuoso, mas a própria fisiologia da criança. Este
estágio é marcado, sobretudo, pela angústia da primeira separação: primeiro, a saída
da situação intrauterina; em seguida, o fim de seu prolongamento durante os
primeiros meses de vida. O resultado do complexo de Édipo, afirma Lasch, o qual
considera de pleno acordo com o último Freud, não é somente a submissão ao
princípio de realidade: com efeito, o agente da repressão não é somente “a realidade”.
“Todo o esquema conceitual que opõe prazer e realidade, equiparando o primeiro ao
inconsciente e a última à adesão consciente à moralidade parental, deve dar lugar a
um modelo mental diferente”.77
Comentando o ensaio de Marcuse de 1963, cujo título original em inglês é “The
Obsolescence of the Freudian Concept of Man”, Lasch aprova a tese central segundo a
qual nós estamos indo em direção a uma “sociedade sem pais”, em que a sociedade
modela diretamente o eu, e em que “essas mudanças levam a uma ‘tremenda
liberação de energia destrutiva’, uma ‘feroz’ agressividade ‘liberada dos vínculos
instintivos com o pai como autoridade e consciência’”.78 No entanto, afirma Lasch,

[...] esses desenvolvimentos invalidam não o “conceito freudiano de


homem”, mas uma teoria social “extrapolada”, nas palavras do próprio
Marcuse, das extrapolações de Freud a partir dos dados clínicos para a
pré-história. Eles invalidam a ideia, já debilitada pelas últimas obras de
Freud e por boa parte dos trabalhos subsequentemente produzidos pelos
kleinianos, pelos teóricos das relações objetais e pelos psicólogos do eu,
segundo a qual a repressão origina-se na sujeição do princípio de prazer
à compulsão patriarcal para o trabalho. Apesar disso, Marcuse continua,
mesmo em seus escritos posteriores, a condenar o “princípio de
desempenho” como a fonte primeira da infelicidade e da alienação
humanas.79
76 LASCH, Christopher. O mínimo eu, op. cit., p. 214.
77 Ibidem, p. 207-215; tradução modificada.
78 Ibidem, p. 215.
79 Ibidem, p. 216; tradução modificada.
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57

Para Marcuse, o trabalho será sempre uma alienação; a libertação de Eros


demanda a abolição tecnológica do trabalho. Marcuse, resume Lasch, rejeita

[...] qualquer intenção de defesa de uma “regressão romântica para antes


da tecnologia”, ele insiste no potencial libertador da tecnologia
industrial. [...] A automação apenas possibilita a Orfeu e a Narciso
saírem de seu esconderijo. O triunfo da perversidade polimórfica
depende de sua antítese: a racionalidade instrumental conduzida ao
ponto da arregimentação total. Presumivelmente um exercício de
pensamento dialético [...]. A consecução das “relações de trabalho
libidinais”, ao que parece, requer a organização da sociedade em um
vasto exército industrial.80

Aos olhos de Lasch, Marcuse tem mais em comum com Fromm e Reich do que
ele acredita:

Apesar da sua tentativa de confrontar o profundo pessimismo da obra


tardia de Freud, a interpretação de Marcuse da teoria psicanalítica, tal
como a dos neofreudianos, se baseia quase inteiramente na obra inicial
de Freud, na qual o sofrimento mental se origina da submissão do
princípio de prazer a uma realidade opressiva, imposta externamente. A
despeito de sua condenação da “filosofia moralista do progresso” dos
neofreudianos, Marcuse partilha com eles a fé – parte do legado
intelectual do movimento socialista do século XIX e do Iluminismo em
geral – de que o progresso da razão e da tecnologia, uma vez libertas dos
constrangimentos capitalistas, no final tornará a vida agradável e
indolor.81

Lasch oferece também uma análise bastante sutil da obra de Brown, de quem
ele julga a leitura de Freud superior, em muitos aspectos, àquela feita por Marcuse.
Para Lasch, Brown

[...] é um crítico mais cortante do revisionismo neofreudiano do que


Marcuse. Não é apenas a “ênfase revisionista na influência das condições
sociais” que está equivocada, como sustenta Marcuse. As teorias
revisionistas da cultura baseiam-se no equívoco mais fundamental de
que a repressão se origina no controle parental sobre a sexualidade
infantil.82

Se a teoria revisionista fosse verdadeira, poder-se-ia atenuar a repressão


através de uma reforma da educação ou da sociedade – como pretendem os

80 Ibidem, p. 216; tradução modificada.


81 Ibidem, p. 278; tradução modificada.
82 Ibidem, p. 218; tradução modificada.
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58

neofreudianos, mas também, apenas de maneira mais radical, Marcuse. Brown


reconhece melhor, segundo Lasch, a incompatibilidade entre as pulsões infantis e
toda cultura e, como Freud, ele recusa toda consolação fácil. Ele se desvencilha da
noção segundo a qual o prazer sexual é o único objeto de repressão, e do seu corolário
segundo o qual a neurose teria como origem um conflito entre o prazer e a ética
patriarcal do trabalho, entre Eros e a moral civil. Ele explica que essas ideias derivam
de teorias ingênuas sobre o progresso histórico que o próprio Freud havia
abandonado nos seus últimos trabalhos psicológicos.
Se nós não podemos seguir aqui os detalhes da análise laschiana de Brown, é
necessário, todavia, retomar a conclusão. Para Lasch, o jogo e a arte são modos
importantes para estabelecer uma relação não narcísica com o mundo: não se trata de
negar a separação, mas de reconhecê-la primeiro para oferecer uma compensação em
seguida. A arte não é somente, portanto, como para Marcuse e Brown, uma
gratificação substitutiva e, finalmente, patológica.

Não obstante o seu desprezo pela psicologia do eu, Brown, Marcuse e


seus seguidores recaem na mesma estratégia [...] de isentar certas
atividades privilegiadas do escrutínio psicanalítico [...]; para a esquerda
freudiana, são a arte e o jogo [...]. Enquanto Freud insistia no parentesco
subjacente entre arte e neurose, Brown, Marcuse e Dinnerstein
procuram salvar a arte e a criatividade lúdica da crítica psicanalítica às
pretensões humanas, da mesma forma que Hartmann busca salvar a
percepção, a linguagem e a memória. A arte se assemelha à psicose
regressiva mais profunda em sua tentativa de restabelecer um
sentimento de unidade com a mãe primal. O que distingue a arte da
psicose ou da neurose é que ela também reconhece a realidade da
separação. A arte rejeita o caminho fácil das ilusões.83

Ainda que o resultado final da obra de arte possa ser sereno, é sempre
necessária a elaboração de um conflito entre união e separação. O papel da arte e do
jogo é, assim, de permitir ao homem suportar as renúncias que a cultura – toda
cultura – lhe impõe:

A psicanálise se recusa a dissolver a tensão entre instinto e cultura, que


ela encara como a fonte do que há de melhor, e do que há de pior, na
vida humana. Ela sustenta que a sociabilidade não apenas frustra como,
ao mesmo tempo, satisfaz as necessidades pulsionais; que a cultura não
somente assegura a sobrevivência das espécies humanas, mas também
proporciona prazeres genuínos associados à exploração e ao domínio do

83 Ibidem, p. 226; tradução modificada.


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59

mundo natural; que a exploração, a descoberta e a invenção recorrem


elas próprias a impulsos lúdicos; e que a cultura representa para o
homem precisamente a vida “própria à sua espécie”.84

Lasch acredita, portanto, que ele deu um golpe decisivo contra o que ele
nomeia também de “partido do ideal do Eu” – a esquerda de 1968 – com um
argumento essencial: o papel do supereu. Sempre revindicando os últimos escritos de
Freud, Lasch afirma que o supereu não é o representante do mundo exterior, mas o
advogado do mundo interior. Ele não é somente o resultado da interiorização de uma
repressão vinda do exterior (da sociedade através do pai).

Ao contrário, o supereu consiste dos próprios impulsos agressivos do


indivíduo, inicialmente dirigidos contra seus pais ou substitutos dos
pais, projetados neles, reinteriorizados como imagens agressivas e
dominadoras da autoridade e finalmente redirigidos, nesta forma, contra
o eu. As imagens da autoridade parental destrutiva e punitiva originam-
se não nas proibições reais dos pais, mas na raiva inconsciente da
infância, que desperta ansiedade insuportável e, desse modo, tem que
ser redirecionada contra o eu. [...] Seria possível dizer que a própria
angústia da castração é meramente uma forma posterior da angústia da
separação, que o arcaico e vingativo supereu deriva do medo da
retaliação materna e que, quando muito, a experiência edipiana tempera
o supereu punitivo da infância ao acrescentar-lhe um princípio mais
impessoal de autoridade, mais “independente de suas origens
emocionais”, como afirma Freud, mais inclinado a apelar a normas
éticas universais, e um pouco menos passível, portanto, de associar-se
com as fantasias inconscientes de perseguição.85

O supereu edipiano está também bastante ligado ao desejo de reparação, à


gratidão em relação à mãe, formando assim o primeiro núcleo da consciência moral.
Em resumo: para Lasch, o conflito entre pulsões e civilização não está somente
relacionado a circunstâncias históricas, mas está ancorado na própria estrutura da
pulsão, tal como ela se manifesta já no recém-nascido. O que muda historicamente, e
pode constituir um objeto da crítica, são as respostas – regressivas ou evolutivas –
que as diferentes civilizações aportaram à angústia original. A angústia da separação
não é produto da cultura, mas as maneiras de enfrentá-la são. Daí porque Lasch não é
reacionário: ele condena a sociedade de mercado (sem chamá-la assim) porque ela
impõe respostas particularmente regressivas ao problema. Aqui, sua crítica da
sociedade de consumo encontra, finalmente, aquela de Marcuse, mas com menos

84 Ibidem, p. 221-222; tradução modificada.


85 Ibidem, p. 160-162; tradução modificada.
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60

ilusões. Ela parece mais apropriada à nossa época, caracterizada pela captação do
desejo pela mercadoria (o que, entretanto, já constituiu um dos temas mais atuais de
Marcuse...).
É, com efeito, evidente que a situação contemporânea corresponde,
surpreendentemente, às descrições de Lasch. Este, na verdade, situava-se ainda na
fronteira entre a época fordista-moderna e a época pós-moderna, designando às vezes
como “narcísicos” fenômenos que nos parecem pertencer mais ao passado fordista-
moderno (por exemplo, o Estado-providência com traços maternais). Ele previu com
muita acuidade fenômenos tais como a obsessão da “autonomia” e o desejo de não ter
necessidade de ninguém, de não depender de ninguém: de poder se passar por
outros, do Outro.
Outras questões essenciais permanecem abertas: o que fazer do supereu, fruto
do complexo de Édipo? Seu declínio é necessariamente positivo, significa uma forma
de liberdade individual maior, o fim do patriarcado, até mesmo do trabalho? Ou ele
deu lugar a uma nova forma de fetichismo, ainda mais difícil de compreender,
nomear e combater, porque ele reside plenamente no interior dos indivíduos e parece
de acordo com seu desejo de “gozo”?
Nós já dissemos que, durante muito tempo, a direita falava de “natureza”, e
sobretudo, de “natureza humana”, e a esquerda, de “cultura”. Para a direita, essa
natureza assinala os limites muito estritos da possibilidade de transformar a vida;
para a esquerda, quase tudo é fruto da sociedade e da educação e pode, então, ser
alterado. Essas duas posições persistem ainda hoje. Mas a posição de esquerda é
necessariamente emancipadora? Ela não é muito compatível com os projetos
tecnocientíficos de refazer o mundo, com o desprezo de todo limite, que se pode ver
tão bem tanto no consumo excessivo quanto na crise ecológica? A plasticidade
infinita do ser humano não continua a assombrar o imaginário contemporâneo “de
esquerda”, em particular no seu entusiasmo insensato [décervelé] com relação às
técnicas de procriação assistida? Tecnofilia e narcisismo sempre fazem boa
combinação.
Uma questão, porém, permanece mal elucidada em Lasch: quais são as causas
históricas de uma mudança tão importante quanto a ascensão do narcisismo? Um
retorno generalizado para as formas pré-edipianas constitui uma verdadeira mutação
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antropológica e deve ter causas muito importantes.86 Aqui, suas explicações


permanecem mais superficiais: ele evoca sobretudo o declínio da pequena empresa
em favor das grandes corporações, a desintegração da família tradicional e a
burocratização da existência. Como quase a totalidade dos observadores de seu
tempo (neste campo, ele é bem menos original do que alhures), ele considera a
substituição da concorrência pela gestão dos monopólios (estatal e das grandes
corporações) como o resultado definitivo da parábola do capitalismo.87
Poucos anos depois, o triunfo do neoliberalismo demonstrou o contrário – e,
sobretudo, vimos que foi a cultura neoliberal, e não o fordismo-keynesianismo por
meio de seus últimos avatares, que elevou o narcisismo à posição de forma mentis
universal. Nesta identificação da lógica profunda do capitalismo com a supressão da
concorrência (e dos espaços de liberdade que estariam ligados a ela) e com uma
burocracia onipresente, Lasch reencontra-se, sem se perceber, em acordo com
Marcuse e toda a Escola de Frankfurt.88
Com efeito, Marcuse explica, ele também, as mudanças psíquicas e “a abolição
tecnológica do indivíduo” pelo fim da empresa individual, o reino dos “monopólios” e
o “declínio do papel social da família”. Antes, ele podia ter, sobretudo na resolução do
complexo de Édipo, uma verdadeira experiência pessoal, que “deixava cicatrizes
dolorosas” e uma “esfera de não-conformismo privado”. Mas,

86 Slavoj Žižek também percebeu, à sua maneira, no seu prefácio à edição croata de A cultura do
narcisismo, publicada em 1986: “Além da característica intrinsecamente incompleta de seu aparato
conceitual analítico, o ponto fraco de Lasch encontra-se no fato de que ele não fornece uma definição
teórica suficiente dessa transformação na realidade socioeconômica do capitalismo tardio que
corresponde à transição do ‘homem organizacional’ para o ‘ arciso patol gico’. o nível do discurso,
essa transformação não é difícil de determinar: trata-se da transformação da sociedade burocrática
dos anos 1940 e 1950 em uma sociedade descrita como ‘permissiva’. Ela comporta um processo ‘p s-
industrial’ que, nesse nível, foi descrita em termos de teoria da ‘ erceira onda’, por escritores como
offler” “‘Pathological arcissus’ as a Socially Mandatory Form of Sub ectivity”. Publicado
inicialmente na edição croata de A cultura do narcisismo. Narcisticka Kultura. Zagreb: Naprijed,
1968).
87 Ver HOMS, Clément. La roue à hamster. Esquisse pour une histoire de la dynamique et de la

trajctoire du capital au XXe siècle. Revue Illusio, n. 16/17. Theorie critique de la crise. Volume IV.
Caen: Le ord de l’eau no prelo).
88 Na conferência de 1946, sobre a psicanálise revisada, Adorno dirige esta censura surpreendente à

Karen Horney: ela colocaria muito acento na concorrência. “ a época dos campos de concentração, a
castração é mais característica da realidade social do que a concorrência” AD R , heodor.
Ensaios sobre psicologia social e psicanálise, op. cit., p. 58). Segundo Adorno, falar de
“concorrência” é um eufemismo diante da violência onipresente. Com efeito, ele tinha elaborado com
Horkheimer, na mesma época, o conceito de “rackets”, os quais teriam substituído a esfera da
circulação – um dos lados mais fracos de seu percurso teórico.
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[...] agora, sob o reino dos monopólios culturais, econômicos e políticos,


a formação do supereu adulto parece saltar a etapa da individualização: a
unidade genérica torna-se diretamente uma unidade social.89

A quase abolição da concorrência – que Marcuse considera como uma


evidência – diminui a individualidade.90
Outra maneira de perceber a relação entre narcisismo e sociedade capitalista
moderna aparece quando se concebe esta última como sociedade da valorização do
valor das mercadorias; este valor é a representação fetichista do lado abstrato do
trabalho. O que o valor de mercado (e a sociedade na qual ele se torna o princípio de
síntese social) tem em comum com o narcisismo é a ausência de qualquer conteúdo –
o vazio constitutivo. Com efeito, o narcisismo é essencialmente uma desvalorização
do mundo exterior e uma incapacidade de reconhecê-lo na sua autonomia. Todos os
valores mercantis são iguais, eles são apenas diferentes quantidades da mesma
substância fantasmagórica – o trabalho abstrato. O papel do ilimitado e do
tautológico, o fato de ir somente do mesmo para o mesmo, sem encontrar a
alteridade, de tal sorte que tudo é igual a tudo, mas também a demolição das
fronteiras entre gerações e sexos, a manipulação genética e a procriação assistida, até
o desejo de poder escolher seu próprio corpo: parece impossível estudar hoje esses
fenômenos sem levar em conta a lógica do valor e a lógica do narcisismo. Até os
videogames: o que são eles senão um mundo sem corpo e sem limites, sem fronteira
entre o eu e o não-eu?
O discurso sobre a mercadoria não está ausente em Lasch. Ele compreende
bem os efeitos psicológicos – de desrealização – do consumo de mercadorias, mas ele
permanece distante de todo discurso formulado nos termos da crítica da economia
política:
A completa dependência do consumidor diante desses intricados e
extremamente sofisticados sistemas de amparo à vida e, de modo mais
geral, diante dos bens e serviços fornecidos externamente, recria alguns
dos sentimentos infantis de desamparo. Se a cultura burguesa do século
XIX reforçava os padrões anais de comportamento – acumulação de
dinheiro e suprimentos, controle das funções fisiológicas, controle do
afeto – a cultura do consumo de massa no século XX recria os padrões
orais enraizados em um estágio de desenvolvimento ainda mais anterior
do desenvolvimento emocional, quando a criança era completamente

89 Eros e civilização, op. cit., p. 97; tradução modificada.


90 Ibidem, p. 101.
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dependente do seio. O consumidor experimenta seu entorno como um


tipo de extensão do seio, alternadamente gratificante e frustrante.91

Nem a realidade nem seu eu apresentam-se como sólidos e duráveis.

Em parte porque a propaganda que envolve as mercadorias apresenta-as


tão sedutoramente como a satisfação dos desejos, em parte, também,
porque a produção de mercadorias, por sua própria natureza, substitui o
mundo dos objetos duráveis por produtos descartáveis destinados à
imediata obsolescência, o consumidor enfrenta o mundo como um
reflexo de seus anseios e temores.92

Aqui se encontra, com efeito, o núcleo de sua crítica da sociedade de consumo:


a produção e o consumo de mercadorias estandardizadas, subtraídas de todo controle
por parte dos indivíduos, é o contrário dos “objetos transicionais” – os produtos de
um trabalho “sensato”, a partir do jogo –, que, para Lasch, representam a única
maneira possível de estabelecer uma relação amigável com o mundo e de reduzir o
peso da “condição humana”.
Por mais imprecisa que permaneça a concepção que Lasch tem do capitalismo,
e por mais discutíveis que permaneçam as referências positivas (trabalho,
comunidade, família e até mesmo religião), ele estabelece aqui um argumento muito
forte: o capitalismo operou uma verdadeira regressão antropológica. Ele destruiu os
meios, modestos, mas eficazes, com os quais a humanidade tentava desde muito
tempo dominar os constrangimentos da vida. O capitalismo os caçou com o único
objetivo de vender mercadorias. Contudo, mesmo esta acusação eloquente
permanece insuficiente no plano teórico: não se pode explicar tal revolução opondo
as “derivas” do capitalismo liberal às origens que se pretendem “saudáveis”,
situando-as seja no século XIX seja nos anos 1960.
O núcleo do narcisismo social começou a se formar ao mesmo tempo em que o
valor, o trabalho abstrato e o dinheiro, há meio milênio. Desde algumas décadas, ele
veio à plena luz. Compreendê-lo é uma tarefa essencial para poder combater os males
do presente. O debate entre Fromm, Marcuse e Lasch sobre a melhor maneira de
entender Freud pode parecer uma discussão de especialistas que, além do mais,

91 LASCH, Christopher. O mínimo eu, op. cit. p. 25; tradução modificada.


92 Ibidem, p. 25. É notável que este livro tenha sido escrito entre 15 e 20 anos antes de The Corrosion
of Character, de Richard Sennett, e de Liquid Modernity, de Zygmunt Bauman.
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pertenceriam ao passado. Nós esperamos ter demonstrado que ele toca, ao contrário,
em pontos essenciais.

[Original: JAPPE, Anselm. Narcisse ou Orphée? Remarques sur Freud, Fromm,


Marcuse et Lasch. Revue Illusio, n. 14/15. Theorie critique de la crise. Volume III.
Capitalisme, corps et reification. Caen: Le ord de l’eau, anvier 2016, p. 393-425.

Tradução: Pedro Henrique de Mendonça Resende. O tradutor agradece as


contribuições de Carla Castagnet Vial e Clara Moreira Martins da Costa para a revisão
do texto].
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DA “AURA” DOS ANTIGOS MUSEUS E


DA “EXPERIÊNCIA” DOS NOVOS 1

Anselm Jappe

Trata-se aqui de analisar a transformação da função dos museus na sociedade


capitalista contemporânea. Em qual medida o museu pode ainda ser um lugar onde é
possível realizar uma experiência autenticamente artística, quando ele se encontra em
uma sociedade fundada no consumo frenético e nas relações virtuais que estabelecem os
indivíduos?
**
Há dez anos, o historiador e teórico da arte Hal Foster observava no seu livro
Design & Crime que o museu não serve hoje, senão de maneira secundária, à
contemplação das obras.2 Estas existem sob a forma de arquivos eletrônicos e são
consultáveis de qualquer lugar, em geral gratuitamente. Uma pessoa que deseja
contemplar a Mona Lisa em detalhe pode fazê-lo muito melhor, na época da
reprodutibilidade digital, na sua própria casa, no seu computador, do que no meio de
centenas de visitantes que se acotovelam e fotografam. O significado do museu
encontra-se principalmente, segundo Foster, na experiência estética espetacular que ele
transmite, mais precisamente, através da sua arquitetura; arquitetura para a qual o
Museu Guggenheim de Bilbao permanece paradigmático.

1 [As notas de tradução estão entre colchetes].


2 “Design e exposição a serviço dos valores de exibição e de troca estão no primeiro plano, como nunca
antes: hoje o que o museu exibe acima de tudo é seu próprio valor-espetáculo – que é o principal ponto
de atração e maior objeto de reverência. Entre muitos outros efeitos existe este: se o velho museu, como
foi imaginado de Baudelaire a Proust e além, era o local para a reanimação mnemônica da arte visual, o
novo museu tende a separar o mnemônico do visual. Cada vez mais a função mnemônica do museu é
delegada ao arquivo eletrônico, o qual pode ser acessado de quase qualquer lugar, enquanto a
experiência visual é delegada não somente à forma-exposição, mas também ao edifício-museu como
espetáculo – isto é, como uma imagem a ser veiculada na mídia, a serviço do valor da marca e do capital
cultural. Essa imagem pode ser a forma primária da arte pública ho e”. FOSTER, Hal. Design and
Crime: and Other Diatribes. London; New York: Verso, 2003, p. 81-82 [Outra tradução deste trecho
encontra-se em FOSTER, Hal. Arquivos da arte moderna. In: Arte & ensaio: revista do programa de pós-
graduação em artes visuais EBA. Rio de Janeiro: UFRJ, n. 19, dez. 2009, p. 190].
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Acusa-se esse museu de “distrair” a atenção dos espectadores em relação às


obras. Isso nunca foi dito de nenhum museu tradicional. Eu não me pronunciarei aqui
sobre o museu da Acrópole e sobre sua história, mas parece-me notável que o antigo
museu da Acrópole se esconda modestamente em uma cavidade do solo; uma concepção
hoje em dia inimaginável, quando se trata, ao contrário, de obter a maior visibilidade
possível, quando é necessário que a forma apareça como mais importante do que o
fundo e quando, geralmente, o nome do arquiteto que assina a construção é mais
importante do que a própria construção, assim como uma ordinária bolsa Vuitton.
O novo museu da Acrópole suscitou polêmicas semelhantes àquelas concernentes
a todas as construções de museus contemporâneos e outros prédios “culturais”. As
linhas de frente são mais ou menos sempre as mesmas. Os adversários de tais museus
falam de arquiteturas ultramodernas sem ligação com o contexto, de puro design, de
estética de supermercado, de espetacularização, de destruição das velhas estruturas.
Parece-me que essas críticas são geralmente justificadas; para dizer a verdade, eu as
considero, na maior parte do tempo, inconsequentes. Elas deploram, com todo o direito,
a integração da cultura na sociedade de mercado, em que cada coisa não pode obter seu
direito à existência senão com a sua única capacidade de poder se vender e atrair
clientes. Mais raros são os casos em que essas críticas são formuladas a partir do ponto
de vista de uma análise coerente do capitalismo. Esses adversários reclamam somente
uma “exceção cultural”: os sapatos e os carros, as habitações e a força de trabalho
normal devem ser, sem nenhum problema, mercadorias. A lógica de mercado só se
interrompe em uma única ocasião: para as peças arqueológicas e para as obras de arte,
ainda que seja da essência (quase jamais discutida) da lógica de mercado tudo engolir. E
essas “exceções culturais”, sem cessar reivindicadas, não parecem ser incompatíveis com
as formas mais extremas da lógica de mercado, quando o Louvre vende, por exemplo,
seu nome aos xeiques do petróleo de Abu Dhabi, exatamente como se tratasse de uma
“extensão da marca” de um perfume Gaultier.
A lógica de mercado significa a intercambialidade total, a redução de cada objeto
a uma simples soma de dinheiro, a indiferença diante de todo conteúdo. É, com efeito,
difícil demonstrar, no interior da sociedade de mercado, que uma pintura de Ticiano ou
um friso do Parthenon devem ser fundamentalmente de natureza diferente daquela de
uma garrafa de Coca-cola ou uma camisa Armani. Para poder demonstrar isso, é
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preciso, em verdade, colocar em questão a lógica de mercado na sua totalidade. Uma vez
que isso nos levaria demasiado longe, eu me limitarei aqui a algumas considerações
concretas.
A intercambialidade total da mercadoria leva-nos à perda da aura (e não somente
da aura da obra de arte), à perda da autenticidade e da unicidade, como nós sabemos
desde Benjamin. Mas a necessidade da aura está de modo manifesto profundamente
enraizada. É por essa razão que ela nos é lembrada de maneira constante, para
finalmente encontrar sua satisfação nas mercadorias que prometem autenticidade. A
aura, a autenticidade e a unicidade fazem parte de nossos dias nos artigos de marca
mais desejados, em todos os níveis. Isso explica por que, malgrado a disponibilidade
permanente do arquivo eletrônico, todo mundo quer ver precisamente a “autêntica”
Mona Lisa, e por que os museus são hoje mais frequentados do que nunca. Eis aqui um
verdadeiro paradoxo: a comercialização extrema da cultura alimenta-se justamente da
ressacralização e de uma nova atribuição da aura.
Em que consiste uma visita ao museu de nossos dias? Ela se produz de maneira
típica no curso de uma viagem, por exemplo, de fim de semana, tornada possível pela
Ryanair. Depois das compras da manhã e antes da discoteca da noite, encontra-se a
visita ao museu mais célebre da cidade, reservada pela internet. O resultado final dessa
visita abundantemente documentada por fotos é, então, poder vangloriar-se pelo
Facebook.
Esse fenômeno é considerado como o triunfo da democracia, como a superação
do elitismo, como contribuição a um mundo globalizado e à cultura para todos. Quanto
a saber se o número, em muito forte crescimento, de visitantes de museus é
acompanhado de uma extensão real de interesse pela cultura e pelos conhecimentos,
nós podemos verdadeiramente duvidar. Segundo as estatísticas, o número de leitores de
livros declina de maneira contínua. Muitos professores de universidades e de escolas de
arte confirmam que os estudantes de arte, de literatura e de história das ideias têm
lacunas incríveis. E ao culto à internet acrescenta-se em geral uma desvalorização
agressiva da cultura clássica. Nós podemos até mesmo supor que, no caminho de
retorno da visita, uma grande parte das massas que visitam os museus leram mais
mangá do que Gombrich, ou reatualizaram sua página no Facebook. Elas têm, de certa
maneira, razão: os museus estão a serviço do divertimento. É por isso que estes não
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estão somente em concorrência com outros museus, mas também com outras atividades
de lazer, e são, portanto, consumidos sob essa forma.
Eu suponho que vou ser considerado, sobre este ponto, como um reacionário
antidemocrático e um defensor nostálgico de uma cultura de elite empoeirada: o que é,
entretanto, surpreendente para alguém como eu, que é conhecido por ser um teórico da
crítica radical do capitalismo. Mas eu não sou o único a se encontrar nessa situação
aparentemente paradoxal, e a considerar a pretensa democratização da cultura como
um pretexto à sua simples integração à “Indústria cultural como mistificação das
massas” (Adorno e Horkheimer)3, ou ainda a considerar essa democratização como uma
estratégia artística que visa privar a cultura de qualquer efeito tendencialmente
subversivo.
Qual é o papel dos museus no capitalismo? Desde a fundação das coleções
públicas no fim do século XVIII até os anos 70 do século XX, sua função permanece
essencialmente a mesma: expor o extraordinário proveniente seja do passado, seja do
estrangeiro [étranger]. Esses museus tinham por consequência uma função “elitista”:
de uma parte, eles escolhiam a excelência (ou assim afirmavam). De outra parte, uma
vez que seu público típico era uma elite cultural que já dispunha dos conhecimentos
preliminares, esses museus quase não eram, de modo algum, didáticos. Ou ainda
tratava-se de visitantes muito motivados. O escritor romeno-francófono Panaït Istrati 4
(que será mais tarde amigo de Nikos Kazantzakis5) conta que, quando esteve pela
primeira vez em Paris, em 1913, como trabalhador sazonal errante, não tendo outro
diploma senão o certificado de estudos, foi levado imediatamente ao Louvre por seu
amigo que o abrigava, um sapateiro romeno. Lá Istrati se “contaminara” de um culto à
beleza, que durou toda sua vida. Os museus eram geralmente gratuitos nesta época, não
excluindo, então, ninguém da sua base econômica. Eles eram de todo modo menos
frequentados do que hoje, quando se tornaram muito mais caros. Dirigiam-se a eles
3 Referência ao quarto capítulo do principal livro de Adorno e Horkheimer: A dialética do esclarecimento
[N.T. para o francês].
4 Panaït Istrati (1884-1935), próximo de Victor Serge e de Boris Souvarine, esse importante romancista

romeno foi um dos primeiros escritores comunistas a fazer uma crítica do poder burocrático da URSS,
após sua viagem a este país, acompanhado do escritor grego Nikos Kazantzakis [N.T. para o francês].
5 Nikos Kazantzakis (1883-1957) é um dos principais escritores gregos do século XX. Destacado por sua

aptidão para manejar diferentes estilos literários (romances, peças de teatro, ensaios, poesias) em
demotiki (língua grega popular que se tornou a língua oficial em 1976), devem-se a ele notadamente os
romances Alexis Zorba e La dernière tentation [A última tentação], bem como a tradução da Ilíada e da
Odisseia em grego moderno [N.T. para o francês].
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somente as pessoas interessadas (do mesmo modo que nos nossos dias um concerto de
Schönberg ou de Xenákis não enche um estádio de futebol, mesmo se for gratuito). O
museu não-didático liberava em grande parte os visitantes, por si mesmos, e
demandava, talvez, mais à maior parte dentre eles. Mas isso permitia sentir com maior
intensidade o efeito de choque que certas obras podiam transmitir. Nos casos mais
favoráveis, isso podia se passar como no poema “O torso arcaico de Apolo”, de Rainer
Maria Rilke, no qual ele disse: “não existe ali nenhum lugar / que não te vê / Você deve
mudar sua vida”. 6
Esses museus clássicos foram odiados pela vanguarda artística. Os futuristas
italianos comparavam os museus aos cemitérios.7 Guillaume Apollinaire queria colocar
fogo no Louvre. Os jovens letristas, entre eles Guy Debord, chamavam à abolição dos
museus e à distribuição de suas obras-primas nos diferentes bares sórdidos que eles
frequentavam. Ser aceito em um museu (ou, até mesmo, ter muito rapidamente uma
obra exposta nele) era considerado pelos dadaístas e pelos surrealistas como uma
vergonha. A aversão era recíproca: nenhuma obra de Picasso, de Kandinsky ou de outro
inovador da arte foi exposta nos grandes museus franceses antes da Segunda Guerra
Mundial. E mesmo se, no fim das contas, ninguém (à exceção dos situacionistas)
recusou efetivamente entrar para os museus, a arte moderna, assim como o conjunto da
cultura crítica e contestatória dos anos 1968, permaneceu com suspeitas profundas vis-
à-vis o museu; bem como permaneceu com suspeitas vis-à-vis o conjunto da “herança” e
dos “cânones” culturais. A expressão “mûr pour le musée” [pronto para o museu] quer
precisamente dizer: fora de uso, sem vitalidade interna, somente bom para a admiração
obrigatória. O museu era sinônimo de “empoeirado”, “arcaico”, “inanimado”,
“entediante”, “velho”, “fatigante”, “não sexy”, quer dizer, de tudo isso que a sociedade de
consumo capitalista não queria mais.

6 [ a tradução do alemão para o português, em A DE RA, Manuel. “Poemas traduzidos”. Estrela da


vida inteira. Rio de Janeiro: José lympio, 1966: “Seus limites não transporia desmedida como uma
estrela; pois ali ponto não há que não te mire. Força é mudares de vida”].
7 “Museus, cemitérios!... Verdadeiramente idênticos no seu sinistro acotovelamento de corpos que não se

conhecem. Dormitórios públicos onde se dorme para sempre lado a lado com seres odiosos ou
desconhecidos. Ferocidade recíproca dos pintores e escultores se matando a golpes de linhas e cores no
mesmo museu. Faz-se uma visita uma vez por ano assim como se vai ver seus mortos uma vez por ano!...
Nós podemos muito bem admitir!... Mas não admitimos passear cotidianamente pelos museus nossas
tristezas, nossas frágeis coragens e nossa inquietude!... Pretende, então, se envenenar? Pretende, então,
apodrecer?” MAR E , Filippo ommaso. Manifeste du futurisme. n: Le Figaro, 20 de fevereiro de
1909. Disponível em: <www.gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k2883730.largFR>.
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Uma profunda mudança efetivamente ocorreu. O capitalismo é, em sua essência,


e desde seu começo, um sistema dinâmico que revoluciona constantemente todos os
aspectos da sociedade. Durante bastante tempo, entretanto, essa dinâmica se
acompanhava de um forte conservadorismo no nível da “superestrutura”, valores
culturais incluídos. Enquanto o capitalismo se desenvolvia muito rapidamente no nível
da produção, ele aparecia como “conservador”, “reacionário”, “passadista”,
“tradicionalista” no nível dos valores oficiais; na realidade, essas tendências eram as
sobrevivências de seu passado feudal e religioso, cujo deperecimento não poderia se
fazer senão lentamente. A maior parte dos teóricos críticos do capitalismo confundiu
igualmente essência e aparência. Eles consideravam o capitalismo como essencialmente
“conservador”, o que não é, em absoluto, o caso. É por essa razão que eles pensavam que
o “Progresso” era forçosamente antiburguês. O museu clássico expressava, com efeito, a
dominação (característica das estruturas da sociedade burguesa daquela época) do
passado sobre o presente e o futuro, do antigo sobre o novo, da persistência sobre a
mudança, do sério sobre o frívolo, do esforço na produção sobre o gozo no consumo, da
cultura de elite sobre a “cultura de massa”. Quase todos os objetos expostos provinham
dos homens brancos ocidentais, e eles expressavam sua visão do mundo.
Nos nossos dias essa situação foi invertida, e o único credo do capitalismo é a
“novidade”. A vanguarda artística inicialmente, depois, sobre uma base bem mais larga,
o espírito mundial dos anos 1968 na sua versão de massa, contribuiu com um prazer
maligno para o descrédito desses museus, e da cultura da qual eles saíram. Aqui, como
em muitos outros domínios, essa cultura contestatória contribuiu no fim das contas
para a modernização do capitalismo e para liberar os remanescentes (tornados
doravante disfuncionais) de seu compromisso com as formas sociais passadas. E é assim
que, de um templo para happy few, o museu se torna parte respeitável de nosso mundo;
chair de sa chair [carne da sua carne], no crescimento do design, do espetáculo, dos
números de negócios, da indústria do turismo e do “efeito Guggenheim” para a
economia de toda uma cidade ou de uma região. E quem reclamará nesta hora que a
cultura está por todo lado ameaçada de cortes de orçamento, e que está muito
problemático para uma universidade, uma ópera, ou para um filme de qualidade poder
se autofinanciar [?]. Ao menos o museu pode em potencial! E quando, no lugar de 1% da
população, de pessoas extremamente cultas, temos hoje 80% de pessoas que já foram ao
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menos uma vez na sua vida a uma exposição, é preciso verdadeiramente ser um
defensor desses privilegiados arcaicos e de seus preconceitos esnobes de mediadores
culturais para formular qualquer objeção; como aqueles que ainda cantam louvores do
livro impresso na época do Google... A vida e a arte estão finalmente reunidas, como
reclamavam os fundadores da arte moderna; mesmo se essa união é provavelmente
muito diferente daquela que eles tinham imaginado.
Acrescenta-se a isso a considerável extensão do conceito de museu. Pode-se ter a
impressão de que a integração ao universo do museu é acompanhada de uma luta sem
misericórdia contra as antigas formas de vida que não foram ainda inteiramente
submetidas à lógica de mercado. Tudo isso que é sistematicamente suprimido pelo
progresso volta sob a forma de eco-museu ou de museu das artes e tradições populares,
nos quais a vida de nossos avós campesinos, que nós pudemos ainda conhecer durante
nossa infância, encontra-se exposta; talvez para assegurar que toda ela está
definitivamente morta e desaparecida. A chamada incessante à “comemoração
histórica” não serve nos nossos dias senão para novas formas de ruptura com o passado.
Eu visitei recentemente, na França, uma fiação que alguns dos meus amigos tinham há
mais de 10 anos tentado recolocar em atividade com sua maquinaria muito complexa do
início do século XX. Essa tentativa fracassou, mas a fiação ameaçada de demolição foi
salva: hoje ela é um museu, e então, essa máquina não funcionará nunca mais... Uma
contribuição à disneylandização do mundo.
Com o desaparecimento dos antigos museus, suprimiu-se uma das experiências
que poderiam nos colocar em relação com alguma coisa de “totalmente outra”, cuja
lógica se diferenciava da lógica do mundo que nos cerca; esse mundo que não cessa de
nos sugerir que nada pode ser exterior a ele e que ele é só, é o único mundo (e, por
consequência, o melhor dos mundos possíveis). Felizmente, encontram-se ainda
pequenos museus nas cidades do interior ou outros que são menos próximos dos temas
espetaculares, e que nos fazem ver outra coisa. Veem-se menos visitantes, nenhuma
didática invasiva com as projeções de vídeo, de áudios-guia e uma centena de outras
maneiras de dizer ao visitante isso que ele deve admirar. Nós estamos sós com a obra e
nós podemos tentar entrar em um “diálogo infinito” com seus autores. Esses museus
não parecem uma mistura de sala de informática e de estação de metrô em horas de
pico. Mas eles nos oferecem um repouso momentâneo no seio do tumulto que nos
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envolve sempre e por todos os lados. Nós temos, então, a sensação de que os outros
visitantes têm uma razão bem determinada para se encontrarem ali onde eles estão, e é
por isso que talvez nós sintamos uma vaga solidariedade para com eles. Por terem uma
“atmosfera” exterior ao tempo cotidiano e contarem com a presença viva do que é
passado ou estrangeiro [étranger], esses museus às vezes realmente oferecem o que os
tão louvados grandes museus pós-modernos prometem, a saber: uma experiência
estética completa, um evento, uma emoção que não resulta somente das obras
individuais. Entretanto, essa atmosfera não é planificada, como aquela das butiques da
Nike onde a compra é apresentada como uma experiência, mas nós a construímos nós
mesmos, quer dizer, cada um por si. Eu não sei o que os visitantes do Museu de História
Natural do Jardim de Plantas de Paris aprenderam quanto à zoologia, antes da
reestruturação deste prédio há 15 anos. Mas a uma pessoa que não seja capaz de se
lembrar de sua visita a esse colossal (e, propriamente falando, empoeirado) gabinete de
curiosidades como uma grande experiência estética, faltaria provavelmente a
sensibilidade necessária para tal experiência estética. Esses velhos museus estão para os
novos museus tal como os jogos e as bonecas rígidas de nossos avós estão para o
Playstation e as bonecas hiper-realistas de hoje. Esses jogos contemporâneos
contribuem segundo seus promotores para o desenvolvimento das crianças e para a
formação de aptidões que lhes serão uteis na vida ativa, como a capacidade de reação e a
prática de multitarefas. Mais próximos dos velhos jogos, assim como dos livros vis-à-vis
aos filmes, favorecemos uma imaginação individual que não é nem normatizada, nem
filtrada. Determinadas pessoas diriam que isso faz parte do que há de melhor na
humanidade. Mas para o que tal imaginação é útil nos nossos dias, quando o Google
pretende pensar e imaginar no nosso lugar? E o que pesa de tais considerações
nostálgicas, como as que eu expus aqui a propósito dos museus, os quais têm a chance
histórica de se colocar em harmonia com sua época e de conquistar seu espaço no lugar
de nos confrontar, nós visitantes, com alguma coisa que nos ultrapassa e que nos coloca
em desafio?

[ riginal: JAPPE, Anselm. De l’”aura” des anciens musées et de l’”expérience” des


nouveaux. Revue Gruppen, n. 5. Traduzido do inglês por Pierre-Ulysse Barranque.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016 73

Paris, 2012, p. 18-25. Este artigo é a revisão de uma conferência proferida em maio de
2011 na Universidade de Salonique, em um Colóquio sobre o novo museu da Acrópole.

Traduzido para o português por Pedro Henrique de Mendonça Resende. O tradutor


agradece as contribuições de Carla Castagnet Vial e Clara Moreira Martins da Costa para
a revisão do texto].
[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016 74

FORMA, ESTILO, PASTICHE


Considerações sobre o Ulysses de Joyce

Raphael F. Alvarenga

Enquanto outros formalizam a


relação significante-significado,
este escritor [...] a dialetiza.
Henri Lefebvre

Já foi observado que, das leituras consagradas do Ulysses, as mais entediantes, e


que há muito se tornaram lugar-comum literário, costumam ser de três ordens, quais
sejam: a comparação intertextual “mítica” (que subsume todo o entrecho ao paralelo
com a Odisseia), a explanação psicanalítica (que foca quase que exclusivamente na
relação simbólica entre pai e filho, que perpassaria a obra inteira) e a interpretação
“ética” (que insiste num suposto final feliz na vida doméstica do casal Bloom) 1. Tendo a
concordar, conquanto a insistência na dimensão histórica ou social por si só tampouco é
garantia de leitura mais viva e arguta. Em muitos estudos do tipo, com efeito, a exclusão
de outras dimensões (psicanalítica, filosófica, intertextual, estético-formal) costuma
trazer prejuízo à leitura; mesmo nas melhores interpretações históricas e sociológicas,
aliás, uma análise mais demorada e cerrada do texto, vale dizer, da organização formal-
narrativa da obra literária – sem para tanto recair no formalismo, no fetichismo
linguístico e literário –, não raro deixa a desejar, por razões que trataremos de precisar.
Ápice do Modernismo e ponto de inflexão na literatura moderna, houve quem
identificasse no movimento geral do Ulysses a “dialética da Ilustração” – a interversão
histórico-social de razão e mito, progresso e retrocesso – que na formulação original, em
Adorno e Horkheimer, perdia um pouco em determinação ao abarcar período um tanto

1 Cf. Fredric Jameson, “Ulysses in History” [1980], em The Modernist Papers, London/New York: Verso,
2007, pp. 137-51.
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elástico e inespecífico, de Homero a Hitler, “da funda à bomba atômica”2, e que, como
sugeriu certa vez de passagem Paulo Arantes, ganharia sem dúvida em rigor e precisão
histórica se escandida através de uma periodização da expansão do capitalismo
propriamente dito3. A ligação entre o romance de Joyce e o contexto da crise da ordem
burguesa internacional – precipitada como se sabe pelo ocaso do capitalismo liberal e a
ascensão e consolidação de um capitalismo predominantemente corporativo, de
monopólios e oligopólios – foi desentranhada e destrinchada pela melhor crítica, e será
aqui nosso ponto de partida. A experiência da alienação moderna da vida social
cotidiana (trabalho, mercadoria, dinheiro), o esgotamento da formação cultural
burguesa e a história provada como estagnação e inércia, o inferno do qual haveria que
despertar, são de fato alguns dos principais significados estabelecidos no curso do
romance: em tal contexto e dali em diante, ao contrário do período precedente, em que
correspondiam a certa aparência necessária à manutenção da ordem social estabelecida,
a formação crítica, e certa firmeza do eu, condições do pensar e do agir autônomos,
aparecem e são vividos cada vez mais como empecilhos à sobrevivência assalariada e à
reprodução do todo. Escrito entre 1914 e 1921, boa parte em Zurique e em Paris,
contemporâneo pois do expressionismo, do cubismo, do dadaísmo, da Música Nova de
Schönberg e Stravínski, sem falar na Revolução de Outubro, seria o caso de acrescentar
que o contexto da composição do Ulysses – além do colapso da civilização burguesa e
seu ideário, a degradação crescente da vida cotidiana pelo capital, os horrores da Guerra
de 14-18 – é igualmente o da perspectiva superadora, vale dizer, da crítica visando à
superação histórica das formas burguesas moribundas.
Dito isso, a questão para nós não é deduzir o conteúdo do livro, ou os avanços e
inovações técnico-literárias e vocabulares, em termos sociais e históricos, isto é,
imediatamente do declínio da burguesia e sua cultura, passando sem mais por cima da
mediação literária propriamente dita, o que, para começo de conversa, implicaria
desvalorizar demasiado rapidamente particularidades nada desprezíveis em favor de

2 Theodor W. Adorno, Negative Dialektik [1966], Gesammelte Schriften, vol. 6, Frankfurt/ M.:
Suhrkamp, 2003, p. 314, trad. G. Coffin, J. e O. Masson, A. Renaut e D. Trousson: Dialectique négative,
Paris: Payot, 1978, p. 387. Eis a citação completa: “ enhuma hist ria universal conduz do selvagem à
humanidade civilizada, mas há muito provavelmente uma que conduza da funda à bomba atômica.”
3 Cf. Paulo E. Arantes, O fio da meada. Uma conversa e quatro entrevistas sobre Filosofia e vida
nacional, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996, p. 48.
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uma unidade social pressuposta. Como coloca Adorno, de forma lapidar: “A arte se
torna por aí mero exponente da sociedade, e não fermento para a sua transformação.” 4
Fosse o livro simples espelho fiel, digamos, do contexto social e das relações vigentes na
Irlanda do início do século XX, retratasse à maneira de um documentário “a vida como
ela é”, não seria senão confirmação ideológica da razão e do direito do existente; mesmo
que a intenção fosse sediciosa, dificilmente iria além da reprodução superficial do
imaginário dominante, do olhar sempre já condicionado pelo modo com que a vida é
organizada. Em resumo: “Não se trata de reduzir o trabalho artístico à origem social” –
erro em que incorrem diversas sociologias da arte –, “mas de explicitar a capacidade
dele de formalizar, explorar e levar ao limite revelador as virtualidades de uma condição
histórico-prática”, o que demanda situar a produção artística na história, a qual vem
compactada e potenciada no interior da obra de qualidade 5. Por tudo isso, importa aqui
perscrutar e reconstruir até onde der que sentido a alienação e sua superação possível
adquirem no movimento geral do romance. Veremos então de que modo e até que ponto
a configuração extraliterária acima evocada tem força estruturante na urdidura mesma
do Ulysses, amarrando e dando sustentação a um enredo cuja unidade, para além da
famigerada e quão comentada intertextualidade homérica, não é assim tão evidente,
mas de maneira alguma simplesmente arbitrária.
Comecemos pois com a questão, ou melhor, o problema da unidade. Sem forçar
muito, poder-se-ia dizer que Joyce fez com o sistema literário dominante mais ou menos
o que Schönberg fizera com o sistema tonal: pôs por terra a hierarquia de estilos de
modo análogo com que a música atonal e em seguida a dodecafônica derribaram a
multissecular hierarquização dos tons. A varredura da tradição artística precedente era
como se sabe condição para o experimentalismo, a pesquisa e a descoberta de novas
formas e novas linguagens, a um tempo críticas do existente e prenúncio de um arranjo

4 Theodor W. Adorno, Philosophie der neuen Musik [1949], Frankfurt/M.: Ullstein, 1958, p. 29, trad. R.
Hullot-Kentor: Philosophy of New Music, Minneapolis/London: University of Minnesota, 2006, p. 23.
5 Roberto Schwarz, “A carroça, o bonde e o poeta modernista” [1983], em Que horas são?, São Paulo: Cia.

das Letras, 2002, p. 23.


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superior, uma ordem pós-burguesa6. Tal como nas telas quartejadas de Picasso e Braque
(em todo caso na fase do cubismo analítico), a fragmentação e a despersonalização – em
grande medida mimese do processo real – tornavam extremamente difícil a leitura da
unidade da obra, unidade que a despeito disso não desaparecia. A independência
relativa das partes, dos diversos episódios do Ulysses, conjugada à correlação complexa
e intricada de alguns motivos recorrentes, lembra ainda, além do sistema dos doze tons
na música, o teatro épico que Brecht viria a desenvolver nas décadas seguintes. Em
termos literários, digamos que, comparado a um romance realista da primeira metade
do século XIX, como O Pai Goriot (1835), por exemplo, cuja unidade fisionômica e
rítmica é das mais notáveis, Ulysses à primeira vista desponta como uma aberração – e
assim foi considerado por muitos leitores quando de sua publicação em 1922, inclusive
por escritores modernistas aos quais Joyce costuma ser associado, como Virginia Woolf.
Ocorre que, por diferente que seja o contexto, os motivos que dão unidade e dinâmica a
ambos romances são de certa maneira os mesmos: a colonização de esferas autônomas
pelo dinheiro, que figura por toda parte, e a transformação – vivenciada às vezes como
violação e desapropriação – de qualidades individuais em mercadoria. A diferença,
embora considerável, é de grau e intensidade, uma vez que a violência da equivalência e
da indiferença gerais é no fundo praticamente de mesma ordem. Estas – eis o ponto que
nos interessa, e que vem à tona num livro e noutro, ditando de diferente maneira a
organização interna de ambos – não são simplesmente dadas, mas sim afirmadas e
reafirmadas no curso da vida cotidiana mediante a necessidade e a pressão das forças
socializadoras do mercado, que requerem do indivíduo, a todo momento, a equivalência,
a indiferença e o intercâmbio de qualidades, tornando uma anomalia toda e qualquer
ancoragem individual da própria existência, sem esquecer, claro, que “a contingência
cotidiana de atender à socialização caótica do mercado evoca a grande expropriação
originária, que é o seu fundamento”7. Não obstante a existência fática passe por

6 Cf. Fredric Jameson, Marxism and Form. Twentieth-Century Dialectical Theories of Literature [1971],
Princenton: Princenton University, 1974, p. 34: “Joyce […] embodies an exemplary progress from a
derivative personal style […] through the multiple pastiches of Ulysses, toward something which
transcends both styles and pastiche altogether and which, like the twelve-tone system in musical realm,
may stand as a distant representation of some future linguistic organization of a postindividualistic
character.”
7 Roberto Schwarz, “Dinheiro, mem ria, beleza: O Pai Goriot” [1963], em A sereia e o desconfiado, Rio de

Janeiro: Paz e Terra, 1981, p. 168.


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legítima, aparentemente não passível de crítica, e a violência que a constitui e sustenta


seja perfeitamente legalizada, trata-se sempre ainda de uma ordem social contingente,
“imposta”, ou melhor, que exige continuamente ser posta e reposta.
Ao contrário do romance de Balzac, que expunha no terreno do espírito o
processo de formação do capitalismo e sua dinâmica8, em Joyce, menos de um século
depois, a história é decerto outra. Não é que de as ideias humanísticas se encontrassem
barateadas e integradas à relação mercantil – isso já era o caso na época dos sucessores
de Balzac, sobretudo na ressaca de 1848 (em Flaubert, mormente, que Joyce conhecia
de cor). A “variegação desdenhosa”, o “cinismo ofuscante e doloroso” e o “simbolismo
[em parte] ilegível” do Ulysses9 têm a ver com o fato de que o capital agora não é nem de
longe sinônimo de progresso, a realidade social e histórica, apesar da aceleração dos
processos, tampouco é dinâmica como dera a impressão de ser nos tempos do
capitalismo liberal – no contexto semiperiférico da Irlanda, a bem da verdade, nem
chegou a sê-lo efetivamente. Pois bem, no romance de Joyce, como não podia deixar de
ser, a temática geral do não desenvolvimento individual e social, da fragmentação do
processo real, da despersonalização, do descentramento do sujeito e da relativização dos
valores e normas é retomada na própria forma: tudo se passa no espaço de um só dia,
aparentemente igual a qualquer outro; ao mesmo tempo, como é sabido, nenhum dos
dezoito episódios é narrado exatamente do mesmo jeito; não há unidade estilística,
portanto, estilos os mais diversos integram a trama e assim são relativizados; tampouco
há a perspectiva distanciada de um narrador único, objetivo ou claramente definido, a
voz narrativa cambia o tempo todo, alterna e confunde sujeito e objeto, os universos
interior e exterior das personagens, cujos traços de caráter, ademais, não são mais
claramente delineados como o eram outrora. Mais do que simples investigação técnica,
o que por momentos também são, a nivelação de estilos e a relativização de diversos
enfoques no Ulysses são como dito mimese do processo real.
Caberia ressaltar a este respeito que, mais ou menos como em Bruges-la-Morte
(1892) antes, ou Manhattan Transfer (1925), Le Paysan de Paris (1926) e Berlin

8 Cf. Georg Lukács, “ alzac: Les Illusions perdues” [1935], trad. L. F. Cardoso, em Ensaios sôbre
literatura, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968, p. 121.
9 Para retomar as expressões usadas por Erich Auerbach, Mimesis. Dargestellte Wirklichkeit in der
abendländischen Literatur [1946], Tübingen/Basel: Francke, 1994, p. 512, trad. C. Heim: Mimesis. La
représentation de la réalité dans la littérature occidental, Paris: Gallimard, 1968, p. 546.
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Alexanderplatz (1929) depois, a cidade (no caso, Dublin), na medida em que não se
reduz a mero pano de fundo, sendo antes de certo modo constitutiva da trama, com seu
trânsito, suas luzes bruxuleantes, fornece ela mesma uma unidade socioespacial ao
romance. Note-se que o caos da experiência urbana numa capital semiperiférica do
início do século XX, em que a interação de personagens isoladas parece arbitrária e
fortuita, não havendo necessidade ou lógica alguma que justifique colocá-las juntas, é
como que traduzido mediante o recurso a uma referência mítica arbitrariamente
selecionada para dar conta do recado: é a Odisseia, mas poderia muito bem ter sido
outra qualquer. Se o modernista Joyce recorre ao mito – o qual diz respeito não apenas
à estrutura intertextual homérica arbitrária, mas principalmente à aparente anulação da
história –, não é para consagrá-lo, mas para afastá-lo, e abafá-lo; com as inúmeras
pistas que deixa pelo caminho, o leitor minimamente perspicaz não deixa de notar que a
atitude do escritor é explicitamente moderna: o recurso ao mito é da ordem do uso, do
esclarecimento, não da mistificação. Não somente o mito é tratado como tal, e
distanciado de forma irônica (a comparação da trajetória do manso Leopold Bloom com
a de Ulisses, o astucioso, é puro escárnio), mas os pastiches estilísticos aparecem
também eles explicitamente como tais, de forma não velada, razão pela qual, entre
outras, a linguagem do Ulysses, ao contrário da de um livro como Grande sertão:
veredas, ao qual costuma ser comparado, fascina sem no entanto se apossar
completamente do leitor, que é obrigado a trabalhar para avançar, não tendo como
renunciar a si mesmo, simplesmente deixar-se levar pela prosa... Seja como for,
paralelamente à unidade mítico-espacial, nada desprezível, há ainda que mencionar a
unidade temporal – o entrecho como dito comprimido no espaço de um único dia, que
dimensiona o aprisionamento num presente que não passa (“There is not past, no
future; everything flows in an eternal present.”10) –, unidade esta que traz consigo toda
uma constelação motívico-temática a ela associada (estagnação, paralisia, inércia,
indiferença, banalidade). De passagem, à luz dos tempos que correm, de horizonte de
expectativas rebaixado e declinante, note-se que tal constelação e a representação do
bloqueio de qualquer vida futura conferem ao texto joyciano, desde a primeira leitura,
um aspecto de atualidade não negligenciável.

10 James Joyce, sobre a estrutura do Ulysses, em carta a Jacques Mercanton, cit. em R. H. Deming, James
Joyce. The Critical Heritage, vol. 1: 1902-1927, New York: Barnes & Noble, 1970, p. 22.
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Seria possível argumentar ainda, como já se fez, que a própria recusa de um estilo
literário privilegiado, a equivalência geral dos diversos estilos, é estrutural no romance
e lhe dá certa coesão formal. Mas será que o fato de não haver no Ulysses forma unívoca
de olhar e descrever o existente equivale a afirmar que todo estilo ali empregado é
arbitrário, por isso mesmo irrelevante? É a tese de Franco Moretti num texto notável do
início dos anos 80, um dos melhores escritos a respeito do livro. O problema é que o
crítico nos parece generalizar um pouco rápido demais. Para ele, a crítica da ideologia
que Joyce põe em marcha fundamentar-se-ia ela mesma numa ideologia, segundo a qual
a cultura na ordem pós-liberal seria (ou teria se tornado) socialmente supérflua: o
funcionamento regular da sociedade do capital dispensaria justificações; valores
culturais, formas diversas de expressão e visões do mundo seriam no fundo
redundantes, insignificantes. Tal visão parece corresponder aos fatos: as formas
culturais, as ideias, as escolhas estilísticas teriam se tornado parciais, artificiais,
relativas, mais ou menos equivalentes, socialmente estéreis, por isso mesmo sem
importância para reprodução do todo, que segundo Marx se funda sobre um processo
automático, reificado e fantasmagórico, cuja “naturalidade” se impõe de si mesma, na
prática, como que por força do hábito, através de rituais cotidianos, cegamente
praticados. Ora, a emergência de uma todo-poderosa indústria da cultura, que
rapidamente se tornará segunda natureza, se não desmente tal visão, a relativiza um
pouco: “O desmantelamento das hierarquias [...] não passa da abolição dos limites fixos
e hierárquicos que impediam a expansão do ‘mercado cultural’ e para o qual Joyce agiu
como verdadeiro nivelador radical. A coincidência integral entre cultura e sociedade, de
escolhas de valor e vida cotidiana: eis a história dos anos 50.”11 Nesse contexto, caberia
acrescentar que a cultura que não tem eficácia social, ou que deixou de tê-la, é antes de
tudo a cultura formativa (no sentido enfático da velha Bildung burguesa), ao passo que
cultura filistina, a cultura como ostentação, a cultura fetichizada e desvinculada da vida
real, a cultura mercantilizada, publicitária, degradada em propaganda e embalada para
o consumo imediato, adquire, digamos, função infraestrutural. Melhor dizendo, não é
que a relação entre infraestrutura econômica e superestrutura ideológico-cultural tenha

11 Franco Moretti, “ longo adeus: Ulisses e o fim do capitalismo liberal”, em Signos e estilos da
modernidade. Ensaio sobre a sociologia das formas literárias [1983], trad. M. B. de Medina, Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p. 242.
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se invertido, como concebem muitos autores pós-modernos, mas as duas coisas já não
se distinguem mais. Nas sociedades industriais avançadas, ideologia e realidade são
uma só e mesma coisa, redundando basicamente no acesso massivo ao universo do
consumo mercantil. Essa a base material da virada cínica do capitalismo, que para
Moretti Joyce antecipara de certo modo ao descrevê-la em estado nascente. Ocorre que
se a irrelevância da cultura crítica e a ineficácia social das ideias têm obviamente a ver
com mutações transcorridas no seio do processo social capitalista na época dos
monopólios, processo que se impõe mais e mais como algo inelutável e que dispensa
grandes justificativas, só restando ser administrado de alto a baixo, isso tem lugar de
forma desigual, vindo à tona antecipadamente e de maneira mais incisiva em contextos
periféricos e semiperiféricos (Índia, Rússia, Brasil, Irlanda), em que o ideário burguês –
ao contrário do que ocorrera na Europa, onde mal ou bem fora a expressão da burguesia
triunfante na luta contra o Antigo Regime – não chegava sequer a descrever falsamente
a realidade das relações capitalistas de produção e intercâmbio. O que vinha (e vem) à
tona com força no contexto periférico é justamente o formalismo da civilização liberal
burguesa, que faz com que seu ideário clássico possa coexistir com todo tipo de barbárie
e regressão; a dialética própria do progresso moderno – apreendida pelos frankfurtianos
históricos no quadro de derruimento final da civilização burguesa e rescisão prática de
sua cultura – consiste justamente no fato da corrupção da norma universal por sua
inserção particular em contextos sociais heterônomos, retardatários e/ou regressivos, os
quais concomitantemente são desqualificados pela mesma norma ideológica
hegemônica12. Sem desconsiderar a óbvia diferença de níveis (porque não dá para pôr
simplesmente em pé de igualdade o Brasil a um tempo liberal e escravagista, com sua
lógica de dependência pessoal e favor, e a Irlanda, sociedade atrasada mas colonizada
pela maior potência do mundo), não se pode deixar de atentar para as maneiras
discrepantes com que a vida cultural e política irlandesa, muito embora inserida numa
dinâmica europeia mais vasta, permanecia determinada principalmente pela

12 Cf. Roberto Schwarz, Ao vencedor as batatas. Forma literária e processo social nos inícios do romance
brasileiro [1977], São Paulo: Duas Cidades/Ed. 34, 2000, p. 59, e, do mesmo autor, “Complexo,
moderno, nacional, e negativo” [1980], em Que horas são?, São Paulo: Cia. das Letras, 2002, p. 125.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016 82

composição socioeconômica dependente13. O impacto de tal dependência na vida local


das ideias certamente não escapou a Joyce.
Antes de prosseguir, duas ressalvas. Em primeiro lugar, que não exista uma
forma adequada e privilegiada de narrar um episódio ou de descrever uma situação não
significa dizer que toda e qualquer forma se equivalha ou dê conta do recado. Moretti
neste ponto parece trocar as bolas ou, no mínimo, generaliza demais. O ponto não é que
todo estilo, ideia, visão de mundo e forma cultural seja nulo e irrelevante. Joyce não era
contra a expressão em si; apenas via como insuficientes, degeneradas, empobrecidas ou
ideológicas as formas existentes (notadamente as ligadas à língua inglesa, ela mesma
indissociável de uma tradição e de uma cultura que o escritor rejeitava parcialmente,
não em bloco, e contra as quais se insurgiu), e buscava por isso mesmo uma forma
descoagulada, mais rica e autêntica, que correspondesse à vida verdadeira, e a uma
ordem social superior ainda por realizar, alinhada com as potencialidades humanas
mais altas. O fato de não haver uma hierarquia estilística, um estilo presidindo sobre os
demais; o fato de, na ordem geral do livro, serem os estilos mais ou menos equivalentes
em peso, não significa que sejam arbitrários ou mesmo simplesmente intercambiáveis.
A confusão é frequente, mesmo entre os melhores leitores de Joyce. A ausência aparente
de um desenvolvimento narrativo e psicológico fez com que alguns críticos sugerissem
inclusive que o texto possa ser lido na ordem que melhor convier ao leitor; poder-se-ia
começar com o último episódio, “Penélope” (o do famoso monólogo de Molly), ou pelo
sexto, “Hades” (que contém uma extraordinária incursão pelas ruas da Dublin do início
do século), e progredir aos poucos na direção dos capítulos mais densos e cabeludos,
como “Scylla and Charybdis” (repleto de referências filosóficas, literárias, históricas) ou
“Oxen of the Sun” (sem dúvida o mais difícil para o leitor não anglófono que se
aventurar a ler o texto no idioma de origem). Ocorre que a própria ordem dos episódios
em Ulysses não é assim arbitrária, contrariando ocasionalmente inclusive a sequência
homérica sobre a qual em princípio se estrutura. Como veremos na leitura que faremos
do livro14, por difícil que seja de apreender, o seu sentido mudaria consideravelmente
caso os primeiros episódios, por exemplo, tivessem sido escritos de maneira diversa do

13 É o que, seguindo os passos de Roberto Schwarz, procura fazer Joe Cleary, Outrageous Fortune. Capital
and Culture in Modern Ireland, Dublin: Field Day, 2006, pp. 22-23.
14 Cf. Raphael F. Alvarenga, “Hamlets de farda não hesitam”, nesta edição de Sinal de Menos.
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que foram, ou se o romance abrisse com Leopold Bloom em lugar de Stephen Dedalus;
ao contrário da matemática pós-moderna, a ordem dos fatores (dos capítulos e da maior
parte das correspondentes escolhas estilísticas) alteraria por completo o produto final.
Em cada etapa, geralmente em nota dissonante, motivos recorrentes remetem à
construção da totalidade que os determina, mesmo que apenas negativamente e de
forma não imediata, e cabe ao leitor o trabalho de síntese, de configuração do
conjunto15. Aqui também, de maneira análoga ao que ocorre na música dodecafônica,
mais do que simples meio de expressão subjetiva de descontentamento, angústia, tensão
ou contradição, a dissonância, no Ulysses, torna-se material literário, fazendo do
protesto contra o esmagamento do sujeito e o estreitamento do campo de possibilidades
algo objetivo. Esse o ponto chave, muitas vezes esquecido ou ignorado, o que a grosso
modo distingue o modernismo (ou a modernidade) de artistas como Mahler, Picasso,
Schönberg e Joyce (bem como de autores posteriores como Brecht ou Malcolm Lowry)
tanto do uso do pastiche feito por modernistas como Stravínski quanto da produção
cultural pós-moderna incipiente (da qual o compositor russo seria neste sentido um
precursor), a qual constituía o horizonte no interior do qual Moretti escreveu seu texto.
É preciso insistir neste ponto. No Stravínski da primeira fase, que ainda segundo
a leitura de Adorno representaria o lado regressivo do modernismo musical, os motivos
temáticos seriam elaborados mais ou menos explicitamente na forma de empréstimos,
citações e amálgamas estilísticos de toda sorte (jazz, valsa, música de circo, marchinha
militar, tango, ragtime, jingles) e selecionados mais ou menos ao sabor do acaso, de
forma caprichosa, portanto, à maneira de um consumidor, que escolhe arbitrariamente
entre diferentes marcas nas prateleiras do supermercado 16. Retrocesso e modernidade
andam de mãos dadas; os impulsos sociais mais primários e a tecnologia mais avançada
são consagrados e se conjugam num mesmo ritmo frenético e sincopado (em detrimento
de qualquer desenvolvimento melódico), um ritmo mecânico e destrutivo, que golpeia e

15 À maneira das melhores obras do modernismo literário, o texto do Ulysses incorpora conscientemente
uma estratégia deceptiva, de frustração das expectativas do leitor médio, notadamente no que concerne
a uma configuração textual imediatamente coerente e inteligível, “colocando nos ombros do leitor o
peso de configurar a obra [por sua pr pria conta]” Paul Ricœur, Temps et récit, t. III, Paris: Seuil, 1985,
p. 246). Dito isso, ressalve-se que a adoção de tal estratégia não é mero capricho do escritor modernista,
uma vez que, nas condições dadas, de alienação e fragmentação dos processos objetivos, construir
literariamente uma totalidade textual em si mesma coerente e coesa seria mentir à matéria histórica.
16 Cf. Theodor W. Adorno, Philosophie der neuen Musik, ed. cit., pp. 150-51, trad. cit., pp. 188-89.
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esmaga o que resta do “sujeito”, vale dizer, do indivíduo impotente, tanto no nível da
trama (uma marionete solitária e patética, uma adolescente vítima dócil de sacrifício
tribal, um soldado fracassado...) como no da própria recepção da obra (aos auditores e
espectadores só resta entrar na dança e assimilar os golpes, passivamente, ou então
deixar a cena em protesto). As aspas em “sujeito” se justificam na medida em que toda
tensão é esvaziada; a rigor não há mais sujeito algum, forma e conteúdo do pastiche
coincidem plenamente num grande movimento regressivo.
O uso do pastiche nos artistas acima citados, em contrapartida, é algo de outra
ordem: não se trata de mera cópia ou citação arbitrária de estilos consagrados ou
desusados; trata-se antes, ou mais propriamente, de algo entre a simples imitação e a
paródia, algo próximo do que os letristas e situacionistas mais tarde denominariam
détournement, que designa a retomada distorcida de formas existentes de expressão
para uso subversivo, qualitativamente diverso do original, deslocando significados e
expondo criticamente o lado grotesco e/ou ensandecido das linguagens do poder ou por
ele aceitas, usadas normalmente para sustentar ou legitimar a ordem que esmaga tudo o
que não se enquadra no seio do estabelecido, tudo o que se apresenta ou desponta como
não-idêntico. Exemplo ilustre de retomada crítica de estilos prévios é Machado de Assis,
que nos romances de maturidade recorre às mais diversas tendências europeias da hora
(realismo, naturalismo, idílio romântico, decadentismo fin de siècle, simbolismo,
penumbrismo, art nouveau) sem exatamente adotar uma em particular, virando-as
antes do avesso, em todo caso concedendo-lhes com frequência tratamento
envenenado17. Nas Memórias póstumas, inclusive, faz uso de formas completamente
desusadas, recorre à mescla estilística típica da prosa livre e errática de Sterne e de
Xavier de Maistre a fim de transpor a ambivalência normativa e o arcaísmo das relações
locais, a volubilidade e o arbítrio da conduta das elites brasileiras no contexto da
escravidão. Tratava-se ali, não de simples reprodução arbitrária de algo caduco, mas da
redinamização de formas literárias consideradas (na Europa em todo caso) antiquadas
no intuito de melhor revelar uma formação social e subjetiva abstrusa e truncada, a um

17 Devo tais observações a José Antonio Pasta.


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só tempo arcaica e moderna. Nas palavras do autor: “É taça que pode ter lavores de
egual escola, mas leva outro vinho.”18
Segunda ressalva: em arte, forma é mais do que uma questão de estilo, e
tampouco se reduz à linguagem, embora tenha obviamente a ver com uma coisa e outra.
Em A Portrait of the Artist as a Young Man, por exemplo, o estilo se complexifica e se
enriquece à medida que o protagonista amadurece, ganha consciência e se torna pouco a
pouco capaz de narrar a própria experiência numa prosa mais elaborada e sofisticada; a
complexificação e o enriquecimento confirmam no nível da forma o conteúdo próprio de
um Bildungsroman. Acresce que o emprego da terceira pessoa num escrito
predominantemente autobiográfico marca um distanciamento desfamiliarizador com
relação a algo que lhe é em princípio bastante familiar: o seu passado – o narrador é e
não é mais o indivíduo cuja formação está a narrar. Eis o ponto que interessa: já naquele
romance inicial Joyce jogara com diferentes estilos (da fala infantilizada do início aos
fragmentados registros de diário do fim, passando pelas discussões políticas acaloradas
durante uma ceia de natal, os intermináveis sermões sobre o pecado e o inferno no
colégio, o capítulo da descoberta da vocação literária, recheado de aliterações e
polissíndetos, sem falar na teoria estética que desenvolve o protagonista a partir de
Thomas de Aquino), o que parece sugerir que a complexidade do tema da formação do
indivíduo, a sucessão de fases percorridas e suplantadas exigem tratamento igualmente
complexo, para o que o recurso a um único estilo deixaria a desejar. No que concerne à
composição do Ulysses, caberia recordar uma distinção fundamental: “uma coisa é o
ponto alto da frase, outra é o ponto alto da vida”19. Que as duas coisas não coincidam no
romance de Joyce não é necessariamente defeito do arranjo geral. Embora pareçam
concordar formidavelmente em diversos capítulos – entre outros em “Sirens”, episódio
que tem por tema explícito a música, composto em forma de fuga, ou em “Oxen of the

18 J. M. Machado de Assis, “Prologo da quarta edição” das Memorias posthumas de Braz Cubas [1881],
Rio de Janeiro/Paris: Garnier, 1914, p. viii. Obviamente, com o exemplo de Machado não queremos
igualar a démarche do brasileiro à de Joyce, e menos ainda insinuar que entre as personagens de Brás e
Bloom não haja diferenças; estas são ao contrário significativas (notadamente psicológicas: a um tempo
mais cultivado e mais bárbaro, a lógica estruturando o desejo do primeiro é descaradamente perversa), e
concernem igualmente, a nível social e histórico, a duas formações nacionais um tanto distintas (a nossa
é em muitos respeitos também um tanto mais perversa que a irlandesa, que mal ou bem se insere na
história europeia mais antiga), não obstante partilharem, como veremos, contradições e impasses
específicos de sociedades capitalistas periféricas.
19 Roberto Schwarz, “Sobre as Três Mulheres de Três Pppês” [1978], em O pai de família e outros ensaios,

Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978, p. 144.


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Sun”, verdadeiro passeio pela história da literatura e da língua inglesas, que expõe passo
a passo, em nove partes indistintas, a gestação e o nascimento do inglês moderno, o qual
coincide, em nível de conteúdo, com o parto de um bebê no hospital em que se passa a
cena –, a relação entre forma e fundo não é, no conjunto, e mesmo no interior de alguns
capítulos, de identidade ou simples conformidade; trata-se antes de uma articulação
dialética, que produz uma tensão, de intenção e efeito críticos. Em vez de partir de uma
ontologia das formas e proceder em direção à empiria, Joyce parte ao contrário dos fatos
da experiência e procura mediá-los num encadeamento sintético não imediatamente
apreensível, o que produz no seio da totalidade a centelha que transcenderá o cotidiano
petrificado; em lugar de se comprazer com o simples jogo de montagem de significados
e estilos enrijecidos e esvaziados de sentido, ele os envolve num movimento geral de
reificação e ruptura, tornando-os deste modo novamente comensuráveis com a situação
do próprio sujeito no interior das condições dadas20.
Eis um ponto que, entre outros, separa Joyce de tantos virtuoses da palavra que
chegaram posteriormente. Porque o culto abstrato do malabarismo sintático, da
pirotecnia verbal e das vistosas piruetas narrativas tem um limite objetivo. A execução
de boa parte das proezas e inovações técnicas trazidas pelos grandes da literatura exige
de fato um nível maior de habilidade e competência do que as técnicas narrativas mais
básicas e tradicionais, o que não impede que qualquer escritor mediano, treinado,
consiga macaqueá-las sem grandes problemas. Ora, o difícil não é saber como, mas
quando e por que empregá-las, com que intuito, para surtir que efeito etc. Se o objetivo é
o virtuosismo técnico em si, o resultado, em geral, é que a prosa salta de um lado a outro
e não atinge nada de concreto, não revela nada de significativo, redundando em algo
extremamente enfadonho. Por outro lado, se a finalidade for, despudoradamente, o
sucesso de vendas e a integração capitalista do artista, de duas uma: ou a obra será mero
fruto de uma moda passageira, ou então fará parte de determinado nicho do mercado
literário, o do filisteu que valoriza as excentricidades requentadas da ponta extrema das
vanguardas históricas, cheias de som e fúria, mas que no fundo não dizem nada de nada.

20Retomo aqui, livremente e para uso próprio, alguns elementos da análise de Theodor W. Adorno,
Mahler. Eine musikalische Physiognomik [1960], em Gesammelte Schriften, vol. 13, Frankfurt/M.:
Suhrkamp, 1997, pp. 210 e 304, trad. J.-L. Leleu e T. Leydenbach: Mahler. Une physionomie musicale,
Paris: Minuit, 1996, pp. 96 e 237.
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Parafraseando uma frase filosófica famosa, poderíamos dizer que o sentido da


técnica literária não tem nada de técnico, ou melhor, não está na técnica mesma, que
por si só não tem grande valor. Pedra angular da construção literária, o ponto de vista
narrativo determina a eficiência e parte do significado dos dispositivos técnicos usados
pelo escritor. O ponto de vista, ou a forma com que se posicionam e se deslocam as
vozes narradoras e determinadas personagens no interior da trama, é anterior (mas não
externo) e prima sobre as principais técnicas empregadas, as quais, sob risco de
irrelevância, não deveriam ser mobilizadas arbitrariamente pelo artista, nem tomadas
separadamente (a não ser como momento) pelo crítico. No Ulysses o foco narrativo (que
costuma ser erroneamente confundido com o ponto de vista) é múltiplo, alternado,
cambiante, parece não assentar nunca, o que não impede que no geral se privilegie a
perspectiva situada, ou mais precisamente ainda a posição, o movimento (a um tempo
conjugado e desconjuntado) e o rumo de basicamente três personagens – o casal
Leopold e Molly Bloom, e o jovem Stephen Dedalus, alter ego do autor quando jovem e
protagonista de histórias precedentes (Stephen Hero, manuscrito que permaneceu
inédito em vida, e A Portrait of the Artist as a Young Man, publicado em 1916) –, sem
falar num quarto ponto de vista, relativamente distanciado e de vocação totalizante, que,
à maneira do que ocorre em Dubliners (1904-06/1914), sub-repticiamente articula as
diferentes perspectivas particulares e expõe, através de tal articulação, a tensão e o
descompasso geral que dão tônica, ritmo e unidade ao livro.
A principal técnica literária consagrada pelo grande romance de Joyce, o
monólogo interior ou fluxo de consciência (stream of consciousness) – mais correto
talvez seria dizer fluxo de inconsciência, haja vista que por trás dele, no mais das vezes,
“encontramos uma boca sem eu” (Ernst Bloch) –, leva o discurso indireto livre a outro
nível, e exige grande habilidade do escritor. Introduzida de forma pioneira por Édouard
Dujardin em Les lauriers sont coupés, romance de 1887, mas consagrada mesmo por
Joyce (e Proust, obviamente), a técnica à época foi considerada revolucionária por
implicar a emancipação de qualquer patrocínio narrativo, dando vazão ao pensamento
nascente, na forma de um fluxo linguístico livre, em que a sintaxe às vezes é reduzida a
um mínimo. De fato, com o narrador diluindo-se na personagem, que por sua vez se
substitui àquele, nem sempre se sabe com certeza a quem pertence a voz que narra, se a
determinada personagem, a um narrador não nomeado, ou ao próprio autor (implícito).
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Embora desloque (ainda que não abstraia completamente) o discurso das personagens
de seu contexto imediato de enunciação e significação, tal método narrativo, no caso de
Ulysses, adquire sentido à luz do contexto geral em que foi composto e publicado o livro
(mercantilização das relações, fragmentação do processo social e da experiência
subjetiva, dissolução das formas culturais burguesas e relativização das visões de
mundo, estagnação social, peso dos processos anônimos, despersonalização), tendo
ademais significado diverso em cada caso particular, ou seja, a forma como é empregada
a técnica remete a uma dinâmica (a um tempo social e literária) mais vasta, a qual
traduz e transfigura, transmudando de acordo com a situação narrada e a posição
ocupada pelas personagens no interior da mesma.
Deixando de lado Molly, que ganha realmente a palavra apenas no famoso e
muito celebrado monólogo interior final, repleto de clichês pequeno-burgueses – ainda
que não se reduza a trivialidades, diga-se de passagem, ou a conteúdos regressivos,
dando vazão igualmente a aspirações “libertárias”, de caráter poder-se-ia dizer pós-
burguês –, são principalmente as perspectivas, as posições ocupadas, as trajetórias e os
intercursos dos dois outros, Bloom e Stephen, que acompanhamos praticamente do
início ao fim, cada qual servindo de contraponto ao outro. O ponto de vista geral, do
“articulador”, que de certa maneira é o do artista desterrado – o próprio Joyce, ou
Stephen mais velho, uns dez anos depois (“He is going to write something in ten
years”21), que olha a coisa toda à distância, no tempo e no espaço – emerge
precisamente deste jogo contrapontístico. Como nas telas de Bruegel, o Velho, o
horizonte do quadro geral narrado é decerto estreito (no pintor flamengo a linha do
horizonte é colocada via de regra na parte superior da tela), de modo que não se vê
muito além do mundo no qual as personagens pintadas parecem enterradas; mas o
ponto de vista do narrador-pintor, que é também o do leitor-espectador, é distanciado –
em Bruegel, a cena é quase sempre visualizada a partir de cima, do alto de uma colina ou
de um ângulo suspenso como que por uma grua, para fora do quadro, o que possibilita
uma visão global, totalizante, do conjunto da representação; em Joyce, a complexidade
da linguagem e o câmbio constante de estilos e de enfoque impedem a total imersão do
leitor no fluxo narrativo – e se desloca progressivamente em função dos múltiplos

21 James Joyce, Ulysses [1922], Harmondsworth: Penguin, 1972, ep. 10, p. 248 (doravante: U 10.248).
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pontos de fuga, o que permite abranger uma totalidade plurívoca e complexa – vale
dizer, que não se deixa enquadrar ou subsumir completamente pelo olhar dominador e
autoritário do burguês que, tradicionalmente (ou mais precisamente no e a partir do
Renascimento italiano), mediante uma focalização estática e centralizadora, sói reduzir
todo o espaço de representação a uma perspectiva una, a uma ideia clara e distinta
daquilo que interessa ser visualizado e apreendido –, dando vazão a uma multiplicidade
de narrativas (e de focos narrativos particulares) de que em princípio nada é excluído. A
própria narrativa mítica é deslocada, posta lado a lado com o mais reles, deixa de ser
central, passa a ser uma, e não a mais importante, entre tantas outras (não fossem os
títulos inequívocos de obras como “A queda de Ícaro”, “A conversão de Paulo”, ou o
próprio Ulysses, provavelmente não ocorreria a ninguém fazer a correlação). Eis a
vocação democrática, se nos for permitido dizer, da arte de Bruegel e de Joyce: tudo
entra, tudo cabe e coabita o mesmo espaço social, do mais elevado ao mais baixo.
Superior e inferior se relativizam reciprocamente (o mito é propositalmente deslocado,
deixa de ser central e coexiste lado a lado com outros aspectos da realidade cotidiana,
que ganham destaque), mas a operação não é automática. Na contramão das tendências
à fruição de uma fragmentação indiferenciada, o trabalho da inteligência, vale dizer, o
poder de análise e de síntese, a capacidade de discernir e destacar o essencial, de
diferenciar e recompor os diversos elementos numa totalidade significativa são, num e
noutro artista, pressupostos de leitura.
Por si só, digamos em resumo, dissociada do trabalho de formalização do não-
literário, vale dizer, do movimento geral da prática social, a transformação (ou simples
retomada) de formas literárias e estilos prévios é um jogo inócuo22. Para efeito de
contraste, tomemos como exemplo “Nausicaa”, episódio em que ocorre o confronto
aberto de três estilos, não somente diversos, mas discrepantes. O capítulo inicia
pastichando a prosa edulcorada de romances meia-boca e a trivialidade de revistas
femininas, transpondo assim, num golpe de gênio, a monotonia repetitiva do ato
masturbatório através do recurso ao sentimentalismo barato, aqui exacerbado, repleto
de palavras e expressões supérfluas em locuções excessivamente largueadas, que

22 A referência aqui, e de modo geral no que concerne aos pressupostos da crítica materialista dialética, é
Roberto Schwarz, “Pressupostos, salvo engano, de ‘Dialética da malandragem’” [1979], em Que horas
são?, São Paulo: Companhia das Letras, 2002, pp. 129-155.
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traduzem em forma a dilatação do órgão sexual masculino de Bloom, superexcitado com


a visão, à distância, das pernas e a roupa íntima que a jovem Gerty MacDowell deixa
entrever por baixo do vestido ao se reclinar numa pedra da praia de Sandymount
Strand. Mediante tal prosa tosca, o potencial de regressão contido no oblívio de si na
gratificação imediata não deixa de ser visado, mas Joyce, como veremos, vai além.
Citemos um trecho, para que se tenha ideia do caricato intencional da prosa: “But
Gerty’s cro ning glory as her ealth of onderful hair. It was dark brown with a
natural wave in it. She had cut it that very morning on account of the new moon and it
nestled about her pretty head in a profusion of luxuriant clusters and pared her nails
too, Thursday for ealth. And just no at Edy’s ords as a telltale flush, delicate as
the faintest rosebloom, crept into her cheeks she looked so lovely in her sweet girlish
shyness that of a surety God’s fair land of Ireland did not hold her equal.”23 Na
sequência, após o orgasmo e a ejaculação de Bloom, que coincidem admiravelmente
com a explosão de fogos de artifício nos céus de Dublin, a narrativa passa da terceira
pessoa para o monólogo interior, e o grotesco da tristeza pós-coito, a desilusão e o
enfado tomam os matizes de uma prosa agora desinchada, frouxa, fatigada; uma escrita
telegráfica, paratática, concatenando uma série de sentenças curtas, sem fôlego, bambas
e erráticas, recheia várias páginas: “Tired I feel now. Will I get up? O wait. Drained all
the manhood out of me, little wretch. She kissed me. My youth. Never again. Only once
it comes. Or hers. [...] All changed. Forgotten. The young are old. [...] O! Exhausted
that female has me. Not so young no . Will she come here tomorro ? [...] We’ll never
meet again. But it was lovely. [...] Made me feel so young.”24 O resultado é notável. A
curva deceptiva da entrega total dos sentidos ao gozo bestial é magnificamente
ressaltada, mas o melhor vem mesmo em seguida: fechando o capítulo, a lembrança da
promessa de felicidade encerrada na visão da jovem na praia é trazida à tona com o
melhor da prosa modernista. Num breve trecho, de grande intensidade, a recordação da
apetência prestamente satisfeita dá vazão a um fluxo de livre associação de ideias, e faz
com que a prosa, prefigurando já o famoso monólogo final de Molly (com suas mais de
40 páginas sem qualquer pontuação), quiçá mesmo a prosa emaranhada de Finnegans
Wake, desande sintaticamente e vague no que, em termos puramente literários, alguns
23 U 13.347.
24 U 13.374-75 e 379.
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consideram (tomando-o isoladamente) o que há de mais avançado no livro: “O sweety


all your little girlwhite up I saw dirty bracegirdle made me do love sticky we two
naughty Grace darling she him half past the bed met him pike hoses frillies for Raoul
to perfume your wife black hair heave under embon señorita young eyes Mulvey
plump years dreams return tail end Agendath swoony lovey showed me her next year
in drawers return next in her next her next.”25 Não sendo por si só sinônimo ou
garantia de progresso, o literariamente mais avançado, aqui, posto lado a lado e em
tensão dialética tanto com a literatura mais kitsch e clicheresca como com uma prosa
jornalística ressecada, exprime em negativo algo que poderia ter sido, mas não teve
lugar, o estado reconciliado. Bloqueada por completo a possibilidade de uma existência
por assim dizer pacificada, em que os sentidos e as faculdades humanas pudessem se
desenvolver plenamente, a regressão é significativa. A seu modo, a controversa cena da
masturbação em “Nausicaa”, que fez com que o livro fosse durante um bom tempo
censurado nos EUA, não deixa de encerrar a configuração puramente contemplativa que
assumem as relações sociais na sociedade do trabalho e da mercadoria fetichizados.
Mais do que isso: o episódio insinua que a própria gratificação na sociedade fetichista
tem o ritmo monótono, repetitivo e enfadonho do trabalho alienado, que, à maneira de
um vampiro, suga do sujeito toda vitalidade – é isso, mais do que o fato de pôr em cena
o ato da masturbação, que torna a situação retratada, por trás da aparente banalidade,
inaceitável26. É a insistência no bloqueio, justamente, na dinâmica paralítica da
sociedade da produção mercantil, que exprime em negativo a possibilidade de algo
diferente: o desregramento do desejo – contrapartida de seu recalque – coincide ali de
certo modo com o afrouxamento das regras gramaticais, mas este sugere ao mesmo
tempo, por esgotamento e exacerbação, a abertura possível a uma nova sintaxe social. A
utopia aparece de relance – como o clarão de um fogo de artifício no céu crepuscular –
na imagem invertida de sua impossibilidade. Seguramente um dos pontos altos do livro,

25 U 13.379.
26 Para além da simples provocação, o tema da masturbação, muito presente o livro (além de Bloom em
“ ausicaa”, seria possível argumentar que, embora de forma menos explícita, Stephen em “Proteus” e
Molly em “Penelope” também deem vazão ao famigerado ato sexual solitário), ganharia ao ser lido nesta
chave, do potencial de vida desperdiçado. Há nesse sentido outras tantas alusões e referências, quase
nunca notadas: as “migalhas” no vagão da carruagem em “Hades”), por exemplo, as quais, logo se
percebe, não são restos de um piquenique, mas provavelmente esperma ressecado, não serviriam
também de alegoria para as possibilidades petrificadas de uma nova vida?
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de costume ignorado, em que fica claro, como espero ter mostrado, a não-arbitrariedade
das escolhas estilísticas no melhor Modernismo, como também exemplifica o uso
extremamente crítico que Joyce faz do pastiche.
Já foi dito, mas não custa repetir: a riqueza e a complexidade da poesia de Joyce
constitui ao mesmo tempo a expressão da riqueza possível, da possibilidade de formas
de vida mais belas e sofisticadas, e o protesto contra a miséria real, contra a
imobilidade social e a falta concreta de liberdade, que são vividas de diversas maneiras
pelas diferentes personagens. Acresce que tal forma crítica, quando deixamos o nível da
impressão imediata, não é simples ou absolutamente discrepante em relação ao
andamento geral, mas reverbera, a cada etapa, na transformação pela qual passa uma
personagem em particular (Stephen Dedalus) ao longo da trama, na qual somente
superficialmente não se passa nada de significativo. Em resumo, diria que a tese de que
os estilos usados no romance são arbitrários e absolutamente intercambiáveis vacila,
para além dos fatores já apontados, quando nos apercebemos que estão intrinsecamente
ligados ao encadeamento dos episódios. Se não estou enganado, então, de forma alguma
se trata de simples liquidação estilística. Para início de conversa, há um movimento
geral delineado no curso da narrativa, que é o de uma passagem paulatina das esferas
subjetiva e intersubjetiva aos processos objetivos (notadamente com a explicitação dos
processos de produção literário e social, que se intermedeiam no texto), fechando com
um retorno a um foco predominantemente subjetivo, só que de certo modo
transmudado, não idêntico ao dos primeiros cinco episódios. De forma geral, os
câmbios, segundo o próprio Joyce, visavam a dar conta das diversas alterações
transcorridas no espaço de um dia – manhã, hora do almoço, tarde, anoitecer, horas e
estados noturnos, primeiras horas da madrugada –, mas sugeriam concomitantemente
algo como um processo cumulativo, de formação do sujeito, um caminho que inclui
impasses relacionais, ensimesmamento, extrusão, choques da alteridade, reflexão e
retorno a si etc., com a tensão atingindo o ápice na parte final, como que exigindo
resolução. Com efeito, os dois derradeiros episódios reencenam o dualismo, ou a
dicotomia entre sujeito e objeto: o monólogo interior de Molly contrasta de maneira
gritante com o questionário minucioso que o precede imediatamente, com a descrição
catalogadora, por exemplo, dos livros que se encontram nas estantes de Bloom ou dos
objetos guardados em suas gavetas, entre tantas outras listagens contidas em “Ithaca”.
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Digamos, então, que as diferentes técnicas mobilizadas e a multiplicidade de estilos


pastichados e descartados pelo caminho são postos a serviço de tal movimento geral, o
qual, aliás, justifica, sub-repticiamente e amiúde, no plano da forma, o desacordo
crescente de Stephen com sua própria condição, bem como as pequenas rupturas que o
impelem progressivamente ao exílio. Resta o autocontentamento complacente de Bloom
– o qual ademais não é ele mesmo inequívoco – e as impotentes resoluções tomadas
pela esposa antes de dormir, que só fazem ressaltar, por contraste, a postura
antissistêmica do jovem artista. Do ponto de vista de Molly, tem-se de fato a impressão
de que a liquidação dos estilos existentes justifica a explosão sintática do final, o
desregramento cabal em que desemboca a prosa de “Penelope” (de que se tem uma
prévia em capítulos individuais, notadamente em “Nausicaa” e “Oxen of the Sun”), a
qual, prosa – muito embora, não nos enganemos, trabalhada ao extremo, não contendo
nada da facilidade da escrita automática –, traduz e coincide com o adormecer, portanto
com a anulação da consciência, a entrada no universo semiconsciente e dissoluto do
sonho, em que tudo parece possível, não obstante culmine numa incauta afirmação da
vida chinfrim: “and yes I said yes I will Yes.”27
O livro acaba, mas não termina; a totalidade visada não é total, a possibilidade de
uma existência diferente da presente, mais rica e produtiva num sentido superior, fica
sugerida e parece ao alcance da mão, ainda que se conjugue a cada etapa com a inércia
social e subjetiva que atravanca o passo necessário (necessariamente coletivo) para fora
do círculo infernal da repetição fetichista, da rigidez a-histórica em que se fechou a
sociedade burguesa moribunda.28 Se concebermos a práxis literária de Joyce no Ulysses

27 U 18.704.
28 Note-se de passagem que no nível da recepção da obra a coisa não é muito diferente: a própria
complexidade, o trabalho e a inteligência ativa exigidos pela leitura deveriam prevenir que o livro fosse
consumido à maneira de uma mercadoria qualquer, veloz e espontaneamente, o que não impediu que,
por toda a sua dificuldade e (para o leitor médio) impenetrabilidade, o Ulysses tenha adquirido certa
“aura” e por isso mesmo exerça um fascínio quase irresistível – facilmente mercantilizável – sobre uma
parcela da pequena burguesia filisteia global, que se reúne anualmente em torno de um caneco de
Guinness para comemorar o Bloomsday, o dia internacional do semiculto (Bloom) para semicultos
fetichistas (imagine-se o ridículo de ter um dia do ano reservado para celebrar Brás Cubas ou
Riobaldo!). Afinal de contas, ler o Ulysses não é para qualquer um (para começar, exige um tempo que
ninguém mais parece dispor), o que confere status a quem ousou a empreitada e foi até o fim, que se
torna como que membro de um seleto grupo, quase uma confraria. Trata-se da cultura como substituto
da religião derruída, e Joyce muito claramente joga com isso: a intricada teia de símbolos, as
correspondências sem fim, todo o paralelo com a Odisseia, no fundo, não querem dizer nada de nada,
não esclarecem absolutamente coisa nenhuma, e só servem para entreter até o fim dos tempos os
críticos bem-pensantes e os semiletrados do mundo todo, que poderão em cada ocasião ostentar o seu
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como algo que vai além de uma simples liquidação de estilos consagrados, vale dizer,
como uma tentativa de expropriação crítico-subversiva e politicamente consciente,
menos dos estilos em si do que dos próprios meios de produção literária, teríamos
diante dos olhos um livro nada inofensivo, um ambicioso experimento, visando a
desviar e deslocar os significados e as linguagens imperantes no sentido de uma
perspectiva superadora. Sob este prisma, Joyce levaria adiante o legado inconformista
dos maiores artistas modernos e se inscreveria numa tradição aguerrida, em tudo
alternativa ao cânone engessado e abnóxio em que costumam ser relegados aqueles
artistas pelo complexo cultural acadêmico-midiático; uma tradição constituída por algo
como um comunismo literário, apontando como que “para um futuro moderno no qual
a comunidade possa ser novamente imaginada”29.

(verão de 2015-2016)

“conhecimento” da obra. Pois que importa saber que a cor predominante de tal epis dio “Proteus”,
digamos) é o verde ou o azul, que os dez anos de abstinência sexual entre Bloom e Molly correspondem
aos dez anos que Ulisses levou para voltar para casa, que a ponta ardente do charuto que fuma o
Cidadão remete ao olho do Ciclope, e assim por diante? O que isso acrescenta ou explica do que quer que
seja? Grandiosa conversa fiada, intermináveis discussões, no mais das vezes estéreis e irrelevantes, que
não levam a lugar nenhum, semelhantemente ao falatório especializado sobre esportes. Ocorre que a
esterilidade e a irrelevância das ideias – atestadas (de novo, semelhantemente ao que ocorre com
Machado) pela própria recepção da obra – são temas centrais do romance de Joyce. Razão a mais para
levar a cabo uma leitura desfetichizante e materialista do livro.
29 Raymond Williams, “Quando se deu o modernismo?” [1987], em Política do modernismo. Contra os

novos conformistas, trad. A. Glases, São Paulo: Unesp, 2011, p. 7.


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HAMLETS DE FARDA NÃO HESITAM


Uma leitura materialista do Ulysses

Raphael F. Alvarenga

O protesto da arte vem, no fundo, do seio do


trabalho submetido, não de fora dele.
Sérgio Ferro

“[A] chapa quente da vida [the fryingpan of life]”1 – é como Leopold Bloom, um
publicitário freelance de meia idade, resume a existência num dia qualquer do primeiro
decênio do século passado (16 de junho de 1904), que à primeira vista pouco difere de
qualquer outro: nenhum acontecimento maior, nenhuma grande revelação, nada além
do fato corriqueiro, banal e aparentemente inevitável da luta diária de todos contra
todos: “todo mundo devorando todo mundo [everybody eating everyone else]”2; “Cada
um por si, unhas e dentes. [...] Comer ou ser comido. Mata! Mata! [Every fellow for his
o n, tooth and nail… Eat or be eaten. Kill! Kill!].”3 Embora não redunde de todo em
essência metafísica da história humana, o contexto da concorrência universal por um
lugar ao sol do mercado é percebido por quem também deve lutar por seu pão de cada
dia como uma luta de morte generalizada. A metáfora da deglutição universal é de fato
recorrente no grande romance de Joyce (embora atinja o ápice no oitavo episódio,
“Lestrygonians”), mas é preciso não se deixar cegar por ela. Por outras palavras, é
preciso determinar o seu estatuto. A percepção do pega-pra-capar generalizado, bem
como a imagem ideal que figura como sua negação – Bloom sonha com um estado
socialista utópico (utópico, digamos, por serem as relações de produção vigentes quase
que completamente ignoradas), uma forma de welfare state, em que a existência fosse
pacificada e uma renda mínima, suficiente para uma vida confortável, garantida a todos
(“I want to see everyone [...] having a confortable tidysided income [...] ₤ 300 per
1 James Joyce, Ulysses [1922], Harmondsworth: Penguin, 1972, ep. 6, p. 113 (doravante: U 6.113).
2 U 7.124.
3 U 8.170.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016 96

annum. [...] it’s feasible and ould be provocative of friendlier intercourse bet een
man and man.”4) –, são expostas como próprias do trabalhador (digamos ainda em
termos gerais) que deve brigar a todo momento para ter um anúncio seu publicado, e
que com custo logra fechar o dia sem dívida. A percepção é superficial e enviesada,
distorcida pela necessidade em muitos aspectos: através de incontáveis lugares-comuns,
traço de caráter da personagem5, Bloom vê em tudo oportunidade para um anúncio
(“Because life is a stream. All kinds of places are good for ads.”6), e as questões do
trabalho (ou do tipo menos ou mais infernal ou mortificante de emprego que se tenha,
do “homem-sanduíche”, portando nos ombros a publicidade de algum serviço ou
mercadoria, ironicamente comendo de pé o lanche que lhe traz a mulher na hora do
almoço, ao padre barrigudo recitando o habitual e fastidioso sermão em latim no
enterro de um conhecido) e do dinheiro (uma preocupação constante através do livro,
que culmina na contabilidade antes de ir para a cama, em que se constata o equilíbrio
perfeito, mas algo fortuito, entre débito e crédito 7) guia a maior parte de suas reflexões.
O resto, quer dizer, o que não se encaixa no esquema da vida produtiva monetarizada,
reduz-se a constantes devaneios – às vezes desencadeados pela visão de algum tipo de
mercadoria que fala à imaginação (uma caixa de chá do Ceilão, por exemplo) e no geral
portando sobre uma existência pacificada e sensual, fundada no ócio, que o imaginário
de Bloom (ou o imaginário geral norte-europeu) associa ao clima quente e glamoroso do
Sul (“the southern glamour”8; “passionate abandon of the south”9), à Espanha moura e
morena (desejada por muitos dublinenses, “Dublin’s prime favourite”10, Molly, a esposa
com quem não tem relações sexuais há anos, é espanhola) e ao Extremo-Oriente (“The
far east. Lovely spot it must be [...] Those Cinghalese lobbing around in the sun, in

4 U 16.564-65.
5 É o que, entre outras coisas, permite aproximar Ulysses de Bouvard et Pécuchet, como o fez, logo de
saída, Ezra Pound, “Paris Letter”, The Dial 1922), p. 335, cit. em enoît adié, “ he Room of nfinite
Possibilities: Joyce, Flaubert, and the Historical magination”, Études anglaises, # 58.2 (2005), pp. 131-
32: “Bouvard is unfinished, Ulysses is gigantically complete, and the latter parts of Ulysses, notably
loom’s conversational outburst, give one excellent ground for comparison. He has emitted what appear
to be all the clichés of the English language in a single volcanic eruption.”
6 U 8.153.

7 Cf. U 17.632.

8 U 16.542.

9 U 16.572.

10 U 7.136.
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dolce far niente. Not doing a hand’s turn all day. Sleep six months out of t elve. Too
hot to quarrel. Influence of the climate. Lethargy. Flowers of idleness.”11) –, ou às
eclosões intermitentes de uma vitalidade reduzida no mais das vezes a animalidade ou
primitivismo (quiçá uma crítica subliminar, da parte de Joyce, ao caráter a um tempo
regressivo e inofensivo de certa estética antiburguesa contemporânea?), traduzido na
preferência culinária por miúdos – logo de entrada, na primeira cena em que aparece
(em “Calypso”), planeja preparar rins de cordeiro grelhados para o café da manhã, e
delira com a perspectiva do leve sabor perfumado de urina impresso no paladar (“Most
of all he liked grilled mutton kidneys which gave to his palate a fine tang of faintly
scented urine.”12) –, bem como no apetite sexual desregrado e na fascinação pelo verdor
arborescente das raparigas em flor – pensa em quão fortunadas são as cadeiras em que
se sentam as estudantes que vira na biblioteca e masturba-se ao enxergar por baixo do
vestido a calcinha de uma jovem sentada na praia13. Por estes poucos exemplos, fica
claro que Bloom, premido pela situação aparentemente sem saída em que se encontra, é
em grande medida escravo do próprio desejo, ou dos sentidos primários, da fruição
imediata, raramente resistindo às ofertas de gozo com que cruza pelo caminho.
Mais adiante tentaremos determinar o estatuto e o significado de tal postura. Por
ora, como já sugerido noutro texto 14, lembremos que não é acaso se a narrativa abre, não
com Bloom, mas com o jovem Stephen Dedalus, que protagoniza a parte inicial (“The
Telemachiad”), composta por três episódios. É notadamente pela perspectiva marginal
desta personagem que Joyce desenvolve e obtém a abrangência maior da situação geral
por ele construída. Embora Bloom figure na maior parte dos episódios do livro, sua
trajetória inercial e sem grandes sobressaltos, serve principalmente de contraponto à do
mais jovem, naquele contexto impossibilitado de perseguir a vocação literária e realizar
suas ambições artísticas. Numa palavra, Bloom seria como que um duplo antitético (e

11 U 5.73.
12 U 4.57.
13 Anteriormente, num belo poema em prosa, de teor impressionista e fragmentário, texto não publicado

em vida porque demasiado franco e pessoal, Joyce narrara episódio semelhante, em que, na calada da
noite, observa de longe, com os pés na lama, uma adolescente trocar de roupa em seu quarto, uma
signorina de quem fora tutor de inglês em Triete, deixando livre curso à fantasia de uma interação
sexual com a garota. Cf. James Joyce, Giacomo Joyce [1914], ed. bilíngue, São Paulo: Brasiliense, 1985,
pp. 72-73 (no original) e 28-29 (na trad. de P. Leminski).
14 Cf. Raphael F. Alvarenga, “Forma, estilo, pastiche”, nesta edição de Sinal de Menos.
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mais velho) de Stephen: a mediocridade eficiente do pai em busca de um filho que


substituísse por assim dizer o que perdeu (o pequeno Rudy morrera 11 anos antes, logo
após o parto) lança uma luz de contraste sobre o brilhantismo desusado, porém
renitente, do moço em busca de um rumo para a vida. O contraste é de fato total: vai
desde os trajes negros que ambos portam ao uso que fazem da cultura, à concepção da
vida, da poesia e de todo o mais. Bloom, por exemplo, veste roupa escura num dia
quente em função do enterro de um conhecido, Paddy Dignam, mas apenas por uma
questão de aparência (“I couldn’t go in that light suit. Ma e a picnic out of it.”15), ao
passo que Stephen está realmente de luto pela morte da mãe, recentemente falecida,
sem falar em sua fixação mórbida pela figura de Hamlet. No seu caso, e num contexto
(como veremos) de luta ardilosa contra forças regressivas, a cor negra, cujo prestígio
tradicionalmente acompanha os poetas, do anti-herói shakespeariano a Baudelaire,
encerraria a promessa de uma vida cuja possibilidade tudo à volta parece abafar; a
mentalidade a ela associada é a do homem de ação em gestação, ou provisoriamente
incapacitado de agir, como que agonizando à espera do inesperado 16. Tal luta, surda e
subterrânea, incide no uso diferenciado, astucioso, que faz da cultura. Uma referência
importante aqui é Lucien de Rubempré, herói das Ilusões perdidas, como Stephen um
jovem poeta provinciano com ambições de tornar-se um grande autor em Paris. Diz ele
em Splendeurs et misères des courtisanes (1838): “ ’ai mis en pratique un axiome avec
lequel on est sûr de vivre tranquille: Fuge, late, tace [esquive-se, dissimule-se, cale-
se]!”17 No Portrait, embora sem se referir explicitamente a Balzac, Stephen havia como
que traduzido a divisa – que o escritor francês vira inscrita nos muros de uma Cartuxa –
da seguinte maneira: “silêncio, exílio, astúcia [silence, exile, cunning]”18. Mesmo se, pela
força das coisas, o jovem dublinense tenha sido compelido a colocar temporariamente
entre parênteses a realização das aspirações literárias e retornar à realidade provinciana
da qual havia escapado, o lema cartuxano adotado por Lucien guia boa parte de suas
ações através do Ulysses. Voltando ao contraste, bem analisados por Franco Moretti, os
15 U 4.59.
16 Parafraseio aqui um belo fragmento poético de René Char, Feuillets d’Hypnos [1943-1944], em Fureur
et mystère, Paris: Gallimard, 2007, § 229, p. 141: “La couleur noire renferme l’impossible vivant. Son
champ mental est le siège de tous les inattendus, de tous les paroxysmes. Son prestige escorte les poètes
et prépare les hommes d’action.”
17 Honoré de Balzac, La Comédie humaine, vol. 11, Paris: Fourne/Dubochet et cie./Hetzel, 1844, p. 344.

18 James Joyce, A Portrait of the Artist as a Young Man [1916], New York: Random House, s.d., p. 291.
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modos com que as duas personagens, Stephen e Bloom, recorrem à cultura também se
encontram nas antípodas um do outro. Assunto chave do romance, a meia cultura (para
usar o termo adorniano, Halbbildung) encarnada por Bloom o é igualmente por grande
parte das personagens (e do público leitor), aos olhos de quem, aliás, o publicitário de
inteligência mediana passa por um homem cultivado, com “um toque de artista” (“He’s
a cultured allroundman [...] There’s a touch of the artist about old loom.”19). Ao
contrário de Stephen, cujo talento literário é inquestionável, mas no fundo inútil em
termos sociais, Bloom já não distingue arte poética e publicidade (“the modern art of
advertisement”20), a qual não deixa de ser uma poesia degradada, adaptada às
demandas do mercado e ao ritmo acelerado da vida moderna (“a poster novelty [...]
congruous with the velocity of modern life”21), por isso mesmo uma linguagem
mutilada, visando tão-somente o logro e o lucro (palavras que têm a mesma origem no
latim lucrum, não custa lembrar), o que não a impede de recorrer a formas
esteticamente avançadas (“Now if they had made it round like a wheel. [...] Something
to catch the eye.”22) a fim de obter êxito comercial.
Traço característico da geração pós-napoleônica na Europa, a mercantilização da
arte e da literatura, da produção à recepção, já havia sido assunto de destaque em
Balzac: “[da fabricação] do papel às convicções, às ideias, aos sentimentos dos
escritores, tudo se transforma em mercadoria”23. Que no capitalismo triunfante o poeta
puro, o artista de real talento e vocação – que vê como ignominioso o fato de dever se
adaptar às demandas externas do mercado, à necessidade de produzir algo vendável;
que abomina o fato de colocar suas ideias e convicções entre parênteses a fim de
alcançar algum sucesso ou reconhecimento – que tal artista deva fracassar, eis a verdade
que Balzac expõe impiedosamente com a ruína de Lucien de Rubempré. A capitalização
do espírito, e a prostituição da arte e das ideias que a acompanha forçosamente,
conquanto já se façam valer de forma violenta no universo balzaquiano, parecem
nalguns momentos atingir o paroxismo no Ulysses: com efeito, Bloom respira e

19 U 10.234.
20 U 17.604.
21 U 17.641.

22 U 5.88-89.

23 Georg Lukács, “ alzac: Les Illusions perdues” [1935], trad. L. F. Cardoso, em Ensaios sôbre literatura,

Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968, p. 104.


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transpira a lógica mercantil como se fosse a coisa mais natural do mundo, dá ares de
estar completamente amoldado, ter incorporado até o último fio de cabelo a necessidade
imperiosa de vender alguma coisa e se vender o tempo todo. Moretti ressalta com razão
este aspecto “da ‘fisionomia intelectual’ de loom: sua vocação administrativa
desesperada, seu esforço para capitalizar cada coisinha em vista de sua potencial
utilidade econômica”24. A capitulação final do sujeito – aqui algo tipificada com a
personagem de um mediano publicitário pequeno-burguês, forçado a adaptar-se
incessantemente ao momento presente e nele dispender toda a sua energia – é
indissociável de sua capitalização, ou da formatação do seu intelecto e imaginário em
termos capitalistas. Ocorre que, se não há dúvida de que a mercantilização do espírito e
das condutas está no coração da prosa do Ulysses, seu alcance ainda não é total. Ou por
outra: tal processo não se desenrola sem resistências. A razão reside, em parte,
paradoxalmente na persistência do que poderíamos talvez chamar de “miséria
irlandesa”, vale dizer, no caráter atrasado da vida social e cultural da ilha à época, nos
traços marcadamente comunitários ou pré-urbanos remanescentes num país que
praticamente não se industrializou25 – por isso próximo a muitos títulos de um país do
Terceiro Mundo –, apesar de estar inserido na dinâmica desigual e combinada do
capitalismo mundial.
A esta altura, abrindo um parêntese, uma comparação da situação da Irlanda de
então com a o Brasil pode ser ilustrativa, embora todo cuidado seja pouco, uma vez que,
em relação a uma economia baseada no trabalho escravo, como a brasileira, há
obviamente diferenças não negligenciáveis entre os dois contextos. Existem não

24 Franco Moretti, “ longo adeus: Ulisses e o fim do capitalismo liberal”, em Signos e estilos da
modernidade. Ensaio sobre a sociologia das formas literárias [1983], trad. M. B. de Medina, Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p. 237.
25 País majoritariamente agrário, a Irlanda ficou (ou foi deixada) para trás, passou completamente ao

largo da Revolução Industrial; além de não possuir quantidade significativa de carvão ou ferro, a
dependência econômica e política da Inglaterra – que segundo Marx via no país vizinho apenas um
distrito agrícola seu, fonte de produtos como lã, milho, trigo, gado, madeira e mármore, bem como de
trabalhadores industriais e recrutas militares para as guerras imperiais –, foi determinante para que os
irlandeses perdessem por assim dizer o bonde da história – o que lhes custou caro, para dizer o mínimo,
se lembrarmos da “grande fome” de 1846-1848, que matou nada menos que um milhão de pessoas e
forçou milhões de outras à emigração nas décadas que se seguiram. A respeito, além dos textos
conhecidos de Marx e Engels, cf. Paul Keating & Derry Desmond, Culture and Capitalism in
Contemporary Ireland, Hants: Avebury, 1993, pp. 8 e 118; Cormac Ó Gráda, Ireland. A New Economic
History: 1780-1939, Oxford: Oxford University, 1994, pp. 314-30; e John Kurt Jacobsen, Chasing
Progress in the Irish Republic. Ideology, Democracy and Dependent Development, Cambridge:
Cambridge Univeristy, 1994, p. 46.
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obstante também algumas similaridades significativas, que dizem respeito ao processo


social em descompasso das sociedades periféricas e que mereceriam um tratamento à
parte. Em linhas gerais, e de forma um tanto resumida, digamos que, ao contrário do
Brasil, na Irlanda, como na maior parte dos países europeus, o dinheiro estava
diretamente ligado à constituição subjetiva (e vice-versa) e a ética do trabalho (ligada à
disciplina religiosa) havia sido de certo modo interiorizada, o que entre nós era
impossível, em razão de o trabalho vexar, por ser trabalho escravo; o impacto causado
pela expansão da forma mercantil no Brasil fora, desnecessário dizer, um tanto mais
avassalador do que na Irlanda, que como o restante da Europa tinha mal ou bem um
passado e uma tradição multissecular que lhe serviam de contraste (o catolicismo, por
exemplo, era decerto opressor, mas não chegava a ser vivido como simples impostura,
não era mera ideologia de segunda mão), impedindo que tal forma se tornasse ou fosse
percebida como algo natural (no Brasil escravagista, tirando o tempo de trabalho,
precisamente, que era a única coisa que resistia à mercantilização, todo o resto caía sob
o feitiço da mercadoria, incluindo da figura do trabalhador escravo); ainda assim, num
país e noutro, em função da mobilidade social diminuta, da ausência relativa de
complexidade social e sobretudo do descompasso geral regendo a vida social e
ideológica, em suma, da combinação prática não velada de miséria material e formas
modernas, o sujeito não chegava a ter a consistência e a consequência que (pelo menos
no nível das aparências) apresentava na Europa ocidental. Tal constituição subjetiva
precária e descompassada, ainda que apresente diversos níveis e feições, é algo comum a
toda a periferia do capitalismo, vindo enredada a outros traços típicos (estes não
necessariamente generalizáveis). Destaque-se, no caso da Irlanda, a estagnação e a
monotonia, a estreiteza mental ranzinza e a ignorância histórica, o filistinismo cultural e
a opressão religiosa, mas também o pensamento escolástico, a exuberância verbal e um
senso de humor de tipo “swiftiano”, mordaz e iconoclasta, o qual tornava possível,
mesmo se momentaneamente apenas, um distanciamento irônico em relação à
esterilidade geral da existência, à manifesta degradação da realidade presente 26. Parte
considerável da força e da vitalidade da prosa de Joyce vem daí, do fato de jogar
ardilosamente estes traços “pícaros” do espírito irlandês contra os aspectos sórdidos e

26Para tudo isso, cf. Terry Eagleton, The English Novel. An Introduction, Oxford: Blackwell, 2005, pp.
285-86.
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paralíticos da sociedade irlandesa – e o leitor brasileiro não deixará de notar que


lineamentos semelhantes (da vida social, da vida das ideias) aparecem, em maior ou
menor grau, nos narradores dos romances machadianos da fase madura, o que não há
de ser mera coincidência.
Ao colocar no centro de sua narrativa a Dublin do início do século, e personagens
que de um jeito ou de outro refletem as suas contradições (contrariando as evidências,
Bloom e Molly não são apenas um casal pequeno-burguês típico, Stephen não é apenas
um jovem literato típico27), estando em determinados momentos e de diferentes
maneiras em desacordo com a condição dada (com a posição social que deveriam
ocupar, a função que se espera que exerçam), Joyce obtém uma perspectiva vantajosa,
de grande envergadura e alcance. Operando ao mesmo tempo dentro e fora do fetiche
do capital, como se este não fosse ainda absoluto, como se as abstrações reais do
dinheiro, do trabalho, da mercadoria não colonizassem por completo, da forma mais
cabal, a vida cotidiana, como se a decomposição em curso (a destruição da cultura pelo
capitalismo) não fosse ainda total, embora chegue deveras perto disso, a narrativa abre
espaço tanto para se imaginar condutas não de todo capitalistas ou não inteiramente
mercantilizadas (que por essa razão escapariam à previsibilidade sociológica dos papéis
e grupos sociais, embora tampouco sejam completamente livres ou espontâneas) como
para, em seguida, ou ao mesmo tempo, expor o lado não mercantil (e supostamente
inocente) dos negócios28. Tal perspectiva, duplamente crítica e radicalmente moderna,
isto é, avançada em termos de formalização da matéria histórica, dificilmente poderia
ser elaborada ou obtida da mesma maneira no centro do capitalismo, ou em todo caso

27 Ao contrário de outras personagens mais explicitamente estereotipadas, como Buck Mulligan (irlandês
típico), Haines (encarnando as típicas mentalidade e atitudes do colonizador inglês), o Cidadão (típico
nacionalista reacionário), ou o Sr. Deasy (protestante antissemita que abraça tipicamente o espírito do
capitalismo).
28 Haveria aqui um paralelo interessante a ser traçado com certa estratégia estética brechtiana. Nas

palavras de Roberto Schwarz, “Altos e baixos da atualidade de recht”, em Seqüências brasileiras, São
Paulo: Cia. das Letras, 1999, p. 148: “Ao encharcar de clássicos o mundo das negociatas [em A Santa
Joana dos Matadouros] Brecht preferiu ficar na penúltima etapa da fetichização, um passo aquém da
delegação completa da energia social ao mercado. [...] Brecht queria mostrar que algo de Bocarra já
existia no Fausto, mas não que a grandeza das Luzes continuasse viva nas especulações da Bolsa. [...] O
resultado é uma iluminação de viés, que faz ver a face não mercantil dos negócios, que não é boa, e não
deixa que o fetichismo se complete, ou seja, que o capital pareça ser apenas capital. Assim, a vizinhança
escarninha do presente com as glórias peremptas da ordem burguesa segue nos interrogando, não
porque proponha uma volta atrás ou uma solução, mas pela evidência de fraude que proporciona.”
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em lugares menos atrasados do ponto de vista do capital 29. Por diferentes que fossem as
duas nações em questão, o capitalismo não se fechava por completo nem na Irlanda nem
no Brasil – razão pela qual a formação do sujeito – estruturalmente homóloga à
formação histórico-social – tampouco se fecha, ficando este a meio caminho da
constituição burguesa clássica, uma vez que já nasce decomposto –, e por isso mesmo
revelava num caso e noutro aspectos de sua essência monstruosa (não somente os
episódios inglórios, no plano social, da fome em massa e da escravidão, mas, outrossim,
o contexto bárbaro de luta de morte generalizada, racismo/antissemitismo estrutural,
elevado nível de fetichização, de espetacularização da existência...).
É portanto no seio de um contexto social e histórico esdrúxulo, a um tempo
retrógrado e parte do mundo moderno, que perambula a personagem de Stephen, que,
em contraste com Bloom, é uma figura marginal não apenas na economia geral do livro,
aparecendo significativamente menos, mas também no nível da própria trama, em
função de estar – à maneira de Hamlet, em quem a personagem é em grande medida
inspirada, muito mais do que em Telêmaco – fora dos gonzos, em vias de ruptura com a
condição dada30, de modo que não poderia mesmo figurar no centro da narrativa, como
peça fundamental da ordem (literária como social) estabelecida. A inadequação de
Stephen – que, não custa lembrar, só pode ser divisada sob o prisma do modo com que a
unidade dialética de sujeito e objeto se configura ou toma forma naquele contexto
determinado – o diferencia e distancia progressivamente das demais personagens; ela o

29 A fim de expor o não-idêntico da sociedade e da cultura burguesas moribundas, Thomas Mann, por
exemplo, teve de imaginar heterotopias, ou sociedades alternativas apartadas da civilização capitalista e
da história efetiva (uma colônia de férias no balneário veneziano, um sanatório enfurnado nos alpes
suíços, um estúdio de artista no campo bávaro), as quais, sob o signo da doença e da morte (cólera,
tuberculose, sífilis), bem como da tentação “diab lica”, geralmente na forma do erotismo ex tico, que
não raro conjuga vitalidade e morbidez (a beleza apolínea de um adolescente polonês, a sensualidade
felina e “lânguido-asiática” de uma ovem russa, a figura enigmática de uma prostituta húngara de pele
morena, nariz arrebitado e olhos amendoados), seriam regidas por uma temporalidade distinta da do
capital, para cuja narração, no entanto, o autor lançou mão de formas literárias antiquadas, típicas do
século XIX. Em contraste, a Recherche de Proust teria maior alcance crítico justamente porque trabalha
com duas peripécias históricas, com as quais põe em cena o pacto firmado entre a burguesia e o que
restou da aristocracia para formar a nova República francesa (construída, tal como a infame basílica do
Sacré-Cœur de Montmartre, sobre o rio de sangue da Comuna): naquele contexto, em que as relações do
sujeito com o mundo e com outrem já eram mediadas de forma radical pelo capital, a ponto de ele não
coincidir mais consigo mesmo ou com o tempo presente, só restava ao narrador proustiano reviver a
vida sob o prisma da memória involuntária, o que o obriga a romper decisivamente com o andamento
progressivo do enredo realista do século precedente.
30 A respeito, cf. Raphael F. Alvarenga, “As vestes negras de Hamlet”, Sinal de Menos, # 2 (2009), pp. 84-

105, retomado em R. F. Alvarenga, Desejo de ruptura, São Paulo: Scortecci, 2012, pp. 15-37.
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aproxima e distancia de Bloom; faz com que simpatize com a figura do judeu errante e
rejeitado pela sociedade da qual tenta se libertar e sinta certa repulsa em relação à
obviedade pequeno-burguesa do publicitário. A primeira aproximação, como não cessa
de frisar a crítica, deve-se portanto à posição deslocada que ambos ocupariam no seio
da sociedade dublinense. Acontece que tal posição, como veremos, não é num caso e
noutro de mesma ordem, pelo contrário: uma chave para entender o Ulysses está
precisamente na capacidade de diferenciar e elucidar, em cada caso, os tipos de
deslocamento (existencial, social, ideológico) em jogo na trajetória das personagens
principais, os quais, por sua vez, no nível da forma, têm a ver com os deslocamentos
narrativos, de ponto de vista e estilo. Judeu não de todo praticante (não é circuncisado,
por exemplo), de origem estrangeira (seu pai era húngaro), sentindo na pele e
cotidianamente o peso do preconceito e da intolerância num país predominantemente
católico e num contexto em que o nacionalismo fervoroso e o renascimento cultural
celta ganhavam força31, Bloom não se enturma facilmente, embora interaja polidamente
com todo mundo. Já Stephen, que estudou um tempo fora, e permanece “artificialmente
estranho ‘atrasado’, por assim dizer) em relação às condições sociais dominantes”32,
sente-se pour cause um estrangeiro no próprio país, e luta internamente para se libertar
das malhas mutiladoras das três principais instâncias de poder autoritário sobre as
quais se discorria já no Portrait33 e que são nomeadas logo no início do Ulysses (as duas
primeiras mais ou menos explicitamente, a terceira, apenas insinuada), a saber: a Igreja
católica apostólica romana, o Estado imperial britânico e a causa nacional irlandesa, que
Stephen (assim como Joyce) julgava em parte regressiva (“I am servant of two masters,
Stephen said, an English and an Italian. [...] And a third [...] there is who wants me for
odd jobs.”34). Dirigida a Haines, o odiável (como o indica o próprio nome) interlocutor
inglês – e de fato, para o colonizado, um representante da potência colonizadora que
estuda e se interessa pelos costumes do povo dominado, no caso, a cultura irlandesa

31 Ulysses nesse sentido não deixa de ser uma sátira mordaz, no melhor estilo swiftiano, da pequena
burguesia preconceituosa de Dublin, encarnando do nacionalismo tosco a um ferrenho antissemitismo,
de que dão mostras várias personagens: Haines “ elemachus”), Mr. Deasy “ estor”), Mulligan “Scylla
& Charibdis”), the Citizen “Cyclops”), Skin-the-Goat “Eumaeus”)...
32 Franco Moretti, “ longo adeus”, art. cit., p. 231.
33 Cf. James Joyce, A Portrait of the Artist as a Young Man, ed. cit, p. 238: “When the soul of a man is

born in this country there are nets flung at it to hold it back from flight.”
34 U 1.26.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016 105

nativa, pode ser extremamente irritante –, a frase é carregada de mordacidade,


conquanto seja, ao mesmo tempo, uma constatação autocrítica se lembrarmo-nos que
no livro anterior, ainda adolescente, Stephen havia bradado com sobrançaria que não
serviria a autoridade nenhuma35. O descompasso e o estranhamento presentes não se
dão apenas por representar uma tradição intelectual antiquada (como o próprio autor,
aliás, uma tradição de cunho, digamos, aristotélico-tomista: “Steeled in the school of old
Aquinas”, “Bringing to tavern and to brothel/ The mind of witty Aristotle”36), ou pelo
fato de a sua ser manifestamente uma cultura de oposição, dando vazão a uma postura
geral quase anarquista (anticatólica, antibritânica, antiautoritária, antinacionalista),
embora tais razões obviamente contem bastante. Não sendo identitário como o de
Bloom, ou seja, não remetendo a uma identidade cultural prévia, o desajustamento de
Stephen diz respeito antes à posição do intelectual e artista não conformista, não
apenas no interior de condições capitalistas de produção, mas, além disso, em contexto
de modernização conservadora, periférico, colonizado. Com desejos e projetos
próprios, a ancoragem profunda em si mesmo faz com que o jovem poeta se coloque em
constante situação de atrito com o existente e com a própria posição que ocupa (ou
deveria ocupar) no seio deste. Porque se ambos, Stephen e Bloom, evitam por exemplo
voltar para suas respectivas casas, aí também, no entanto, como em todo o resto, as
razões diferem: Bloom evita a confrontação doméstica com o fato do adultério de Molly,
ao passo que Stephen, através de negações parciais e pequenas e discretas rupturas,
tomou uma rota de fuga, ao que parece sem volta, e cuja significação, como indicado,
tem uma abrangência considerável.
Já se chamou a atenção para o fato de que, na última cena em que figura (no
penúltimo episódio, “Ithaca”), a recusa da hospitalidade de Bloom – que oferecera ao
jovem uma cama para passar a noite – marcaria exemplar e simbolicamente a rejeição
final da vida sob a asa de uma autoridade externa, qualquer que seja (pai biológico ou
simbólico, Deus, Igreja, patrão, rei ou pátria). Mais significativo, entretanto, me parece
o repúdio implícito a tudo o que Bloom, apesar de mais ou menos rejeitado pela
sociedade, e por isso, à primeira vista, alguém com quem talvez fosse possível fazer

35 Cf. James Joyce, A Portrait of the Artist, ed. cit., p. 291.


36 James Joyce, “ he Holy ffice”, em H. Levin (org.), The Portable James Joyce, New York: Viking, 1947,
pp. 659 e 657.
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comunidade, no fundo representa, vale dizer, não uma autoridade paterna suplente
(impossível ao final levar a sério tal interpretação), mas antes a mentalidade pequeno-
burguesa, autocomplacente, conformista, bem ajustada. Stephen, em contrapartida, visa
doravante levar a existência, na medida do possível, em seus próprios termos. O dia,
como já dito antes, é como outro qualquer para praticamente todo mundo, inclusive
para Bloom, sujeito descentrado, por isso mesmo mais flexível e maleável, melhor
adaptado aos novos tempos37, mas certamente não para o defasado Stephen, único a
realmente passar por uma transformação digna do nome, que tem a ver com toda a sua
história e formação, que o levam a cortar pelo caminho vários laços (familiares,
empregatício, de “amizade”) e seguir de forma coerente o destino traçado pelo próprio
Joyce, o caminho do exílio voluntário no velho continente, onde, embora a duras penas,
passando todo tipo de provação e privação, encontrará condições sociais e culturais, não
ideais, mas mais favoráveis (além do distanciamento necessário) para trabalhar em sua
obra. A despeito de todo o devaneio, do desgosto mais ou menos consciente com a vida
morna e insossa que leva, dos sonhos de fuga da prisão da vida burguesa, a única
mudança que sobrevém no cotidiano de Bloom é, em comparação, assaz ridícula,
consistindo numa pequena “vitória” doméstica: antes de se deitar pede a Molly que lhe
traga o café na cama pela manhã, em lugar de ele servir à mulher, como de hábito.
Em claro contraste com a do artista Stephen, a perspectiva do judeu Bloom é ao
mesmo tempo marginal e central; sorte de alegoria da Irlanda da época e da pequena
burguesia de modo geral, a personagem é desde o início marcada pela ambiguidade de
sua posição social, “nem dependente nem independente por completo”38,
caracterizando-se ainda pelo descompasso e o isolamento, bem como por um tipo
peculiar de “inconformismo”, paradoxalmente anuído e conformado. Bloom é, com
efeito, a própria contradição encarnada: pacifista convicto, contra toda forma de
violência (“I resent violence or intolerance in any shape or form.”39), quando colocado
contra a parede se esquiva como pode e não deixa claro se concorda ou não com a pena
capital, preferindo ao invés, após versar sobre as razões e os porquês e os embustes e

37 Como bem notou Franco Moretti, The Way of the World. The Bildungsroman in European Culture
[1987], trad. A. Sbragia, London/New York: Verso, 2000, p. 244.
38 Franco Moretti, “ longo adeus”, art. cit., p. 232.
39 U 16.564.
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aleivosias (“and of course Bloom comes out with the why and the wherefore and all the
codology of the business”40), pregar o lugar-comum cristão de uma vida fundada no
amor universal, o oposto do ódio (“Love, says Bloom. I mean the opposite of hatred.”41);
incomodado com o desabrochar da sexualidade na filha adolescente, Milly, que acaba de
completar quinze anos, sente-se sexualmente atraído por meninas da mesma faixa
etária que ela (“I begin to like them at that age. Green apples.”42); sonhando acordado
com uma existência exótica ociosa, idealizando com deleite uma vida errante e
autodeterminada (“Ever he ould ander, ‘selfcompelled’”43), defende com ardor uma
sociedade do trabalho baseada no princípio da meritocracia, bem como o fato de que,
idealmente, todos, intelectuais e camponeses, sem exceção, deveriam trabalhar duro na
construção de uma grande nação (“All must work, have to, together. [...] both belong to
Ireland, the brain and the brawn. Each equally important.”44). Bloom e a maioria das
demais personagens pertencem à pequena burguesia e exercem profissões liberais (as
classes subalternas não aparecem senão episodicamente: uma velha camponesa, um
operário na prensa do jornal, meretrizes, marujos). Ademais, tampouco são indivíduos à
moda antiga, típicos da era concorrencial do capitalismo liberal, que nunca chegou de
fato a se instaurar na Irlanda, vale dizer, indivíduos decididos e donos do próprio nariz,
trabalhando com afinco para realizar algum empreendimento pessoal ou coletivo de
porte, por assim dizer artífices da própria história – embora isso subsista como resíduo
ideológico, na forma da ilusão ou da pretensão de se estar no controle da própria vida 45.
Apesar de destoar dos demais de sua classe – definida como se sabe antes de tudo pelo
modo como se insere no sistema produtivo e a posição que ocupa nas relações sociais de
propriedade vigentes –, por ser judeu e de origem estrangeira, Bloom partilha não
obstante diversos traços pequeno-burgueses, sobretudo a incongruência ideológica: por
não ter lugar bem definido, ou por ocupar um lugar ambíguo e instável entre as duas

40 U 12.302.
41 U 12.331.
42 U 13.374.

43 U 17.648.

44 U 16.565.

45 Cf. Franco Moretti, “ longo adeus”, art. cit., p. 235: “Par dia do iluminista pensante, loom é capaz de
sair-se com lugares-comuns sobre qualquer assunto: do conceito de nação às relações entre os sexos, do
apelo à generosidade aos programas sociais, ele acredita, por manter-se absolutamente fiel à ortodoxia
liberal, que pode entender e controlar um mundo com o qual perdeu para sempre o contato.”
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classes em luta, a classe média historicamente não costuma apresentar ideias


consistentes, um pensamento coerente e estruturado; ela se divide entre o sonho de uma
ascensão social, de levar uma vida de rei, e o horror de ser identificada com ou
rebaixada ao nível do proletariado; ela é capaz de defender ao mesmo tempo as causas
mais progressistas e as mais regressivas, de sustentar os ideais e valores mais nobres e
elevados conjuntamente aos desígnios e práticas mais desumanos e abjetos.
Embaralhando mais ainda as coisas, no caso do contexto semiperiférico irlandês os
deslocamentos ideológicos são produzidos, alimentados e reforçados por uma forma de
modernização conservadora – que muito embora distinta da nossa, brasileira, não deixa
de guardar, como dito, certas afinidades com a mesma –, ou seja, pela conjunção
incongruente de regimes normativos antagônicos e no mais das vezes incompatíveis,
pelo fato da submissão superficial daquele povo a uma cultura alheia em contexto de
total subordinação política e econômica a uma potência estrangeira. Como destaca um
crítico: “A Irlanda da época era ela mesma uma mistura do novo e do velho, as forças da
modernização florescendo lado a lado a formas culturais frequentemente bastante
tradicionais. O lugar era a um tempo europeu e uma colônia, avançado e
subdesenvolvido.”46 A propósito, vale ainda citar por extenso o juízo passado pelo
próprio Joyce: “Por sete séculos, ela [a Irlanda] jamais foi súdito fiel da Inglaterra. Por
outro lado, tampouco tem sido fiel a si mesma. Entrou nos domínios ingleses sem
realmente integrar-se neles. Abandonou quase totalmente sua língua e aceitou a língua
do conquistador, sem ser capaz de assimilar sua cultura nem adaptar-se à mentalidade
de que essa língua é o veículo. [...] Obrigou seus criadores espirituais a exilar-se,
unicamente para depois se ufanar deles. Serviu fielmente a um patrão apenas, a Igreja
católica romana, a qual, porém, costuma pagar seus fieis a prazo.”47 Por trás de tais
palavras, nota-se a perspectiva internacionalista do artista e intelectual periférico e
exilado (duplamente deslocado), equidistante tanto da subordinação embasbacada à
cultura do colonizador quanto do regressivo discurso romântico de retorno às origens e
rejeição em bloco da civilização moderna (muito embora Joyce tampouco ficasse em
cima do muro quando estava em jogo a luta pela independência irlandesa, a qual

46 Terry Eagleton, The English Novel, ed. cit., p. 292.


47 James Joyce, “ cometa do Home Rule” [1910], trad. D. W. do Amarante, em De santos e sábios.
Escritos estéticos e políticos, São Paulo: Iluminuras, 2012, p. 226.
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costumava defender explicitamente). Trazida pela situação lacerada do artista e do


intelectual em contexto periférico, retrógrado, ou regressivo, tendo de conjugar o tempo
todo exigências incongruentes e igualmente incontornáveis; dinamizada em seguida
pelo exílio, o qual possibilitava ao artista periférico, por assim dizer, deslocar a posição
originalmente deslocada, é tal perspectiva de um duplo deslocamento que permite
apreender a verdadeira dimensão crítica do uso profanador que Joyce faz da língua
inglesa e dos mais diversos estilos literários, tanto os então em voga como os
consagrados pela tradição; ela permite ademais, o que me parece ainda mais
significativo, discernir afinidades eletivas entre escritores em situação semelhante, ou
em todo caso digladiando com problemas análogos, como Ibsen, James, Conrad, Kafka,
Brecht, Lowry, Beckett, Cortázar... (sem falar nos brasileiros, Machado obviamente, mas
também Oswald, Mário, Drummond...) 48. Acresce que a recusa em aceitar a chantagem
da falsa alternativa entre nacionalismo ufanista e mentalidade de basbaque colonizado –
recusa que no Ulysses aparece no nível do assunto (com a personagem de Stephen)
quanto no da forma geral do romance – abre espaço para algo distinto e sem
precedentes, pressagia de certo modo uma ordem nova, pós-burguesa. Tal perspectiva é
reforçada pelo fato de ficar sugerida, além de tudo, uma solidariedade possível com os
de baixo, algo que salvo engano nunca foi devidamente trazido à tona pela crítica:
apesar do individualismo recalcitrante – da visceral e altiva aversão aos movimentos
desatinados da turba, repulsa alentada pela profunda admiração do jovem artista por
figuras como Giordano Bruno e Ibsen –, Joyce pinta Stephen inequivocamente como
um proletário, ou um pobre trabalhador da cultura, que não possui nem as roupas que
usa49, e que ademais é visto pelos colegas intelectuais (jornalistas, professores)
dublinenses, que não escondem certo desdenho mofador, como um escritor communard
(lembremos que o próprio Joyce se definiu durante muito tempo sem rodeios como um
artista socialista); a politização da arte, ou um posicionamento político claro de parte

48 Para um bom artigo nesse sentido, do qual me inspirei bastante, cf. José Antonio Pasta, “ recht e o
rasil: afinidades eletivas”, Pandaemonium Germanicum, # 4 (2000), pp. 19-26.
49 As botas com que palmilha as areias de Sandymount Strand, por exemplo, pertenceram anteriormente a

Buck Mulligan (cf. U 3.54-55: “His gaze brooded on his broadtoed boots, a buc ’s castoff
nebeneinander. He counted the creases of ruc ed leather herein another’s foot had nested arm.”);
note-se ainda que no final do livro precedente, ao arrumar as malas para a viagem de estudos a Paris,
Stephen menciona em seu diário, de forma oximoresca, suas “new secondhand clothes” A Portrait of
the Artist, ed. cit., p. 298).
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do artista, no caso claramente à esquerda do espectro político, seria ao ver do autor


incontornável se quisesse dar à sua obra uma maior abrangência e consistência50. Isso
não significa que tenha submetido a obra a uma causa social ou visão política particular,
não tem nada a ver com a posterior tosqueira jdanovista. Acontece que sem o olhar
político sobre a matéria histórica, o qual incide sobre a forma que o artista dá à sua obra
(ou sobre a construção dos pontos de vista que a enformam), os procedimentos técnicos
empregados e a reapropriação dos estilos existentes são pouca coisa, ou nada. Por outras
palavras, o trabalho artístico de enfrentar a naturalização dos processos objetivos, a
reificação da práxis social, a paralisia histórica etc., suporia a tomada de partido
consciente em prol de um futuro diferente, da possibilidade da produção pelos homens
de um destino seu, a qual despontaria como um dos pontos de fuga da obra. Em suma,
ao tornar-se efetivamente “uma força estética produtiva”51, tal inequívoca tomada de
partido faz com que a obra de Joyce, embora se refira a uma outra época, ainda nos diga
respeito e possa ser relida de forma renovada e produtiva, estando por isso – ao
contrário das aparências e das pseudoevidências acadêmico-midiáticas – muito mais
próxima da de um artista como Brecht do que da de um Robbe-Grillet da vida.
Voltando já não sem tempo ao texto, digamos, resumindo, que Bloom e Stephen,
em menor ou maior grau, têm o pressentimento de que a vida verdadeira se encontra
alhures, mas no caso do primeiro a aspiração a tal vida vem dissociada da reflexão sobre
as condições de vida atuais, bem como da resolução necessária para acarretar uma
mudança efetiva na vida que leva. Moretti tem razão em sublinhar a dissociação entre
possibilidade, de um lado, e ansiedade e culpa, de outro. Ocorre que Stephen não se
encaixa bem no esquema. Sua diferença específica consiste justamente no fato de não
conseguir se desvencilhar da culpa, que por sua vez é dupla: sente-se corroído pelo
remorso de, em fidelidade a si mesmo, não ter atendido à última vontade da mãe no
leito de morte (que se ajoelhasse e rezasse com ela), ao mesmo tempo em que se sente
culpado por trair ao próprio desejo, vale dizer, a seus anseios e projetos mais caros e
pessoais. Em contrapartida, a possibilidade de uma história diferente, de uma vida não

50 Cf. Richard Ellmann, James Joyce [1959], xford: xford University, 1982, p. 197: “He thought [...]
that a political conscience would give his work distinction, as he thought it had given distinction to the
work of bsen and Hauptmann.”
51 Theodor W. Adorno, Ästhetische Theorie [1970], Frankfurt/M.: Suhrkamp, 1984, p. 367, trad. R.

Hullot-Kentor: Aesthetic Theory, London/New York: Continuum, 2004, p. 322.


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alienada, constitutiva das considerações de Stephen, mas conteúdo vago dos devaneios
de Bloom, no caso do publicitário não compromete suficientemente a realidade posta,
não produz culpa nem angústia num nível além do suportável, nada que o force a
repensar com consequência e radicalidade a sua insossa e mutilada existência. Não por
acaso, diga-se de passagem, o nome “Bloom” acabou virando uma espécie de metonímia
para a vida bovina, do sujeito dessubjetivado das sociedades atuais, ditas pós-
industriais, testemunha passiva e indiferente de sua própria despossessão espetacular52;
tornou-se por outras palavras uma metonímia para o drama de uma vida sem drama –
já prefigurado e exposto de diferentes formas nas obras de autores como Ibsen,
Strindberg, Tchékhov, Maeterlinck e Hauptmann, dos quais Joyce era ávido leitor53 –,

52 Cf. Tiqqun, Théorie du Bloom, Paris: La Fabrique, 2000. De fato, desde que Ulysses foi publicado, a
vida já completamente desvitalizada foi reduzida em todos os aspectos à exigência objetiva do
permanente empreendedorismo de si, algo que o neoliberalismo tornaria norma mundial, a ponto de
podermos dizer, sem exagero ou ironia, que ho e “Nous sommes tous des Bloom”, ou em todo caso
constrangidos a sê-lo. O problema, salvo má leitura nossa, da teoria do coletivo em questão (Tiqqun), ou
da posição algo ambivalente de Giorgio Agamben neste ponto cf. “ iqqun de la noche” [2001], em La
communità che viene, Torino: Bollati Boringhieri, 2008, p. 92), é positivar de certo modo, na esteira de
autores pós-estruturalistas, essa “condição de loom”, vale dizer, a vida nua, desprovida de forma ou
subjetividade – o que Adorno, que ao contrário do que muitos creem não fetichizava o estado de
indeterminação nem a não-identidade (a indeterminação, dependendo da situação, tanto pode ser fonte
de esperança como de desespero e angústia), chamava, em contexto preciso, mais apropriadamente de
vida mutilada ou danificada (beschädigte Leben) –, como avatar da comunidade por vir. A questão,
evidentemente, ultrapassa o escopo do presente texto, e merece desenvolvimento à parte. Ainda que
tratando de outros autores, remeteria a Cláudio R. Duarte & Raphael F. Alvarenga, “Entre ruína e
desespero: negação e constituição do su eito em Robert Kurz e Slavo Žižek”, Sinal de Menos, # 9 (2013),
pp. 24-59, em particular pp. 34-38.
53 A influência de tais autores sobre a démarche estética de Joyce é imensa, e surpreende que não tenha

sido mais bem explorada pela crítica. As questões formais com que lidam tais dramaturgos são
realmente muito semelhantes àquelas com que teve de se defrontar o irlandês na composição do
Ulysses. Vejamos por alto algumas delas. No drama analítico do norueguês, em vez do presente, domina
o passado, muito embora a representação deste seja problemática, uma vez que a interioridade das
personagens segue sendo exposta através de sua objetivação (notadamente através do juízo passado
pelas próprias sobre a vida pretérita). No drama de estações do sueco, as relações intersubjetivas são
abolidas ou vistas exclusivamente através da lente subjetiva de um eu central, o sujeito isolado se torna
objeto para si mesmo, presente e passado já não se distinguem. O teatro do russo revela a discrepância
entre a forma tradicional do drama e a forma (épica) que estavam a exigir os novos conteúdos; o diálogo
se esfacela, se torna impossível, literalmente diálogo de surdos, e a vida ativa presente dá vazão a uma
vida de sonho, oscilando entre recordações e aspirações utópicas sem qualquer efetividade. No drama
estático e fatalista do belga é a própria ação que é abolida, primando uma objetividade passiva; diante da
morte, figura um grupo anônimo de homens reduzidos ao mutismo. Por fim, nos dramas sociais do
alemão, as forças anônimas da sociedade aparecem explicitamente em tensão com os destinos
individuais, determinados que são da forma mais cabal por fatores externos, circunstâncias político-
econômicas que transformam os homens em vítimas impotentes, não havendo saída senão na revolta,
na explosão coletiva de indivíduos desesperados, que transcende a esfera intersubjetiva do diálogo, o
qual não resolve mais nada... Todo esse movimento e seus desdobramentos são analisados no estudo
notável de Peter Szondi, Theorie des modernen Dramas [1956], Frankfurt/M.: Suhrkamp, 1966, trad. G.
L.: Teoria del dramma moderno: 1880-1950, Torino: Einaudi, 1979.
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uma vida, vale dizer, inteiramente dominada por forças e processos anônimos, sem
grandes surpresas, conflitos, resoluções ou escolhas decisivas. Um ponto, sem dúvida
importante, por trás desta desdramatização radical da vida, é que o significado desta já
“não é mais buscado no terreno da vida pública, da política e do trabalho; migrou para o
mundo do consumo e da vida privada”54. Mas o horizonte do consumo é o presente
contínuo, o instantâneo, que se pereniza na medida em que passa incessantemente sem
realmente ficar para trás, e que por isso mesmo não deixa marca durável na memória
nem permite projetar o que quer que seja de diferente para o dia de amanhã. Daí a
impressão amarga, partilhada por uma outra personagem de Joyce, de que no fundo não
passamos de criaturas regidas e escarnecidas pela frivolidade55. Desprovida de
propósito, algo por que lutar e trabalhar para além da sobrevivência assalariada e da
perspectiva magra do consumo de “bens” desoladores, a vida cotidiana é vivenciada
como algo em si mesmo vão. A imaginação, neste contexto, não é levada a sério,
redundando seja em obstáculo, se exacerbada – como na canção de Chico Buarque:
“Mas pra que sonhar se dá/ O desespero de esperar demais...” –, seja em mero
suplemento (no mais das vezes indissociável do universo do consumo mercantil) para a
insignificância geral de uma vida alienada: os sonhos, no caso, para falar como Brecht,
não se convertem mais em planos, do mesmo modo que a nostalgia não incita ao
movimento; o devaneio, por seu turno, desde que brando, ajuda a aguentar o tranco sem
enlouquecer. Correndo paralelamente à vida real, e desconectada dos trâmites
mundanos, a promessa de uma vida livre não ameaça suficientemente o estabelecido;
ela só deixaria de ser uma ideia en porte-à-faux, poderíamos dizer na esteira de Roberto
Schwarz, uma ideia suspensa no ar, reduzida com frequência a mero supplément d’âme,
caso fosse reinterpretada e reconstruída criticamente à luz das contradições reais, vale
dizer, se inserida em situações formativas concretas. Se não estou enganado, é o que
mal ou bem procura fazer Joyce com Stephen, cujo percurso, deixando Bloom um pouco
de lado, trataremos agora de acompanhar mais de perto.

***
54 Franco Moretti, “ feitiço da indecisão”, em Signos e estilos da modernidade, ed. cit., p. 287.
55 Cf. James Joyce, “Araby”, em Dubliners [1904-1906/1914], Genova: Cideb, 1995, p. 47: “Gazing up into
the darkness I saw myself as a creature driven and derided by vanity; and my eyes burned with anguish
and anger.”
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“Stately, plump Buck Mulligan came from the stairhead, bearing a bowl of
lather on which a mirror and a razor lay crossed.”56 Imponente, vertical, dizendo a que
veio, eis como a prosa do Ulysses desponta desde o introito. A cena que abre o livro e o
episódio conhecido como “Telemachus” tem lugar no alto da torre Martello, onde se
aloja no momento a personagem de Stephen Dedalus, já conhecida de outras histórias.
Exortado a se juntar ao desavergonhado Buck Mulligan lá em cima, o ex-seminarista,
mal-humorado e sonolento, faz aparição tímida no terraço que dá sobre a região
circunvizinha e as montanhas que despertam no horizonte. O escopo totalizante é
manifesto nesta primeira cena do livro, na visão que paira sobre o mundo lá fora como
num sobrevoo. Antes de retornarem ao interior da torre, Mulligan faz troça do
sobrenome do outro: “The mockery of it, he said gaily. Your absurd name, an ancient
Greek.”57 O nome seria absurdo, não em si mesmo, mas mais por ser indigno daquele
que ora o porta, não passando de escárnio aos olhos do outro.
Daedalus (como Joyce ainda grafava em Stephen Hero) é a transcrição latina do
grego Daídalos (“astucioso”), possivelmente relacionado ao verbo daidállò (“trabalhar
artimanhosamente”, no sentido de “aparar”, “dar acabamento”, “adornar”, “ornar”,
“embelezar”), de que também derivam daídalma (“belo trabalho”, “obra de arte”) e
daídalos (“trabalhado com arte”, “trabalhado em relevo”)58. Célebre artífice da
antiguidade, escultor e inventor de Knossos, o nome Dédalos está ademais associado ao
antigo sonho de uma produção automatizada, condição segundo Aristóteles da
democracia radical e universal59. Na mitologia, Dédalos fora o arquiteto do famoso
labirinto em que o Minotauro era prisioneiro. Após a morte deste por Teseu, auxiliado
por Ariadne, que contou com a ajuda de Dédalos, este foi a seu turno, juntamente com o
filho, Ícaro, aprisionado na torre do labirinto a fim de que seu grande e ameaçador

56 U 1.9.
57 U 1.10.
58 Cf. Françoise Frontisi-Ducroux, Dédale. Mythologie de l’artisan em Grèce ancienne, Paris: Maspéro,

1975, Alberto Pérez-G mez, “ he Myth of Daedalus”, AA Files, # 10 (1985), pp. 49-52, e Sarah P. Morris,
Daidalos and the Origins of Greek Art, Princenton: Princenton University, 1992.
59 Cf. Aristóteles, Política, , 1253 b 32: “Se cada instrumento, com efeito, pudesse, ao receber ou presumir

uma ordem, operar por si mesmo [to auton ergon], como as estátuas de Dédalos, ou os tripés de
Hefaísto, os quais, diz o poeta, ‘chegavam por si s s [automatous] à assembleia dos deuses’ [Ilíada,
XVIII, 376], se as lançadeiras tecessem sozinhas, se o arco tocasse sozinho a cítara, os empreendedores
prescindiriam de operários, e os mestres, de escravos.” Referências às estátuas de Dédalos figuram
igualmente em Platão, no Menon (97 d) e no Eutífron (11 c-e).
[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016 114

conhecimento não se espraiasse. O resto da história é conhecido: construiu para si e


para o filho asas feitas de cera para que fugissem de lá pelos ares. A figura emblemática
de Dédalos no Ulysses surge reduzida à condição de Ícaro – voou perto demais do sol,
perdeu as asas que apenas adquirira e está em queda livre: “Fabulous artificer, the
hawlike man. He flew. Whereto? Newhaven-Dieppe, steerage passenger. Paris and
back. Lapwing. Icarus. Pater, ait. Seabedabbled, fallen, weltering.”60 O impulso heroico
do indivíduo que partia de peito aberto em direção à vida mais autêntica associada ao
exílio61 é como que entrevado e abafado pelo curso do mundo, que o traz de volta, a
contragosto, ao país de origem. Ao invés de revestir novas asas, estas lhe são de chofre
tolhidas; e ele como que é constrangido a reganhar o labirinto: o da cidade de Dublin e o
de seus próprios pensamentos. Sua vida passa a girar em falso. O sonho de levar uma
vida de artista é adiado. Tem que trabalhar. Bem mais do que antes, a ênfase agora
recai nas forças determinantes da vida humana, que são paralisantes, pertencem a uma
objetividade estranhada. Já na sequência inicial, do café da manhã na torre Martello,
como nota Antonio Candido, alimentos e objetos diversos – “lenços enxovalhados,
roupas esfiapadas, água ensaboada de barba e toda a constelação do desalinho” –
aparecem ao lado das personagens carregados de simbolismo: “Entre o cinismo de
Mulligan, a passividade sem fibra de Dedalus, a brutalidade de Haines, surge a velha
camponesa, risonha, tolerante, e o capitoso leite que vende é puro, matinal como um
símbolo de nutrições simbólicas, de energias mais lídimas.”62 O peso e o significado das
coisas anônimas, desnecessário dizer, é considerável e se fará sentir a cada novo
episódio. Como em Hamlet, diversos motivos temáticos recorrentes da trama figuram já
no episódio que abre o livro: dinheiro, trabalho, usurpação, cinismo, culpabilidade,
persistência do passado, catolicismo opressor, dominação cultural estrangeira, ausência
e busca de uma figura espiritual paterna, antissemitismo, relação entre aprisionamento
e libertação das malhas da tradição, leviandade ideológica e ironia, devaneio e
impotência, tensão entre esterilidade e fertilidade da vida cotidiana...

60 U 9.210.
61 Cf. James Joyce, A Portrait of the Artist, ed. cit., p. 299: “Welcome, life! go to encounter […] the
reality of experience and to forge in the smithy of my soul the uncreated conscience of my race.”
62 Antonio Candido, “Estímulos da criação literária”, em Literatura e sociedade. Estudos de teoria e

história literária [1965], Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2008, p. 77.
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Segundo episódio da “Telemachiad”, “Nestor” é um capítulo obviamente


incontornável numa leitura materialista do livro, haja vista que a situação de classe é
estabelecida de forma inequívoca desde o começo, a saber, a do professor pobre que não
tem controle quase nenhum sobre uma turma de garotos abastados, conscientes da alta
mensalidade paga pelos pais e nem aí para o que está sendo ensinado: “In a moment
they will laugh more loudly, aware of my lack of rule and of the fees their papas
pay.”63 Para além do desconcerto e da desmotivação do jovem docente diante de alunos
desinteressados e arredios, atentemos para o assunto abordado por Stephen em sala de
aula – uma das vitórias de Pirro, na Batalha de Ásculo, em 279 a.C. –, o qual reverbera
sub-repticiamente na discussão que trava na sequência com o diretor da escola. No
breve diálogo, entra em cena a disputa de duas concepções inconciliáveis da história,
determinadas pela posição de classe de cada um. De um lado, a do pró-britânico Sr.
Deasy, o chefe da instituição e patrão de Stephen, que enxerga no curso histórico uma
teleologia conduzindo a uma progressiva teofania, e maneja arbitrariamente os fatos no
interior daquilo que vê como um andamento prefixado de modo a justificar, muito
convenientemente, os próprios preconceitos (machismo, antissemitismo) e, de forma
um tanto descarada, legitimar seus privilégios (meritocracia); de outro lado a visão da
história (social e individual) como movimento de atualização de possibilidades, por isso
mesmo deixando pelo caminho inúmeros potenciais irrealizados (“But can those have
been possible seeing that they never were?”64), e ao mesmo tempo como grande
catástrofe, um mau sonho do qual é preciso acordar (“History [...] is a nightmare from
which I am trying to awake.”65). O pesadelo, neste e noutros cenários, parece ter cunho
pessoal: trata-se do fato penoso de ter tido de voltar a contragosto à terra natal. Ao
mesmo tempo, o tema da vitória pírrica, conhecida pelo custo humano demasiadamente
elevado, a ponto de quase não poder ser considerada uma verdadeira vitória, não
remeteria nesse contexto ao tema do progresso histórico e suas incontáveis vítimas?
Joyce vai jogar, através do livro, com essa ambiguidade: o pesadelo da história pessoal é
de certo modo igualmente o das histórias irlandesa e humana como um todo.

63 U 2.30.
64 U 2.31.
65 U 2.40.
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Ainda durante a aula, Stephen pega o mote da piadinha sem graça de um aluno,
para quem o nome Pirro lembraria a palavra “píer”, a qual faz pensar imediatamente no
píer de Kingstown (um subúrbio ao sul de Dublin, próximo de Sandycove, onde se situa
a torre Martello do primeiro episódio), a seu ver uma ponte frustrada (“Kingstown pier,
Stephen said. Yes, a disapointed bridge.”66), provavelmente porque não leva a lugar
algum (o porto tem forma de U, com uma brecha para a entrada e saída de navios).
Nomeado em homenagem ao rei George, o píer de Kingstown torna-se alegoria de toda a
Irlanda dependente. Como numa sessão de psicanálise, uma ideia leva espontaneamente
a outra: a ponte descontinuada, ou interrompida, é a imagem forte encontrada para
possibilidades não concretizadas tanto a nível da história social irlandesa como do
percurso individual do artista, mas que não deixam de assombrar o presente como
espectros da vida não realizada, ou da formação inacabada, abortada 67. Eis, segundo
Agamben, a fonte da inconsolável tristeza do letrado: “nada é mais amargo que uma
permanência prolongada na esfera da potência.”68 Acontece que a estagnação, o
estancamento na esfera (ou melhor, no momento) da potência impotente, da pura
possibilidade, que não devém ato, da realização perpetuamente adiada, deve ser situado,
e não tomado em abstrato. A frustração e o desconsolo, no caso, têm a ver sobretudo
com o desperdício e o subuso das forças produtivas individuais e sociais em contexto
predominantemente mercantil. Em “Nestor”, como bem notou Moretti, vem à tona o
fato de o pensamento crítico e a cultura laboriosamente acumulada terem se tornado,
além de inúteis em termos capitalistas, empecilhos ao sucesso mundano. Na escola,
“Stephen é forçado a viver intelectualmente em dois planos: no particular, de suas
próprias reflexões, e no socialmente reconhecido do ensino. Mas entre essas duas áreas
não há mais nenhuma relação e, assim, a riqueza intelectual de Stephen atrapalha o seu
desempenho regular no emprego.”69 Por outras palavras, que o problema da liberdade
interior seja indissociável do da liberdade social, o que nos permite entrevê-lo aqui é o

66 U 2.31.
67 A imagem do nascimento interrompido de algo novo, ou da interrupção de uma vida em formação, não
se pode deixar de notar, é reincidente através do romance. o epis dio seguinte, “Proteus”, por
exemplo, quando caminha na praia, Stephen avista o que imagina serem duas parteiras, uma das quais
carrega uma bolsa, que para o jovem conteria um feto de um parto malsucedido.
68 Giorgio Agamben, Ideia da prosa [1985], trad. J. Barreto, Belo Horizonte: Autêntica, 2013, p. 54.

69 Franco Moretti, “ longo adeus”, art. cit., p. 236.


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ponto de vista do trabalhador cuja energia produtiva é em grande medida sugada pelo
trabalho morto, perspectiva que ademais, como veremos, não é unívoca.
A este respeito, não é difícil prever a esta altura uma objeção, de parte da ala pós-
moderna, digamos, para a qual dar destaque à perspectiva da produção num livro como
Ulysses não teria muito cabimento, haja vista que quase nenhuma personagem do
romance parece trabalhar pra valer. Decerto, Stephen dá uma aula pela manhã e passa o
resto do tempo vagando; Bloom anda de um lugar a outro na tentativa de ter publicado
um anúncio seu, mas não tem patrão, horário ou local de trabalho fixos; cantora de
ópera, Molly passa o dia na cama (parte dele com Blazes Boylan, o amante); os
estudantes de medicina, amigos boêmios de Stephen, também parecem dispor de
bastante tempo livre... No entanto, se o operariado industrial, o trabalho assalariado
regulamentado e a jornada de trabalho elástica propriamente dita estão ausentes do
livro, isso não significa que o tempo “livre” das personagens de classe média baixa que
figuram ali seja efetivamente livre, vale dizer, autodeterminado, nem que a necessidade
de ganhar dinheiro e de vender a força de trabalho não seja sempre presente, que não
determine fundamentalmente o cotidiano, os modos de agir, sentir, desejar e pensar da
maioria das personagens. Numa palavra, a inatividade não é em nada livre; antes ao
contrário, é determinada pela abstração real da atividade produtiva alienada. O próprio
vazio inscrito no coração do livro, e que contrasta de modo gritante com a plenitude
possível sugerida pela riqueza da prosa, sugere algo da desapropriação da relação
subjetiva qualitativa com a esfera do objeto devido à forma alienada do trabalho. Vale
aqui citar um significativo trecho de Adorno a respeito: “O vazio torna patente uma
incongruência entre estado e potencial, entre o tédio do qual os seres humanos estão
sempre à mercê e a possível, mas malsucedida, instauração de uma vida na qual o tédio
desapareceria. Sob os aspectos dessa base de massa também se esconde o sentimento de
que a mudança real se acha interrompida. Eis o que significa o vazio: menos trabalho
com uma contínua falta de liberdade; aqui, sofre-se à medida do possível reprimido. [...]
Na produção industrial de massa, a forma do trabalho é virtualmente aquela da
repetição do sempre igual [...] Mas os modos de comportamento que se formaram na
esfera da produção, na linha de montagem, ampliam-se potencialmente sobre a
sociedade inteira [...] até mesmo sobre setores nos quais não se trabalha, nem de longe,
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imediatamente segundo tais esquemas.”70 Diante do tempo esvaziado pela monotonia


repetitiva da produção submetida à finalidade autotélica da acumulação ilimitada de
capital – a qual, caberia não esquecer, tem, pelo menos na Europa, um avesso prático,
um lastro material, toda uma história de resistência, luta, dominação e exploração de
classe –, a função da cultura industrializada redunda na criação e manutenção da ilusão
de que algo realmente tem lugar, varia e muda sob o sol negro das sociedades do
capitalismo avançado. Em razão de sua formação, de sua posição social e do tipo de
trabalho que exerce, Stephen não entretém tal ilusão, vê mais claramente que outras
personagens a situação como ela é, o círculo infernal do sempre igual (“The same room
and hour, the same wisdom: and I the same.”71), o qual associa não sem razão à
paralisia (como se sabe, a palavra-chave de Dubliners, e que também figura em Stephen
Hero), à estagnação do movimento da vida e das ideias no contexto irlandês atrasado, e
não obstante inserido na ordem capitalista internacional. A chave da consciência crítica,
no caso, está tanto na experiência do desenvolvimento social e histórico truncado
(experiência aguçada, no caso de Stephen/Joyce, pelo distanciamento proporcionado
pela temporada passada no estrangeiro), quanto na vivência concreta das forças
produtivas individuais como cativas de um processo global estranhado, a qual dá lugar à
frustração, ela mesma, portanto, ligada à paralisia das forças históricas e à subtração
radical da “dimensão qualitativa do valor de uso: riqueza, tempo, corpo, vida, a própria
consciência e a linguagem crítica do processo”72. Embora culturalmente deslocado,
Bloom manifestamente não vivencia da mesma forma a abstração do trabalho, muito
pelo contrário: comporta-se ao que parece espontaneamente como se estivesse inserido
a todo momento numa situação de troca mercantil, mesmo quando isso não é o caso;
concebe positivamente o papel social que exerce, assume de bom grado a alienação
como se fosse expressão de sua própria interioridade, imaginando-se além de tudo um
criador...
Dando prosseguimento à leitura, o terceiro episódio, “Proteus”, que conclui a
primeira parte do livro, dedicada à personagem de Dedalus, é, em aparência, uma

70 Theodor W. Adorno, Introdução à sociologia da música. Doze preleções teóricas [1961-1962/1968],


trad. F. R. de Moraes Barros, São Paulo: Unesp, 2011, pp. 127 e 129.
71 U 2.36.

72 Cláudio R. Duarte, “A potência do abstrato: resenha com questões para o livro de Moishe Postone”,

Sinal de Menos, # 11, vol. 2 (2015), p. 119.


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espécie de minilivro das mutações. Enquanto perambula ociosamente por Sandmount


Strand, a praia dublinense onde mais tarde no dia (em “Nausicaa”) a saia levantada da
jovem Gerty MacDowell levará Bloom ao delírio, Stephen dá livre curso a meditações
aparentemente despretensiosas sobre o espaço e o tempo, hesita se visita ou não uma tia
que mora nas redondezas, recorda não sem um bocado de irrisão a temporada de
estudos passada em Paris, escreve versos soltos ao sabor das ondas, excita-se com uma
passante, urina (ou masturba-se?) atrás das pedras, tira meleca... A despeito do tom
indiferente e jocoso, e da aparente (e por momentos real) falta de profundidade, é o seu
grande solilóquio hamletiano, em que está em jogo nada menos do que continuar a ser
ou não ser mais aquele que fora até então. Como não deixou de notar Moretti:
“diversamente do de Bloom e, mais ainda, do de Molly, o fluxo de consciência de
Stephen ainda é o reflexo de um conflito entre a tentativa de dominar o mundo
racionalmente e a substância muda ou equívoca do mundo.”73 Só que este último, no
caso, não é o mundo em geral da filosofia; a separação, a perda de contato com a
realidade objetiva, o que os alemães – positivamente ou em forma de lamento –
chamam de Weltlosigkeit, que, diga-se de passagem representa uma verdadeira ameaça
de regressão da consciência, é aqui um fenômeno determinado pela impossibilidade de
se objetivar a própria vida em relações sociais minimamente significativas, tendo a ver
antes de tudo com a petrificação dos processos objetivos, que é o que aliás explica a
incapacidade subjetiva – que não é simplesmente incapacidade pessoal, de um sujeito
particular – de suportar a mera passagem de um tempo ele mesmo enrijecido e
alienado. Porquanto não dê para levar muito a sério as divagações metafísicas de
Stephen, em razão da celeridade com que passa de um tópico a outro, o capítulo entre
outras coisas exprime à perfeição a perda (celebrada como ganho na pós-modernidade)
do próprio espaço de representação, do qual o sujeito não é mais senhor: “Ineluctable
modality of the visible: at least that if no more, thought through my eyes. Signatures of
all things I am here to read [...].”74 Posso confiar naquilo que vejo, nos meus próprios
sentidos? Não há aqui, de início, em face do diverso da experiência, uma tentativa de
distanciamento consciente, próxima do gesto cartesiano, na busca de algo sólido em que
se apoiar? Tentativa algo frustrada, haja vista que o tempo do mundo, representado
73 Franco Moretti, “ longo adeus”, art. cit., p. 232.
74 U 3.42.
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literariamente com o ritmo agitado e oscilante do mar, marca a passagem incessante de


um pensamento a outro, sem que nenhuma certeza desponte no horizonte da cogitação
geral. Apesar da leviandade das considerações, a reflexão oscila entre um idealismo
inspirado entre outros em Jakob Boehme (De signatura rerum) e em Berkeley (“the
good bishop of Cloyne”) e um materialismo baseado no velho Aristóteles, do qual no fim
das contas, e meio que a contragosto, Stephen se sente mais próximo e cuja bandeira
empunhará pouco depois no episódio da Biblioteca. Não impede que tudo demude
rápida e inextricavelmente, o que torna a leitura da realidade empírica pelo indivíduo
ensimesmado uma tarefa árdua, senão impossível; e as famosas epifanias, a
possibilidade de vivenciar profundamente alguma situação, de se atingir de relance o
âmago das coisas, ou pelo menos obter aquele “vislumbre do sentido” que segundo o
jovem Lukács seria “a única coisa digna do investimento de toda uma vida”, a única
coisa pela qual valeria a pena lutar75, não têm lugar. Ao modo do que ocorre com
personagens das peças de Ibsen – por exemplo, o duque Skule Bårdsson, de Os
pretendentes (1863) –, “o mundo à sua volta segue por caminhos próprios, indiferente a
perguntas e respostas”76. Apesar da insistência do poeta em prestar ouvidos, o mundo
emudeceu, as coisas já não falam; a vida verdadeira parece por isso mesmo impossível
diante da vida real...
Em Joyce, como noutros grandes autores modernos, existem múltiplas camadas
de leitura, e as referências mais evidentes, por si sós, não são realmente significativas
(como já salientado, a maioria dos leitores e críticos não costuma ir muito além da
leitura homérica, da interpretação psicanalítica de salão, ou do simbolismo superficial,
insosso e ultramanjado de cores, elementos naturais, órgãos do corpo etc.); os diferentes
níveis de leitura, escavados linha a linha, não excluem uns aos outros, antes ao
contrário, muitas vezes se complementam, constituindo verdadeiras constelações
semânticas. A título de exemplo, ainda em “Proteus”, chamaria a atenção para uma
referência velada a um pensador que muito inspirou o jovem Joyce, a qual, até onde sei,

75 Georg Lukács, Die Theorie des Romans. Ein geschichtsphilosophischer Versuch über die Formen der
großen Epik [1914/1916], Darmstadt/Neuwied: Luchterhand, 1984, p. 70, trad. J. M. de Macedo: A
teoria do romance. Um ensaio histórico-filosófico sobre as formas da grande épica, São Paulo: Duas
Cidades/Ed. 34, 2000, p. 82.
76 Georg Lukács, “Metafísica da tragédia: Paul Ernst” [1910], em A alma e as formas, trad. R. Patriota,

Belo Horizonte: Autêntica, 2015, p. 220.


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na vasta literatura existente sobre Ulysses, nenhum crítico até o momento parece ter
percebido. Quando recorda a permanência em Paris, Stephen evoca o fato de carregar
sempre consigo a passagem do bonde, um álibi em caso de ser confundido com algum
criminoso, e lhe vem em mente uma data precisa daquele mesmo ano. Vejamos o
trecho: “Yes, used to carry punched tickets to prove an alibi if they arrested you for
murder somewhere. Justice. On the night of the seventeenth of February 1904 the
prisoner was seen by two witnesses. Other fellow did it: other me. Hat, tie, overcoat,
nose. Lui, c’est moi.”77 Os comentários mais consagrados costumam evocar um fait
divers ocorrido naquele mesmo dia, ao qual o texto parece remeter: o assassinato de
uma mulher pelo marido, reportado pelo Irish Times em 19/02/1904, crime que teve
lugar numa certa Stephen Street, em Dublin. Por outro lado, parece não haver consenso
a respeito da pessoa a que se refere a frase “Lui, c’est moi” (seria um détournement do
dito de Luís XIV: “L’état, c’est moi”?): alguns críticos dizem se tratar de Patrice Egan,
um conhecido seu, de quem fala pouco antes, socialista exilado, que passa seus dias
tentando a sorte no jogo; outros dizem que lui seria antes o homem comum e anônimo
inculpado injustamente por um crime que não cometeu, quiçá ainda o próprio
criminoso. A chave para entender o trecho, entretanto, está na data (que curiosamente
ninguém se deu o trabalho de examinar) de 17 de fevereiro, dia em que, em 1904, caiu a
Quarta-feira de Cinzas. Esta como se sabe marca o fim do Carnaval e o início da
Quaresma, tradicionalmente um período de reflexão, penitência, jejum e mortificação
que antecede a festividade da Ressurreição; as cinzas, no caso do feriado cristão,
simbolizam a efemeridade da vida terrestre. Sob o prisma religioso, é provável que
Stephen estivesse se referindo, com amargor irônico, à experiência pessoal, ao fim
prematuro do período de exílio boêmio parisiense (“You seem to have enjoyed
yourself.”78), ao início abrupto e imprevisto da “idade adulta”, em todo caso de um
tempo morto (assim como Joyce, Stephen regressara à Irlanda ao saber que sua mãe,
doente, estava para morrer), um tempo de remordimentos, mas que parece comportar
igualmente a gestação, lenta e dolorosa, de uma vita nuova.
Em termos mais imediatamente políticos, pode-se conjecturar que Joyce tivesse
em mente a Revolta da Páscoa, de 1916, que foi um dos mais significativos intentos, por
77 U 3.47.
78 U 3.47.
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parte de militantes republicanos, de se obter a independência da Irlanda em relação ao


Reino Unido. Isso porém ainda é vago, e não há nada no texto que justifique realmente
dizê-lo. Descendo então uma camada a mais, voltemos à data em questão, que
desnorteou e ainda intriga não poucos críticos. Será que ninguém notou que 17 de
fevereiro foi o dia em que, em 1600, ninguém menos que Giordano Bruno fora
queimado vivo pela Inquisição em Roma? É conhecido o entusiasmo do jovem Joyce
pela figura rebelde do filósofo italiano 79, o que torna mais incrível a cegueira da crítica
especializada para a referência no texto. Basta ler qualquer resumo biográfico para se
dar conta de que, quando jovem, em 1576, Bruno fora injustamente acusado de um
assassinato e teve que fugir às pressas de Roma. Acresce que em 1584, então no exílio,
Bruno escreveu um diálogo intitulado A Ceia da Quarta-feira de Cinzas, em que
defende explicitamente, em termos filosóficos, as ideias de Copérnico. A cosmovisão do
Nolano – como Joyce gostava de chamá-lo – parece de resto enformar em grande
medida o movimento geral de “Proteus”, se não, em termos de forma narrativa, a
economia geral do Ulysses: “A visão de mundo contra a qual Bruno se insurgiu foi a de
um universo de coisas fixas criadas por um Deus transcendente.”80 Doravante infinito, o
universo “já não apresenta lugares preferenciais, pontos superiores ou inferiores”, tudo
cabe, tudo está em relação, e “qualquer lugar em que nós nos encontremos pode ser
considerado ponto central”81. Não impede que este ponto central, embora múltiplo e
relativizado, seja sempre mediado pela perspectiva subjetiva (“at least that if no more,
thought through my eyes”), pelo sujeito que deve fazer sentido de uma realidade em si
mesma desprovida de sentido, juntar como pode os pedaços da totalidade extensiva da
vida, a qual já não se dá mais de modo imanente e imediato. Daí a “volúpia da síntese”,
nos termos de Novalis, o anseio romântico de alcançar, através do jogo das contradições,
da coincidência dos opostos, de infindas correspondências, do labirinto sinestésico etc.,
79 E não é difícil entender o porquê da identificação. Veja-se por exemplo Giordano runo, “Epístola
preambular” a Sobre o infinito, o universo e os mundos [1584], trad. N. Deola, em Os Pensadores:
Bruno, Galileu, Campanella, São Paulo: Abril Cultural, 1978, p. 3: “[...] tudo me desagrada, detesto o
vulgo, a multidão não me contenta. Somente uma coisa me fascina: aquela em virtude da qual me sinto
livre na sujeição, contente no sofrimento, rico na indigência e vivo na morte. Aquela em virtude da qual
não invejo os que são servos na liberdade, sofrem no prazer, são pobres nas riquezas e mortos em vida,
porque trazem no próprio corpo os grilhões que os prendem, no espírito o inferno que os oprime, na
alma o erro que os debilita, na mente o letargo que os mata.”
80 José Américo Motta Pessanha, “ runo: vida e obra”, em Os Pensadores, ob. cit., p. X.

81 Anatol Rosenfeld, “Shakespeare e o pensamento renascentista”, em Texto/contexto I [1969], São Paulo:

Perspectiva, 1996, p. 128.


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algo como uma “segunda inocência”. Daí ainda o movimento progressivo da ironia, que
não se deixa prender a nada, que tudo arrasta e desfaz na busca de uma nova pátria,
uma nova idade de ouro. Como explica Anatol Rosenfeld: “Ela [a ironia romântica] visa
negar os valores do senso comum, o pensamento do filisteu, fixo, petrificado, as
categorias coaguladas da realidade vulgar para, através do rompimento com o século,
exaltar o infinito. Mas quando tudo é visto sub specie ironiae, o oscilar permanente não
é superado por um verdadeiro compromisso com o infinito.” Por outras palavras, o
olhar irônico, que paira soberbo e indiferente acima de tudo, acaba por não deixar pedra
sobre pedra, transforma tudo, todo valor, todo interesse, o próprio anseio por uma vida
livre e autêntica, em mera aparência, impedindo um real comprometimento com o
mundo, descartando de antemão todo empenho na sua transformação efetiva. Se tal
iconoclastia contém uma dimensão emancipadora, em sua leviandade também abre um
abismo em que é fácil se perder, o que explica a presença maciça, na literatura do século
XIX, de temas como “o esfacelamento, a fragmentação, o homem-espelho, desdobrado
em reflexos, o homem-máscara, o duplo, o sósia, o homem que vendeu a alma” etc.
Levada ao extremo, a ironia pode conduzir ao misticismo, ao niilismo, ao cinismo; ela
pode levar de volta ao mito, cuja reposição, em contexto esclarecido carrega
necessariamente conotações regressivas e protofascistas. O aniquilamento
fantasmagórico da realidade empírica reflete por certo, nos tempos modernos, a
fragmentação do mundo real, os dilaceramentos da civilização burguesa, mas ao mesmo
tempo pode trazer à tona o demoníaco, conduzindo muitas vezes o sujeito aos abismos
da angústia e da loucura. Por outro lado, como observam os melhores comentadores de
Machado (Roberto Schwarz, José Pasta), desprovida de entusiasmo a ironia se torna
mera afetação, simulação de autocrítica, autovangloriação, em vez de demanda de
absoluto, o sujeito se compraz com uma supremacia qualquer... O ponto importante a
reter aqui é o seguinte: não havendo redenção individual fora da sociedade, descartada
igualmente a possibilidade de uma conciliação puramente simbólica, a “saída”, no caso
do artista moderno, consistiria em dar forma (de diferentes maneiras) ao esfacelamento,
transformar em obra a atitude irônica, a fim de objetivá-la, de tomar minimamente
distância dela e do próprio eu irônico. O resultado será a obra de arte como experimento
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aberto, que “incluirá na sua estrutura o próprio processo de sua criação”82.


Brechtianamente, poderíamos dizer, em “Aeolus” Joyce leva o leitor para os
bastidores da produção literária, mais precisamente para a redação de um jornal, onde
um grupo de jornalistas e intelectuais de toda estirpe (“the pressgang”83) conversa
casualmente sobre os mais variados assuntos. Se no nível do que é discutido o capítulo
não parece ter a menor significância, não se pode deixar de notar que, ao retomá-la na
dinâmica da própria forma em que a situação vem ali apresentada, Joyce passa juízo
crítico sobre a vacuidade do meio jornalístico (e intelectual de modo geral). Umberto
Eco oferece-nos um bom resumo do episódio em questão: “[...] tais conversas estão
unificadas em várias tabelas pequenas, cada uma com um título, segundo o uso
jornalístico e numa progressão estilística tal que, inicialmente, nos oferece as manchetes
vitorianas, para chegar, aos poucos, ao título sensacionalista, sintaticamente incorreto,
linguisticamente reduzido à pura gíria do escandaloso jornal popular; e faz com que, nas
mais diversas conversas dos que lá estão, se apresentem quase todas as figuras retóricas
em uso.”84 Numa das conversas, aliás, como indicado por alto previamente, um
renomado professor sugere, em tom aparentemente jocoso e despretensioso, que com
sua gravata frouxa Stephen semelha um communard parisiense85. Tal asserção ganha
ressonância se prestarmos atenção ao tema de fundo, a um dos Leitmotive do capítulo,
que diz respeito, aqui, mais do que propriamente a experiências interrompidas, às
inversões do progresso em retrocesso. Nada do que se intenta conquistar se concretiza.
É o capítulo das causas perdidas, e não à toa é à custosa vitória de Pirro que novamente
se alude: “Pyrrhus, misled by an oracle, made the last attempt to retrieve the fortunes
of Greece. Loyal to a lost cause.”86
Para além das diferenças óbvias, o que fica manifesto neste capítulo é que Bloom
e Stephen partilham uma mesma condição: publicitário e escritor, ambos exercem, para
empregar um termo cunhado por Paul Valéry, “profissões delirantes”, vale dizer, ofícios

82 Anatol Rosenfeld, “Aspectos do romantismo alemão”, em Texto/contexto I, ob. cit., pp. 158-161, 164 e
168.
83 U 7.136.

84 Umberto Eco, Obra aberta. Forma e indeterminação nas poéticas contemporâneas [1962], trad. G.

Cutolo, São Paulo: Perspectiva, 2005, p. 264.


85 Cf. U 7.135-6. É significativo o fato de Joyce possuir, em sua biblioteca de Trieste, títulos como A

Comuna de Paris, de Kropotkin (em tradução inglesa), e La Débâcle, de Zola.


86 U 7.135.
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que exigem passar em permanência uma imagem de autoconfiança ao mesmo tempo em


que são tributários da opinião alheia muito mais do que dependem de competências
certificáveis. Como esclarece um crítico: “Por volta de 1830, se você fosse um
determinado tipo de autor, poderia tornar-se um profissional bem-sucedido, em um
nível que pouquíssimos escritores atingiram anteriormente. [...] apareceu nesse nível a
ideologia profissional do artista independente, definindo a liberdade nesse sentido
muito especial, que ele deveria ser livre para competir no mercado. [...] Em outras áreas
da escrita, no entanto, especialmente na poesia, a situação econômica dos escritores
caminhava em uma direção bem diferente. Certos tipos de escrita foram marginalizados
[...] escritos como a poesia eram, no melhor dos casos, um produto marginal e, no pior,
bastante indesejáveis. Assim, em paralelo ao novo profissional literário bem-sucedido,
que a reivindicava para entrar no mercado (que lhe diria o que a sociedade desejava),
havia o escritor indesejável, logo mistificado como gênio famélico.”87 Em “Proteus”, a
condição proletária de Stephen já havia sido exposta sem equívocos: do mesmo modo
que seus trajes e calçados não lhe pertencem, o capítulo aventa a noção de que
possivelmente nem seus pensamentos sejam realmente seus. Ao mesmo tempo note-se
o seguinte deslocamento: os tipos da redação deixam claro que se Stephen quiser
alcançar alguma coisa precisa deixar de lado qualquer pudor ou convicção, literalmente
vender a alma e escrever algo sensacional (“Give them something with a bite in it. Put
us all into it, damn its soul.”88), ou seja, é preciso lembrá-lo daquilo que se espera que se
faça, ao passo que nem passa pela cabeça de Bloom produzir algo que não seja apelativo
(“Something to catch the eye.”)89 Por outras palavras, se o sonho que Stephen nutria
quando jovem, de uma vida livre e nobre, vida de artista 90, naufraga diante do
pragmatismo reles dos colegas de profissão, Bloom vive o naufrágio – o fato de as
condições objetivas de vida serem expropriadas pelo capital – de forma perfeitamente
natural e positiva. A incorporação cabal do espírito empreendedor não permite que se
veja a si mesmo como trabalhador espoliado. Aqui a astúcia de Joyce: revelar o
87 Raymond Williams, “ escritor: enga amento e alinhamento” [1980], em Recursos da esperança, trad.
N. Fonseca e J. A. Peschanski, São Paulo: Unesp, 2015, p. 123.
88 U 7.136.

89 U 5.88-89.

90 Cf. James Joyce, Stephen Hero [1903-1907/1944], Norfolk: New Directions, 1963, p. 184: “ will live a

free and noble life. […] My art will proceed from a free and noble source. It is too troublesome for me to
adopt the manners of these slaves. refuse to be terrorized into stupidity.”
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maquinário (“The machines clanked in threefour time. Thump, thump, thump.” 91) e as
condições prosaicas de trabalho nos subterrâneos da produção jornalística (“the
foreman’s spare body [...] that or aday or er”92), a dimensão bem braçal do
trabalho dito imaterial, por si só ainda não é nada. Ademais, Bloom sabe muito bem que
o que está por trás do obsoletismo programado das notícias oficiais do dia, o que
realmente interessa, são os anúncios no intervalo entre aquilo que é noticiado: “It’s the
ads and side features sell a weekly not the stale news in the official gazette.”93 Ou por
outra, noticiário e reclame são os dois lados da mesma moeda, vale dizer, são a
publicidade do curso reificado do mundo, cujo cimento é fornecido pelo lixo cultural
mercantilizado. Novamente em claro contraste com a maneira com que Bloom vê as
coisas (e ele as enxerga, eis o ponto, como de fato são), Stephen vivencia a expropriação
de suas capacidades criativas, a prostituição do saber e da arte e a desvitalização da
linguagem, a sua redução à comunicabilidade sensacionalista, como uma violência sem
tamanho. A crítica aqui, assim como em “Nestor”, se constitui a partir de dentro,
portanto, mais precisamente a partir do trabalho alienado vivenciado como experiência
negativa.
Joyce teve, é inegável, bastante tino em dedicar todo um episódio à indústria da
notícia vendável, que pela própria forma exclui de antemão toda e qualquer acumulação
histórica, sabotando por conseguinte a possibilidade mesma de qualquer experiência
formativa digna do nome. Acresce que a metáfora da cloaca, trazida à baila numa das
conversas do capítulo, exprime à perfeição o que se tornaram a língua e a cultura na
civilização da mercadoria94. É isso, juntamente com a experiência negativa da alienação
de suas forças produtivas, que possibilita a Stephen, que ali se vê constrangido a cortejar
os influentes, enxergar que para aquela turma bem-ajustada não há qualquer esperança
de salvação: “Nightmare from which you will never awake.”95 Ou seja, o despertar do
pesadelo em que se debatem os homens na pré-história da humanidade supõe tomar

91 U 7.121.
92 U 7.120.
93 U 7.120.

94 a mesma veia, Lacan dirá mais tarde que a civilização capitalista é um esgoto “La civilisation, c’est
l’égout”) e Adorno que a cultura – a cultura burguesa, que não pôde impedir que algo como Auschwitz
tivesse lugar – é puro lixo “Kultur ist Müll”).
95 U 7.138.
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minimamente consciência do estrago enquanto estrago, bem como, fundado na


experiência negativa e vinculado às possibilidades objetivas de uma existência não
alienada, o desejo de uma vida livre. No que concerne à produção literária propriamente
dita, a tomada de consciência de alinhamentos inconscientes prévios, das relações
sociais e dos padrões literários que, independentemente da vontade do escritor,
enformam a sua práxis, seria como que prelúdio à verdadeira libertação, a possibilidade
de encontrar uma “voz que, ao falar por si mesma, fala necessariamente para mais do
que para si mesma”96. “Je est un autre”, exprimiu famosamente Arthur Rimbaud numa
carta datada de 15 de maio de 1871, apenas alguns dias antes da “semana sangrenta” que
poria fim à Comuna de Paris, a cuja experiência o jovem autor de Uma temporada no
inferno conscientemente se alinhou97 (inclusive na carta em questão, que Joyce talvez
não desconhecesse, e obviamente no poema “L’orgie parisienne ou Paris se repeuple”,
que o irlandês muito provavelmente conhecia). Descompasso e incompreensão, poesia e
exílio, revolta pessoal e revolução, desclassificação e alinhamento com as possibilidades
humanas mais altas – eis alguns dos significantes maiores que podemos associar a
figuras como Hamlet, Bruno, Ibsen e Rimbaud, que são como “ideais do eu” para o
jovem Stephen; são ademais tais significantes que permitem lançar uma luz sobre o
caminho de desvinculação percorrido pela personagem para escapar do marasmo
mutilador representado pelo labirinto da vida cotidiana dublinense.
É em “Scylla and Charibdis”, que tem lugar na Biblioteca Nacional de Dublin, que
a Ideologiekritik joyciana aparece talvez mais agudamente. “ ha i Hamlets don’t
hesitate to shoot. The bloodboltered shambles in act five is a forecast of the
concentration camp sung by Mr Swinburne.”98 Colocada no início de uma discussão
literária aparentemente despretensiosa, a fala de Stephen cai feito uma bomba em meio
ao ambiente plácido dos estudos e dos livros. “Hamlets de farda não hesitam em atirar”
– o juízo infinito (no sentido hegeliano do termo), conjugando a imagem máxima do
intelectual e artista renascentista, do sujeito moderno, fundado na dúvida e no uso da
razão, ao recruta levando a cabo, sem qualquer hesitação, massacres coloniais na franja

96 Raymond Williams, “ escritor: enga amento e alinhamento”, art. cit., p. 130.


97 Cf. Kristin Ross, The Emergence of Social Space. Rimbaud and the Paris Commune, London/New

York: Verso, 2007.


98 U 9.187.
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do Império Britânico, condensa de forma explosiva a dialética da Ilustração; o banho de


sangue do final da maior peça de Shakespeare, ícone maior da cultura inglesa,
prefiguraria as guerras e os campos de concentração nas colônias da Inglaterra na
África99. Stephen faz uso crítico e profanador do deslocamento ideológico (estratégia
próxima do que mais tarde letristas e situacionistas denominariam détournement): a
teoria de Hamlet, embora inverossímil, em princípio não é simples despropósito;
naquele contexto, tem efeito desmistificador. Stephen caminha no fio da navalha: por
um lado, tem de mostrar seu brilhantismo, na esperança de ser convidado a integrar o
círculo cerrado dos literatos influentes da cidade (o que explica o seu crescente
desconforto com a situação, bastante tangível: “He laughed to free his mind from his
mind’s bondage.”100); por outro lado, não quer deixar barato a venda de si, razão pela
qual trata discretamente a pau o idealismo difuso, a concepção fetichista da arte como
efeito do gênio criador do artista (“After God Shakespeare has created most”101,
sustenta um dos sábios interlocutores), da literatura como algo sublime e excepcional,
desconectado da vida de todo dia. Hamlet é, entre outras coisas, a chave para a crítica do
imperialismo britânico, que se dá tanto pela violência das armas como pela imposição
ideológico-cultural. No que concerne ao uso da cultura, então, é aí que o ardil de
Dedalus (e através e para além dele o de Joyce) funciona melhor. Não simplesmente, ou
não apenas, nas inovações sintáticas, ou nos pastiches e nas combinações estilísticas,
portanto, mas na construção minuciosa de armadilhas e decepções. No episódio da
Biblioteca em particular, é notável o labirinto de argumentos que constrói para manter o
mito e a mistificação à distância. Stephen lança uma isca atrás da outra, e se assegura de
que os adversários (juntamente com o leitor sabichão) se entusiasmem com a ideia de
mordê-las, e somente então começa a trabalhar para pegá-los de surpresa. Exacerbando
a interpretação biográfica – aproximando-se para tanto perigosamente do extremo da
visão materialista vulgar de inspiração nietzschiana, encampada pelo cínico-hedonista

99 As múltiplas referências à violência das guerras coloniais britânicas no Ulysses foram trabalhadas por
Barbara Temple- hurston, “ he Reader as Absentminded Beggar: Recovering South Africa in Ulysses”,
James Joyce Quarterly, # 28.1 (1990), pp. 247-56; M. Keith Booker, Ulysses, Capitalism, and
Colonialism. Reading Joyce After the Cold War, Westport: Greenwood, 2000; e Leona oker, “‘Khaki
Hamlets Don’t Hesitate’: a Semiological Reading of References to the oer War and Concentration
Camps in Joyce’s Ulysses”, Journal of Modern Literature, # 38.2 (2015), pp. 45-58.
100 U 9.212.

101 U 9.212.
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Buck Mulligan, a qual no momento certo também haverá de ser desbancada –, seus
interlocutores, a fim de contrariá-la, são levados a se expor, a adotar os lugares-comuns
de um idealismo extremo, beirando o filistinismo cultural em sua aversão pela
materialidade de ideais e valores. A reflexividade da obra aqui é levada a um ponto
elevado: Ulysses é um livro autoral, o que é óbvio, e que não obstante recompõe
matrizes narrativas das mais variadas, o que também é evidente, mas isso não justifica
amortizar tudo à biografia do autor, centrar o movimento todo no indivíduo Joyce, algo
tão estéril quanto reduzir toda a démarche joyciana à reunião (muito embora original e
fruto de ampla pesquisa) de materiais literários pré-formados, não passando o autor de
mero mediador/articulador dos mesmos (como já dito, a articulação que interessa se dá
sobretudo no nível dos pontos de vista narrativos). O próprio texto então sugere a
necessidade de dialetizar os extremos, o que leva a uma inclinação maior pela postura
materialista, e não, como sugere clicherescamente um dos interlocutores, a adotar uma
posição de equilíbrio, o caminho do meio. Pois é no fundo a capacidade da arte de
transpor de forma acurada a realidade vivida que está em jogo, razão pela qual no
melhor modernismo a preocupação com as realidades sociais e com a política não vem
nunca dissociada do experimentalismo, e vice-versa. Por isso a referência reiterada
diversas vezes (sobretudo neste capítulo) à Guerra dos Bôeres, aos campos de
concentração, à legitimação cultural da violência do imperialismo etc. Sem falar na
situação dilacerada do intelectual em contexto social e cultural retrógrado e regressivo,
em que pensamento autônomo e dependência pessoal direta quase não se distinguem.
Assim como em Machado de Assis ou em Brecht, e ao contrário do que sustenta a crítica
dominante, o parâmetro último da obra de Joyce vem sempre do mundo real, está na
própria vida, e não na obra sem si, cuja dimensão de consequência tem a ver,
justamente, com “sua fidelidade a uma matéria histórica que, para o grande artista,
nunca é o caso de falsear”102.
Com isso em mente, voltemos à teoria sobre Hamlet, pela qual Stephen expõe,
em modo performativo, e sem dúvida involuntariamente, a infecundidade do chiste
esclarecido, que dá muitas voltas e não leva aparentemente a parte alguma, bem como
estadeia a má infinidade da preleção lógica, do encadeamento de ideias sem qualquer

102 José Antonio Pasta, “ recht e o rasil: afinidades eletivas”, art. cit., p. 21.
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ligação efetiva com a prática, e que por isso mesmo não se eleva acima da situação dada
senão superficialmente. De passagem, as reflexões voláteis durante a caminhada em
Sandymont Strand, em “Proteus”, já davam mostra disso. Trata-se como se sabe de
traço comum de intelectuais e cavalheiros ilustrados em contexto periférico, podendo
ser encontrado, de diferentes modos, no “mano capeta do liberalismo” e no homem do
subsolo dostoievskiano, no Brás Cubas, bem entendido, ou ainda no banqueiro
anarquista de Pessoa103. Os críticos costumam se dividir ao determinar se Stephen
realmente acredita ou não em sua teoria, e com isso não somente passam ao largo do
essencial como dão vazão a um debate ele mesmo estéril. O ponto – ou o drama – é
justamente que pouco importa naquele contexto se ele acredita ou não naquilo que
sustenta, porque as ideias de forma geral não estão ligadas a convicções, ou à
consistência, à consequência do sujeito, à exigência moderna de “pensar sempre em
acordo consigo próprio”104. Quando questionado a respeito, Stephen diz prontamente

103 A generalização desta hipótese é decerto problemática, sendo necessária análise caso a caso. Seria
interessante, por exemplo, aprofundar o problema dos deslocamentos ideológicos no Ulysses (em
particular no capítulo da Biblioteca) através do estudo de aproximações e diferenças específicas no uso
das ideais por Stephen e outras personagens romanescas afins, como Stiepan Trofímovitch, de Os
Demônios (1872), ou Martin Decoud, de Nostromo (1904). Um pouco à maneira de Hamlet, que volta ao
atrasado reino da Dinamarca depois de passar uma temporada em universidade estrangeira (outra
comparação possível, esta real, seria Alexander Puchkin, que também oscila entre a ideologia ilustrada
de origem francesa e a servidão prática imposta pelo contexto russo), as três personagens em questão,
após estada de estudos em Paris, retornam aos respectivos países periféricos de origem (Rússia, o
fictício Costaguana e Irlanda) adotando a postura de intelectuais presunçosos, cujo brilho – em geral
proveniente do privilégio de terem estudado fora, saberem francês etc. – em cada caso periclita em
função de não ter “materiais em que se apoiar” Roberto Schwarz, “Para a fisionomia de Os Demônios”
[1961], em A sereia e o desconfiado, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981, p. 72). Como resultado, as ideias
acabam rebaixadas a uma dimensão puramente estratégica, ou oportunista, em detrimento, por
exemplo, do real interesse teórico. Conscientes das contradições de sua condição (as quais, nos autores
em questão, reaparecem na forma com que elaboram os pontos de vista literários), cada qual joga com
as mesmas como pode; o jogo de espelhos, contudo, não parece ser exatamente o mesmo, e precisaria
ser propriamente determinado. Seja como for, em nenhum destes exemplos o círculo formativo se fecha,
nem tem como se fechar. Aqui, de novo, são os romances de maturidade de Machado de Assis, e a curva
deceptiva que descrevem, que permitem enxergar melhor o problema da impossibilidade de síntese, ou
do seu necessário fracasso. Cf. Paulo E. Arantes, “Conversa com um fil sofo zero à esquerda” [2000], in
Zero à esquerda, São Paulo: Conrad, 2004, p. 258: “Embora vivamos num país tomado por uma
ansiedade crônica com a sua formação nacional, sempre adiada, interrompida etc., imaginar-se alguém
protagonista de um Romance de Formação no Brasil é uma senhora enormidade. No modelo clássico,
em Goethe ou Hegel, a rigor s há ‘formação’ no pressuposto de uma espécie de racionalidade superior
governando a marcha das coisas, de sorte que a formação se completa pela conversão de uma espécie de
loucura subjetiva a essa marcha ascendente do mundo. Ora, no Brasil tal curva formativa deveria ser
descendente. Ou, por outra, segundo o metro patriarcal que nos pautava, seria o caso de se falar de uma
verdadeira deseducação. Não por acaso, foi isso o que Roberto [Schwarz] viu nos anos de iniciação e
viagem de um engendro da escravidão como o nosso rás Cubas.”
104 Immanuel Kant, Crítica da faculdade do juízo [1790], trad. V. Rohden e A. Marques, Rio de Janeiro:

Forense Universitária, 2005, § 40.


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não acreditar na hipótese cuja intricada construção acabara de expor nos mínimos
detalhes; na sequência, contudo, em pensamento, deixa entender que acredita, sim (se
não na redução biográfica propriamente dita, pelo menos, e era essa a convicção do
próprio Joyce, na necessidade de diminuir “o véu que separa a literatura e a vida”105),
mas que naquela situação talvez fosse preferível não acreditar (“I believe, O Lord, help
my unbelief. That is, help me to believe or help me to unbelieve?”106). Ao contrário dos
demais, que não veem (ou vivenciam) como problemática a dissociação, esta para
Stephen é experimentada como algo dramático. Toda a discussão, então, fora em vão? É
o sentimento que fica: “What have I learned? Of them? Of me?”107 Para que colocar suas
ideias no papel, se pergunta uma personagem reclusa e resignada de um conto de Joyce
(Mr. James Duffy, outro alterego do autor), ou por que diabos publicar o que quer que
seja num contexto em que as ideias não tem peso algum? “Para competir com
fraseadores, incapazes de pensar consecutivamente por sessenta segundos? Para se
submeter às críticas de uma classe média obtusa que confiou sua moralidade à polícia e
suas belas-artes a empresários?”108 Novamente, como em diversas partes do romance
(ou da obra de Joyce de modo geral) o capítulo da Biblioteca traz para o primeiro plano
a questão da inutilidade, em contexto retardatário e regressivo, da cultura formativa.
Daí a impressão superficial, ainda que concreta, de que todo o esforço contido na
produção e na leitura de um livro como o Ulysses não dê ao final em lugar algum: o
romance não passaria no fundo da exposição de uma situação aporética. Ao mesmo
tempo não resta dúvida que a necessidade de se achar uma saída para o presente –
acordar do pesadelo de uma história que não passa – está no centro das preocupações
do artista, tanto de Joyce como de Stephen. “I am tired of my voice, the voice of Esau.
My kingdom for a drink.”109 Para além do détournement fácil da frase célebre do
Ricardo III (“Meu reino por um cavalo!”), a inequívoca referência bíblica é a que

105 James Joyce, cit. em Arthur Power, Conversations with James Joyce, Chicago: The University of
Chicago, 1982, p. 98.
106 Cf. U 9.213-4.

107 U 9.215.

108 Cf. James Joyce, “A Painful Case”, em Dubliners, ed. cit., p. 164: “She asked him why did he not write

out his thoughts. For what, he asked her, with careful scorn.To compete with phrasemongers, incapable
of thinking consecutively for sixty seconds? To submit himself to the criticisms of an obtuse middle class
which entrusted its morality to policemen and its fine arts to impresarios?”
109 U 9.211.
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interessa aqui: sua voz não é reconhecida pela autoridade paterna (o pai real é um fraco,
a nação irlandesa é dependente e atrasada e o círculo dos literatos ao qual almeja fazer
parte não passa de uma piada); a falha da identificação dá a nota do desterro (“The note
of banishment, banishement from the heart, banishment from home”110), que segundo
Stephen enformaria boa parte da obra de Shakespeare, mas que é igualmente – e agora
não há mais como não ver – a marca inconfundível da obra do próprio Joyce.
A exasperação da separação condiciona o desejo de fuga ou de indiferenciação.
Stephen anseia por um estado, momentâneo que seja, de despossessão e esquecimento
de si, está disposto a trocar todo aquele improfícuo debate pela bebedeira com os
comparsas no pub. A percepção do inferno de uma vida cotidiana insossa, a prisão do
sempre-igual, parece ainda mais aguda após a discussão: “Every life is many days, day
after day.”111 Não havendo espaço social ou relações interpessoais verdadeiras em que
possa se representar a própria vida, ou objetivar um lugar em que se sinta realmente
vivo, o próprio debate de ideias é opressivo – por falta de mediações reais, as
“polêmicas” são de fato estéreis –, e fora dele impera a insipidez da existência não
considerada (“out of the voulted cell into a shattering daylight of no thoughts”112),
marcada pelas compensações habituais, o chope no bar, o jogo de azar, a conversa fiada
sobre mulher e futebol... Entretanto, com as experiências negativas que vai acumulando
pelo caminho – a falência da comunicação, o cinismo esclarecido e a inautenticidade das
relações na torre Martello, novamente a impossibilidade cabal do diálogo, a
mediocridade difusa e a frustração no emprego na escola, o silêncio do mundo, a
culpabilidade e o horizonte de expectativas rebaixado durante a deriva na praia, a
mercantilização da literatura, o sensacionalismo e a venalidade ideológica na redação do
jornal, a superfluidade cultural e a desconexão entre ideias e vida na discussão da
Biblioteca –, Stephen sente e começa a enxergar mais claramente a necessidade de pôr
um fim ao pesadelo infernal: “Life is many days. This will end.”113 Entre a necessidade
objetiva de formar relações (mas de que tipo?) e “o ímpeto de asserção de uma

110 U 9.211.
111 U 9.213.
112 U 9.215.

113 U 9.214.
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identidade exilada”114 há um hiato aparentemente intransponível e cada vez mais


acentuado e acirrado.
Nesta altura, o caminho tomado pelo jovem poeta vai ficando mais nítido
também para o leitor. Ao final do primeiro episódio, ele já havia deixado claro que não
voltaria a dormir na torre Martello e que voltar para casa paterna tampouco era uma
opção (“I will not sleep here tonight. Home also I cannot go.”115). Mais tarde, em
“Eumaeus”, a decisão de deixar o emprego na escola parece ter sido tomada e ser
definitiva, e o fato de não ter para onde ir é reiterado algumas linhas depois, na mesma
página (“There’ll be a job tomorro or the next day [...] in a boy’s school at Dal ey for
a gentleman usher. [...] I have no place to sleep myself”116). Entre um e outro episódio,
em “Wandering Rocks”, figura uma cena que, apesar de breve, é uma das mais fortes e
dramáticas de todo o livro. Stephen encontra por acaso na rua uma de suas irmãs, Dilly,
comprando num estande um livro de segunda mão para aprender francês, sem dúvida
espelhando-se no irmão mais velho, sonhando ela também viajar, estudar fora, sair
daquele buraco. Conquanto remoído pela culpa, Stephen percebe que não tem como
salvá-la sem se deixar afogar junto com a menina na miséria em que se encontra (“She is
drowning. Agenbite. Save her. All against us. She will drown me with her, eyes and
hair. Lank coils of seaweed hair around me, my heart, my soul. Salt green death./ We/
Agenbite of in it. In it’s agenbite./ Misery! Misery!”117). A imagem lembra a cena do
afogamento na peça shakespeariana (imortalizada numa tela famosa do pintor pré-
rafaelita John Everett Millais): como Hamlet com relação a Ofélia, Stephen tem de ser
cruel, deixar a pobre irmã à própria sorte se quiser levar a cabo seu desígnio maior, o
que não pode fazer sem sentir remorso. A cena, destituída de qualquer ironia, põe em
evidência o quanto o desligamento do status quo para Stephen está longe de ser leviano.
A emancipação, Joyce o sabia bem, é um processo penoso.
Em “Oxen of the Sun” a fatura literária é novamente exposta, e de forma bastante
incisiva. O romance que segundo alguns marca o fim da forma romance tal como fora
concebida e praticada até então é aqui de certo modo reminiscente daquele que

114 Raymond Williams, “Os exilados” [1982], em A. estrovski org.), Ensaios sobre James Joyce, Rio de
Janeiro: Imago, 1992, p. 107.
115 U 1.29.

116 U 16.537.

117 U 10.242.
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inaugura o gênero no início dos tempos modernos. Paródia dos livros de cavalaria
dominantes até recentemente, a linguagem do Dom Quixote, crítica das linguagens
então existentes, simboliza o ocaso de toda uma época, bem como a inauguração de um
novo tempo do mundo. Semelhantemente a Cervantes e Shakespeare, Joyce se situa
num momento de transição, em que um novo mundo, pra bem ou pra mal, parece se
anunciar no horizonte – a composição do Ulysses, como dito, é contemporânea da
Primeira Guerra e da Revolução Bolchevique – e para o qual uma nova linguagem seria
necessária. No que diz respeito ao capítulo em questão, se nos ativermos a uma leitura
superficial, o que vem à tona é antes de tudo o fastio do virtuosismo técnico que tem em
si mesmo a única razão de ser – algo que décadas depois seria marca de certa literatura
do pós-guerra, notadamente o Nouveau Roman. A arte do pastiche é aqui levada ao
limite: em nove etapas não explicitamente diferenciadas, toda a literatura inglesa é
pastichada, o conjunto dando à luz uma língua nova, algo caótica (um jorro de gírias
modernas), ainda não de todo formada. Novamente oscilando entre o mero pastiche e a
paródia aberta, Joyce parece em muitos momentos propositalmente carregar na tinta,
exacerbando a reprodução de cada estilo, sem dúvida no propósito de não deixar pedra
sobre pedra. E de fato não sobra nada. Nada? Tudo somado, na superfície, pouca coisa
parece digna de nota em termos de conteúdo neste talvez mais longo do que necessário
capítulo. Lido isoladamente, parece de fato much ado about nothing. Inserido no
conjunto, em contrapartida, levando-se em consideração o encadeamento dos episódios,
“Oxen of the Sun” redimensiona alguns motivos centrais. A dialética de inanidade e
fertilidade que atravessa o livro ganha melhores contornos, e o tema do nascimento de
uma nova língua ou sintaxe articula-se ao da formação embrionária de um “novo”
Stephen. Na explicação fornecida pelo próprio Joyce: “Bloom is the spermatozoon, the
hospital the womb, the nurse the ovum, Stephen the embryo.”118 Traduzindo à nossa
maneira: fertilizado pela vida cotidiana reificada (incorporada, bem entendido, por
Bloom), gerado no ventre do trabalho alienado (o hospital representa entre outras coisas
os estudos de medicina, os quais aludem inequivocamente tanto à experiência frustrada
de Dedalus em Paris quanto ao Wilhelm Meister, que, como é sabido, largara mão do

118James Joyce, em carta a Frank Budgen, de 20 de março de 1920, em Letters, vol. 1, New York: Viking,
1966, p. 140.
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teatro pela profissão mais séria e socialmente aceitável 119), Stephen, que aparece já
bastante embriagado no episódio, portanto fora de si, emerge pouco a pouco como
encarnação do artista “amadurecente”, artífice de uma nova linguagem para tempos
novos, ela mesma lugar-tenente de novas relações. A par disso, chamaria a atenção para
uma passagem significativa, em que Stephen é descrito como “the young poet who
found a refuge from his labours of pedagogy and metaphysical inquisition in the
convivial atmosphere of Socratic discussion”120. A discussão filosófica é refúgio e figura
em clara oposição à vida danificada, oscilando indefinidamente entre a frustração com o
trabalho submetido e o movimento errático e desordenado das ideias desenraizadas. Por
depauperada que seja, a prática coletiva da inteligência é posta explicitamente pelo
narrador como superior ao pensamento isolado do poeta solitário. Sem saída à vista,
contudo, ou na ausência de uma elaboração coletiva com vistas a uma saída, o dito
refúgio não passa de magra consolação, para não dizer escárnio. À luz da discussão
precedente, no episódio da Biblioteca, que não dera em lugar nenhum e que colocara em
evidência a mais cabal esterilidade das ideias, a observação do narrador, aqui, soa
irônica: a discussão socrática – a maiêutica! –, naquele contexto, ainda não é capaz de
parir nada de concreto ou efetivo, em claro contraste, portanto, com o que sugere o
episódio em questão.
“Circe” é quiçá o mais surreal capítulo do livro, ou melhor, surrealista avant la
lettre. Trata-se da Walpurgisnacht joyciana. Muito haveria que destacar aqui, mas
chamemos a atenção para o seguinte. O andar da prosa, assim como o de Bloom e
Stephen, é titubeante. Levado pela embriaguez, este último, após uma confusão num
bordel, se mete numa briga de rua. Tudo se passa como se o processo de desvinculação
desencadeado no primeiro episódio, do franquear do espírito dos “três mestres”
aludidos no início do livro (colonialismo britânico, catolicismo romano, nacionalismo
irlandês), tivesse que ter uma passagem ao ato mais ou menos violenta, muito embora
irrisória em aparência (quase uma paródia do ato autêntico), como que para marcar
simbolicamente um ponto de não retorno. Stephen usa o sarcasmo sem parelho (“He

119 Para além da história de Dédalos e Ícaro, pode-se conjecturar se a torre Martello não remeteria ainda à
Sociedade da Torre, à qual se submete Meister após o romance passageiro com o teatro.
120 U 14.414.
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expresses himself with much marked refinement of phraseology”121) e insulta


explicitamente a Igreja e o rei da Inglaterra na presença de soldados ingleses. A forma
literária empregada aqui é a teatral (uma escrita precursora do teatro do absurdo), que
põe em cena uma ação dialogada (ainda que um diálogo completamente torto) e
personagens empenhadas na resolução de um conflito menor, o que é claramente
satirizado por Stephen, que escarnece tanto do Fausto de Goethe quanto de Kant
(“Personally, I detest action”122; “This feast of pure reason”123). Bloom, como de praxe,
faz o papel de conciliador, pra variar sem sucesso. Após ser xingado de pró-bôer por um
dos soldados, Stephen leva um soco do outro, e cai estatelado no chão. A polícia chega, a
multidão se dissipa, Bloom ajuda Stephen a se reerguer e os dois continuam sua
peregrinação, com o mais velho servido como que de guia do poeta – como Virgílio com
Dante na Commedia – através dos círculos e abismos infernais da Dublin noturna.
Em “Eumaeus”, episódio seguinte, que abre a última parte do livro (“Nostos”),
fica claro que, embora equivalentes em termos capitalistas, subsumidas à mesma forma
geral abstrata do trabalho assalariado, as atividades intelectuais diretamente ligadas à
formação cultural autêntica (produção literária e professorado), de um lado, e a tarefa
pseudoartística de bolar anúncios apelativos e ludibriantes, de outro, não somente não
são do mesmo tipo como têm, para além da expectativa de remuneração, finalidades
bem distintas, implicando por isso mesmo formas diferentes de conceber o mundo e a
vida. Neste episódio, Bloom defende sua versão patriótica – e completamente
desenraizada do movimento real da sociedade – de um Estado de bem-estar ao qual já
se havia aludido no episódio anterior (“the new Bloomusalem in the New Hibernia of
the future”124), e o pequeno diálogo que trava com Stephen a respeito é revelador a
muitos títulos125. O publicitário de meia idade sustenta se tratar de um sistema em que
se viveria bem, à condição de que se trabalhe (“Where you can live well, the sense is, if
you work”), ao que o jovem poeta redargue, para a surpresa de seu mediano
interlocutor, que se for para trabalhar está fora, “não conte comigo” (“Count me out [...],
meaning to work”). Espírito naturalmente conciliador, como já se viu, avesso a conflitos
121 U 15.521.
122 U 15.520.
123 U 15.528.

124 U 15.459.

125 Para o que segue, cf. U 16.565.


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de qualquer ordem, Bloom, que respeita em Stephen não apenas o talento nato, mas a
inteligência e o conhecimento acumulado, embora desconcertado com a inesperada
declaração do jovem, tenta reparar a situação, deslizando uma vez mais seus lugares-
comuns e, como de costume, fazendo abstração das relações reais de produção: quando
fala em trabalho é em sentido amplo, o mais vasto possível (“work in the widest possible
sense”), de modo que o labor literário, ou cerebral, também é trabalho, e trabalho
importante (“That’s or too. Important or .”), tão importante para o país quanto o
trabalho braçal de um camponês (“You both belong to Ireland, the brain and the
brawn. Each is equally importante.”). Bloom conclui o remendo enfatizando que, após
todo o dinheiro gasto e investido com sua educação (“after all the money expended on
your education”), Stephen deveria gozar do direito adquirido de viver do que escreve
(“right to live by your pen”), e cobrar o seu preço (“You are entitled to recoup yourself
and command your price.”), escrevendo, por exemplo, para... um jornal, sendo a
mediocridade jornalística do tempo novamente exposta na sequência. Bloom não se
conforma com o fato de um jovem talentoso e cultivado não dar para nada. Aos seus
olhos, Stephen não passa de um investimento que ainda tem chances de dar certo, quer
dizer, de trazer algum retorno. A noção do desperdício e do subuso da cultura
acumulada tem aqui sentido meramente capitalista: não dar em nada ou não servir para
nada, na cabeça de Bloom, significa não dar dinheiro. Por sua vez, o subemprego de suas
faculdades intelectuais e poéticas é, como dito, vivido por Stephen como uma mutilação,
por certo, mas não tem praticamente relação alguma com retorno financeiro ou
reconhecimento social em termos capitalistas. Ganhar a vida – que sardonicamente
supõe negá-la, perdre sa vie à la gagner – é uma necessidade à qual não tem como
escapar, mas que não tem nada a ver com a vida do pensamento, a arte e a poesia, muito
pelo contrário: a ensurdecedora prosa do mundo capitalista abafa por completo a sua
voz lírica e torna o pensamento algo irrisório e sem efeito, vale dizer, sem efeito prático.
Entediado com a avalanche de lugares-comuns e sem paciência para discutir ou trocar
ideias com o mediano interlocutor que tem diante de si, que sequer é capaz de entender
a ironia e o sarcasmo de suas colocações, Stephen põe abruptamente um fim àquela
conversa bovina: “We can’t change the country. Let us change the subject.”126

126 U 16.566.
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***

De nossa leitura do percurso de Stephen Dedalus no Ulysses – em que se


acentuou a contradição insolúvel entre o apelo da vida verdadeira (associado no caso à
aspiração literária autêntica) e as condições sociais retrógradas, a qual o leva ao final a
retomar o caminho do exílio no velho continente, não sem antes se voltar contra a
própria qualidade de trabalhador abstrato e alienado, subordinado e comandado pelo
capital –, não se deve deduzir uma apologia abstrata do êxodo, menos ainda de uma
saída individual do pesadelo da história. Nada mais ilusório. O que interessa salientar,
em contrapartida, e que esperamos ter ficado claro, é que, em resposta à situação
lacerada do artista e do intelectual em contexto capitalista periférico, e redinamizado em
seguida pela experiência do desterro, o trabalho artístico de Joyce configura um
deslocamento existencial – chamemo-lo assim faute de mieux – cujo estatuto é preciso
situar e determinar social e historicamente. A consciência de necessidades e desejos
ligados à produção artística autêntica, e cuja realização é incompatível com a existência
posta, notadamente com o imobilismo e o marasmo opressivo da sociedade dublinense,
é o que torna o modo de estar no mundo de Stephen deslocado com relação aos papéis
sociais, ofícios e funções que se espera que exerça. Precisamente esta tomada de
consciência individual e a progressiva asserção de uma identidade negativa (ou
negativamente determinada por aquilo mesmo a que se opõe), ao remeterem em causa a
objetividade socialmente petrificada do mundo instituído, abrem as portas para uma
perspectiva social mais ampla, que supõe a formulação de um questionamento acerca
das condições gerais necessárias para satisfazer carências e anseios particulares127. Não
é de surpreender que, sob o pano de fundo do contexto revolucionário russo (1905-
1907), o próprio Joyce, diante do irmão desconfiado, justificasse em termos semelhantes
a sua opção pelo socialismo128, justificativa que, ao contrário do que pensa seu maior
biógrafo (Richard Ellmann) nada tem de abstrusa. Como em Marx e Engels, a

127 Retomo aqui, resumidamente, as excelentes colocações de Terry Eagleton, “ ationalism: rony and
Commitment” [1988], em . Eagleton, F. Jameson & E. W. Said, Nationalism, Colonialism, and
Literature, Minneapolis/London: University of Minnesota, 2001, pp. 23-39. Agradeço a Cláudio R.
Duarte ter chamado a minha atenção para este texto.
128 Cf. James Joyce, cartas a Stanislaus Joyce, de 2 ou 3 de maio de 1905 e c. 12 de agosto de 1906, cit. em

R. Ellmann, James Joyce, ed. cit., pp. 197-98.


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perspectiva socialista para Joyce se justificava e se delineava negativamente, isto é, pela


necessária negação de tudo aquilo que obstrui o fluxo da vida, de todas as forças
regressivas (clericalismo, colonialismo, nacionalismo, racismo, machismo,
aristocratismo, condição burguesa, condição proletária...) que impedem e
despotencializam a vida, que Joyce não sem razão associava à arte. E não seria outra,
mutatis mutandis, segundo o jovem Lukács, a lição fundamental do romance, forma
moderna admiravelmente atualizada e levada aos limites de suas possibilidades no
Ulysses e no quase ilegível Finnegans Wake, a saber: “a coragem de medir e de
sustentar a distância entre o imperativo da vida autêntica e a realidade degradada”129.
Digamos então, para concluir, e de modo simplista talvez, que Joyce no Ulysses
procura notadamente atualizar o tema flaubertiano do emparedamento da vida
moderna, mas na impossibilidade objetiva de equilibrar a negatividade arrasadora que
permeia o universo literário claustrofóbico de Flaubert, carregado de tolice, frustrações,
mal-entendidos e mesquinhez, com a vitalidade poético-epifânica de um Rimbaud130, o
autor cedo encontrara na obra e na pessoa de Ibsen, autor semiperiférico e durante anos
autoexilado como ele, como que a “solução” para pintar da maneira mais “realista” a
possibilidade, remota que fosse, de outras formas de existência e de desejo. A
dramaturgia de Ibsen, como se sabe, se insurge contra a rigidez e a estreiteza do
cotidiano reificado, a falta de liberdade e a falsificação geral da vida moral burguesa no
contexto semiperiférico de uma sociedade escandinava fin de siècle131. Ocorre, como
lembra Raymond Williams, que ao invés de representá-la explicitamente no interior da
ação dramática, o que naquela altura soaria mais do que falso, a possibilidade de formas
de vida diferenciadas figuraria como que em negativo e para além dela; se o autor
norueguês opera de fato dentro da fala cotidiana, é para reconstruí-la de modo a colocá-
la em tensão com uma dimensão de diferença articulada apenas parcialmente, mas
suficientemente tangível: a linguagem cotidiana vem encapsulada em esquemas de

129 José Antonio Pasta, “A forma angustiada de Lukács”, Folha de São Paulo, caderno Mais!
(13/08/2000), p. 25.
130 A importância do jogo dialético (ou melhor, aporético) entre Flaubert e Rimbaud na obra de Joyce,

notadamente no Portrait, foi trazida à tona e bem analisada por Franco Moretti, em The Way of the
World, ed. cit., pp. 242-44
131 Cf. Erich Auerbach, Mimesis. Dargestellte Wirklichkeit in der abendländischen Literatur [1946],

Tübingen/Basel: Francke, 1994, p. 483, trad. C. Heim: Mimesis. La représentation de la réalité dans la
littérature occidental, Paris: Gallimard, 1968, p. 512.
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distúrbio, deslocamento, ensimesmamento e barreira, mas de tal forma que acaba por
indicar ou preludiar modos desarticulados de existência e desejo que transcendem os
limites de sua estruturação habitual.132
É digno de nota que ao final do percurso, em “Ithaca” e em “Penelope”, assim
como as personagens, e o leitor, também a linguagem parece cansada, para não dizer
esgotada, deixando de lado toda preocupação com as normas gramaticais no derradeiro
episódio. A tática da extenuação e a estratégia de compor uma obra por assim dizer em
decomposição – ou por outra, uma obra que se situe no interior do movimento geral de
dissolução das formas, tradicionais como burguesas – e ao mesmo tempo contra a
decomposição em curso comporta decerto um risco, a saber, o de ao final confirmar e
consolidar a totalidade reificada, a paralisia do desenvolvimento histórico total em prol
do movimento independente da economia fetichizada.133 No Ulysses, no entanto, a
insistência nas formas enregeladas de falar, pensar, sonhar e desejar – com as quais
aliás, não sem ambiguidade, termina o romance – pode ser comparada à imagem da
água que ao congelar ganha volume, criando fissuras no recipiente que a contém, até
atingir o ponto em que finalmente o arrebenta. A ruptura, contudo, fica sugerida, está
para além da obra, ou de qualquer representação, supondo antes o trabalho e a
inteligência do leitor, que deve refletir por conta própria e tirar as próprias conclusões
sobre os problemas levantados mas não solucionados pelo livro. Como nas melhores
peças de Brecht, tal “abertura” – ou suspensão do sentido – não é a das mil e uma
leituras e interpretações possíveis, todas igualmente válidas e por isso mesmo no fundo
estéreis, mas uma que tem a ver com uma pedagogia revolucionária, no sentido de que
abre as portas para a possibilidade de se imaginar uma intervenção política fora do
horizonte conceitual capitalista, e que conduza para além do presente infinitamente
expandido da sociedade da mercadoria. “Life is many days. This will end.”

(outono-inverno de 2016)

132Cf. Raymond Williams, “Os exilados”, art. cit., pp. 106 e 107.
133Explicitamente ligado ao bloqueio atual do processo histórico geral, o significante joyciano vem grifado
em Guy Debord, La société du spectacle [1967], Paris: Gallimard, 1992, § 175, p. 169.
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PERIFERIA/PARALISIA
A figuração do inferno colonial no primeiro Joyce

Cláudio R. Duarte

Movimento e repouso – ou antes, uma espécie de movimento em repouso,


inercial, circular, infindável e evanescente, que só sai do lugar para retornar ao mesmo
ponto, sem superar seus pressupostos: tais são algumas variantes de uma estrutura
fundamental na obra do primeiro Joyce, que repercutiria no coração da obra posterior,
colocando em evidência as teias formadas entre a sua literatura e o processo social de
um país capitalista periférico.

Tentaremos ouvir alguns textos do jovem escritor – de Chamber Music e de


Dubliners –, analisar seu padrão e algumas de suas derivações, buscando interpretar
seu referente histórico sedimentado numa forma literária substancial. Pode-se sugerir
desde já como a figura do movimento paralítico acima evocada encerra em si o mito e a
história de uma maneira específica: o tema materialista do “desencantamento do
mundo” faz unidade com a figuração simbólica de um verdadeiro “inferno” colonial. O
pleno modernismo de Ulysses e Finnegans Wake parece-nos ser uma resposta a essa
questão referencial lançada pela obra do início, até pouco tempo encobertas pelas
leituras formalistas.

Chamber Music: curvas do amor e da questão colonial

Em Chamber Music (1907) são abundantes as imagens idílicas de calmaria e


repouso – “At that hour when all things have repose” (“Quando tudo repousa sobre a
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terra”)1, como lemos num dos primeiros poemas – interrompidas subitamente por
influxos da natureza, da sociedade ou dos corpos apaixonados, após uma misteriosa
música descer à terra sombria, evocando a paixão e o encontro dos amantes. São
poemas delicados e musicais, escritos num estilo elisabetano tardio mas vivo, contendo
boas imagens e impressões, mesclando algum vocabulário arcaico aos temas do
decadentismo. O desenlace sombrio, por isso mesmo, não tarda. A curva do livro tem
seu clímax no poema XIV, sobretudo nos versos finais, na consumação do amor carnal:
“My breast shall be your bed /(...) Arise, arise” (“Meu peito será teu leito” / “Alça-te
mais, alça-te mais”2).

Uma alma que no entanto se elevava, como diz o próximo poema da série, “from
love’s deep slumber and from death” (“do mais fundo torpor de morte e amor”).3 A
curva do amor será agora descendente (“Sing about the long deep sleep / Of lovers that
are dead and how / In the grave all love shall sleep” – “Cante o longo torpor de amor/
De amantes mortos, lado a lado, / E como, em sua cova, o amor / vai repousar”)4... até
recomeçar e abrir-se para novos caminhos:

“We were grave lovers. Love is past

That had his sweet hours many a one.

Welcome to us now at the last

The ways that we shall go upon.”

(“Fomos amantes fúnebres. Finda-se/ O amor, de paz e de prazer. / Agora, enfim, sejam
bem-vindas/ As estradas a percorrer.”5)

1 JOYCE, James. Música de Câmara/Chamber Music [1907]. (Ed. bilíngue.) São Paulo: Iluminuras, 1998,
p. 54-5, poema III (tradução, introdução e notas: Alípio Correia de Franca Neto; no que segue,
beneficiei-me de várias de suas notas e reflexões).
2 Idem, ibid., p. 76-7, poema XIV.

3 Ibid., p. 78-9, poema XV.

4 Ibid., p. 104-5, poema XXVIII.

5 Ibid., p. 108-9, poema XXX.


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O livro que começara com a doce música e a descoberta do amor se depara então
com a “brown land” (“terras pardas”), sugerindo as ruas escuras da Dublin joyceana,
sugerindo que o contexto externo começa a contar:

“Grieve not, sweetheart, for anything -

The year, the year is gathering”

(“Não sofra, meu amor, por coisa alguma;

O ano, o ano, agora – se acumula”6),

– o que racha o cenário quase pastoril dos pequenos amantes privados da história.
Como se vê, os poemas se interligam numa estrutura narrativa, de base vagamente
histórica. Nesse sentido, lembram um pouco o ritmo das Fleurs du Mal, de Baudelaire,
em especial, aqui, os poemas que abrem os “Tableaux Parisiens”, Paysage e Le soleil.7

Passos adiante, as tensões se acumulam e um grito, eco direto de Macbeth, é


ouvido: “ s crying ‘Sleep no more!’” (“É um brado: ‘ ão durma’”8). O penúltimo poema
evoca o “rumor de águas” (“the noise of waters”), um “lamento” (“moan”) vindo das
profundezas do mar, que se equipara em sua gravidade ao da gaivota/poeta no céu
cinzento.9 Esse rumor é como um prenúncio de ruptura; a obra termina com a força
evocativa do poema XXXVI, numa mescla ambivalente de sonho e despertar de
uma/para uma ação:

“I hear an army charging upon the land,

And the thunder of horses plunging, foam about their knees:

Arrogant, in black armour, behind them stand,

Disdaining the reins, with fluttering whips, the charioteers.

They cry unto the night their battle-name:

I moan in sleep when I hear afar their whirling laughter.

6 Ibid., p. 114-5, poema XXXIII.


7 Para uma análise, vide: Cláudio R. DUAR E, “ spleen da cidade sitiada - Esquema de ‘ ableaux
parisiens’, ‘Révolte’ e ‘La mort’”. Sinal de menos, nº 7, 2011.
8 JOYCE, Música de Câmara/Chamber Music, op. cit., p. 116-7, poema XXXIV.

9 Ibid., p. 118-119, poema XXXV.


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They cleave the gloom of dreams, a blinding flame,

Clanging, clanging upon the heart as upon an anvil”.

…)

[“Escuto um exército em carga pela terra,

E estrondo de cavalos se arrojando, a espuma nos joelhos:

Arrogantes, com armadura negra, atrás deles se erguem,

Desdenhando as rédeas, com chicotes flutuantes, os cocheiros.

Eles bradam para a noite os seus nomes de guerra:

Choro dormindo ouvindo ao longe o vórtice da gargalhada.

Eles cindem o escuro onírico, fulgor que cega,

E martelam, martelam meu peito como a uma bigorna”.

(...) ]

Trata-se de um movimento externo ao eu lírico, que por sua vez permanece em


repouso, perplexo diante da configuração desse cenário de guerra e pesadelo, aliás,
completamente estranho e disruptivo em relação ao restante do livro. A “música de
câmara” é interrompida por esses versos mais longos e substanciais, que registram a
chegada de uma tropa ruidosa na praia:

“They come shaking in triumph their long, green hair:

They come out of the sea and run shouting by the shore.

My heart, have you no wisdom thus to despair?

My love, my love, my love, why have you left me alone?”

[“Eles vêm sacudindo em triunfo a verde e longa cabeleira:

Eles surgem do mar e aos berros correm pela praia.

Coração, não tens prudência nenhuma, com tal desespero?


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Amor, amor, amor, por que me deixaste só?” 10 ]

A imagem arcaica dos guerreiros de longa cabeleira verde parece remeter à


estética do “Crepúsculo Celta” e ao chauvinismo irlandês, que Joyce criticara em vários
textos e artigos da época.11 Face ao poder mítico desse exército – uma falsa solução para
a questão colonial irlandesa?; ou uma representação direta do poderio militar britânico?
–, o eu lírico parece invocar a sabedoria/prudência de Ulisses (ou de Dedalus). Um tema
que seria recortado e posto do avesso pela obra futura12, desde o início tida como
enigmática e “chocante” por seus leitores, embaraçados em seus milhares de
entrecruzamentos e referências míticas, literárias e históricas – uma obra a um só
tempo “espiritual” 13 e pesadamente “materialista”, em todos os sentidos do termo. 14
Abandonado pela amante, o eu lírico aparece não apenas isolado e desesperado, mas
paralisado em sua dúvida sobre a ação. O desenlace ominoso reforça o esquema que
notamos no início:

repouso – movimento – repouso.

Dubliners: cidade paralítica / imagem do inferno neocolonial

Esse esquema destaca uma circularidade “mítica” da história, em que começamos


a divisar a questão nacional irlandesa, ou melhor, as consequências, em chave

10 JOYCE, Música de Câmara/Chamber Music, op. cit., p. 120-1, poema XXXVI.


11 o poema satírico “ he Holy ffice” 1904-5), Joyce teceu uma crítica aos “escritores nacionalistas da
rlanda, que, embebidos do romantismo do ‘crepúsculo céltico’, faziam severas restrições às tendências
realistas de Joyce” V Z L , Paulo. James Joyce e sua obra literária. São Paulo: Ed. Pedagógica
Universitária, 1991, p. 38). Vide também o retrato dos sonhos do pequeno burguês Chandler, no conto
“A Little Cloud”, em Dubliners. Sobre os artigos de opinião, cf. a coletânea: JOYCE, James. De santos e
sábios: escritos estéticos e políticos (S. Medeiros e Dirce W. Amarante orgs.). São Paulo: Iluminuras,
2012, esp. p. 165 e ss.
12 Lembremos da frase lapidar de Stephen Dedalus: “A hist ria ...) é um pesadelo de que eu estou

tentando acordar” J YCE, James. Ulysses. London-New York: Penguin, 2000, p. 43. Trad. Caetano W.
Galindo: Ulysses. São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 137).
13 s termos entre aspas são de Virgínia W LF, “Ficção moderna” [1919] in: __. O valor do riso e outros
ensaios. São Paulo: Cosac Naify, 2015, p. 110-11.
14 Cf. os dois artigos de Raphael F. ALVARENGA publicados nesta edição de Sinal de Menos: “Forma,

estilo, pastiche – Considerações sobre o Ulysses de Joyce” e “Hamlets de farda não hesitam – Uma
leitura materialista do Ulysses”.
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inteiramente negativa, do domínio da abstração real das relações modernas nela


embutida. Não por acaso, é de outro texto de base mitológica – a Divina Comédia, de
Dante15 – que Joyce partirá para delinear a estrutura de Dubliners, seu segundo livro,
escrito entre 1904 e 1906, publicado apenas em 1914. Constituído por quinze contos, o
livro tematiza o ciclo da “vida moral” dos cidadãos de Dublin (divididos em contos sobre
a infância e a adolescência, a vida adulta e a vida pública), como revelaria o próprio
Joyce numa famosa carta ao editor.

O ciclo de vida no entanto aparece como um ciclo de frustração e morte, ou,


antes, de morte em vida, como fica marcado de modo mais evidente e significativo,
talvez, no início e no fim da obra: o padre vítima de paralisia em “Sisters”, abrindo o
livro, e a automortificação de Gabriel Conroy e sua esposa, bem como de todos os seus
companheiros de festa, no conto final de nome emblemático, “The Dead”. A bela página
final, registrando o desencontro do casal sonolento na cama logo após a paixão ter sido
reacendida para Gabriel através de uma fagulha de lembrança de um jovem pretendente
da esposa, com a tempestade de neve tudo recobrindo lá fora, é um resumo dessa
movimentação inerte que estamos aludindo, ao mesmo tempo esboçada e evanescente:

“Generous tears filled Gabriel's eyes. He had never felt like that himself towards
any woman but he knew that such a feeling must be love. The tears gathered more
thickly in his eyes and in the partial darkness he imagined he saw the form of a
young man standing under a dripping tree. Other forms were near. His soul had
approached that region where dwell the vast hosts of the dead. He was conscious
of, but could not apprehend, their wayward and flickering existence. His own
identity was fading out into a grey impalpable world: the solid world itself which
these dead had one time reared and lived in was dissolving and dwindling”.16

15 Um “segredo” revelado pelo próprio irmão do escritor, Stanislaus Joyce. Cf. para uma leitura formalista:
REYNOLDS, Mary T. Joyce and Dante: the shaping imagination. New Jersey: Princeton Univ., 1981;
LECUYER, Michelle Lynn. Dante’s literary influence in Dubliners: James Joyce’s modernist allegory of
paralysis. Iowa: Iowa State University, 2009 (Graduate Theses and Dissertations).
16 JOYCE, James. Dubliners. (Text, criticisms, and notes edited by Robert Scholes and A. Walton Litz).

New York: Penguin/The Viking Critical Library, 1996, p. 223. Aproveitaremos a tradução brasileira de
Hamilton Trevisan, com emendas (Dublinenses. São Paulo: Publifolha, 2003, aqui, p. 221-2): “Pranto
generoso invadiu-lhe os olhos. Nunca sentira algo assim por uma mulher, mas sabia que um sentimento
assim tinha que ser amor. As lágrimas cresceram nos olhos e ele imaginou ver na penumbra do quarto
um jovem parado sob uma árvore encharcada. Outras formas estavam próximas. Sua alma acercava-se
da região habitada pela vasta legião dos mortos. Pressentia, mas não podia apreender suas existências
errantes e cintilantes. Sua própria identidade desaparecia num mundo cinzento e impalpável. O próprio
mundo sólido que aqueles mortos um dia criaram, e no qual viveram, dissolvia-se e acabava”.
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Os contos de Dubliners são trespassados por essa dialética fugaz de constituição e


dissolução, ou de “formação supressiva”, para usar um conceito elucidativo cunhado por
José Antonio Pasta, ao que tudo indica útil também para tal contexto neocolonial. 17 O
fato de que Machado de Assis tenha construído seu Esaú e Jacob (1904), ou Conrad seu
Heart of Darkness (1899) – todos alinhados na mesma hora histórica, a partir da
mesma matriz intertextual recriando o Inferno dantesco na periferia (um mundo de
“almas insípidas”18 ou de “homens ocos”19) – é uma coincidência incrível, mas que
certamente tem razões intrínsecas. Em Joyce temos, é verdade, uma dialética escandida
pelo metro do trabalho livre e da vida urbana na segunda capital do Império Britânico,
em contraste ao mundo machadiano do escravismo, do favor e do gozo perverso no seio
das classes dominantes; mas ambos lidam com a alienação mercantil e a dependência
nacional, a repressão política e a morte da história coletiva. Ambos desenham um ciclo
pleno de negações que implicam numa imagem da periferia, para usar o termo chave
cunhado por Joyce, como um “centro de paralisia”.20 Tal será então a nova imagem do
inferno neocolonial moderno configurada por ambas as obras. Os paralelos com Conrad
dariam mais pano pra manga. Isso jamais, porém, de maneira ingênua, como uma
intertextualidade puramente mítica ou esteticista. Em termos formais, a característica
principal da obra de Joyce será a junção da objetividade do narrador realista a certos
elementos simbólicos e alegóricos, que transcendem o fato banal, erguendo-o ao
diapasão moderno da situação colonial. Aí surgem as famosas “epifanias” joyceanas.
Epifanias que nada têm que ver com ocultismo ou misticismo. Elas revelam “a natureza
da vida urbana moderna”, como resume Anthony Burguess, numa mescla de cor local e
abstração social: “Em Dubliners não se dizia ao leitor o que pensar a respeito dos
personagens e de suas ações, ou, melhor, inações. Não havia grandes pecados, nem
qualquer desempenho do grande bem. Da insipidez da banalidade salta um quidditas
puramente estético. (...) São estudos da paralisia ou da frustração (...) – sujeição a
rotinas e ao medo de rompê-las; a emancipação que se busca mas não com a necessária
17 Cf. PASTA JR., José Antonio. Formação supressiva (Constantes estruturais do romance brasileiro). São
Paulo: FFLCH-USP, 2011 (Tese de livre-docência em literatura brasileira).
18 MACHADO DE ASSIS, Joaquim M. Esaú e Jacob. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira-INL, 1977, Cap.

XII, p. 90.
19 CONRAD, Joseph. Heart of Darkness. Harmondsworth: Peguin, 1978, p. 83.

20 termo foi usado por Joyce numa carta ao editor do livro: “A letter to Grant Richards, May 5, 1906” in:
__. Dubliners, op. cit., p. 262.
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tenacidade; os grandes gestos nobres arruinados pela fraqueza da carne”.21 Mas então
teríamos aqui menos “imagens do tempo” (para lembrar um conceito caro a Deleuze) do
que imagens de um certo espaço homogêneo e abstrato, de mobilidade rigidamente
controlada, dominada pela oculta “metafísica” do capital. A matéria concreta é
trabalhado por um certo mecanismo de abstração literária, que a filtra e a descolore. São
contos “atmosféricos”, como observa Vizioli, em que o “espaço se sobrepõe ao tempo”22,
tal como o simbolismo ao realismo, sem deixarem de estar escorados numa “relativa
complexidade das personagens” e no acúmulo de tensões entre esses momentos.
Contudo, em vez da ação exemplar ou do grande evento particular num processo
cumulativo, típicos do realismo, temos uma espécie de “dispensa da ação”: o
impedimento e o malogro, a repetição e a morte – num espaço social estruturado
abstratamente pelas formas do Capital. Há nesses contos um conflito fundamental entre
o local e o universal, a matéria banal e o voo generalizante, mítico-alegórico, que a
forma literária lhes confere e lhes tira o chão histórico-concreto. Daí então o processo de
liquidação do sujeito, via de regra dividido pela antinomia de agitação frenética e
arrebatamento anímico, por um lado, e “pobreza e inércia” geral, de outro, tal como em
“After the race”: a “opressão” vivida localmente é temperada pela busca incessante “da
notoriedade e do dinheiro”, terminando porém com o protagonista irlandês depenado
no jogo pelos seus “amigos infernais”.23 Outro dos expoentes dessa contradição é
Gallaher (“A Little Cloud”), um escritor irlandês “apressado”, que vive no Continente
entre o dinheiro, a fama e o luxo proporcionados pelo jornalismo sensacionalista que
pratica, por outro lado, uma vida sem nenhuma paixão verdadeira – dissolvida que foi
pelo valor de troca, algo sinalizado quando Gallaher diz, por exemplo: “Pretendo casar
com o dinheiro. Ela deverá ter uma gorda soma no banco ou não servirá para mim”.24
Ou, na outra ponta, sinalizado quando o Pequeno Chandler se comporta abstratamente
como uma sombra ou duplo de Gallaher, vendo na própria esposa Annie um par de
olhos indiferentes, tão “inconsciente” e com “jeito de dama” (“lady-like”), “sem paixão

21 BURGESS, Anthony. Homem comum enfim [1965/1982]. (Trad. José A. Arantes). São Paulo:
Companhia das Letras, 1994, p. 34-5.
22 VIZIOLI, op. cit., p. 42.

23 JOYCE, Dubliners, p. 44 e 48 “After the race”); rad. p. 43 e 47 “Ap s a corrida”).

24 dem, ibidem, p. 81, “A Little Cloud”); rad.: p. 79 “Uma pequena nuvem”).


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nem enlevo”, um par de “olhos de [uma] fotografia”.25 Nessas personagens toda ação se
torna instrumental, encarcerada na lógica abstrata da troca. O mesmo na degradação do
amor contida na ação de aproveitadores em “The boarding house” (“A pensão”) e “Two
gallants” (“Dois galantes”). Em “Grace”, resta ao padre Purdon, como um “contabilista
do espírito”, ressignificar a palavra de Jesus para seus “clientes” burgueses obrigados a
“viver no mundo e, em certa medida, para o mundo”: “and in this sentence He designed
to give them a word of counsel, setting before them as exemplars in the religious life
those very worshippers of Mammon who were of all men the least solicitous in matters
religious”.26 A dissolução de todas as ideias e qualidades pelo valor de troca não poderia
ficar mais evidente. É o que se converte finalmente em linguagem: a “escrupulosa
maldade” que Joyce intentava aqui retratar vem vertida num estilo de prosa
“deliberadamente aplainado, anêmico, econômico”.27 Muitos intérpretes perdem essa
passagem incessante do tempo concreto (irlandês) ao espaço social abstrato ditado pelo
Capital enquanto território conflituoso, sem se darem conta de suas implicações para a
forma e o entrecho desses contos. É o que nós veremos melhor na análise de
“Counterparts”, outro conto exemplar de Dubliners. Aqui, o nervo da experiência social
e literária de Joyce, que mais tarde o levaria às personagens de Ulysses, dessa vez
oscilando dialeticamente entre banalidade e exuberância verbal, factualidade naturalista
e excessos de todo tipo.28

Mas o predomínio do espaço abstrato nos conduz ainda a outro tema


fundamental, na verdade o cerne econômico-político de toda a questão irlandesa. Joyce
aqui já demonstra ter um olhar clínico para o descompasso entre sonhos e ideais e a
realidade de uma sociedade capitalista periférica: o fato histórico preciso, também
reconhecido por Machado e Conrad, de que as ideias liberais estão “fora do lugar” e
valem menos que ideologia29, ou seja, funcionam como discursos mais ou menos

25 Ibidem, p. 83 ; trad. (modificada), p. 81.


26 Ibidem, p. 174 “Grace”); trad., p. 172-3, “Graça”): “neste versículo Ele procurou dar a essas pessoas
uma orientação, apontando como exemplos de vida religiosa os próprios adoradores de Mamon que, de
todos os homens, eram os menos diligentes em matéria de religião.”
27 EAGLETON, Terry. The English Novel. An Introduction. Oxford: Blackwell, 2005, p. 299.

28 Cf. dem, ibidem; e ALVARE GA, “Hamlets de farda não hesitam”, op. cit.

29 A referência primeira para este tema será sempre Roberto SCHWARZ, “As ideias fora do lugar” in:__.

Ao vencedor as batatas. São Paulo: Ed. 34/Duas Cidades, 2000.


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impertinentes e ornamentais para legitimar a dominação de um território neocolonial


abstrato, constantemente saqueado e despovoado, traído e corrompido pelas classes
dominantes locais, governado sob um regime de estado de exceção permanente.

A colônia irlandesa, como lembra Marx, era uma fonte primordial de riqueza da
aristocracia e de todo o império industrial britânico, fornecendo-lhe matérias primas,
mão de obra barata e mercados consumidores abundantes. Por isso, os movimentos
emancipatórios foram sempre controlados e violentamente reprimidos. Como dizia por
volta de 1870: “São leis de emergência geral – com exceção de breves intervalos – que
compõem a carta constitucional irlandesa”.30 “Desde 1793 o governo inglês, com um
pretexto qualquer, suspendeu regular e periodicamente a vigência da lei de habeas
corpus na Irlanda e, na prática, todas as leis, salvo a da força bruta.” Assim, completa
Marx, “em um país de liberdades burguesas, as pessoas são sentenciadas a 20 anos de
trabalhos forçados por delitos puníveis com 6 meses de prisão, no país dos quartéis”.31

As condições dos prisioneiros nacionalistas “fenianos” eram brutais (alguns


enterrados vivos, torturados, enlouquecidos etc.). Daí segundo Engels o papel central
dos exércitos britânicos no esmagamento de toda resistência armada feniana (com seus
métodos “bakunistas”), de modo que uma rebelião irlandesa de massas não teria “a
menor esperança de triunfar”32 – o que só surgiria de fato em 1916 quando dois grupos
militares (Republican Brotherhood e Citizens Army) tomaram posse de alguns pontos
de Dublin e proclamaram a independência provisória da Irlanda, revolta logo
destroçada, aliás. Além disso, segundo Marx, o Império explorou a discórdia religiosa e
econômica entre ingleses e irlandeses, principalmente no seio do próprio proletariado,
como um instrumento de dominação, algo que se repetia na colônia, na divisão entre os
habitantes do norte e do sul da ilha. A independência oficial da Irlanda se deu somente
em 1921, abrindo uma época de guerra civil entre católicos e protestantes que resultou
na atual divisão territorial dos países. Esta a matéria histórica trabalhada por Joyce em
“Counterparts”.

30 MARX, Karl. “El gobierno britanico y los prisioneros fenianos” 1870) in: Marx & Engels. Sobre el
sistema colonial del capitalismo. Buenos Aires: Ediciones Studio, 1964, p. 320.
31 Idem, ibidem, p. 317. Cf. as reflexões do próprio JOYCE em De santos e sábios, op. cit.

32 E GELS, F. “Acerca el problema irlandês” [1882] n: Marx & Engels, op. cit., p. 329-30.
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“Counterparts”: o duplo cristalizado no espaço / a cidade dos quartéis como


base de um estado de exceção permanente

O enredo de “Counterparts” (“Contrapartes” ou “Contrapartidas”) é exíguo e fácil


de resumir. Farrington é um escrivão indolente que é insultado e humilhado por um
patrão norte-irlandês (o Sr. Alleyne, sócio do escritório Crosbie & Alleyne), que então
procura consolo para as ofensas recebidas durante o serviço mergulhando na bebida e
na vida noturna dos pubs. Quando volta para casa, depois do dia e da noite inteiramente
perdidos, sem o relógio e o dinheiro, sem a embriaguez prometida e nem mesmo talvez
o emprego, vinga-se cruelmente batendo no filho pequeno com uma bengala.

Trata-se de um conto armado por uma série de relações simétricas, especulares e


conflituosas indicadas por seu título formidavelmente polissêmico: por um lado,
relações de reciprocidade e igualdade contratual entre partes; por outro, relações de
oposição, hierarquia e dominação entre elas, inscritas no espaço de cada grupo ou
indivíduo, tendo o mundo do trabalho e do patriarcado do valor como seu pano de
fundo. O enredo desdobra a dialética dessas relações socioespaciais, apresentando a
típica experiência de uma camada social formada por pequenos burgueses. No todo,
completa-se o movimento que leva da igualdade e reciprocidade pressupostas à
oposição e dominação realmente postas.

Farrington possui características a um só tempo concretas e abstratas. Por um


lado, é apresentado de fora, como um trabalhador de meia idade, “alto e corpulento”, de
“rosto flácido e avermelhado”, com “pestanas e os bigodes loiros”. Por outro, é
apresentado como homem de pensamentos “confusos” e de “temperamento impulsivo”,
totalmente dividido entre a normalidade do trabalho, racional, mecânico e alienado, e os
prazeres sensíveis da bebida e do reconhecimento entre os amigos de copo. Aqui, então,
temos de um lado a mais pura corporificação do tempo reificado do valor de troca, de
outro, a escória do tempo de vida, aquilo que restou do valor de uso, aliás, também ele
mercantilizado, permitido pelo consumo e as atrações da vida noturna da cidade.

A humilhação sofrida no emprego e na vida subjetiva é canalizada para o exterior


imediato do espaço. Um movimento que se expressa quase ao nível da pura
materialidade do corpo: “He felt strong enough to clear out the whole office single-
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handed. His body ached to do something, to rush out and revel in violence. All the
indignities of his life enraged him…”.33 Compulsivamente, assim, o movimento surge
como uma espécie de desregramento de si, seja na bebedeira e na camaradagem das
rodadas de bebida pagas com o sacrifício de seu relógio penhorado, seja nos “olhares de
conquistador” atirados às mulheres (as “empregadinhas de escritório” ou a atriz
sedutora e bem vestida do Tívoli), ou ainda na disputa de braço de ferro com o jovem
artista inglês Weathers, para o qual aliás perde duas vezes. O desejo incontido
finalmente vai ao ápice e ganha uma força irreprimível ao chegar em casa, quando ele
sente a ausência da esposa (que havia ido à igreja) e da comida quente de todo santo dia,
instante em que se desforra do esbulho diário sofrido espancando o próprio filho, que
apenas implora e reza por um limite. O caráter repetitivo, abstrato e intrinsecamente
violento de seu trabalho penetra, segundo a lógica construída pelo conto, no caráter
total de sua vida, tornando-se ele próprio a cópia, a imitação, a “contraparte”
desregrada do seu outro, o Capital. Noutras palavras, o irlandês Farrington é o duplo
materializado de seu patrão norte-irlandês, ambos corporificando a relação abstrata
capital-trabalho. Em essência ambos tratam de garantir a propriedade privada e a
ordem mercantil, o que suprime todo essencialismo proletário ou chauvisnismo dessas
páginas. Mais que as relações políticas nacionais entre ingleses, irlandeses e norte-
irlandeses, portanto, a obra aponta para essa matriz socioeconômica cega.34 Farrington
parece invejar secretamente a posição do patrão, chegando a sonhar com as mulheres
perfumadas e de alta classe de que o outro dispõe, a senhora Delacour, substituída
simbolicamente pela atriz bem vestida do Tívoli (acima mencionada): o concreto, como
mera ilusão, desmaia na abstração de clichês supercoloridos e imagens-fetiche da belle
époque. Mais que isso, Farrington também imita a fala e o sotaque de seu outro, e tem a
mesma vontade de insultar e golpear – apenas contida pelo decoro e o contrato entre
“iguais” que rege a relação salarial. Ambos são despersonalizados: o patrão como uma
“cabeça de ovo” ou “cabeça de boneco”, com gestos furiosos que o igualam em certo

33 JOYCE, Dubliners, op. cit., p. 90 “Counterparts”); trad.: p. 89 “Contrapartidas”): “Seu corpo ansiava
por fazer alguma coisa: precipitar-se para a rua e desabafar na violência. Todas as afrontas que sofrera
na vida vinham-lhe à memória e o encoleirizavam...”
34 Aqui patinam, a meu ver, as leituras “p s-colonialistas” de Joyce, apesar das boas sacadas políticas da

forma e do conteúdo, que superam o mero formalismo. Cf. ORR, Leonard. (ed.) Joyce, Imperialism, &
Postcolonialism. New York: Syracuse University Press, 2008.
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ponto a uma “máquina elétrica”; Farrington como um corpo lento e preguiçoso, de olhos
“pesados”, “sujos” e “protuberantes” – um “rufião impertinente” ou um simples “nada”
(um trabalhador incapaz de terminar uma cópia, um homem que “não sabe nada”35).

Farrington é, por isso mesmo, várias vezes nomeado pelo narrador de maneira
genérica e impessoal como “the man”.36 Sua conduta entra no molde circular do conto:
partes contra partes que se batem, se anulam e repetem o sempre-igual. E que aparece
como um circuito fechado de violência, frustração, bebedeira, mais frustração, mais
violência... O conto anterior, “A Little Cloud”, como que já o prefigurava, no grito
rancoroso que o Pequeno Chandler dá contra o filho chorando em seu colo, após a
noitada com seu sósia medíocre, Gallaher. Nesse sentido, ambas as personagens
reproduzem o quinto círculo do inferno, o dos iracundos e rancorosos 37, ou o nono, o
dos traidores de parentes. O percurso de Farrington do escritório aos bares do entorno,
diga-se de passagem, quase perfaz um círculo no espaço das ruas e das margens do rio
Liffey (cf. mapa elaborado por Gifford a seguir).

Por fim, trata-se de uma armadilha de ódio nacionalista e preconceitos


machistas. Assim, por exemplo, Farrington não vê contradição quando percebe o jovem
inglês artista/acrobata Weathers como um “parasita” (“a sponge”) (“Se odiava uma coisa
na vida, era um parasita”)38 – algo que uma vez mais o assemelha ao patrão (que o
chamara de “rufião impertinente”).

35 JOYCE, Dubliners, op. cit., p. 91; trad., p. 90.


36 Aliás, a primeira sílaba do nome da personagem tem o mesmo som da palavra irlandesa fear, que
significa “man, husband”. Cf. GIFFORD, Don. Joyce annotated: notes for ‘Dubliners’ and ‘A Portrait of
the Artist as a Young Man’. Berkeley/Los Angeles: University of California, 1997, p. 72. Um trecho de
Gissing descrevendo o subúrbio londrino do séc. XIX pode ajudar a elucidar também a origem espacial
do nome: “Que terríveis alo amentos, os Farrington Road Buildings! Amplas paredes nuas, sem sequer
uma tentativa de ornamentação; fileiras e mais fileiras de janelas na superfície pardacenta, subindo,
subindo, olhos mortos, fendas escuras que traduzem o vazio, a desordem, o desconforto do interior. (...)
Alojamentos, sim, moradias para o exército do industrialismo, um exército em conflito interior, posto
contra posto, homem contra homem, em que o sobrevivente terá o que comer” Georg G SS G, The
nether world, 1889, apud: WILLIAMS, Raymond. O Campo e a Cidade – na história e na literatura. São
Paulo: Companhia de Bolso, 2011, p. 367).
37 Estes se esmurram e se mordem, mergulhados na lama do Estige, gorgolando seu lodo, trazendo em si

aquele “accidïoso fummo” termo traduzido por talo Mauro como “névoa aborrecida”). DANTE
ALIGHIERI, Inferno, Canto VII, v. 123 (Trad.: A divina comédia. Inferno. Ed. bilíngue. São Paulo: Ed.
34, 1998, p. 65). Outra referência para tal nuvem seria o Canto XXVI, v. 39.
38 JOYCE, Dubliners, p. 95; trad., p. 94.
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Todos os seus colegas irlandeses, que aliás curiosamente contêm letras


duplicadas no nome (Paddy Leonard, ’Halloran, Higgins, osey Flynn), repetem a
conduta do tipo machão-beberrão-mulherengo-solitário. A eles se contrapõem
hierarquicamente os ingleses, representados por Weathers e as duas artistas do Tívoli,
parodiando a atmosfera luxuosa da belle époque eduardiana. A notação realista de Joyce
se completa observando a qualidade da experiência que resta para tais trabalhadores: a
de uma vivência de superfícies e de choques (Benjamin), formadora de uma consciência
fragmentada, acelerada, ensimesmada em compensações imaginárias e devaneios
narcísicos, um traço reconhecido tipicamente pelas variantes do impressionismo
literário então vigente39, que Joyce incorpora (aliás como Machado e Conrad nesse
ponto) de maneira crítica muito precisa:

“Farrington's eyes wandered at every moment in the direction of one of the young
women. There was something striking in her appearance. An immense scarf of

39Cf. WILLIAMS, op. cit., p. 399-405; BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire - Um lírico no auge do
capitalismo. Obras escolhidas III. São Paulo: Brasiliense, 1989. E também o bom ensaio de SCOTT,
Clive. “Simbolismo, decadência e impressionismo” in: radbury, Malcom e McFarlane, James.
Modernismo - guia geral [1976]. São Paulo: Companhia das Letras, 1989; Sobre a pintura
impressionista: SCHAPIRO, Meyer, Modern Art (19th & 20th Centuries – Selected Papers). New York:
George Braziller, 1979, p. 144-5, especialmente.
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peacock-blue muslin was wound round her hat and knotted in a great bow under
her chin; and she wore bright yellow gloves, reaching to the elbow. Farrington
gazed admiringly at the plump arm which she moved very often and with much
grace; and when, after a little time, she answered his gaze he admired still more
her large dark brown eyes. The oblique staring expression in them fascinated
him. She glanced at him once or twice and, when the party was leaving the room,
she brushed against his chair and said O, pardon! in a London accent. He
watched her leave the room in the hope that she would look back at him, but he
was disappointed.”40

De volta a casa, o homem sentirá o peso da realidade pardacenta, vivida entre a


insatisfação, a cólera e uma vez mais a abstração diante dos filhos, completamente
coisificados – o modo como ele ignora o nome e confunde os meninos Tom e Charlie é
simplesmente chocante –, e da esposa, desqualificada como “a little sharp-faced woman
who bullied her husband when he was sober and was bullied by him when he was
drunk”.41 Em Joyce, a periferia se torna um modo de revelação do centro e de todo o
sistema de antagonismos, enquanto partes igualmente moldadas pela forma do valor e
da cisão de gêneros.42

É como se “a Irlanda pré-industrial, província agrária estagnada do império


britânico”, começasse a espelhar, como aponta Eagleton, a “esfera retraída, repetitiva e
autorreferente do capitalismo monopolista”.43 No fundo, o que importa é a reprodução
desse modo de produção. Como dirá um membro do partido nacionalista em outro
conto (“Ivy Day in the Committee Room”): “What we want in this country, as I said to
old Ward, is capital. The King's coming here will mean an influx of money into this

40 JOYCE, Dubliners, op. cit., p. 95; Trad. (corrigida), p. 93-4:. “ s olhos de Farrington dirigiam-se a todo
instante para uma das jovens. Havia algo de provocante em sua aparência. Uma grande echarpe de
musselina azul enrolava-se em torno do chapéu, terminando num laço sob o queixo. Suas luvas eram
longas e de um amarelo vivo. Farrington admirava-lhe os braços roliços, que ela movia a todo instante e
com muita graça. Pouco depois, ao ser correspondido, Farrington admirou ainda mais seus olhos
grandes e castanhos escuros, cuja expressão oblíqua o fascinava. Ela o fitou uma ou duas vezes e, ao
deixar a sala, esbarrou em sua cadeira, exclamando com sotaque londrino: Oh! Pardon! Farrington
assistiu-a sair da sala, na esperança de que ela voltasse a olhar para ele, mas foi desapontado.”
41 dem, ibidem, p. 97; trad., p. 95: “mulherzinha de rosto comprido, que o atazanava quando estava

s brio e era atazanada por ele quando estava bêbado”.


42 Cf. SCH LZ, Roswitha. “ valor é o homem. eses sobre a socialização pelo valor e a relação entre os
sexos” [1992]. Novos Estudos Cebrap, nº45, São Paulo, julho de 1996, p. 15-36.
43 EAGLETON, Terry. The Ideology of the Aesthetic. Oxford: Blackwell, 1990, p. 321-2.
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country (...). Look at all the factories down by the quays there, idle!”44. Isto é, quem
manda aqui é o movimento do capital, e a grande ação esperada não é política ou social,
mas antes o retorno do fluxo financeiro-industrial à Irlanda, se preciso com saudações
ao rei inglês. Estamos no oitavo círculo, o dos trapaceiros: “Lá o não é sim quando o
dinheiro dita”.45 Em suma, a política torna-se um tipo de ideologia estética, e não por
acaso a agitação partidária promovida, com o raminho de hera na lapela do casaco,
termina na leitura de um poema contendo um elogio ambíguo a Parnell (um dos líderes
do movimento pela independência), de resto funcionando ironicamente como crítica da
práxis congelada e impotente de tais homens partidos. A partir da obra de Joyce,
Eagleton ventila também uma relação peculiar entre a forma da mercadoria e a forma
geral, pré-individual, do sujeito periférico: “Para os sujeitos subjugados pelo império, o
indivíduo é menos o agente esforçado de seu próprio destino histórico que algo vazio,
impotente e sem nome; só pode ser pouca a sua confiança realista na beneficência de
um tempo linear que está sempre do lado de César. Vivendo letargicamente, numa
realidade social estéril, o sujeito colonizado preferirá esconder-se na fantasia e na
alucinação, o que se presta evidentemente mais à prática modernista que à realista”.46
Como vimos, o material da experiência histórica, a vida particular de suas personagens
mais “típicas” nesse contexto neocolonial de crescente mercantilização, como na lírica
de Baudelaire ou no último Machado de Assis, começa a perder seus contornos e a se
dissolver na esfera prototípica do mito, da fantasia e da alegoria. A intercambialidade e
a repetição estúpida funcionam como criptogramas do domínio abstrato e objetivado
dos processos de trabalho e troca modernos.47 O traço “indeterminado” da arte moderna

44 JOYCE, Dubliners, p. 131, “ vy Day in the Committee Room”; rad. corrigida), p. 130 “Dia de hera na
lapela”): “Como eu disse ao velho Ward, o que queremos neste país é capital. A vinda do rei pode
significar um afluxo de dinheiro. ...) Ve a todas essas fábricas paradas ao longo do cais!”
45 DANTE, op. cit., Inferno, Canto XX , v. 42, p. 146: “del no, per li denar, vi si fa ita”.

46 EAGLETON, The Ideology of the Aesthetic, op. cit., p. 322.

47 Idem, ibidem, p. 318-9: “o contínuo esvaziamento do significado imanente dos ob etos abre caminho

para alguma totalização fantástica, de modo que num mundo desprovido de significação e subjetividade,
o mito pode fornecer exatamente os esquemas ordenadores, redutivos, necessários para extrair alguma
unidade do caos. (...) Como a mercadoria, a escrita de Joyce capturará qualquer conteúdo antigo a fim
de se perpetuar”, mas, como observa o crítico inglês, com a intenção corrosiva da ironia e da alegoria: “o
sistema simbólico, em suma, carrega dentro de si as forças de sua própria desconstrução. (...) É a forma-
mercadoria que ao mesmo tempo produz uma identidade espúria entre objetos disparatados e gera um
fluxo instável e aberto que ameaça derrubar toda essa simetria escrupulosamente concebida” ibid., p.
320).
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contém a cifra do que é, do historicamente determinado: o domínio do capital, a


catástrofe do sentido.48

Por outro lado, o círculo formado pelo enredo é, por esta razão, o de um pequeno
inferno particular dissolvente; depois da briga com o patrão, ele anuncia-se claramente:
“o senhor Alleyne não lhe daria um minuto de descanso; sua vida seria um inferno”.49
Mas o controle exercido pelo poder no território garantirá que assim seja para toda uma
sociedade. Após a circulação pelos bares, as rodadas de whisky, a conversa reiterada
sobre o episódio do dia, a perambulação pela cidade, enfim, após o movimento que
reproduz a rotina degradante, Farrington chega aonde mora em Shelbourne Road, um
subúrbio da classe média baixa, contraposto à agitação do centro.

Nesse ponto, “he steered his great body along in the shadow of the wall of the
barracks. He loathed returning to his home”.50 Talvez porque ali ficava também a
caserna das tropas do Exército Britânico da Divisão Sul de Dublin 51 – garantidoras do
estado de exceção vigente, da lei e da ordem imperial, o centro de toda a paralisia
histórica do país. O escrivão soldado-guardião da propriedade encontra sua verdadeira
sombra inconsciente. Esta a contraparte mais oculta de Farrington e de Dublin: a
“cidade dos quartéis”, como Marx a denominara.

(Julho-Novembro 2016)

48 Cf. o agudo comentário de Adorno: “a abstração torna-se para a obra de arte moderna a indeterminação
irritante daquilo e para aquilo que ela deve ser, a cifra do que é. Tal abstração nada tem em comum com
o caráter formal das antigas normas estéticas, por exemplo, com as normas kantianas. É antes
provocadora, desafio à ilusão segundo a qual ainda seria a vida e, ao mesmo tempo, o meio daquela
distanciação estética, que já não é conseguida pela fantasia tradicional. Desde a origem, a abstração
estética, ainda rudimentar em Baudelaire e alegórica como reação ao mundo tornado abstrato, foi antes
uma interdição de imagens. Isso vale para o que os provincianos esperam finalmente salvar sob o nome
de mensagem, isto é, da aparição como algo de sensível: depois da catástrofe do sentido, a aparição
torna-se abstrata”. (Theodor W. ADORNO, Ästhetische Theorie. in: __. Gesammelte Scriften, Band 7.
Frankfurt am Maim: Suhrkamp, 1971, p. 39-40; Trad. Artur Morão: Teoria estética. Lisboa: Edições 70,
1993, p. 34).
49 JOYCE, Dubliners, op. cit., p. 92, trad., p. 90-91.

50 Ibid., p. 97; trad., p. 95: “Ele arrastou o pesado corpo à sombra pro etada pelos muros do quartel.

Detestava voltar para casa”.


51 Cf. GIFFORD, op. cit., p. 76.
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O TRABALHO EM MARX É
ONTOLÓGICO, #SQN
Crítica categorial da forma limitada da atividade humana

Thiago Ferreira Lion 1


& Thiago Arcanjo Calheiros de Melo 2

“E com a palavra trabalho é indicada toda a atividade realizada pelo


mesmo homem, tanto manual como intelectual, independentemente das
suas características e das circunstâncias, quer dizer toda a atividade
humana que se pode e deve reconhecer como trabalho, no meio de toda
aquela riqueza de atividades para as quais o homem tem capacidade e
está predisposto pela própria natureza, em virtude da sua humanidade.
(...) o homem (...) desde o princípio é chamado ao trabalho. O trabalho
é uma das características que distinguem o homem do resto das
criaturas, cuja atividade, relacionada com a manutenção da própria vida,
não se pode chamar trabalho; somente o homem tem capacidade para o
trabalho e somente o homem o realiza preenchendo ao mesmo tempo
com ele a sua existência sobre a terra. Assim, o trabalho comporta em si
uma marca particular do homem e da humanidade, a marca de uma
pessoa que opera numa comunidade de pessoas; e uma tal marca
determina a qualificação interior do mesmo trabalho e, em certo sentido,
constitui a sua própria natureza”
Karol Józef W.

APRESENTAÇÃO

A citação com a qual abrimos este artigo é uma provocação. Ela foi retirada da
Laborem Exercens ou Sobre o Trabalho Humano, encíclica escrita por João Paulo II3, o

1 Mestre em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e Doutorando em


Filosofia pela Universidade Federal de São Paulo. Contato: thiagoflion@hotmail.com.
2 Mestre em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e Doutorando em

Direitos Humanos pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Contato:


thiagoacmelo@gmail.com.
3 PAULO II, João. Carta Encíclica Laborem exercens (Sobre o trabalho humano, por ocasião do

nonagésimo aniversário da Rerum Novarum). São Paulo: Loyola, 1981. p.3-4..


[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016 159

Papa campeão do neoliberalismo. Sua exaltação ao trabalho como constituinte central


da natureza humana, no entanto, torna-a facilmente confundível com os textos de
diversos marxistas para os quais o caráter ontológico e a centralidade da categoria
“trabalho” permanecem como dogmas. Estes comumente interpretam “trabalho” como
uma espécie de a priori, um ponto que, sem ser questionado, constitui o lastro de
diversas correntes teóricas derivadas do pensamento de Marx. A tal concepção também
se filiam muitas organizações que se consideram revolucionárias e que reivindicam para
si o legado do grande revolucionário alemão. O trabalho é visto como uma categoria
ontológica formadora da humanidade; a essência que se encontra alienada “por fora”, o
que, por sua vez, nos conduziria à conclusão de que é necessária sua libertação do jugo
do capital para alcançarmos a emancipação humana. Diferenciam-se da visão de Karol
J zef Wo tyła por buscarem luta e não conciliação entre capital e trabalho, mas
compartilham todo o ponto de partida teórico que coloca trabalho como fundamento
atemporal da humanidade. Esta concepção do trabalho como espécie de a priori é que
aqui demonstraremos não fazer sentido.
Principalmente após o fim da União Soviética, vozes neoliberais se colocaram em
coro contra esta concepção para declarar o fim da categoria trabalho. Estas, no entanto,
viam o fim do trabalho como fim do modo tradicional de emprego por conta das novas
tecnologias de produção ou então como uma tendência futura decorrente da diminuição
da necessidade de trabalhar causada por estas novas tecnologias. No entanto, tais visões
de mundo jamais levaram em conta a dinâmica da produção capitalista assentada na
forma mercadoria. Na essência destas análises, está um relativismo e uma necessidade
de declarar que a concepção de Marx não mais explicaria o mundo atual, mirando,
assim, de forma mais ou menos consciente, o que imaginavam ser o cerne da teoria
marxiana. Estas perspectivas pós-modernas colaboram com o enfraquecimento da luta e
dos direitos dos trabalhadores ao impedirem a compreensão da exploração como
necessidade estrutural do sistema capitalista, sendo, por este lado, corretamente
repelidas pelos movimentos operários e por correntes teóricas marxistas.
É imperativo nesta introdução afirmar que este artigo não trata de nenhuma
destas perspectivas e nem de sua “renovação”, mas retoma o tema do fim do trabalho a
partir de uma concepção radicalmente diferente, originária em seu quadrante mais geral
das próprias análises e afirmações textuais de Marx. Entendemos que a crítica abaixo
[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016 160

desenvolvida não apenas não atenta contra as lutas dos trabalhadores mas as fortalece
ao despojá-la de seus preconceitos, facilitando a conjugação de forças com objetivos
emancipatórios em torno do fim comum: a superação do capitalismo e o
estabelecimento de uma sociedade emancipada. Deste modo, o fim do trabalho não
aparece como retórica que visa afirmar a vitória eterna da economia mercantil, mas
antes como condição necessária para a superação desta forma de relação social.
Antes de entrarmos nesta crítica da categoria trabalho, é necessário, no entanto,
contextualizá-la brevemente na teorização de Marx. Este apresenta um aspecto
contraditório em seu trato da questão: por vezes em seus escritos a categoria trabalho
aparece como atividade produtiva consciente e, portanto, atemporal, enquanto em
outras vezes ele aparece como uma categoria histórica e negativa que estaria fadada a
desaparecer. Esta contextualização firmemente apoiada em citações de Marx será feita
nos três primeiros subtítulos deste trabalho, trazendo a vantagem de ajudar o leitor
apegado à leitura tradicional a despir-se de seus preconceitos para que possa dar devida
atenção à análise categorial que se mostrará a seguir, análise esta possibilitada
principalmente pelos desenvolvimentos da assim chamada “Nova Crítica do Valor”. Esta
análise da categoria trabalho inicia-se no quarto subtítulo e constitui ela mesma um
artigo que poderá ser lido independentemente, visto que toda a fundamentação básica
da crítica lá se encontra numa linguagem simplificada. Esta opção visa unicamente
facilitar a leitura àquele menos familiarizado com o tema ou com menos tempo para o
estudo, mas traz consigo o inconveniente de não apresentar as passagens analisadas nos
subtítulos anteriores e nem as conclusões mais profundas alcançadas nos posteriores.
No quinto subtítulo tratamos brevemente do surgimento conjunto, tanto do
ponto de vista histórico quanto do ponto de vista lógico, do trabalho e de muitas das
demais categorias fundamentais de nossa atual realidade – o que as revela como
categoria própria de sociedades onde a forma mercantil já se instalou como modo de
relação social. No sexto subtítulo, penetramos de modo igualmente breve em questões
mais complexas que relacionam elementos diversos como o fim do trabalho e das
categorias sociais surgidas a partir da produção mercantil, a crise atual e a noção de
abstração real. Esta parte é certamente a mais complicada de todo este artigo, mas
também a que carrega conclusões de maior alcance.
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I – O trabalho como atividade consciente produtora de valores de uso

De todas as passagens em que Marx trata do trabalho, aquela do início do


capítulo V de O Capital é a mais conhecida e também a que mais tem sido utilizada
pelos pensadores marxistas. Ela traz a base da interpretação clássica que o marxismo faz
da categoria trabalho, e é necessário que desde o princípio alertemos sobre nossa visão
quanto a ela, para evitar as interpretações distorcidas. Lá Marx escreve que:

A produção de valores de uso ou bens não muda sua natureza geral por
se realizar para o capitalista e sob seu controle. Por isso, o processo de
trabalho deve ser considerado de início independentemente de qualquer
forma social determinada. Antes de tudo, o trabalho é um processo entre
o homem e a Natureza, um processo em que o homem, por sua própria
ação, media, regula e controla seu metabolismo com a natureza. Ele
mesmo se defronta com a matéria natural como uma força natural. Ele
põe em movimento as forças naturais pertencentes à sua corporalidade,
braços e pernas, cabeça e mão, a fim de apropriar-se da matéria natural
numa forma útil para sua própria vida. Ao atuar, por meio desse
movimento, sobre a Natureza externa a ele e ao modificá-la, ele
modifica, ao mesmo tempo, sua própria natureza. Ele desenvolve as
potências nela adormecidas e sujeita o jogo de suas forças a seu próprio
domínio. Não se trata aqui das primeiras formas instintivas, animais, de
trabalho. O estado em que o trabalhador se apresenta no mercado como
vendedor de sua própria força de trabalho deixou para o fundo dos
tempos primitivos o estado em que o trabalho humano ainda não se
desfez de sua primeira forma instintiva. Pressupomos o trabalho numa
forma em que pertence exclusivamente ao homem. Uma aranha executa
operações semelhantes às do tecelão, e a abelha envergonha mais de um
arquiteto humano com a construção dos favos de suas colméias. Mas o
que distingue, de antemão, o pior arquiteto da melhor abelha é que ele
construiu o favo em sua cabeça, antes de construí-lo em cera. No fim do
processo de trabalho obtém-se um resultado que já desde o início deste
existiu na imaginação do trabalhador, e, portanto, idealmente. Ele não
apenas efetua uma transformação da forma da matéria natural; realiza,
ao mesmo tempo, na matéria natural seu objetivo, que ele sabe que
determina, como lei, a espécie e o modo de sua atividade e ao qual tem
de subordinar sua vontade4.

Marx aqui coloca a distinção entre o trabalho instintivo, dos animais, e o trabalho
humano como atividade consciente, ou seja, orientada por um objetivo anteriormente

4 MARX, Karl. O Capital: Critica da Economia Política, volume 1. São Paulo: Abril Cultural, 1983, p. 149-
150.
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idealizado. A consciência do que se produz é a diferença entre as formas instintivas e a


forma humana de trabalho. De fato, se considerarmos “trabalho” a pura produção de
valores de uso, temos que colocar dentro deste conceito os favos produzidos pela abelha
e a teia da aranha. A atividade dos animais igualmente produz valores de uso para eles,
possibilita sua “síntese” com a natureza, mas esta produção não está submetida a uma
consciência, ao pensamento orientado. Aqui residiria a diferença básica entre o trabalho
dos seres humanos e dos animais. Assim, Marx, nesta passagem acima, acaba por
definir trabalho humano como produção de valores de uso (também comum aos
animais) conjugada com a consciência (própria do homem). O trabalho humano, assim
definido, seria então atividade produtiva consciente, isto é, ligada a um objetivo
idealmente planejado, que, após realizado, abre caminho para subsequentes avanços na
produção e na própria consciência.
É por esta própria relação entre produção e consciência que o homem se
desenvolve. Ao se ampliarem as possibilidades de produção se ampliam as de
consciência, num ciclo em que alterando a natureza externa altera-se a natureza interna,
desenvolvendo as potências dormentes do saber humano ao desenvolver as que estavam
adormecidas no mundo externo. É importante deixar claro que não discordamos desta
posição que relaciona o avançar conjunto de produção e consciência; ao contrário, a
defendemos e também a reivindicamos como nossa. Mas não é este o ponto que aqui se
coloca sob questão.
O debate só surge ao chamarmos esta relação entre produção e consciência de
trabalho. Há muitas razões, que serão apresentadas neste artigo, para crer que este
termo não é correto para descrever a atividade produtiva consciente e isto não por uma
razão meramente nominalista. Não tratamos aqui de uma discussão banal preocupada
com uma correção da nomenclatura. Ao contrário, ela se apega à crítica da concepção
corrente de trabalho de forma a mostrar como esta concepção constitui uma
mistificação, um termo que permite ocultar questões contraditórias muito complexas e
que assim permanecem latentes.
Como na psicanálise, a crítica deve devolver ao marxismo sua própria imagem
refletida e mostrar-lhe “tu és isto” para que possa se livrar dos estreitos limites no qual
seu ser se confinou. Deve, como disse Marx, “forçar essas relações petrificadas a dançar,
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entoando a elas sua própria melodia!”5 e assim mostrar o descompasso entre o conceito
e a crença no conceito, descompasso esse que revela que a fixação na categoria trabalho
não é outra coisa senão o ponto nodal a partir do qual o fetichismo da mercadoria
dominou o marxismo.

II - Marx e suas afirmações do trabalho como limitação da atividade

A concepção de trabalho como “atividade produtiva consciente” não é a única


presente em Marx. Nele também se coloca uma concepção negativa do trabalho, tratado
como mais uma categoria histórica limitadora do potencial humano e fadada a
desaparecer. Aqui cabe demonstrar que esta concepção não é acidental, mas abrange
quase todo o desenvolvimento teórico de Marx. Desde ao menos A Ideologia Alemã,
escrita quando Marx tinha por volta de 30 anos, passando por toda sua maturação ao
escrever os Grundrisse e chegando a seus últimos escritos como a Crítica do Programa
de Gotha, há passagens que desautorizam a utilização da noção de trabalho como algo
presente na definição do ser social em si, como algo próprio à humanidade para todo
sempre. Para dar início a esse breve percurso pela obra de Marx, transcrevamos uma
parte da Ideologia Alemã em que ele afirma diretamente o “fim do trabalho”, assim
considerado, sem qualquer outra qualificação:

Os indivíduos singulares formam uma classe somente na medida em que


têm que promover uma luta contra uma outra classe; de resto, eles
mesmos se posicionam uns contra os outros, como inimigos, na
concorrência. Por outro lado, a classe se autonomiza, por sua vez, em
face dos indivíduos, de modo que estes encontram suas condições de
vida predestinadas e recebem já pronta de classe a sua posição na vida e,
com isso, seu desenvolvimento pessoal; são subsumidos a ela. É o
mesmo fenômeno que o da subsunção dos indivíduos
singulares à divisão do trabalho e ele só pode ser suprimido
pela superação da propriedade privada e do próprio trabalho.6

Esta passagem é de causar grande estranheza a qualquer defensor da “ontologia


do trabalho”, tanto pela identificação do trabalho com a propriedade privada, que
devem ser extintos conjuntamente, como por sua definição quanto ao indivíduo

5 MARX, Karl. Crítica da Filosofia do Direito de Hegel – Introdução. São Paulo: Boitempo, 2010, p. 148.
6 MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã. São Paulo: Boitempo, 2007, p. 63, grifo nosso.
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pertencente a uma classe, que assim só se comporta enquanto classe pela necessidade de
luta. A noção pré-definida de um indivíduo pertencente à classe trabalhadora parece
aqui ser suplantada por uma definição circunstancial de luta, conceito mais amplo e de
menor rigidez do que o costumeiramente utilizado. Para alguns talvez seja possível
tomar esta passagem, apesar de sua clareza, como erro ou descuido de Marx. Ocorre que
esta, no entanto, não se trata de uma passagem isolada, como podemos ver
anteriormente na mesma obra, quando Marx e Engels tratam da oposição entre cidade e
campo:

A oposição entre cidade e campo só pode existir no interior da


propriedade privada. É a expressão mais crassa da subsunção do
indivíduo à divisão do trabalho, a uma atividade determinada, a ele
imposta – uma subsunção que transforma uns em limitados animais
urbanos, outros em limitados animais rurais e que diariamente reproduz
a oposição entre os interesses de ambos. O trabalho é, aqui,
novamente o fundamental, o poder sobre os indivíduos e
enquanto existir esse poder tem de existir a propriedade
privada7.

Mais uma vez a identificação negativa do trabalho como tal, ou seja, sem
ressalvas, com a propriedade privada. O mesmo se dá em outra parte, onde Marx diz
sobre a concorrência entre Estados Nacionais que “Essas diferentes formas são outras
tantas formas da organização do trabalho e, assim, da propriedade”8. Frente a essas
citações todas se poderia ainda querer argumentar, mas não sem forçar a interpretação,
que Marx está implicitamente criticando a divisão e organização do trabalho e não o
trabalho enquanto trabalho. Neste sentido, no entanto, a passagem abaixo suprime
qualquer dúvida:

Por meio da divisão do trabalho, já está dada desde o princípio a divisão


das condições de trabalho, das ferramentas e dos materiais, o que gera a
fragmentação do capital acumulado em diversos proprietários e, com
isso, a fragmentação entre capital e trabalho, assim como as diferentes
formas de propriedade. Quanto mais se desenvolve a divisão do trabalho
e a acumulação aumenta, tanto mais aguda se torna esta fragmentação.

7 MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. Op. Cit., p. 52, grifo nosso.
8 De modo menos claro encontramos na mesma página “A grande indústria torna insuportável para o
trabalhador não penas a relação com o capitalista, mas sim o pr prio trabalho”. MARX, Karl & ENGELS,
Friedrich. Op. Cit., p. 61.
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O próprio trabalho só pode subsistir sob o pressuposto dessa


fragmentação.9

A concepção que aponta para a historicidade do trabalho o faz não somente


baseando-se no desenvolvimento das forças produtivas, como geralmente se pensa, mas
em conjunto com o questionamento do próprio conceito do que seja trabalho. Aqui a
análise de Marx, apesar de não levar o tema até suas últimas consequências, aproxima-
se muito da crítica categorial que será apresentada mais a diante. Nela é importante
analisar conjuntamente os aspectos, a atividade produtiva por si e a forma social
específica pela qual esta atividade é levada à frente, bem como a projeção social desta
atividade em um conceito. Neste sentido o trabalho não é identificado com a atividade
consciente de produção em geral, mas sim com uma forma específica de uma fase
histórica determinada.
O pressuposto básico para existência do trabalho, como o jovem Marx já
percebia, é a fragmentação social da atividade humana. O trabalho é a própria divisão
do trabalho, ou seja, a atividade produtiva só adquire a forma de trabalho quando ela
está submetida à divisão, quando se torna esfera separada e autonomizada face ao todo.
Como veremos mais adiante, isto só é possível a partir do desenvolvimento da relação
mercadoria. Por isso, o trabalho encarna aqui dois aspectos: ele é, ao mesmo tempo, a
forma possível da atividade produtiva nesta etapa histórica e a negação da plenitude
da atividade produtiva, isto é, seu confinamento dentro dos estreitos limites
capitalistas. É forma limitada da atividade, não a atividade em si. Sobre isso trata
Marx ao falar da abstratificação dos indivíduos a partir da abstratificação dos laços
sociais (intercâmbio) entre eles:

O trabalho, único vinculo que os indivíduos ainda mantém com as forças


produtivas e com sua própria existência perdeu para eles toda a
aparência de autoatividade e só conserva sua vida definhando-a.
Enquanto em períodos precedentes a autoatividade e a produção da vida
material estavam separadas pelo único fato de que elas incumbiam a
pessoas diferentes e que a produção da vida material, devida à limitação
dos próprios indivíduos, era concebida ainda como uma forma inferior
de autoatividade, agora a autoatividade e a produção da vida
material se encontram tão separadas que a vida material
aparece como a finalidade, e a criação da vida material, o

9 MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. Op. Cit., p. 72, grifo nosso.
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trabalho (que é, agora, a única forma possível, mas, como


veremos negativa, da autoatividade), aparece como meio.10

O trabalho nesta passagem é firmemente afirmado como negatividade, como


negação da autoatividade em sua plenitude. Os “períodos precedentes” de que trata
Marx são as sociedades da antiguidade clássica, onde os cidadãos mantinham a
autoatividade na forma de engrandecimento humanístico e cultural, a produção
concebida de maneira mais ampla, mas desvinculada da produção da vida material, a
qual estavam obrigados os escravos11. Esta abordagem do trabalho como existência
negativa da atividade no capitalismo é mantida pelo Marx maduro anos depois, como
podemos confirmar da leitura do Grundrisse:
(...) como aspiração incansável pela forma universal de riqueza, o capital
impele o trabalho para além dos limites de sua necessidade natural e cria
assim os elementos naturais para o desenvolvimento da rica
individualidade, que é tão universal em sua produção quanto em seu
consumo, e cujo trabalho, em virtude disso, também não
aparece mais como trabalho, mas como desenvolvimento
pleno da própria atividade, na qual desapareceu a necessidade
natural em sua forma imediata; porque uma necessidade histórica
produzida tomou o lugar da necessidade natural.12

Podemos por toda a obra de Marx coletar passagens semelhantes, mas talvez a
mais clara e detalhada afirmação do trabalho como negatividade derivada e criadora da
propriedade privada se encontra na crítica que o jovem Marx faz à Friedrich List:

O que é estabelecido, por exemplo, pelos salários? A vida do trabalhador.


Além disso é estabelecido assim que o trabalhador é escravo do capital,
que ele é uma “mercadoria”, um valor de troca, que o nível mais elevado
ou menos elevado, que o aumento ou queda, depende da concorrência,
da oferta e da demanda; é estabelecido assim que sua atividade não é
uma livre manifestação de sua vida humana, que é, ao contrário, uma
usurária venda de suas forças, uma alienação (venda) para o capital de
suas habilidades unilateralmente desenvolvidas, em uma palavra, isto é
“trabalho”. Pessoas se esquecem disso. “Trabalho” é a base viva da
propriedade privada, é a propriedade privada como fonte criativa de si
mesma. Propriedade privada não é nada mais que trabalho objetivado.
Se se quiser desferir um golpe mortal na propriedade privada, deve-se

10 MARX, Karl et ENGELS, Friedrich. Op. Cit., p. 72-73, grifo nosso.


11 Vale destacar que a própria autoatividade a que se refere Marx era por si já limitada, vez que
desvinculada necessariamente da produção material.
12 MARX, Karl. Grundrisse. (Manuscritos econômicos de 1857-1858 – Esboços da crítica da economia

política). São Paulo: Boitempo; Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2011, p. 255-256, grifo nosso.
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atacar isto não apenas como um estado material das coisas, mas também
como atividade, como trabalho. É um dos maiores mal-entendidos falar
de um trabalho humano livre, social, trabalho sem propriedade privada.
“Trabalho” em sua essência é não-livre, inumano, atividade não social,
determinado pela propriedade privada e criador da propriedade privada.
Por isso a abolição da propriedade privada será realidade apenas quando
for concebida como a abolição do “trabalho” (uma abolição a qual, claro,
se tornou possível como resultado da atividade material da sociedade e a
qual deve de modo algum ser concebida como a substituição de uma
categoria pela outra). Uma “organização do trabalho”, assim, é uma
contradição. A melhor organização que o trabalho pode dar é a presente
organização, livre competição, a dissolução de todas suas aparentemente
anteriores “organizações” sociais13.

Qualquer uma das passagens acima deve já ser suficiente para que o marxista
apegado à categoria trabalho comece a se questionar sobre este pressuposto, esse a
priori do qual parte. Nesta específica citação da crítica ao List, a crítica poderia se dirigir
diretamente a qualquer uma das organizações que se consideram “revolucionárias” e
que dirigem toda sua atividade a partir deste que é, nas palavras do próprio Marx, um
dos “maiores mal-entendidos”.
Como veremos no próximo ponto, em passagens do Grundrisse, Marx retoma a
interpretação do trabalho como categoria histórica e em uma delas até desenvolve os
contornos essenciais de uma crítica categorial ao trabalho. Aqui, no entanto, apenas

13 A clareza da posição de Marx neste texto contrastando com a edição em Inglês com glosas do Partido
Comunista, que se vê obrigado a “interpretar” esta passagem de Marx no sentido de que ele falaria
apenas do trabalho alienado, obrigam-nos a trazer o original em alemão, para afastar qualquer dúvida
de tradução:„Was setzt man z. . mit dem Arbeitslohn fest? Das Leben der Arbeiter. Man setzt weiter
damit fest, dass der Arbeiter der Sklave des Kapitals, dass er eine „Ware” ist, ein auschwert, dessen
höherer oder niedrigerer Stand, Steigen oder Fallen, von der Konkurrenz, von der Nachfrage und Zufuhr
abhängt, man setzt damit fest, dass seine Tätigkeit nicht eine freie Äußerung seines menschlichen
Lebens, dass sie vielmehr ein Verschachern seiner Kräfte, eine Veräußerung (Verschacherung)
einseitiger Fähigkeiten desselben an das Kapital, mit einem Wort, dass sie „Arbeit” ist. Man vergesse es
nun. Die „Arbeit” ist die lebendige Grundlage des Privateigentums, das Privateigentum als die
schöpferische Quelle seiner selbst. Das Privateigentum ist nichts als die vergegenständlichte Arbeit.
Nicht allein das Privateigentum als sachlichen Zustand, das Privateigentum als Tätigkeit, als Arbeit,
muss man angreifen, wenn man ihm den Todesstoß versetzen will. Es ist eines der größten
Missverständnisse, von freier, menschlicher, gesellschaftlicher Arbeit, von Arbeit ohne Privateigentum
zu sprechen. Die „Arbeit” ist ihrem Wesen nach die unfreie, unmenschliche, ungesellschaftliche, vom
Privateigentum bedingte und das Privateigentum schaffende Tätigkeit. Die Aufhebung des
Privateigentums wird also erst zu einer Wirklichkeit, wenn sie als Aufhebung der „Arbeit” gefasst wird,
eine Aufhebung, die natürlich erst durch die Arbeit selbst möglich geworden ist, d. h. durch die
materielle Tätigkeit der Gesellschaft möglich geworden, und keineswegs als Vertauschung einer
Kategorie mit einer andern zu fassen ist. Eine „ rganisation der Arbeit” ist daher ein Widerspruch. Die
beste Organisation, welche die Arbeit erhalten kann, ist die jetzige Organisation, die freie Konkurrenz,
die Aufl sung aller frühern scheinbar „gesellschaftlichen” rganisationen derselben. MARX, Karl. Über
F. Lists uch „Das nationale System der politischen Ökonomie”. 1845, disponível em
http://www.marxists.org/deutsch/archiv/marx-engels/1845/list/flist.htm. Acessado em 17/02/2016.
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para fecharmos este ponto que visa tão simplesmente demonstrar que a compreensão de
Marx sobre o trabalho não se reduzia a uma ontologização deste último, vale trazer uma
passagem por ele escrita em seus últimos anos. Assim também se evita qualquer
argumentação de que ele em algum momento após o início dos Grundrisse tenha
“descoberto” o trabalho como categoria trans-histórica. Em 1875, Marx escreve a Crítica
ao Programa de Gotha, uma carta endereçada para os líderes do partido social
democrata de Eisenach, onde Marx critica, muitas vezes de maneira irônica, o programa
que por eles seria proposto para se fundir com os lassalianos. Tal programa contém uma
passagem onde se lê que “a emancipação do trabalho tem que ser obra da classe
operária, diante da qual todas as demais classes não constituem senão uma massa
reacionária”, e a qual Marx comenta debochadamente como segue abaixo, mostrando o
quão tola para ele é a ideia de que o fim revolucionário seja “emancipar o trabalho”:

A primeira estrofe foi tomada do preâmbulo dos estatutos da Internacional,


mas, “corrigida”. Ali se diz “a emancipação das classes trabalhadoras deverá ser
conquistada pelas próprias classes trabalhadoras”; aqui, pelo contrário, “a classe
operária “tem que emancipar a quem? “Ao trabalho”. Entenda-o quem puder!14

III - Marx e o esboço de uma crítica categorial ao trabalho

Como dissemos acima, em pelo menos uma passagem dos Grundrisse, uma
especialmente longa, Marx delineia alguns dos aspectos essenciais de uma crítica
categorial do trabalho. Esta passagem, de difícil compreensão, será analisada
cuidadosamente neste ponto, visando evidenciar seu significado. Enfatizamos desde já
que as citações utilizadas daqui para frente constituem um texto contínuo, uma
começando onde termina a anterior, sem supressões. Sua primeira parte é muito
significativa, referindo-se diretamente ao tema a ser tratado:

O trabalho parece uma categoria muito simples. A representação do


trabalho nessa universalidade – como trabalho em geral – também é
muito antiga. Contudo, concebido economicamente nessa simplicidade,

14 MARX, Karl. “Crítica ao Programa de Gotha” in Karl Marx e Friedrich Engels, Textos, Vol. 1. São Paulo:
Edições Sociais, 1977, p. 233.
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o “trabalho” é uma categoria tão moderna quanto as relações que geram


esta simples abstração.15

Aqui Marx chama a atenção para a enganadora simplicidade em que a categoria


trabalho se mostra. Afirma que, apesar da noção de trabalho ser muito antiga, sua
concepção econômica nesta simplicidade é moderna 16, tal como as relações que a
geram. Este ponto é fundamental para a análise a seguir. Marx aqui explicitamente
declara que a expressão conceitual de trabalho – a noção mesma de “trabalho” – deriva
de relações sociais que geram esta simples abstração. Assim se coloca uma identidade
entre a realidade social e o conceito econômico, este só se tornando possível quando
determinada relação surge. A noção de trabalho se forma a partir de uma determinada
realidade social, a partir de determinadas relações práticas entre os indivíduos; o ideal
(esse abstrato derivado das relações humanas) corresponde ao real. A dialética
hegeliana aqui se mostra claramente, há uma identidade entre o ideal e real, entre o
sujeito e o objeto e uma categoria do pensamento corresponde a determinadas relações
práticas. Na citação a seguir, Marx continua, demonstrando como a própria categoria
trabalho se cristaliza na relação entre o desenvolvimento histórico e o desenvolvimento
das teorias econômicas:
O sistema monetário, por exemplo, põe a riqueza ainda muito
objetivamente como coisa fora de si no dinheiro. Em relação a esse ponto
de vista, houve um enorme progresso quando o sistema manufatureiro
ou comercial transpôs a fonte de riqueza do objeto para a atividade
subjetiva – o trabalho manufatureiro e comercial –, embora concebendo
ainda essa própria atividade sob a forma estreita do simples ganhar
dinheiro. Em contraste com esse sistema, o fisiocrático põe determinada
forma de trabalho – agricultura – como a forma criadora da riqueza e
põe o próprio objeto não mais sob o disfarce do dinheiro, mas como
produto em geral, como resultado universal do trabalho. Tal produto,
dado o caráter limitado da atividade é ainda determinado pela natureza
– produto da agricultura, produto da terra ‘por excelência’. 17

O sistema monetário do qual Marx aqui fala é o mercantilismo e não o


monetarismo neoliberal de Stigler e Friedman – e nem o sistema monetário meramente
concebido como sistema de moeda de dado país. O mercantilismo foi o primeiro

15 MARX, Karl. Grundrisse. Op. Cit., p. 57.


16 Sobre a afirmação da “representação do trabalho nessa universalidade” ser “muito antiga” e seu caráter
problemático, trataremos mais à frente.
17 MARX, Karl. Grundrisse. Op. Cit., p. 57.
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conjunto de teorias econômicas da modernidade, que acreditava que a acumulação de


metais preciosos é que tornava a economia próspera, acreditava que a riqueza originava-
se do acúmulo de dinheiro, de moeda, ainda em sua forma metálica de ouro e prata. As
palavras de Marx são no sentido de que aqui a riqueza ainda era vista como algo próprio
do dinheiro, do metal precioso acumulado, que valeria por si. Só com o maior
desenvolvimento do comércio e da manufatura, e assim com a percepção da importância
destas atividades, pode-se perceber, principalmente na Inglaterra, que a fonte da
riqueza não era o próprio dinheiro, o próprio metal em sua objetividade, mas a atividade
do sujeito, o trabalho no comércio e na manufatura. Os fisiocratas, em oposição,
entendem apenas uma atividade como geradora de riqueza, a agricultura, o que é
compreensível quando lembramos que a fisiocracia é francesa e que a França se
encontrava ainda muito atrasada em relação à Inglaterra quanto ao desenvolvimento do
comércio e da manufatura. A agricultura era ainda a atividade econômica por excelência
e no seu produto exclusivo é projetada a função criadora de riqueza abstrata, de valor.

Foi um imenso progresso de Adam Smith descartar toda


determinabilidade da atividade criadora de riqueza – trabalho
simplesmente, nem trabalho manufatureiro, nem comercial, nem
agrícola, mas tanto um como os outros. Com a universalidade abstrata
da atividade criadora de riqueza tem-se agora igualmente a
universalidade do objeto determinado como riqueza, o produto em geral,
ou ainda o trabalho em geral, mas como trabalho passado, objetivado. O
fato de que o próprio Adam Smith ainda recai ocasionalmente no
sistema fisiocrata mostra como foi difícil e extraordinária esta
transição.18

O próximo passo para formar a economia como uma ciência é considerar o


trabalho em si, trabalho puro e simples, como atividade criadora de riqueza, e com isso
igualmente considerar o produto em si, puro e simples, como riqueza. Há uma relação
entre a abstração das qualidades específicas de cada forma de trabalho como simples
“trabalho” e a abstração das utilidades dos diferentes produtos como “valor”. Assim,
todas as coisas materialmente diferentes se tornam coisas igualmente trocáveis, coisas
qualitativamente iguais, enquanto ao mesmo tempo todas as diferentes atividades
produtivas do homem com a natureza, seja fazer comércio, cultivar a terra ou tecer

18 MARX, Karl. Grundrisse. Op. Cit., p. 57.


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aparecem como “trabalho” que produz “valor”. Como todos os valores de uso diferentes
entre si se resumem na abstração do valor, todas as diferentes atividades produtivas se
resumem na abstração trabalho. É por isso que Marx continua:

Poderia parecer que, com isso, apenas fora descoberta a expressão


abstrata para a relação mais simples e mais antiga em que os seres
humanos – seja qual for a forma de sociedade – aparecem como
produtores. Por um lado isso é correto. Por outro, não. A
indiferença diante de um determinado tipo de trabalho pressupõe uma
totalidade muito desenvolvida de tipos efetivos de trabalho, nenhum dos
quais predomina sobre os demais. Portanto, as abstrações mais gerais
surgem unicamente com o desenvolvimento concreto mais rico. Ali onde
um aspecto aparece como comum a muitos, comum a todos. Nesse caso,
deixa de poder ser pensado exclusivamente em uma forma particular.
Por outro lado essa abstração do trabalho em geral não é apenas o
resultado mental de uma totalidade concreta de trabalhos. A indiferença
em relação ao trabalho determinado corresponde a uma forma de
sociedade em que os indivíduos passam com facilidade de um trabalho a
outro, e em que o tipo determinado do trabalho é para eles contingente
e, por conseguinte, indiferente. Nesse caso, o trabalho deveio não
somente enquanto categoria, mas na efetividade, meio para a criação da
riqueza em geral e, como determinação, deixou de estar ligado aos
indivíduos em uma particularidade19.

Na passagem acima Marx declara expressamente que, pelo menos por um lado, o
trabalho não pode ser considerado apenas uma expressão abstrata, conceitual, para a
relação mais simples em que o homem aparece como produtor. Para surgir o conceito
abstrato de trabalho desvinculado de qualquer atividade concreta, é necessário que a
própria sociedade tenha se abstratificado de forma que um aspecto seja comum a todas
as atividades produtivas concretas. Como dito na parte citada anteriormente, a
igualdade entre estas atividades é a própria produção de riqueza abstrata, a própria
produção de valor. É só quando todas as atividades estão submetidas a esta igualdade de
produzirem valor que elas podem igualmente ser consideradas dentro da mesma
categoria. A noção abstrata de trabalho e a noção abstrata de valor surgem em conjunto
com a realidade de uma sociedade em que toda a atividade produtiva se submete à
produção de valor, tornando-se, assim, apesar de suas enormes diferenças práticas, a
mesma atividade abstrata, o trabalho. Abstração aqui a dizemos no sentido de
“abstrair”, de se desvincular de suas formas concretas, como acontece com o trabalho

19 MARX, Karl. Grundrisse. Op. Cit., p. 57-58, grifo nosso.


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de um carpinteiro e de um gerente de marketing, quando entendidos como puramente


trabalho.
Aqui o capitalismo então finalmente se afirma por cima do privilégio da nobreza e
da servidão, por cima dos sistemas de castas, e todo o trabalho se coloca como igual do
ponto de vista qualitativo, toda atividade materialmente diferenciada que produza
riqueza abstrata aparece como um abstrato que as reúne, não importa quão diferentes
sejam entre si. Esta também é a base da igualdade abstrata entre os indivíduos agora
abstratamente convertidos em sujeitos de direito. Isso corresponde igualmente à
submissão de todas as atividades a um só fim, o de produzir mais valor, produzir riqueza
em sua forma numérica, abstrata e indiferenciada. Deste modo, a atividade produtiva
concreta se torna indiferente, pois não importa mais como produção determinada de,
por exemplo, tecidos ou de alimentos, mas apenas como produção de valor abstrato que
se dá apenas por meio da produção de tecidos e alimentos. Para finalizar esta passagem,
Marx fala sobre o estágio máximo de desenvolvimento da categoria trabalho, nos EUA
de sua época:

Um tal estado de coisas encontra-se no mais alto grau de


desenvolvimento na mais moderna forma de existência da sociedade
burguesa – os Estados Unidos. Logo, só nos Estados Unidos a abstração
da categoria “trabalho”, “trabalho em geral”, trabalho “puro e simples”, o
ponto de partida da economia moderna, devém verdadeira na prática.
Por conseguinte, a abstração mais simples, que a economia moderna
coloca no primeiro plano e que exprime uma relação muito antiga e
válida para todas as formas de sociedade, tal abstração só aparece
verdadeira na prática como categoria da sociedade mais moderna20.

Na prática, a categoria “trabalho”, que aparece enganadoramente como uma coisa


simples, só surge verdadeiramente quando se desenvolve a sociedade capitalista
moderna, quando a abstração da riqueza e da atividade produtiva se realizou, quando a
forma mercadoria estendeu seu domínio a todas as áreas da vida social. Esta análise de
Marx, no entanto, guarda dois principais inconvenientes: não coloca a questão de
maneira direta (chegando mesmo a ser contraditória, p. ex em relação à representação
do trabalho numa generalidade ser muito antiga, como veremos) e não a leva ao seu

20 MARX, Karl. Grundrisse. Op. Cit., p. 57-58.


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limite21. Deste modo, ainda que ela forneça o enquadramento geral da crítica categorial
ao trabalho, não chega a extrair de sua própria análise suas consequências últimas e
mais radicais. Também, por não ir diretamente ao ponto, dificulta o entendimento da
historicidade da categoria trabalho. No entanto, depois de se ler as passagens acima não
há como dizer sem vacilar que Marx considerava o trabalho como categoria ontológica.
Demolido o preconceito, é hora de começar a análise.

IV - “Nova Crítica do Valor” e crítica categorial do trabalho

Como afirmamos na introdução deste artigo, este subtítulo pode ser lido
separadamente por conter o núcleo da argumentação colocado de forma mais acessível.
Os subtítulos anteriores analisam diferentes passagens em que Marx trata do trabalho
para mostrar que, por vezes, ele afirma expressamente seu fim – demonstrando assim
que o tratamento “ontológico” do trabalho não é o único em sua obra. Já os subtítulos
posteriores aprofundam as conclusões aqui obtidas. A decisão de tornar essa parcela do
artigo possível de se ler separadamente visa facilitar ao leitor as conclusões mais gerais.
Recomendamos, no entanto, para aqueles que desejam se aprofundar, testar os
pressupostos e alcançar as conclusões mais radicais da análise, a leitura integral do
artigo.
Quanto a esta parte, é interessante começarmos asseverando que a análise que se
desenvolverá é uma análise da categoria trabalho. Com isso queremos dizer que não
estamos analisando o trabalho apenas do ponto de vista conceitual (a ideia de trabalho)
e nem meramente do ponto de vista “material” ou “empírico”, das técnicas,

21 Kurz diz sobre este trecho de Marx: “Marx aproxima-se aqui de uma crítica que ele próprio ainda não
leva até ao fim. Ele desenvolve (contrariamente à maioria dos marxistas) uma crítica radical da
abstracção real contida no conceito de trabalho moderno; mas em simultâneo mantém-se refém da
ontologia do trabalho protestante e iluminista, tal como a tinha inscrita nos seus estandartes o
movimento operário, surgido no mesmo contexto hist rico da sua teoria.” KURZ, Robert. A Substância
do Capital. Disponível em http://obeco.planetaclix.pt/rkurz203.htm, acesso em 17/02/2016. De fato a
distinção entre dois níveis contraditórios de análise pelo próprio Marx, um ligado à análise da
mercadoria e sua negatividade e outro operando por dentro das categorias capitalistas, são um dos
pilares da interpretação da teoria marxiana pela “nova crítica do valor”. Em relação a este “duplo”
caráter da abordagem de Marx em relação ao trabalho, ver DUAR E, Cláudio R. “A superação do
trabalho em Marx: em busca do tempo não-perdido”. Revista Sinal de Menos, Ano 1, nº 3, 2009.
Disponível em: http://www.sinaldemenos.org.
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equipamentos, forma e produtividade da atividade. Estamos analisando, ao mesmo


tempo, os dois pontos: o conceito que surge a partir da realidade social e a própria
realidade que é designada por este conceito. O ideal e o real aqui convergem e é daí que
surge toda a dificuldade deste tipo de abordagem, que tentará ser facilitada em sua
linguagem.
Comecemos a análise categorial com algumas perguntas que colocarão a questão
de maneira mais direta ao leitor: regar o seu próprio jardim é trabalho? passar um
creme em seu próprio rosto é trabalho? ouvir música é trabalho? e dar comida ao seu
animal de estimação? dar banho em seu filho? fazer sexo? e respirar, é trabalho? À
primeira vista pode parecer que estas perguntas são absurdas, mas pedimos que as
considerem por um momento. Como dizer quais destas atividades acima são trabalho e
quais não são? Estas questões tornam mais próxima a temática da análise categorial do
trabalho. Para respondê-las é necessário definir, delimitar e conceituar o que seja isso a
que chamamos de trabalho.
Pode-se argumentar que o trabalho serve à produção de coisas úteis ao ser
humano. Mas, alguém poderá negar que jardins, cremes, música, cuidado com animais
de estimação, banho, sexo, e respiração não sejam coisas úteis ao ser humano? A
utilização da coisa para fins humanos, ainda que estes fins sejam mero deleite estético é
o que Marx, na esteira dos economistas políticos, chamou de valor de uso. A definição
de que o trabalho seja uma atividade consciente que faz síntese com a natureza aqui
também se encontra definitivamente contemplada. Sabemos que pode, a princípio,
parecer estranho que algo simples como respirar possa produzir um valor de uso, mas
respirando o ser humano se apropria do oxigênio na natureza e é com ele em conjunto
com o alimento consumido que se produz energia e pode-se então viver. Respirar é de
fato uma forma bastante óbvia de “síntese com a natureza”. O alimento é
indubitavelmente um valor de uso, por que o oxigênio não seria? Lendo os clássicos
védicos encontramos ainda um extensivo manual sobre como nos alimentarmos bem do
prana, da energia vital que há no ar, por meio de técnicas que visam tornar consciente a
respiração. Considerando ainda atividades como natação e o mergulho e sua
dependência de um controle consciente da respiração, há de se considerar, ao menos
para estes casos, o ato de respirar como uma atividade consciente de síntese com a
natureza e assim, mantido o conceito ontológico do marxismo tradicional, de trabalho.
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Algumas pessoas não se importam com cremes ou plantas, outras também muito
justificadamente são contra o consumo de carne. Alguém dirá que produzir carne não é
trabalho? O fato de individualmente considerarmos algo importante ou não, não é o que
determina também o que seja a utilidade22 – isso está em dependência da totalidade das
interações da sociedade e nem sempre voltada para um fim específico discriminável.
Dizemos isso para mostrar que valor de uso é algo que não se pode definir
concretamente e nem restritivamente, pois como Marx mesmo diz, na primeira página
de O Capital, “a natureza dessas necessidades, se elas se originam do estômago ou da
fantasia, não altera nada na coisa”23, citando ainda, no mesmo ponto, Barbon: “Desejo
inclui necessidade, é o apetite do espírito e tão natural como a fome para o corpo (...) a
maioria (das coisas) tem seu valor derivado da satisfação das necessidades do espírito”.
Vejamos mais um exemplo banal, mas que ajuda sobremaneira entender a
complexidade do problema: uma vela serve para produzir luz – mas também para o
ritual que invoca entidades em rituais do Candomblé. Apesar dos espíritos não serem
algo concreto, nem por isso a utilização da vela para sua invocação deixa de ter uma
utilidade, ainda que seja uma de significação que alguns ateus poderiam considerar
“meramente cultural”.
Se tentarmos conceituar “trabalho” como produtor de valor de uso podemos,
assim, dizer que tudo é trabalho, mesmo respirar. Mas um conceito que serve a tudo não
serve a nada, uma vez que nada mais se diferencia dele. Como diz um dos expoentes da
“nova crítica do valor”, Anselm Jappe:

Só fazendo a identificação entre o “trabalho” e o metabolismo com a


natureza se poderá apresentar o trabalho como categoria suprahistórica
e eterna. Mas, trata-se então de uma tautologia. De um princípio tão
geral poderá deduzir-se tanto ou tão pouco quanto do princípio de que o
homem tem que comer para viver.24

22 David Ricardo no fechamento de sua grande obra á dizia que “Um con unto de gêneros de primeira
necessidade e de satisfações não pode ser comparado com outro conjunto; o valor de uso não pode ser
medido por nenhum padrão conhecido, pois cada um calcula o seu valor de maneira diferente”.
RICARDO, David. Princípios de Economia Política e Tributação. São Paulo: Abril, 1982, p. 284.
23 MARX, Karl. O Capital: Crítica da Economia Política. Op. cit., p. 45.
24 JAPPE, Anselm. As Aventuras da Mercadoria. (Para uma nova crítica do valor). Lisboa: Antígona,

2006, p. 110.
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Não há como fugir disso, pode-se virar e revirar como quiser, se trabalho é
produzir valor de uso de forma consciente, ou seja, alterar a natureza com fins humanos,
tudo que o humano fizer para si, ainda que seja simples divertimento, será trabalho. É
por isso que as pessoas que tentam conceituar “trabalho” se encontram sempre em
apuros, nunca chegando a um bom resultado, já que neste nível não é possível dar uma
resposta clara, coerente, não contraditória. Nestas discussões é uma constante recorrer
ao achismo de “penso que isso seja trabalho”, sempre sem conseguir resolver a questão
de maneira clara. Não há como achar um critério para o que seja utilidade humana,
valor de uso, pois a própria noção do que seja útil é socialmente desenvolvida nos
indivíduos – e não kantianamente como algo universalmente válido, abstratamente
comum a todos.
Até aqui nos movemos entre a questão conceitual do trabalho e a produção de
valores de uso – tão cara ao marxismo tradicional – o que, conforme se viu, não permite
a resolução da questão. Tratamos apenas da relação de trabalho como relação entre o
ser humano e a natureza para suprir suas necessidades, aquilo que geralmente se
considera ontológico – a necessidade de fazer a síntese. Não analisamos, no entanto, o
trabalho como relação social, como forma que a síntese toma em sua mediação na
sociedade. Para isso, precisamos nos voltar para o que há de social no processo de
produção, para a estrutura da sociedade que faz da produção uma totalidade por meio
da imposição de trabalho (ainda que haja liberdade de escolher para qual patrão
trabalhará) a cada um de seus membros.
Ao mesmo tempo, temos de nos desprender da concretude dos objetos
produzidos para sua significação abstrata social. Devemos olhar agora para a face
cintilante do dinheiro e das mercadorias, o valor (de troca) que se opõe ao valor de uso.
Segundo Marx, ele, diferentemente do valor de uso, não é algo próprio da coisa, mas
uma relação social projetada na coisa. Não é pela matéria, pelos átomos que compõe a
mercadoria que se estabelece seu valor; nenhum químico conseguiu e nem conseguirá
encontrar o valor de algo com um microscópio – pois ele não é uma característica da
própria matéria, mas sim algo puramente social projetado nela. Para compreendermos
como o valor é a projeção de uma relação social (e também a projeção que possibilita a
própria relação), é interessante comparar o valor com o que ocorre em uma sociedade
em que as relações sociais sejam completamente diferentes.
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Se, numa comunidade “primitiva”, um selvagem gasta em média cinco horas para
construir um arco, enquanto outros gastam em média 10 horas para caçar um antílope,
um antílope “vale” dois arcos nesta sociedade, certo? Não, errado. O arco e o antílope
não “valem” nada, por que no interior desta comunidade não há trocas. Os arcos vão
para quem vai caçar e o antílope será comido pela tribo. A determinação quantitativa
do valor como tempo de trabalho depende primeiramente da existência qualitativa do
valor como forma, ou seja, o valor só pode existir tendo como pressuposto a existência
de produtores separados que precisam trocar seus trabalhos. Sem isso não há troca, não
há valor, mas apenas produção e consumo coletivo. No interior da tribo a produção não
está submetida ao valor, pois como todos produzem coletivamente as relações não
projetam esta comparação abstrata dos produtos do trabalho. É fundamental se
compreender que o valor só pode existir a partir da fragmentação da produção social
entre diferentes produtores individuais.
O mesmo ocorre no interior da família moderna, no interior das relações de
parentesco não mediadas pelo dinheiro. Se, em uma família, a mãe cozinha o almoço, o
filho vai ao supermercado comprar os alimentos e o pai dá o dinheiro, isso significa que
uma hora que o filho gastou no supermercado “vale” o mesmo tanto de dinheiro que o
pai forneceu, que por sua vez “vale” as mesmas três horas que a mãe gastou cozinhando?
É evidente que não! A relação de esforço no interior da família não é diretamente a
comparação dos esforços produtivos, a sua igualação na troca de equivalentes. Enquanto
as pessoas não estão se encontrando em um mercado para trocar, o produto de seus
trabalhos não aparece sob a forma de valor, não adquire assim a forma de mercadoria25.
A forma de valor depende da relação de comparação abstrata que ocorre na troca.
Não é próprio da atividade produtiva gerar valor, mas apenas da atividade produtiva
privada que só se torna social por meio da troca, assumindo por isso um valor. Se a
produção é coletiva, o produto da atividade produtiva não aparece sob a forma
metafísica de valor, porque não há comparação dos esforços na troca. Que no
comunismo algumas coisas irão depender de determinado tempo de esforço humano,

25 O exemplo aqui da organização da família vale tão somente para ilustrar como no interior desta as
atividades de cada um não têm diretamente o caráter de valor. Mas, de outro modo, podemos dizer que
as atividades no interior da família moderna existem como o avesso, o lado oposto do valor, com a
divisão sexual das atividades também já definidas na origem mesma do valor, como bem sinaliza
Roswitha Scholz. Ver: SCH LZ, Roswitha. “ Valor é o Homem”. Exit! Online em Português: 1992.
Disponível em http://obeco.planetaclix.pt/rst1.htm. Acessado em 27 de setembro de 2015.
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seja físico ou intelectual, para sua produção, não resta nenhuma dúvida. A questão
debatida não está neste ponto, mas na própria forma social que estes produtos da
atividade humana tomam. No comunismo, não há de existir valor, pois não há trocas
mercantis, não há comparação abstrata dos produtos da atividade humana. O
comunismo é, toscamente dizendo, como uma colossal família, ninguém troca seu
esforço pelo esforço do outro, mas tão somente “cada um conforme suas capacidades,
para cada um conforme suas necessidades”26.
Voltando à questão do trabalho, falávamos que não é possível conceituar o que é a
utilidade ou valor de uso universalmente, conforme fins determinados, pois ele é
definido socialmente, isto é, pelas necessidades culturais daquela sociedade e dos
indivíduos que a compõe. Quando entramos na análise do valor a coisa muda
radicalmente de figura. Aqui conseguimos definir fins determinados, uma utilidade
objetivamente dada que é a de produzir valor. Falar que regar suas próprias flores é
trabalho pode parecer estranho, mas ninguém discutirá que um jardineiro que ganha
sua vida cuidando do jardim dos outros trabalha. Em termos de produção de valor de
uso, de síntese com a natureza, ambos são a mesma coisa27. A diferença é que a primeira

26 Marx previa que, no socialismo, essa solidariedade total não existiria, pois com o baixo nível de forças
produtivas ainda haveria escassez e com ela os “estreitos limites do direito burguês”. Uma contabilização
a partir do tanto de esforço produtivo de cada um deveria então existir, mas a forma mesma de valor já
não existira mais. Os esforços não seriam trocados, mas os limites da troca, a equivalência (a
comparação) que dela deriva e que é a base do direito continuaria a existir na forma de “trabalhou tanto,
merece tanto em produtos do trabalho”, mas sem ter de ir ao mercado, já que o que seria produzido por
cada um seria previamente acordado. Hoje, com uma revolução bem sucedida, mesmo este limite não
mais existiria, pois tecnologicamente já superamos a linha da escassez há algumas décadas. Ver MARX,
Karl. “Critica do Programa de Gotha”. p. Cit., p. 232-233.
27 Isaak Rubin foi talvez o primeiro na esteira de Marx que percebeu que a análise da noção de trabalho

produtivo leva em conta o objetivo colocado pela organização social e não a produção de utilidades
humanas assim consideradas. Como ele diz ao falar da abordagem dos economistas “o fator decisivo é o
conteúdo do trabalho, isto é, seu resultado, que usualmente é um objeto material para o qual está
dirigido o trabalho e é criado pelo mesmo. O problema abordado em Marx nada tem em comum com
este outro, exceto o nome. O trabalho produtivo, para Marx, significa: trabalho engajado no dado
sistema social de produção. Marx está interessado na questão de qual produção social se trata, de como
a atividade de trabalho das pessoas empenhadas no sistema de produção social difere da atividade de
trabalho das pessoas que não estão empenhadas na produção social (por exemplo, o trabalho voltado
para a satisfação de necessidades pessoais ou para o serviço doméstico). Qual o critério para que se
inclua a atividade laboriosa das pessoas na produção social, o que a torna trabalho “produtivo”?”
RUBIN, Isaak. A Teoria Marxista do Valor. São Paulo: Brasiliense, 1980, p. 279. Rubin, porém, além de
se manter nos limites do próprio Marx e não levar ao fim a critica categorial do trabalho, analisa o
trabalho como produtivo apenas do ponto de vista do capital, isto é, o trabalho que produz mais-valor e
assim aumenta o capital. Entretanto, é necessário também considerar o trabalho engajado no dado
sistema social de produção como produtivo do ponto de vista do intercâmbio de mercadorias. Na
produção simples de mercadoria, aquela que subsiste no capitalismo na forma de, por exemplo, trabalho
autônomo, produz-se valor, embora não se produza mais-valor. Deste modo é preciso considerar que a
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não entra no mercado, na comparação abstrata entre os esforços humanos, e a segunda,


sim, dando, por este motivo, origem a algo de significação puramente social. O produto
do esforço aqui aparece como valor e o esforço aparece como trabalho 28. O mesmo se dá
com uma esteticista que aplica cremes, a empregada do pet shop que alimenta animais
de estimação de outros, a funcionária de creche que alimenta os filhos dos outros, a
prostituta que vende sexo. Todos trabalham do ponto de vista do valor. Se estas
atividades fossem feitas sem gerar valor não seriam consideradas trabalho, mesmo que,
de uma forma ou de outra, elas produzam valores de uso tão intensos como um
orgasmo. Sobre isso nos fala Jappe, remetendo-se também para as duas formas em que
o trabalho se apresenta:
O “trabalho” é, ele mesmo um fenômeno histórico. Em sentido estrito, o
trabalho só existe nas circunstâncias em que existam o trabalho
abstracto e o valor. Não só no plano lógico, mas também em relação ao
trabalho “concreto” e “abstracto” são expressões que remetem uma para
a outra e que não podem existir uma independentemente da outra. É,
portanto, extremamente importante sublinhar que a nossa crítica atinge
o conceito de “trabalho” enquanto tal e não somente o “trabalho
abstracto”. Não se pode simplesmente opor entre si o trabalho abstracto
e o trabalho concreto, e ainda menos se pode opô-los como se um fosse o
“mal” e o outro o “bem”. O conceito de trabalho concreto é ele mesmo
uma abstração, porque nele se separa, no espaço e no tempo, uma certa
forma de actividade do campo conjunto das actividades humanas, o
consumo, o jogo e a diversão, o ritual, a participação nos assuntos
colectivos etc.29

O marxismo que enxerga o trabalho concreto como algo positivo e o abstrato


como o negativo ao qual ele “se aliena” não compreende que o próprio trabalho concreto

categoria trabalho admita não só o trabalho assalariado, mas todo aquele que se relacione e que se faça
diretamente para o mercado, ainda que sua expressão mais geral só apareça no capitalismo.
28 Isto, seja na produção simples ou na produção capitalista de mercadorias, já que ambas apesar de suas

diferenças (a produção de valor para o produtor e a produção de mais-valor para o capitalista),


concorrem no mercado assumindo a forma de valor.
29 JAPPE, Anselm. As Aventuras da Mercadoria. Op. Cit., p. 111.
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só pode existir como expressão do abstrato 30. Sem a abstração realizada pela produção
mercantil não existe a categoria trabalho, que se apresenta necessariamente nesta
dualidade. Sem o trabalho abstrato, o concreto não seria trabalho, mas sim uma
atividade humana qualquer, diferenciada e importante por si. Cuidar de um filho em
casa é sem dúvida um esforço que gera algo útil, a educação do filho e progresso das
forças produtivas sociais pelo avanço daquele indivíduo. No entanto, não gera valor, não
entra naquele vínculo social mais amplo criado por meio do mercado e, por este motivo,
não se percebe isso como sendo um trabalho. Agora, quando somos professores de uma
escola infantil e educamos o filho do outro e para isso recebemos, aí sim trabalhamos. O
mesmo ocorre quando uma aula particular é dada por um professor independente, não
assalariado31. O trabalho do professor apresenta-se como trabalho concreto (sua
atividade na sala de aula), mas que só se apresenta assim por estar submetido a compor
a comparação abstrata dos trabalhos no mercado produzindo riqueza em sua forma
abstrata de valor – e assim é ele mesmo trabalho abstrato, esforço humano
indiferenciado32. Algo que não fosse trabalho abstrato seria um tipo de atividade como
ensinar algo a um amigo ou familiar, ou seja, aquele que não aparece sequer como
trabalho concreto.
Em uma sociedade não dominada pelo valor, no comunismo, o cuidado e a
educação das crianças serão atividades como outras que deverão ser desempenhadas

30 Como primeiramente afirmou Robert Kurz: “Em rigor, a designação “trabalho abstracto” representa um
pleonasmo l gico como por exemplo “cavalo-branco branco”), uma vez que o atributo á está contido no
pr prio conceito; é que, de facto, o “trabalho” á é uma abstracção. nversamente, o conceito “trabalho
concreto” representa uma contradictio in adjecto como por exemplo “cavalo-branco preto”), á que o
atributo está em contradição com o conceito; como abstracção (mesmo conceptualmente, apenas
nascendo no terreno de uma abstracção real social) o “trabalho” não pode ser per se ”concreto” no
sentido de uma determinada actividade. Poder-se-ia dizer que estas definições de Marx reflectem o
paradoxo real da relação do capital e da sua socialização do valor, já que nas mesmas o que é em si
concreto, a diversidade do mundo, é de facto “realmente”) reduzido a uma abstracção, e assim a relação
entre o geral e o particular é posta de pernas para o ar. O geral já não é uma manifestação do particular,
mas pelo contrário o particular já apenas é uma manifestação da generalidade totalitária; o concreto,
assim sendo, também á não representa a diversidade estruturada do particular, mas não “é” senão a
“expressão” da generalidade realmente abstracta, da “substância” universal”. KURZ, Robert. A
Substância do Capital. Op. Cit.
31 Pois apesar deste não fazer crescer o capital de outrem, seu esforço troca-se por dinheiro e assim entra

no metabolismo social do valor, na comparação abstrata dos esforços produtivos efetuada pelo mercado
e já pressuposta na produção capitalista.
32 Mais que isso, sua atividade como professor existe como meio para que ele obtenha dinheiro e possa

sobreviver; assim, sua existência concreta como professor é a manifestação particular de um mecanismo
abstrato, o valor. É por isso que, no capitalismo, o abstrato, longe de ser mera generalização do concreto,
passa a ser o seu determinante: o trabalho (atividade indiferenciada que produz valor) é agora a
realidade universal que gera todas as realidades concretas, a ela subordinadas.
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pela sociedade. O mesmo se dá em comunidades tribais, onde alguém educa as crianças,


alguém caça, alguém coleta, alguém faz artesanatos e decora a aldeia e todos usufruem
de tudo (obviamente não falamos que uniformemente sempre). Todas estas atividades
são síntese com a natureza, mas nestas comunidades primitivas elas não aparecem
como trabalho (e seu necessário duplo aspecto concreto e abstrato) como uma atividade
separada das demais, mas sim como parte do todo da vida social, das atividades que por
qualquer motivo são realizadas.
Para enfatizarmos como a noção de produção (de valores de uso) não pode ser
conceitualmente restringida, traremos uma última situação exemplar. Esta também
facilitará entender o porquê de a produção, segundo Marx, compor a totalidade ao se
estender “tanto para além de si mesma na determinação antitética da produção” se
sobrepondo à distribuição e à troca33 e também compreender o motivo pelo qual ela não
pode ser subsumida na categoria trabalho. Uma simples conversa entre duas pessoas
para explicar um ponto de vista teórico ou mesmo para, em um momento difícil, fazer
com que uma das duas se sinta bem, tem de ser considerada como utilidade humana e
assim produção. De fato é a comunicação entre as pessoas uma das atividades humanas
mais úteis. Numa simples conversa, a consciência das pessoas se transforma (pouco ou
muito não interessa no momento saber), a simples “troca de ideias” é produção,
produção de consciência nos indivíduos e, assim, produção e desenvolvimento de forças
produtivas “materiais” tão fundamentais como a linguagem e a ciência. No entanto, esta
atividade humana de conversar não pode ser considerada trabalho porque não se trata
de uma atividade dissociada que se relaciona com outras por meio do mercado, mas sem
dúvida se trata de uma atividade homem-natureza, o indivíduo em contato e
transformando a natureza que é a sua consciência e a de seu par 34. A mercadoria em sua
lógica expansiva, nunca consegue dominar o todo da vida social e esta parte que se
encontra para fora do mercado, por mais útil que seja para a humanidade, não é
trabalho por não produzir valor.

33 MARX, Karl. Grundrisse. Op. Cit., p. 53.


34 ão podemos deixar de mencionar que “natureza” e “homem” não existem como suficientes em si
mesmos na oposição “homem-natureza”. Como opostos, em seus conceitos, um pressupõe o outro e,
assim, põem-se como tais.
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Para chamar algumas das atividades de trabalho é necessário dizer que outras
formas de síntese com a natureza, como cuidar da prole, não são trabalho35. Isso apenas
pode ocorrer quando na divisão das atividades sociais algumas adquirem maior
importância que as outras – e, assim, surge uma restrição ao consumo coletivo nesta
sociedade por conta desta diferenciação. Com isso, não se nega que a atividade
produtiva vá ocorrer sempre, mas sim que o entendimento de determinadas atividades
em si completamente diferentes sob um mesmo conceito abstrato é que vai deixar de
existir. Não haverá mais diferenciação entre as atividades quando o que for socialmente
relevante for aquilo que é relevante para a humanidade considerada em suas múltiplas
necessidades culturais – e não mais conforme os ditames da reducionista produção do
valor. A própria noção de trabalho acaba; resta, como Marx disse em passagens já citada
nos pontos anteriores, a atividade emancipada de seu invólucro negativo capitalista.
Este invólucro é o próprio trabalho, a negação das possibilidades concretas pela
submissão das atividades sociais a um abstrato, o valor. Com o fim da fragmentação das
atividades produtivas e do valor, o trabalho estará igualmente fadado a desaparecer;
como consequência, a atividade produtiva se apresentará para além da forma de sua
limitação mercantil.
Após o que foi dito, é possível retornarmos à exposição que Marx faz no início de
O Capital. Lá, a mercadoria se mostra como uma forma desprovida de conteúdo36, mas
é esta forma que domina todas as coisas, colocando-as no circuito de trocas. Os
economistas tenderam a ver esta forma como natural e eterna, como qualidades das
próprias coisas, enquanto Marx mostra como ela é socialmente determinada, projeção
de uma forma de sociedade historicamente determinada. Nossa análise, na esteira das
análises anteriores, aponta para algo muito similar em relação ao trabalho: ele é pura
forma, sem conteúdo, mas reveste as atividades concretas. O pressuposto aqui é o
mesmo para a existência da forma mercadoria e da forma trabalho: produtores

35 É claro que se pode abusar do termo e dizer que tudo que envolva o mínimo de esforço é trabalho.
Fazendo isso, no entanto, saímos do mundo do conhecimento e cruzamos a porta do cinismo burguês
em sua versão pós-moderna, que se presta a negar a possibilidade de conhecer apenas para manter as
coisas justamente como estão.
36 “ odo começo é difícil; isso vale para qualquer ciência. entendimento do capítulo , em especial a
parte que contém a análise da mercadoria, apresentará, portanto, a dificuldade maior. Quanto ao que se
refere mais especificamente à análise da substância do valor e da grandeza do valor, procurei torná-las
acessíveis ao máximo. A forma do valor, cuja figura acabada é a forma do dinheiro, é muito simples e
vazia de conteúdo.” MARX, Karl. O Capital. Op. Cit., p. 11.
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privados que trocam sua produção. O objeto produzido reveste-se assim da forma
mercadoria na mesma medida em que a atividade de produção reveste-se da forma
trabalho.

V - O nascimento conjunto do trabalho e do categorial da relação-


mercadoria

Marx, em uma passagem dos Grundrisse já citada neste texto, diz que “a
representação do trabalho nesta universalidade – como trabalho em geral – é também
muito antiga”, apesar de que “concebido economicamente nessa simplicidade” é o
trabalho “uma categoria tão moderna quanto as relações que geram esta simples
abstração”. Kurz critica esta afirmação da seguinte maneira:

Se Marx designa esta abstracção (provavelmente no sentido de uma


mera abstracção nominal) despreocupadamente como “antiquíssima”,
esta designação obviamente não se baseia em nenhuma investigação
histórica. De facto, em muitas sociedades da história, entre outras
também nas chamadas culturas superiores como o Egipto antigo, nem
sequer existia uma categoria de actividade geral e abstracta. Mesmo nas
sociedades onde parece existir um tal conceito genérico nominal (mesmo
aí não há nenhuma abstracção real), trata-se de áreas de actividade
muito limitadas, e nunca de uma generalidade social de “actividade em
geral”. Se aqui na interpretação moderna se fala sempre de “trabalho”,
tal é enganador, um anacronismo e no fundo um erro de tradução (o que
de resto se aplica também a outras categorias especificamente modernas
e associadas à relação de fetiche da valorização do valor, tais como a
política, o estado, etc.). Na medida em que a abstracção “trabalho” foi
adoptada como conceito pela sociedade moderna a partir da área
linguística indo-europeia, ela teve de ser sujeita a uma redefinição
completa; é que nessas línguas o “trabalho” designa sempre a actividade
específica dos escravos, dependentes, menores, etc; não se trata,
portanto, de um conceito genérico mental para diversas áreas de
actividade, mas sim de uma abstracção social (e nessa medida também
de uma abstracção real, neste sentido especificamente pré-moderno),
porém, precisamente por isso não de uma generalidade social, não de
uma categoria de síntese social como na modernidade. 37

Retomando o caminho até então percorrido e visando esmiuçar esta crítica de


Kurz, voltamos ao argumento de que o surgimento do trabalho é o surgimento de uma

37 KURZ, Robert. A Substância do Capital. Op. Cit.


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diferenciação social, da exploração que determina fins não diretamente ligados às


necessidades diretas dos que se empenham no processo produtivo. Esta diferenciação só
se completa quando o valor penetra nas comunidades, quando obriga a comparação
abstrata do esforço das pessoas, fazendo surgir a categoria abstrata “trabalho”, uma
abstração que não é só do pensamento, mas da própria realidade social. Até então, em
sociedades como as da Mesopotâmia e do Egito antigo, quando essas ainda brilhavam
em sua era do bronze, por mais que já houvesse exploração, o abuso das diferentes
atividades humanas submetidas à autoridade não tinha um caráter indiferenciado como
o trabalho produtor de valor. Determinado tipo de servo servia no harém, outro fazia a
colheita, outro era uma espécie de nobre coletor da produção, outro era um sagrado
sacerdote, todos em uma hierarquia em cujo topo se colocava a figura do rei-deus. Eles
não eram cidadãos iguais e legalmente resguardados, por um lado, e, por outro,
trabalhadores com uma função específica na hierarquia social, mas um ente38
considerado a partir da singularidade de sua função e não como “trabalhador” em geral.
O mundo ainda não se separara em um mundo social do trabalho e do comércio e um
outro da vida particular, da família. O mesmo se passava com os servos. Sua atividade
não era uma profissão, algo separado de sua individualidade, mas uma condição da
totalidade de sua vida. Marx mesmo traça raciocínio similar ao escrever:
No decorrer do desenvolvimento histórico, e justamente devido à
inevitável autonomização das relações sociais no interior da divisão do
trabalho, surge uma divisão na vida de cada individuo, na medida em
que há uma diferença entre a sua vida pessoal e a vida enquanto
subsumida a um ramo qualquer do trabalho e as condições a ele
correspondentes. (...) no estamento (e mais ainda na tribo) este fato
permanece escondido; por exemplo, um nobre continua sempre um
nobre e um roturier continua um roturier, abstração feita de suas
demais relações; é uma qualidade inseparável de sua individualidade. 39

Dentro dos primitivos estados mesopotâmico ou egípcio, as trocas internas na


sociedade encontravam-se em um nível muito pouco desenvolvido, e assim a atividade
do servo não se comparava à do eunuco e à do rei, mas era meramente colocado pela
força e pela crença e não de maneira econômica, pela concorrência. Essa é diferença de
base entre direito e privilégio. O primeiro parte da igualdade do mercado, a igualdade

38 Nos estágios primitivos, por exemplo, nem eram considerados pelos seus pares como humanos, mas
como os animais e vegetais representados conforme o totem de seu clã.
39 MARX, Karl et ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã. Op. Cit., p. 64- 65.
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que tem de estar pressuposta para as pessoas poderem comparar seus produtos na
troca. O segundo é justamente a desigualdade sacramentada, o domínio sobre o outro,
que retira o produto sem dar outro equivalente em troca. Há, por isso, uma relação
umbilical entre a abstração das diferentes atividades produtivas na mesma categoria
“trabalho”, o surgimento e desenvolvimento das formas da riqueza concreta na
abstração “valor”, o desenvolvimento da categoria direito como igualdade abstrata e
pressuposta entre os “homens” (também considerados nesta categoria abstrata e não
como indivíduos concretos) e a economia, categoria em que os homens se encontram em
concorrência como proprietários formalmente iguais de mercadorias. Podemos dizer em
termos de formas sociais que àqueles que produzem em abstrato corresponde uma
forma de riqueza em abstrato e uma abstração de si próprio na categoria “homem”, bem
como uma esfera econômica apartada do resto da realidade onde vigora uma lógica
estritamente concorrencial.
Quando olhamos para o passado em busca do surgimento destas categorias, as
encontramos em diferentes graus de desenvolvimento, mas todas evoluindo em
conjunto (quando evoluem), com algum grau de uniformidade entre elas, dada uma
específica época histórica. Elas se tornam cada vez mais acabadas e dominantes
conforme a relação mercadoria se desenvolve submetendo os demais tipos de relações
sociais à sua forma – e por outro lado a mercadoria mesma só pode ser compreendida
como sendo constituída destas múltiplas manifestações. Isso pode ser percebido e
rastreado com alguma clareza pelo menos a partir do desenvolvimento do mercado no
início da antiguidade, quando a primeira grande expansão do comércio faz surgir (ou as
tornar mais perceptíveis, dado maior grau de acabamento) estas categorias, ainda que
em estágio embrionário. Naquela época o comércio se desenvolvia rapidamente, de
forma que por volta de 680 A.C surgiria a cunhagem de moeda40. O dinheiro, a forma do
valor mais desenvolvida – conforme explicado por Marx em o Capital –, enfim surgira
pela primeira vez. As moedas anteriores podiam ser cunhadas em metais preciosos e
valer diretamente pelo valor dos metais que as compunha. A forma dinheiro, no
entanto, pressupõe um degrau ainda maior de abstração, pela qual, garantida por uma
autoridade simbólica a moeda não mais vale pelo material utilizado em sua confecção,

40SOHN-RETHEL, Alfred. Intellectual and Manual Labour: a Critique of Epistemology. London:


Macmillan, 1978, p. 96.
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mas pelo puro lastro simbólico. Apesar de toda a diferença histórica que nos separa, a
abstração monetária que conhecemos, depurada de toda materialidade (ex.: créditos
eletrônicos), guarda profunda semelhança de forma com aquela da antiguidade.
Antes da fase clássica grega, provavelmente entre o ano 750 e 650 antes de cristo,
viveu Hesíodo, o grande poeta que registrou em seus escritos as rápidas mudanças dessa
transformação essencial na forma das relações sociais. Em Os Trabalhos e Os Dias,
Hesíodo se foca nos afazeres dos homens comuns e seus temas preferenciais são
justamente a Justiça e o Trabalho41. É considerado por muitos o primeiro de todos os
economistas, por lidar com o problema da escassez, e desenvolve uma ética do trabalho
que em muito lembra a que surgirá antes do início do capitalismo42. Sua defesa
apaixonada de Diké, Deusa da Justiça como igualdade que despontava entre os Gregos
na época e que se opõe a Thêmis, divindade mais antiga que representa a Justiça como
poder da nobreza43, também deixa vivo relato das mudanças culturais ocasionadas pelo
rápido desenvolvimento mercantil: a igualdade formal pressuposta na troca penetrando
de diversas maneiras no tecido social. Mesmo já com todo esse desenvolvimento
causado pela forma mercantil, esta ainda é embrionária, e com ela também a concepção

41 Como escreveu o grande helenista Werner Jaeger: “Homero acentua com maior nitidez, que toda
educação tem o seu ponto de partida na formação de um tipo humano nobre, o qual nasce do cultivo das
qualidades próprias dos senhores e heróis. Em Hesíodo revela-se a segunda fonte da cultura: o valor do
trabalho. O título de Os Trabalhos e os Dias, dado pela posteridade ao poema rústico didático de
Hesíodo, exprime isso perfeitamente. O heroísmo não se manifesta só nas lutas em campo aberto, entre
cavalheiros nobres e seus exércitos. Também a luta silenciosa e tenaz dos trabalhadores com a terra dura
e com os elementos tem seu heroísmo e exige disciplina, qualidades de valor eterno para a formação do
Homem. Não foi em vão que a Grécia foi o berço da humanidade que põe acima de tudo o apreço pelo
trabalho”. JAEGER, Werner. Paideia: A formação do homem grego. São Paulo: Martins Fontes, 2010,
p. 85.
42 “ ...) trabalha, Perses, divina prole, para que a Fome te odeie, e te ame Deméter de bela coroa, a
venerável, e encha o teu celeiro de alimento. A Fome é em tudo a companheira do homem ocioso; deuses
e homens se indignam com quem ocioso vive, semelhante em caráter aos zangões sem ferrão, que
consomem o esforço das abelhas, ociosos a comer; para ti seja caro organizar os trabalhos regrados, de
modo que os teus celeiros se encham de alimento no tempo certo. Com trabalho os homens tornam-se
ricos em rebanhos e opulentos, e trabalhando serás muito mais querido dos imortais” e dos mortais:
muito eles odeiam os ociosos. O trabalho não é nenhuma desonra; desonra é não trabalhar. E se
trabalhares, logo o ocioso procurará igualar tua riqueza: ao rico acompanham mérito e prestígio
Qualquer que seja tua fortuna, trabalhar é preferível, se o teu louco espírito dos bens alheios desvias
para o trabalho e atentas para a subsistência, como te ordeno. A vergonha não é boa para cuidar de um
homem necessitado, a vergonha, que aos homens muito prejudica e beneficia: a vergonha liga-se à
pobreza tal como a audácia à prosperidade.” HES D . Os Trabalhos e Os Dias. Trad. Alessandro
Rolim. Curitiba: Segesta, 2012, p. 93-95.
43 “Ó Perses, coloca essas coisas no teu coração, e agora dá ouvidos à Justiça, e esquece de todo a força.

Pois o filho de Crono fixou para os humanos esta lei: que peixes, feras e pássaros alados devorem-se uns
aos outros, á que ustiça não há entre eles; mas para os humanos deu a ustiça”. HES D . Os
Trabalhos e Os Dias. Op. Cit., p. 91.
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de trabalho, abordado por Hesíodo apenas em dois sentidos: o trabalho no campo, com
o solo e os animais, e no comércio marítimo44. Neste sentido também se repete, de certa
maneira, a ordem que vemos no desenvolvimento da própria economia política na
modernidade: como dissemos acima acompanhando Marx, lá aparecem primeiro teorias
que colocam o trabalho que produz valor alternadamente como trabalho específico no
comércio (mercantilismo) e trabalho na agricultura (fisiocratismo); aqui (em Hesíodo) o
que é representado como trabalho acaba por se resumir nestes mesmos dois pontos. Sua
abstração como “trabalho”, ainda que limitada à categoria da subsistência e do comércio
de excedentes, já dá claro sinal da generalização que a diferencia de sociedades mais
primitivas, onde só há atividades consideradas em sua especificidade ou sob
generalizações de outro caráter que não econômico. A época de Hesíodo é, não por
coincidência, o tempo da primeira grande difusão da produção simples de mercadorias,
que em pouco tempo daria origem à primeira moeda cunhada, à primeira democracia
grega e aos primeiros filósofos45.

VI - Fim do trabalho e da submissão da vida ao categorial

Pelo fato de estarmos conduzindo aqui uma análise categorial que em muito
difere da do marxismo tradicional, podem alguns afirmar que as conclusões aqui
alcançadas são idealistas. Para estes resta-nos dizer que afirmar isso revela o
desconhecimento da dialética entre ideia e realidade. Os conceitos a que nos referimos
articulam (e são, ao mesmo tempo, articulados por) uma realidade social que não é
simplesmente fática, empírica, mas sim puramente relacional. O mundo humano tal
como até hoje o conhecemos não é de uma realidade meramente material, sensível, mas
uma realidade construída por relações abstratas – metafísicas como Marx mesmo
afirma – como o valor, o dinheiro, o capital, o direito. Os conceitos surgem com

44 “Então arrasta a rápida nau para o mar, e dentro a carga adequada dispõe, para que leves lucro para
casa – assim meu e teu pai, ó Perses, seu grande tolo, necessitando de um bom sustento, costumava
navegar em barcos (...) lembra-te dos trabalhos todos na hora certa, sobretudo quanto à navegação.
Elogia a nau pequena, mas põe tua carga numa grande: quanto mais carga, mais lucro sobre lucro”
HESIODO. Os Trabalhos e Os Dias. Op. Cit., p. 125.
45 THOMSON, George. Os Primeiros Filósofos: estudos sobre a sociedade grega antiga, volume II. Lisboa:

Editorial Estampa, 1974.


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determinadas formas de prática social, dos quais constituem formas de consciência


deles indissociáveis. A prática social do trabalho, uma abstração (e, portanto,
indiferenciada) das atividades humanas praticamente diferenciadas, deixa de existir
quando desaparece a especificidade de fins da produção de valor (todos os trabalhos
são, como também toda produção capitalista, desenvolvidos para produzir dinheiro). A
abstração do trabalho, no entanto, não é apenas uma abstração que exista
exclusivamente no pensamento, é a realidade mesma das atividades humanas que é
abstrata, metafísica (em seu sentido clássico e não místico de mais que física). A
equivalência entre as diferentes atividades geradoras do valor é uma equivalência que
existe na realidade social e não apenas no pensar.
Como demonstrou primeiramente Alfred Sohn-Rethel, utilizando o termo
abstração real, a própria realidade moldada pela relação mercadoria é abstrata. O
dinheiro, que é a abstração do valor de uso das mercadorias que toma para si a forma de
coisa (moeda ou nota), ou seja, algo abstrato aparece sob uma forma sensível (e assim a
materialidade aparece como conceito ou o conceito como materialidade), é o mais claro
exemplo deste fato que abrange toda nossa forma de ser. O real se constitui não como
empiria, mas por relações humanas que são em si abstratas, sem por isso serem algo
puramente da consciência. A consciência e a coisidade são duas partes dessa mesma
unidade humana, como demonstrou Hegel. Todas estas conclusões estão implícitas na
análise da mercadoria feita em O Capital46, constituindo uma espécie de “pressuposto
mudo” que guia o núcleo da análise do capitalismo.
Nesta obra, o valor, o dinheiro e o capital não são negados por Marx como meras
mistificações da realidade pelo pensamento, mas sim como realidade em si mistificada.
As categorias que compõe a base de nossa realidade não são empíricas, sensíveis, mas
em si já abstratas – a consciência, de um lado, e “a coisa”, do outro, não passam de
manifestações já do próprio real –, de modo que é por “acreditarmos”47 coletivamente
no dinheiro que ele domina a prática social. A consciência é um dado de ordem não

46 Sobre esta afirmação ver L , hiago Ferreira. “Sohn-Rethel e o Profundo Significado Filosófico dos
Primeiros Capítulos de O Capital”. Disponível em
http://www.ifch.unicamp.br/formulario_cemarx/selecao/2012/trabalhos/7133_Lion_Thiago.pdf.
Acessado em 17/02/2016.
47 Entenda-se aqui que “acreditar” não é uma decisão individual. Mas, ao contrário, uma crença coletiva

que se impõe aos diversos indivíduos através do mecanismo do fetichismo da mercadoria e, assim,
independentemente de um indivíduo singular.
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apenas subjetiva, mas, principalmente, e isso é o que revela a análise, objetiva, como
forma de consciência socialmente determinada. Do mesmo modo, se todos acordassem
como que por um toque de mágica com consciência comunista, o comunismo estaria
praticamente dado. No entanto, não se trata aqui de idealismo, pois o que se impõe não
é a primazia do conceito, mas sua unidade com a realidade na forma da própria relação
social, uma realidade que assim não é meramente empírica, mas desde já relacional e
simbólica. A reprodução social deve sempre ser vista nesta dinâmica entre realidade e a
consciência socialmente necessária que a estrutura.
A análise de Marx do desenvolvimento da forma mercadoria não é uma mera
descrição do mundo objetivo, exterior, mas compreende em si o desenvolvimento da
própria subjetividade. Ela é a descrição de como uma relação se forma por meio dos
indivíduos adquirindo a objetividade das leis do mercado ao mesmo tempo em que os
indivíduos cada vez menos se comportam como membros de uma comunidade e mais
como sujeitos individualistas que se relacionam por meio do dinheiro. A análise da
mercadoria não é pura análise da objetividade e nem da subjetividade, mas uma esfera
de mediação, onde se trata das relações que constituem conjuntamente a subjetividade
“interna” de cada humano e o mundo objetivo “exterior”, que assim são abordados de
maneira implícita. A exposição da mercadoria ocupa em Marx o mesmo lugar que a
exposição da Lógica da Essência em Hegel48. Quando, na introdução de sua Ciência da
Lógica, Hegel está discorrendo sobre a divisão entre lógica do ser (objetiva, que parte do
mundo exterior), lógica da essência (esfera de mediação) e lógica do conceito (subjetiva,
que parte da consciência), ele diz sobre a unidade do conceito consigo mesmo, na lógica
da essência, e seu modo de exposição:

(...) uma esfera da mediação, o conceito como sistema de determinações


de reflexão, isto é, do ser que passou para o ser em si do conceito, o qual
desse modo ainda não é posto como tal por si mesmo, mas ao mesmo
tempo está preso ao ser imediato como a algo a ele mesmo também
exterior. Essa é a doutrina da essência, que está no centro entre
a doutrina do ser e do conceito. – Na divisão geral dessa obra

48É o que diz, inclusive, Engels em carta a Conrad Schmidt, datada de 1891: “Se você comparar o
desenvolvimento da mercadoria n’O Capital de Marx com o desenvolvimento do ser à
essência em Hegel, você terá um bom paralelo em relação ao desenvolvimento concreto que resulta
dos fatos; ...)” tradução e grifo nossos). Ver ENGELS, Friedrich. Engels to Conrad Schmidt in Zurich in
Marx-Engels Correspondence, 1891: Disponível em
https://www.marxists.org/archive/marx/works/1891/letters/91_11_01.htm. Acessado em 20/02/2016.
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lógica ela ainda foi situada sob a lógica objetiva, pois embora a
essência já seja o interior, o caráter de sujeito tem de ser
reservado expressamente ao conceito.49

Hegel afirma que, apesar da descoberta da lógica da essência, a lógica da esfera


de mediação entre o subjetivo e o objetivo e que assim não é nem um nem outro, ele tem
um problema com a particular forma de exposição desta lógica. É que ela, mesmo sendo
esfera de mediação, só pode ser exposta de forma subjetiva ou objetiva, ao que Hegel
opta pela segunda forma, já que “o caráter de sujeito deve ser reservado expressamente
ao “conceito”. Marx faz o mesmo em O capital. Demonstra o desenvolvimento de uma
relação que constitui ela mesma a esfera de mediação entre o mundo objetivo “exterior”
e a subjetividade “interna”, a esfera que forma o próprio ser como unidade entre prática
e consciência. Neste sentido, ecoam as palavras do próprio Marx em carta à Engels
sobre O Capital, na qual ele diz que “o que para mim foi de grande uso no que concerne
ao método de tratamento foi a Lógica de Hegel”50. Marx precisava expor esta esfera de
mediação entre sujeito e objeto que é a relação social mercadoria – algo criado pelos
humanos, mas que os controla e os forma – e a maneira que encontrou para fazê-lo foi,
assim como Hegel, expô-la pela lógica objetiva, ou seja, como objetividade exterior
ainda que ela em si seja a mediação desta objetividade com a subjetividade.
Como Marx mesmo afirma no princípio d’O capital, ele segue os
desenvolvimentos da relação de valor até a forma dinheiro51, mas não sem antes ter
demonstrado que ao caráter bipartido do valor (de uso e de troca) corresponde o caráter
bipartido do trabalho (concreto e abstrato). Aqui a exposição da evolução da forma valor
segue a lógica objetiva (do ser), a princípio externa ao homem, mas não sem aviso
anterior de que ela está diretamente ligada ao trabalho, como formas duplas que
mantêm relação cruzada de identidade entre si. Mais adiante, ao analisar o trabalho na
relação com o capital, Marx iguala os dois novamente. Ele divide trabalho em trabalho
vivo e trabalho morto e capital em capital variável e capital constante, postulando que

49 HEGEL, G.W. F. Ciência da Lógica. (Excertos). São Paulo: Barcarolla, 2011, p. 42.
50 “What was of great use to me as regards method of treatment was Hegel’s Logic at which had taken
another look by mere accident, Freiligrath having found and made me a present of several volumes of
Hegel, originally the property of akunin.” MARX, Karl. “Carta a Engels de 16 de aneiro de 1858”.
Disponível em http://www.marxists.org/archive/marx/works/1858/letters/58_01_16.htm. Acessado
em 15/09/13.
51 MARX, Karl. O Capital. Op. Cit. p. 54.
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trabalho vivo = capital variável e que trabalho morto = capital constante. O que significa
esta recorrente igualação entre a mercadoria (tanto em seu caráter pouco desenvolvido
de valor na circulação simples quanto em sua evolução como capital) e trabalho?
Significa que ambos são tratados como expressões da mesma coisa, uma única e mesma
forma que pode ser analisada pelo lado da lógica objetiva ou da lógica subjetiva. A forma
trabalho é = à forma mercadoria, ambas são a mesma coisa emanando da produção
privada que constitui a atividade da forma trabalho e o produto da forma mercadoria.
Neste sentido é mais fácil de entender diversas passagens, inclusive do jovem Marx, na
qual ele diz que “a essência subjetiva da propriedade privada, a propriedade privada
enquanto atividade sendo para si, enquanto sujeito, enquanto pessoa, é o trabalho”52.
Retirando a determinação do trabalho como abstração das atividades produtivas
de valor, o que sobra? Sobra apenas a atividade produtiva, isto é, as relações que os
humanos mantêm com a natureza e com outros humanos (que afinal também são
natureza, considerada da forma mais ampla possível). Isso só revela que a cisão interna
à sociedade, entre o que a priori se considera socialmente produtivo e o que não se
considera, deixa de existir. Deste modo, os conceitos que se remetem a estas cisões
também perdem serventia; assim desaparece a noção de trabalho e a prática coercitiva
que carrega este nome. Cuidar de filhos quando superarmos o reino da necessidade no
comunismo será meramente cuidar de filhos, como construir uma máquina será
meramente construir uma máquina – e não formas de representação de uma atividade
em abstrato, o trabalho.
Este tipo de análise que aqui chamamos de categorial deriva da relação dialética
entre o que percebemos separadamente como prática e forma de consciência – e é
importante compreender que uma não existe sem a outra, pois as formas de consciência
sustentam a prática social que lhes criou e vice-versa. De posse deste entendimento, o
conceito trabalho se revela parte de uma realidade em que algumas atividades humanas
são válidas para determinado tipo de relação atualmente dominante, o intercâmbio de
mercadorias, e, assim, seus produtos aparecem sob a forma de valor. Outras tantas
formas completamente necessárias de relações com a natureza e entre os indivíduos
ficam de fora desta categoria “trabalho”. Ficam, como diria a “nova crítica do valor”,
dissociadas. Isto porque a própria produção não está voltada para a satisfação de
52 Marx,Karl. Manuscritos Econômico-Filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2010, p. 99.
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necessidades dos indivíduos concretos, mas apenas do indivíduo abstrato, o homem


enquanto portador de dinheiro e em especial como representante do capital, o cidadão
sujeito de direitos, o homem enquanto categoria limitadora de sua própria
singularidade. Assim surge a cisão entre vários aspectos da vida social, entre aquelas
várias coisas que, sendo produto das relações humanas, aparecem ao mesmo tempo
como coisas diferentes, como áreas em que vigem lógicas diferentes. É deste modo que a
análise categorial aqui feita em torno do trabalho é também o instrumento adequado
para a crítica de diversas outras categorias (formas) sociais, como a economia, a arte, o
patriarcado, a religião, a política, o Estado, o direito, as classes, as ciências, a filosofia,
etc.
Seguindo de perto os passos do brilhante discípulo de Adorno, Hans Jurgen
Krahl, pensamos poder jogar um pouco mais de luz nesta complicada afirmação do “fim
das categorias”. Krahl nos explica que falamos e pensamos a realidade que
experimentamos recorrendo sempre a conceitos universais que não levam em conta
nossa particularidade concreta, mas toda a forma social cristalizada. Seguindo por este
caminho, Krahl diz que os idealistas não afirmaram que o mundo exterior não tem uma
realidade material, como geralmente se interpreta, mas sim que nós falamos e pensamos
apenas por meio das categorias que dominam também nossa particularidade
“empírica”. A realidade (ou o fenômeno que alcançamos) é, por isso, ela mesma
categorial. Assim, o indivíduo se expressa apenas por meio de categorias, de formas
sociais que penetram e determinam suas relações e mesmo a consciência destas relações
e que não expressam sua particular individualidade, mas apenas a individualidade em
sua expressão socialmente determinada. E, então, os idealistas se perguntam se existe
algum acesso à realidade e chegam a uma conclusão, que Krahl desenvolve segundo
Marx:
(...) se o mundo exterior é real, mas nós podemos nos entender a respeito
deste mundo apenas por meio daquelas categorias, então o mundo
exterior está estruturado segundo categorias. Marx toma este dado como
algo negativo. Ao seu parecer esta é a existência falsa. Há abstrações,
imaginações, ficções, instituições, religiões, fetichizações, mistificações
que impedem ao homem um desenvolvimento concreto e que só
permitem um desenvolvimento alienado. Hegel pôde salvar a realidade
do mundo exterior só enquanto disse que este mundo está estruturado
segundo categorias. (...) Nossa estrutura categórica não apreende a
particular constituição da realidade. O conceito não a morde. Mas nós
pensamos e vivemos somente dentro desta estrutura categorial. E isto é
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uma realidade. Por isso, a estrutura categorial é real. Se nós nos


entendemos através de categorias, então nossa realidade é categorial,
então a realidade mesma é uma categoria. Segundo Marx, se poderá sair
desta imanência na consciência apenas se criarmos relações sociais não
dominadas já por categorias como o valor, só se modificarmos a
estrutura mesma da abstração do pensamento53.

As categorias são algo real, mas no sentido que são ao mesmo tempo algo de
nossa consciência. O fetichismo, em especial em sua forma hoje dominante, o fetichismo
da mercadoria, é uma forma de limitação das possibilidades, um aprisionamento
inconsciente às limitadas formas de relações entre os homens. É a submissão do que é
considerado produtivo ao valor; assim, por este modo, a atividade humana se afirma
como social apenas na negatividade do trabalho, a categoria que reúne todas as
diferentes atividades produtoras de riqueza abstrata. O marxismo tradicional e dentro
dele mesmo o crítico marxismo ocidental tomam esta negatividade como algo positivo e
entronizam o trabalho como algo digno de adoração. Ocorre que, enquanto o trabalho
for tomado como emancipador, estaremos adorando nossa própria limitação, nossa
submissão à realidade categorial construída a priori. O fetiche do trabalho é o
fetichismo da mercadoria tomado por sua face menos brilhante. Aqui a atividade, por
sua própria limitação a imperativos abstratos, nos aparece como imposição, como
negativo.
Uma importante crítica deve, no entanto, ser endereçada a esta análise de Krahl e
mesmo a Marx, conforme o que há muito percebeu Hegel e que hoje é moeda corrente
na psicanálise lacaniana. A alienação do sujeito é estrutural, não é possível surgir um
sujeito sem a alienação, um sujeito puro que “salte” para fora da estrutura categorial e
encontre a Coisa como ela é, o Em si hegeliano ou o Real lacaniano nele mesmo. Nesse
sentido, não é possível um sujeito que não seja formado pela sua relação com os outros
mediada pelo simbólico da linguagem em todas suas expressões, e nem um
conhecimento das coisas que não seja mediado pela forma social. Devemos então
abandonar a ideia, expressa na citação acima, de superar esta imanência na consciência,
e aceitar integralmente essa imanência, como um dos autores deste artigo escreveu em
outro lugar:

53 KRAHL, H. J., “Seminarios enero” in Introduccion General a La Critica de La Economia Política.


Buenos Aires: Pasado y Presente, 1968, p.34. Tradução nossa do espanhol.
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E como se livrar desta imanência no pensamento, como superar o


fetichismo em nossas relações? Talvez a resposta de Hegel para a
pergunta sobre a diferença da filosofia em oposição ao senso comum que
“acredita estar lidando sempre com matérias e conteúdos perfeitamente
sólidos” forneça uma pista, como ele diz: “Sem dúvida, a filosofia lida
também com isso, e reconhece os entes de razão como puras essências,
como absolutos elementos e potências. Mas, sendo assim, reconhece-os,
ao mesmo tempo, na sua determinidade e deles se assenhora; enquanto
aquele entendimento percebente os toma pelo verdadeiro, e por eles é
jogado de erro em erro” . A consciência trabalha apenas com as
abstrações, ainda que julgue estar tratando de algo evidente, material,
real. Isto deve ser radicalmente aceito, pois é apenas por meio desta
aceitação que podemos nos desvincular de tomar estas abstrações como
verdades em si e para si, podendo então reconhecê-las como produto
nosso e assim dominá-las para as utilizar corretamente. Isto que se passa
com a linguagem, que deve ser mobilizada em sua estrutura abstrata
contra seu próprio caráter fetichizante, fornece um modelo que devemos
utilizar contra a reificação das próprias instituições de nossa sociedade 54

Sem abandonar esta crítica hegeliana, é possível manter a crítica de Marx em seu
interior. Não é porque não se pode abandonar a imanência na consciência que não se
pode afastar a forma fetichista da mercadoria. Com essa importante ressalva, as
afirmações de Marx se mantêm. É possível mudar a estrutura de abstração do
pensamento e da realidade sem que isso signifique sair de toda estrutura categorial,
justamente reconhecendo que a realidade tem a forma conceitual e assim a dominando
em sua determinidade. Assim, afirmações de Marx, como a seguinte, permanecem
totalmente válidas:

(...) a divisão do trabalho nos oferece de pronto o primeiro exemplo de


que, enquanto a atividade, por consequência, está dividida não de forma
voluntária, mas de forma natural, a própria ação do homem torna-se um
poder que lhe é estranho e que a ele é contraposto, um poder que
subjuga o homem em vez de por este ser dominado. Logo que o trabalho
começa a ser distribuído, cada um passa a ter um campo de atividade
que lhe é imposto e a qual não pode escapar; o indivíduo é caçador,
pescador, pastor ou crítico crítico, e assim deve permanecer se não
quiser perder seu meio de vida – ao passo que, na sociedade comunista,
onde cada um não tem um campo de atividade exclusivo, mas pode
aperfeiçoar-se em todos os ramos que lhe agradam, a sociedade regula a
produção geral e me confere, assim, a possibilidade de hoje fazer isto,
amanhã aquilo, de caçar pela manhã, pescar a tarde, à noite dedicar-me
54 L , hiago Ferreira. “ Vazio Estruturante da Mercadoria e do Pensamento em Marx e Hegel”.
SOFIA (Unifesp), Disponível em http://pdf.blucher.com.br/philosophyproceedings/viii-sofia/039.pdf.
Acessado em 20/02/2016. A referência a Hegel é: HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. A Fenomenologia
do Espírito. Petrópolis, RJ: Vozes, 6ª ed., 2002, § 131.
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a criação de gado, criticar após o jantar, exatamente de acordo com a


minha vontade, sem que eu jamais me torne caçador, pescador, pastor
ou crítico.55

Em nossos tempos as forças produtivas alcançaram um grau de desenvolvimento


sem qualquer paralelo na história e este grau deve ser compreendido em seu movimento
acelerado rumo à ampliação de possibilidades, ampliação tal que começa a escapar da
escala quantitativa e dar todos os indicativos do surgimento de uma nova qualidade
ainda oculta sob a velha capa. A cada dez anos destes últimos quarenta nós avançamos
tecnologicamente mais rápido do que fazíamos em um século inteiro da época de
surgimento do capitalismo e que milênios inteiros antes da idade do ferro. As
possibilidades humanas já superaram o limiar da escassez. As novas tecnologias das
últimas décadas, como a internet, não mais impelem à fragmentação da atividade por
não mais fragmentar a fruição, e assim se erguem como obstáculos ao intercâmbio
limitado do valor, a partir do qual surgiram. A produção de conhecimento, de tecnologia
e bens virtuais pode ser usufruída por todos os indivíduos sem que sua utilização
comprometa a dos outros; é o contrário do que ocorre com determinado quantum de
alimento, que ou é comido por uma pessoa ou por outra – e nunca pelas duas56. Mas, ao
mesmo tempo, os alimentos como as demais coisas materiais que não podem ser
virtualmente replicadas são cada vez mais produzidas por máquinas, cada vez com
menor necessidade de esforço individual. O trabalho mesmo, o esforço individual para
produzir, é cada vez menos necessário para a produção de riqueza material. O trabalho
imaterial (trabalho intelectual, p. ex: a programação) é cada vez mais socializável e cada
vez mais ele submete a geração de bens materiais à sua forma, como no caso da
impressão 3D em que projetos e softwares imateriais produzem uma coisa.
A riqueza abstrata do valor, no entanto, é trabalho, é o tempo de atividade
humana fragmentada e coagulada. Assim, a crise da fragmentação pelo desenvolvimento

55 MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã. Op. Cit., 37-38.
56 Marx diz que a forma de algo se tornar um valor de troca é ser um não valor de uso. Esta contradição é,
segundo ele, a base do sistema mercantil. Para os bens materiais isso é plenamente válido, mas os bens
imateriais, que desde a terceira revolução industrial se tornaram elemento central da economia, fogem
desta lógica. Um arquivo de música na internet, diferentemente de um disco, pode tocar
simultaneamente em diferentes partes do globo. Sua manutenção na esfera das trocas mercantis tem de
ser garantida repressivamente pelos poderes estatais, represando assim as forças produtivas que o
próprio comércio ajudou a desenvolver. A relação mercadoria, de forma de progresso acelerado das
forças produtivas, torna-se seu contrário.
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das forças produtivas que não mais necessitam de esforço individual é a crise do valor
que agora se tornou visível. A crise do valor é, ao mesmo tempo, crise de todo o
categorial que com ele surgiu. É a crise de todas as parcelas da realidade social (como o
direito, o Estado, o dinheiro, a arte, a filosofia, a ciência, as relações entre os sexos etc..),
pois é a crise da própria fragmentação da realidade em parcelas. A desfragmentação
da produção é a desfragmentação da totalidade e a possibilidade da unidade entre
realidade e sentido, não mais fragmentado e contraditório. Estamos presos dentro das
categorias, presos dentro desta limitação das possibilidades que é o valor. A crise que
vivemos é a crise desse categorial, da qual devemos nos desvencilhar de forma a
prosseguirmos já em outro nível existencial em que escolhamos livremente as categorias
que queremos como realidade.
A crítica do fetichismo da mercadoria é a parte mais complicada da teoria
marxiana não apenas por sua minúcia e nem, por outro lado, por sua abrangência que
inclui em si a própria forma de pensamento e, desta forma, todas as áreas do
conhecimento. A crítica do valor é complicada, sobretudo, porque se trata de um
negativo, a crítica que revela como as categorias sobre as quais erigimos nosso
pensamento e nossa vida são históricas e, por isso, se dissolverão. Neste sentido, é
impossível lastrear a totalidade do pensamento em uma categoria, a não ser quando esta
categoria é tomada em si como negatividade, como negação das possibilidades
concretas pelo próprio categorial. O pensamento só deve se apoiar na categoria para ver
para além dela, para, negando-a, negar a negação que ela representa. A elevação da
consciência a essa compreensão é o fim do limite a priori no pensamento (que
corresponde justamente à formação do saber absoluto de sua própria condição
reflexionante, como em Hegel) e finalmente sua interpretação coerente como mais um
dos estágios nos quais a natureza se desenvolve rumo ao desconhecido, ao novo, ao
ilimitado. Aqui a ciência perde o caráter estéril que adquiriu ao nascer em oposição à fé,
e o conhecimento retoma todo seu elemento sublime como forma privilegiada de
religação. O pensamento emancipado é o pensamento emancipado das categorias que o
limitam, que enquanto em contradição com relações sociais alienadas, com limitação
categorial do próprio ser, só pode se colocar como um negativo. Por isso, é tão difícil
para a crítica do valor estabelecer um positivo, dizer como a sociedade emancipada será,
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porque a própria emancipação não pode ser definida senão em sua forma de negação da
limitação.
Com o fim da escassez, e, portanto, da necessidade, está dada a possibilidade de
pôr fim à determinação involuntária da atividade produtiva – e assim o fim da
determinação de quais atividades “contam” para a comparação social, uma vez que a
própria possibilidade de comparação acaba. As necessidades sociais tornar-se-ão
necessidades dos indivíduos concretos, dos indivíduos como tais, sem nenhuma
definição a priori, isto é, sem submissão a categorias, a padrões predefinidos. Assim, a
atividade se liberta de sua camisa de força no trabalho e se torna (auto) atividade
humana, pois como Marx já há cerca de 170 anos apontou:
A transformação do trabalho em autoatividade corresponde a
transformação do restrito intercâmbio anterior em intercâmbio entre os
indivíduos como tais.57

As relações entre os humanos, assim, libertam-se das categorias impostas pela


forma de intercâmbio mercantil e pelas relações inconscientes de dominação e os
indivíduos finalmente se emancipam. Isto é, os indivíduos tornam-se livres para
conscientemente construir sua história e se engajar nas atividades que melhor
desenvolvam seu potencial, sem estarem diretamente submetidos ao fetichismo, aos
caprichos de um sistema social inconscientemente fundado que torna obrigatórias
determinadas práticas sociais.
Não fosse o poder fetichista que envolve essa categoria, sua liquidação crítica
poderia ser efetuada com palavras muito mais simples do que as colocadas neste artigo,
simples talvez como as que uma vez escreveu um grande escritor, ainda que para
concebê-las tivesse que evocar grande sabedoria:

Se ele tivesse sido um grande e sábio filósofo (...) teria compreendido


que o trabalho é tudo aquilo que a pessoa é obrigada a fazer, e que a
diversão é tudo aquilo que a pessoa não é obrigada a fazer. E isto o teria
ajudado a entender por que ganhar a vida fabricando flores artificiais em
uma oficina pouco arejada ou subir horas a fio pelos degraus de uma
roda de madeira para puxar a água necessária a fim de irrigar um campo
é trabalho, enquanto jogar boliche somente para derrubar meia dúzia de
garrafas ou escalar o Mont-Blanc nos Alpes europeus é considerado uma
diversão. Há cavalheiros bastante ricos na Inglaterra que dirigem

57 MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã. Op. Cit., p.74.
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carruagens de passageiros puxadas por quatro cavalos durante quarenta


ou cinquenta quilômetros ao longo de uma estrada poeirenta sob o sol de
verão, somente porque o privilégio lhes custa uma boa quantia em
dinheiro. Se por acaso alguém pensasse em lhes oferecer um salário para
executar o mesmo serviço, recusariam ofendidos e desistiriam no mesmo
momento, porque aí seria um trabalho.58

58 TWAIN, Mark. As Aventuras de Tom Sawyer. Porto Alegre: L&PM, 2002, p. 23.
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Primeiras notas

Frederico Lyra de Carvalho 1

Como o título sugere, este artigo é o pontapé inicial para uma reflexão sobre
novos termos e horizontes para a crítica da música. Um tal engajamento teórico nos
parece fundamental em um momento histórico como o nosso. Provavelmente, tal apelo
por uma renovada reflexão da forma e papel da crítica musical poderia ser feito para
todas as outras artes, mas nos parece que a música vive na atualidade um paradoxo não
existente em todas as outras, pois ela parece estar ao mesmo tempo excessivamente
presente e demasiado ausente da vida das pessoas. Como bem percebeu Charles Rosen 2,
no seu Nos Confins do Sentido, a apelação por uma autonomia das obras de arte é mais
convincente na música, particularmente na instrumental, e até mesmo um certo caráter
não-histórico ou atemporal da arte é mais perceptível nesta modalidade artística. Dessa
maneira, além de ser mais factível a um apelo para a volta de uma tão esquecida
autonomia (mesmo que relativa) das artes, cremos que a partir da música podemos
engajar uma outra forma de crítica social, menos culturalista e identitária do que a que
está a venda no mercado.
Neste artigo damos uma primeira pincelada em diversos temas e horizontes que
achamos ser pertinentes para a crítica, vislumbramos aprofundar e desenvolver a maior
parte deles no futuro.

1 - Temporalidade
Em uma era de expectativas decrescentes, onde nada mais se espera do futuro
além de uma representação de um passado seletivo, as únicas coisas que parecem ser

1 Doutorando em Filosofia da Arte na Université Lille 3 e membro do CEII.


2 ROSEN, Charles (1998), Aux Confins du Sens, Paris, Seuil.
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almejadas são o não-anonimato e o distanciamento da morte. Por outro lado, as artes,


de maneira geral, possuem uma temporalidade distinta, elas existem e são criadas em
uma temporalidade especifica. A arte pode antever o futuro, retratar o seu presente e
recriar o seu passado, mas ela pode também negar o futuro, neblinar o presente e
fantasiar um passado. É verdade porém que nada disto está decidido de antemão. Mas o
que pode ela fazer em uma era de expectativas decrescentes? Como abordar essa
perspectiva do ponto de vista de uma única arte: a música?
No Novo Tempo do Mundo, “tempo intemporal da urgência perpetua”3, segundo
o filosofo Paulo Arantes, todas as músicas passaram a coexistir de forma efetiva e
simultânea, possibilitando ao ouvinte que navegue séculos na sua escuta sem
geralmente nem se dar conta, o que na prática neblina qualquer possibilidade histórica
de escuta ou mesmo uma mínima organização referencial desta. A temporalidade das
obras musicais foram comprimidas de tal forma que literalmente o novo já nasce velho
pois não há como ser empiricamente distinguido do que foi feito a, digamos, 1000 anos.
O que é mais antigo? O último sucesso de Wesley Safadão ou “La Messe de Notre Dame”
de Guillaume de Machaut? Na virtualidade atual, não há diferença objetiva entre eles.
Grosso modo, não há mais distinção cronológica possível. Um registro de uma música
feita no nosso presente, ou num passado recente, adquire uma temporalidade igual a
todos os outros. Ele torna-se automaticamente contemporâneo de, digamos, um registro
de um canto gregoriano originalmente escrito antes do ano 1000, mesmo que tal
registro fonográfico tenha sido feito a 50 anos. Dessa maneira, um “nova música”, na
prática, é igual a uma música milenar com uma gravação cinquentenária. Tal situação
pode criar um certo anacronismo histórico em que, por exemplo, esta última, mesmo
“tendo 1000 anos” pode, de uma certa maneira, ser mais contemporânea e atual do que
um outro registro de uma música escrita a um mês atrás. Assim, de uma certa forma, o
que antes era passível apenas de discussão estética é hoje também determinado
materialmente. A história passa a não significar mais nada na objetividade da escuta. As
expectativas da escuta do presente passam a ser meros olhares apontando para um
passado recriado na incapacidade, ou mesmo impossibilidade, de distinguir o que é ou
não o agora. Em um primeiro momento o novo tempo do mundo derruba qualquer

3 ARA ES, Paulo 2014), “ novo tempo do mundo”. n:__. O novo tempo do mundo, São Paulo,
Boitempo, p. 94.
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evolucionismo e tradição musical, o que temos agora é literalmente um “cada um por


si”. Só nos resta ou “inventar tradições”, no sentido estudado por Eric Hobsbawm no seu
clássico A Invenção das Tradições4, e com isso ampliar o abismo presente, ou aceitar
que ao menos como ponto de partida para a escuta, e consequentemente para a crítica,
não importa mais a origem histórica, e possivelmente nem geográfica ou social da
música. Evidentemente não é que tais parâmetros não existam mais, mas, para a crítica
musical, em um tempo urgente de presente contínuo, apenas em um segundo momento,
após uma escuta crítica e imanente, é que eles vem à tona. Na verdade esta talvez seja
uma constatação objetiva e talvez nem este segundo momento nem existiria mais.
Apenas desta forma o crítico poderá se aperceber, por exemplo, que algumas músicas
são anacronicamente mais antigas que outras ou que não totalmente compatíveis com o
que se esperaria que surgisse em um determinado lugar ou situação social.
Não obstante, como bem percebeu o filósofo Giorgio Agamben, “aquele que
pertence verdadeiramente ao seu tempo, o verdadeiro contemporâneo, é aquele que não
coincide perfeitamente com ele nem adere às suas pretenções e se define, neste sentido
como inatual”5, desta forma a nova crítica musical deve ter coragem de separar o joio do
trigo de forma materialista e imanente, deixando de fora modismos e tendências
pontuais, ou seja, não deve ser necessariamente contemporânea. Como afirma Anselm
Jappe, “assim como para a economia e para a política a reflexão teórica sobre a arte não
tem por objetivo justificar o presente ou glorifica-lo”6, desta forma, nem tudo que nos é
dado ou oferecido é passível de análise crítica, não se deve considerar e nem falar de
tudo. Como Rosen bem observou, a função do crítico seria a de traduzir o que é
“exótico” na linguagem cotidiana; sob tal ângulo o que já é corrente é supérfluo de ser
criticado, em tais casos a crítica se torna redundante. Por outro lado, é necessário correr
um certo risco que Rosen chama mesmo de “irresponsabilidade”7, que segundo este
seria imprescindível à crítica, que aqui funcionaria como uma espécie de tradutor de um
mal-entendido anterior na escuta. Uma nova crítica musical não pode voltar atrás no
tempo, reclamar um suposto poder sagrado e transcendental da música. A crítica deve
4 HOBSBAWM, Eric & RANGER, Terence (1983), A Invenção das Tradições, São Paulo, Nova Fronteira,
2012.
5 AGAMBEN, Giorgio (2009), Qu'est-ce que le contemporain ?, in Nudités, Paris, Payot-Rivages, 2012,
p.20
6 JAPPE, Anselm (2011), Crédit à Mort, Paris, Lignes, p. 239.
7 ROSEN, op. cit. p. 18.
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se completamente imanente e materialista e não pode esquecer que a música é apenas


mais uma, dentre tantas outras, criações do homem.
Existe, porém, um outro lado da história. Sob um outro ponto de vista, esse novo
tempo, é quase que incompatível com a música. Como ouvir uma música completa neste
tempo? Ela se torna quase que insuportável. Mesmo o “antigo” Cd se torna muito longo
para uma escuta. Não há tempo para ouvir algo por completo, não existe mais a
possibilidade de se perder tempo com a música, a urgência não permite. Na curiosa
observação de Charles Rosen:

“os programas de concerto são manifestadamente benéficos quando eles nos esclarecem
músicas às quais não estamos familiarizados, porém mais comumente eles o são em um
sentido negativo – quer dizer que eles previnem o público que a peça a ser escutada
durará três quartos de hora e não dez minutos, evitando assim que eles se
agitem/mexam nervosamente durante a execução”.8

Desta forma, ouvir, escutar se torna um desafio pessoal que de uma certa forma desafia
o tempo. Exige uma paciência e uma relação de indeterminação com o tempo que não
parece mais estar na ordem do dia. Se na sociedade das mercadorias “tempo é dinheiro”,
como o crítico pode querer que alguém gaste o seu tempo efetivamente escutando a
música?

2 - Escuta e Condomínio
Música é a arte da escuta, como nos esclarece François Nicolas. É esta escuta,
porém, ainda possível no mundo atual em que vivemos? Existe quem crie música,
porém há quem as escute? Sendo uma arte da escuta, e não do tempo, a música
pressupõe que, para existir, seja escutada por um terceiro elemento. Ela impõe para a
sua existência uma intenção, uma necessidade de ser parte de um todo social. O
paradoxo é que para ser autônoma ela pressupõe que não pode existir sem esse terceiro
termo. Sua autonomia então é relativa, mas ao mesmo tempo é suscitada na

8 ROSEN, op. cit. p. 89-90.


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possibilidade de ser escutada em si mesma. Não há sentido na música se ela não é para
ser escutada. O triângulo músico-música-público não pode ficar incompleto.
Nicolas defende, apoiando-se na teoria badiousiana de mundo9, uma tese
materialista da música, em que esta, por sua vez, faz mundo10. No mundo-música todas
as músicas são colocadas no mesmo plano e convivem num a priori de igualdade
absoluta, independentemente de suas origens temporais ou geográficas. Elas convivem
em pé de igualdade. Um outro aspecto importante é que Nicolas defende que a música
se desenrola na escuta, e não no tempo, como ela é normalmente vista. Tal
deslocamento de uma arte do tempo para se tornar uma arte da escuta, muda
completamente a perspectiva que podemos ter sobre a música. Ela se torna uma arte
não de uma entidade exterior e independente do ser humano – o tempo – mas uma arte
de uma ação humana, da escuta. Quem escuta, e isso vale para o músico e o público,
passa a ser responsável pela constituição da música, pois “a escuta é uma compreensão
da forma da peça que procede de maneira endógena”11 e tal ação é “um embarque,
selvagem ou charmoso, mas sempre imprevisto.”12 Desta forma a escuta musical seria o
local da escuta por excelência. Nos resta então uma questão, qual o paradigma da forma
de escuta atual?
Jamais ouvimos tanta música, mas nunca escutamos tão pouco. Com as novas
tecnologias podemos carregar a música em quantidade infinita para qualquer lugar. Se
antes saíamos de casa para assistir música, hoje colocamos um fone de ouvido e ela
parte diretamente para o nosso cérebro. É imagem comum atualmente vermos pessoas
no transporte público ou andando na rua com seus fones de ouvidos ligados nos seus
celulares ou mp3-player “curtindo um som”. Uma outra faceta de tal situação é aquela
em que o motorista de carro, no insuportável engarrafamento diário, coloca o volume no
máximo e “curte um som” nas alturas – som este ainda mais alto quando o carro é um
importado conversível ou uma caminhonete de luxo. Há ainda aqueles que se trancam
no quarto e enquanto navegam na internet colocam um fone de ouvido no computador,

9 Ver: BADIOU, Alain (2006), Logique des mondes, Paris, Seuil.


10 Daí o título da sua obra: “Le Monde Musique” Mundo-Música), publicado em 4 volumes, sendo que
o primeiro, no qual nos apoiaremos, é dedicado à “L'oeuvre musicale et son Écoute” A obra musical e a
sua Escuta).
11 NICOLAS, François (2014), Le Monde-Musique I. L'Oeuvre musicale et son écoute. Paris, p. 47.
12 Ibidem, p. 250.
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outros, por sua vez, se trancam nos seus quartos e colocam o auto-falante no máximo.
Tais formas de escuta musical nos remetem à forma de vida que o psicanalista Christian
Dunker chamou de: vida em forma de condomínio. Analogamente, em tais casos o que
temos é uma: forma de escuta condominial. E esta é a forma de escuta predominante no
nosso presente.
O condomínio é lógica de vida brasileira, mas neste caso é lógica de escuta
mundial. Dunker localiza o principio do desenvolvimento de tal forma de vida ainda nos
anos 70, com a criação dos primeiros condomínios fechados nos entornos da cidade de
São Paulo. Esta seria uma lógica que abrange “a transformação dos problemas relativos
à saúde pública, mental e geral, em meros problemas de gestão” 13. Tal lógica tem como
fundamento um “conceito de defesa, cujo modelo é o forte de ocupação”, área cercada
por “muros de defesa, cujo objetivo militar é impedir a entrada”14. Mutatis mutantis,
não seriam o uso contínuo de fones de ouvidos, o volume máximo no automóvel ou a
porta trancada do quarto muros para os nossos ouvidos? Afinal de contas, “A lógica do
condomínio tem por premissa justamente excluir o que está fora de seus muros”15.
Ora, por que então a música nos parece ser uma coisa totalmente fora da vida das
pessoas mesmo se ela jamais esteve tão presente quanto na atualidade? Nesta forma de
escuta condominial, a música perde o seu caráter social e de partilha coletiva que possui.
Aqui, “o muro faz lugar por meio da fronteira”16. A música está lá, mas é como se lá não
estivesse. A possibilidade para a universalidade da música exige que sua escuta seja
simultaneamente coletiva e individual. A música atinge a todos os que a escutam de
forma simultânea, mas não de forma similar. Tal experiência exprime uma forma
irreconciliável entre o universal e o particular, onde um não pode ser reduzido ao outro,
mas onde, de uma certa forma, um constitui o outro, pois na minha singularidade
enquanto ouvinte eu constituo o coletivo que escuta a música e na coletividade abarcada
pela música me constituo como indivíduo ouvinte. Na escuta condominial não existe
esta relação dialética, o aspecto coletivo é excluído e aquele que escuta só tem a si
próprio como referência, ele está murado e resguardado do “perigo” que a ação coletiva

13DUNKER, Christian I. L (2014), Mal-estar, sofrimento e sintoma. Uma psicopatologia do Brasil entre
muros. São Paulo, Boitempo, p. 42.
14 Ibidem, p. 50
15 Ibidem, p. 52.
16 Ibidem, p. 65.
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da escuta proporciona. Em tal forma encarnamos a ilusão de vivermos um “sentimento


de que se usufrui de uma experiência que é acessível para poucos”17, esta se reduz a mim
mesmo ou no máximo para aqueles que cabem no meu carro ou no meu quarto. O muro
que formamos para tornar a nossa escuta puramente individual, nos protege dos sons ao
nosso redor e bloqueia o nosso senso crítico para com o espaço social em que estamos
inseridos, seja ele a rua, o transporte público, o trânsito e o próprio lar. Em tal caso
temos uma forma diferente de alienação condicionada por este “muro [que] diz
invariavelmente “não é isso” para os que estão fora e, por consequência, 'é isso' para os
que estão dentro”18.
Andar com fone e ouvindo música o tempo todo talvez seja a forma mais
sintomática dessas todas. Em um certo sentido é uma radicalização do nosso
condomínio, sendo que neste estamos totalmente sós. Com a música entrando
diretamente no nosso cérebro não escutamos os barulhos do entorno, não adicionamos
à música os ruídos do ambiente que dela sempre fizeram parte, pois mesmo com o som
do carro, a vitrola ou o sound-system no máximo a música se mistura ao ambiente.
Neste condomínio particular saímos na rua e não ouvimos mais o outro, trancamos os
nossos ouvidos às diversas paisagens sonoras e nos condicionamos aos ritmos que a
música, que entra diretamente nos ouvidos, nos dita. Se antes seguíamos os nossos
passos de forma mais aleatória, hoje eles estão condicionados mecanicamente regidos
pelo que segue diretamente para o nosso cérebro. Sem contar, além disso, os aspectos
sociais implícitos, como o de não aguentar mais o incômodo que é o barulho que o outro
produz e o de não questionar ou mesmo esquecer os ruídos presentes no ambiente
social, na cidade em que vivemos. Se carregamos conosco o nosso condomínio 24h por
dia, por que preocupar-nos com o que acontece fora dele? De uma certa forma, em tal
situação, a música deixa de ser música, ela se aproxima muito mais de uma “droga” com
efeitos hipnóticos. A repetição total e contínua anula qualquer efeito, torna a música
plana, abortando o que ela vislumbra. Podemos associar este excesso de música nos
nossos ouvidos à compulsão por beber coca-cola, afinal, como o filósofo Slavoj Žižek19
remarca, mesmo esta última nunca matando a nossa sede, não paramos de continuar

17 Ibidem, p. 59.
18 Ibidem, p. 64.
19 Ž ŽEK, Slavoj (2000), The Fragile Absolute. London, Verso, p. 21-40.
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repetindo o gesto de ir até ela buscar algo que ela não contém mas finge nos oferecer.
Tal situação também nos lembra uma premissa comum de ser lida nas antigas revistas
de guitarra, onde falando da quantidade de notas tocadas, os colunistas diziam que às
vezes “mais é menos, e menos é mais”. Em um certo sentido uma escuta mecânica e
passiva, excessiva e condominial, não finaliza a música por completo, ela se perde no
justo momento da sua concretização, não cumpre a sua promessa.

Na sequência do seu livro, Dunker se arrisca em uma analogia desta forma de


vida condominial com o desenvolvimento da música popular no Brasil, especialmente
no Rio de Janeiro. Comentando a música “W/Brasil”, de Jorge Ben Jor, ele chega à
seguinte conclusão:

“['W/Brasil'] é um marco da passagem do samba para o funk no país. O samba é


tradicionalmente entendido como uma música do coletivo indeterminado, da festa
aberta, do barracão, da roda e da família. O funk, ao contrário, traz a ideia de que cada
um, ou cada turma, ou cada galera, ou cada bonde tem de ocupar seu lugar. É como se o
samba fosse uma conversa, em forma de canção, enquanto o funk é um conjunto de
monólogos.”20

Tal crítica nos parece uma leitura bastante interessante da situação e recepção da
música no Brasil. Há um problema, porém: Dunker dá muito peso para a música em si.
Em tal análise nos parece que a música determina o modo de vida a ela atrelado (ou no
mínimo teria um igual peso na equação). A nossa hipótese vai na direção contrária. O
modo de vida é que escolhe a música com que vai dançar e esta só pode ser entendida
como necessária, portanto atrelada a este, de forma retroativa. Apenas em um segundo
momento, já atrelada a este modo de vida, é que a música vai, da sua forma particular,
passar a determiná-lo. Podemos lembrar, por exemplo, que o modo de vida condominial
começa a surgir nos anos 70 e este funk nos anos 90. Apenas depois deste funk existir, o
modo de vida já existente pôde passar a ser associado também com essa forma de se

20 DUNKER, op. cit, p. 72-73.


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fazer música. De uma certa forma, esse último chegou para animar a festa depois que
esta já estava a pleno vapor.
Ademais, é interessante observar que tal crítica de Dunker nos remete a um
recente debate que tomou uma relativa dimensão, na sequência da publicação de duas
colunas pelo filósofo Vladimir Safatle no jornal Folha de São Paulo, a primeira
intitulada: “O Fim da Música”; e a segunda, uma tréplica às críticas feitas à primeira:
“Os alicerces da cidade”. Na primeira delas, Safatle faz uma análise da situação da
música no Brasil na última década, comparando o que nela aconteceu com momentos
passados da história musical colocando-os em paralelo com a história geral do país. A
sua tese é a de que, pela primeira vez, em um momento de desenvolvimento econômico
não tivemos uma certa explosão criativa musical no âmbito nacional. Por uma outra via,
Safatle se aproxima da análise de Dunker quando afirma que:

“A despeito de experiências musicais inovadoras nestas últimas décadas, é certo que elas
conseguiram ser deslocadas para as margens, deixando o centro da circulação
completamente tomado por uma produção que louva a simplicidade formal, a
estereotipia dos afetos, a segurança do já visto, isso quando não é a pura louvação da
inserção social conformada e conformista.”21

Ideia que completa na sequência:

“Ultimamente, todas as vezes que se levanta a regressão da qual a música brasileira é


objeto se é acusado de elitista. Afinal, tais músicas teriam vindo dos estratos mais pobres
da população brasileira. O que se chora seria, na verdade, o fim da dominância cultural
da classe média urbana e o advento das classes populares e das classes do “Brasil
profundo.”22

De uma certa forma o condomínio se estende também para tais casos, quando
demandas por segurança e conformidade pelo já escutado passam a invadir, sob as mais

21 SAFA LE, Vladimir 2015a) “ fim da música”, disponível em


http://www1.folha.uol.com.br/colunas/vladimirsafatle/2015/10/1691849-o-fim-da-musica.shtml
22 Idem, Ibidem.
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diversas formas, todas as classes e estratos sociais em todas as áreas do país. Na sua
relação com música também se exprime o condomínio no qual se envolve neste
momento histórico a sociedade brasileira, e ele ultrapassa, e muito, as fronteiras do que
é normalmente conhecido como condomínio habitacional.
Na sequência, é interessante observar que após as mais diversas críticas que
recebeu como reação ao primeiro artigo 23, na sua tréplica Safatle faz uma dura crítica à
crítica musical no Brasil quando diz, por exemplo, que: “há uma incrível covardia crítica
em relação à miséria musical do que circula de forma maciça nesta última década”24 e
afirmando que:

“para estes que acham não fazer sentido qualquer crítica da forma musical, que acham
que qualquer análise crítica da produção cultural é mistificação de classe, teria muito a
dizer, mas insistiria em um ponto: vocês, no fundo, não acreditam que existam
julgamentos estéticos, apenas se acomodam a análises sociológicas”.25

Tal discussão é imprescindível e este artigo se encaixa neste debate por acreditar
que, se admitimos que é importante observar a música do seu ponto de vista social, a
situação atual clama por repensá-la pela outra via, esteticamente e em toda a sua
potencial autonomia. Desta forma, talvez possamos nos contrapor aos lugares comuns
que visam afirmar que existiria um público específico, seletivo, pequeno ou enorme,
especialista ou ignorante para cada determinada música, que cada forma de música
deve visar um tipo de ouvinte em particular ou barbáries afirmativas semelhantes. Não
podemos continuar com esses giros em falso, a música abraça todo o potencial da
humanidade em si.

3 - Simbolismo e Sentido
Anselm Jappe, nas suas análises estéticas, tem como ponto de partida a
relevância que o simbolismo que as mais diversas produções culturais produzidas pela

23 Com uma boa parte parecendo se dirigir a outra coisa e não ao que havia sido escrito...
24 SAFA LE, Vladimir 2015b) “ s alicerces da cidade”, disponível em:
http://www1.folha.uol.com.br/colunas/vladimirsafatle/2015/10/1694347-os-alicerces-da-cidade.shtml
25 Idem, Ibidem.
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humanidade podem em si portar: “as produções culturais fazem parte da esfera


simbólica, destas estruturas ou meios os quais os homens sempre tentaram se
representar e explicar a si mesmos a vida e a sociedade e às vezes também a criticar”26.
Ele completa esta ideia afirmando que tais produções culturais poderiam ser vistas
como o último refúgio da liberdade, carregando consigo um caráter utópico do possível,
uma anunciação do que poderia ser e do que poderá advir. Desse modo, uma questão
que restaria é: qual a capacidade da arte contemporânea de criar símbolos coletivos e
não apenas pessoais? O que no aqui e agora precisa e pode ser traduzido no plano
simbólico? Como ponto de partida, ele nota que na sociedade atual temos pela primeira
vez “a separação entre uma esfera econômica e uma outra esfera simbólica e cultural”27.
A dimensão cultural nas sociedades pré-capitalistas estava misturada em todos os
aspectos da vida, apenas na sociedade capitalista temos a separação do trabalho das
outras atividades, onde, pela primeira vez, a economia vem para o centro das atividades.
Jappe observa que na atualidade a indústria da diversão constitui o principal eixo
de tal produção cultural. Seguindo este raciocínio, em princípio, haveria algo de muito
errado com uma música que visa divertir, que é criada com apenas com este intuito.
Como bem observou Daniel Bensaïd, o capitalismo “se esforçou para deslocar o sentido
da vida em direção ao lazer”28. Jappe, por sua vez, observa que tal indústria também
possui um papel preponderante no controle, pacificação e criação de consenso social. De
uma certa forma, ela passa a ser uma questão de política pública (de segurança) nas
mais diversas dimensões geográficas, de um bairro à uma escala planetária. Além disso,
o autor aponta que há uma obscena comunhão entre a indústria do divertimento e a
infantilização e narcisismo característicos da fase atual do capitalismo. Ele classifica tal
fenômeno uma regressão antropológica e nos diz que esta indústria do divertimento
seria uma das principais responsáveis por tal retrocesso. O objetivo seria o de
infantilizar massivamente através de uma des-simbolização completa, o que elimina
toda possibilidade de imaginação e mesmo de uma certa percepção da realidade por
grande parcela da sociedade. Como se tudo que nos aparecesse não passasse de uma
mera reprodução, de uma forma opaca e plana, do já previamente existente. O crítico

26 JAPPE, op. cit, p. 241.


27 Ibidem, p. 214.
28 BENSAÏD, Daniel, Le spectacle, stade ultime du fétichisme de la marchandise, Paris, Lignes, 2011, p.

119.
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musical Tinhorão observa que a criação musical do mercado busca ser feita
normalmente de forma banal e repetitiva, para poder chegar ao máximo possível de
pessoas, criando uma espécie de média da sociedade, de forma “que não satisfaz de
maneira profunda a ninguém, mas garante a aceitação geral”.29 Um desdobramento
claro de tal procedimento é a música feita para a propaganda: o jingle. Se antes
destinado apenas a este fim, podemos afirmar que, em uma certa reviravolta negativa,
tal forma de música se tornou o padrão da indústria cultural que, a grosso modo,
atualmente produz meros jingles travestidos de música.
Jappe também atenta para o importante papel que uma certa “esquerda” teve,
apoiada nos motes e conceitos de uma pseudo-igualdade e democratização, na
transformação da cultura em mercadoria. Ali onde elas tinham um sentido de existir,
exatamente nos locais onde elas não estavam estabelecidas de uma vez por todas, as
“esquerdas” quiseram abolir qualquer forma de hierarquização. Segundo o autor, “é
justamente a existência de uma hierarquia de valores que pode negar e contestar a
hierarquia do poder e do dinheiro, a qual, ao contrário, reina sem partilha na época
onde negamos toda hierarquia cultural”.30 Desta forma, o relativismo é uma falsa
maneira de emancipação e induz o erro ao alvo à crítica social. Parece-nos que devemos
recomeçar a admitir que existe uma diferença qualitativa entre os objetos culturais, logo
entre os objetos musicais, entre o que não passa de diversão e o que aponta para a
verdade. Readmitir um julgamento qualitativo e não puramente relativo ou subjetivo.
Bastaria observar melhor os reflexos da dominação da mercadoria, pois para esta tudo é
igual, não há diferença qualitativa, assim “deixar todo mundo 'livre', com apelo a um
espontaneísmo, não cria as condições de liberdade.”31
Por outro lado, Rosen enfatiza o problema que vários críticos enfrentam na
tentativa de achar os vestígios do que quiserem arbitrariamente achar dentro de uma
música determinada. Ele observa que “a música se aproxima o tempo todo da ausência
de significação, do sem-sentido”.32 É comum, por exemplo, críticos tentarem achar
sinais do sofrimento de um compositor dentro de uma determinada música ou que um
ritmo determinado na verdade representasse, na música, o fluxo do rio da terra do
29 TINHORÃO, José Ramos, Cultura Popular Temas e Questões, São Paulo, Ed. 34, 2006, p. 199.
30 JAPPE, op. cit, p. 224.
31 Idem, Ibidem, p. 226.
32 ROSEN, op. cit, p. 20.
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compositor ou coisas similares, como se uma correspondência imediata fosse possível


entre a música e a vida do compositor. Ele observa que “a música se mantém nos confins
do sentido e do sem-sentido. Por isso a maior parte das tentativas de ligar uma
significação determinada a uma peça de música parecem impertinentes – mesmo
quando a ligação em questão faz autoridade, e mesmo se ela é estabelecida pelo
compositor em pessoa.”33 Um outro problema estaria na procura de um novo sentido no
repertório tradicional, nas músicas de outra época, na procura por novas formas de
tocá-las. A música faz sentido por si mesma, mas paradoxalmente pode facilmente cair
no sem sentido, ou no esquecimento do sentido original - se é que um dia houve algum.
Para efeito de comparação, Rosen faz um paralelo nos lembrando de rituais religiosos
ou mesmo de jantares familiares de locais onde o sentido perdeu seu significado
original.
Desta forma, se estamos de acordo com Anselm Jappe de que há necessidade e
importância da arte voltar a simbolizar e com isso criticar de forma concreta a
sociedade, o sentido de tal simbolismo, ao menos no caso da música, deve ser
totalmente indeterminado, pois “a proximidade do sem-sentido, a recusa de toda
significação fixada de antemão, é condição essencial para a música.”34 Ela viverá do
paradoxo de simbolizar algo que não poderemos determinar, como hieróglifos
indecifráveis mas, mesmo assim, necessários.

4 - Função e Utilidade
Como bem observou o crítico Jorge de Almeida, “a percepção das contradições da
situação musical da época passa a exigir do crítico a reflexão sobre as contradições da
situação social da época”.35 A crítica da arte ocorre de fato quando esta faz aparecer um
espaço isolado que corta esta última de toda funcionalidade, coloca-a a nu, sendo capaz
de denunciar através de si própria, introduzindo o caos na ordem. A arte é um fato social
que se coloca na sociedade se opondo a ela e se inscreve no seu seio para melhor
exprimir as suas contradições. Desta forma, ela manifesta o seu legítimo interesse, pelo
negativo da dominação social, pelo seu futuro, pela emancipação do homem.

33 Idem, idem, p 92-93.


34 Idem, Ibidem, p. 145.
35 ALMEIDA, Jorge de (2007), Crítica dialética em Theodor Adorno, Cotia, Ateliê, p. 152.
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Contraditoriamente, ela corre o tempo todo o risco de ser absorvida pela ordem social
dominante e de ter a sua função crítica desviada para reabsorção desta na reprodução
do mundo. Ela faz aparecer na aparência da unidade a realidade da fragmentação,
exprimindo negativamente a harmonia e encarnando as suas contradições. A arte rende
justiça ao singular realizando o que o pensamento conceitual não consegue mais. Trás o
que resta à luz do dia. Recusar esta condição significa dizer que aceitaremos tudo o que
já está dado.
Vista desta forma a música pode continuar a carregar a perspectiva de criar algo
que ainda não tenha advindo, afinal de uma certa forma “uma das funções da arte
sempre foi a de mostrar aos indivíduos um mundo superior”36, um mundo onde
encontrávamos a liberdade e intensidade ausentes no dia a dia, não uma mera repetição
deste, ou como dirá Adorno, “em todas as obras autênticas, aparece alguma coisa que
não existe”37. No entanto, somos diariamente bombardeados com o oposto, com a
insistência na eliminação da ideia de que algo possa existir de diferente da realidade
banal que nos cerca. Tal perspectiva não é uma simples utopia. A possibilidade existe
efetivamente pois algumas das obras do passado, à sua maneira, colocavam o sujeito em
crise ao invés de consolá-lo, delas não se esperava uma confirmação do local habitual do
conforto, mas uma alteração do lugar estabelecido. Estas vislumbravam outros modos
de vida. Além disso, para ser relevante, a música deve questionar certas categorias
correntes que passam como naturais e automaticamente positivas, pois de uma certa
forma, são as obras que nos julgam, antes mesmo de julgá-las, elas estabelecem os seus
parâmetros, elas que escolhem o seu público e a elas que este deve ser suficiente – sob
um certo ponto de vista, a arte não é democrática, ao menos não no sentido mais
corrente do termo. Ela o é na sua potencialidade universal, mas não é efetivamente, pois
não atinge a todos da mesma forma, nem é certo que atinja a todos em algum momento.
Adorno, e também Jappe, afirmam que, da sua própria maneira, a arte prova que
nem tudo que existe é útil. O primeiro nos lembra que “as obras eram sem finalidade
porque elas escapavam da relação fim-meio da realidade empírica” pois, “a finalidade
imanente das obras de arte lhe vinha do exterior”38. Para o segundo,

36JAPPE, op. cit, p. 247.


37ADORNO, T. W (1970), Théorie Esthétique, Paris, Klincksieck, 2011, p. 123.
38 Idem, Ibidem, p. 197-198.
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“a arte, se não quer participar da marcha deste mundo, deve se abster de vir ao
encontro das 'pessoas', facilitar as suas vidas, tornar a sociedade mais simpática,
ser útil, agradar, ela resta mais fiel à sua vocação quando ela se opõe a
comunicabilidade fácil e se esforça de confrontar o seu público com algo maior do
que ele.”39

Segundo Jappe, apesar de tudo, a esfera cultural ainda seria um lugar aonde podem se
produzir coisas inúteis que estejam intrinsecamente ligadas à criação de riquezas e
capazes de verdadeiras críticas – normalmente reprimidas ou rejeitadas – que falam da
sua forma da vida social mas que, por não estarem diretamente implicadas no ciclo de
acumulação do capital, normalmente pagam o preço de serem marginalizadas. Mesmo
tal força da arte não consegue sempre resistir a dinâmica do capitalismo. Bens culturais
passam a ser produzidos em massa e entram na lógica da mercadoria e mesmo obras
inicialmente autônomas entram na roda. Se a arte tem algum objetivo de ir além da
mera reprodução da indústria cultural deve, observa Jappe, levar em conta estes fatos.
Sobre a crítica musical mais precisamente, Adorno é certeiro ao afirmar que “em
diversos casos, aquilo que se pensa, se fala e se escreve sobre música difere muito de sua
função, daquilo que ela de fato cumpre na vida dos seres humanos, seja em sua
consciência, seja em seu inconsciente.”40 Observando a posição deste filosofo, Jorge de
Almeida remarca que já na sua época, e nos parece que hoje de forma ainda mais
agravada:

“Adorno apenas seria um “conservador” naquele sentido em que Schoenberg foi


chamado de “conservador revolucionário”; ou seja, ao criticarem a “utilização” da
música para um fim estranho a ela própria, ambos afirmariam, ainda que
utopicamente, que a própria música, e a humanidade por trás dela, deveriam ser
compreendidas como fim em si mesmos”.41

39 JAPPE, op. cit., p. 246.


40 ADORNO, T. W (1973), Introdução a sociologia da música, São Paulo, Unesp, 2009 , p. 271.
41 ALMEIDA, op. cit, p. 148.
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5 - Posição do músico
Para entrar na lógica do mercado tudo é colocado no mesmo nível, porém de
maneira inversa, sobrepondo ao objeto os aspectos exteriores a ele, tais como a origem
social e geográfica de quem o concebeu, e só então ele passa a valer. Como continuar
criando música nestas condições? Ao que parece, na mesa só existem respostas prontas
ou que apontem para uma certa individualização da razão da criação musical. Ela existe,
não negamos, é certo que respostas como “porque quero” ou “porque eu posso” não são
em princípio falsas. Porém, tais respostas não dão conta do problema temporal
suscitado e social implícito, pois como Adorno percebeu, mesmo “o discurso mais
solitário do artista vive ainda do paradoxo que consiste a falar aos homens graças a
solidão, na renúncia de uma comunicação rotineira”42.
Todos devem ser, e são, capazes de viver a arte, viver a música, porém devemos
entender que não no sentido que o sistema nos estimula: “seja criativo, você também
pode ser um criador, você também deve compor música com os aplicativos do seu
celular”. Isso nos coloca uma série de questões. Quem pode criar? Quem vai criar?
Todos podemos? São todas questões que desviam do foco real. Se pensarmos por uma
outra perspectiva, como nos lembra François Nicolas, quem escuta também faz música.
Vivê-la como ouvinte, como alguém que a escuta, é viver constituindo a música. De uma
certa forma, é criá-la. Mas para isto, o sujeito não deve apenas escutar, ele deve querer
escutar, inverter a passividade comumente associada à escuta e torná-la ativa.
Infelizmente, estando este poder de constituição do ouvinte totalmente mascarado,
estamos cada dia mais afastados da música. Há um nítido problema na visão que quer
que o espectador, “democraticamente”, possa ver ou escutar o que quiser, ou seja, se
projetar lá onde ele não está. Uma obra bem sucedida não é mais vista como um
pequeno passo na realização humana.
Muitos artistas não trabalham propriamente a matéria da sua arte, não fazem
atenção ao trabalho do material nas suas obras. Tal atenção seria condição fundamental
para que algo possa ser vislumbrado e surgir. Para Jappe, esta seria uma outra
manifestação de narcisismo, “a cultura do 'projeto' para a qual a matéria não passa
normalmente de um suporte inerte que o sujeito pode manipular para ali depositar as

42 ADORNO, T. W (1962), Philosophie de la Nouvelle Musique, Paris, Gallimard, p. 31.


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suas ideias”.43 Na música tal problema passa sobretudo nas questões que suscitam: a
mixagem, o sampler, a edição, a citação, todas no limite do plágio, funcionando quase
que como uma “criatividade de supermercado”. O autor insiste na necessidade de se
“explorar as potencialidades e os limites da matéria, do som, das palavras, e ver se
podemos chegar juntos, no lugar de as manipular à sua vontade, constituir assim um
primeiro passo em direção à uma relação menos violenta com o mundo, os outros
homens, a natureza”.44 Não basta uma boa vontade ou gentileza, a arte não pode se
tornar uma terapia ou parte de um cotidiano convivial. O tempo histórico da arte não é o
mesmo da vida do artista. Este último deve se confrontar com o passado, não pode
querer ou pretender estar em um outro tempo que não o seu. A arte deve ser outra coisa
e o artista deve ser capaz de aspirar mais do que o pessoal.
Os artistas terminam entrando no jogo e disputando a tapas, como concorrentes,
os olhares daqueles que podem lhes financiar e, no capitalismo, não se pode apenas
aceitar apenas uma parte do jogo, ele não vem com peças faltando. A capitulação total
dos envolvidos é mais um episódio na mercantilização completa da vida e de todos os
seus aspectos. No que podemos chamar de estética do mundo contemporâneo traços de
medo são instantaneamente reconhecidos, há uma fuga constante do risco e da luta
necessária para conceber uma obra musical. Risco que está sendo substituído por uma
aceitação passível de tudo e de qualquer coisa. Não há mais espaço para um discurso ou
para uma ideia, assim para entrar na lógica do mercado tudo é permitido e encorajado
de ser feito. Alguns artistas fazem música com um olhar para o passado, como uma
constante reinvenção de uma tradição, como se tentassem atualizá-la deixando-a ainda
mais no passado. Não seria apenas algo como uma evocação de um passado, que é
muitas vezes imaginado, mas uma reificação de uma ideia que na realidade nunca
aconteceu e portanto não pode se repetir. Aqui, a segunda vez não se repete como farsa,
mas como puro simulacro.
Talvez exista a hipótese radical de uma subtração, uma ação negativa de recusar a
criação. Giorgio Agamben45 remarca que possuímos a potência de fazer e de não fazer
nada, mas também a de não fazer o que podemos, de resistir a fazer algo que somos em

43 JAPPE, op. cit, p. 245.


44 Idem, Ibidem.
45 AGAM E , Giorgio 2009), “Sur ce que nous pouvons ne pas faire”, in: Nudités, Paris, Payot-Rivages.
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princípio capazes de realizar. Temos, por exemplo, a capacidade de poder fazer música,
mas também a capacidade de resistir, de escolher não fazer uma música. Da sua parte, o
filósofo Alain Badiou46, na última das suas quinze teses sobre a arte contemporânea, nos
propõe que é melhor não fazer nada em termos artísticos, se o que vamos fazer contribui
para tornar visível o que já é reconhecido pelo império. Talvez uma espécie de decreto
unilateral e autônomo talvez possa ser dado pelo artista músico. Esgotadas as
possibilidades de tal ação e assumindo a potencialidade que o criador musical possui de
poder criar uma música, escolher não fazê-lo se esta não passar de uma mera repetição
de algo previamente existente, aceito e estabelecido. Ter em mente o objetivo claro de
que aquilo que antes ali não estava, de uma certa forma, abre uma brecha temporal no
sistema e, retroativamente, recoloca as possibilidade para novas criações na ordem do
dia. E ter a certeza de que ele é capaz de criar isto, mas que para isso talvez um gesto
prévio e radical de não aceitar mais participar do jogo seja necessário.

6 - Conclusão provisória
Não acreditamos que alguém não seja potencialmente capaz de, a priori, apreciar
não importa qual obra musical. Mas a aquisição de capacidade é um processo, longo e
difícil, que envolve aspectos exteriores e interiores ao indivíduo. Envolve uma crítica
ativa enquanto ouvinte. Ao mesmo tempo não acreditamos na máxima repetida de que a
massa e qualidade são impossíveis de andar juntas como nos fazem crer todo dia.
Sustentamos que não. É possível que em um outro sistema e modo de vida estes dois
conceitos vendidos como antagônicos possam, de alguma forma, se reconciliar. Por ser
construída sobre parâmetros discursivos universais (e não naturais como outros
sustentam47) a música pode ser possível de ser apreciada por qualquer um. Assim como
uma política verdadeira deve ser emancipatória e colocada no centro do povo, uma
música verdadeira deve poder unir as pessoas na sua singularidade e autonomia,
unindo-as em um processo de verdade, sem a necessitar fazer apelo a identidades
exteriores ao seu mundo. Todavia, não podemos determinar o ouvinte, nem o que ele vai

46 BADIOU, Alain (2013) “Fifteen heses on Contemporary Art”, disponível em:


http://www.lacan.com/issue22.php. Data de acesso: 15/01/2015.
47 som é “natural”, mas a música é composta de sons precisos escolhidos dentre os disponíveis. Mesmo
a chamada música microtonal não trabalha com toda a gama espectral de sons existentes. Este é um dos
lados artesanais da criação musical.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016 217

ou pode ouvir, por condições exteriores à música. Não obstante, podemos fazer recurso
a Marx, pois como bem observou Safatle, “como não há arte proletária, cultura
proletária, religião proletária, moral proletária, Estado proletário, pois, como dizia
Marx, os proletários são aqueles que não têm religião, Estado, moral.”48 Frente à
música, somos todos proletários.
O apelo por uma nova crítica musical vem igualmente acompanhado de nova
reflexão teórica, pois como Adorno bem observou, ambas ações estão interligadas: “toda
teoria da arte deve ser igualmente uma crítica da arte”.49 Além disto, esta crítica deve ter
coragem de realizar com firmeza o gesto bartelebiano e dizer: “eu preferia não fazer”, e
não fazer determinadas críticas. Ser capaz, quando necessário, de se subtrair. Adorno
separa claramente o que se aproxima da concretude material e negativa na arte. Para ele
a música pode representar uma verdade singular que, porém, no meio de todos os
entulhos não consegue adquirir autonomia temporal, como se o instante em que ela
passa a existir deixasse de ser relevante ou deixasse mesmo de existir no próprio
momento da sua realização. Como a música, por não possuir mais tempo causal, já não
representa nada em seu tempo, este passa a ser indiferente à percepção e à assimilação
desta. A crítica deve ser capaz de bem discernir as questões relativas à música, ao
mundo-música, e às questões do seu entorno social ou geográfico. Por fim, a crítica deve
parar de julgar ou se ater a gostos, sobretudo deixar de lado o seu próprio gosto, e parar
de realizar uma crítica unicamente biográfica, a partir de dados estatísticos ou se ater a
discussões sobre eventuais relações institucionais desta arte.
Resta, porém, o problema de como a música pode ainda expressar uma verdade.
Parece-nos que neste sistema é praticamente impossível. A perspectiva não é clara e
nem nos dá coragem sobre se algo está ou não por vir. Porém, não é a música que deve
fazer apelo à política. Embora, seja verdade que a condição da música ser efetivamente
universal e carregar em si a dimensão de igualdade que ela porta, seja política, pois
envolve a mudança completa da realidade onde ela se manifesta. Em outras palavras, a
música será efetivamente possível apenas em outro mundo onde o comum seja o
padrão.

48 SAFATLE, op. cit., (2015a)


49 ADORNO (1973), op. cit, p. 125.
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No mundo do capital, a música não escapa às leis de mercado, nas atuais


condições a sociedade inteira, e tudo que ela produz, é atravessada pela lógica fetichista.
Todos participam, mesmo que não da mesma forma desta lógica. Esta, porém, não nos
permite distinguir de forma clara o papel de cada um. O estado atual da sociedade rende
a arte ainda mais complexa. Pouca coisa é menos assegurada que o porquê e de como
refletir os problemas da música. Como Jappe observa, depois que a arte é arte, jamais o
seu papel não foi tão pequeno e secundário, marginal ou mesmo indiferente para o
conjunto da sociedade. Paradoxalmente nunca tivemos tantos artistas, nunca tivemos
tantos músicos, e eles nunca antes circularam de forma tão rápida e fácil por todo o
globo terrestre. Por outro lado, de forma geral, os artistas também são acomodados,
praticamente inofensivos e aceitam passivamente as regras do jogo que lhe são dadas de
antemão.
Em um primeiro momento nos parece que no tempo da urgência, no novo tempo
do mundo, a música pode adquirir uma forma espectral capaz de nos dar uma forma
turva e negativa que reflita, como um espelho curvo, uma imagem hesitante, mas que lá
esteja, do que ainda não é. Que seja capaz de inventar o seu futuro, sem com isso
garanti-lo, e preencher o vazio e incompletude do seu passado. Esta talvez seja a sua
condição mais árdua de existência. Por ser uma concretude abstrata incapaz de
expressar nada com absoluta precisão a música talvez seja a matéria que encarne mais
negatividade em si. Ouvir música é imaginar materialmente o que aquela combinação
sonora nos diz, dar-se conta de que ela não diz nada e, por esta razão mesma, por nos
permitir conceber e anunciar um mundo existente em qualquer parte e que não
sabíamos ser capazes de vislumbrar, ela pode ser libertadora.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016 219

ENTRE UMBRAIS E VIRTUALIDADES


Mundos possíveis?

Helena Castellain Barbosa de Castro 1

Zumbis na areia movediça2

1 Mestranda do Programa de Pós-graduação em Geografia, Instituto de Geociências, da Universidade


Federal de Minas Gerais.
2 Performance “Cegos”, de Marcos ulhões.
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O objetivo deste ensaio é apresentar dois desafios – entendidos como


supostamente centrais – para a emancipação social revolucionária. Para tanto, é
utilizada uma metáfora de inspiração lefebvriana: os umbrais. A hipótese é de que
umbrais, enquanto estados de espírito, fundamentalmente, precisariam ser transpostos
se no horizonte mirarmos aquilo que Lefebvre denomina como plena “sociedade
urbana”. O primeiro umbral comentado, sem aspiração cronológica, seria a superação
da sociedade burocrática de consumo dirigido, discutida pelo próprio Lefebvre
([1968]/1991). O segundo, acompanhando o desencadeamento das ideias, seria relativo
ao desmascaramento dos “termos falsos”, argumentados por Žižek (2011). Dessa forma,
a constatação do sumo breu dos umbrais, e sua possível superação, seriam parte de
processos de “fluxos de ondas de pensamento”.

Um trem desgovernado

Um brado de alarme – grita a cidade, grita a metrópole, gritam as periferias; e


seus habitantes. O barulho é ensurdecedor. Pela via do progresso, a barbárie neoliberal
atravessa a sociedade expondo caóticos padrões de comportamento. A ilusão de que
atrocidades são parte de um processo incremental – ocorrências remotas em
determinados pontos do planeta – já não perdura no imaginário coletivo. Os eventos
estão dados, e dar-se-ão ao longo do século que se desenrola; e as consequências das
escolhas não serão brandas.
Os “zumbis na areia movediça” representam a conexão Paris-Mariana; o triunfo
do capital. Entre as tragédias do subdesenvolvimento – eclipsadas as toneladas de lama
– e as tragédias do desenvolvimento – açoitadas as paisagens bucólicas do consumo –,
senão pelo otimismo incansável, que pelo pessimismo irremediável tomemos as rédeas
da história.
No universo do umbral, a luz no fim do túnel, ofuscada pelo próprio breu, não
passa de um trem vindo em nossa direção3. Caminhos retilíneos precisam ser
dinamitados; novos rumos urgem serem trilhados.

3 CANETTIERI (2015), em rede social.


[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016 221

Rumo ao descarrilamento: o primeiro umbral

Um movimento do pensamento em direção a um movimento real, concreto, a


prática urbana. Como uma espécie de reação em cadeia, vencida a tendência à inércia4,
essa movimentação, como um fluxo de ondas de pensamento5, representaria o processo
pensado por Lefebvre ([1970]/1999) rumo à sociedade urbana.
Enunciada, simultaneamente, enquanto uma hipótese e uma definição, a
sociedade urbana de Lefebvre seria, assim, uma virtualidade iluminadora, uma
combinação de possibilidades potencialmente condutora a uma diversidade de mundos
possíveis. Nessa interpretação, portanto, a sociedade urbana, concebida como uma
utopia realista6 lefebvriana, corresponderia a uma sinopse de sociedades em gestação.
A sociedade urbana, dessa forma, revela-se múltipla tanto quanto a diversidade
histórica permitir.
Segundo Lefebvre (1999), essa(s) sociedade(s), por sua vez, seria(m) o resultado
da urbanização completa. Tal afirmação, apesar de controversa parece, entretanto,
sinalizar um importante aspecto do processo global da industrialização/urbanização, a
preponderante e proeminente sociedade burocrática de consumo dirigido7. Desvela-se,
nesse momento, o primeiro umbral 8 a ser transposto se no horizonte avistarmos a
sociedade urbana.

4 Numerosos sociólogos, de acordo com passagem de Lefebvre (1991), diriam que a classe trabalhadora
prefere a segurança; a segurança do emprego, às aventuras revolucionárias. Porém, segundo o mesmo,
ao optar por tal segurança o proletariado abandonaria sua missão histórica, renunciando a si mesmo.
“Se ele ‘escolhe’ a integração à sociedade gerida pela burguesia e organizada segundo as relações de
produção capitalista, ele abandona sua existência de classe.” Vencer a tendência à inércia, nesse sentido,
seria um movimento de negação de um suicídio de classe.
5 A noção de fluxos de ondas de pensamento foi apresentada por Harvey (2012).
6 Segundo Santos (2007), utopias realistas seriam aquelas suficientemente utópicas para desafiar a
realidade, mas também realistas o suficiente para não serem descartadas facilmente. Nesse sentido,
parece haver um paralelo entre essas utopias e a sociedade urbana de Lefebvre: “Enunciamos um objeto
virtual, a sociedade urbana, ou seja, um objeto possível, do qual teremos que mostrar o nascimento e o
desenvolvimento relacionando-os a um processo e a uma práxis uma ação prática)”. LEFE VRE,
[1970]/1999, p. 16)
7 Lefebvre aprofunda a discussão sobre a sociedade burocrática de consumo dirigido em seu livro, A
Vida Cotidiana no Mundo Moderno [1968]. Nessa sociedade, segundo ele, reinariam os fundamentos do
mal-estar civilizatório, especialmente captados pela história da vida cotidiana. Uma realidade, como o
próprio conceito sugere, controlada pelo Estado, o qual, via manipulação subjetiva do sistema de
valores, acaba por direcionar e definir o próprio sistema de consumo.
8 A inspiração de trabalhar com a ideia de “umbral” surgiu a partir de uma passagem do próprio Lefebvre
1999). “Um movimento do pensamento em direção a um certo concreto, e talvez para o concreto, se
esboça e se precisa. Esse movimento, caso se confirme, conduzirá a uma prática, a prática urbana,
apreendida ou reapreendida. Sem dúvida, haverá um umbral a transpor antes de entrar no concreto, isto
[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016 222

Crescimento econômico, industrialização, tornados ao mesmo tempo


causas e razões supremas, estendem suas consequências ao conjunto dos
territórios, regiões, nações, continentes. Resultado: o agrupamento
tradicional próprio à vida camponesa, a saber, a aldeia, transforma- se;
unidades mais vastas o absorvem ou o recobrem; ele se integra à indústria
e ao consumo dos produtos dessa indústria. 9

Em momentos de crise é possível estabelecer um paralelo direto com esta citação


de Lefebvre: o projeto desenvolvimentista hegemônico sobressai naturalizado; um
projeto de todos. A saída econômica, nesse contexto, aparece no fim do túnel como
única alternativa para os pavorosos problemas por ela mesma criados: inflação,
desemprego; violência urbana10. Os diversos dramas cotidianos, imersos num cenário de
fatídico descompasso social, acompanham, por sua vez, tanto o esgotamento quanto a
ressurreição da fictícia prosperidade moderna enquanto progresso econômico. Da crise,
mais uma vez, se impõem os fins últimos, as razões supremas, do capital11.
Nesse cenário, como, então, desconstruir as falácias hegemônicas no que tange à
teleologia do progresso? Será esse o desafio para a primeira subversão de ruptura
histórica? Parece pertinente, e urgente, para tanto, a diluição da retórica sedutora do
capital; o primeiro desafio estaria delimitado. Como suposição, reiterando, a efetivação
de um contradiscurso ao fetiche da mercadoria seria, destarte, o primeiro umbral a ser
transposto rumo à sociedade urbana (enquanto emancipação revolucionária).
Essa primeira transposição, esse primeiro ciclo de fluxo de ondas de pensamento,
todavia, parece antecipar outra mudança enunciada por Lefebvre em 1989, já no final de
sua vida: o direito à cidade implicaria nada menos que um conceito revolucionário de
cidadania. A citação a seguir, da presidente Dilma Rousseff (2015), explicita justamente
a cidadania intrínseca ao primeiro umbral e que, corroborando com as ideias de
Lefebvre (1989), precisa ser superada rumo à escalada emancipatória.

é, na prática social apreendida teoricamente.” LEFE VRE, 1999, p.18). este ensaio, foi devaneado que
existiria não apenas um mas dois umbrais a serem transpostos para a efetivação dessa prática urbana, a
qual, por sua vez, nos levaria ao objeto virtual – mas possível (objeto possível) – a sociedade urbana.
9 LEFEBVRE, 1999, p.17
10 De acordo com Sampaio (2015) o contexto da violência na esfera citadina acionaria uma espécie de

“inversão analítica”: o objeto de reflexão teórica, compreendido pela violência urbana, passa a ser a
própria urbanização enquanto processo essencialmente violento; a engrenagem da violência em suas
diversas manifestações.
11 O discurso da redenção econômica é tão bem fundamentado que levanta cartazes em Mariana-MG, por

exemplo, a favor da mineradora Samarco; a mesma que há poucos dias foi responsável por um desastre
socioambiental de dimensões incalculáveis: o rompimento da barragem do Fundão no distrito de Bento
Rodrigues. Fará sentido a passagem de Lefebvre (1991): a classe trabalhadora prefere a segurança do
emprego, à aventura revolucionária? Estaremos fadados ao suicídio de classe?
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Nos últimos 13 anos, nós tiramos 36 milhões de pessoas da


pobreza e elevamos 40 milhões à classe média. Isso significa que
transformamos milhões de pessoas que estavam excluídas em
consumidores. Como nós sempre dizemos, o fim da pobreza é só o
início - início do quê? -, da cidadania do consumidor. E, por isso, a
regulamentação das relações de consumo é parte intrínseca da
agenda de desenvolvimento econômico e social que
implementamos no Brasil. Ao construirmos e tornarmos milhões e
milhões de pessoas consumidores, ao terem acesso a serviços e
bens, essas pessoas passam a ter de fato a plena cidadania. Mas
elas só têm seus direitos assegurados se elas tiverem acesso a todos
os processos que implicam esta relação, inclusive, e
fundamentalmente, o direito de defender o que querem enquanto
consumidores. 12

O desenvolvimento predatório como programa de governo e a “inclusão” pelo


consumo, como ideologia do Estado. Essa é a síntese do infame projeto hegemônico que,
notadamente, foi optada pelo neoliberalismo brasileiro. Nesse contexto, a reformulação
dessa cidadania – necessária para a manutenção do próprio capitalismo enquanto modo
de produção – revela-se, portanto, central. Dessa forma, aparecem imbricadas: a
superação da sociedade burocrática de consumo dirigido com a formulação de novas
narrativas. A renovação do conceito de cidadania(s), por sua vez, nos encaminha ao
próximo umbral.

Manobra crítica: o segundo umbral

No sumo breu dos umbrais, entre os cenários mais extremos de alienação e


barbárie, a crise, entretanto, não alavanca apenas a própria reprodução do capital, mas
pode funcionar, no limiar de um descontentamento coletivo/explosivo, no próprio
descarrilamento do trem da história13.
A atual crise político-econômica brasileira, dessa forma, nos possibilitaria
interessantes aberturas reflexivas. Se, como vaticinou Walter Benjamin, “por trás de
todo fascismo, há uma revolução de esquerda fracassada”14, poderíamos, nesse
momento, considerar outra formulação inspirada em sua frase: por trás de toda

12 Disponível em: https://www.facebook.com/SiteDilmaRousseff/?fref=ts, acesso em: 21 de novembro,


2015. Grifos da autora.
13 Inspirada por citação em espaço digital de Canettieri (2015).
14 EDITORIAL Sinal de Menos, nº11, v. 1, 2015.
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emancipação, há uma ofensiva fascista derrubada. Exemplos recentes podem ilustrar


este possível, e pulsante, enredo revolucionário no contexto brasileiro.
No início de novembro, manifestações contrárias ao projeto de lei 5069/2013 15,
de autoria de Eduardo Cunha, atual presidente da Câmara dos Deputados, foram
organizadas e fomentadas via redes sociais. Considerado um retrocesso ao direito das
mulheres à saúde, e claramente uma empreitada conservadora, esse projeto teve uma
repercussão, talvez, inesperada. As manifestações desencadeadas contra ele, marcadas
por expressiva presença feminina, vêm sendo conclamadas, inclusive, como a
“primavera das mulheres”, tamanha adesão alcançada.
Mas a explosão feminista não desponta como ato isolado. O próprio movimento
dos alunos ao ocupar escolas em São Paulo sinaliza a potência do “cruzamento entre
internet e metrópole” 16. Relevante, ainda, é observar a articulação entre movimentos
viabilizada pelo próprio espaço digital. Nas próprias escolas ocupadas, por exemplo, há
o apoio e a adesão de movimentos consolidados, como o MST (Movimento dos
trabalhadores Rurais sem Terra) o MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto).
Tudo indica que a popularização do acesso à rede veio a consagrar a internet
como mídia alternativa de alcance de massa. Uma ferramenta, entretanto, na qual
coexistem potencialidades e riscos, como ressaltou Magalhães (2015). Reconhecendo
esta dualidade, este ensaio, por ora, levará adiante as positividades relativas aos ganhos
sociais, não ignorando, porém não incorporando, a possibilidade também real de
ascensão em rede de vetores (ultra) conservadores.
Tomado o lado otimista dos movimentos inflamados e organizados na rede, o
consequente efeito esperado pelas suas mobilizações, por conseguinte, acredita-se,
possui implicações políticas – de empoderamento – na direção da emancipação social
lefebvriana, logo, de uma consciência cidadã revolucionária. Concomitantemente,
também como resultados atingíveis, possam-se vislumbrar os contornos de formas
alternativas de produção do espaço urbano, consideradas no sentido ampliado do
direito à cidade lefebvriano; o valor de troca sucumbindo ao valor de uso.

15 A PL 5069/2013 é considerada um retrocesso ao direito das mulheres à saúde por dificultar o acesso ao
aborto legal (pílula do dia seguinte), além de contribuir para o constrangimento de mulheres vítimas de
violência sexual. Há ainda um velado, porém notório, caráter de classe, já que as mais prejudicadas
seriam as mulheres negras, jovens e pobres que não podem pagar pelo acesso ao aborto (ilegal) seguro.
16 MAGALHÃES, 2015, p. 157.
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Assim, a radicalidade emancipatória, e a própria negação das contradições da


cidade industrial, sintetizariam o que o conceito de “direito à cidade” procurou
encerrar17. Contudo, na prática, esse termo foi amplamente difundido entre os
movimentos sociais urbanos e, talvez de forma contingente, acabou por imprimir nas
experiências espaciais relações jurídicas. Dessa maneira, a forma como se recorre ao
direito à cidade, como apontou Melo (2015), reiteraria o próprio fetichismo espacial – o
consumo do espaço. No âmbito obscuro desse umbral, seria preciso, portanto, uma
manobra crítica: reeditar esse termo sobre as bases de sua conceituação original; muito
além da “forma jurídica” embutida no Direito18.
De fato, nossas opções terminológicas encerram-se por limitar e/ou mistificar
nossa apreensão do real. “Democracia”, “liberdade”, “direitos humanos”, e, nesse bojo,
acrescentaria, o próprio “direito à cidade”, seriam, corroborando com as ideias de Žižek
(2003), “termos falsos”, espiralados; no sentido estrito de seu uso contingencial.
Tomemos como exemplo a ideia, não menos difundida, de “reforma”. Movimentos
sociais de pautas diversas clamam pela efetivação da Reforma Urbana; terão em mente a
dualidade desta objeção? Quer dizer, estarão cientes que a origem dos vícios, que são ao
mesmo tempo espaciais e sociais, poderá ser preservada?19
Dentro das propostas de Santos (2007), esses “termos falsos” seriam a própria
correspondência das monoculturas hegemônicas do saber. Nesse sentido, ele propõe:
fazermos o uso contra-hegemônico de instrumentos/termos hegemônicos. Por essa
perspectiva, e é importante frisar, o próprio termo “reforma”, quando percebido em sua
dualidade, poderia ser um meio para a revolução social enquanto fim, como teorizou
Luxemburgo (1999). Tal possibilidade, em síntese, é o que se espera com a revelação
desse segundo umbral.
Aos movimentos sociais, e aos fluxos de onda de pensamento de maneira geral,
caberia desmoralizar as terminologias consolidadas, especialmente os “termos falsos”,
se no horizonte a emancipação desponta. Para essa desconstrução, esse processo de
constituição de uma nova visão de mundo, qual será o alcance do espaço digital? Será

17MELO, 2015, p.247.


18 Assim se pronunciou Lefebvre sobre a questão: “Na direção da entrada para a prática de um direito: o
direito à cidade, isto é, à vida urbana, condição de um humanismo e de uma democracia renovados.”
(LEFEBVRE, 1999, p.7).
19 MELO, 2015, p.233.
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esta conexão em rede capaz de potencializar articulações alternativas; coletividades


humanas autogeridas?
No que concerne aos “termos falsos”, os próprios preceitos do Estatuto da
Cidade20, nesse viés, contribuiriam para a estruturação de um paradoxo no campo
normativo institucional/operacional: a despolitização pela abertura do diálogo. O eixo
gravitacional das lutas sociais se modifica, ao invés da confrontação e da desarticulação
da sociedade urbano-industrial-capitalista, esses grupos seriam convocados à
mediação, à reforma; cooptados pelo discurso do planejamento participativo. Além do
esvaziamento político, os movimentos sociais experimentariam, como acrescenta
Acselrad (2004), a própria deslegitimação de seu discurso por meio da cientificização
das políticas públicas. O segundo umbral, portanto, refere-se, especificamente, ao
desmascaramento dessas armadilhas terminológicas, dos “termos falsos”, que terminam
por transformar movimentos legítimos, de matrizes revolucionárias, em ajustes
estruturais, de caráter reformista (em seu sentido vulgar).

Um último suspiro: o trem chacoalha


Quando propostas de mudança de mentalidade são acionadas, isso não significa
haver um receituário para a fabricação desse produto: a prática urbana rumo à
sociedade urbana21. Como chamou atenção o próprio Lefebvre, trata-se, na verdade, de
uma teorização necessária, parte da elaboração de uma pesquisa, e mesmo da formação
de conceitos; em suas palavras. Dessa maneira, em suma, uma transformação ao nível
de infraestrutura mental, transpondo-se umbrais, como aqui se imaginou, parece ser
uma alternativa à alienação, ao mundo reificado. A superação, tanto da sociedade
burocrática de consumo dirigido, quanto dos “termos falsos”, acredita-se, passam por
um processo de autoconscientização dos indivíduos possivelmente incrementado pelas
aberturas do espaço digital. Afinal, são nossas representações mentais, nossos esquemas
cognitivos, que orientam nossas ações no mundo e um possível movimento real,
20 Um contexto de reforma urbana envolve a concepção do Estatuto da Cidade (Lei n.º 10.257/2001).
Nesse momento, os preceitos constitucionais de 1988, de ideário progressista e cunho social, passaram a
compor o ideal da reforma urbana brasileira. Vale salientar, entretanto, que os novos anseios
democráticos do referido estatuto convivem com os ideais neoliberais exemplificados pelas noções de
cidade-mercadoria e marketing urbano.
21 Como argumentou Melo 2015), “ processo de autoemancipação é, ao mesmo tempo, um processo de
autoconscientização, ou seja, é um processo que nasce da experiência real contra determinações reais do
ser e da consciência.” MEL , 2015, p. 234)
[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016 227

concreto. A superação dos umbrais, finalmente, seria parte de uma radical manobra
crítica. Se a curva for acentuada, o trem descarrilará.

Referências
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(org.) Conflitos ambientais no Brasil. Rio de Janeiro: Relume, 2004, p.14-35.
BRASIL, Câmara dos Deputados, Projeto de Lei 5069/2013, que dispõe sobre “Anúncio de meio
abortivo ou induzimento ao aborto”. Disponível em:
http://www2.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1061163&filename
=PL+5069/2013 Acesso em: 24 de novembro, 2015.
CANETTIERI, T. Referência de espaço digital, arquivo pessoal, 2015.
EDITORIAL, Sinal de Menos, nº11, v.1, 2015, disponível em:
http://sinaldemenos.org/2015/04/26/sinal-de-menos-11-vol-1/, acesso em: 19 de novembro,
2015.
HARVEY, D. Condição pós-moderna. São Paulo: Edições Loyola, 2012.
LEFEBVRE, H. “Da cidade à sociedade urbana”. In: LEFEBVRE, H. A revolução urbana [1970].
Belo Horizonte: Editora UFMG, 1999, p.15-32.
LEFEBVRE, H. “A sociedade burocrática de consumo dirigido”. In: LEFEBVRE, H. A vida
cotidiana no mundo moderno [1968]. São Paulo: Ática, 1991, p. 77-108.
LUXEMBURGO, R. Reforma ou Revolução? São Paulo: Edição Expressão Popular Ltda, 1999,
p.17-28.
MAGALHÃES, F. N. C. “Produção do espaço na cidade do neoliberalismo e novas aberturas no
espaço digital”. In: COSTA, G. M.; et al (org.) Teorias urbanas. Belo Horizonte: C/Arte, 2015,
p.145-168.
MELO, M. G. P. de, “Da crítica ao direito ao direito à cidade: uma primeira aproximação”. In:
COSTA, G. M.; et alli (org.) Teorias urbanas. Belo Horizonte: C/Arte, 2015, p.231-258.
SAMPAIO, R. A. “A violência do processo de urbanização”. In. CARLOS, A. F. A. (org.) A Crise
Urbana. São Paulo: Contexto, 2015, p.55-84.
SANTOS, B. de S. Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social. São Paulo:
Boitempo, 2007.
Ž ŽEK, S. Bem-vindo ao deserto do real: cinco ensaios sobre o 11 de setembro e datas
relacionadas. São Paulo: Boitempo (col. Estado de sítio), 2003.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016 228

COMO AGIR COMO SE


NÃO SE FOSSE LIVRE
Uma defesa contemporânea do fatalismo

Frank Ruda

“O homem é o ser cuja aparição faz com que um mundo exista “


Jean-Paul Sartre1

“Kill your middle class indecisions, now is not the time for liberal thought”
Bloc Party

Este artigo se baseia no pensamento de Descartes, Kant, Hegel e Marx a fim de


oferecer uma abordagem crítica do estado subjetivo predominante hoje: a indiferença.
Suas coordenadas conceituais são elaboradas sistematicamente e é mostrado em que
sentido ela implica, em última análise, uma concepção problemática e mal
compreendida de liberdade. Tendo como pano de fundo essa análise, o artigo defende o
fatalismo como um meio possível para enfrentar estados de indiferença e, desse modo,
dar um passo da análise crítica à formulação afirmativa de um princípio de orientação:
age como se não fosses livre.

Crítica e moral provisória

Muitos pensadores contemporâneos insistiram em que há, no mundo de hoje,


indiferença, irresolução e indecisão por toda parte. Alain Badiou chegou muitas vezes a
argumentar que o sistema político atual depende não apenas da produção, mas também

1 Sartre, 1968, p. 301.


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da administração e da organização dessas indiferenças. Parece ser, então, o tempo


devido para tratar da indiferença e para fornecer meios de enfrentá-la. As reflexões
seguintes não devem, portanto, ser lidas apenas como um exercício conceitual apoiado
na história da filosofia. Elas reclamam antes uma validade contemporânea. A análise da
indiferença fornecida no que segue deve ser lida como um esforço de oferecer uma
avaliação de um modo de subjetividade e de subjetivação que se pode dizer dominante
hoje. Nesse sentido, a análise é crítica. Contudo, as investigações subsequentes não se
limitam a uma abordagem puramente negativa e crítica do estado atual de indiferença;
elas também propõem uma maneira de enfrentá-lo, a saber, o fatalismo. Mas aqui é
necessário se falar com precisão: o fatalismo não é, em si mesmo, já um novo tipo de
atitude subjetiva; não é já a emergência de um novo tipo de sujeito. Tomo antes o
fatalismo como um dos meios estratégicos mais cruciais e importantes - no sentido de
uma moral provisória cartesiana2 - de uma preparação subjetiva para que uma mudança
real aconteça. As observações seguintes, portanto, não propõem uma ética, mas
primeiro uma análise crítica de um fenômeno que governa o não-mundo
contemporâneo e, em última análise, propõem uma diretriz para a luta; uma diretriz que
busca superar a frustração, a nostalgia e a melancolia onipresentes hoje no regime de
circulação dos corpos e da troca das linguagens.

Indiferença e fatalismo

Há uma passagem notável no último e, talvez, ao menos hoje, mais obscuro livro
do primeiro filósofo moderno do sujeito, a saber, a obra As paixões da alma, de René
Descartes. Nessa passagem, Descartes nota que em uma situação na qual não se sabe
como agir ou da qual não se sabe o que pensar porque as coisas não são claras o
bastante e ainda não se obteve conhecimento o suficiente para avaliá-la, uma certa dose
de indiferença ou de irresolução pode ser de ajuda. Distanciar-se da situação e refletir
pode ajudar – a irresolução “é causa de que... [a alma] disponha de tempo para escolher
antes de se decidir, no que verdadeiramente apresenta certa utilidade que é boa”.3 No

2 Descartes introduz este conceito em seus Discurso sobre o método, ao afirmar: “a fim de não
permanecer irresoluto [irrésolu] ... formei para mim mesmo uma moral provis ria”, Descartes, 2010a,
p. 79.
3 Descartes, 2010b, p. 382.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016 230

entanto, e é isso o que torna notável essa consideração, Descartes dá seguimento a esse
pensamento sustentando que permanecer nesse estado de indiferença, num estado que
se abstém da ação, “quando dura mais do que o necessário, e quando leva a empregar no
deliberar o tempo requerido para o agir, é muito má”.4 Assim, o inicialmente instrutivo e
útil modo da indiferença ou da irresolução pode muito facilmente se tornar um
problema para o sujeito quando ele não é mais capaz de deixá-lo. E a irresolução no
juízo e na ação, a indecisão (Descartes usa os dois termos quase como sinônimos) é um
resultado de um tornar-se indiferente do próprio agente que deveria ter agido. Em vista
desse diagnóstico, Descartes aborda também em seu As paixões da alma uma forma de
enfrentar, superar e combater a irresolução - e irresolução, como se deve acrescentar, é
“um tipo de receio”.5 O meio próprio para se enfrentar esse tipo de receio – receio que,
deve-se recordar, sempre possui esse efeito de destituição subjetiva - e para superar
aquela indiferença que era inicialmente útil leva o nome de fatalismo.6
O que investigarei adiante é algo dúplice: em primeiro lugar, em uma espécie de
tour de force através de algumas posições da história da filosofia, tentarei dar conta do
que pode ser chamado de o problema da indiferença, que eu tomo, seguindo Descartes,
como sendo ligado estreitamente, talvez mesmo como sinônimo do problema da
irresolução. Assumo que essa caracterização também pode ser instrutiva para uma
compreensão crítica de nossa situação contemporânea. Nessa primeira parte, recorrerei
então a determinadas fontes a fim de esboçar os contornos de uma crítica do estado de
indiferença. Na segunda parte, formularei uma defesa da solução cartesiana, uma defesa
do fatalismo como meio de enfrentar o estado estagnante de indiferença. Isso implicará
no esboço de uma pré-condição crucial para o conceito de liberdade.

4Ibid.
5 bid. termo francês usado aqui por Descartes é “crainte”.
6 Para ser mais preciso, Descartes propõe “coragem e ousadia” como meios diretos de enfrentar a

irresolução, na medida em que são “uma paixão e não um hábito...” Descartes, 2010b, p. 383). odavia,
quando ele fala, um pouco antes no livro, sobre um obstáculo específico que surgem de coisas que não
dependem de n s ibid, p. 367), Descartes afirma primeiro que “elas nos desviam de dedicar nossa
afeição a outras coisas cu a aquisição depende de n s” ibid, p. 368) e podem ser combatidas
assumindo-se “a Providência divina... uma fatalidade ou uma necessidade imutável” ibid.). Elaborarei
em que sentido assumo que a situação que Descartes retrata a respeito da indiferença também pode ser
superada por esse tipo de fatalismo - que também requer, constitutivamente, coragem.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016 231

Indiferença e comportamento animal: Kant

Em sua obra de 1873, A religião nos limites da simples razão, Kant nota: “Mas,
em geral, interessa muito à doutrina dos costumes não admitir, enquanto for possível,
nenhum termo médio moral, nem nas ações (adiaphora [moralmente indiferente]) nem
nos caracteres humanos; porque em semelhante ambiguidade todas as máximas correm
o perigo de perder a sua precisão e firmeza”.7 As máximas se tornam indeterminadas,
imprecisas e instáveis se há algo como uma intermediariedade, indiferença, adiaphora.8
E, no mesmo livro, Kant descreve aquilo a que visa com essa espécie de imprecisão e
instabilidade. “Uma ação moralmente indiferente (adiaphoron morale) seria uma ação
resultante apenas de leis da natureza, ação que, portanto, não se encontra em nenhuma
relação com a lei moral enquanto lei da liberdade, porquanto não é fato algum (...)”.9 O
que Kant afirma aqui é algo de grande alcance e enorme importância. Para dizer em
termos simples, ele diagnostica que tão logo os seres humanos agem de maneira
indiferente, isto é, tão logo os seres humanos simplesmente não se importam, 10 eles não
agem como se fossem livres. Agir da maneira que Kant chama de indiferente é o que
define ações que podem ser descritas recorrendo-se a meras leis naturais.11 Isso significa
que na medida em que alguém age com indiferença, isto é, de tal modo que suas ações se
relacionam a algo, digamos, à sua finalidade ou objetivo, de maneira indiferente -
simplesmente não se importando com qual seja o resultado da ação, por exemplo - isso
torna possível conceber essas ações como deriváveis, dedutíveis de meras leis da
natureza. E as leis da natureza, como é claro para Kant, são exatamente o inverso do
conceito e da lei da liberdade.
Poder-se-ia dizer de outro modo: na medida em que as ações são ou se tornam
indiferentes a respeito daquilo a que elas visam, elas não podem mais ser consideradas
ações (nas palavras de Kant: atos [Taten]) em sentido próprio. Pois, para Kant, o

7 Kant, 1992, p. 28. Entre colchetes: acréscimo do autor.


8 Para um tratamento longo e sistemático do problema da indiferença de um dos primeiros
popularizadores do pensamento de Kant, que ensinou Kant para, entre outros, Novalis e Schiller, cf.
Schmid, 1989.
9 Kant, 1992, p. 29.
10 Aqui, claro, a questão que surge é: o que significa não se importar?
11 Indiferença traduz aqui o termo grego (e dos estóicos) adiaphora, que designava coisas intermediárias,

que não são nem boas nem más, nem belas nem feias, etc. Para uma abordagem da indiferença dos
estoicos, cf. Geier, 1997.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016 232

próprio conceito de ação implica numa referência conceitual à liberdade. Ações


indiferentes são ações às quais falta - para permanecer no interior da terminologia
kantiana - a espontaneidade da liberdade. É por isso que elas podem ser reduzidas a e
derivadas de uma espécie de causalidade natural e legal. Ações indiferentes funcionam,
assim, como efeitos em uma cadeia de causalidade, e são, por isso, ações que tem o
mesmo status de meros mecanismos causais: ações que já não são ações. Kant afirma,
então, que há um risco de ações indiferentes terem lugar no interior do reino da
liberdade, e o reino da liberdade, isso é evidente para Kant, é precisamente o domínio
dos seres humanos. Isso implica em uma afirmação de grande alcance, a saber, a de que
seres humanos podem agir como se não fossem livres, podem agir como se não agissem.
Eles podem agir como se fossem semelhantes a máquinas, determinadas pela
causalidade natural - e isso também quer dizer, como se poderia sustentar com Kant,
que seres humanos também podem se comportar como animais, pois o comportamento
animal pode ser descrito em termos comparáveis. Não se pode dizer que máquinas e
animais agem livremente, pois suas ações são determinadas de modo heterônomo - suas
ações são determinadas por algo outro, não por sua própria liberdade, não por seu livre
arbítrio. Animais agem por instinto, o que é parte de sua natureza, isto é, de sua
constituição corporal, e quando se investiga como e por que animais agem - e isso é o
que um certo tipo de disciplina biológica faz -, não é o seu livre-arbítrio que está no foco
principal da investigação científica.12 São antes suas carências corporais, carências de
reprodução, alimentação etc., que os determinam. Animais não podem por si mesmos
determinar (ou refletir sobre) sua natureza (corporal), mas é antes sua natureza que os
determinam, e às suas ações.
O que se pode deduzir do diagnóstico de Kant é o seguinte: na medida em que
seres humanos agem numa maneira que pode ser definida como indiferente, agem
estruturalmente de maneira similar a animais. Agem de um modo apoiado numa
determinação heterônima, e não determinam o modo de sua própria ação. Algo os está
determinando, e esse “algo” pode - ao menos de acordo com Kant - ser descrito em
termos de leis da natureza. Essa é a tese que minha elaboração subsequente buscará
desdobrar. Como é possível que seres humanos, animais humanos, possam agir de uma

12 Para uma visão global breve e instrutiva de uma abordagem filosófica do comportamento animal, cf.
Simondon, 2012.
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maneira que não é propriamente humana (o que quer que isso queira dizer ou como
quer que se possa considerá-lo) e em que sentido pode-se tomar a indiferença como
uma apresentação categórica capaz de explicar esse tipo de ação. O que deveria ser
afirmado é que Kant utiliza o próprio termo indiferença em um sentido bastante
moderno, pois na filosofia medieval (em Guilherme de Ockam, por exemplo) ela ainda é
compreendida como um nome para faculdade da vontade não causal (i.e., contingente) e
de duas vias (i.e., indeterminada) 13 - como a faculdade, por exemplo, de escolher x ou
não-x “indiferentemente”, o que equivale a dizer, sem nenhuma necessidade causal. O
uso do termo por Kant indica que tornar-se indiferente nas próprias ações e juízos é o
exato oposto da definição medieval do termo. A indiferença agora conduz ou mesmo
implica precisamente na determinação causal ou heterônoma de uma ação. A questão é,
portanto: o que significa agir de modo indiferente? Mais precisamente: indiferente a
respeito de quê? Aqui pode ser de ajuda retornar a Descartes.

Indiferença e erro: Descartes

Uma passagem muito famosa da quarta das Meditações sobre a filosofia


primeira de Descartes se mostra aqui instrutiva. Para recordar brevemente, antes dessa
passagem, no decorrer de seu argumento, Descartes deu início a sua investigação
afirmando que qualquer um - o que equivale a dizer: qualquer ser pensante, o que
equivale novamente a dizer, qualquer ser humano - pode se enganar. Qualquer um pode
cometer erros, principalmente em juízos, mas também em ações, qualquer um pode
falhar e errar. Seres humanos podem, portanto, emitir juízos falaciosos, dar mancadas, e
podem se enganar. Essa é a primeira característica trazida por Descartes, ao menos em
suas Meditações. E os seres humanos podem principalmente e em primeiro lugar se
enganar a respeito daquilo que consideram ser certo e verdadeiro. Tomam, então, por
verdadeiro e por certo algo que não é nem uma coisa nem a outra. Após essa afirmação,
Descartes especifica os diferentes meios pelos quais os seres humanos podem sustentar
que é verdadeiro algo que, em verdade, não o é. Os meios do engano são variados. Os
seres humanos se deparam com enganos em falas retóricas (mas também na linguagem

13 Isso é bastante explícito em Ockam. Cf. Ockam, 1967, p. 501. Ali, ele sustenta que indiferença e
contingência são duas precondições da ação livre e voluntária.
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enquanto tal), em justificações teológicas das crenças, em argumentos filosóficos, em


explicações científicas, em nossas opiniões ou na de nossos pais, professores ou amigos
de longa data, em nossos hábitos, em nossos sentidos e, em última análise, mesmo em
qualquer pensamento concreto (na medida em que podemos estar sonhando enquanto
assumimos estar em vigília). Essa enumeração de todos os meios de se enganar
conduziu Descartes famosamente nas primeiras três meditações a duvidar de tudo o que
poderia ser considerado uma fonte de erro no juízo; qualquer fonte de engano deveria
ser suspensa. E o resultado foi a famosa prova do cogito. Mas na quarta meditação ele
continua a perguntar por que é que podemos errar, que podemos afinal cometer
mancadas. Ele afirma:
“Donde nascem, pois, meus erros? A saber, somente de que, sendo a vontade
muito mais ampla e extensa que o entendimento, eu não a contenho nos mesmos
limites, mas estendo-a também às coisas que não entendo; das quais, sendo a vontade
por si indiferente, ela se perde muito facilmente e escolhe o mal pelo bem e o falso pelo
verdadeiro. O que faz com que eu me engane e peque”.14
Minha vontade é tão livre, tão irrestrita e ilimitada que eu posso querer algo que
eu não compreendo ou posso até mesmo compreender erroneamente. A vontade se
torna, assim, indiferente. O saldo desse raciocínio é claro: posso me enganar porque sou
livre. Enganos, portanto, parecem ser a prova mesma de minha liberdade; uma vez que
é exatamente mediante a liberdade de minha vontade que sou mais parecido com Deus.
A infinitude da vontade é o que mais me assemelha verdadeiramente a Ele. Como
Descartes formula: “A vontade de Deus... não me parece todavia maior [do que a minha]
se eu a considero formal e precisamente nela mesma”.15 Minha vontade é infinita em sua
liberdade, e essa infinitude mesma é a fonte de meus enganos. Como isso pode ser? É
que minha liberdade torna possível para mim querer mesmo duas coisas radicalmente
incompatíveis ou incomensuráveis ao mesmo tempo. Isso significa, sistematicamente,
que minha vontade é tão livre que eu posso querer x e não-x ao mesmo tempo. Isso
parece ser a própria definição medieval de indiferença – uma vontade que tem a
capacidade de ambos: afirmação e negação de uma opinião. Descartes, no entanto, é
mais radical do que isso. Permitam-me citar outra passagem na qual isso aparece:

14 Descartes, 2010c, p. 174.


15 Ibid, p. 173.
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“Pois, para que eu seja livre, não é necessário que eu seja indiferente na escolha de um
ou de outro dos dois contrários; mas antes, quanto mais eu pender para um, seja porque
eu conheça evidentemente que o bom e o verdadeiro aí se encontrem, seja porque Deus
disponha assim o interior do meu pensamento, tanto mais livremente o escolherei e o
abraçarei. E certamente a graça divina e o conhecimento natural, longe de diminuírem
minha liberdade, antes a aumentam e fortalecem. De maneira que essa indiferença que
sinto, quando não sou absolutamente impelido para um lado mais do que para o outro
pelo peso de alguma razão, é o mais baixo grau da liberdade...”16
A indiferença é o sentimento de que não importa que escolha eu tome. Portanto,
para Descartes, ela é o grau menor e mais pobre da liberdade. Isso porque eu não tenho
qualquer inclinação para nenhuma das duas opções de minha escolha, nem em razão de
algum conhecimento, nem em razão de um compromisso contingente. O conhecimento
aumenta minha liberdade na medida em que me impele para uma das duas direções
possíveis. Crenças e compromissos também o fazem, então, para Descartes. Todavia,
indiferença é aquilo que resulta – como um afeto – quanto eu não me inclino para
nenhuma das duas direções disponíveis, quando ambas tem a mesma validade para
mim. Isso significa que tenho o sentimento de indiferença quando a liberdade se torna a
mera existência de uma escolha. Não uma escolha que deve ser tomada, não uma
escolha que está em vias de ou que deve se tornar efetiva ou realizada, na escolha efetiva
de um dos dois lados. Liberdade de escolha, isto é, a possibilidade de escolher sem
realmente escolher (na medida em que não me importa qual lado escolher), é o que
produz indiferença. Uma vontade que quer X e não-X ao mesmo tempo é uma vontade
indiferente. É por isso que a irresolução é, para Descartes, estruturalmente análoga à
indiferença. E não se deve esquecer: é a indiferença, portanto, a fonte de meu errar e de
meu cometer enganos. Por quê? Porque quanto me torno indiferente eu já cometi um
engano. Assumi que a liberdade já estava efetivada na possibilidade de ter uma escolha e
não na efetividade do escolher. A indiferença é o resultado de uma percepção errônea a
respeito do próprio conceito, da própria concepção de liberdade. Realizo juízos
falaciosos porque já realizei um juízo falacioso ao compreender assim a liberdade. Um
tal conceito enganoso de liberdade assenta as bases para todos os enganos futuros que

16 Ibid, p. 173-4.
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irei cometer. É algo como a condição falaciosa de possibilidade, o transcendental


falacioso de todos meus futuros erros.
Kant demonstrou que tão logo me torno indiferente em minhas ações elas podem
ser descritas em termos de relações causais naturais e deterministas. O que se pode
concluir de Descartes é que o que significa ser indiferente, não em relação a algum
objeto concreto do mundo, mas, mais fundamentalmente, nas próprias ações em geral:
ser indiferente a respeito da própria constituição, essência ou natureza. Seres humanos
são os mais semelhantes a Deus em razão da liberdade de sua vontade, mas tão logo eles
se percebem erroneamente o que é a liberdade, eles percebem erroneamente o que é sua
natureza. Eles a percebem erroneamente ao interpretá-la como realizada na mera
possibilidade de uma escolha e, assim, se tornam indiferentes. Não se tornam, todavia,
indiferentes apenas, para ser mais preciso, em relação aos dois lados da escolha, mas
essencialmente em relação a si mesmos. Indiferença é o grau menor e mais pobre da
liberdade, e isso porque ela é a liberdade em sua forma não realizada. Liberdade como
possibilidade de escolha é liberdade como mera possibilidade de liberdade, e, portanto,
não como liberdade. Liberdade de escolha implica para Descartes uma concepção de
liberdade que enfatiza somente a possibilidade da liberdade, não sua efetividade ou
realidade. Pode-se aqui se recordar que, em sua discussão do estoicismo grego,
Alexandre Kojève uma vez se referiu ao estoicismo como a primeira ideologia.17 Por quê?
Por implicar um gesto peculiar de autoconfiança soberana que funciona como
justificação da própria inação prática do escravo, fundamentada pela seguinte pretensão
ideológica: sou livre na medida em que sei que o sou. Uma pretensão que, como Hegel
também sustentou, serve como a justificação perfeita da escravidão. Uma tal postura
não é atacada apenas por Kojève, e por Hegel antes dele, mas também por Descartes. E a
partir daquilo que já foi dito deveria ser claro o motivo: porque resulta em indiferença e
irresolução, e não em ação no sentido próprio. E é precisamente esse estado de
indiferença ou irresolução que é definido pela primeira mentalidade ideológica, talvez
espontaneamente ideológica, do escravo, que pensa que é suficiente se agarrar à mera
possibilidade de ter uma escolha sem efetivamente escolher e agir por seus próprios
fundamentos.

17 Kojève, 2002, p. 174. Cf. também o comentário sobre essa afirmação em Comay, 2011, p. 92 et seq.
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Resumindo, o resultado da presente investigação até então é: a indiferença na


ação, como Kant sustentou, conduz a determinações heterônomas de minha vontade
que me tornam uma máquina guiada pela causação natural, ou, numa palavra: fazem de
mim um animal. Descartes complementou essa afirmação oferecendo uma interpretação
de porque eu ajo como se fosse um animal. É porque tenho uma concepção errônea de
liberdade; e, no entanto, é precisamente a liberdade que marca minha essência. Ajo,
então, como se eu fosse um animal quando ajo de uma maneira que se apóia numa má
compreensão de mim mesmo, de minha própria liberdade. Ajo de maneira semelhante
a um animal se ajo como se fosse livre e estou me apoiando numa concepção enganada
de liberdade. Isso é o que a categoria da indiferença indica. Por que, no entanto, como
Kant defendeu, uma concepção errônea de liberdade me conduz a determinações
heterônomas que, novamente, me conduzem a agir como se eu fosse livre apesar de não
o ser, quando estou agindo como um animal?

Indiferença e indeterminação: Hegel

É aqui, como sempre, que Hegel pode ajudar. Em sua Fenomenologia do


Espírito,18 assim como em sua Filosofia do Direito,19 ele oferece uma análise complexa
de uma vontade que se subtrai de toda determinação concreta – não se sentindo
inclinada a absolutamente nenhuma direção. Hegel sustenta que na medida em que
uma vontade livre se recusa a se determinar e assume que a mera possibilidade de
determinações já é a realização de sua liberdade, essa vontade é conduzida a
contradições enormemente problemáticas. Ao insistir que a liberdade de escolha – sem
a tomada de nenhuma opção concreta – é o paradigma da liberdade, a vontade livre
hipostasia a indeterminação em face de qualquer determinação concreta. Ela busca,
assim, ter o bolo e também comê-lo. Isso porque ela vê a liberdade apenas como
liberdade de determinações, e, nisso, a identifica com a indeterminação – como a
possibilidade de determinação sem a efetiva determinação. Ela considera que essa
identificação delineia um conceito universal de liberdade. Todavia, contra sua própria

18 Cf. Hegel, 2011, pp. 410-457.


19 Cf. Hegel, 2010, pp. 57-75. Para uma abordagem no conceito de vontade em Hegel, ver Ruda 2011, pp.
136-148.
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vontade, a vontade livre que hipostasia a indeterminação não alcança uma pretensão
universal, mas uma pretensão meramente particular. Contra sua própria vontade –
contra a vontade livre da vontade livre – essa identificação da indeterminação com a
liberdade simplesmente se mostra como não sendo senão uma determinação particular
da liberdade. Assim, em que pese buscar escapar de toda determinação, a vontade livre
se determina, contra sua própria vontade, pela sua pretensão de indeterminação. Ser
indiferente em relação à determinação, identificando indeterminação e liberdade, como
se pode concluir de Hegel, não conduz à universalidade, mas bem ao fundo de uma mera
particularidade, uma vez que a indeterminação, precisamente, não é um conceito
universal, mas se restringe à negação abstrata de toda determinação concreta e, assim,
não é senão um de dois lados da mesma moeda. De um lado está a determinação pura e
simples, do outro a indeterminação (abstrata e, assim, particularizada). Entretanto, se a
definição de um conceito não é derivada senão de uma negação abstrata de seu oposto
abstrato, ele não é um conceito universal, mas apenas um conceito particular. À maneira
da astúcia da razão – contra a vontade da vontade livre que quer a indeterminação como
liberdade –, essa consequência não pode ser evitada.
A insistência na liberdade como indeterminação, portanto, se vira de ponta
cabeça contra sua vontade, literalmente, e determina a vontade livre. A vontade livre, ao
buscar escapar da determinação, se torna, assim, determinada em seu próprio voo pelo
ato de escapar. Essa determinação (a da insistência na indeterminação) não é, portanto,
um resultado de um ato de autodeterminação livre: a vontade livre quis evitar a
determinação e, apesar disso, acabou indo parar nela. É por isso que essa determinação
involuntária da vontade se revela uma determinação heterônoma da vontade. Pois não é
posta por si mesma. Ela se apoia em uma má compreensão da liberdade, pois a
liberdade, precisamente, não é identificável com a indeterminação. Não é possível
simplesmente se livrar da determinação. O que acontece, então, quando me abstenho de
todas as determinações concretas, me torno indiferente em relação a elas e
simplesmente insisto na possibilidade da determinação, de escolha, é que minha má
compreensão do que é a liberdade se volta contra mim e nisso eu cometo uma violência
contra mim mesmo.20 Isso porque eu reduzo meu próprio apelo à universalidade e à

20É por esse motivo que Hegel sustenta que, após o primeiro caso em que a liberdade foi identificada à
indeterminação, a saber, a Revolução Francesa, depois que ela levou embora todas as determinações no
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liberdade a apenas uma pretensão determinada particularmente, a um conceito


unilateral de liberdade como indeterminação. Esse é o resultado de uma atitude de
indiferença contra toda determinação concreta. Hegel afirma, em sua Filosofia do
Direito, que uma tal disposição de espírito pode, em última análise, ser definida como
segue:
“Uma vontade que não decide nada não é uma vontade efetiva; aquele que não
possui nenhuma característica nunca chega uma decisão. A razão para a indecisão pode
também residir em uma sensibilidade terna do ânimo, que sabe que, ao determinar-se,
admite-se no interior da finitude... Um tal ânimo é um ânimo morto, o quão belo ele
possa ser... a possibilidade ainda não é efetividade”.21 Pode-se sustentar que outra das
afirmações de Hegel também é bastante adequada para caracterizar a vontade livre que
abstrai de todas as determinações concretas e assume que ela é a mais livre em e através
deste ato mesmo: a saber, a afirmação de que quando se é o mais morto, as palavras
favoritas são 'vida' e 'avivar'. Quando se é menos livre, liberdade se torna a palavra
favorita.22 A vontade livre que se torna não-livre mediante seu querer a indeterminação
é uma entidade morta, pois mediante seu ato de querer ela se torna determinada
heteronomamente e essa determinação possui um efeito mortificador para o núcleo
universal mesmo do animal humano.
Sem saber disso, e inclusive enquanto acreditava no inverso absoluto, eu ajo
como se fosse livre apesar de não ser. 23 Ao acreditar que estou agindo livremente, mas
ao mesmo tempo sendo incapaz de agir livremente sob condições que ponho para mim

mundo, o mundo teve então ele mesmo que se voltar em um certo ponto contra seus próprios
protagonistas que encarnavam a determinação da indeterminação. A identificação de liberdade e
indeterminação, que também vejo estar em ação na identificação de liberdade e liberdade de escolha,
acaba levando à violência autoinduzida. Seria interessante, apesar de eu não poder fazê-lo aqui,
relacionar isso de forma sistemática ao argumento sobre a tirania da escolha como desenvolvida em
Salecl, 2011.
21 Hegel, 1989, p. 64-65 [N. do T.: Citação a partir da edição alemã da Suhrkamp, com tradução do

tradutor deste artigo, uma vez que a edição brasileira não possui os adendos orais de sala de aula de
Hegel (os ditos mündliche Zusätze)]. Seria importante demonstrar por que Hegel assume que no
próximo parágrafo ele pode estender essa análise e desenvolver uma crítica da arbitrariedade a partir
dela. Deixo essa demonstração para outra ocasião.
22 Não se poderia também assumir que esse diagnóstico mesmo é muito adequado para o mundo em que

vivemos? Cercada de entusiastas, defensores, proponentes, advogados e apologetas da liberdade,


quando a vida política é a mais morta, sua palavra favorita segue sendo “liberdade”.
23 Este é claramente um dos slogans ideológicos mais salientes hoje, pelo fato de que ele se dissimula

como um enunciado completamente neutro e objeto sobre as condições subjetivas da ação: Age como se
fosses livre! O imperativo prepara ainda o fundamento lógico para todas as injunções para gozar,
consumir, ser flexível, criativo etc.
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mesmo, termino agindo precisamente como os animais fazem. Por que é assim? Porque,
para Hegel, o animal é aquele que pode ser definido de modo mais básico pela afirmação
de que ele não sabe seus limites como seus limites. Como Hegel afirma: “Se aquilo que
tem uma falta não está ao mesmo acima de sua falta, a falta não lhe é uma falta. Um
animal possui faltas para nós, não para si próprio”.24 O animal que possui uma falta, ao
qual falta algo desde nosso ponto de vista, não tem a consciência de sua própria falta. É
por isso que Hegel pode afirmar numa maravilhosa passagem de suas Preleções sobre O
Belo na Arte que: “o homem é um animal, mas mesmo em suas funções animais ele se
não comporta como um ser passivo [bleibt er nicht als in einem Ansich stehen, i.e., não
permanece parado ou estático como um algo em-si], como o faz o animal; ao contrário
do animal, adquire consciência das suas funções, as conhece e as eleva... à ciência
consciente de si... porque ele sabe que é um animal, ele deixa de ser um animal”.25
Assim, ao insistir em um conceito indeterminado de liberdade, isto é, de liberdade de
escolha, não experimento meus limites (postos por mim mesmo) como limites. Isso
porque ajo como se eu fosse livre, e todavia não o sou; e, portanto, me coloco assim na
posição de agir como se eu fosse um animal. Isso decorre diretamente de minha má
compreensão de minha própria essência, ou seja, da liberdade.
A má compreensão da minha própria natureza produz como efeito que eu não
queira minha própria liberdade como realizada, mas que eu a queira como possível,
como possibilidade. Incorro, assim, na situação de querer, contra minha vontade
explícita, minha própria falta de liberdade. É a isso que o ser indiferente – indiferente a
determinações – acaba, em última instância, se reduzindo. Esse resultado pode também
ser articulado do seguinte modo: a indiferença em relação a determinações não apenas
conduz a uma má compreensão da liberdade, no sentido de que sou determinado contra
minha própria vontade, mas também conduz ao efeito de que ações (no sentido próprio
do termo) se tornam indistinguíveis de não-ações ou pseudoações. Pois, como assumo,
estou agindo sem tomar partido, mas estou tomando partido contra tomar partido.
Penso que sou irresoluto, e todavia não sou. O ato mesmo que me faz indiferente está
também me forçando a me determinar sem e contra a minha vontade. Ajo como se
estivesse agindo, e, no entanto, uma vez que a verdadeira ação implica na liberdade,

24 Hegel, 1989, p. 59.


25 Hegel, 1996, p. 103. Trad. modificada pelo tradutor deste artigo a partir do original alemão.
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apenas tenho a ilusão de que estou agindo livremente.26 A indiferença, portanto,


significa também que há uma compreensão errônea do que é uma ação – esse é, como se
poderia dizer, um dos erros, uma das primeiras inferências falaciosas que emergem do
transcendental falacioso que estabeleci.
O diagnóstico que se pode desenvolver a respeito da indiferença (e de suas
implicações), alinhando Descartes, Kant e Hegel, é, portanto: seres humanos podem
agir de uma maneira puramente análoga a um animal, o que quer dizer, não-livre,
quando: 1) são determinados heteronomamente. Isso acontece quando 2) há uma má
compreensão de sua própria natureza, isto é, da liberdade. 3) Aquilo que tem origem
nessa compreensão, consequentemente, se volta contra o ser humano pela hipóstase e
pela produção de um comportamento de modo análogo ao de um animal. Esse resultado
se volta, portanto, contra o humano ao lhe impor uma determinação heterônoma.

Produzindo indiferença: Marx

Contra um pano de fundo sistemático, pode-se compreender uma afirmação que


se encontra nos escritos de juventude de Marx. O jovem Marx formulou repetidamente a
ideia de que o trabalhador que espera tomar parte no processo de acumulação do
capital, ou que de fato participa dele, é reduzido ao puro funcionamento de sua
constituição orgânica, i.e., corporal.27 Marx fala do trabalhador como sendo parte de um
rebanho, reduzido à mera função de seu estômago28 etc. Todavia, mesmo em sua
juventude, Marx era suficientemente lúcido para não simplesmente culpar o trabalhador
por esse efeito. Ele viu com clareza esse fato como um efeito provocado pelo próprio
funcionamento da dinâmica capitalista e de sua economia política. O que ele sustentava,
basicamente, era: o capitalismo reduz o trabalhador ao seu comportamento análogo ao

26 Aqui pode-se, é claro, lembrar da famosa análise elaborada por Slavo Žižek sobre como nas sociedades
contemporâneas o ato de consumo vem acompanhado de um excedente ideológico que me faz acreditar
que também estou agindo politicamente, por exemplo, quando compro um café na Starbucks e pago
mais por ele para dar apoio a crianças que sofrem em algum lugar na África. De fato, faço aquilo que
sempre fiz – consumir – e, todavia, sem sentir nenhuma culpa ou ser acometido por alguma má
consciência, pois assumo que meu ato de consumo também implica num momento de engajamento
político-social.
27 ovem Marx fala do trabalhador como um exemplo, para a economia política, do “animal de trabalho,
[...] uma besta reduzida às mais estritas necessidades corporais”. Cf. Marx, 2010, p. 31.
28 Idem, p. 26.
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de um animal (e a questão é se 'redução' é o termo correto aqui),29 pois se apoia num


conceito de liberdade falso e problemático e, assim, procura impor uma má
compreensão da liberdade para todos. É por isso que o capitalismo produz indiferença.
Isso não significa apenas, como o coloca Georg Simmel a respeito do dinheiro, que o
capital “não apenas revela a indiferença da pura significação econômica mas é antes algo
como a indiferença ela mesma”;30 mais que isso, ele produz uma indiferença – uma
compreensão errônea perpetuada da liberdade – que, mais tarde, pode ser, e de fato é,
administrada e organizada. No Capital, Marx mostrou que o dinheiro é um medium
abstrato e indiferente não apenas porque ele torna possível trocar qualquer coisa por
qualquer coisa e, portanto, não apenas porque ele faz desaparecer (como condensação
de tempo e força de trabalho) os processos de produção que estão por trás de todo e
cada produto, mas, antes, porque possuir dinheiro não gera opções de ação concretas,
mas meramente abstratas.31
O capital torna possível a alguém se tornar capaz de fazer coisas (comprar,
vender, acumular, consumir etc.). Mas quando se faz a pergunta “qual é a melhor coisa a
se fazer com o dinheiro”, a resposta é clara. A melhor coisa a se fazer com o dinheiro é
economizá-lo e acumular mais ou investi-lo e 'fazê-lo trabalhar para você'. Mas o que
isso significa em última instância é que uma pessoa possui dinheiro, mas não o possui,
ou não deveria gastá-lo, mesmo que obviamente o possa. Mas, uma vez que é muito
mais sábio investi-lo para adquirir mais dinheiro, renuncia-se à ação direta (isto é,
gastar o dinheiro). Assim, não é apenas o trabalhador que é reduzido ao status
designado pela categoria da indiferença. Marx é muito explícito sobre o fato de que, para
ele, o próprio procedimento da troca e a própria lógica do capital produz apenas opções
abstratas de ações. Isso equivale a dizer: produz apenas ações que você poderia realizar,
mas que lhe são mais convenientes se não forem realizadas. Essa dinâmica mesma
também gera aquilo que Marx, no Capital, chama a “triste figura” do “capitalista
'abstinente'“.32 Isso quer dizer que mesmo quando se é um capitalista e se possui um
bocado de dinheiro, também se está num estado de indiferença, pois poder-se-ia gastá-

29 Para uma análise extensiva deste diagnóstico em Marx e do todo da questão sobre como produção e
redução se vinculam através de procedimentos de abstração, ver Ruda, no prelo.
30 Simmel, 2005, p. 53.
31 Sobre isso, cf. também Lohmann, 1992, pp. 81-129.
32 Marx, 2013, p. 674. Isso reflete, obviamente, aquilo que já o jovem Marx notou quando afirmou:

“Quanto menos tu fores, quanto menos externares a tua vida, tanto mais tens...”, Marx, 2010, p. 142.
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lo por inteiro, mas a própria lógica do capital faz com que seja muito mais sábio
permanecer na possibilidade de gastá-lo do que efetivamente gastá-lo.33 Mas Marx
diagnosticou no capitalismo uma redução constante dos seres humanos a uma
determinação heterônoma que os faz funcionar como coisas, isto é, como autômatos,
máquinas, ou como meros corpos, animais descritíveis em termos meramente
mecânicos.34 O verdadeiro problema é que eles ainda percebem suas não-ações
abstratas como um modo de efetivar sua liberdade. Essa dinâmica geral, “a essência da
produção capitalista, ou, se se quiser, do trabalho assalariado”, foi enquadrada por Marx
como a lógica na qual o ser humano experimenta um constante “enriquecimento como o
seu próprio empobrecimento”.35 Pode-se também dizer: sua própria carência de
liberdade como liberdade. O que essa fórmula articula é um modo muito preciso de
apresentar o aspecto sociopolítico daquilo a que me referi com a categoria da
“indiferença”. É dizer, o enriquecimento como seu próprio empobrecimento também
implica numa má compreensão da própria liberdade, e isso conduz a uma
desqualificação da autodeterminação voluntária, o que acarreta uma determinação
heterônoma e reduz o homem a apenas essa determinação.
E, todavia, deve-se manter em mente que o capitalismo obviamente não é
natureza, não é natural e, por isso, a animalidade à qual ele reduz o ser humano não é
uma primeira natureza. No interior da cultura, qualquer forma de natureza já é
mediada, isto é, já é segunda natureza e, nesse sentido, a animalidade à qual os seres
humanos são reduzidos é uma segunda animalidade já processada, já adaptada e
produzida. Em outras palavras: é indiferença produzida. O capitalismo extrapola e
hipostasia um aspecto animal dos animais humanos, mas um aspecto que ele mesmo
produz. E é também por isso que essa animalidade mesma é aberta à modificação, à
mudança, à troca, à mercantilização (for modification, for (ex-)change, for
commodification) – na medida em que corpos, coisas e também animais já podem
funcionar muito facilmente como objetos, também podem ser comprados e vendidos. A
consequência disso é que as pessoas não sabem que são indiferentes, e isso é

33 Pode-se, é claro, perguntar se essa é ainda uma descrição adequada da dinâmica de mercado
contemporânea. Assumo, no entanto, que ainda o é, desde que acrescentando que há ainda uma lógica
peculiar no gastar o dinheiro que não se tem a fim de preservar o status quo no qual, novamente, não se
gasta o dinheiro que se tem.
34 Ele reduz “a sua atividade [do trabalhador] ao movimento mecânico mais abstrato”, Marx 2010, p. 141.
35 Marx, 1968, p. 255
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precisamente uma das razões que as torna indiferentes. Elas percebem suas própria
carência de liberdade como sua liberdade – devido a uma concepção errônea de
liberdade na qual se apoiam. Talvez seja ainda mais exato dizer que elas o sabem, mas
não acreditam naquilo que sabem. Elas não sabem, ou não acreditam que sabem, que
não estão numa relação adequada com sua própria essência e natureza, mas agem como
se estivessem. Nos termos de Hegel, pode-se reformular isso dizendo que há uma
contradição que diz respeito à relação entre conceito e realidade, mas que, na posse de
um conceito mal interpretado, essa contradição desaparece. É por isso que, outra vez,
seguem daí ainda outras falácias.
Pode-se aqui suplementar esse diagnóstico com a recordação da afirmação de
Heidegger sobre o caráter distintivo dos humanos e dos animais, a saber, o de que seres
humanos são aqueles seres que tem (e se relacionam com, projetam no interior de) um
mundo, enquanto animais vivem em um ambiente (no qual não é possível algo como um
projetar).36 O que acontece quando há indiferença é que as pessoas perdem seu mundo
(e também todo tipo de projetar). De acordo com um uma afirmação diagnóstica bem
conhecida de Alain Badiou, o mundo de hoje não é mais um mundo, e o nome desse
não-mundo, essa ausência de mundo, é, para ele, mercado. 37 O que é um mundo que já
não é um mundo? É um ambiente, um ambiente de e para predadores e outras espécies
animais “individualmente fracas e avidamente perseguidas”.38 Isso se deve ao fato de
que o próprio conceito de mundo implica que ele pode ser criado e modificado. Um
mundo é um produto – ao menos de projeções e de esforços coletivos – enquanto um
ambiente é como é; nenhuma transformação sua pode ser vislumbrada em seu interior.
Ambientes são como são e, ao menos até um grau muito fundamental, permanecerão
como eram, a não ser que algo os modifique desde fora – como o cometa que se acredita
ter extinto os dinossauros. Ambientes são naturais e se o mundo, ao não ser um mundo,
se torna um ambiente, ele se torna também uma entidade desistoricizada – uma
entidade sem história. Mundos são produtos de ações, interações, projeções, lutas e
eventos. Lutas no interior de um ambiente não mudam nada, elas apenas mostram que

36 Heidegger, 2011, pp. 258-350.


37 Em sua versão mais recente, lê-se esse diagn stico da seguinte forma: “Ho e não há um mundo real
constituído por homens e mulheres que vivem nesse planeta... pois o mundo que não existe, o mundo da
globalização, é apenas um mundo de mercadorias e de trocas financeiras. É exatamente o que Marx
previu há cento e cinquenta anos: o mundo do mercado mundial”, adiou 2014.
38 Marx, 2013, p. 718.
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vige o princípio da sobrevivência dos mais adaptados, isto é, que há algum tipo de
competição natural(izada). No interior de um mundo, lutas podem vir a ser algo que
induz a mudança do mundo, e mesmo que transforma aquilo que pensamos sermos
capazes de fazer. No interior do ambiente natural do mercado – que, como deve ser
claro, é um ambiente produzido – não há luta nem transformação imaginável na medida
em que mesmo a liberdade é naturalizada e transformada em uma capacidade dada do
corpo (por exemplo, a capacidade de desejar ou de expressar a si mesmo livremente). O
que há, então, a ser feito? Como retornar à possibilidade impossível de uma luta, mesmo
que uma luta contra a própria concepção errônea de liberdade? Como lutar contra a
própria ideologia espontânea da vida cotidiana, uma ideologia que naturaliza a própria
liberdade?

Corpo e alma: Descartes I

Em face do pano de fundo delineado, pode-se novamente buscar um apoio mais


próximo na última obra publicada por Descartes, que talvez permaneça sendo a mais
estranha delas, amplamente considerada como um livro radicalmente datado pela maior
parte da literatura atual: suas Paixões da alma. Ali, como dito no início, Descartes
propõe uma solução para o estado de indiferença que, além de soar genuinamente
surpreendente, é, como sustentarei, uma solução absolutamente digna de ser
ressuscitada e defendida: o fatalismo. Mas por que o fatalismo pode ajudar contra o
estado de indiferença? Antes que se possa responder a essa pergunta, é preciso
recapitular certos elementos das Paixões da alma. O título já indica que há algo corporal
na alma; há paixões que ela experimenta. 39 Contra um dualismo simples entre corpo e
alma – ainda que essa leitura ainda seja dominante hoje – , Descartes insiste que o livre-
arbítrio, que define minha essência, não pode ser o que é; isto é, uma vontade sem
nenhuma manifestação corporal, o que equivale a dizer, sem nenhuma manifestação
objetiva. A vontade não é vontade se não tiver efeitos que aparecem no mundo. Isto é,
podem existir argumentos lógicos puros (pensamentos puros), existem percepções
puras (efeitos corporais puros) e também existem coisas que são ao mesmo tempo
relacionadas ao pensamento ou a percepções, i.e., à alma e ao corpo. Há coisas para as
39 Um comentário instrutivo sobre esse tópico geral em Descartes pode ser encontrado em: Nancy, 2004.
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quais o corpo não é a causa, mas que tampouco são meramente intelectuais, mas antes
movimentam o corpo.40
A vontade é definida, neste livro, como algo que não é uma capacidade corporal,
mas como uma instância que produz efeitos sobre o corpo. Pode-se, assim, deduzir
retroativamente sua existência a partir de seus efeitos. Todavia, o corpo também pode
produzir efeitos naquilo que lhe move, ele pode produzir efeitos sobre aquilo que produz
efeitos sobre ele. Ele pode apresentar restrições corporais aos efeitos que a vontade pode
produzir, ao delinear um âmbito específico do corporalmente possível, daquilo que o
corpo pode fazer. Há, portanto, uma relação peculiar entre algo que é por inteiro
finitude (corpo) e algo que é por inteiro infinitude (vontade). Mas essa relação possui
dois lados.41 Não apenas porque possui dois polos, mas ainda porque os efeitos que um
polo produz sobre o outro são radicalmente diferentes – uma relação que parece
diferente a partir de cada um dos lados envolvidos. A vontade, a expressão da alma,
pode tornar possível o que não é possível para o corpo por si mesmo e, portanto, não
pode ser considerada uma capacidade do corpo. O corpo, por outro lado, limita os
efeitos da vontade e é capaz de introduzir (pensamentos de) limitações na alma de tal
modo a bloquear a infinitude da vontade. O vínculo entre alma e corpo é, assim, não
uma simples relação, na medida em que assume formatos bastante diferentes
dependendo de onde é percebido.
Essa relação, que não pode de fato ser chamada de relação em sentido próprio,
introduz o que Descartes chama de “combates” na alma42 – a alma luta contra os efeitos
que o corpo produz sobre ela, suas paixões, a fim de sustentar uma compreensão
adequada de sua própria liberdade e independência. E Descartes infere daí: isso “leva a
alma a sentir-se impelida quase ao mesmo tempo a desejar e a não desejar uma mesma
coisa; e daí é que se teve ocasião de se imaginar nela duas potências que se
combatem”.43 Isso é o que pode acontecer quando a alma assume a perspectiva do corpo
– um estado de indiferença pode surgir, no qual a alma deseja ao mesmo tempo tanto
40 Para ser mais preciso: Descartes distingue entre atividades da alma que determinam ou a alma ela
mesma ou o corpo, e entre percepções que ou são causadas pela alma ou pelo corpo. Portanto, pode
haver percepções corporais que movem a alma – algo que permite a abordagem disso que chamo de
indiferença. Cf. Descartes, 2010b, pp. 307-308. Deixo uma elaboração completa dessa distinção para
outra hora e lugar.
41 Um modo mais preciso de dizer é: não há relação entre o corpo e a alma.
42 Descartes, 2010b, pp. 321-322.
43 Descartes, 2010b, p. 322.
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sua liberdade quanto sua não-liberdade –, e a razão para isso está numa confluência da
determinação que tem origem na alma e daquelas que emergem do corpo. Para lidar
com esse tipo de conflitos, Descartes sustenta que é necessária uma definição diferente
de autodeterminação livre. Ela não pode ser nem puramente intelectual e conceitual
nem puramente corporal. Para esse fim, é preciso equipar a vontade, no combate, com
“suas próprias armas”, “juízos firmes e determinados”.44 Quanto mais firme o juízo
(manifestando a liberdade da alma), mais firme a realização da sua liberdade. Sua
fortaleza só pode ser medida por seus efeitos, por suas ações.45 Ações que considero
serem livres, autodeterminadas, mas que são ações determinadas heteronomamente,
demonstram a carência dessa espécie de firmeza. Mas como é possível alcançar a certeza
de que se é firme e determinado na própria vontade e na própria ação? De um lado, isso
claramente tem a ver com conhecimento46 – conhecimento da situação em que se está e
conhecimento do que é o bem e o mal. No entanto, do outro lado, o caráter firme dos
juízos da vontade não pode ser completamente derivado do conhecimento. A razão disso
está precisamente na noção cartesiana de verdade, uma vez que ela apresenta um ponto-
limite do conhecimento. É, então, crucial elaborar brevemente esse conceito de
liberdade.

A liberdade impensável: Descartes II

Descartes oferece uma abordagem clara, ainda que difícil, da liberdade em seu
Discurso do método. Ele começa com uma consideração simples: sou capaz de duvidar
porque sei que posso errar. A partir daí, posso inferir que sou capaz de duvidar, pois tive
a experiência do fracasso. Sou capaz de duvidar porque sei que não sou perfeito. É isso
que torna possível obter negativamente o conceito de liberdade, pois possuo o conceito
de falta (erro, fracasso) e uma compreensão própria desse conceito implica em seu
44 Descartes, 2010b, p. 323.
45 Se a alma perde o combate com as solicitações corporais, essa perda aparece sob o disfarce da paixão do
medo (recorde-se que a indiferença é, como citado no início, uma espécie de medo), que “representa a
morte como um extremo mal, que s pode ser evitado pela fuga” Descartes, 2010b, p. 323) sto é
crucial: se o corpo começa a determinar a alma e seus meios de determinar a si própria, a saber, a
vontade, o efeito é um medo fundamental da morte que se assenta no reino da finitude. As
consequências desastrosas de qualquer hipóstase da finitude tem sido analisadas por Badiou em:
Badiou, 2013-2014.
46 Descartes sintetiza isso sob o slogan: “a força da alma não basta sem o conhecimento da verdade”,

Descartes, 2010b, p. 323.


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oposto. A experiência de “algo” negativo implica, negativamente, sua própria negação. A


perfeição é a negação negativamente implicada da falta (que experimentei), a qual está
contida no próprio conceito de falta. Uma vez que a falta é a experiência de uma
ausência, pode-se aplicar o conceito de ausência sobre si mesmo. Isto é, como em Hegel,
o significado da compreensão dos próprios limites como os próprios limites. A falta se
torna reflexiva e conduz ao seu contrário lógico. Obtém-se, assim, a ideia de que deve
haver algo que falta na falta e que esse algo é precisamente aquilo que perfeição quer
dizer: a falta da falta.47 Após a experiência do fracasso, posso encontrar em mim
negativamente implicada a ideia de perfeição – uma versão cartesiana da doutrina
platônica da anamnese. E, na medida em que Descartes sustenta que minha própria
imperfeição resulta de minha constituição, sou uma composição de duas substâncias
distintas, i.e., o corpo e a alma. Portanto, aquilo que é perfeito deve necessariamente
suspender a fonte de minha imperfeição.48 Por isso ele pode deduzir que algo perfeito –
cujo nome clássico, é claro, é “Deus” – precisa existir, ou melhor: precisa ter existência.
Pois aquilo que é perfeito não seria perfeito se não existisse. Perfeição é aquilo que
precisa ser, como falta da falta, e uma vez que a falta inclui a ideia de limitação, aquilo
que é perfeito precisa ser ilimitado, infinito. Tão logo cometo um erro, sou forçado a
pensar algo que precede logicamente minha constituição, não posso senão pensar – se
penso – a falta da falta.
O argumento de Descartes é muito mais radical do que se concebe usualmente.
Ele sustenta que “o que leva muitos a se persuadirem de que há dificuldade em conhecê-
Lo [i.e., de conhecer Deus], e mesmo também em conhecer o que é sua alma, é o fato de
nunca elevarem o espírito além das coisas sensíveis e de estarem de tal modo
acostumados a nada considerar senão imaginando, que é uma forma de pensar
particular às coisas materiais, que tudo quanto não é imaginável lhes parece não ser
inteligível”.49 Ele se opõe estritamente a uma tal limitação do pensamento. Se Deus não
pode ter um corpo, então é preciso pensá-lo diferentemente. Tudo o que possui um
corpo aparece em um mundo, em um discurso. Disso se pode inferir que Deus deve ser
não-discursivo, não-mundano. Deus precisa ser ainda mais subtraído de qualquer

47 Jacques Alain-Miller se referiu uma vez à falta da falta como “um lugar – onde não há nada”, Miller,
2002, 139.
48 Descartes, 2010a, pp. 88-89.
49 Idem, p. 90.
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materialização corporal do que o cogito. Ele deve ser aquilo que só pode ser apreendido
no interior de um discurso, de um mundo, mas como aquilo que é ao mesmo
logicamente 'anterior' a ele (uma vez que o criou): Ele é o pré-discursivo pós-
discursivamente apreensível, a falta da falta.
Ele é aquilo que não podemos compreender discursivamente (imaginando-o).
Mas podemos pensar que há algo que não podemos compreender. Posto de modo
distinto: podemos pensar que há algo que não podemos pensar. Podemos pensar
naquilo que terá sempre sido logicamente 'anterior' a qualquer discurso e que é
impensável na medida em que o pensamento é essencialmente discursivo. Se toda
existência – mesmo o cogito – pertence a um arranjo discursivo, Descartes demonstra
que podemos pensar o que é, mas não existe. Podemos pensar um ser – “Deus” – mas
pensamo-lo como algo impensável, pois ele não existe. Temos, assim, uma ideia clara e
distinta do impensável, que é, portanto, completamente racional. Podemos pensar o
impensável como aquilo que não podemos pensar, mas somo, todavia, forçados a
pensar.
Mas o que é pensado se se pensa aquilo que não se pode pensar? A resposta de
Descartes é: liberdade. Pensa-se, portanto, a essência do ser humano.
Consequentemente, Descartes é um dualista, mas um dualista peculiar. É um dualista
porque pensa que há, de um lado, o pensamento, o discurso etc., e, do outro, há o
impensável. O que isso significa? Nas Meditações, Descartes mostrou que posso errar
porque, em um aspecto, sou absolutamente análogo a Deus, a saber, no que diz respeito
à minha liberdade. Sou tão infinitamente livre que minha vontade pode querer A e não-
A ao mesmo tempo. É por isso que posso errar, mas isso também implica uma afirmação
acerca da essência de Deus e, na medida em que lhe sou semelhante nesse aspecto,
também acerca da essência dos seres humanos. Jean-Paul Sartre demonstrou que a
liberdade de Deus, em Descartes, é a de uma contingência absoluta da vontade criativa
(é por isso que Deus é o nome do infinito), em suma: Deus não tem a necessidade de
criar, ele quer criar, e é contingente que ele o queira.50 Se a essência humana é análoga à
de Deus, humanos são tão livres quanto ele é, e se Deus é o nome para o impensável,
então isso quer dizer que minha essência não é uma essência natural. Pois Deus não é

50Sartre, 1968. Nesse aspecto, Descartes antecipa a tese de Meillassoux de que a contingência precede
todo tipo de existência.
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natural; ele é o criador da natureza. É por isso que minha essência deve ser – ainda que
eu apareça, quando existo, como uma entidade natural – não natural ou mesmo a-
natural. Minha liberdade é a-natural e sou, ao mesmo tempo, um ser natural. Todavia,
e essa é a pretensão de Descartes, não se deve nunca naturalizar uma essência. Pois tão
logo alguém concebe a liberdade meramente como uma capacidade que se possui
naturalmente (incorporada no próprio corpo), já está concebendo erroneamente a
liberdade e caindo em um estado de indiferença. Contra isso, a pretensão de Descartes é
a seguinte: não há relação entre o humano e o animal, entre corpo e alma – são
substâncias distintas – mas há algo como um animal humano, uma corporificação da
não-relação. Não há relação entre a alma e o corpo, mas já algo como uma
corporificação dessa não-relação mesma, que é o animal humano.

Agindo-como-se-não-se-fosse-livre: o fatalismo

A partir desse fundamento, Descartes desenvolve seu argumento


maravilhosamente contraintuitivo a favor do fatalismo. Uma vez que a liberdade não é
uma capacidade que possuo naturalmente, ela resulta da contingência (isto é, de algo
impensável). Liberdade não é uma capacidade, mas um resultado. É necessário haver
algo que torna a liberdade possível. Só sou livre quando sou forçado contingentemente a
ser. Por isso, a partir do momento em que se começou a conceber o cogito, é-se forçado
a pensar aquilo que só se pode pensar como algo que não se pode pensar (i.e., Deus).
Que o pensamento é forçado a pensar aquilo que ele não pode pensar, isso significa a
noção mesma de pensamento implica que seu conceito próprio tem origem em uma
determinação que não tem origem no próprio pensamento, mas em algo outro ou em
outro lugar. Isso também vale para a liberdade. Sou forçado a pensar, e sou forçado a ser
livre. Sou não-livre tão logo concebo minha liberdade como algo que está em meu poder.
Isso faz da liberdade uma capacidade. Mas representar a liberdade em termos de uma
capacidade que tenho (e isso é o que funda a indiferença) – por paradoxal que possa
soar – implica em entregar-se à arbitrariedade como uma forma fraca de contingência.
O que está, assim, implicado na ideia de liberdade como capacidade não é apenas um
conceito errado de liberdade, mas também um conceito errado de contingência.
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Isso porque logo que começo a enfatizar o talvez, o “pode ser”, a possibilidade dos
dois lados de uma escolha em detrimento da escolha de um dos dois lados, eu não
apenas tomo partido da indeterminação mas também da ideia de que as coisas
poderiam se dar de qualquer maneira. Concebo a contingência, consequentemente, em
termos de arbitrariedade. Pode-se, portanto, derivar daí que a indiferença também é o
nome de um status no qual qualquer via está bem para mim.51 A indiferença enfatiza a
arbitrariedade de duas vias possíveis que podem até mesmo se mostrar conceitualmente
como contraditórias; e, tão logo ajo assim, enfatizo algo que pode ser, mas que também
pode não ser. Com isso, tomo partido de uma forma fraca de contingência. Não de uma
contingência que me permitiria fazer uma escolha – contingência como a origem da
liberdade – mas de uma contingência da escolha e de seu resultado. Tomo partido, com
isso, daquilo que Descartes chama de “fortuna”.52 Tão logo penso que possuo o poder de
escolher qual será o curso do mundo ou da história e permaneço no interior dessa mera
possibilidade, tenho a impressão de que poderia determinar o mundo a qualquer
momento que queira. No entanto, o que ocorre, de fato, é que fico dependente dos
contextos de fortuna arbitrários que já sempre me determinam de maneira heterônoma.
Quando acredito que a realidade e a efetividade de minha liberdade está em sua
possibilidade mesma, hipostasio essa possibilidade e termino sendo determinado pela
arbitrariedade.
Para evitar essa hipóstase de uma contingência fraca, apenas uma coisa pode
ajudar: a defesa da necessidade absoluta, do determinismo total. 53 A ideia que Descartes
avança é a seguinte: é preciso assumir que tudo já está pré-determinado, mesmo que
nunca se possa e nunca se vá saber de que modo. Essa disposição da mente é a única que
evita que eu caia na posição idealista de assumir que eu poderia determinar qualquer
coisa, e que todas as coisas estão em meu poder, isto é, que liberdade é uma capacidade.
Uma tal postura, em primeiro lugar, suspende a identificação de liberdade e capacidade.
E permite assumir o impacto determinado completo da contingência (de Deus), que, em

51 Em termos políticos, isso implica obviamente não apenas na abolição da política, mas também no
próprio procedimento no qual qualquer eleição parlamentar se baseia fundamentalmente.
52 Fortuna é, portanto, para Descartes, uma “quimera que provém apenas do erro de nosso

entendimento”, Descartes, 2010b, p. 368.


53 Deve estar claro aqui que Descartes está estritamente alinhado a Hegel e Freud – na medida em que

Hegel sempre defendeu a necessidade (e a totalidade) absoluta e Freud, o determinismo psíquico


absoluto.
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última instância, se torna necessidade. Isso é precisamente o que ele chama de


fatalismo. Para assumir essa posição, como ele sustenta, é preciso coragem (ou mesmo
ousadia).54 Por quê? Pois, em primeiro lugar, a postura fatalista parece implicar a
abolição mesma da liberdade. E, de fato, ela é a abolição da liberdade: da liberdade
como uma capacidade. O que Descartes propõe é que se aja como se não se fosse livre. É
isso que estabelece a condição mesma da liberdade efetiva. Pois, com isso, evita-se todo
gesto objetificante, que poderia transformar a liberdade em uma capacidade, criar
indiferença e conduzir a determinações heterônomas, em última análise até mesmo a
uma compreensão errônea da heteronomia. É preciso assumir completamente que não
se tem objetivamente nada em seu poder55 e que nunca será possível saber nada sobre
os planos de Deus, i.e., da contingência. Mas é exatamente isso o que torna possível
conceber minhas ações de um modo puramente subjetivo. Agindo como se eu não fosse
livre – ou seja: sendo um fatalista – afirmo uma determinação que não posso deduzir de
minhas capacidades, a saber, a de que apenas sou livre quando me ocorre de ser forçado
a fazer uma escolha. Assim, não apenas me torno instrumento de um Outro, da vontade
de Deus (Descartes não está seguindo a lógica de Eichmann); torno-me antes ainda mais
responsável por minhas ações, pois tudo é determinado, mas, de que modo, isso é
absolutamente incerto. É por isso que, em certo sentido, não devo me preocupar com o
modo como se é determinado. Pois até mesmo o Outro – aqui, Deus – é, portanto,
determinado pela contingência, o que quer dizer que tampouco Deus tem planos sobre
seus planos (ele também é determinado pela contingência). Para Descartes, tenho de
assumir que sou determinado (sou forçado a ser livre ou a pensar, forçado por algo que
não brota de meu pensamento ou minha liberdade), e isso implica que no coração do
humano, na origem de minhas ações verdadeiramente humanas, então, está algo que o
determina de um modo que não pode nos deixar indiferentes. Pelo fatalismo, afirma-se
essa possibilidade impossível de que as ações verdadeiramente humanas sejam
possíveis, apesar de não haver nenhuma garantia objetiva (nem em mim nem no
mundo) para elas. Isso também é afirmar que o animal humano é, em seu coração, um

54 A coragem “dispõe a alma a se entregar poderosamente à execução das coisas que ela quer fazer, de
qualquer natureza que se am”, Descartes, 2010b, p. 383. A ousadia é definida como “uma espécie de
coragem que dispõe a alma à execução das coisas que são mais perigosas”, idem, ibidem. E livrar-se da
liberdade como uma capacidade minha é uma manobra bastante perigosa.
55 Descartes afirma aqui algo semelhante a Badiou: Não temos nenhum poder contra a verdade. Cf.

Badiou, 2005.
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ente inumano. Se se assume isso, pode-se evitar a espécie de indiferença que delineei
acima. O fatalismo, a defesa da necessidade absoluta, pode ser considerado uma
ferramenta para uma renovação de um humanismo verdadeiramente inumano, de ações
reais e de ações do real, em suma: de liberdade. Era o que Descartes pensava, e para
mim isso parece válido especialmente hoje: apenas uma fatalista pode ser livre. Isso
porque não há nada sobre o que ter esperanças, nada no que se fiar, e em certo sentido
não há nada sobre o que tenhamos algum poder. Mas isso evita que se caia na armadilha
de agir como se se fosse livre. Portanto, hoje ainda mais, sustento que é preciso arriscar
ser um fatalista. Dever-se-ia arriscar seguir o novo grito de batalha: aja como se não
fosses livre.

[Tradução: Luiz Philipe de Caux]

Referências

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IMPEACHMENT
Memória do 1º ato da farsa brasileira de 2016

Impeachment por Deus. Impeachment pela Família. Impeachment por um Basta na


Roubalheira. Impeachment pelos Fundamentos do Cristianismo. Impeachment de Feliz
Aniversário para a Neta. Impeachment pelo Fim da Corrupção no Brasil. Impeachment
pelo Neto Recém-Nascido. Impeachment pelas Famílias de Bem. Impeachment pela
Paz, pela Harmonia e pela Concórdia. Impeachment Contra Que As Crianças Aprendam
Sexo Na Escola Com Seis Anos de Idade.

Impeachment pela Família Quadrangular e Evangélica. Impeachment pela Nação


Evangélica. Impeachment em Nome da Minha Mãezinha. Impeachment para Botar a
Mão para Cima. Impeachment pelas Pessoas de Bem. Impeachment para Resgatar a
Moralidade na Política. Impeachment pela Esposa. Impeachment pelo Fim da CUT.
Impeachment Porque Não Tem Maioria no Congresso e Assim Não Dá Para Governar.
Impeachment pela República de Curitiba. Impeachment Contra a Ladroeira.
Impeachment Contra a Ditadura de Esquerda. Impeachment pelos Evangélicos.
Impeachment Porque É Necessário. Impeachment em Nome da Minha Família.
Impeachment Por Causa da Morena Mais Linda do Brasil.

Impeachment por Todos os Corretores de Seguro do Brasil. Impeachment por Todos os


Brasileiros Que Tiveram Seus Sonhos Frustrados. Impeachment para Salvar o País da
Ladroagem Que Se Chama-se PT. Impeachment em Homenagem ao Aniversário da
Minha Cidade. Impeachment pela Minha Mãezinha, Minhas Três Filhas e Meu Neto.
Impeachment pela Nação Evangélica e Cristã. Impeachment pela Paz de Jerusalém.
Impeachment pelos Meus Amigos. Impeachment Porque o Brasil Chegou no Juízo Final.
Impeachment Em Nome do Povo Cristão Que Detesta a Corrupção. Impeachment
Porque Como Já Dizia Olavo de Carvalho O PT é Perca Total.

Impeachment Para Garantir o Emprego Para 10 Milhões de Desempregados.


Impeachment Porque Dilma É Incompetente. Impeachment pela Querida Polícia Militar
do Estado de São Paulo. Impeachment pela Família Brasileira. Impeachment Para Que
Deus Abençoe Este País. Impeachment Contra o Estatuto do Desarmamento.
Impeachment pelos Militares de 1964. Impeachment pelos Garotos da Lava-Jato.
Impeachment Porque o Brasil Escolheu a Bandeira Vermelha Mas Errou. Impeachment
Porque o Povo Não é Nem da Venezuela Nem da Coreia do Norte. Impeachment por Um
País Sob a Grande Proteção do Arquiteto do Universo.

Impeachment Porque Quando o Ímpio Domina o Povo Sofre. Impeachment em Nome


das Mães Que Perderam Seus Filhos na Violência. Impeachment Porque Dilma Você É
[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016 257

Uma Vergonha, Vergonha, Vergonha. Impeachment pelo Meu Pai Que Tanto Sofreu Na
Mão do PT. Impeachment por Você, Meu Pai. Impeachment Para Dizer Tchau ao
Partido das Trevas. Impeachment pela Família Paulista. Impeachment Porque o Povo
Está Morrendo Nos Hospitais E Ninguém Faz Nada. Impeachment pelo Estado de São
Paulo Que É Governado Há 20 Anos Por Políticos Honestos do Meu Partido.

[Registrado por Camila Pavanelli de Lorenzi em sua página do Facebook, a partir


das falas dos deputados federais na votação de admissibilidade do Impeachment de
Dilma Rousseff. Compilado por Daniel Cunha]
[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016 258

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A revista aceita contribuições e


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Edição: editorial. Os artigos devem ser
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Daniel Cunha (Binghamton)
Felipe Drago (Porto Alegre)

Joelton Nascimento (Cuiabá)


Raphael F. Alvarenga (Leuven)
Rodrigo C. Castro (São Paulo)

Capa desta edição: Felipe Drago,


inspirada em desenho do
“Proyecto Cabra”:
https://www.youtube.com/watch?v=pHAD
ZkWzsGQ.

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