Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Latin Book
Latin Book
1, 2016 2
NARCISO OU ORFEU? 30
Observações sobre Freud, Fromm, Marcuse e Lasch
Anselm Jappe
PERIFERIA/PARALISIA 141
A figuração do inferno colonial no primeiro Joyce
Cláudio R. Duarte
ARTIGOS
O TRABALHO EM MARX É ONTOLÓGICO, #SQN 158
Crítica categorial da forma limitada da atividade humana
Thiago Ferreira Lion &
Thiago Arcanjo Calheiros de Melo
...
IMPEACHMENT 256
Memória do 1º ato da farsa brasileira de 2016
[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016 4
Editorial
Após outro longo intervalo, publicamos aqui mais uma edição dupla de Sinal
de Menos.
decomposição social assim se realizar ela também será passível de ser virada
dialeticamente do avesso, prenunciando a ruptura do novo consenso de aço que
renaturalizou o fetiche. Que tipo de lutas e práticas sociais isso suscitará é uma
página inteiramente em branco.
um longo processo de transição, mas frágil e limitada para as tarefas que despontam
no horizonte.
nada em sua determinação pelo conteúdo social, fundado que está na penetração da
lógica do capital numa sociedade semiperiférica e dependente, com personagens
moldadas e mobilizadas pelo processo, numa espécie de mimese construtiva
exuberante de uma base de vida miserável. E que apenas em sua desolação e
identificação negativa pode suscitar algum desejo de ruptura. O dossiê finaliza com o
artigo de CLÁUDIO R. DUARTE – PERIFERIA/PARALISIA – A figuração do
inferno colonial no primeiro Joyce. O ensaio mostra a evolução do escritor
de Chamber Music a Dubliners, no início do séc. XX, interpretando sua recriação
paródica do Inferno de Dante, especialmente no conto cortante intitulado
“Counterparts”. Temos aí um Joyce mais seco, mais objetivo, mais econômico, mas já
afinado às dissonâncias de uma sociedade neocolonial que delineia incessantemente
uma espécie de “movimento paralítico”: cristalizado entre o mito e a história, o
ensaio de mudança e o seu desaparecimento, soçobrando na mesmice do estado de
exceção irlandês e da abstração real capitalista. De certo modo, os dois dossiês da
revista parecem formar um vínculo subterrâneo na medida em que pensam os
antagonismos estruturais constitutivos do sujeito e do indivíduo modernos.
análise, o artigo defende o fatalismo como um meio possível para enfrentar estados
de indiferença e, desse modo, dar um passo da análise crítica à formulação afirmativa
de um princípio de orientação: “age como se não fosses livre”. Se isso é ou não uma
questão plausível, para dizer o mínimo, fica para o leitor julgar e decidir. O fato
menos controverso parece ser que a realidade degradada atual não pode deixar as
pessoas indiferentes ad eternum.
Por isso mesmo a revista termina com a salada de palavras grotescas, colhida e
servida na hora da sessão de admissibilidade do IMPEACHMENT de Dilma, na
Câmara dos Deputados, captada por uma arguta observadora, CAMILA PAVANELLI
DE LORENZI, a qual agradecemos pelo registro da farsa tragicômica do desmanche
nacional.
Em outros termos, e como reforçará nosso segundo volume, o fim do mundo
da mercadoria já chegou para a maioria – talvez não apenas no seu condomínio.
Novembro de 2016.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016
11
NOTA INTRODUTÓRIA
AO DOSSIÊ JAPPE
Projeto As aventuras do sujeito
Este dossiê reúne três artigos publicados entre 2012 e 2016 por Anselm Jappe,
o qual gentilmente autorizou sua publicação. Além dos artigos, o dossiê inclui, como
“prefácio”, o excerto de uma entrevista em que esse teórico apresenta o projeto do seu
livro intitulado As aventuras do sujeito, a ser publicado na França em 2017.
Por meio da crítica de dois clássicos da filosofia moderna, Descartes e Kant, o
primeiro artigo do dossiê expõe a constituição do sujeito moderno, bem como do seu
“outro” necessário: o não-sujeito. A fim de formular uma teoria crítica consistente da
sociedade contemporânea e da difusão de comportamentos narcísicos como
exasperação da mentalidade da concorrência, o segundo artigo debate a relação entre
marxismo e psicanálise, particularmente o modo como Freud foi interpretado por
Fromm, Marcuse e Lasch e as críticas que estes teceram tanto a seus precedentes
quanto a determinados aspectos da sociedade capitalista do século XX. Finalmente,
no último artigo do dossiê – sobre a transformação da função dos museus – Jappe dá
continuidade às reflexões da “Pars ludens” do seu livro Crédito à morte (2011),
referindo-se à (im)possibilidade de realização de uma experiência artística autêntica
no atual contexto de “disneylandização do mundo” e narcisismo.
Os temas deste dossiê foram apresentados em seminários dirigidos por Jappe,
em Paris, nos últimos anos: houve sessões, entre 2012 e 2014, sobre “As aventuras do
sujeito moderno: sociedade de mercado e narcisismo”, na École des Hautes Études en
Sciences Sociales, e, entre 2015 e 2016, sobre “O sujeito moderno entre o fetichismo
da mercadoria e a pulsão de morte”, no Collège International de Philosophie.
Com o pano de fundo teórico formado pela “crítica da dissociação-valor” -
corrente internacional de crítica social baseada em uma releitura original da obra de
Marx -, os artigos deste dossiê consistem em momentos da elaboração de uma teoria
do sujeito moderno. Considerando, por um lado, que a sociedade contemporânea é
dominada pelo que Marx chamou de “fetichismo da mercadoria” e, por outro, que
nela os indivíduos têm tendência a conhecer apenas a si mesmos e a negar a realidade
[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016
12
ENTREVISTA
Sobre o projeto As aventuras do sujeito
com ANSELM JAPPE
vazio. Esta pulsão é menos uma constante biológica do que a última forma de uma
sociedade baseada no trabalho abstrato e que, no mais fundo dela, instalou o nada: o
seu único objectivo é a transformação tautológica do dinheiro em mais dinheiro, e o
mundo inteiro é o material que consome para atingir esse fim. O declínio da
sociedade da mercadoria expressa-se, pois, também na exasperação do narcisismo,
na incapacidade do indivíduo contemporâneo de estabelecer uma verdadeira relação
com o mundo.
Finalmente, esta reflexão sobre o “niilismo real” da sociedade de mercado
pretende ser um contributo para a compreensão do regresso das ideologias do
ressentimento e dos fundamentalismos de toda a espécie, do antissemitismo e do
racismo, do etnocentrismo e da violência sexual. O sujeito moderno, que se identifica
com a forma vazia, precisa de expulsar de si tudo o que não admitir como parte de si
mesmo. Kant, com toda a sua candura, já descrevera este processo, estabelecendo
como fundamento da sua moral uma vontade que não é manchada por nenhum
conteúdo, e que não quer nada senão ela mesma. Os conteúdos concretos recalcados
regressam agora sob formas terríveis. A própria existência de um mundo real,
irredutível à vontade do sujeito, estimula no sujeito narcisista o desejo de eliminar
este mundo que lhe é refractário. A oscilação entre os sentimentos de omnipotência e
de impotência perante um mundo experienciado como radicalmente estranho, e as
tentativas violentas de sair deste círculo fechado são umas das principais
características da constituição fetichista-narcisista. Esta é em si mesma contraditória
e, por conseguinte, dinâmica: tende para uma saída catastrófica, com tentativas de
aniquilamento daquilo que foi prejectado para fora: é a sua “pulsão de morte”. A
razão moderna tem sempre o seu reverso oculto e “irracional”; o marquês de Sade é a
face oculta de Kant. O atomismo social, isto é, a separação radical que existe entre os
membros da sociedade, causada pelo trabalho abstrato quando ele constitui o
princípio de síntese social, dá lugar às fantasias de fusão total que caracterizam o
narcisismo. Tornam-se então visíveis as ligações a fenômenos contemporâneos tão
diversos como o neo-religioso, os desportos radicais, as rave parties, a droga, a
evanescência do corpo, a cultura do “virtual”, mas também a guerra de bandos e os
atentados suicidas (não só islamistas). A “crítica do sujeito” tem sempre, pois, um
duplo sentido: não considera apenas o sujeito em sentido filosófico, mas também o
modo como os “sujeitos” – as pessoas de carne e osso – vivem, no dia-a-dia, a crise da
sociedade do fetichismo da mercadoria. Aliás, na percepção cada vez mais difundida
[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016
17
NARCISISMO E
FETICHISMO DA MERCADORIA
Algumas observações a partir de Descartes, Kant e Marx1
Anselm Jappe
reinterpretação da teoria crítica de Marx [1993], foi publicada pela Boitempo (2014). Além dessa
obra, em francês também está disponível POSTONE, Moishe. Critique du fétiche capital. Paris:
Presses Universitaires de France, 2013.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016
19
aprofundada4 demonstra que se trata de uma forma de existência social total que se
situa a montante de toda separação entre reprodução material e fatores mentais: ela
determina as próprias formas do pensamento e do agir. O fetichismo da mercadoria
compartilha estes traços com outras formas de fetichismo, tal como a consciência
religiosa. Ele poderia, assim, ser caracterizado como uma forma a priori.
O conceito de forma a priori evoca evidentemente a filosofia de Immanuel
Kant. Todavia, o esquema formal que precede toda experiência concreta e por sua vez
a modela, aqui em questão, não é ontológico, como em Kant, mas histórico e sujeito à
evolução. As formas dadas a priori, nas quais se deve representar necessariamente
todo conteúdo da consciência, são, para Kant, o tempo, o espaço e a causalidade. Ele
concebe estas formas como inatas a todo ser humano, sem que a sociedade ou a
história desempenhem nenhum papel. Seria suficiente retomar esta questão, mas
retirando das categorias a priori seu caráter atemporal e antropológico, para chegar a
conclusões próximas da crítica do fetichismo da mercadoria. O fato de a percepção do
tempo, do espaço e da causalidade variarem fortemente nas diferentes culturas do
mundo foi notado mesmo por certos kantianos.5 Entretanto, não se trata apenas do
conhecimento, mas também da ação. O fetichismo da mercadoria do qual fala Marx, e
o inconsciente do qual fala Sigmund Freud, são as duas formas principais que foram
propostas, após Kant, para dar conta de um nível de consciência do qual os atores não
têm uma percepção clara, mas que, em última instância, os determina. Mas,
enquanto a teoria freudiana do inconsciente foi amplamente aceita, a contribuição de
Marx para compreender a forma geral da consciência restou como a parte mais
desconhecida da sua obra.6 Com as fórmulas do “fetichismo da mercadoria” e do
“sujeito automático”, Marx lançou as bases de um inconsciente de caráter histórico e
submisso à mudança, ao passo que o inconsciente de Freud é essencialmente
receptáculo de constantes antropológicas, quiçá biológicas. Em Freud, a questão é
sempre a relação entre um inconsciente tout court e uma cultura tout court, e, para
ele, esta relação não mudou muito desde a época da “horda primitiva”. Na sua teoria,
não há lugar para a forma fetichista, cuja evolução forma precisamente a mediação
entre a natureza biológica, enquanto fator quase invariável, e os eventos da vida
histórica. As relações entre o a priori de Kant, o inconsciente de Freud e o fetichismo
Um mau sujeito
se limita mais ao mundo do além: ela se infiltrou aqui em baixo. Desta forma, ela não
é nem mesmo mais reconhecível como tal, porque, ao invés de constituir um reino à
parte, ela se mesclou às relações cotidianas dos homens, à produção e reprodução das
suas vidas. Desde o início, a formação histórica do sujeito não se desenrolou como
uma ruptura com o cristianismo, mas como a sua continuação por outros meios. O
dualismo radical entre o corpo e espírito, e a desvalorização do corpo em favor das
partes do homem que se comunicam com o transcendente, são talvez os elementos
principais que o cristianismo transmitiu à subjetividade moderna.
Na impossibilidade de podermos apresentar aqui uma história detalhada da
gênese da forma-sujeito, examinemos ao menos dois autores entre os principais
fundadores da modernidade: Descartes e Kant.
Com a distinção rígida entre res extensa e res cogitans, Descartes radicalizou a
separação entre o sujeito, identificado apenas ao pensamento, e o resto do universo,
rebaixado ao status de simples objeto, a partir do próprio corpo do sujeito pensante.
O homem é sujeito apenas enquanto pensa, as faculdades humanas que não são
requisitadas para esta atividade saem do circulo da subjetividade.8 A fronteira entre o
sujeito conhecedor e o objeto conhecido, entre o pensamento e o corpo, entre o
sujeito e o objeto em geral, passa agora através do próprio homem, que começa então
a sua carreira moderna feita de separações e cisões. Para Descartes, não é mais Deus
que é a fonte do conhecimento e o fundamento do entendimento. Este papel é
desempenhado agora pelo eu, e sobretudo por um “eu” abstrato, o resultado de um
processo de redução que o despojou de toda qualidade concreta e individual. Assim,
esse “eu” se encontra com apenas duas qualidades: existir e pensar, em um sentido
totalmente formal, e vazio de determinações concretas. Esse “eu” não tem mais a
mesma substância que o mundo, a res extensa, e são necessárias construções
auxiliares, quase cômicas, em Descartes e seus sucessores (a glândula pineal, o golpe
ao mundo dado no princípio por Deus, ou o Deus relojeiro), para ainda estabelecer
uma ponte entre o sujeito e o mundo dos objetos, que, de outra forma, corriam o risco
de se separarem para sempre. O sujeito nasce, portanto, historicamente com o perigo
de incorrer em um solipsismo radical no qual a existência de um mundo exterior, e
mesmo de outros homens ou de um corpo sensível, não é mais que uma vaga
hipótese. Na filosofia de Descartes, o homem se encontra radicalmente estrangeiro
8 Enquanto o cristianismo reconhecia a possessão da coisa mais importante, de uma alma imortal, a
cada ser humano.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016
23
mesmo tudo o que se lhe opõe. Neste contexto, podemos apenas lembrar o fato bem
conhecido de que a palavra “sujeito” significa etimologicamente (e mesmo hoje em
dia, em alguns contextos) o “sujeitado” [sub-jectus]. Tornamo-nos sujeito aceitando a
submissão, e renovando-a todos os dias.
O sujeito é definido como um trabalhador. Não necessariamente como um
operário, mas como qualquer um que submeteu a sua vida às exigências da produção
– não da produção de objetos de uso, mas da produção de “valor”, de valor de
mercado que encontra a sua representação em uma quantidade de dinheiro. É
alguém que modela a sua vida segundo o que demanda a acumulação do trabalho
passado, “morto”. O sujeito é o outro lado do valor de mercado, o seu “portador” vivo.
Portanto ele não é apenas aquele que interiorizou a “necessidade” de trabalhar. É
aquele que interiorizou a mesma indiferença pelo concreto, pelo mundo exterior,
pelos conteúdos, que constitui a essência do trabalho abstrato. Uma forma de vida,
uma vontade sem conteúdo, uma indiferença pelo exterior – é lá que reside o
profundo isomorfismo entre o sujeito moderno e o trabalho abstrato. A recusa
eventual desta denegação de toda relação real com o mundo acaba por desqualificar
um indivíduo dentro da sociedade dos sujeitos e o torna “indigno” de participar do
status de sujeito.
O sujeito moderno se caracteriza por um falso universalismo: aparentemente,
ser um sujeito é uma qualidade puramente formal que caracteriza todos e cada um.
Ora, olhando de perto, descobre-se que se trata de uma forma profundamente
contraditória, que contém uma fratura interna: o sujeito é necessariamente parcial, e
não universal. O sujeito moderno, no sentido pleno do termo – sem mais delongas –,
é somente o macho branco e ocidental. Trata-se de um indivíduo que existe
essencialmente como portador da sua força de trabalho e que sabe subordinar a ela
toda outra consideração, começando por aquelas que se relacionam ao seu corpo.
Tudo que não entra neste esquema é recalcado para fora do sujeito e projetado sobre
outros seres. Por conseguinte, estes não são considerados como sujeitos, ou, em todo
caso, não no sentido pleno do termo, pois as qualidades que lhes são atribuídas são
aquelas consideradas incompatíveis com o status de sujeito. Esses outros sujeitos,
esses sujeitos menores ou não-sujeitos, são, em primeiro lugar, as mulheres e as
populações não-brancas. Os sujeitos estabelecem com eles relações ambíguas, feitas
de repulsão – que pode ir até o desejo de eliminá-los – e de atração, porque eles
representam tudo que o sujeito teve que expulsar de si mesmo para aceder ao status
[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016
25
9 Os marxistas fizeram julgamentos muito diversos a respeito de Kant. O próprio Marx ignorou quase
completamente este pensador. Em seguida, os marxistas que reclamavam principalmente as raízes
hegelianas de Marx, como Lukács, subscreveram às críticas que Hegel havia dirigido à Kant. Algumas
correntes “revisionistas”, tal qual o “austro-marxismo” do início do século XX, indicaram na ética
kantiana um fundamento possível para o engajamento socialista. Mesmo sem referência direta aos
seus antecessores, existem atualmente numerosos marxistas tal qual André osel, autor do livro
ant révolutionnaire. Paris: PUF, 1998) ou lacanianos (tal qual Dany-Robert Dufour no L’art de
réduire les t tes. Paris: Deno l, 2003) que veem em Kant o teórico da liberdade e da dignidade
humana: aquele que teria anunciado esta autonomia do sujeito que é apresentada hoje em dia como
o baluarte contra a ofensiva neoliberal e a barbárie. Mesmo quando parece difícil transformar Kant
em pensador da revolução, esforçam-se geralmente para fazer dele um crítico virtual da sociedade
capitalista. Outros, como Lucio Colleti na Itália, apelaram a Kant, como testemunha, para pronunciar
a condenação de Marx e Hegel, e sobretudo dos aspectos “hegelianos” de Marx Marxismo e
dialettica. Bari-Roma: Laterza, 1976). [O livro de Dany-Robert Dufour está disponível em português:
A arte de reduzir as cabeças: sobre a nova servidão na sociedade ultraliberal. Rio de Janeiro:
Companhia de Freud, 2005].
[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016
27
10 Por exemplo, sobre as populações não-ocidentais: “ s negros da frica não possuem, por natureza,
nenhum sentimento que se eleve acima do ridículo” (Observações sobre o sentimento do belo e do
sublime. Tradução de Vinicius de Figueiredos. São Paulo: Papirus, 1991, p. 75).
11 KANT, Immanuel. Critica da razão prática. Tradução de Afonso Bertagnoli. São Paulo: Brasil
12 este contexto é significativo que: “todo o respeito por uma pessoa é propriamente s respeito pela
lei” Fundamentos da metafísica dos costumes. Tradução de Paulo Quintela. Lisboa: 70, 2007, p.
32): a moral kantiana não se preocupa com os homens reais, mas apenas com as “leis gerais”. A
pessoa existe apenas como representante da lei, o concreto existe apenas como representante do
abstrato: é a mesma lógica de inversão que na sociedade da mercadoria impregna todas as esferas da
vida, a partir da relação entre o valor de uso e o valor de mercado.
13 Ver BÖHME, Hartmut; BÖHME, Gernot. Das Andere der Vernunft. Zur Ent ic lung von
ationalit tsstru turen am eispiel ants [O outro da razão. Kant como exemplo do
desenvolvimento de estruturas racionais], Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1983, último capítulo.
14 KANT, Immanuel. Critica da razão prática. Tradução de Afonso Bertagnoli. São Paulo: Brasil
[...] alívio interior […] tem como efeito um respeito para com algo
totalmente diverso da vida [a saber, a lei moral, AJ] sendo que esta,
comparada e oposta a esse algo, em que pese à sua deleitação, não tem
nenhum valor. Mas esse homem continua vivendo ainda que seja só por
dever, não porque encontre nisso qualquer prazer. É essa a natureza do
verdadeiro motor da razão prática pura; não é este nenhum outro que
não seja a lei moral pura em si mesma, enquanto nos faz sentir a
sublimidade da nossa existência supra-sensível”.15
15 Ibidem, p. 70.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016
30
NARCISO OU ORFEU?
Observações sobre Freud, Fromm, Marcuse e Lasch 1
Anselm Jappe
[O mínimo eu: sobrevivência psíquica em tempos difíceis. São Paulo: Brasiliense, 1986].
4 BROWN, Norman O. Life Against Death: The Psychoanalytical Meaning of History. Middletown:
Wesleyan University Press, 1959 [Vida contra morte: o sentido psicanalítico da história. Petrópolis:
Editora Vozes, 1972].
5 “Meu amigo Marcuse e eu, nós somos Rômulo e Remo disputando para saber qual dos dois é o
verdadeiro revolucionário” – assim começa a réplica de Norman Brown à resenha – bastante crítica
– que Marcuse havia publicado, em 1967, em seu livro Love’s ody (BROWN, Norman O. A Reply to
Herbert Marcuse. Commentary, n. 43, 1967, p. 83).
[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016
31
burguês que qualifica de “irracionais”, György Lukács aproxima Freud até mesmo do
fascismo.
A psicanálise foi proibida na União Soviética nos anos 1930, depois de ter
inicialmente suscitado um interesse que se expressa em particular no livro
Freudismo,6 de Mikhaïl Bakhtin, publicado em 1927 (livro publicado com a
assinatura de Valentin Voloshinov). O behaviorismo de Pavlov, doutrina psicológica
oficial da União Soviética, era evidentemente mais útil para a manipulação das
massas. Freud sempre foi um liberal (ou um “conservador esclarecido”) e um
adversário do “bolchevismo”. Ele nunca incentivou as tentativas de tirar da
psicanálise conclusões revolucionárias no plano social e político; escritos como O
mal-estar na civilização foram geralmente considerados até mesmo “reacionários”.
Uma parte da esquerda estava convencida que a psicanálise era inconciliável com o
programa de emancipação social, ou, de toda maneira, que ela não trazia nenhuma
contribuição e podia ser negligenciada. Essa desconfiança continua, aliás, a existir,
sem nunca ser declarada, mas não sem revelar, às vezes, verdadeiros problemas.
Em um nível primário, as correntes mais “classistas” da esquerda podiam
desdenhar das temáticas sexuais, entendendo-as como “pequeno-burguesas” e, mais
geralmente, considerar as neuroses como um problema apenas da burguesia e de
outras pessoas que não trabalhavam. E, mesmo para as abordagens mais elaboradas,
a psicanálise parece apresentar o grande defeito de reivindicar uma “natureza
humana”, um substrato antropológico e biológico – portanto imutável. Ora, a
referência à “natureza” é geralmente característica da “direita”: nos discursos
reacionários, ao menos na sua versão clássica, é a natureza que fez os homens
desiguais e que estabeleceu as hierarquias entre raças, classes e sexos. Os homens
nascem diferentes, proclamam esses discursos, em inteligência e talentos, e a
concorrência e a busca do interesse individual são “naturais”. O homem é, por
natureza, egoísta e busca somente vantagem pessoal para si mesmo ou sua família.
Outros acrescentam que o homem tem, por natureza, necessidade da religião, e
até mesmo de um “mestre”, ou afirmam que a homossexualidade ou a mulher que
trabalha e quer ser igual ao homem, são “contra a natureza”. Toda tentativa –
continua essa apologia da sociedade burguesa que compreende igualmente o
liberalismo – para mudar a “natureza” do homem não conduz senão ao totalitarismo
6 Ver BAKHTIN, Mikhaïl. Freudismo: um esboço crítico. São Paulo: Perspectiva, 2001.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016
32
e à violência. Compreende-se facilmente que Thomas Hobbes, com seu homo homini
lúpus, é o verdadeiro fundador dessa naturalização das relações sociais que levou até
o social-darwinismo e à eugenia.
Para a esquerda, ao contrário, a cultura, a sociedade e a educação importam
mais do que uma hipotética natureza humana eterna. Esse predomínio assegurado da
cultura sobre a natureza no homem constitui o fundamento mesmo da asserção de
que o homem, agitando-se coletivamente, pode tomar nas mãos seu destino – pivô de
toda teoria revolucionária. Todos os males, ou quase todos, seriam consequência da
sociedade de classe, e não do homem enquanto tal. Pode-se, então, ultrapassá-los, e
mesmo criar um “homem novo” que, por exemplo, não conheceria o egoísmo.7
A teoria de Freud não se insere nesse entusiasmo prometeico. Para ela, o
inconsciente, cuja estrutura seria muito fixa, possui bordas estreitas para a
variabilidade dos comportamentos humanos. As pulsões, de origem somática, não
são modificáveis, elas são no máximo controláveis. O grande papel que Freud atribui
à infância, a parte menos “social” da vida e quando os indivíduos são menos
diferentes segundo fatores culturais e sociais, limita necessariamente a possibilidade
de uma autocriação consciente da sociedade. As concepções de vida coletiva que
Freud desenvolveu, sobretudo a partir de Totem e tabu (1913), reforçaram a
característica “antiutópica” da psicanálise: a sociedade não é para Freud senão a
versão multiplicada do indivíduo e da sua estrutura pulsional. Ela repete uma
estrutura arcaica e reatualiza o drama da “horda primitiva”: assim, a ontogênese
repete a filogênese, mesmo no campo psíquico.
O mal-estar na civilização (1930) parece encerrar esta constatação desiludida,
e mesmo reacionária: Freud sustenta que a felicidade [bonheur] é impossível tanto no
plano individual quanto no plano social. Pode-se somente limitar a infelicidade (por
exemplo, com uma moral sexual um pouco mais permissiva), mas Freud jamais chega
à ideia de uma “libertação sexual”.8 Ele introduz, além disso, o conceito de “pulsão de
morte”, anunciado desde 1919: guerras e agressão, destrutividade e sadismo não
seriam consequências de uma sociedade doente, mas fariam parte de nossa bagagem
humana.
7 Essa ideia de uma plasticidade quase infinita do ser humano retorna em seguida, de certa maneira,
nos discursos pós-modernos: tudo é construção, até mesmo o sexo biológico.
8 [O termo libération pode ser traduzido tanto por “liberação” quanto por “libertação”, o qual, via de
Parece muito difícil colocar essa visão da vida a serviço de uma modificação
social profunda tal como a esquerda acreditava possível. Entretanto, a potência e a
evidência das ideias de Freud seriam tais que, mesmo à esquerda, alguns não
tardaram a tentar utilizar essas ideias para promover alguma forma de emancipação
social. Otto Gross e Wilhelm Reich foram os primeiros, seguidos por Georg Groddeck,
Sandór Ferenczi, Otto Fenichel, Géza Róheim e outros, cada um à sua maneira.9
O Instituto para Pesquisa Social de Frankfurt (que está na origem do que se
chama habitualmente “Escola de Frankfurt”) esteve, a partir do momento em que
Max Horkheimer assumiu sua direção em 1931, na origem do projeto maior de unir
instrumentos do materialismo marxista à psicanálise. Com efeito, para os autores do
Instituto, a psicanálise é “materialista”, mas em um sentido bastante amplo: aqui,
materialismo não coincide com economicismo. No início, essa abordagem foi muito
marcada pela figura de Erich Fromm, como testemunham os Estudos sobre
autoridade e família, publicados em 1936.
Seus autores tentavam, sobretudo, vincular os “caracteres” psicológicos – os
“tipos” – às classes sociais criadas pelo capitalismo. Um exemplo típico, e central, era
a vinculação estabelecida entre o caráter “anal”, voltado para a acumulação e a
poupança, e a classe burguesa, para a qual esses comportamentos não são neuroses,
mas constituem as bases de seu papel social. Esse caráter tende à obediência cega e
transforma-se facilmente em “personalidade autoritária”, repleta de preconceitos e de
ressentimentos, o que o faz a presa ideal da propaganda fascista.
Nos anos 1940, os membros do Instituto, emigrados para os Estados Unidos,
continuaram essas pesquisas com o amplo estudo – meio teórico, meio empírico –
9 Fala-se, então, de uma esquerda freudiana (como da esquerda hegeliana) (ver ROBINSON, Paul. The
Freudian Left. Wilhelm Reich, Geza Roheim, Herbert Marcuse. New York: Harper & Row, 1969 [A
esquerda freudiana: Wilhelm Reich, Geza Roheim, Herbert Marcuse. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1971]; DAHMER, Helmut. Libido und Gesellschaft. Studien über Freud und die Freudsche
Linke. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1973, segunda edição aumentada em 1982, terceira edição
aumentada em Westfälisches Dampfboot, Münster, 2013). Lasch também utiliza este termo em O
mínimo eu. Mas a distinção entre uma “ala esquerda” e uma “ala direita” da psicanálise á se
encontra em MARCUSE, Herbert. Eros and Civilization. A Philosophical Inquiry into Freud. Boston:
Beacon Press, 1955 [Eros e civilização: uma crítica filosófica ao pensamento de Freud. Rio de
Janeiro: Zahar, 1968]. Não se pode verdadeiramente falar de uma direita freudiana em termos
explícitos (com efeito, Marcuse refere-se à Jung quando fala da ala direita do freudismo): aqueles
que queriam apenas ser terapeutas e curar os indivíduos foram levados “naturalmente” a aceitar a
sociedade capitalista como um horizonte inultrapassável e a colocar seus pacientes para se adaptar
ao mundo tal como ele está [comme il va]. Nos Estados Unidos, estes terapeutas chegaram desde o
começo da difusão das ideias de Freud, e, depois da Segunda Guerra, em todos os lugares. Fora do
campo dos analistas de profissão, o surrealismo francês constituía a primeira grande tentativa de
utilizar os resultados da psicanálise com o objetivo de “mudar a vida”. Marcuse, aliás, faz referência a
isso. Mas nós devemos deixar esse assunto para outro ensaio.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016
34
12 Sua crítica reivindicava as categorias de Marx. Entretanto, ela estava formulada principalmente em
termos de “classe”, mais do que na análise das formas de vida e de consciência fetichistas que dizem
respeito a todos os membros da sociedade. Daí porque ela parece, hoje em dia, bastante datada: para
Fromm, os caracteres psicológicos correspondem estreitamente à posição socioeconômica do
indivíduo. Isso constitui também um limite das primeiras tentativas mencionadas anteriormente,
feitas pelo Instituto, nos anos 1930, de utilizar conjuntamente as categorias de Freud e de Marx.
Mesmo nesse plano, a visão de Marcuse parece hoje mais atual do que a de Fromm.
13 RICKERT, John. Die Fromm-Marcuse-Debatte im Rückblick, art. cit., p. 6. [No presente artigo, as
expressões latinas art. cit. e op. cit. foram utilizadas referindo-se à mesma edição de obra citada
anteriormente, no mesmo idioma, mas não necessariamente na mesma página].
14 Publicado em 1952, em alemão. Ver ADORNO, Theodor W. “A psicanálise revisada”. In:__. Ensaios
sobre psicologia social e psicanálise, op. cit. (ele repete observações bastante similares sobre a
psicanálise nos §§ 36-40 de Minima moralia, publicada em 1951, mas escrita a partir do fim dos anos
1930).
[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016
36
15 ADORNO, Theodor. La psychanalyse révisée, op. cit., p. 39 [ a edição brasileira: “tratar as relações
humanas (sic) como se á fossem humanas”; “ela empresta um brilho humano a uma realidade
inumana”; “indignados com o Freud reacionário, enquanto seu pessimismo irreconciliável
testemunha a verdade sobre as relações das quais ele não fala”. AD R , heodor. Ensaios sobre
psicologia social e psicanálise, op. cit., p. 63].
16 MARCUSE, Herbert. Eros e civilização, op. cit., p. 209; tradução modificada.
17 Ibidem, p. 205 [No presente artigo, a expressão latina ibidem foi utilizada referindo-se à mesma
edição de obra citada anteriormente, no mesmo idioma, mas não necessariamente na mesma
página].
[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016
37
valores como cura contra a falta de liberdade e o sofrimento – como o triunfo sobre a
repressão”.18
Os revisionistas priorizam as relações entre adultos, e, portanto, a realidade
social, enquanto Freud, “focalizando as vicissitudes dos instintos19 primários,
descobriu a sociedade na mais recôndita camada do gênero e do indivíduo”.20
Marcuse admite que Fromm, no começo da sua carreira, tentava libertar a teoria de
Freud de sua identificação com a sociedade atual. Nos seus artigos dos anos 1930,
publicados na Zeitschrift für Sozialforschung do Instituto, “o caráter histórico das
modificações dos impulsos viciaram a sua equação do princípio de realidade com as
normas da cultura patricêntrico-aquisitiva”.21
Mas Fromm não permanece fiel aos seus princípios, segundo Marcuse, e
mesmo quando ele continua, mais tarde, a denunciar o capitalismo, sua crítica
permanece superficial, reduzindo a problemática a uma questão de “valores” a serem
realizados no próprio quadro de uma sociedade não-livre. Fromm não quer ver – ao
contrário de Freud – que esses “valores superiores” se realizam à custa dos indivíduos
e de sua felicidade [bonheur] libidinal22: os revisionistas eliminam os conceitos mais
explosivos e cedem a um “desejo positivo”.
Reconhecer o “direito à felicidade” aqui e agora, como quer Fromm, implica,
no entanto, segundo Marcuse, defini-lo em termos compatíveis com esta sociedade –
e, assim, estes valores tornam-se eles mesmos repressivos. A metapsicologia de Freud
contém um potencial crítico maior do que sua terapêutica: esta necessariamente tem
em conta a realidade dada e a necessidade de curar os pacientes, sem atingir uma
mudança de civilização.
Os revisionistas opõem uma leitura “sociológica” a uma visão centrada no
indivíduo. Entretanto, mesmo Freud sustenta que o indivíduo depende do “destino
geral”, mas que esse destino geral se manifesta essencialmente na primeira infância.
É aí que a “repressividade geral molda o indivíduo e universaliza até mesmo seus
Freud, ao contrário, sabe que na “nossa civilização” não existe espaço para um
amor que seja ao mesmo tempo tenro e sensual. Mas, para os revisionistas, pode-se
encontrar uma solução harmoniosa. Para eles, os conflitos essenciais, como a
repressão social, não são sequer sociológicos, mas banalmente morais: assim, eles se
voltam para a desvalorização das necessidades materiais. Eles não acreditam em um
conflito fundamental entre princípio de prazer e princípio de realidade: a natureza
instintiva do homem pode encontrar uma felicidade socialmente reconhecida. Assim,
seu “humanismo” permanece muito aquém da lucidez terrível de Freud, para quem a
infelicidade fundamental da repressão não pode jamais ser compensada pela
sublimação no “amor produtivo” e outras pseudofelicidades.
Os revisionistas espiritualizaram a felicidade e a liberdade, e, assim, eles
podem acreditar que a felicidade é possível até mesmo em uma sociedade repressiva.
Em contrapartida, é o recurso ao biológico em Freud que desvela a extensão da
repressão e não permite as ilusões fáceis dos “culturalistas”. Mais do que
“acrescentar” uma dimensão cultural ou sociológica à teoria de Freud, é necessário
extrapolar o conteúdo sociológico e histórico dessas categorias aparentemente
biológicas. O enfraquecimento do indivíduo tornou impossível a aplicação da
psicologia aos eventos sociais; é necessário agora “desenvolver a substância política e
sociológica das noções psicológicas”27: a sociedade encontra-se no indivíduo, muito
mais do que o contrário. Uma psicologia autônoma, então, não é mais possível.28
Fromm não poderia senão se surpreender com a virulência dessa polêmica
lançada por um ex-companheiro de percurso. No contexto dos Estados Unidos dos
anos 1950, conformista e anticomunista, ele compreendia, sem dúvida, que sua
própria posição estava já muito exposta, herética e subversiva. Ademais, ele opunha-
se à redução, muito comum à época nos Estados Unidos, da psicanálise a uma
simples cura de uma neurose individual, lembrando que o indivíduo doente é, antes,
a consequência de uma sociedade doente, e que mesmo os princípios fundadores da
sociedade americana – como a concorrência – são patogênicos enquanto tais. Devia
lhe parecer estranho que outro marxista lhe desse tal lição de radicalismo, acusando-
o de ter feito exatamente o que ele afirmava sempre ter combatido: a adaptação da
psicanálise a um contexto repressivo, retirando dela todo caráter autenticamente
27 Ibidem, p. 25.
28 ensaio de Adorno “Sobre a relação entre sociologia e psicologia” 1955) [ n: __. Ensaios sobre
psicologia social e psicanálise. São Paulo: Editora da Unesp, 2015, p. 71-136 ] o afirma com muita
força.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016
40
tipo de sexualidade liberada, que, ao contrário, corresponde a isso que ele chama de “dessublimação
repressiva”.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016
41
“fator humano”, mais precisamente a atitude niilista acerca do homem, era um dos
defeitos do leninismo e do stalinismo. Fromm conclui: “a posição de Marcuse é um
exemplo de niilismo humano disfarçado de radicalismo”.33
Na sua resposta a Fromm, Marcuse afirma que nem Freud nem ele mesmo
jamais identificaram a satisfação sexual ilimitada e imediata à felicidade. Mas
sublinha também que toda sublimação contém uma parte de não-liberdade e de
repressão. As implicações da teoria de Freud (para além da sua permanência efetiva
no horizonte do seu tempo) são bem mais anticapitalistas do que as tolices de Fromm
sobre a participação dos operários na gerência [management]. Não existe
materialismo do século XIX na metapsicologia freudiana, a qual se refere, por vezes,
bastante a Platão!
Na sua última resposta, Fromm ainda cita Freud para demonstrar que, para
este, a felicidade reside efetivamente em uma sexualidade não restrita, e para criticar
esta visão – confirmando assim que não diverge da leitura marcuseana de Freud, mas
da concepção freudiana da própria sexualidade.
Nem Fromm nem Marcuse fazem referência, mas poderiam ter aludido ao
aforismo de Adorno na Minima moralia, publicada, alguns anos antes desse debate,
na Alemanha: “não há vida certa na falsa”. Marcuse ofereceu sua própria leitura de
Freud em Eros e civilização, publicado em 1955.35 Ela é inegavelmente perturbadora
para quem pensa que uma recuperação do pensamento de Freud em uma perspectiva
marxista (da qual, como se sabe, Marcuse havia permanecido muito mais próximo do
que os outros autores do Instituto) somente poderia consistir em uma explicação das
introdução, Brown lembra a proximidade de sua obra com aquela de Marcuse. Além disso, os dois
autores geralmente haviam ficado próximos durante os anos 1960. É notável que nos Estados Unidos
dos anos 1950, do qual os quadros de Edward Hopper ou o romance Lolita de Nabokov, entre outros,
descrevem-nos o espírito puritano e tacanho, produziram-se ao mesmo tempo questionamentos tão
radicais da cultura puritana, em nome de uma espécie de erotismo cósmico.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016
42
36 Marcuse não interpreta a pulsão de morte somente como desejo de destruição, mas também, e
sobretudo, como forma extrema do princípio de prazer, como “princípio de irvana” e como busca
de uma calma absoluta e de um apaziguamento de todas as tensões. Para ele, não é a pulsão de morte
que paralisa os esforços com vistas a um porvir melhor (como diz Karen Horney), mas são as
condições sociais que impedem os instintos de vida de se desenvolverem e “desencadearem” a
agressão (MARCUSE, Herbert. Eros e civilização, op. cit., p. 231).
37 O poder do Universal sobre os indivíduos aparece com uma força particular nessas sobrevivências
arcaicas no fundo de cada indivíduo. Mas isso indica, mesmo em Freud, uma origem histórica do
inconsciente.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016
43
acordo como possível. Mas Freud se enganava igualmente afirmando que o princípio
de prazer deve permanecer, para todo o sempre, subordinado ao princípio de
realidade, porque nada poderá parar a dominação exercida pela Ananque (a
necessidade, a precisão, a falta, a penúria). Até aqui, consente Marcuse, as diferentes
sociedades efetivamente evoluíram no quadro da insuficiência dos recursos
arrancados da natureza. Portanto, a vida era uma luta pela sobrevivência. Nesse
contexto, a repressão das pulsões e o constrangimento do trabalho eram, ao menos
em parte, condições para assegurar a sobrevivência do homem.
Mas o resultado dessa longa história de repressão e alienação é a criação dos
pressupostos de sua superação: a sociedade, graças às tecnologias, está agora madura
para viver com um mínimo de alienação e repressão. Tudo o que ultrapassa esse
mínimo inevitável constitui uma “mais-repressão”, um excedente de repressão, sem
outra função senão manter as estruturas atuais da dominação em benefício de uma
minoria. A mais-repressão não tem, portanto, uma justificativa verdadeira. Uma
mudança profunda da estrutura pulsional do homem é então viável, até mesmo em
curto prazo. A pulsão de morte pode ser fortemente reduzida se a sociedade permitir
às forças construtivas de Eros ocupar o maior espaço possível na vida individual e
coletiva.
De certa maneira, Marcuse inverte a afirmação freudiana segundo a qual a
estrutura pulsional, bastante fixa, estabelece limites estreitos a toda modificação
social possível. Para Marcuse, ao contrário, as pulsões, tanto agressivas quanto
libidinais, permanecem pouco integráveis à sociedade capitalista, e continuam a
constituir um potencial de rebelião e de descontentamento – de mal-estar! – que fará
ecoar toda tentativa de criar uma sociedade “lisa”, “pacificada”, no sentido da
dominação.
Eros e civilização é hoje geralmente percebido como um livro ligado à
atmosfera dos anos 1960, quando ele suscitava discussões intensas em numerosos
países.38 Contudo, ele não pode ser reduzido a um vade-mecum da “revolução sexual”
ou identificado com os estudantes que se enrouqueciam nas manifestações, gritando
“Marx-Mao-Marcuse”. Com efeito, esse livro tinha nascido sob um contexto
profundamente diferente, como acabamos de lembrar e, por outro lado, ele continuou
a alimentar os debates até hoje, como mostram suas reedições frequentes.
38Entretanto, Daniel Cohn-Bendit afirma em Le grand bazar que não tinham sido vendidos 40
exemplares da tradução francesa antes de 1968.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016
44
Lembremos algumas críticas que podem ser feitas a ele do ponto de vista da
crítica do fetichismo de mercado. Nota-se – como, aliás, em Adorno – que sua
superação do marxismo tradicional é bastante importante em numerosos elementos,
mas não o impede de permanecer, em certos aspectos, no quadro marxista
tradicional. Assim, Marcuse critica o “trabalho alienado” (sem o definir), mas jamais
chega à categoria do trabalho abstrato, e, então, muito menos às categorias de valor,
de dinheiro e de fetichismo da mercadoria. A crítica da “mercadoria” volta-se menos
ao produto do trabalho na sua dupla natureza (concreto e abstrato) do que aos
objetos de consumo, geralmente considerados de uma maneira que provém
principalmente de Thorstein Veblen e do “consumo de prestígio”. É um traço que
Marcuse partilha com quase todos os autores que visaram a “mercadoria” nos anos
1960.
Marcuse, como em geral os marxistas tradicionais, manifesta uma grande
confiança no “progresso” e nos benefícios da tecnologia, ainda que seja necessário ela
ser bem utilizada! Ele vai muito longe nessa via, vendo na automatização da produção
uma conditio sine qua non para o estabelecimento de uma sociedade erótica!39 A
“missão civilizatória do capital” faz uma volta curiosa. Marcuse acredita que a
automatização ameaça a “dominação” e que esta tende a limitá-la! Ele afirma que
Fromm tem razão ao dizer que
39 “Quanto mais a alienação do trabalho é total, maior é o potencial de liberdade: a automação total
seria o ponto timo”, porque a produção material “não pode nunca ser o domínio da liberdade e da
satisfação”. MARCUSE, Herbert. Eros e civilização, op. cit., p. 144; tradução modificada.
40 Ibidem, p. 227; tradução modificada.
41 Mesmo se Marcuse, falando dos “mecanismos de defesa” da sociedade capitalista contra a “ameaça
dialética: é o princípio de realidade que tem como resultado final sua transformação e
a superação de seu antagonismo com o princípio de prazer. Pode-se ver nessa
dialética otimista outra versão da concepção marxista tradicional segundo a qual as
forças produtivas, criadas pela burguesia, acabarão por reverter as relações de
produção. Mas esse progresso técnico não é para Marcuse um objetivo enquanto tal, e
a quantidade de televisores ou de tratores (uma alusão à União Soviética) não define
a boa vida.42
A este propósito, Marcuse cita a belíssima frase de Mon cœur mis à nu [Meu
coração a nu], de Baudelaire: “A verdadeira civilização (...) não está no gás, no vapor
ou nas mesas giratórias. Está na diminuição dos vestígios do pecado original”.43
Pode-se, decerto, encontrar no pensamento de Marcuse igualmente as premissas de
um pensamento ecológico.44 Mas a confiança nas tecnologias expressa em Eros e
civilização não pode hoje em dia senão nos surpreender por sua ingenuidade –
mesmo se ela é compartilhada com quase todo pensamento de sua época, e com o
pensamento “de esquerda” mais ainda!
Esse elogio da tecnologia e sua importância para abolir o trabalho alienado
apresentam paralelos notáveis com as ideias que a Internacional Situacionista tinha
desenvolvido na mesma época. Notadamente Asger Jorn, 45 Constant e Pinot Gallizio,
mas também o próprio Debord, mostraram-se convencidos de que a tecnologia havia
tornado objetivamente caduco o modo de produção capitalista e que ela permitiria
uma livre associação de indivíduos que não seria mais baseada no trabalho. Se, na
sociedade do pós-guerra, tornou-se possível passar para uma civilização dos “lazeres”
42 “A posse e a obtenção dos bens vitais de consumo são a condição prévia mais do que o conteúdo da
sociedade livre”. MARCUSE, Herbert. Eros e civilização, op. cit., p. 172; tradução modificada.
43 Ibidem, p. 142; tradução modificada.
44 Ver MARCUSE, Herbert. « Écologie et critique de la société moderne e Écologie et révolution» .
Revue Illusio, n. 12/13. Theorie critique de la crise. Volume II. Du crépuscule de la pensée à la
catastrophe. Caen: Le ord de l’eau, 2014, p. 599-613 [Ecology and the Critique of Modern Society.
In: KELLNER, Douglas (Org.). Philosophy, Psychoanalysis and Emancipation. The Collected Papers
of Herbert Marcuse – vol. V. New York: Routledge, 2011, p. 206-222; Écologie et révolution. In: Le
nouvel Observateur. Paris, 19 juin 1972. O primeiro texto está disponível em português: Ecologia e
crítica da sociedade moderna. In: LOUREIRO, Isabel. (Org.). Herbert Marcuse: a grande recusa
hoje. Petrópolis: Vozes, 1999, p.143-154].
45 Ver, por exemplo, o artigo “Les situationnistes et l’automation”, de Asger Jorn, no primeiro número
e do jogo, foi como consequência direta da “vitória sobre a natureza”, o que incluiria a
possibilidade de abolir o trabalho e a economia.
Para a Internacional Situacionista, trabalho e economia não são mantidos
vivos senão para salvaguardar a dominação de classe. Trata-se agora, para os
situacionistas, de executar essa sentença já enunciada pela história. A abertura
recente dos arquivos de Debord permitiu conhecer suas fichas de leituras e suas notas
preparatórias para a redação de La société du spectacle, nas quais ele sublinha
algumas semelhanças entre as teorias de Marcuse e a sua própria teoria do
espetáculo. Debord reconhece em Marcuse uma “ideia de base da Internacional
Situacionista, em termos psicanalíticos”, notadamente a propósito desta passagem de
Marcuse:
46 MARCUSE, Herbert. Eros e civilização, op. cit., p. 127; tradução modificada. Ver, a esse propósito,
ZACARIAS, Gabriel Ferreira. « Éros et civilisation dans La société du spectacle. Debord lecteur de
Marcuse ». Revue Illusio. Theorie critique de la crise. Volume II. Op. cit., p. 329-343.
47 Ele estabeleceu durante alguns anos, lembre-se, uma relação de estima recíproca com Jacques Ellul.
48 Para citar apenas uma: SAHLINS, Marshall. Stone Age Economics. New York: Aldine and de
Gruyter, 1972.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016
47
51 Dentre outros aspectos, Marcuse queria valorizar a relação inicial “narcisista” com a mãe, ao invés de
celebrar o pai como salvador em face da ameaça de uma absorção esmagadora na matriz (MARCUSE,
Herbert. Eros e civilização, op. cit., p. 199). Já Adorno, na sua conferência de 1946, considerava o
narcisismo como uma defesa do indivíduo contra a sociedade repressiva: ele constitui uma tentativa
desesperada do indivíduo para compensar a injustiça sofrida na sociedade da troca universal. Além
disso, o indivíduo deve dirigir para si mesmo as energias pulsionais quando as outras pessoas
tornaram-se inacessíveis (ADORNO, Theodor. La psychanalyse révisée. Seguido de LE RIDER,
Jacques. L’allié incommode, op. cit., p. 3).
52 Ver MARCUSE, Herbert. “ bsolescence of the Freudian Concept of Man”, conferência de 1963,
publicada em MARCUSE, Herbert. Five Lectures. Psychoanalysis, Politics and Utopia. Boston:
Beacon Press, 1970 e em Kultur und Gesellschaft. Volume II. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1965 [A
obsolescência da psicanálise. In: MARCUSE, Herbert. Cultura e sociedade. São Paulo: Paz e Terra,
1998].
53 Ibidem, p. 259.
54 Ver MITSCHERLICH, Alexander. Auf dem Weg zur vaterlosen Gesellschaft: Ideen zur
Lasch, encontram-se seu populismo, a ausência de qualquer crítica da economia política, sua
nostalgia da América do século XIX, a apologia do esporte e, sobretudo, do trabalho...
[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016
50
que Marcuse, assim como Norman Brown, operam a respeito de Freud. Lasch propõe
sua própria versão de retorno ao último Freud. Ele acusa Marcuse de permanecer,
contra a sua própria intenção, no interior da cultura do narcisismo.
Lasch vê o narcisismo em prática tanto na cultura mainstream quanto nas
suas pretensas contestações:
Zygmunt Bauman.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016
53
Ela chega a argumentar que, como jamais podemos nos reconciliar com
o abandono dessas ilusões, continuamos a elaborar fantasias que negam
qualquer conhecimento das diferenças sexuais. 68
63 Esse termo significa em Lasch uma espécie de “esquerda cultural” que compreende a “nova
esquerda”, o feminismo, o pensamento ecol gico, o movimento de autoconsciência e outras formas
de contestação nascidas em torno de 1968.
64 LASCH, Christopher. O mínimo eu, op. cit., p. 155; tradução modificada.
65 Ibidem, p. 157.
66 Ibidem, p. 157; tradução modificada.
67 Ibidem, p. 157; tradução modificada.
68 Ibidem, p. 158; tradução modificada.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016
54
69 Ibidem, p. 155.
70 Ibidem, p. 169-170; tradução modificada.
71 Ibidem, p. 178; tradução modificada.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016
55
Aos olhos de Lasch, Marcuse tem mais em comum com Fromm e Reich do que
ele acredita:
Lasch oferece também uma análise bastante sutil da obra de Brown, de quem
ele julga a leitura de Freud superior, em muitos aspectos, àquela feita por Marcuse.
Para Lasch, Brown
Ainda que o resultado final da obra de arte possa ser sereno, é sempre
necessária a elaboração de um conflito entre união e separação. O papel da arte e do
jogo é, assim, de permitir ao homem suportar as renúncias que a cultura – toda
cultura – lhe impõe:
Lasch acredita, portanto, que ele deu um golpe decisivo contra o que ele
nomeia também de “partido do ideal do Eu” – a esquerda de 1968 – com um
argumento essencial: o papel do supereu. Sempre revindicando os últimos escritos de
Freud, Lasch afirma que o supereu não é o representante do mundo exterior, mas o
advogado do mundo interior. Ele não é somente o resultado da interiorização de uma
repressão vinda do exterior (da sociedade através do pai).
ilusões. Ela parece mais apropriada à nossa época, caracterizada pela captação do
desejo pela mercadoria (o que, entretanto, já constituiu um dos temas mais atuais de
Marcuse...).
É, com efeito, evidente que a situação contemporânea corresponde,
surpreendentemente, às descrições de Lasch. Este, na verdade, situava-se ainda na
fronteira entre a época fordista-moderna e a época pós-moderna, designando às vezes
como “narcísicos” fenômenos que nos parecem pertencer mais ao passado fordista-
moderno (por exemplo, o Estado-providência com traços maternais). Ele previu com
muita acuidade fenômenos tais como a obsessão da “autonomia” e o desejo de não ter
necessidade de ninguém, de não depender de ninguém: de poder se passar por
outros, do Outro.
Outras questões essenciais permanecem abertas: o que fazer do supereu, fruto
do complexo de Édipo? Seu declínio é necessariamente positivo, significa uma forma
de liberdade individual maior, o fim do patriarcado, até mesmo do trabalho? Ou ele
deu lugar a uma nova forma de fetichismo, ainda mais difícil de compreender,
nomear e combater, porque ele reside plenamente no interior dos indivíduos e parece
de acordo com seu desejo de “gozo”?
Nós já dissemos que, durante muito tempo, a direita falava de “natureza”, e
sobretudo, de “natureza humana”, e a esquerda, de “cultura”. Para a direita, essa
natureza assinala os limites muito estritos da possibilidade de transformar a vida;
para a esquerda, quase tudo é fruto da sociedade e da educação e pode, então, ser
alterado. Essas duas posições persistem ainda hoje. Mas a posição de esquerda é
necessariamente emancipadora? Ela não é muito compatível com os projetos
tecnocientíficos de refazer o mundo, com o desprezo de todo limite, que se pode ver
tão bem tanto no consumo excessivo quanto na crise ecológica? A plasticidade
infinita do ser humano não continua a assombrar o imaginário contemporâneo “de
esquerda”, em particular no seu entusiasmo insensato [décervelé] com relação às
técnicas de procriação assistida? Tecnofilia e narcisismo sempre fazem boa
combinação.
Uma questão, porém, permanece mal elucidada em Lasch: quais são as causas
históricas de uma mudança tão importante quanto a ascensão do narcisismo? Um
retorno generalizado para as formas pré-edipianas constitui uma verdadeira mutação
[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016
61
86 Slavoj Žižek também percebeu, à sua maneira, no seu prefácio à edição croata de A cultura do
narcisismo, publicada em 1986: “Além da característica intrinsecamente incompleta de seu aparato
conceitual analítico, o ponto fraco de Lasch encontra-se no fato de que ele não fornece uma definição
teórica suficiente dessa transformação na realidade socioeconômica do capitalismo tardio que
corresponde à transição do ‘homem organizacional’ para o ‘ arciso patol gico’. o nível do discurso,
essa transformação não é difícil de determinar: trata-se da transformação da sociedade burocrática
dos anos 1940 e 1950 em uma sociedade descrita como ‘permissiva’. Ela comporta um processo ‘p s-
industrial’ que, nesse nível, foi descrita em termos de teoria da ‘ erceira onda’, por escritores como
offler” “‘Pathological arcissus’ as a Socially Mandatory Form of Sub ectivity”. Publicado
inicialmente na edição croata de A cultura do narcisismo. Narcisticka Kultura. Zagreb: Naprijed,
1968).
87 Ver HOMS, Clément. La roue à hamster. Esquisse pour une histoire de la dynamique et de la
trajctoire du capital au XXe siècle. Revue Illusio, n. 16/17. Theorie critique de la crise. Volume IV.
Caen: Le ord de l’eau no prelo).
88 Na conferência de 1946, sobre a psicanálise revisada, Adorno dirige esta censura surpreendente à
Karen Horney: ela colocaria muito acento na concorrência. “ a época dos campos de concentração, a
castração é mais característica da realidade social do que a concorrência” AD R , heodor.
Ensaios sobre psicologia social e psicanálise, op. cit., p. 58). Segundo Adorno, falar de
“concorrência” é um eufemismo diante da violência onipresente. Com efeito, ele tinha elaborado com
Horkheimer, na mesma época, o conceito de “rackets”, os quais teriam substituído a esfera da
circulação – um dos lados mais fracos de seu percurso teórico.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016
62
pertenceriam ao passado. Nós esperamos ter demonstrado que ele toca, ao contrário,
em pontos essenciais.
Anselm Jappe
preciso, em verdade, colocar em questão a lógica de mercado na sua totalidade. Uma vez
que isso nos levaria demasiado longe, eu me limitarei aqui a algumas considerações
concretas.
A intercambialidade total da mercadoria leva-nos à perda da aura (e não somente
da aura da obra de arte), à perda da autenticidade e da unicidade, como nós sabemos
desde Benjamin. Mas a necessidade da aura está de modo manifesto profundamente
enraizada. É por essa razão que ela nos é lembrada de maneira constante, para
finalmente encontrar sua satisfação nas mercadorias que prometem autenticidade. A
aura, a autenticidade e a unicidade fazem parte de nossos dias nos artigos de marca
mais desejados, em todos os níveis. Isso explica por que, malgrado a disponibilidade
permanente do arquivo eletrônico, todo mundo quer ver precisamente a “autêntica”
Mona Lisa, e por que os museus são hoje mais frequentados do que nunca. Eis aqui um
verdadeiro paradoxo: a comercialização extrema da cultura alimenta-se justamente da
ressacralização e de uma nova atribuição da aura.
Em que consiste uma visita ao museu de nossos dias? Ela se produz de maneira
típica no curso de uma viagem, por exemplo, de fim de semana, tornada possível pela
Ryanair. Depois das compras da manhã e antes da discoteca da noite, encontra-se a
visita ao museu mais célebre da cidade, reservada pela internet. O resultado final dessa
visita abundantemente documentada por fotos é, então, poder vangloriar-se pelo
Facebook.
Esse fenômeno é considerado como o triunfo da democracia, como a superação
do elitismo, como contribuição a um mundo globalizado e à cultura para todos. Quanto
a saber se o número, em muito forte crescimento, de visitantes de museus é
acompanhado de uma extensão real de interesse pela cultura e pelos conhecimentos,
nós podemos verdadeiramente duvidar. Segundo as estatísticas, o número de leitores de
livros declina de maneira contínua. Muitos professores de universidades e de escolas de
arte confirmam que os estudantes de arte, de literatura e de história das ideias têm
lacunas incríveis. E ao culto à internet acrescenta-se em geral uma desvalorização
agressiva da cultura clássica. Nós podemos até mesmo supor que, no caminho de
retorno da visita, uma grande parte das massas que visitam os museus leram mais
mangá do que Gombrich, ou reatualizaram sua página no Facebook. Elas têm, de certa
maneira, razão: os museus estão a serviço do divertimento. É por isso que estes não
[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016 68
estão somente em concorrência com outros museus, mas também com outras atividades
de lazer, e são, portanto, consumidos sob essa forma.
Eu suponho que vou ser considerado, sobre este ponto, como um reacionário
antidemocrático e um defensor nostálgico de uma cultura de elite empoeirada: o que é,
entretanto, surpreendente para alguém como eu, que é conhecido por ser um teórico da
crítica radical do capitalismo. Mas eu não sou o único a se encontrar nessa situação
aparentemente paradoxal, e a considerar a pretensa democratização da cultura como
um pretexto à sua simples integração à “Indústria cultural como mistificação das
massas” (Adorno e Horkheimer)3, ou ainda a considerar essa democratização como uma
estratégia artística que visa privar a cultura de qualquer efeito tendencialmente
subversivo.
Qual é o papel dos museus no capitalismo? Desde a fundação das coleções
públicas no fim do século XVIII até os anos 70 do século XX, sua função permanece
essencialmente a mesma: expor o extraordinário proveniente seja do passado, seja do
estrangeiro [étranger]. Esses museus tinham por consequência uma função “elitista”:
de uma parte, eles escolhiam a excelência (ou assim afirmavam). De outra parte, uma
vez que seu público típico era uma elite cultural que já dispunha dos conhecimentos
preliminares, esses museus quase não eram, de modo algum, didáticos. Ou ainda
tratava-se de visitantes muito motivados. O escritor romeno-francófono Panaït Istrati 4
(que será mais tarde amigo de Nikos Kazantzakis5) conta que, quando esteve pela
primeira vez em Paris, em 1913, como trabalhador sazonal errante, não tendo outro
diploma senão o certificado de estudos, foi levado imediatamente ao Louvre por seu
amigo que o abrigava, um sapateiro romeno. Lá Istrati se “contaminara” de um culto à
beleza, que durou toda sua vida. Os museus eram geralmente gratuitos nesta época, não
excluindo, então, ninguém da sua base econômica. Eles eram de todo modo menos
frequentados do que hoje, quando se tornaram muito mais caros. Dirigiam-se a eles
3 Referência ao quarto capítulo do principal livro de Adorno e Horkheimer: A dialética do esclarecimento
[N.T. para o francês].
4 Panaït Istrati (1884-1935), próximo de Victor Serge e de Boris Souvarine, esse importante romancista
romeno foi um dos primeiros escritores comunistas a fazer uma crítica do poder burocrático da URSS,
após sua viagem a este país, acompanhado do escritor grego Nikos Kazantzakis [N.T. para o francês].
5 Nikos Kazantzakis (1883-1957) é um dos principais escritores gregos do século XX. Destacado por sua
aptidão para manejar diferentes estilos literários (romances, peças de teatro, ensaios, poesias) em
demotiki (língua grega popular que se tornou a língua oficial em 1976), devem-se a ele notadamente os
romances Alexis Zorba e La dernière tentation [A última tentação], bem como a tradução da Ilíada e da
Odisseia em grego moderno [N.T. para o francês].
[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016 69
somente as pessoas interessadas (do mesmo modo que nos nossos dias um concerto de
Schönberg ou de Xenákis não enche um estádio de futebol, mesmo se for gratuito). O
museu não-didático liberava em grande parte os visitantes, por si mesmos, e
demandava, talvez, mais à maior parte dentre eles. Mas isso permitia sentir com maior
intensidade o efeito de choque que certas obras podiam transmitir. Nos casos mais
favoráveis, isso podia se passar como no poema “O torso arcaico de Apolo”, de Rainer
Maria Rilke, no qual ele disse: “não existe ali nenhum lugar / que não te vê / Você deve
mudar sua vida”. 6
Esses museus clássicos foram odiados pela vanguarda artística. Os futuristas
italianos comparavam os museus aos cemitérios.7 Guillaume Apollinaire queria colocar
fogo no Louvre. Os jovens letristas, entre eles Guy Debord, chamavam à abolição dos
museus e à distribuição de suas obras-primas nos diferentes bares sórdidos que eles
frequentavam. Ser aceito em um museu (ou, até mesmo, ter muito rapidamente uma
obra exposta nele) era considerado pelos dadaístas e pelos surrealistas como uma
vergonha. A aversão era recíproca: nenhuma obra de Picasso, de Kandinsky ou de outro
inovador da arte foi exposta nos grandes museus franceses antes da Segunda Guerra
Mundial. E mesmo se, no fim das contas, ninguém (à exceção dos situacionistas)
recusou efetivamente entrar para os museus, a arte moderna, assim como o conjunto da
cultura crítica e contestatória dos anos 1968, permaneceu com suspeitas profundas vis-
à-vis o museu; bem como permaneceu com suspeitas vis-à-vis o conjunto da “herança” e
dos “cânones” culturais. A expressão “mûr pour le musée” [pronto para o museu] quer
precisamente dizer: fora de uso, sem vitalidade interna, somente bom para a admiração
obrigatória. O museu era sinônimo de “empoeirado”, “arcaico”, “inanimado”,
“entediante”, “velho”, “fatigante”, “não sexy”, quer dizer, de tudo isso que a sociedade de
consumo capitalista não queria mais.
conhecem. Dormitórios públicos onde se dorme para sempre lado a lado com seres odiosos ou
desconhecidos. Ferocidade recíproca dos pintores e escultores se matando a golpes de linhas e cores no
mesmo museu. Faz-se uma visita uma vez por ano assim como se vai ver seus mortos uma vez por ano!...
Nós podemos muito bem admitir!... Mas não admitimos passear cotidianamente pelos museus nossas
tristezas, nossas frágeis coragens e nossa inquietude!... Pretende, então, se envenenar? Pretende, então,
apodrecer?” MAR E , Filippo ommaso. Manifeste du futurisme. n: Le Figaro, 20 de fevereiro de
1909. Disponível em: <www.gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k2883730.largFR>.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016 70
menos uma vez na sua vida a uma exposição, é preciso verdadeiramente ser um
defensor desses privilegiados arcaicos e de seus preconceitos esnobes de mediadores
culturais para formular qualquer objeção; como aqueles que ainda cantam louvores do
livro impresso na época do Google... A vida e a arte estão finalmente reunidas, como
reclamavam os fundadores da arte moderna; mesmo se essa união é provavelmente
muito diferente daquela que eles tinham imaginado.
Acrescenta-se a isso a considerável extensão do conceito de museu. Pode-se ter a
impressão de que a integração ao universo do museu é acompanhada de uma luta sem
misericórdia contra as antigas formas de vida que não foram ainda inteiramente
submetidas à lógica de mercado. Tudo isso que é sistematicamente suprimido pelo
progresso volta sob a forma de eco-museu ou de museu das artes e tradições populares,
nos quais a vida de nossos avós campesinos, que nós pudemos ainda conhecer durante
nossa infância, encontra-se exposta; talvez para assegurar que toda ela está
definitivamente morta e desaparecida. A chamada incessante à “comemoração
histórica” não serve nos nossos dias senão para novas formas de ruptura com o passado.
Eu visitei recentemente, na França, uma fiação que alguns dos meus amigos tinham há
mais de 10 anos tentado recolocar em atividade com sua maquinaria muito complexa do
início do século XX. Essa tentativa fracassou, mas a fiação ameaçada de demolição foi
salva: hoje ela é um museu, e então, essa máquina não funcionará nunca mais... Uma
contribuição à disneylandização do mundo.
Com o desaparecimento dos antigos museus, suprimiu-se uma das experiências
que poderiam nos colocar em relação com alguma coisa de “totalmente outra”, cuja
lógica se diferenciava da lógica do mundo que nos cerca; esse mundo que não cessa de
nos sugerir que nada pode ser exterior a ele e que ele é só, é o único mundo (e, por
consequência, o melhor dos mundos possíveis). Felizmente, encontram-se ainda
pequenos museus nas cidades do interior ou outros que são menos próximos dos temas
espetaculares, e que nos fazem ver outra coisa. Veem-se menos visitantes, nenhuma
didática invasiva com as projeções de vídeo, de áudios-guia e uma centena de outras
maneiras de dizer ao visitante isso que ele deve admirar. Nós estamos sós com a obra e
nós podemos tentar entrar em um “diálogo infinito” com seus autores. Esses museus
não parecem uma mistura de sala de informática e de estação de metrô em horas de
pico. Mas eles nos oferecem um repouso momentâneo no seio do tumulto que nos
[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016 72
envolve sempre e por todos os lados. Nós temos, então, a sensação de que os outros
visitantes têm uma razão bem determinada para se encontrarem ali onde eles estão, e é
por isso que talvez nós sintamos uma vaga solidariedade para com eles. Por terem uma
“atmosfera” exterior ao tempo cotidiano e contarem com a presença viva do que é
passado ou estrangeiro [étranger], esses museus às vezes realmente oferecem o que os
tão louvados grandes museus pós-modernos prometem, a saber: uma experiência
estética completa, um evento, uma emoção que não resulta somente das obras
individuais. Entretanto, essa atmosfera não é planificada, como aquela das butiques da
Nike onde a compra é apresentada como uma experiência, mas nós a construímos nós
mesmos, quer dizer, cada um por si. Eu não sei o que os visitantes do Museu de História
Natural do Jardim de Plantas de Paris aprenderam quanto à zoologia, antes da
reestruturação deste prédio há 15 anos. Mas a uma pessoa que não seja capaz de se
lembrar de sua visita a esse colossal (e, propriamente falando, empoeirado) gabinete de
curiosidades como uma grande experiência estética, faltaria provavelmente a
sensibilidade necessária para tal experiência estética. Esses velhos museus estão para os
novos museus tal como os jogos e as bonecas rígidas de nossos avós estão para o
Playstation e as bonecas hiper-realistas de hoje. Esses jogos contemporâneos
contribuem segundo seus promotores para o desenvolvimento das crianças e para a
formação de aptidões que lhes serão uteis na vida ativa, como a capacidade de reação e a
prática de multitarefas. Mais próximos dos velhos jogos, assim como dos livros vis-à-vis
aos filmes, favorecemos uma imaginação individual que não é nem normatizada, nem
filtrada. Determinadas pessoas diriam que isso faz parte do que há de melhor na
humanidade. Mas para o que tal imaginação é útil nos nossos dias, quando o Google
pretende pensar e imaginar no nosso lugar? E o que pesa de tais considerações
nostálgicas, como as que eu expus aqui a propósito dos museus, os quais têm a chance
histórica de se colocar em harmonia com sua época e de conquistar seu espaço no lugar
de nos confrontar, nós visitantes, com alguma coisa que nos ultrapassa e que nos coloca
em desafio?
Paris, 2012, p. 18-25. Este artigo é a revisão de uma conferência proferida em maio de
2011 na Universidade de Salonique, em um Colóquio sobre o novo museu da Acrópole.
Raphael F. Alvarenga
1 Cf. Fredric Jameson, “Ulysses in History” [1980], em The Modernist Papers, London/New York: Verso,
2007, pp. 137-51.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016 75
elástico e inespecífico, de Homero a Hitler, “da funda à bomba atômica”2, e que, como
sugeriu certa vez de passagem Paulo Arantes, ganharia sem dúvida em rigor e precisão
histórica se escandida através de uma periodização da expansão do capitalismo
propriamente dito3. A ligação entre o romance de Joyce e o contexto da crise da ordem
burguesa internacional – precipitada como se sabe pelo ocaso do capitalismo liberal e a
ascensão e consolidação de um capitalismo predominantemente corporativo, de
monopólios e oligopólios – foi desentranhada e destrinchada pela melhor crítica, e será
aqui nosso ponto de partida. A experiência da alienação moderna da vida social
cotidiana (trabalho, mercadoria, dinheiro), o esgotamento da formação cultural
burguesa e a história provada como estagnação e inércia, o inferno do qual haveria que
despertar, são de fato alguns dos principais significados estabelecidos no curso do
romance: em tal contexto e dali em diante, ao contrário do período precedente, em que
correspondiam a certa aparência necessária à manutenção da ordem social estabelecida,
a formação crítica, e certa firmeza do eu, condições do pensar e do agir autônomos,
aparecem e são vividos cada vez mais como empecilhos à sobrevivência assalariada e à
reprodução do todo. Escrito entre 1914 e 1921, boa parte em Zurique e em Paris,
contemporâneo pois do expressionismo, do cubismo, do dadaísmo, da Música Nova de
Schönberg e Stravínski, sem falar na Revolução de Outubro, seria o caso de acrescentar
que o contexto da composição do Ulysses – além do colapso da civilização burguesa e
seu ideário, a degradação crescente da vida cotidiana pelo capital, os horrores da Guerra
de 14-18 – é igualmente o da perspectiva superadora, vale dizer, da crítica visando à
superação histórica das formas burguesas moribundas.
Dito isso, a questão para nós não é deduzir o conteúdo do livro, ou os avanços e
inovações técnico-literárias e vocabulares, em termos sociais e históricos, isto é,
imediatamente do declínio da burguesia e sua cultura, passando sem mais por cima da
mediação literária propriamente dita, o que, para começo de conversa, implicaria
desvalorizar demasiado rapidamente particularidades nada desprezíveis em favor de
2 Theodor W. Adorno, Negative Dialektik [1966], Gesammelte Schriften, vol. 6, Frankfurt/ M.:
Suhrkamp, 2003, p. 314, trad. G. Coffin, J. e O. Masson, A. Renaut e D. Trousson: Dialectique négative,
Paris: Payot, 1978, p. 387. Eis a citação completa: “ enhuma hist ria universal conduz do selvagem à
humanidade civilizada, mas há muito provavelmente uma que conduza da funda à bomba atômica.”
3 Cf. Paulo E. Arantes, O fio da meada. Uma conversa e quatro entrevistas sobre Filosofia e vida
nacional, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996, p. 48.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016 76
uma unidade social pressuposta. Como coloca Adorno, de forma lapidar: “A arte se
torna por aí mero exponente da sociedade, e não fermento para a sua transformação.” 4
Fosse o livro simples espelho fiel, digamos, do contexto social e das relações vigentes na
Irlanda do início do século XX, retratasse à maneira de um documentário “a vida como
ela é”, não seria senão confirmação ideológica da razão e do direito do existente; mesmo
que a intenção fosse sediciosa, dificilmente iria além da reprodução superficial do
imaginário dominante, do olhar sempre já condicionado pelo modo com que a vida é
organizada. Em resumo: “Não se trata de reduzir o trabalho artístico à origem social” –
erro em que incorrem diversas sociologias da arte –, “mas de explicitar a capacidade
dele de formalizar, explorar e levar ao limite revelador as virtualidades de uma condição
histórico-prática”, o que demanda situar a produção artística na história, a qual vem
compactada e potenciada no interior da obra de qualidade 5. Por tudo isso, importa aqui
perscrutar e reconstruir até onde der que sentido a alienação e sua superação possível
adquirem no movimento geral do romance. Veremos então de que modo e até que ponto
a configuração extraliterária acima evocada tem força estruturante na urdidura mesma
do Ulysses, amarrando e dando sustentação a um enredo cuja unidade, para além da
famigerada e quão comentada intertextualidade homérica, não é assim tão evidente,
mas de maneira alguma simplesmente arbitrária.
Comecemos pois com a questão, ou melhor, o problema da unidade. Sem forçar
muito, poder-se-ia dizer que Joyce fez com o sistema literário dominante mais ou menos
o que Schönberg fizera com o sistema tonal: pôs por terra a hierarquia de estilos de
modo análogo com que a música atonal e em seguida a dodecafônica derribaram a
multissecular hierarquização dos tons. A varredura da tradição artística precedente era
como se sabe condição para o experimentalismo, a pesquisa e a descoberta de novas
formas e novas linguagens, a um tempo críticas do existente e prenúncio de um arranjo
4 Theodor W. Adorno, Philosophie der neuen Musik [1949], Frankfurt/M.: Ullstein, 1958, p. 29, trad. R.
Hullot-Kentor: Philosophy of New Music, Minneapolis/London: University of Minnesota, 2006, p. 23.
5 Roberto Schwarz, “A carroça, o bonde e o poeta modernista” [1983], em Que horas são?, São Paulo: Cia.
superior, uma ordem pós-burguesa6. Tal como nas telas quartejadas de Picasso e Braque
(em todo caso na fase do cubismo analítico), a fragmentação e a despersonalização – em
grande medida mimese do processo real – tornavam extremamente difícil a leitura da
unidade da obra, unidade que a despeito disso não desaparecia. A independência
relativa das partes, dos diversos episódios do Ulysses, conjugada à correlação complexa
e intricada de alguns motivos recorrentes, lembra ainda, além do sistema dos doze tons
na música, o teatro épico que Brecht viria a desenvolver nas décadas seguintes. Em
termos literários, digamos que, comparado a um romance realista da primeira metade
do século XIX, como O Pai Goriot (1835), por exemplo, cuja unidade fisionômica e
rítmica é das mais notáveis, Ulysses à primeira vista desponta como uma aberração – e
assim foi considerado por muitos leitores quando de sua publicação em 1922, inclusive
por escritores modernistas aos quais Joyce costuma ser associado, como Virginia Woolf.
Ocorre que, por diferente que seja o contexto, os motivos que dão unidade e dinâmica a
ambos romances são de certa maneira os mesmos: a colonização de esferas autônomas
pelo dinheiro, que figura por toda parte, e a transformação – vivenciada às vezes como
violação e desapropriação – de qualidades individuais em mercadoria. A diferença,
embora considerável, é de grau e intensidade, uma vez que a violência da equivalência e
da indiferença gerais é no fundo praticamente de mesma ordem. Estas – eis o ponto que
nos interessa, e que vem à tona num livro e noutro, ditando de diferente maneira a
organização interna de ambos – não são simplesmente dadas, mas sim afirmadas e
reafirmadas no curso da vida cotidiana mediante a necessidade e a pressão das forças
socializadoras do mercado, que requerem do indivíduo, a todo momento, a equivalência,
a indiferença e o intercâmbio de qualidades, tornando uma anomalia toda e qualquer
ancoragem individual da própria existência, sem esquecer, claro, que “a contingência
cotidiana de atender à socialização caótica do mercado evoca a grande expropriação
originária, que é o seu fundamento”7. Não obstante a existência fática passe por
6 Cf. Fredric Jameson, Marxism and Form. Twentieth-Century Dialectical Theories of Literature [1971],
Princenton: Princenton University, 1974, p. 34: “Joyce […] embodies an exemplary progress from a
derivative personal style […] through the multiple pastiches of Ulysses, toward something which
transcends both styles and pastiche altogether and which, like the twelve-tone system in musical realm,
may stand as a distant representation of some future linguistic organization of a postindividualistic
character.”
7 Roberto Schwarz, “Dinheiro, mem ria, beleza: O Pai Goriot” [1963], em A sereia e o desconfiado, Rio de
8 Cf. Georg Lukács, “ alzac: Les Illusions perdues” [1935], trad. L. F. Cardoso, em Ensaios sôbre
literatura, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968, p. 121.
9 Para retomar as expressões usadas por Erich Auerbach, Mimesis. Dargestellte Wirklichkeit in der
abendländischen Literatur [1946], Tübingen/Basel: Francke, 1994, p. 512, trad. C. Heim: Mimesis. La
représentation de la réalité dans la littérature occidental, Paris: Gallimard, 1968, p. 546.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016 79
Alexanderplatz (1929) depois, a cidade (no caso, Dublin), na medida em que não se
reduz a mero pano de fundo, sendo antes de certo modo constitutiva da trama, com seu
trânsito, suas luzes bruxuleantes, fornece ela mesma uma unidade socioespacial ao
romance. Note-se que o caos da experiência urbana numa capital semiperiférica do
início do século XX, em que a interação de personagens isoladas parece arbitrária e
fortuita, não havendo necessidade ou lógica alguma que justifique colocá-las juntas, é
como que traduzido mediante o recurso a uma referência mítica arbitrariamente
selecionada para dar conta do recado: é a Odisseia, mas poderia muito bem ter sido
outra qualquer. Se o modernista Joyce recorre ao mito – o qual diz respeito não apenas
à estrutura intertextual homérica arbitrária, mas principalmente à aparente anulação da
história –, não é para consagrá-lo, mas para afastá-lo, e abafá-lo; com as inúmeras
pistas que deixa pelo caminho, o leitor minimamente perspicaz não deixa de notar que a
atitude do escritor é explicitamente moderna: o recurso ao mito é da ordem do uso, do
esclarecimento, não da mistificação. Não somente o mito é tratado como tal, e
distanciado de forma irônica (a comparação da trajetória do manso Leopold Bloom com
a de Ulisses, o astucioso, é puro escárnio), mas os pastiches estilísticos aparecem
também eles explicitamente como tais, de forma não velada, razão pela qual, entre
outras, a linguagem do Ulysses, ao contrário da de um livro como Grande sertão:
veredas, ao qual costuma ser comparado, fascina sem no entanto se apossar
completamente do leitor, que é obrigado a trabalhar para avançar, não tendo como
renunciar a si mesmo, simplesmente deixar-se levar pela prosa... Seja como for,
paralelamente à unidade mítico-espacial, nada desprezível, há ainda que mencionar a
unidade temporal – o entrecho como dito comprimido no espaço de um único dia, que
dimensiona o aprisionamento num presente que não passa (“There is not past, no
future; everything flows in an eternal present.”10) –, unidade esta que traz consigo toda
uma constelação motívico-temática a ela associada (estagnação, paralisia, inércia,
indiferença, banalidade). De passagem, à luz dos tempos que correm, de horizonte de
expectativas rebaixado e declinante, note-se que tal constelação e a representação do
bloqueio de qualquer vida futura conferem ao texto joyciano, desde a primeira leitura,
um aspecto de atualidade não negligenciável.
10 James Joyce, sobre a estrutura do Ulysses, em carta a Jacques Mercanton, cit. em R. H. Deming, James
Joyce. The Critical Heritage, vol. 1: 1902-1927, New York: Barnes & Noble, 1970, p. 22.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016 80
Seria possível argumentar ainda, como já se fez, que a própria recusa de um estilo
literário privilegiado, a equivalência geral dos diversos estilos, é estrutural no romance
e lhe dá certa coesão formal. Mas será que o fato de não haver no Ulysses forma unívoca
de olhar e descrever o existente equivale a afirmar que todo estilo ali empregado é
arbitrário, por isso mesmo irrelevante? É a tese de Franco Moretti num texto notável do
início dos anos 80, um dos melhores escritos a respeito do livro. O problema é que o
crítico nos parece generalizar um pouco rápido demais. Para ele, a crítica da ideologia
que Joyce põe em marcha fundamentar-se-ia ela mesma numa ideologia, segundo a qual
a cultura na ordem pós-liberal seria (ou teria se tornado) socialmente supérflua: o
funcionamento regular da sociedade do capital dispensaria justificações; valores
culturais, formas diversas de expressão e visões do mundo seriam no fundo
redundantes, insignificantes. Tal visão parece corresponder aos fatos: as formas
culturais, as ideias, as escolhas estilísticas teriam se tornado parciais, artificiais,
relativas, mais ou menos equivalentes, socialmente estéreis, por isso mesmo sem
importância para reprodução do todo, que segundo Marx se funda sobre um processo
automático, reificado e fantasmagórico, cuja “naturalidade” se impõe de si mesma, na
prática, como que por força do hábito, através de rituais cotidianos, cegamente
praticados. Ora, a emergência de uma todo-poderosa indústria da cultura, que
rapidamente se tornará segunda natureza, se não desmente tal visão, a relativiza um
pouco: “O desmantelamento das hierarquias [...] não passa da abolição dos limites fixos
e hierárquicos que impediam a expansão do ‘mercado cultural’ e para o qual Joyce agiu
como verdadeiro nivelador radical. A coincidência integral entre cultura e sociedade, de
escolhas de valor e vida cotidiana: eis a história dos anos 50.”11 Nesse contexto, caberia
acrescentar que a cultura que não tem eficácia social, ou que deixou de tê-la, é antes de
tudo a cultura formativa (no sentido enfático da velha Bildung burguesa), ao passo que
cultura filistina, a cultura como ostentação, a cultura fetichizada e desvinculada da vida
real, a cultura mercantilizada, publicitária, degradada em propaganda e embalada para
o consumo imediato, adquire, digamos, função infraestrutural. Melhor dizendo, não é
que a relação entre infraestrutura econômica e superestrutura ideológico-cultural tenha
11 Franco Moretti, “ longo adeus: Ulisses e o fim do capitalismo liberal”, em Signos e estilos da
modernidade. Ensaio sobre a sociologia das formas literárias [1983], trad. M. B. de Medina, Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p. 242.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016 81
se invertido, como concebem muitos autores pós-modernos, mas as duas coisas já não
se distinguem mais. Nas sociedades industriais avançadas, ideologia e realidade são
uma só e mesma coisa, redundando basicamente no acesso massivo ao universo do
consumo mercantil. Essa a base material da virada cínica do capitalismo, que para
Moretti Joyce antecipara de certo modo ao descrevê-la em estado nascente. Ocorre que
se a irrelevância da cultura crítica e a ineficácia social das ideias têm obviamente a ver
com mutações transcorridas no seio do processo social capitalista na época dos
monopólios, processo que se impõe mais e mais como algo inelutável e que dispensa
grandes justificativas, só restando ser administrado de alto a baixo, isso tem lugar de
forma desigual, vindo à tona antecipadamente e de maneira mais incisiva em contextos
periféricos e semiperiféricos (Índia, Rússia, Brasil, Irlanda), em que o ideário burguês –
ao contrário do que ocorrera na Europa, onde mal ou bem fora a expressão da burguesia
triunfante na luta contra o Antigo Regime – não chegava sequer a descrever falsamente
a realidade das relações capitalistas de produção e intercâmbio. O que vinha (e vem) à
tona com força no contexto periférico é justamente o formalismo da civilização liberal
burguesa, que faz com que seu ideário clássico possa coexistir com todo tipo de barbárie
e regressão; a dialética própria do progresso moderno – apreendida pelos frankfurtianos
históricos no quadro de derruimento final da civilização burguesa e rescisão prática de
sua cultura – consiste justamente no fato da corrupção da norma universal por sua
inserção particular em contextos sociais heterônomos, retardatários e/ou regressivos, os
quais concomitantemente são desqualificados pela mesma norma ideológica
hegemônica12. Sem desconsiderar a óbvia diferença de níveis (porque não dá para pôr
simplesmente em pé de igualdade o Brasil a um tempo liberal e escravagista, com sua
lógica de dependência pessoal e favor, e a Irlanda, sociedade atrasada mas colonizada
pela maior potência do mundo), não se pode deixar de atentar para as maneiras
discrepantes com que a vida cultural e política irlandesa, muito embora inserida numa
dinâmica europeia mais vasta, permanecia determinada principalmente pela
12 Cf. Roberto Schwarz, Ao vencedor as batatas. Forma literária e processo social nos inícios do romance
brasileiro [1977], São Paulo: Duas Cidades/Ed. 34, 2000, p. 59, e, do mesmo autor, “Complexo,
moderno, nacional, e negativo” [1980], em Que horas são?, São Paulo: Cia. das Letras, 2002, p. 125.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016 82
13 É o que, seguindo os passos de Roberto Schwarz, procura fazer Joe Cleary, Outrageous Fortune. Capital
and Culture in Modern Ireland, Dublin: Field Day, 2006, pp. 22-23.
14 Cf. Raphael F. Alvarenga, “Hamlets de farda não hesitam”, nesta edição de Sinal de Menos.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016 83
que foram, ou se o romance abrisse com Leopold Bloom em lugar de Stephen Dedalus;
ao contrário da matemática pós-moderna, a ordem dos fatores (dos capítulos e da maior
parte das correspondentes escolhas estilísticas) alteraria por completo o produto final.
Em cada etapa, geralmente em nota dissonante, motivos recorrentes remetem à
construção da totalidade que os determina, mesmo que apenas negativamente e de
forma não imediata, e cabe ao leitor o trabalho de síntese, de configuração do
conjunto15. Aqui também, de maneira análoga ao que ocorre na música dodecafônica,
mais do que simples meio de expressão subjetiva de descontentamento, angústia, tensão
ou contradição, a dissonância, no Ulysses, torna-se material literário, fazendo do
protesto contra o esmagamento do sujeito e o estreitamento do campo de possibilidades
algo objetivo. Esse o ponto chave, muitas vezes esquecido ou ignorado, o que a grosso
modo distingue o modernismo (ou a modernidade) de artistas como Mahler, Picasso,
Schönberg e Joyce (bem como de autores posteriores como Brecht ou Malcolm Lowry)
tanto do uso do pastiche feito por modernistas como Stravínski quanto da produção
cultural pós-moderna incipiente (da qual o compositor russo seria neste sentido um
precursor), a qual constituía o horizonte no interior do qual Moretti escreveu seu texto.
É preciso insistir neste ponto. No Stravínski da primeira fase, que ainda segundo
a leitura de Adorno representaria o lado regressivo do modernismo musical, os motivos
temáticos seriam elaborados mais ou menos explicitamente na forma de empréstimos,
citações e amálgamas estilísticos de toda sorte (jazz, valsa, música de circo, marchinha
militar, tango, ragtime, jingles) e selecionados mais ou menos ao sabor do acaso, de
forma caprichosa, portanto, à maneira de um consumidor, que escolhe arbitrariamente
entre diferentes marcas nas prateleiras do supermercado 16. Retrocesso e modernidade
andam de mãos dadas; os impulsos sociais mais primários e a tecnologia mais avançada
são consagrados e se conjugam num mesmo ritmo frenético e sincopado (em detrimento
de qualquer desenvolvimento melódico), um ritmo mecânico e destrutivo, que golpeia e
15 À maneira das melhores obras do modernismo literário, o texto do Ulysses incorpora conscientemente
uma estratégia deceptiva, de frustração das expectativas do leitor médio, notadamente no que concerne
a uma configuração textual imediatamente coerente e inteligível, “colocando nos ombros do leitor o
peso de configurar a obra [por sua pr pria conta]” Paul Ricœur, Temps et récit, t. III, Paris: Seuil, 1985,
p. 246). Dito isso, ressalve-se que a adoção de tal estratégia não é mero capricho do escritor modernista,
uma vez que, nas condições dadas, de alienação e fragmentação dos processos objetivos, construir
literariamente uma totalidade textual em si mesma coerente e coesa seria mentir à matéria histórica.
16 Cf. Theodor W. Adorno, Philosophie der neuen Musik, ed. cit., pp. 150-51, trad. cit., pp. 188-89.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016 84
esmaga o que resta do “sujeito”, vale dizer, do indivíduo impotente, tanto no nível da
trama (uma marionete solitária e patética, uma adolescente vítima dócil de sacrifício
tribal, um soldado fracassado...) como no da própria recepção da obra (aos auditores e
espectadores só resta entrar na dança e assimilar os golpes, passivamente, ou então
deixar a cena em protesto). As aspas em “sujeito” se justificam na medida em que toda
tensão é esvaziada; a rigor não há mais sujeito algum, forma e conteúdo do pastiche
coincidem plenamente num grande movimento regressivo.
O uso do pastiche nos artistas acima citados, em contrapartida, é algo de outra
ordem: não se trata de mera cópia ou citação arbitrária de estilos consagrados ou
desusados; trata-se antes, ou mais propriamente, de algo entre a simples imitação e a
paródia, algo próximo do que os letristas e situacionistas mais tarde denominariam
détournement, que designa a retomada distorcida de formas existentes de expressão
para uso subversivo, qualitativamente diverso do original, deslocando significados e
expondo criticamente o lado grotesco e/ou ensandecido das linguagens do poder ou por
ele aceitas, usadas normalmente para sustentar ou legitimar a ordem que esmaga tudo o
que não se enquadra no seio do estabelecido, tudo o que se apresenta ou desponta como
não-idêntico. Exemplo ilustre de retomada crítica de estilos prévios é Machado de Assis,
que nos romances de maturidade recorre às mais diversas tendências europeias da hora
(realismo, naturalismo, idílio romântico, decadentismo fin de siècle, simbolismo,
penumbrismo, art nouveau) sem exatamente adotar uma em particular, virando-as
antes do avesso, em todo caso concedendo-lhes com frequência tratamento
envenenado17. Nas Memórias póstumas, inclusive, faz uso de formas completamente
desusadas, recorre à mescla estilística típica da prosa livre e errática de Sterne e de
Xavier de Maistre a fim de transpor a ambivalência normativa e o arcaísmo das relações
locais, a volubilidade e o arbítrio da conduta das elites brasileiras no contexto da
escravidão. Tratava-se ali, não de simples reprodução arbitrária de algo caduco, mas da
redinamização de formas literárias consideradas (na Europa em todo caso) antiquadas
no intuito de melhor revelar uma formação social e subjetiva abstrusa e truncada, a um
só tempo arcaica e moderna. Nas palavras do autor: “É taça que pode ter lavores de
egual escola, mas leva outro vinho.”18
Segunda ressalva: em arte, forma é mais do que uma questão de estilo, e
tampouco se reduz à linguagem, embora tenha obviamente a ver com uma coisa e outra.
Em A Portrait of the Artist as a Young Man, por exemplo, o estilo se complexifica e se
enriquece à medida que o protagonista amadurece, ganha consciência e se torna pouco a
pouco capaz de narrar a própria experiência numa prosa mais elaborada e sofisticada; a
complexificação e o enriquecimento confirmam no nível da forma o conteúdo próprio de
um Bildungsroman. Acresce que o emprego da terceira pessoa num escrito
predominantemente autobiográfico marca um distanciamento desfamiliarizador com
relação a algo que lhe é em princípio bastante familiar: o seu passado – o narrador é e
não é mais o indivíduo cuja formação está a narrar. Eis o ponto que interessa: já naquele
romance inicial Joyce jogara com diferentes estilos (da fala infantilizada do início aos
fragmentados registros de diário do fim, passando pelas discussões políticas acaloradas
durante uma ceia de natal, os intermináveis sermões sobre o pecado e o inferno no
colégio, o capítulo da descoberta da vocação literária, recheado de aliterações e
polissíndetos, sem falar na teoria estética que desenvolve o protagonista a partir de
Thomas de Aquino), o que parece sugerir que a complexidade do tema da formação do
indivíduo, a sucessão de fases percorridas e suplantadas exigem tratamento igualmente
complexo, para o que o recurso a um único estilo deixaria a desejar. No que concerne à
composição do Ulysses, caberia recordar uma distinção fundamental: “uma coisa é o
ponto alto da frase, outra é o ponto alto da vida”19. Que as duas coisas não coincidam no
romance de Joyce não é necessariamente defeito do arranjo geral. Embora pareçam
concordar formidavelmente em diversos capítulos – entre outros em “Sirens”, episódio
que tem por tema explícito a música, composto em forma de fuga, ou em “Oxen of the
18 J. M. Machado de Assis, “Prologo da quarta edição” das Memorias posthumas de Braz Cubas [1881],
Rio de Janeiro/Paris: Garnier, 1914, p. viii. Obviamente, com o exemplo de Machado não queremos
igualar a démarche do brasileiro à de Joyce, e menos ainda insinuar que entre as personagens de Brás e
Bloom não haja diferenças; estas são ao contrário significativas (notadamente psicológicas: a um tempo
mais cultivado e mais bárbaro, a lógica estruturando o desejo do primeiro é descaradamente perversa), e
concernem igualmente, a nível social e histórico, a duas formações nacionais um tanto distintas (a nossa
é em muitos respeitos também um tanto mais perversa que a irlandesa, que mal ou bem se insere na
história europeia mais antiga), não obstante partilharem, como veremos, contradições e impasses
específicos de sociedades capitalistas periféricas.
19 Roberto Schwarz, “Sobre as Três Mulheres de Três Pppês” [1978], em O pai de família e outros ensaios,
Sun”, verdadeiro passeio pela história da literatura e da língua inglesas, que expõe passo
a passo, em nove partes indistintas, a gestação e o nascimento do inglês moderno, o qual
coincide, em nível de conteúdo, com o parto de um bebê no hospital em que se passa a
cena –, a relação entre forma e fundo não é, no conjunto, e mesmo no interior de alguns
capítulos, de identidade ou simples conformidade; trata-se antes de uma articulação
dialética, que produz uma tensão, de intenção e efeito críticos. Em vez de partir de uma
ontologia das formas e proceder em direção à empiria, Joyce parte ao contrário dos fatos
da experiência e procura mediá-los num encadeamento sintético não imediatamente
apreensível, o que produz no seio da totalidade a centelha que transcenderá o cotidiano
petrificado; em lugar de se comprazer com o simples jogo de montagem de significados
e estilos enrijecidos e esvaziados de sentido, ele os envolve num movimento geral de
reificação e ruptura, tornando-os deste modo novamente comensuráveis com a situação
do próprio sujeito no interior das condições dadas20.
Eis um ponto que, entre outros, separa Joyce de tantos virtuoses da palavra que
chegaram posteriormente. Porque o culto abstrato do malabarismo sintático, da
pirotecnia verbal e das vistosas piruetas narrativas tem um limite objetivo. A execução
de boa parte das proezas e inovações técnicas trazidas pelos grandes da literatura exige
de fato um nível maior de habilidade e competência do que as técnicas narrativas mais
básicas e tradicionais, o que não impede que qualquer escritor mediano, treinado,
consiga macaqueá-las sem grandes problemas. Ora, o difícil não é saber como, mas
quando e por que empregá-las, com que intuito, para surtir que efeito etc. Se o objetivo é
o virtuosismo técnico em si, o resultado, em geral, é que a prosa salta de um lado a outro
e não atinge nada de concreto, não revela nada de significativo, redundando em algo
extremamente enfadonho. Por outro lado, se a finalidade for, despudoradamente, o
sucesso de vendas e a integração capitalista do artista, de duas uma: ou a obra será mero
fruto de uma moda passageira, ou então fará parte de determinado nicho do mercado
literário, o do filisteu que valoriza as excentricidades requentadas da ponta extrema das
vanguardas históricas, cheias de som e fúria, mas que no fundo não dizem nada de nada.
20Retomo aqui, livremente e para uso próprio, alguns elementos da análise de Theodor W. Adorno,
Mahler. Eine musikalische Physiognomik [1960], em Gesammelte Schriften, vol. 13, Frankfurt/M.:
Suhrkamp, 1997, pp. 210 e 304, trad. J.-L. Leleu e T. Leydenbach: Mahler. Une physionomie musicale,
Paris: Minuit, 1996, pp. 96 e 237.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016 87
Embora desloque (ainda que não abstraia completamente) o discurso das personagens
de seu contexto imediato de enunciação e significação, tal método narrativo, no caso de
Ulysses, adquire sentido à luz do contexto geral em que foi composto e publicado o livro
(mercantilização das relações, fragmentação do processo social e da experiência
subjetiva, dissolução das formas culturais burguesas e relativização das visões de
mundo, estagnação social, peso dos processos anônimos, despersonalização), tendo
ademais significado diverso em cada caso particular, ou seja, a forma como é empregada
a técnica remete a uma dinâmica (a um tempo social e literária) mais vasta, a qual
traduz e transfigura, transmudando de acordo com a situação narrada e a posição
ocupada pelas personagens no interior da mesma.
Deixando de lado Molly, que ganha realmente a palavra apenas no famoso e
muito celebrado monólogo interior final, repleto de clichês pequeno-burgueses – ainda
que não se reduza a trivialidades, diga-se de passagem, ou a conteúdos regressivos,
dando vazão igualmente a aspirações “libertárias”, de caráter poder-se-ia dizer pós-
burguês –, são principalmente as perspectivas, as posições ocupadas, as trajetórias e os
intercursos dos dois outros, Bloom e Stephen, que acompanhamos praticamente do
início ao fim, cada qual servindo de contraponto ao outro. O ponto de vista geral, do
“articulador”, que de certa maneira é o do artista desterrado – o próprio Joyce, ou
Stephen mais velho, uns dez anos depois (“He is going to write something in ten
years”21), que olha a coisa toda à distância, no tempo e no espaço – emerge
precisamente deste jogo contrapontístico. Como nas telas de Bruegel, o Velho, o
horizonte do quadro geral narrado é decerto estreito (no pintor flamengo a linha do
horizonte é colocada via de regra na parte superior da tela), de modo que não se vê
muito além do mundo no qual as personagens pintadas parecem enterradas; mas o
ponto de vista do narrador-pintor, que é também o do leitor-espectador, é distanciado –
em Bruegel, a cena é quase sempre visualizada a partir de cima, do alto de uma colina ou
de um ângulo suspenso como que por uma grua, para fora do quadro, o que possibilita
uma visão global, totalizante, do conjunto da representação; em Joyce, a complexidade
da linguagem e o câmbio constante de estilos e de enfoque impedem a total imersão do
leitor no fluxo narrativo – e se desloca progressivamente em função dos múltiplos
21 James Joyce, Ulysses [1922], Harmondsworth: Penguin, 1972, ep. 10, p. 248 (doravante: U 10.248).
[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016 89
pontos de fuga, o que permite abranger uma totalidade plurívoca e complexa – vale
dizer, que não se deixa enquadrar ou subsumir completamente pelo olhar dominador e
autoritário do burguês que, tradicionalmente (ou mais precisamente no e a partir do
Renascimento italiano), mediante uma focalização estática e centralizadora, sói reduzir
todo o espaço de representação a uma perspectiva una, a uma ideia clara e distinta
daquilo que interessa ser visualizado e apreendido –, dando vazão a uma multiplicidade
de narrativas (e de focos narrativos particulares) de que em princípio nada é excluído. A
própria narrativa mítica é deslocada, posta lado a lado com o mais reles, deixa de ser
central, passa a ser uma, e não a mais importante, entre tantas outras (não fossem os
títulos inequívocos de obras como “A queda de Ícaro”, “A conversão de Paulo”, ou o
próprio Ulysses, provavelmente não ocorreria a ninguém fazer a correlação). Eis a
vocação democrática, se nos for permitido dizer, da arte de Bruegel e de Joyce: tudo
entra, tudo cabe e coabita o mesmo espaço social, do mais elevado ao mais baixo.
Superior e inferior se relativizam reciprocamente (o mito é propositalmente deslocado,
deixa de ser central e coexiste lado a lado com outros aspectos da realidade cotidiana,
que ganham destaque), mas a operação não é automática. Na contramão das tendências
à fruição de uma fragmentação indiferenciada, o trabalho da inteligência, vale dizer, o
poder de análise e de síntese, a capacidade de discernir e destacar o essencial, de
diferenciar e recompor os diversos elementos numa totalidade significativa são, num e
noutro artista, pressupostos de leitura.
Por si só, digamos em resumo, dissociada do trabalho de formalização do não-
literário, vale dizer, do movimento geral da prática social, a transformação (ou simples
retomada) de formas literárias e estilos prévios é um jogo inócuo22. Para efeito de
contraste, tomemos como exemplo “Nausicaa”, episódio em que ocorre o confronto
aberto de três estilos, não somente diversos, mas discrepantes. O capítulo inicia
pastichando a prosa edulcorada de romances meia-boca e a trivialidade de revistas
femininas, transpondo assim, num golpe de gênio, a monotonia repetitiva do ato
masturbatório através do recurso ao sentimentalismo barato, aqui exacerbado, repleto
de palavras e expressões supérfluas em locuções excessivamente largueadas, que
22 A referência aqui, e de modo geral no que concerne aos pressupostos da crítica materialista dialética, é
Roberto Schwarz, “Pressupostos, salvo engano, de ‘Dialética da malandragem’” [1979], em Que horas
são?, São Paulo: Companhia das Letras, 2002, pp. 129-155.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016 90
25 U 13.379.
26 Para além da simples provocação, o tema da masturbação, muito presente o livro (além de Bloom em
“ ausicaa”, seria possível argumentar que, embora de forma menos explícita, Stephen em “Proteus” e
Molly em “Penelope” também deem vazão ao famigerado ato sexual solitário), ganharia ao ser lido nesta
chave, do potencial de vida desperdiçado. Há nesse sentido outras tantas alusões e referências, quase
nunca notadas: as “migalhas” no vagão da carruagem em “Hades”), por exemplo, as quais, logo se
percebe, não são restos de um piquenique, mas provavelmente esperma ressecado, não serviriam
também de alegoria para as possibilidades petrificadas de uma nova vida?
[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016 92
de costume ignorado, em que fica claro, como espero ter mostrado, a não-arbitrariedade
das escolhas estilísticas no melhor Modernismo, como também exemplifica o uso
extremamente crítico que Joyce faz do pastiche.
Já foi dito, mas não custa repetir: a riqueza e a complexidade da poesia de Joyce
constitui ao mesmo tempo a expressão da riqueza possível, da possibilidade de formas
de vida mais belas e sofisticadas, e o protesto contra a miséria real, contra a
imobilidade social e a falta concreta de liberdade, que são vividas de diversas maneiras
pelas diferentes personagens. Acresce que tal forma crítica, quando deixamos o nível da
impressão imediata, não é simples ou absolutamente discrepante em relação ao
andamento geral, mas reverbera, a cada etapa, na transformação pela qual passa uma
personagem em particular (Stephen Dedalus) ao longo da trama, na qual somente
superficialmente não se passa nada de significativo. Em resumo, diria que a tese de que
os estilos usados no romance são arbitrários e absolutamente intercambiáveis vacila,
para além dos fatores já apontados, quando nos apercebemos que estão intrinsecamente
ligados ao encadeamento dos episódios. Se não estou enganado, então, de forma alguma
se trata de simples liquidação estilística. Para início de conversa, há um movimento
geral delineado no curso da narrativa, que é o de uma passagem paulatina das esferas
subjetiva e intersubjetiva aos processos objetivos (notadamente com a explicitação dos
processos de produção literário e social, que se intermedeiam no texto), fechando com
um retorno a um foco predominantemente subjetivo, só que de certo modo
transmudado, não idêntico ao dos primeiros cinco episódios. De forma geral, os
câmbios, segundo o próprio Joyce, visavam a dar conta das diversas alterações
transcorridas no espaço de um dia – manhã, hora do almoço, tarde, anoitecer, horas e
estados noturnos, primeiras horas da madrugada –, mas sugeriam concomitantemente
algo como um processo cumulativo, de formação do sujeito, um caminho que inclui
impasses relacionais, ensimesmamento, extrusão, choques da alteridade, reflexão e
retorno a si etc., com a tensão atingindo o ápice na parte final, como que exigindo
resolução. Com efeito, os dois derradeiros episódios reencenam o dualismo, ou a
dicotomia entre sujeito e objeto: o monólogo interior de Molly contrasta de maneira
gritante com o questionário minucioso que o precede imediatamente, com a descrição
catalogadora, por exemplo, dos livros que se encontram nas estantes de Bloom ou dos
objetos guardados em suas gavetas, entre tantas outras listagens contidas em “Ithaca”.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016 93
27 U 18.704.
28 Note-se de passagem que no nível da recepção da obra a coisa não é muito diferente: a própria
complexidade, o trabalho e a inteligência ativa exigidos pela leitura deveriam prevenir que o livro fosse
consumido à maneira de uma mercadoria qualquer, veloz e espontaneamente, o que não impediu que,
por toda a sua dificuldade e (para o leitor médio) impenetrabilidade, o Ulysses tenha adquirido certa
“aura” e por isso mesmo exerça um fascínio quase irresistível – facilmente mercantilizável – sobre uma
parcela da pequena burguesia filisteia global, que se reúne anualmente em torno de um caneco de
Guinness para comemorar o Bloomsday, o dia internacional do semiculto (Bloom) para semicultos
fetichistas (imagine-se o ridículo de ter um dia do ano reservado para celebrar Brás Cubas ou
Riobaldo!). Afinal de contas, ler o Ulysses não é para qualquer um (para começar, exige um tempo que
ninguém mais parece dispor), o que confere status a quem ousou a empreitada e foi até o fim, que se
torna como que membro de um seleto grupo, quase uma confraria. Trata-se da cultura como substituto
da religião derruída, e Joyce muito claramente joga com isso: a intricada teia de símbolos, as
correspondências sem fim, todo o paralelo com a Odisseia, no fundo, não querem dizer nada de nada,
não esclarecem absolutamente coisa nenhuma, e só servem para entreter até o fim dos tempos os
críticos bem-pensantes e os semiletrados do mundo todo, que poderão em cada ocasião ostentar o seu
[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016 94
como algo que vai além de uma simples liquidação de estilos consagrados, vale dizer,
como uma tentativa de expropriação crítico-subversiva e politicamente consciente,
menos dos estilos em si do que dos próprios meios de produção literária, teríamos
diante dos olhos um livro nada inofensivo, um ambicioso experimento, visando a
desviar e deslocar os significados e as linguagens imperantes no sentido de uma
perspectiva superadora. Sob este prisma, Joyce levaria adiante o legado inconformista
dos maiores artistas modernos e se inscreveria numa tradição aguerrida, em tudo
alternativa ao cânone engessado e abnóxio em que costumam ser relegados aqueles
artistas pelo complexo cultural acadêmico-midiático; uma tradição constituída por algo
como um comunismo literário, apontando como que “para um futuro moderno no qual
a comunidade possa ser novamente imaginada”29.
(verão de 2015-2016)
“conhecimento” da obra. Pois que importa saber que a cor predominante de tal epis dio “Proteus”,
digamos) é o verde ou o azul, que os dez anos de abstinência sexual entre Bloom e Molly correspondem
aos dez anos que Ulisses levou para voltar para casa, que a ponta ardente do charuto que fuma o
Cidadão remete ao olho do Ciclope, e assim por diante? O que isso acrescenta ou explica do que quer que
seja? Grandiosa conversa fiada, intermináveis discussões, no mais das vezes estéreis e irrelevantes, que
não levam a lugar nenhum, semelhantemente ao falatório especializado sobre esportes. Ocorre que a
esterilidade e a irrelevância das ideias – atestadas (de novo, semelhantemente ao que ocorre com
Machado) pela própria recepção da obra – são temas centrais do romance de Joyce. Razão a mais para
levar a cabo uma leitura desfetichizante e materialista do livro.
29 Raymond Williams, “Quando se deu o modernismo?” [1987], em Política do modernismo. Contra os
Raphael F. Alvarenga
“[A] chapa quente da vida [the fryingpan of life]”1 – é como Leopold Bloom, um
publicitário freelance de meia idade, resume a existência num dia qualquer do primeiro
decênio do século passado (16 de junho de 1904), que à primeira vista pouco difere de
qualquer outro: nenhum acontecimento maior, nenhuma grande revelação, nada além
do fato corriqueiro, banal e aparentemente inevitável da luta diária de todos contra
todos: “todo mundo devorando todo mundo [everybody eating everyone else]”2; “Cada
um por si, unhas e dentes. [...] Comer ou ser comido. Mata! Mata! [Every fellow for his
o n, tooth and nail… Eat or be eaten. Kill! Kill!].”3 Embora não redunde de todo em
essência metafísica da história humana, o contexto da concorrência universal por um
lugar ao sol do mercado é percebido por quem também deve lutar por seu pão de cada
dia como uma luta de morte generalizada. A metáfora da deglutição universal é de fato
recorrente no grande romance de Joyce (embora atinja o ápice no oitavo episódio,
“Lestrygonians”), mas é preciso não se deixar cegar por ela. Por outras palavras, é
preciso determinar o seu estatuto. A percepção do pega-pra-capar generalizado, bem
como a imagem ideal que figura como sua negação – Bloom sonha com um estado
socialista utópico (utópico, digamos, por serem as relações de produção vigentes quase
que completamente ignoradas), uma forma de welfare state, em que a existência fosse
pacificada e uma renda mínima, suficiente para uma vida confortável, garantida a todos
(“I want to see everyone [...] having a confortable tidysided income [...] ₤ 300 per
1 James Joyce, Ulysses [1922], Harmondsworth: Penguin, 1972, ep. 6, p. 113 (doravante: U 6.113).
2 U 7.124.
3 U 8.170.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016 96
annum. [...] it’s feasible and ould be provocative of friendlier intercourse bet een
man and man.”4) –, são expostas como próprias do trabalhador (digamos ainda em
termos gerais) que deve brigar a todo momento para ter um anúncio seu publicado, e
que com custo logra fechar o dia sem dívida. A percepção é superficial e enviesada,
distorcida pela necessidade em muitos aspectos: através de incontáveis lugares-comuns,
traço de caráter da personagem5, Bloom vê em tudo oportunidade para um anúncio
(“Because life is a stream. All kinds of places are good for ads.”6), e as questões do
trabalho (ou do tipo menos ou mais infernal ou mortificante de emprego que se tenha,
do “homem-sanduíche”, portando nos ombros a publicidade de algum serviço ou
mercadoria, ironicamente comendo de pé o lanche que lhe traz a mulher na hora do
almoço, ao padre barrigudo recitando o habitual e fastidioso sermão em latim no
enterro de um conhecido) e do dinheiro (uma preocupação constante através do livro,
que culmina na contabilidade antes de ir para a cama, em que se constata o equilíbrio
perfeito, mas algo fortuito, entre débito e crédito 7) guia a maior parte de suas reflexões.
O resto, quer dizer, o que não se encaixa no esquema da vida produtiva monetarizada,
reduz-se a constantes devaneios – às vezes desencadeados pela visão de algum tipo de
mercadoria que fala à imaginação (uma caixa de chá do Ceilão, por exemplo) e no geral
portando sobre uma existência pacificada e sensual, fundada no ócio, que o imaginário
de Bloom (ou o imaginário geral norte-europeu) associa ao clima quente e glamoroso do
Sul (“the southern glamour”8; “passionate abandon of the south”9), à Espanha moura e
morena (desejada por muitos dublinenses, “Dublin’s prime favourite”10, Molly, a esposa
com quem não tem relações sexuais há anos, é espanhola) e ao Extremo-Oriente (“The
far east. Lovely spot it must be [...] Those Cinghalese lobbing around in the sun, in
4 U 16.564-65.
5 É o que, entre outras coisas, permite aproximar Ulysses de Bouvard et Pécuchet, como o fez, logo de
saída, Ezra Pound, “Paris Letter”, The Dial 1922), p. 335, cit. em enoît adié, “ he Room of nfinite
Possibilities: Joyce, Flaubert, and the Historical magination”, Études anglaises, # 58.2 (2005), pp. 131-
32: “Bouvard is unfinished, Ulysses is gigantically complete, and the latter parts of Ulysses, notably
loom’s conversational outburst, give one excellent ground for comparison. He has emitted what appear
to be all the clichés of the English language in a single volcanic eruption.”
6 U 8.153.
7 Cf. U 17.632.
8 U 16.542.
9 U 16.572.
10 U 7.136.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016 97
dolce far niente. Not doing a hand’s turn all day. Sleep six months out of t elve. Too
hot to quarrel. Influence of the climate. Lethargy. Flowers of idleness.”11) –, ou às
eclosões intermitentes de uma vitalidade reduzida no mais das vezes a animalidade ou
primitivismo (quiçá uma crítica subliminar, da parte de Joyce, ao caráter a um tempo
regressivo e inofensivo de certa estética antiburguesa contemporânea?), traduzido na
preferência culinária por miúdos – logo de entrada, na primeira cena em que aparece
(em “Calypso”), planeja preparar rins de cordeiro grelhados para o café da manhã, e
delira com a perspectiva do leve sabor perfumado de urina impresso no paladar (“Most
of all he liked grilled mutton kidneys which gave to his palate a fine tang of faintly
scented urine.”12) –, bem como no apetite sexual desregrado e na fascinação pelo verdor
arborescente das raparigas em flor – pensa em quão fortunadas são as cadeiras em que
se sentam as estudantes que vira na biblioteca e masturba-se ao enxergar por baixo do
vestido a calcinha de uma jovem sentada na praia13. Por estes poucos exemplos, fica
claro que Bloom, premido pela situação aparentemente sem saída em que se encontra, é
em grande medida escravo do próprio desejo, ou dos sentidos primários, da fruição
imediata, raramente resistindo às ofertas de gozo com que cruza pelo caminho.
Mais adiante tentaremos determinar o estatuto e o significado de tal postura. Por
ora, como já sugerido noutro texto 14, lembremos que não é acaso se a narrativa abre, não
com Bloom, mas com o jovem Stephen Dedalus, que protagoniza a parte inicial (“The
Telemachiad”), composta por três episódios. É notadamente pela perspectiva marginal
desta personagem que Joyce desenvolve e obtém a abrangência maior da situação geral
por ele construída. Embora Bloom figure na maior parte dos episódios do livro, sua
trajetória inercial e sem grandes sobressaltos, serve principalmente de contraponto à do
mais jovem, naquele contexto impossibilitado de perseguir a vocação literária e realizar
suas ambições artísticas. Numa palavra, Bloom seria como que um duplo antitético (e
11 U 5.73.
12 U 4.57.
13 Anteriormente, num belo poema em prosa, de teor impressionista e fragmentário, texto não publicado
em vida porque demasiado franco e pessoal, Joyce narrara episódio semelhante, em que, na calada da
noite, observa de longe, com os pés na lama, uma adolescente trocar de roupa em seu quarto, uma
signorina de quem fora tutor de inglês em Triete, deixando livre curso à fantasia de uma interação
sexual com a garota. Cf. James Joyce, Giacomo Joyce [1914], ed. bilíngue, São Paulo: Brasiliense, 1985,
pp. 72-73 (no original) e 28-29 (na trad. de P. Leminski).
14 Cf. Raphael F. Alvarenga, “Forma, estilo, pastiche”, nesta edição de Sinal de Menos.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016 98
18 James Joyce, A Portrait of the Artist as a Young Man [1916], New York: Random House, s.d., p. 291.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016 99
modos com que as duas personagens, Stephen e Bloom, recorrem à cultura também se
encontram nas antípodas um do outro. Assunto chave do romance, a meia cultura (para
usar o termo adorniano, Halbbildung) encarnada por Bloom o é igualmente por grande
parte das personagens (e do público leitor), aos olhos de quem, aliás, o publicitário de
inteligência mediana passa por um homem cultivado, com “um toque de artista” (“He’s
a cultured allroundman [...] There’s a touch of the artist about old loom.”19). Ao
contrário de Stephen, cujo talento literário é inquestionável, mas no fundo inútil em
termos sociais, Bloom já não distingue arte poética e publicidade (“the modern art of
advertisement”20), a qual não deixa de ser uma poesia degradada, adaptada às
demandas do mercado e ao ritmo acelerado da vida moderna (“a poster novelty [...]
congruous with the velocity of modern life”21), por isso mesmo uma linguagem
mutilada, visando tão-somente o logro e o lucro (palavras que têm a mesma origem no
latim lucrum, não custa lembrar), o que não a impede de recorrer a formas
esteticamente avançadas (“Now if they had made it round like a wheel. [...] Something
to catch the eye.”22) a fim de obter êxito comercial.
Traço característico da geração pós-napoleônica na Europa, a mercantilização da
arte e da literatura, da produção à recepção, já havia sido assunto de destaque em
Balzac: “[da fabricação] do papel às convicções, às ideias, aos sentimentos dos
escritores, tudo se transforma em mercadoria”23. Que no capitalismo triunfante o poeta
puro, o artista de real talento e vocação – que vê como ignominioso o fato de dever se
adaptar às demandas externas do mercado, à necessidade de produzir algo vendável;
que abomina o fato de colocar suas ideias e convicções entre parênteses a fim de
alcançar algum sucesso ou reconhecimento – que tal artista deva fracassar, eis a verdade
que Balzac expõe impiedosamente com a ruína de Lucien de Rubempré. A capitalização
do espírito, e a prostituição da arte e das ideias que a acompanha forçosamente,
conquanto já se façam valer de forma violenta no universo balzaquiano, parecem
nalguns momentos atingir o paroxismo no Ulysses: com efeito, Bloom respira e
19 U 10.234.
20 U 17.604.
21 U 17.641.
22 U 5.88-89.
23 Georg Lukács, “ alzac: Les Illusions perdues” [1935], trad. L. F. Cardoso, em Ensaios sôbre literatura,
transpira a lógica mercantil como se fosse a coisa mais natural do mundo, dá ares de
estar completamente amoldado, ter incorporado até o último fio de cabelo a necessidade
imperiosa de vender alguma coisa e se vender o tempo todo. Moretti ressalta com razão
este aspecto “da ‘fisionomia intelectual’ de loom: sua vocação administrativa
desesperada, seu esforço para capitalizar cada coisinha em vista de sua potencial
utilidade econômica”24. A capitulação final do sujeito – aqui algo tipificada com a
personagem de um mediano publicitário pequeno-burguês, forçado a adaptar-se
incessantemente ao momento presente e nele dispender toda a sua energia – é
indissociável de sua capitalização, ou da formatação do seu intelecto e imaginário em
termos capitalistas. Ocorre que, se não há dúvida de que a mercantilização do espírito e
das condutas está no coração da prosa do Ulysses, seu alcance ainda não é total. Ou por
outra: tal processo não se desenrola sem resistências. A razão reside, em parte,
paradoxalmente na persistência do que poderíamos talvez chamar de “miséria
irlandesa”, vale dizer, no caráter atrasado da vida social e cultural da ilha à época, nos
traços marcadamente comunitários ou pré-urbanos remanescentes num país que
praticamente não se industrializou25 – por isso próximo a muitos títulos de um país do
Terceiro Mundo –, apesar de estar inserido na dinâmica desigual e combinada do
capitalismo mundial.
A esta altura, abrindo um parêntese, uma comparação da situação da Irlanda de
então com a o Brasil pode ser ilustrativa, embora todo cuidado seja pouco, uma vez que,
em relação a uma economia baseada no trabalho escravo, como a brasileira, há
obviamente diferenças não negligenciáveis entre os dois contextos. Existem não
24 Franco Moretti, “ longo adeus: Ulisses e o fim do capitalismo liberal”, em Signos e estilos da
modernidade. Ensaio sobre a sociologia das formas literárias [1983], trad. M. B. de Medina, Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p. 237.
25 País majoritariamente agrário, a Irlanda ficou (ou foi deixada) para trás, passou completamente ao
largo da Revolução Industrial; além de não possuir quantidade significativa de carvão ou ferro, a
dependência econômica e política da Inglaterra – que segundo Marx via no país vizinho apenas um
distrito agrícola seu, fonte de produtos como lã, milho, trigo, gado, madeira e mármore, bem como de
trabalhadores industriais e recrutas militares para as guerras imperiais –, foi determinante para que os
irlandeses perdessem por assim dizer o bonde da história – o que lhes custou caro, para dizer o mínimo,
se lembrarmos da “grande fome” de 1846-1848, que matou nada menos que um milhão de pessoas e
forçou milhões de outras à emigração nas décadas que se seguiram. A respeito, além dos textos
conhecidos de Marx e Engels, cf. Paul Keating & Derry Desmond, Culture and Capitalism in
Contemporary Ireland, Hants: Avebury, 1993, pp. 8 e 118; Cormac Ó Gráda, Ireland. A New Economic
History: 1780-1939, Oxford: Oxford University, 1994, pp. 314-30; e John Kurt Jacobsen, Chasing
Progress in the Irish Republic. Ideology, Democracy and Dependent Development, Cambridge:
Cambridge Univeristy, 1994, p. 46.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016 101
26Para tudo isso, cf. Terry Eagleton, The English Novel. An Introduction, Oxford: Blackwell, 2005, pp.
285-86.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016 102
27 Ao contrário de outras personagens mais explicitamente estereotipadas, como Buck Mulligan (irlandês
típico), Haines (encarnando as típicas mentalidade e atitudes do colonizador inglês), o Cidadão (típico
nacionalista reacionário), ou o Sr. Deasy (protestante antissemita que abraça tipicamente o espírito do
capitalismo).
28 Haveria aqui um paralelo interessante a ser traçado com certa estratégia estética brechtiana. Nas
palavras de Roberto Schwarz, “Altos e baixos da atualidade de recht”, em Seqüências brasileiras, São
Paulo: Cia. das Letras, 1999, p. 148: “Ao encharcar de clássicos o mundo das negociatas [em A Santa
Joana dos Matadouros] Brecht preferiu ficar na penúltima etapa da fetichização, um passo aquém da
delegação completa da energia social ao mercado. [...] Brecht queria mostrar que algo de Bocarra já
existia no Fausto, mas não que a grandeza das Luzes continuasse viva nas especulações da Bolsa. [...] O
resultado é uma iluminação de viés, que faz ver a face não mercantil dos negócios, que não é boa, e não
deixa que o fetichismo se complete, ou seja, que o capital pareça ser apenas capital. Assim, a vizinhança
escarninha do presente com as glórias peremptas da ordem burguesa segue nos interrogando, não
porque proponha uma volta atrás ou uma solução, mas pela evidência de fraude que proporciona.”
[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016 103
em lugares menos atrasados do ponto de vista do capital 29. Por diferentes que fossem as
duas nações em questão, o capitalismo não se fechava por completo nem na Irlanda nem
no Brasil – razão pela qual a formação do sujeito – estruturalmente homóloga à
formação histórico-social – tampouco se fecha, ficando este a meio caminho da
constituição burguesa clássica, uma vez que já nasce decomposto –, e por isso mesmo
revelava num caso e noutro aspectos de sua essência monstruosa (não somente os
episódios inglórios, no plano social, da fome em massa e da escravidão, mas, outrossim,
o contexto bárbaro de luta de morte generalizada, racismo/antissemitismo estrutural,
elevado nível de fetichização, de espetacularização da existência...).
É portanto no seio de um contexto social e histórico esdrúxulo, a um tempo
retrógrado e parte do mundo moderno, que perambula a personagem de Stephen, que,
em contraste com Bloom, é uma figura marginal não apenas na economia geral do livro,
aparecendo significativamente menos, mas também no nível da própria trama, em
função de estar – à maneira de Hamlet, em quem a personagem é em grande medida
inspirada, muito mais do que em Telêmaco – fora dos gonzos, em vias de ruptura com a
condição dada30, de modo que não poderia mesmo figurar no centro da narrativa, como
peça fundamental da ordem (literária como social) estabelecida. A inadequação de
Stephen – que, não custa lembrar, só pode ser divisada sob o prisma do modo com que a
unidade dialética de sujeito e objeto se configura ou toma forma naquele contexto
determinado – o diferencia e distancia progressivamente das demais personagens; ela o
29 A fim de expor o não-idêntico da sociedade e da cultura burguesas moribundas, Thomas Mann, por
exemplo, teve de imaginar heterotopias, ou sociedades alternativas apartadas da civilização capitalista e
da história efetiva (uma colônia de férias no balneário veneziano, um sanatório enfurnado nos alpes
suíços, um estúdio de artista no campo bávaro), as quais, sob o signo da doença e da morte (cólera,
tuberculose, sífilis), bem como da tentação “diab lica”, geralmente na forma do erotismo ex tico, que
não raro conjuga vitalidade e morbidez (a beleza apolínea de um adolescente polonês, a sensualidade
felina e “lânguido-asiática” de uma ovem russa, a figura enigmática de uma prostituta húngara de pele
morena, nariz arrebitado e olhos amendoados), seriam regidas por uma temporalidade distinta da do
capital, para cuja narração, no entanto, o autor lançou mão de formas literárias antiquadas, típicas do
século XIX. Em contraste, a Recherche de Proust teria maior alcance crítico justamente porque trabalha
com duas peripécias históricas, com as quais põe em cena o pacto firmado entre a burguesia e o que
restou da aristocracia para formar a nova República francesa (construída, tal como a infame basílica do
Sacré-Cœur de Montmartre, sobre o rio de sangue da Comuna): naquele contexto, em que as relações do
sujeito com o mundo e com outrem já eram mediadas de forma radical pelo capital, a ponto de ele não
coincidir mais consigo mesmo ou com o tempo presente, só restava ao narrador proustiano reviver a
vida sob o prisma da memória involuntária, o que o obriga a romper decisivamente com o andamento
progressivo do enredo realista do século precedente.
30 A respeito, cf. Raphael F. Alvarenga, “As vestes negras de Hamlet”, Sinal de Menos, # 2 (2009), pp. 84-
105, retomado em R. F. Alvarenga, Desejo de ruptura, São Paulo: Scortecci, 2012, pp. 15-37.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016 104
aproxima e distancia de Bloom; faz com que simpatize com a figura do judeu errante e
rejeitado pela sociedade da qual tenta se libertar e sinta certa repulsa em relação à
obviedade pequeno-burguesa do publicitário. A primeira aproximação, como não cessa
de frisar a crítica, deve-se portanto à posição deslocada que ambos ocupariam no seio
da sociedade dublinense. Acontece que tal posição, como veremos, não é num caso e
noutro de mesma ordem, pelo contrário: uma chave para entender o Ulysses está
precisamente na capacidade de diferenciar e elucidar, em cada caso, os tipos de
deslocamento (existencial, social, ideológico) em jogo na trajetória das personagens
principais, os quais, por sua vez, no nível da forma, têm a ver com os deslocamentos
narrativos, de ponto de vista e estilo. Judeu não de todo praticante (não é circuncisado,
por exemplo), de origem estrangeira (seu pai era húngaro), sentindo na pele e
cotidianamente o peso do preconceito e da intolerância num país predominantemente
católico e num contexto em que o nacionalismo fervoroso e o renascimento cultural
celta ganhavam força31, Bloom não se enturma facilmente, embora interaja polidamente
com todo mundo. Já Stephen, que estudou um tempo fora, e permanece “artificialmente
estranho ‘atrasado’, por assim dizer) em relação às condições sociais dominantes”32,
sente-se pour cause um estrangeiro no próprio país, e luta internamente para se libertar
das malhas mutiladoras das três principais instâncias de poder autoritário sobre as
quais se discorria já no Portrait33 e que são nomeadas logo no início do Ulysses (as duas
primeiras mais ou menos explicitamente, a terceira, apenas insinuada), a saber: a Igreja
católica apostólica romana, o Estado imperial britânico e a causa nacional irlandesa, que
Stephen (assim como Joyce) julgava em parte regressiva (“I am servant of two masters,
Stephen said, an English and an Italian. [...] And a third [...] there is who wants me for
odd jobs.”34). Dirigida a Haines, o odiável (como o indica o próprio nome) interlocutor
inglês – e de fato, para o colonizado, um representante da potência colonizadora que
estuda e se interessa pelos costumes do povo dominado, no caso, a cultura irlandesa
31 Ulysses nesse sentido não deixa de ser uma sátira mordaz, no melhor estilo swiftiano, da pequena
burguesia preconceituosa de Dublin, encarnando do nacionalismo tosco a um ferrenho antissemitismo,
de que dão mostras várias personagens: Haines “ elemachus”), Mr. Deasy “ estor”), Mulligan “Scylla
& Charibdis”), the Citizen “Cyclops”), Skin-the-Goat “Eumaeus”)...
32 Franco Moretti, “ longo adeus”, art. cit., p. 231.
33 Cf. James Joyce, A Portrait of the Artist as a Young Man, ed. cit, p. 238: “When the soul of a man is
born in this country there are nets flung at it to hold it back from flight.”
34 U 1.26.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016 105
comunidade, no fundo representa, vale dizer, não uma autoridade paterna suplente
(impossível ao final levar a sério tal interpretação), mas antes a mentalidade pequeno-
burguesa, autocomplacente, conformista, bem ajustada. Stephen, em contrapartida, visa
doravante levar a existência, na medida do possível, em seus próprios termos. O dia,
como já dito antes, é como outro qualquer para praticamente todo mundo, inclusive
para Bloom, sujeito descentrado, por isso mesmo mais flexível e maleável, melhor
adaptado aos novos tempos37, mas certamente não para o defasado Stephen, único a
realmente passar por uma transformação digna do nome, que tem a ver com toda a sua
história e formação, que o levam a cortar pelo caminho vários laços (familiares,
empregatício, de “amizade”) e seguir de forma coerente o destino traçado pelo próprio
Joyce, o caminho do exílio voluntário no velho continente, onde, embora a duras penas,
passando todo tipo de provação e privação, encontrará condições sociais e culturais, não
ideais, mas mais favoráveis (além do distanciamento necessário) para trabalhar em sua
obra. A despeito de todo o devaneio, do desgosto mais ou menos consciente com a vida
morna e insossa que leva, dos sonhos de fuga da prisão da vida burguesa, a única
mudança que sobrevém no cotidiano de Bloom é, em comparação, assaz ridícula,
consistindo numa pequena “vitória” doméstica: antes de se deitar pede a Molly que lhe
traga o café na cama pela manhã, em lugar de ele servir à mulher, como de hábito.
Em claro contraste com a do artista Stephen, a perspectiva do judeu Bloom é ao
mesmo tempo marginal e central; sorte de alegoria da Irlanda da época e da pequena
burguesia de modo geral, a personagem é desde o início marcada pela ambiguidade de
sua posição social, “nem dependente nem independente por completo”38,
caracterizando-se ainda pelo descompasso e o isolamento, bem como por um tipo
peculiar de “inconformismo”, paradoxalmente anuído e conformado. Bloom é, com
efeito, a própria contradição encarnada: pacifista convicto, contra toda forma de
violência (“I resent violence or intolerance in any shape or form.”39), quando colocado
contra a parede se esquiva como pode e não deixa claro se concorda ou não com a pena
capital, preferindo ao invés, após versar sobre as razões e os porquês e os embustes e
37 Como bem notou Franco Moretti, The Way of the World. The Bildungsroman in European Culture
[1987], trad. A. Sbragia, London/New York: Verso, 2000, p. 244.
38 Franco Moretti, “ longo adeus”, art. cit., p. 232.
39 U 16.564.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016 107
aleivosias (“and of course Bloom comes out with the why and the wherefore and all the
codology of the business”40), pregar o lugar-comum cristão de uma vida fundada no
amor universal, o oposto do ódio (“Love, says Bloom. I mean the opposite of hatred.”41);
incomodado com o desabrochar da sexualidade na filha adolescente, Milly, que acaba de
completar quinze anos, sente-se sexualmente atraído por meninas da mesma faixa
etária que ela (“I begin to like them at that age. Green apples.”42); sonhando acordado
com uma existência exótica ociosa, idealizando com deleite uma vida errante e
autodeterminada (“Ever he ould ander, ‘selfcompelled’”43), defende com ardor uma
sociedade do trabalho baseada no princípio da meritocracia, bem como o fato de que,
idealmente, todos, intelectuais e camponeses, sem exceção, deveriam trabalhar duro na
construção de uma grande nação (“All must work, have to, together. [...] both belong to
Ireland, the brain and the brawn. Each equally important.”44). Bloom e a maioria das
demais personagens pertencem à pequena burguesia e exercem profissões liberais (as
classes subalternas não aparecem senão episodicamente: uma velha camponesa, um
operário na prensa do jornal, meretrizes, marujos). Ademais, tampouco são indivíduos à
moda antiga, típicos da era concorrencial do capitalismo liberal, que nunca chegou de
fato a se instaurar na Irlanda, vale dizer, indivíduos decididos e donos do próprio nariz,
trabalhando com afinco para realizar algum empreendimento pessoal ou coletivo de
porte, por assim dizer artífices da própria história – embora isso subsista como resíduo
ideológico, na forma da ilusão ou da pretensão de se estar no controle da própria vida 45.
Apesar de destoar dos demais de sua classe – definida como se sabe antes de tudo pelo
modo como se insere no sistema produtivo e a posição que ocupa nas relações sociais de
propriedade vigentes –, por ser judeu e de origem estrangeira, Bloom partilha não
obstante diversos traços pequeno-burgueses, sobretudo a incongruência ideológica: por
não ter lugar bem definido, ou por ocupar um lugar ambíguo e instável entre as duas
40 U 12.302.
41 U 12.331.
42 U 13.374.
43 U 17.648.
44 U 16.565.
45 Cf. Franco Moretti, “ longo adeus”, art. cit., p. 235: “Par dia do iluminista pensante, loom é capaz de
sair-se com lugares-comuns sobre qualquer assunto: do conceito de nação às relações entre os sexos, do
apelo à generosidade aos programas sociais, ele acredita, por manter-se absolutamente fiel à ortodoxia
liberal, que pode entender e controlar um mundo com o qual perdeu para sempre o contato.”
[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016 108
48 Para um bom artigo nesse sentido, do qual me inspirei bastante, cf. José Antonio Pasta, “ recht e o
rasil: afinidades eletivas”, Pandaemonium Germanicum, # 4 (2000), pp. 19-26.
49 As botas com que palmilha as areias de Sandymount Strand, por exemplo, pertenceram anteriormente a
Buck Mulligan (cf. U 3.54-55: “His gaze brooded on his broadtoed boots, a buc ’s castoff
nebeneinander. He counted the creases of ruc ed leather herein another’s foot had nested arm.”);
note-se ainda que no final do livro precedente, ao arrumar as malas para a viagem de estudos a Paris,
Stephen menciona em seu diário, de forma oximoresca, suas “new secondhand clothes” A Portrait of
the Artist, ed. cit., p. 298).
[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016 110
50 Cf. Richard Ellmann, James Joyce [1959], xford: xford University, 1982, p. 197: “He thought [...]
that a political conscience would give his work distinction, as he thought it had given distinction to the
work of bsen and Hauptmann.”
51 Theodor W. Adorno, Ästhetische Theorie [1970], Frankfurt/M.: Suhrkamp, 1984, p. 367, trad. R.
alienada, constitutiva das considerações de Stephen, mas conteúdo vago dos devaneios
de Bloom, no caso do publicitário não compromete suficientemente a realidade posta,
não produz culpa nem angústia num nível além do suportável, nada que o force a
repensar com consequência e radicalidade a sua insossa e mutilada existência. Não por
acaso, diga-se de passagem, o nome “Bloom” acabou virando uma espécie de metonímia
para a vida bovina, do sujeito dessubjetivado das sociedades atuais, ditas pós-
industriais, testemunha passiva e indiferente de sua própria despossessão espetacular52;
tornou-se por outras palavras uma metonímia para o drama de uma vida sem drama –
já prefigurado e exposto de diferentes formas nas obras de autores como Ibsen,
Strindberg, Tchékhov, Maeterlinck e Hauptmann, dos quais Joyce era ávido leitor53 –,
52 Cf. Tiqqun, Théorie du Bloom, Paris: La Fabrique, 2000. De fato, desde que Ulysses foi publicado, a
vida já completamente desvitalizada foi reduzida em todos os aspectos à exigência objetiva do
permanente empreendedorismo de si, algo que o neoliberalismo tornaria norma mundial, a ponto de
podermos dizer, sem exagero ou ironia, que ho e “Nous sommes tous des Bloom”, ou em todo caso
constrangidos a sê-lo. O problema, salvo má leitura nossa, da teoria do coletivo em questão (Tiqqun), ou
da posição algo ambivalente de Giorgio Agamben neste ponto cf. “ iqqun de la noche” [2001], em La
communità che viene, Torino: Bollati Boringhieri, 2008, p. 92), é positivar de certo modo, na esteira de
autores pós-estruturalistas, essa “condição de loom”, vale dizer, a vida nua, desprovida de forma ou
subjetividade – o que Adorno, que ao contrário do que muitos creem não fetichizava o estado de
indeterminação nem a não-identidade (a indeterminação, dependendo da situação, tanto pode ser fonte
de esperança como de desespero e angústia), chamava, em contexto preciso, mais apropriadamente de
vida mutilada ou danificada (beschädigte Leben) –, como avatar da comunidade por vir. A questão,
evidentemente, ultrapassa o escopo do presente texto, e merece desenvolvimento à parte. Ainda que
tratando de outros autores, remeteria a Cláudio R. Duarte & Raphael F. Alvarenga, “Entre ruína e
desespero: negação e constituição do su eito em Robert Kurz e Slavo Žižek”, Sinal de Menos, # 9 (2013),
pp. 24-59, em particular pp. 34-38.
53 A influência de tais autores sobre a démarche estética de Joyce é imensa, e surpreende que não tenha
sido mais bem explorada pela crítica. As questões formais com que lidam tais dramaturgos são
realmente muito semelhantes àquelas com que teve de se defrontar o irlandês na composição do
Ulysses. Vejamos por alto algumas delas. No drama analítico do norueguês, em vez do presente, domina
o passado, muito embora a representação deste seja problemática, uma vez que a interioridade das
personagens segue sendo exposta através de sua objetivação (notadamente através do juízo passado
pelas próprias sobre a vida pretérita). No drama de estações do sueco, as relações intersubjetivas são
abolidas ou vistas exclusivamente através da lente subjetiva de um eu central, o sujeito isolado se torna
objeto para si mesmo, presente e passado já não se distinguem. O teatro do russo revela a discrepância
entre a forma tradicional do drama e a forma (épica) que estavam a exigir os novos conteúdos; o diálogo
se esfacela, se torna impossível, literalmente diálogo de surdos, e a vida ativa presente dá vazão a uma
vida de sonho, oscilando entre recordações e aspirações utópicas sem qualquer efetividade. No drama
estático e fatalista do belga é a própria ação que é abolida, primando uma objetividade passiva; diante da
morte, figura um grupo anônimo de homens reduzidos ao mutismo. Por fim, nos dramas sociais do
alemão, as forças anônimas da sociedade aparecem explicitamente em tensão com os destinos
individuais, determinados que são da forma mais cabal por fatores externos, circunstâncias político-
econômicas que transformam os homens em vítimas impotentes, não havendo saída senão na revolta,
na explosão coletiva de indivíduos desesperados, que transcende a esfera intersubjetiva do diálogo, o
qual não resolve mais nada... Todo esse movimento e seus desdobramentos são analisados no estudo
notável de Peter Szondi, Theorie des modernen Dramas [1956], Frankfurt/M.: Suhrkamp, 1966, trad. G.
L.: Teoria del dramma moderno: 1880-1950, Torino: Einaudi, 1979.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016 112
uma vida, vale dizer, inteiramente dominada por forças e processos anônimos, sem
grandes surpresas, conflitos, resoluções ou escolhas decisivas. Um ponto, sem dúvida
importante, por trás desta desdramatização radical da vida, é que o significado desta já
“não é mais buscado no terreno da vida pública, da política e do trabalho; migrou para o
mundo do consumo e da vida privada”54. Mas o horizonte do consumo é o presente
contínuo, o instantâneo, que se pereniza na medida em que passa incessantemente sem
realmente ficar para trás, e que por isso mesmo não deixa marca durável na memória
nem permite projetar o que quer que seja de diferente para o dia de amanhã. Daí a
impressão amarga, partilhada por uma outra personagem de Joyce, de que no fundo não
passamos de criaturas regidas e escarnecidas pela frivolidade55. Desprovida de
propósito, algo por que lutar e trabalhar para além da sobrevivência assalariada e da
perspectiva magra do consumo de “bens” desoladores, a vida cotidiana é vivenciada
como algo em si mesmo vão. A imaginação, neste contexto, não é levada a sério,
redundando seja em obstáculo, se exacerbada – como na canção de Chico Buarque:
“Mas pra que sonhar se dá/ O desespero de esperar demais...” –, seja em mero
suplemento (no mais das vezes indissociável do universo do consumo mercantil) para a
insignificância geral de uma vida alienada: os sonhos, no caso, para falar como Brecht,
não se convertem mais em planos, do mesmo modo que a nostalgia não incita ao
movimento; o devaneio, por seu turno, desde que brando, ajuda a aguentar o tranco sem
enlouquecer. Correndo paralelamente à vida real, e desconectada dos trâmites
mundanos, a promessa de uma vida livre não ameaça suficientemente o estabelecido;
ela só deixaria de ser uma ideia en porte-à-faux, poderíamos dizer na esteira de Roberto
Schwarz, uma ideia suspensa no ar, reduzida com frequência a mero supplément d’âme,
caso fosse reinterpretada e reconstruída criticamente à luz das contradições reais, vale
dizer, se inserida em situações formativas concretas. Se não estou enganado, é o que
mal ou bem procura fazer Joyce com Stephen, cujo percurso, deixando Bloom um pouco
de lado, trataremos agora de acompanhar mais de perto.
***
54 Franco Moretti, “ feitiço da indecisão”, em Signos e estilos da modernidade, ed. cit., p. 287.
55 Cf. James Joyce, “Araby”, em Dubliners [1904-1906/1914], Genova: Cideb, 1995, p. 47: “Gazing up into
the darkness I saw myself as a creature driven and derided by vanity; and my eyes burned with anguish
and anger.”
[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016 113
“Stately, plump Buck Mulligan came from the stairhead, bearing a bowl of
lather on which a mirror and a razor lay crossed.”56 Imponente, vertical, dizendo a que
veio, eis como a prosa do Ulysses desponta desde o introito. A cena que abre o livro e o
episódio conhecido como “Telemachus” tem lugar no alto da torre Martello, onde se
aloja no momento a personagem de Stephen Dedalus, já conhecida de outras histórias.
Exortado a se juntar ao desavergonhado Buck Mulligan lá em cima, o ex-seminarista,
mal-humorado e sonolento, faz aparição tímida no terraço que dá sobre a região
circunvizinha e as montanhas que despertam no horizonte. O escopo totalizante é
manifesto nesta primeira cena do livro, na visão que paira sobre o mundo lá fora como
num sobrevoo. Antes de retornarem ao interior da torre, Mulligan faz troça do
sobrenome do outro: “The mockery of it, he said gaily. Your absurd name, an ancient
Greek.”57 O nome seria absurdo, não em si mesmo, mas mais por ser indigno daquele
que ora o porta, não passando de escárnio aos olhos do outro.
Daedalus (como Joyce ainda grafava em Stephen Hero) é a transcrição latina do
grego Daídalos (“astucioso”), possivelmente relacionado ao verbo daidállò (“trabalhar
artimanhosamente”, no sentido de “aparar”, “dar acabamento”, “adornar”, “ornar”,
“embelezar”), de que também derivam daídalma (“belo trabalho”, “obra de arte”) e
daídalos (“trabalhado com arte”, “trabalhado em relevo”)58. Célebre artífice da
antiguidade, escultor e inventor de Knossos, o nome Dédalos está ademais associado ao
antigo sonho de uma produção automatizada, condição segundo Aristóteles da
democracia radical e universal59. Na mitologia, Dédalos fora o arquiteto do famoso
labirinto em que o Minotauro era prisioneiro. Após a morte deste por Teseu, auxiliado
por Ariadne, que contou com a ajuda de Dédalos, este foi a seu turno, juntamente com o
filho, Ícaro, aprisionado na torre do labirinto a fim de que seu grande e ameaçador
56 U 1.9.
57 U 1.10.
58 Cf. Françoise Frontisi-Ducroux, Dédale. Mythologie de l’artisan em Grèce ancienne, Paris: Maspéro,
1975, Alberto Pérez-G mez, “ he Myth of Daedalus”, AA Files, # 10 (1985), pp. 49-52, e Sarah P. Morris,
Daidalos and the Origins of Greek Art, Princenton: Princenton University, 1992.
59 Cf. Aristóteles, Política, , 1253 b 32: “Se cada instrumento, com efeito, pudesse, ao receber ou presumir
uma ordem, operar por si mesmo [to auton ergon], como as estátuas de Dédalos, ou os tripés de
Hefaísto, os quais, diz o poeta, ‘chegavam por si s s [automatous] à assembleia dos deuses’ [Ilíada,
XVIII, 376], se as lançadeiras tecessem sozinhas, se o arco tocasse sozinho a cítara, os empreendedores
prescindiriam de operários, e os mestres, de escravos.” Referências às estátuas de Dédalos figuram
igualmente em Platão, no Menon (97 d) e no Eutífron (11 c-e).
[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016 114
60 U 9.210.
61 Cf. James Joyce, A Portrait of the Artist, ed. cit., p. 299: “Welcome, life! go to encounter […] the
reality of experience and to forge in the smithy of my soul the uncreated conscience of my race.”
62 Antonio Candido, “Estímulos da criação literária”, em Literatura e sociedade. Estudos de teoria e
história literária [1965], Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2008, p. 77.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016 115
63 U 2.30.
64 U 2.31.
65 U 2.40.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016 116
Ainda durante a aula, Stephen pega o mote da piadinha sem graça de um aluno,
para quem o nome Pirro lembraria a palavra “píer”, a qual faz pensar imediatamente no
píer de Kingstown (um subúrbio ao sul de Dublin, próximo de Sandycove, onde se situa
a torre Martello do primeiro episódio), a seu ver uma ponte frustrada (“Kingstown pier,
Stephen said. Yes, a disapointed bridge.”66), provavelmente porque não leva a lugar
algum (o porto tem forma de U, com uma brecha para a entrada e saída de navios).
Nomeado em homenagem ao rei George, o píer de Kingstown torna-se alegoria de toda a
Irlanda dependente. Como numa sessão de psicanálise, uma ideia leva espontaneamente
a outra: a ponte descontinuada, ou interrompida, é a imagem forte encontrada para
possibilidades não concretizadas tanto a nível da história social irlandesa como do
percurso individual do artista, mas que não deixam de assombrar o presente como
espectros da vida não realizada, ou da formação inacabada, abortada 67. Eis, segundo
Agamben, a fonte da inconsolável tristeza do letrado: “nada é mais amargo que uma
permanência prolongada na esfera da potência.”68 Acontece que a estagnação, o
estancamento na esfera (ou melhor, no momento) da potência impotente, da pura
possibilidade, que não devém ato, da realização perpetuamente adiada, deve ser situado,
e não tomado em abstrato. A frustração e o desconsolo, no caso, têm a ver sobretudo
com o desperdício e o subuso das forças produtivas individuais e sociais em contexto
predominantemente mercantil. Em “Nestor”, como bem notou Moretti, vem à tona o
fato de o pensamento crítico e a cultura laboriosamente acumulada terem se tornado,
além de inúteis em termos capitalistas, empecilhos ao sucesso mundano. Na escola,
“Stephen é forçado a viver intelectualmente em dois planos: no particular, de suas
próprias reflexões, e no socialmente reconhecido do ensino. Mas entre essas duas áreas
não há mais nenhuma relação e, assim, a riqueza intelectual de Stephen atrapalha o seu
desempenho regular no emprego.”69 Por outras palavras, que o problema da liberdade
interior seja indissociável do da liberdade social, o que nos permite entrevê-lo aqui é o
66 U 2.31.
67 A imagem do nascimento interrompido de algo novo, ou da interrupção de uma vida em formação, não
se pode deixar de notar, é reincidente através do romance. o epis dio seguinte, “Proteus”, por
exemplo, quando caminha na praia, Stephen avista o que imagina serem duas parteiras, uma das quais
carrega uma bolsa, que para o jovem conteria um feto de um parto malsucedido.
68 Giorgio Agamben, Ideia da prosa [1985], trad. J. Barreto, Belo Horizonte: Autêntica, 2013, p. 54.
ponto de vista do trabalhador cuja energia produtiva é em grande medida sugada pelo
trabalho morto, perspectiva que ademais, como veremos, não é unívoca.
A este respeito, não é difícil prever a esta altura uma objeção, de parte da ala pós-
moderna, digamos, para a qual dar destaque à perspectiva da produção num livro como
Ulysses não teria muito cabimento, haja vista que quase nenhuma personagem do
romance parece trabalhar pra valer. Decerto, Stephen dá uma aula pela manhã e passa o
resto do tempo vagando; Bloom anda de um lugar a outro na tentativa de ter publicado
um anúncio seu, mas não tem patrão, horário ou local de trabalho fixos; cantora de
ópera, Molly passa o dia na cama (parte dele com Blazes Boylan, o amante); os
estudantes de medicina, amigos boêmios de Stephen, também parecem dispor de
bastante tempo livre... No entanto, se o operariado industrial, o trabalho assalariado
regulamentado e a jornada de trabalho elástica propriamente dita estão ausentes do
livro, isso não significa que o tempo “livre” das personagens de classe média baixa que
figuram ali seja efetivamente livre, vale dizer, autodeterminado, nem que a necessidade
de ganhar dinheiro e de vender a força de trabalho não seja sempre presente, que não
determine fundamentalmente o cotidiano, os modos de agir, sentir, desejar e pensar da
maioria das personagens. Numa palavra, a inatividade não é em nada livre; antes ao
contrário, é determinada pela abstração real da atividade produtiva alienada. O próprio
vazio inscrito no coração do livro, e que contrasta de modo gritante com a plenitude
possível sugerida pela riqueza da prosa, sugere algo da desapropriação da relação
subjetiva qualitativa com a esfera do objeto devido à forma alienada do trabalho. Vale
aqui citar um significativo trecho de Adorno a respeito: “O vazio torna patente uma
incongruência entre estado e potencial, entre o tédio do qual os seres humanos estão
sempre à mercê e a possível, mas malsucedida, instauração de uma vida na qual o tédio
desapareceria. Sob os aspectos dessa base de massa também se esconde o sentimento de
que a mudança real se acha interrompida. Eis o que significa o vazio: menos trabalho
com uma contínua falta de liberdade; aqui, sofre-se à medida do possível reprimido. [...]
Na produção industrial de massa, a forma do trabalho é virtualmente aquela da
repetição do sempre igual [...] Mas os modos de comportamento que se formaram na
esfera da produção, na linha de montagem, ampliam-se potencialmente sobre a
sociedade inteira [...] até mesmo sobre setores nos quais não se trabalha, nem de longe,
[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016 118
72 Cláudio R. Duarte, “A potência do abstrato: resenha com questões para o livro de Moishe Postone”,
75 Georg Lukács, Die Theorie des Romans. Ein geschichtsphilosophischer Versuch über die Formen der
großen Epik [1914/1916], Darmstadt/Neuwied: Luchterhand, 1984, p. 70, trad. J. M. de Macedo: A
teoria do romance. Um ensaio histórico-filosófico sobre as formas da grande épica, São Paulo: Duas
Cidades/Ed. 34, 2000, p. 82.
76 Georg Lukács, “Metafísica da tragédia: Paul Ernst” [1910], em A alma e as formas, trad. R. Patriota,
na vasta literatura existente sobre Ulysses, nenhum crítico até o momento parece ter
percebido. Quando recorda a permanência em Paris, Stephen evoca o fato de carregar
sempre consigo a passagem do bonde, um álibi em caso de ser confundido com algum
criminoso, e lhe vem em mente uma data precisa daquele mesmo ano. Vejamos o
trecho: “Yes, used to carry punched tickets to prove an alibi if they arrested you for
murder somewhere. Justice. On the night of the seventeenth of February 1904 the
prisoner was seen by two witnesses. Other fellow did it: other me. Hat, tie, overcoat,
nose. Lui, c’est moi.”77 Os comentários mais consagrados costumam evocar um fait
divers ocorrido naquele mesmo dia, ao qual o texto parece remeter: o assassinato de
uma mulher pelo marido, reportado pelo Irish Times em 19/02/1904, crime que teve
lugar numa certa Stephen Street, em Dublin. Por outro lado, parece não haver consenso
a respeito da pessoa a que se refere a frase “Lui, c’est moi” (seria um détournement do
dito de Luís XIV: “L’état, c’est moi”?): alguns críticos dizem se tratar de Patrice Egan,
um conhecido seu, de quem fala pouco antes, socialista exilado, que passa seus dias
tentando a sorte no jogo; outros dizem que lui seria antes o homem comum e anônimo
inculpado injustamente por um crime que não cometeu, quiçá ainda o próprio
criminoso. A chave para entender o trecho, entretanto, está na data (que curiosamente
ninguém se deu o trabalho de examinar) de 17 de fevereiro, dia em que, em 1904, caiu a
Quarta-feira de Cinzas. Esta como se sabe marca o fim do Carnaval e o início da
Quaresma, tradicionalmente um período de reflexão, penitência, jejum e mortificação
que antecede a festividade da Ressurreição; as cinzas, no caso do feriado cristão,
simbolizam a efemeridade da vida terrestre. Sob o prisma religioso, é provável que
Stephen estivesse se referindo, com amargor irônico, à experiência pessoal, ao fim
prematuro do período de exílio boêmio parisiense (“You seem to have enjoyed
yourself.”78), ao início abrupto e imprevisto da “idade adulta”, em todo caso de um
tempo morto (assim como Joyce, Stephen regressara à Irlanda ao saber que sua mãe,
doente, estava para morrer), um tempo de remordimentos, mas que parece comportar
igualmente a gestação, lenta e dolorosa, de uma vita nuova.
Em termos mais imediatamente políticos, pode-se conjecturar que Joyce tivesse
em mente a Revolta da Páscoa, de 1916, que foi um dos mais significativos intentos, por
77 U 3.47.
78 U 3.47.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016 122
algo como uma “segunda inocência”. Daí ainda o movimento progressivo da ironia, que
não se deixa prender a nada, que tudo arrasta e desfaz na busca de uma nova pátria,
uma nova idade de ouro. Como explica Anatol Rosenfeld: “Ela [a ironia romântica] visa
negar os valores do senso comum, o pensamento do filisteu, fixo, petrificado, as
categorias coaguladas da realidade vulgar para, através do rompimento com o século,
exaltar o infinito. Mas quando tudo é visto sub specie ironiae, o oscilar permanente não
é superado por um verdadeiro compromisso com o infinito.” Por outras palavras, o
olhar irônico, que paira soberbo e indiferente acima de tudo, acaba por não deixar pedra
sobre pedra, transforma tudo, todo valor, todo interesse, o próprio anseio por uma vida
livre e autêntica, em mera aparência, impedindo um real comprometimento com o
mundo, descartando de antemão todo empenho na sua transformação efetiva. Se tal
iconoclastia contém uma dimensão emancipadora, em sua leviandade também abre um
abismo em que é fácil se perder, o que explica a presença maciça, na literatura do século
XIX, de temas como “o esfacelamento, a fragmentação, o homem-espelho, desdobrado
em reflexos, o homem-máscara, o duplo, o sósia, o homem que vendeu a alma” etc.
Levada ao extremo, a ironia pode conduzir ao misticismo, ao niilismo, ao cinismo; ela
pode levar de volta ao mito, cuja reposição, em contexto esclarecido carrega
necessariamente conotações regressivas e protofascistas. O aniquilamento
fantasmagórico da realidade empírica reflete por certo, nos tempos modernos, a
fragmentação do mundo real, os dilaceramentos da civilização burguesa, mas ao mesmo
tempo pode trazer à tona o demoníaco, conduzindo muitas vezes o sujeito aos abismos
da angústia e da loucura. Por outro lado, como observam os melhores comentadores de
Machado (Roberto Schwarz, José Pasta), desprovida de entusiasmo a ironia se torna
mera afetação, simulação de autocrítica, autovangloriação, em vez de demanda de
absoluto, o sujeito se compraz com uma supremacia qualquer... O ponto importante a
reter aqui é o seguinte: não havendo redenção individual fora da sociedade, descartada
igualmente a possibilidade de uma conciliação puramente simbólica, a “saída”, no caso
do artista moderno, consistiria em dar forma (de diferentes maneiras) ao esfacelamento,
transformar em obra a atitude irônica, a fim de objetivá-la, de tomar minimamente
distância dela e do próprio eu irônico. O resultado será a obra de arte como experimento
[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016 124
82 Anatol Rosenfeld, “Aspectos do romantismo alemão”, em Texto/contexto I, ob. cit., pp. 158-161, 164 e
168.
83 U 7.136.
84 Umberto Eco, Obra aberta. Forma e indeterminação nas poéticas contemporâneas [1962], trad. G.
89 U 5.88-89.
90 Cf. James Joyce, Stephen Hero [1903-1907/1944], Norfolk: New Directions, 1963, p. 184: “ will live a
free and noble life. […] My art will proceed from a free and noble source. It is too troublesome for me to
adopt the manners of these slaves. refuse to be terrorized into stupidity.”
[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016 126
maquinário (“The machines clanked in threefour time. Thump, thump, thump.” 91) e as
condições prosaicas de trabalho nos subterrâneos da produção jornalística (“the
foreman’s spare body [...] that or aday or er”92), a dimensão bem braçal do
trabalho dito imaterial, por si só ainda não é nada. Ademais, Bloom sabe muito bem que
o que está por trás do obsoletismo programado das notícias oficiais do dia, o que
realmente interessa, são os anúncios no intervalo entre aquilo que é noticiado: “It’s the
ads and side features sell a weekly not the stale news in the official gazette.”93 Ou por
outra, noticiário e reclame são os dois lados da mesma moeda, vale dizer, são a
publicidade do curso reificado do mundo, cujo cimento é fornecido pelo lixo cultural
mercantilizado. Novamente em claro contraste com a maneira com que Bloom vê as
coisas (e ele as enxerga, eis o ponto, como de fato são), Stephen vivencia a expropriação
de suas capacidades criativas, a prostituição do saber e da arte e a desvitalização da
linguagem, a sua redução à comunicabilidade sensacionalista, como uma violência sem
tamanho. A crítica aqui, assim como em “Nestor”, se constitui a partir de dentro,
portanto, mais precisamente a partir do trabalho alienado vivenciado como experiência
negativa.
Joyce teve, é inegável, bastante tino em dedicar todo um episódio à indústria da
notícia vendável, que pela própria forma exclui de antemão toda e qualquer acumulação
histórica, sabotando por conseguinte a possibilidade mesma de qualquer experiência
formativa digna do nome. Acresce que a metáfora da cloaca, trazida à baila numa das
conversas do capítulo, exprime à perfeição o que se tornaram a língua e a cultura na
civilização da mercadoria94. É isso, juntamente com a experiência negativa da alienação
de suas forças produtivas, que possibilita a Stephen, que ali se vê constrangido a cortejar
os influentes, enxergar que para aquela turma bem-ajustada não há qualquer esperança
de salvação: “Nightmare from which you will never awake.”95 Ou seja, o despertar do
pesadelo em que se debatem os homens na pré-história da humanidade supõe tomar
91 U 7.121.
92 U 7.120.
93 U 7.120.
94 a mesma veia, Lacan dirá mais tarde que a civilização capitalista é um esgoto “La civilisation, c’est
l’égout”) e Adorno que a cultura – a cultura burguesa, que não pôde impedir que algo como Auschwitz
tivesse lugar – é puro lixo “Kultur ist Müll”).
95 U 7.138.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016 127
99 As múltiplas referências à violência das guerras coloniais britânicas no Ulysses foram trabalhadas por
Barbara Temple- hurston, “ he Reader as Absentminded Beggar: Recovering South Africa in Ulysses”,
James Joyce Quarterly, # 28.1 (1990), pp. 247-56; M. Keith Booker, Ulysses, Capitalism, and
Colonialism. Reading Joyce After the Cold War, Westport: Greenwood, 2000; e Leona oker, “‘Khaki
Hamlets Don’t Hesitate’: a Semiological Reading of References to the oer War and Concentration
Camps in Joyce’s Ulysses”, Journal of Modern Literature, # 38.2 (2015), pp. 45-58.
100 U 9.212.
101 U 9.212.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016 129
Buck Mulligan, a qual no momento certo também haverá de ser desbancada –, seus
interlocutores, a fim de contrariá-la, são levados a se expor, a adotar os lugares-comuns
de um idealismo extremo, beirando o filistinismo cultural em sua aversão pela
materialidade de ideais e valores. A reflexividade da obra aqui é levada a um ponto
elevado: Ulysses é um livro autoral, o que é óbvio, e que não obstante recompõe
matrizes narrativas das mais variadas, o que também é evidente, mas isso não justifica
amortizar tudo à biografia do autor, centrar o movimento todo no indivíduo Joyce, algo
tão estéril quanto reduzir toda a démarche joyciana à reunião (muito embora original e
fruto de ampla pesquisa) de materiais literários pré-formados, não passando o autor de
mero mediador/articulador dos mesmos (como já dito, a articulação que interessa se dá
sobretudo no nível dos pontos de vista narrativos). O próprio texto então sugere a
necessidade de dialetizar os extremos, o que leva a uma inclinação maior pela postura
materialista, e não, como sugere clicherescamente um dos interlocutores, a adotar uma
posição de equilíbrio, o caminho do meio. Pois é no fundo a capacidade da arte de
transpor de forma acurada a realidade vivida que está em jogo, razão pela qual no
melhor modernismo a preocupação com as realidades sociais e com a política não vem
nunca dissociada do experimentalismo, e vice-versa. Por isso a referência reiterada
diversas vezes (sobretudo neste capítulo) à Guerra dos Bôeres, aos campos de
concentração, à legitimação cultural da violência do imperialismo etc. Sem falar na
situação dilacerada do intelectual em contexto social e cultural retrógrado e regressivo,
em que pensamento autônomo e dependência pessoal direta quase não se distinguem.
Assim como em Machado de Assis ou em Brecht, e ao contrário do que sustenta a crítica
dominante, o parâmetro último da obra de Joyce vem sempre do mundo real, está na
própria vida, e não na obra sem si, cuja dimensão de consequência tem a ver,
justamente, com “sua fidelidade a uma matéria histórica que, para o grande artista,
nunca é o caso de falsear”102.
Com isso em mente, voltemos à teoria sobre Hamlet, pela qual Stephen expõe,
em modo performativo, e sem dúvida involuntariamente, a infecundidade do chiste
esclarecido, que dá muitas voltas e não leva aparentemente a parte alguma, bem como
estadeia a má infinidade da preleção lógica, do encadeamento de ideias sem qualquer
102 José Antonio Pasta, “ recht e o rasil: afinidades eletivas”, art. cit., p. 21.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016 130
ligação efetiva com a prática, e que por isso mesmo não se eleva acima da situação dada
senão superficialmente. De passagem, as reflexões voláteis durante a caminhada em
Sandymont Strand, em “Proteus”, já davam mostra disso. Trata-se como se sabe de
traço comum de intelectuais e cavalheiros ilustrados em contexto periférico, podendo
ser encontrado, de diferentes modos, no “mano capeta do liberalismo” e no homem do
subsolo dostoievskiano, no Brás Cubas, bem entendido, ou ainda no banqueiro
anarquista de Pessoa103. Os críticos costumam se dividir ao determinar se Stephen
realmente acredita ou não em sua teoria, e com isso não somente passam ao largo do
essencial como dão vazão a um debate ele mesmo estéril. O ponto – ou o drama – é
justamente que pouco importa naquele contexto se ele acredita ou não naquilo que
sustenta, porque as ideias de forma geral não estão ligadas a convicções, ou à
consistência, à consequência do sujeito, à exigência moderna de “pensar sempre em
acordo consigo próprio”104. Quando questionado a respeito, Stephen diz prontamente
103 A generalização desta hipótese é decerto problemática, sendo necessária análise caso a caso. Seria
interessante, por exemplo, aprofundar o problema dos deslocamentos ideológicos no Ulysses (em
particular no capítulo da Biblioteca) através do estudo de aproximações e diferenças específicas no uso
das ideais por Stephen e outras personagens romanescas afins, como Stiepan Trofímovitch, de Os
Demônios (1872), ou Martin Decoud, de Nostromo (1904). Um pouco à maneira de Hamlet, que volta ao
atrasado reino da Dinamarca depois de passar uma temporada em universidade estrangeira (outra
comparação possível, esta real, seria Alexander Puchkin, que também oscila entre a ideologia ilustrada
de origem francesa e a servidão prática imposta pelo contexto russo), as três personagens em questão,
após estada de estudos em Paris, retornam aos respectivos países periféricos de origem (Rússia, o
fictício Costaguana e Irlanda) adotando a postura de intelectuais presunçosos, cujo brilho – em geral
proveniente do privilégio de terem estudado fora, saberem francês etc. – em cada caso periclita em
função de não ter “materiais em que se apoiar” Roberto Schwarz, “Para a fisionomia de Os Demônios”
[1961], em A sereia e o desconfiado, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981, p. 72). Como resultado, as ideias
acabam rebaixadas a uma dimensão puramente estratégica, ou oportunista, em detrimento, por
exemplo, do real interesse teórico. Conscientes das contradições de sua condição (as quais, nos autores
em questão, reaparecem na forma com que elaboram os pontos de vista literários), cada qual joga com
as mesmas como pode; o jogo de espelhos, contudo, não parece ser exatamente o mesmo, e precisaria
ser propriamente determinado. Seja como for, em nenhum destes exemplos o círculo formativo se fecha,
nem tem como se fechar. Aqui, de novo, são os romances de maturidade de Machado de Assis, e a curva
deceptiva que descrevem, que permitem enxergar melhor o problema da impossibilidade de síntese, ou
do seu necessário fracasso. Cf. Paulo E. Arantes, “Conversa com um fil sofo zero à esquerda” [2000], in
Zero à esquerda, São Paulo: Conrad, 2004, p. 258: “Embora vivamos num país tomado por uma
ansiedade crônica com a sua formação nacional, sempre adiada, interrompida etc., imaginar-se alguém
protagonista de um Romance de Formação no Brasil é uma senhora enormidade. No modelo clássico,
em Goethe ou Hegel, a rigor s há ‘formação’ no pressuposto de uma espécie de racionalidade superior
governando a marcha das coisas, de sorte que a formação se completa pela conversão de uma espécie de
loucura subjetiva a essa marcha ascendente do mundo. Ora, no Brasil tal curva formativa deveria ser
descendente. Ou, por outra, segundo o metro patriarcal que nos pautava, seria o caso de se falar de uma
verdadeira deseducação. Não por acaso, foi isso o que Roberto [Schwarz] viu nos anos de iniciação e
viagem de um engendro da escravidão como o nosso rás Cubas.”
104 Immanuel Kant, Crítica da faculdade do juízo [1790], trad. V. Rohden e A. Marques, Rio de Janeiro:
não acreditar na hipótese cuja intricada construção acabara de expor nos mínimos
detalhes; na sequência, contudo, em pensamento, deixa entender que acredita, sim (se
não na redução biográfica propriamente dita, pelo menos, e era essa a convicção do
próprio Joyce, na necessidade de diminuir “o véu que separa a literatura e a vida”105),
mas que naquela situação talvez fosse preferível não acreditar (“I believe, O Lord, help
my unbelief. That is, help me to believe or help me to unbelieve?”106). Ao contrário dos
demais, que não veem (ou vivenciam) como problemática a dissociação, esta para
Stephen é experimentada como algo dramático. Toda a discussão, então, fora em vão? É
o sentimento que fica: “What have I learned? Of them? Of me?”107 Para que colocar suas
ideias no papel, se pergunta uma personagem reclusa e resignada de um conto de Joyce
(Mr. James Duffy, outro alterego do autor), ou por que diabos publicar o que quer que
seja num contexto em que as ideias não tem peso algum? “Para competir com
fraseadores, incapazes de pensar consecutivamente por sessenta segundos? Para se
submeter às críticas de uma classe média obtusa que confiou sua moralidade à polícia e
suas belas-artes a empresários?”108 Novamente, como em diversas partes do romance
(ou da obra de Joyce de modo geral) o capítulo da Biblioteca traz para o primeiro plano
a questão da inutilidade, em contexto retardatário e regressivo, da cultura formativa.
Daí a impressão superficial, ainda que concreta, de que todo o esforço contido na
produção e na leitura de um livro como o Ulysses não dê ao final em lugar algum: o
romance não passaria no fundo da exposição de uma situação aporética. Ao mesmo
tempo não resta dúvida que a necessidade de se achar uma saída para o presente –
acordar do pesadelo de uma história que não passa – está no centro das preocupações
do artista, tanto de Joyce como de Stephen. “I am tired of my voice, the voice of Esau.
My kingdom for a drink.”109 Para além do détournement fácil da frase célebre do
Ricardo III (“Meu reino por um cavalo!”), a inequívoca referência bíblica é a que
105 James Joyce, cit. em Arthur Power, Conversations with James Joyce, Chicago: The University of
Chicago, 1982, p. 98.
106 Cf. U 9.213-4.
107 U 9.215.
108 Cf. James Joyce, “A Painful Case”, em Dubliners, ed. cit., p. 164: “She asked him why did he not write
out his thoughts. For what, he asked her, with careful scorn.To compete with phrasemongers, incapable
of thinking consecutively for sixty seconds? To submit himself to the criticisms of an obtuse middle class
which entrusted its morality to policemen and its fine arts to impresarios?”
109 U 9.211.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016 132
interessa aqui: sua voz não é reconhecida pela autoridade paterna (o pai real é um fraco,
a nação irlandesa é dependente e atrasada e o círculo dos literatos ao qual almeja fazer
parte não passa de uma piada); a falha da identificação dá a nota do desterro (“The note
of banishment, banishement from the heart, banishment from home”110), que segundo
Stephen enformaria boa parte da obra de Shakespeare, mas que é igualmente – e agora
não há mais como não ver – a marca inconfundível da obra do próprio Joyce.
A exasperação da separação condiciona o desejo de fuga ou de indiferenciação.
Stephen anseia por um estado, momentâneo que seja, de despossessão e esquecimento
de si, está disposto a trocar todo aquele improfícuo debate pela bebedeira com os
comparsas no pub. A percepção do inferno de uma vida cotidiana insossa, a prisão do
sempre-igual, parece ainda mais aguda após a discussão: “Every life is many days, day
after day.”111 Não havendo espaço social ou relações interpessoais verdadeiras em que
possa se representar a própria vida, ou objetivar um lugar em que se sinta realmente
vivo, o próprio debate de ideias é opressivo – por falta de mediações reais, as
“polêmicas” são de fato estéreis –, e fora dele impera a insipidez da existência não
considerada (“out of the voulted cell into a shattering daylight of no thoughts”112),
marcada pelas compensações habituais, o chope no bar, o jogo de azar, a conversa fiada
sobre mulher e futebol... Entretanto, com as experiências negativas que vai acumulando
pelo caminho – a falência da comunicação, o cinismo esclarecido e a inautenticidade das
relações na torre Martello, novamente a impossibilidade cabal do diálogo, a
mediocridade difusa e a frustração no emprego na escola, o silêncio do mundo, a
culpabilidade e o horizonte de expectativas rebaixado durante a deriva na praia, a
mercantilização da literatura, o sensacionalismo e a venalidade ideológica na redação do
jornal, a superfluidade cultural e a desconexão entre ideias e vida na discussão da
Biblioteca –, Stephen sente e começa a enxergar mais claramente a necessidade de pôr
um fim ao pesadelo infernal: “Life is many days. This will end.”113 Entre a necessidade
objetiva de formar relações (mas de que tipo?) e “o ímpeto de asserção de uma
110 U 9.211.
111 U 9.213.
112 U 9.215.
113 U 9.214.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016 133
114 Raymond Williams, “Os exilados” [1982], em A. estrovski org.), Ensaios sobre James Joyce, Rio de
Janeiro: Imago, 1992, p. 107.
115 U 1.29.
116 U 16.537.
117 U 10.242.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016 134
inaugura o gênero no início dos tempos modernos. Paródia dos livros de cavalaria
dominantes até recentemente, a linguagem do Dom Quixote, crítica das linguagens
então existentes, simboliza o ocaso de toda uma época, bem como a inauguração de um
novo tempo do mundo. Semelhantemente a Cervantes e Shakespeare, Joyce se situa
num momento de transição, em que um novo mundo, pra bem ou pra mal, parece se
anunciar no horizonte – a composição do Ulysses, como dito, é contemporânea da
Primeira Guerra e da Revolução Bolchevique – e para o qual uma nova linguagem seria
necessária. No que diz respeito ao capítulo em questão, se nos ativermos a uma leitura
superficial, o que vem à tona é antes de tudo o fastio do virtuosismo técnico que tem em
si mesmo a única razão de ser – algo que décadas depois seria marca de certa literatura
do pós-guerra, notadamente o Nouveau Roman. A arte do pastiche é aqui levada ao
limite: em nove etapas não explicitamente diferenciadas, toda a literatura inglesa é
pastichada, o conjunto dando à luz uma língua nova, algo caótica (um jorro de gírias
modernas), ainda não de todo formada. Novamente oscilando entre o mero pastiche e a
paródia aberta, Joyce parece em muitos momentos propositalmente carregar na tinta,
exacerbando a reprodução de cada estilo, sem dúvida no propósito de não deixar pedra
sobre pedra. E de fato não sobra nada. Nada? Tudo somado, na superfície, pouca coisa
parece digna de nota em termos de conteúdo neste talvez mais longo do que necessário
capítulo. Lido isoladamente, parece de fato much ado about nothing. Inserido no
conjunto, em contrapartida, levando-se em consideração o encadeamento dos episódios,
“Oxen of the Sun” redimensiona alguns motivos centrais. A dialética de inanidade e
fertilidade que atravessa o livro ganha melhores contornos, e o tema do nascimento de
uma nova língua ou sintaxe articula-se ao da formação embrionária de um “novo”
Stephen. Na explicação fornecida pelo próprio Joyce: “Bloom is the spermatozoon, the
hospital the womb, the nurse the ovum, Stephen the embryo.”118 Traduzindo à nossa
maneira: fertilizado pela vida cotidiana reificada (incorporada, bem entendido, por
Bloom), gerado no ventre do trabalho alienado (o hospital representa entre outras coisas
os estudos de medicina, os quais aludem inequivocamente tanto à experiência frustrada
de Dedalus em Paris quanto ao Wilhelm Meister, que, como é sabido, largara mão do
118James Joyce, em carta a Frank Budgen, de 20 de março de 1920, em Letters, vol. 1, New York: Viking,
1966, p. 140.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016 135
teatro pela profissão mais séria e socialmente aceitável 119), Stephen, que aparece já
bastante embriagado no episódio, portanto fora de si, emerge pouco a pouco como
encarnação do artista “amadurecente”, artífice de uma nova linguagem para tempos
novos, ela mesma lugar-tenente de novas relações. A par disso, chamaria a atenção para
uma passagem significativa, em que Stephen é descrito como “the young poet who
found a refuge from his labours of pedagogy and metaphysical inquisition in the
convivial atmosphere of Socratic discussion”120. A discussão filosófica é refúgio e figura
em clara oposição à vida danificada, oscilando indefinidamente entre a frustração com o
trabalho submetido e o movimento errático e desordenado das ideias desenraizadas. Por
depauperada que seja, a prática coletiva da inteligência é posta explicitamente pelo
narrador como superior ao pensamento isolado do poeta solitário. Sem saída à vista,
contudo, ou na ausência de uma elaboração coletiva com vistas a uma saída, o dito
refúgio não passa de magra consolação, para não dizer escárnio. À luz da discussão
precedente, no episódio da Biblioteca, que não dera em lugar nenhum e que colocara em
evidência a mais cabal esterilidade das ideias, a observação do narrador, aqui, soa
irônica: a discussão socrática – a maiêutica! –, naquele contexto, ainda não é capaz de
parir nada de concreto ou efetivo, em claro contraste, portanto, com o que sugere o
episódio em questão.
“Circe” é quiçá o mais surreal capítulo do livro, ou melhor, surrealista avant la
lettre. Trata-se da Walpurgisnacht joyciana. Muito haveria que destacar aqui, mas
chamemos a atenção para o seguinte. O andar da prosa, assim como o de Bloom e
Stephen, é titubeante. Levado pela embriaguez, este último, após uma confusão num
bordel, se mete numa briga de rua. Tudo se passa como se o processo de desvinculação
desencadeado no primeiro episódio, do franquear do espírito dos “três mestres”
aludidos no início do livro (colonialismo britânico, catolicismo romano, nacionalismo
irlandês), tivesse que ter uma passagem ao ato mais ou menos violenta, muito embora
irrisória em aparência (quase uma paródia do ato autêntico), como que para marcar
simbolicamente um ponto de não retorno. Stephen usa o sarcasmo sem parelho (“He
119 Para além da história de Dédalos e Ícaro, pode-se conjecturar se a torre Martello não remeteria ainda à
Sociedade da Torre, à qual se submete Meister após o romance passageiro com o teatro.
120 U 14.414.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016 136
124 U 15.459.
de qualquer ordem, Bloom, que respeita em Stephen não apenas o talento nato, mas a
inteligência e o conhecimento acumulado, embora desconcertado com a inesperada
declaração do jovem, tenta reparar a situação, deslizando uma vez mais seus lugares-
comuns e, como de costume, fazendo abstração das relações reais de produção: quando
fala em trabalho é em sentido amplo, o mais vasto possível (“work in the widest possible
sense”), de modo que o labor literário, ou cerebral, também é trabalho, e trabalho
importante (“That’s or too. Important or .”), tão importante para o país quanto o
trabalho braçal de um camponês (“You both belong to Ireland, the brain and the
brawn. Each is equally importante.”). Bloom conclui o remendo enfatizando que, após
todo o dinheiro gasto e investido com sua educação (“after all the money expended on
your education”), Stephen deveria gozar do direito adquirido de viver do que escreve
(“right to live by your pen”), e cobrar o seu preço (“You are entitled to recoup yourself
and command your price.”), escrevendo, por exemplo, para... um jornal, sendo a
mediocridade jornalística do tempo novamente exposta na sequência. Bloom não se
conforma com o fato de um jovem talentoso e cultivado não dar para nada. Aos seus
olhos, Stephen não passa de um investimento que ainda tem chances de dar certo, quer
dizer, de trazer algum retorno. A noção do desperdício e do subuso da cultura
acumulada tem aqui sentido meramente capitalista: não dar em nada ou não servir para
nada, na cabeça de Bloom, significa não dar dinheiro. Por sua vez, o subemprego de suas
faculdades intelectuais e poéticas é, como dito, vivido por Stephen como uma mutilação,
por certo, mas não tem praticamente relação alguma com retorno financeiro ou
reconhecimento social em termos capitalistas. Ganhar a vida – que sardonicamente
supõe negá-la, perdre sa vie à la gagner – é uma necessidade à qual não tem como
escapar, mas que não tem nada a ver com a vida do pensamento, a arte e a poesia, muito
pelo contrário: a ensurdecedora prosa do mundo capitalista abafa por completo a sua
voz lírica e torna o pensamento algo irrisório e sem efeito, vale dizer, sem efeito prático.
Entediado com a avalanche de lugares-comuns e sem paciência para discutir ou trocar
ideias com o mediano interlocutor que tem diante de si, que sequer é capaz de entender
a ironia e o sarcasmo de suas colocações, Stephen põe abruptamente um fim àquela
conversa bovina: “We can’t change the country. Let us change the subject.”126
126 U 16.566.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016 138
***
127 Retomo aqui, resumidamente, as excelentes colocações de Terry Eagleton, “ ationalism: rony and
Commitment” [1988], em . Eagleton, F. Jameson & E. W. Said, Nationalism, Colonialism, and
Literature, Minneapolis/London: University of Minnesota, 2001, pp. 23-39. Agradeço a Cláudio R.
Duarte ter chamado a minha atenção para este texto.
128 Cf. James Joyce, cartas a Stanislaus Joyce, de 2 ou 3 de maio de 1905 e c. 12 de agosto de 1906, cit. em
129 José Antonio Pasta, “A forma angustiada de Lukács”, Folha de São Paulo, caderno Mais!
(13/08/2000), p. 25.
130 A importância do jogo dialético (ou melhor, aporético) entre Flaubert e Rimbaud na obra de Joyce,
notadamente no Portrait, foi trazida à tona e bem analisada por Franco Moretti, em The Way of the
World, ed. cit., pp. 242-44
131 Cf. Erich Auerbach, Mimesis. Dargestellte Wirklichkeit in der abendländischen Literatur [1946],
Tübingen/Basel: Francke, 1994, p. 483, trad. C. Heim: Mimesis. La représentation de la réalité dans la
littérature occidental, Paris: Gallimard, 1968, p. 512.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016 140
distúrbio, deslocamento, ensimesmamento e barreira, mas de tal forma que acaba por
indicar ou preludiar modos desarticulados de existência e desejo que transcendem os
limites de sua estruturação habitual.132
É digno de nota que ao final do percurso, em “Ithaca” e em “Penelope”, assim
como as personagens, e o leitor, também a linguagem parece cansada, para não dizer
esgotada, deixando de lado toda preocupação com as normas gramaticais no derradeiro
episódio. A tática da extenuação e a estratégia de compor uma obra por assim dizer em
decomposição – ou por outra, uma obra que se situe no interior do movimento geral de
dissolução das formas, tradicionais como burguesas – e ao mesmo tempo contra a
decomposição em curso comporta decerto um risco, a saber, o de ao final confirmar e
consolidar a totalidade reificada, a paralisia do desenvolvimento histórico total em prol
do movimento independente da economia fetichizada.133 No Ulysses, no entanto, a
insistência nas formas enregeladas de falar, pensar, sonhar e desejar – com as quais
aliás, não sem ambiguidade, termina o romance – pode ser comparada à imagem da
água que ao congelar ganha volume, criando fissuras no recipiente que a contém, até
atingir o ponto em que finalmente o arrebenta. A ruptura, contudo, fica sugerida, está
para além da obra, ou de qualquer representação, supondo antes o trabalho e a
inteligência do leitor, que deve refletir por conta própria e tirar as próprias conclusões
sobre os problemas levantados mas não solucionados pelo livro. Como nas melhores
peças de Brecht, tal “abertura” – ou suspensão do sentido – não é a das mil e uma
leituras e interpretações possíveis, todas igualmente válidas e por isso mesmo no fundo
estéreis, mas uma que tem a ver com uma pedagogia revolucionária, no sentido de que
abre as portas para a possibilidade de se imaginar uma intervenção política fora do
horizonte conceitual capitalista, e que conduza para além do presente infinitamente
expandido da sociedade da mercadoria. “Life is many days. This will end.”
(outono-inverno de 2016)
132Cf. Raymond Williams, “Os exilados”, art. cit., pp. 106 e 107.
133Explicitamente ligado ao bloqueio atual do processo histórico geral, o significante joyciano vem grifado
em Guy Debord, La société du spectacle [1967], Paris: Gallimard, 1992, § 175, p. 169.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016 141
PERIFERIA/PARALISIA
A figuração do inferno colonial no primeiro Joyce
Cláudio R. Duarte
terra”)1, como lemos num dos primeiros poemas – interrompidas subitamente por
influxos da natureza, da sociedade ou dos corpos apaixonados, após uma misteriosa
música descer à terra sombria, evocando a paixão e o encontro dos amantes. São
poemas delicados e musicais, escritos num estilo elisabetano tardio mas vivo, contendo
boas imagens e impressões, mesclando algum vocabulário arcaico aos temas do
decadentismo. O desenlace sombrio, por isso mesmo, não tarda. A curva do livro tem
seu clímax no poema XIV, sobretudo nos versos finais, na consumação do amor carnal:
“My breast shall be your bed /(...) Arise, arise” (“Meu peito será teu leito” / “Alça-te
mais, alça-te mais”2).
Uma alma que no entanto se elevava, como diz o próximo poema da série, “from
love’s deep slumber and from death” (“do mais fundo torpor de morte e amor”).3 A
curva do amor será agora descendente (“Sing about the long deep sleep / Of lovers that
are dead and how / In the grave all love shall sleep” – “Cante o longo torpor de amor/
De amantes mortos, lado a lado, / E como, em sua cova, o amor / vai repousar”)4... até
recomeçar e abrir-se para novos caminhos:
(“Fomos amantes fúnebres. Finda-se/ O amor, de paz e de prazer. / Agora, enfim, sejam
bem-vindas/ As estradas a percorrer.”5)
1 JOYCE, James. Música de Câmara/Chamber Music [1907]. (Ed. bilíngue.) São Paulo: Iluminuras, 1998,
p. 54-5, poema III (tradução, introdução e notas: Alípio Correia de Franca Neto; no que segue,
beneficiei-me de várias de suas notas e reflexões).
2 Idem, ibid., p. 76-7, poema XIV.
O livro que começara com a doce música e a descoberta do amor se depara então
com a “brown land” (“terras pardas”), sugerindo as ruas escuras da Dublin joyceana,
sugerindo que o contexto externo começa a contar:
– o que racha o cenário quase pastoril dos pequenos amantes privados da história.
Como se vê, os poemas se interligam numa estrutura narrativa, de base vagamente
histórica. Nesse sentido, lembram um pouco o ritmo das Fleurs du Mal, de Baudelaire,
em especial, aqui, os poemas que abrem os “Tableaux Parisiens”, Paysage e Le soleil.7
…)
(...) ]
They come out of the sea and run shouting by the shore.
tentando acordar” J YCE, James. Ulysses. London-New York: Penguin, 2000, p. 43. Trad. Caetano W.
Galindo: Ulysses. São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 137).
13 s termos entre aspas são de Virgínia W LF, “Ficção moderna” [1919] in: __. O valor do riso e outros
ensaios. São Paulo: Cosac Naify, 2015, p. 110-11.
14 Cf. os dois artigos de Raphael F. ALVARENGA publicados nesta edição de Sinal de Menos: “Forma,
estilo, pastiche – Considerações sobre o Ulysses de Joyce” e “Hamlets de farda não hesitam – Uma
leitura materialista do Ulysses”.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016 146
“Generous tears filled Gabriel's eyes. He had never felt like that himself towards
any woman but he knew that such a feeling must be love. The tears gathered more
thickly in his eyes and in the partial darkness he imagined he saw the form of a
young man standing under a dripping tree. Other forms were near. His soul had
approached that region where dwell the vast hosts of the dead. He was conscious
of, but could not apprehend, their wayward and flickering existence. His own
identity was fading out into a grey impalpable world: the solid world itself which
these dead had one time reared and lived in was dissolving and dwindling”.16
15 Um “segredo” revelado pelo próprio irmão do escritor, Stanislaus Joyce. Cf. para uma leitura formalista:
REYNOLDS, Mary T. Joyce and Dante: the shaping imagination. New Jersey: Princeton Univ., 1981;
LECUYER, Michelle Lynn. Dante’s literary influence in Dubliners: James Joyce’s modernist allegory of
paralysis. Iowa: Iowa State University, 2009 (Graduate Theses and Dissertations).
16 JOYCE, James. Dubliners. (Text, criticisms, and notes edited by Robert Scholes and A. Walton Litz).
New York: Penguin/The Viking Critical Library, 1996, p. 223. Aproveitaremos a tradução brasileira de
Hamilton Trevisan, com emendas (Dublinenses. São Paulo: Publifolha, 2003, aqui, p. 221-2): “Pranto
generoso invadiu-lhe os olhos. Nunca sentira algo assim por uma mulher, mas sabia que um sentimento
assim tinha que ser amor. As lágrimas cresceram nos olhos e ele imaginou ver na penumbra do quarto
um jovem parado sob uma árvore encharcada. Outras formas estavam próximas. Sua alma acercava-se
da região habitada pela vasta legião dos mortos. Pressentia, mas não podia apreender suas existências
errantes e cintilantes. Sua própria identidade desaparecia num mundo cinzento e impalpável. O próprio
mundo sólido que aqueles mortos um dia criaram, e no qual viveram, dissolvia-se e acabava”.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016 147
XII, p. 90.
19 CONRAD, Joseph. Heart of Darkness. Harmondsworth: Peguin, 1978, p. 83.
20 termo foi usado por Joyce numa carta ao editor do livro: “A letter to Grant Richards, May 5, 1906” in:
__. Dubliners, op. cit., p. 262.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016 148
tenacidade; os grandes gestos nobres arruinados pela fraqueza da carne”.21 Mas então
teríamos aqui menos “imagens do tempo” (para lembrar um conceito caro a Deleuze) do
que imagens de um certo espaço homogêneo e abstrato, de mobilidade rigidamente
controlada, dominada pela oculta “metafísica” do capital. A matéria concreta é
trabalhado por um certo mecanismo de abstração literária, que a filtra e a descolore. São
contos “atmosféricos”, como observa Vizioli, em que o “espaço se sobrepõe ao tempo”22,
tal como o simbolismo ao realismo, sem deixarem de estar escorados numa “relativa
complexidade das personagens” e no acúmulo de tensões entre esses momentos.
Contudo, em vez da ação exemplar ou do grande evento particular num processo
cumulativo, típicos do realismo, temos uma espécie de “dispensa da ação”: o
impedimento e o malogro, a repetição e a morte – num espaço social estruturado
abstratamente pelas formas do Capital. Há nesses contos um conflito fundamental entre
o local e o universal, a matéria banal e o voo generalizante, mítico-alegórico, que a
forma literária lhes confere e lhes tira o chão histórico-concreto. Daí então o processo de
liquidação do sujeito, via de regra dividido pela antinomia de agitação frenética e
arrebatamento anímico, por um lado, e “pobreza e inércia” geral, de outro, tal como em
“After the race”: a “opressão” vivida localmente é temperada pela busca incessante “da
notoriedade e do dinheiro”, terminando porém com o protagonista irlandês depenado
no jogo pelos seus “amigos infernais”.23 Outro dos expoentes dessa contradição é
Gallaher (“A Little Cloud”), um escritor irlandês “apressado”, que vive no Continente
entre o dinheiro, a fama e o luxo proporcionados pelo jornalismo sensacionalista que
pratica, por outro lado, uma vida sem nenhuma paixão verdadeira – dissolvida que foi
pelo valor de troca, algo sinalizado quando Gallaher diz, por exemplo: “Pretendo casar
com o dinheiro. Ela deverá ter uma gorda soma no banco ou não servirá para mim”.24
Ou, na outra ponta, sinalizado quando o Pequeno Chandler se comporta abstratamente
como uma sombra ou duplo de Gallaher, vendo na própria esposa Annie um par de
olhos indiferentes, tão “inconsciente” e com “jeito de dama” (“lady-like”), “sem paixão
21 BURGESS, Anthony. Homem comum enfim [1965/1982]. (Trad. José A. Arantes). São Paulo:
Companhia das Letras, 1994, p. 34-5.
22 VIZIOLI, op. cit., p. 42.
nem enlevo”, um par de “olhos de [uma] fotografia”.25 Nessas personagens toda ação se
torna instrumental, encarcerada na lógica abstrata da troca. O mesmo na degradação do
amor contida na ação de aproveitadores em “The boarding house” (“A pensão”) e “Two
gallants” (“Dois galantes”). Em “Grace”, resta ao padre Purdon, como um “contabilista
do espírito”, ressignificar a palavra de Jesus para seus “clientes” burgueses obrigados a
“viver no mundo e, em certa medida, para o mundo”: “and in this sentence He designed
to give them a word of counsel, setting before them as exemplars in the religious life
those very worshippers of Mammon who were of all men the least solicitous in matters
religious”.26 A dissolução de todas as ideias e qualidades pelo valor de troca não poderia
ficar mais evidente. É o que se converte finalmente em linguagem: a “escrupulosa
maldade” que Joyce intentava aqui retratar vem vertida num estilo de prosa
“deliberadamente aplainado, anêmico, econômico”.27 Muitos intérpretes perdem essa
passagem incessante do tempo concreto (irlandês) ao espaço social abstrato ditado pelo
Capital enquanto território conflituoso, sem se darem conta de suas implicações para a
forma e o entrecho desses contos. É o que nós veremos melhor na análise de
“Counterparts”, outro conto exemplar de Dubliners. Aqui, o nervo da experiência social
e literária de Joyce, que mais tarde o levaria às personagens de Ulysses, dessa vez
oscilando dialeticamente entre banalidade e exuberância verbal, factualidade naturalista
e excessos de todo tipo.28
28 Cf. dem, ibidem; e ALVARE GA, “Hamlets de farda não hesitam”, op. cit.
29 A referência primeira para este tema será sempre Roberto SCHWARZ, “As ideias fora do lugar” in:__.
A colônia irlandesa, como lembra Marx, era uma fonte primordial de riqueza da
aristocracia e de todo o império industrial britânico, fornecendo-lhe matérias primas,
mão de obra barata e mercados consumidores abundantes. Por isso, os movimentos
emancipatórios foram sempre controlados e violentamente reprimidos. Como dizia por
volta de 1870: “São leis de emergência geral – com exceção de breves intervalos – que
compõem a carta constitucional irlandesa”.30 “Desde 1793 o governo inglês, com um
pretexto qualquer, suspendeu regular e periodicamente a vigência da lei de habeas
corpus na Irlanda e, na prática, todas as leis, salvo a da força bruta.” Assim, completa
Marx, “em um país de liberdades burguesas, as pessoas são sentenciadas a 20 anos de
trabalhos forçados por delitos puníveis com 6 meses de prisão, no país dos quartéis”.31
30 MARX, Karl. “El gobierno britanico y los prisioneros fenianos” 1870) in: Marx & Engels. Sobre el
sistema colonial del capitalismo. Buenos Aires: Ediciones Studio, 1964, p. 320.
31 Idem, ibidem, p. 317. Cf. as reflexões do próprio JOYCE em De santos e sábios, op. cit.
32 E GELS, F. “Acerca el problema irlandês” [1882] n: Marx & Engels, op. cit., p. 329-30.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016 151
handed. His body ached to do something, to rush out and revel in violence. All the
indignities of his life enraged him…”.33 Compulsivamente, assim, o movimento surge
como uma espécie de desregramento de si, seja na bebedeira e na camaradagem das
rodadas de bebida pagas com o sacrifício de seu relógio penhorado, seja nos “olhares de
conquistador” atirados às mulheres (as “empregadinhas de escritório” ou a atriz
sedutora e bem vestida do Tívoli), ou ainda na disputa de braço de ferro com o jovem
artista inglês Weathers, para o qual aliás perde duas vezes. O desejo incontido
finalmente vai ao ápice e ganha uma força irreprimível ao chegar em casa, quando ele
sente a ausência da esposa (que havia ido à igreja) e da comida quente de todo santo dia,
instante em que se desforra do esbulho diário sofrido espancando o próprio filho, que
apenas implora e reza por um limite. O caráter repetitivo, abstrato e intrinsecamente
violento de seu trabalho penetra, segundo a lógica construída pelo conto, no caráter
total de sua vida, tornando-se ele próprio a cópia, a imitação, a “contraparte”
desregrada do seu outro, o Capital. Noutras palavras, o irlandês Farrington é o duplo
materializado de seu patrão norte-irlandês, ambos corporificando a relação abstrata
capital-trabalho. Em essência ambos tratam de garantir a propriedade privada e a
ordem mercantil, o que suprime todo essencialismo proletário ou chauvisnismo dessas
páginas. Mais que as relações políticas nacionais entre ingleses, irlandeses e norte-
irlandeses, portanto, a obra aponta para essa matriz socioeconômica cega.34 Farrington
parece invejar secretamente a posição do patrão, chegando a sonhar com as mulheres
perfumadas e de alta classe de que o outro dispõe, a senhora Delacour, substituída
simbolicamente pela atriz bem vestida do Tívoli (acima mencionada): o concreto, como
mera ilusão, desmaia na abstração de clichês supercoloridos e imagens-fetiche da belle
époque. Mais que isso, Farrington também imita a fala e o sotaque de seu outro, e tem a
mesma vontade de insultar e golpear – apenas contida pelo decoro e o contrato entre
“iguais” que rege a relação salarial. Ambos são despersonalizados: o patrão como uma
“cabeça de ovo” ou “cabeça de boneco”, com gestos furiosos que o igualam em certo
33 JOYCE, Dubliners, op. cit., p. 90 “Counterparts”); trad.: p. 89 “Contrapartidas”): “Seu corpo ansiava
por fazer alguma coisa: precipitar-se para a rua e desabafar na violência. Todas as afrontas que sofrera
na vida vinham-lhe à memória e o encoleirizavam...”
34 Aqui patinam, a meu ver, as leituras “p s-colonialistas” de Joyce, apesar das boas sacadas políticas da
forma e do conteúdo, que superam o mero formalismo. Cf. ORR, Leonard. (ed.) Joyce, Imperialism, &
Postcolonialism. New York: Syracuse University Press, 2008.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016 153
ponto a uma “máquina elétrica”; Farrington como um corpo lento e preguiçoso, de olhos
“pesados”, “sujos” e “protuberantes” – um “rufião impertinente” ou um simples “nada”
(um trabalhador incapaz de terminar uma cópia, um homem que “não sabe nada”35).
Farrington é, por isso mesmo, várias vezes nomeado pelo narrador de maneira
genérica e impessoal como “the man”.36 Sua conduta entra no molde circular do conto:
partes contra partes que se batem, se anulam e repetem o sempre-igual. E que aparece
como um circuito fechado de violência, frustração, bebedeira, mais frustração, mais
violência... O conto anterior, “A Little Cloud”, como que já o prefigurava, no grito
rancoroso que o Pequeno Chandler dá contra o filho chorando em seu colo, após a
noitada com seu sósia medíocre, Gallaher. Nesse sentido, ambas as personagens
reproduzem o quinto círculo do inferno, o dos iracundos e rancorosos 37, ou o nono, o
dos traidores de parentes. O percurso de Farrington do escritório aos bares do entorno,
diga-se de passagem, quase perfaz um círculo no espaço das ruas e das margens do rio
Liffey (cf. mapa elaborado por Gifford a seguir).
aquele “accidïoso fummo” termo traduzido por talo Mauro como “névoa aborrecida”). DANTE
ALIGHIERI, Inferno, Canto VII, v. 123 (Trad.: A divina comédia. Inferno. Ed. bilíngue. São Paulo: Ed.
34, 1998, p. 65). Outra referência para tal nuvem seria o Canto XXVI, v. 39.
38 JOYCE, Dubliners, p. 95; trad., p. 94.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016 154
“Farrington's eyes wandered at every moment in the direction of one of the young
women. There was something striking in her appearance. An immense scarf of
39Cf. WILLIAMS, op. cit., p. 399-405; BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire - Um lírico no auge do
capitalismo. Obras escolhidas III. São Paulo: Brasiliense, 1989. E também o bom ensaio de SCOTT,
Clive. “Simbolismo, decadência e impressionismo” in: radbury, Malcom e McFarlane, James.
Modernismo - guia geral [1976]. São Paulo: Companhia das Letras, 1989; Sobre a pintura
impressionista: SCHAPIRO, Meyer, Modern Art (19th & 20th Centuries – Selected Papers). New York:
George Braziller, 1979, p. 144-5, especialmente.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016 155
peacock-blue muslin was wound round her hat and knotted in a great bow under
her chin; and she wore bright yellow gloves, reaching to the elbow. Farrington
gazed admiringly at the plump arm which she moved very often and with much
grace; and when, after a little time, she answered his gaze he admired still more
her large dark brown eyes. The oblique staring expression in them fascinated
him. She glanced at him once or twice and, when the party was leaving the room,
she brushed against his chair and said O, pardon! in a London accent. He
watched her leave the room in the hope that she would look back at him, but he
was disappointed.”40
40 JOYCE, Dubliners, op. cit., p. 95; Trad. (corrigida), p. 93-4:. “ s olhos de Farrington dirigiam-se a todo
instante para uma das jovens. Havia algo de provocante em sua aparência. Uma grande echarpe de
musselina azul enrolava-se em torno do chapéu, terminando num laço sob o queixo. Suas luvas eram
longas e de um amarelo vivo. Farrington admirava-lhe os braços roliços, que ela movia a todo instante e
com muita graça. Pouco depois, ao ser correspondido, Farrington admirou ainda mais seus olhos
grandes e castanhos escuros, cuja expressão oblíqua o fascinava. Ela o fitou uma ou duas vezes e, ao
deixar a sala, esbarrou em sua cadeira, exclamando com sotaque londrino: Oh! Pardon! Farrington
assistiu-a sair da sala, na esperança de que ela voltasse a olhar para ele, mas foi desapontado.”
41 dem, ibidem, p. 97; trad., p. 95: “mulherzinha de rosto comprido, que o atazanava quando estava
country (...). Look at all the factories down by the quays there, idle!”44. Isto é, quem
manda aqui é o movimento do capital, e a grande ação esperada não é política ou social,
mas antes o retorno do fluxo financeiro-industrial à Irlanda, se preciso com saudações
ao rei inglês. Estamos no oitavo círculo, o dos trapaceiros: “Lá o não é sim quando o
dinheiro dita”.45 Em suma, a política torna-se um tipo de ideologia estética, e não por
acaso a agitação partidária promovida, com o raminho de hera na lapela do casaco,
termina na leitura de um poema contendo um elogio ambíguo a Parnell (um dos líderes
do movimento pela independência), de resto funcionando ironicamente como crítica da
práxis congelada e impotente de tais homens partidos. A partir da obra de Joyce,
Eagleton ventila também uma relação peculiar entre a forma da mercadoria e a forma
geral, pré-individual, do sujeito periférico: “Para os sujeitos subjugados pelo império, o
indivíduo é menos o agente esforçado de seu próprio destino histórico que algo vazio,
impotente e sem nome; só pode ser pouca a sua confiança realista na beneficência de
um tempo linear que está sempre do lado de César. Vivendo letargicamente, numa
realidade social estéril, o sujeito colonizado preferirá esconder-se na fantasia e na
alucinação, o que se presta evidentemente mais à prática modernista que à realista”.46
Como vimos, o material da experiência histórica, a vida particular de suas personagens
mais “típicas” nesse contexto neocolonial de crescente mercantilização, como na lírica
de Baudelaire ou no último Machado de Assis, começa a perder seus contornos e a se
dissolver na esfera prototípica do mito, da fantasia e da alegoria. A intercambialidade e
a repetição estúpida funcionam como criptogramas do domínio abstrato e objetivado
dos processos de trabalho e troca modernos.47 O traço “indeterminado” da arte moderna
44 JOYCE, Dubliners, p. 131, “ vy Day in the Committee Room”; rad. corrigida), p. 130 “Dia de hera na
lapela”): “Como eu disse ao velho Ward, o que queremos neste país é capital. A vinda do rei pode
significar um afluxo de dinheiro. ...) Ve a todas essas fábricas paradas ao longo do cais!”
45 DANTE, op. cit., Inferno, Canto XX , v. 42, p. 146: “del no, per li denar, vi si fa ita”.
47 Idem, ibidem, p. 318-9: “o contínuo esvaziamento do significado imanente dos ob etos abre caminho
para alguma totalização fantástica, de modo que num mundo desprovido de significação e subjetividade,
o mito pode fornecer exatamente os esquemas ordenadores, redutivos, necessários para extrair alguma
unidade do caos. (...) Como a mercadoria, a escrita de Joyce capturará qualquer conteúdo antigo a fim
de se perpetuar”, mas, como observa o crítico inglês, com a intenção corrosiva da ironia e da alegoria: “o
sistema simbólico, em suma, carrega dentro de si as forças de sua própria desconstrução. (...) É a forma-
mercadoria que ao mesmo tempo produz uma identidade espúria entre objetos disparatados e gera um
fluxo instável e aberto que ameaça derrubar toda essa simetria escrupulosamente concebida” ibid., p.
320).
[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016 157
Por outro lado, o círculo formado pelo enredo é, por esta razão, o de um pequeno
inferno particular dissolvente; depois da briga com o patrão, ele anuncia-se claramente:
“o senhor Alleyne não lhe daria um minuto de descanso; sua vida seria um inferno”.49
Mas o controle exercido pelo poder no território garantirá que assim seja para toda uma
sociedade. Após a circulação pelos bares, as rodadas de whisky, a conversa reiterada
sobre o episódio do dia, a perambulação pela cidade, enfim, após o movimento que
reproduz a rotina degradante, Farrington chega aonde mora em Shelbourne Road, um
subúrbio da classe média baixa, contraposto à agitação do centro.
Nesse ponto, “he steered his great body along in the shadow of the wall of the
barracks. He loathed returning to his home”.50 Talvez porque ali ficava também a
caserna das tropas do Exército Britânico da Divisão Sul de Dublin 51 – garantidoras do
estado de exceção vigente, da lei e da ordem imperial, o centro de toda a paralisia
histórica do país. O escrivão soldado-guardião da propriedade encontra sua verdadeira
sombra inconsciente. Esta a contraparte mais oculta de Farrington e de Dublin: a
“cidade dos quartéis”, como Marx a denominara.
(Julho-Novembro 2016)
48 Cf. o agudo comentário de Adorno: “a abstração torna-se para a obra de arte moderna a indeterminação
irritante daquilo e para aquilo que ela deve ser, a cifra do que é. Tal abstração nada tem em comum com
o caráter formal das antigas normas estéticas, por exemplo, com as normas kantianas. É antes
provocadora, desafio à ilusão segundo a qual ainda seria a vida e, ao mesmo tempo, o meio daquela
distanciação estética, que já não é conseguida pela fantasia tradicional. Desde a origem, a abstração
estética, ainda rudimentar em Baudelaire e alegórica como reação ao mundo tornado abstrato, foi antes
uma interdição de imagens. Isso vale para o que os provincianos esperam finalmente salvar sob o nome
de mensagem, isto é, da aparição como algo de sensível: depois da catástrofe do sentido, a aparição
torna-se abstrata”. (Theodor W. ADORNO, Ästhetische Theorie. in: __. Gesammelte Scriften, Band 7.
Frankfurt am Maim: Suhrkamp, 1971, p. 39-40; Trad. Artur Morão: Teoria estética. Lisboa: Edições 70,
1993, p. 34).
49 JOYCE, Dubliners, op. cit., p. 92, trad., p. 90-91.
50 Ibid., p. 97; trad., p. 95: “Ele arrastou o pesado corpo à sombra pro etada pelos muros do quartel.
O TRABALHO EM MARX É
ONTOLÓGICO, #SQN
Crítica categorial da forma limitada da atividade humana
APRESENTAÇÃO
A citação com a qual abrimos este artigo é uma provocação. Ela foi retirada da
Laborem Exercens ou Sobre o Trabalho Humano, encíclica escrita por João Paulo II3, o
desenvolvida não apenas não atenta contra as lutas dos trabalhadores mas as fortalece
ao despojá-la de seus preconceitos, facilitando a conjugação de forças com objetivos
emancipatórios em torno do fim comum: a superação do capitalismo e o
estabelecimento de uma sociedade emancipada. Deste modo, o fim do trabalho não
aparece como retórica que visa afirmar a vitória eterna da economia mercantil, mas
antes como condição necessária para a superação desta forma de relação social.
Antes de entrarmos nesta crítica da categoria trabalho, é necessário, no entanto,
contextualizá-la brevemente na teorização de Marx. Este apresenta um aspecto
contraditório em seu trato da questão: por vezes em seus escritos a categoria trabalho
aparece como atividade produtiva consciente e, portanto, atemporal, enquanto em
outras vezes ele aparece como uma categoria histórica e negativa que estaria fadada a
desaparecer. Esta contextualização firmemente apoiada em citações de Marx será feita
nos três primeiros subtítulos deste trabalho, trazendo a vantagem de ajudar o leitor
apegado à leitura tradicional a despir-se de seus preconceitos para que possa dar devida
atenção à análise categorial que se mostrará a seguir, análise esta possibilitada
principalmente pelos desenvolvimentos da assim chamada “Nova Crítica do Valor”. Esta
análise da categoria trabalho inicia-se no quarto subtítulo e constitui ela mesma um
artigo que poderá ser lido independentemente, visto que toda a fundamentação básica
da crítica lá se encontra numa linguagem simplificada. Esta opção visa unicamente
facilitar a leitura àquele menos familiarizado com o tema ou com menos tempo para o
estudo, mas traz consigo o inconveniente de não apresentar as passagens analisadas nos
subtítulos anteriores e nem as conclusões mais profundas alcançadas nos posteriores.
No quinto subtítulo tratamos brevemente do surgimento conjunto, tanto do
ponto de vista histórico quanto do ponto de vista lógico, do trabalho e de muitas das
demais categorias fundamentais de nossa atual realidade – o que as revela como
categoria própria de sociedades onde a forma mercantil já se instalou como modo de
relação social. No sexto subtítulo, penetramos de modo igualmente breve em questões
mais complexas que relacionam elementos diversos como o fim do trabalho e das
categorias sociais surgidas a partir da produção mercantil, a crise atual e a noção de
abstração real. Esta parte é certamente a mais complicada de todo este artigo, mas
também a que carrega conclusões de maior alcance.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016 161
A produção de valores de uso ou bens não muda sua natureza geral por
se realizar para o capitalista e sob seu controle. Por isso, o processo de
trabalho deve ser considerado de início independentemente de qualquer
forma social determinada. Antes de tudo, o trabalho é um processo entre
o homem e a Natureza, um processo em que o homem, por sua própria
ação, media, regula e controla seu metabolismo com a natureza. Ele
mesmo se defronta com a matéria natural como uma força natural. Ele
põe em movimento as forças naturais pertencentes à sua corporalidade,
braços e pernas, cabeça e mão, a fim de apropriar-se da matéria natural
numa forma útil para sua própria vida. Ao atuar, por meio desse
movimento, sobre a Natureza externa a ele e ao modificá-la, ele
modifica, ao mesmo tempo, sua própria natureza. Ele desenvolve as
potências nela adormecidas e sujeita o jogo de suas forças a seu próprio
domínio. Não se trata aqui das primeiras formas instintivas, animais, de
trabalho. O estado em que o trabalhador se apresenta no mercado como
vendedor de sua própria força de trabalho deixou para o fundo dos
tempos primitivos o estado em que o trabalho humano ainda não se
desfez de sua primeira forma instintiva. Pressupomos o trabalho numa
forma em que pertence exclusivamente ao homem. Uma aranha executa
operações semelhantes às do tecelão, e a abelha envergonha mais de um
arquiteto humano com a construção dos favos de suas colméias. Mas o
que distingue, de antemão, o pior arquiteto da melhor abelha é que ele
construiu o favo em sua cabeça, antes de construí-lo em cera. No fim do
processo de trabalho obtém-se um resultado que já desde o início deste
existiu na imaginação do trabalhador, e, portanto, idealmente. Ele não
apenas efetua uma transformação da forma da matéria natural; realiza,
ao mesmo tempo, na matéria natural seu objetivo, que ele sabe que
determina, como lei, a espécie e o modo de sua atividade e ao qual tem
de subordinar sua vontade4.
Marx aqui coloca a distinção entre o trabalho instintivo, dos animais, e o trabalho
humano como atividade consciente, ou seja, orientada por um objetivo anteriormente
4 MARX, Karl. O Capital: Critica da Economia Política, volume 1. São Paulo: Abril Cultural, 1983, p. 149-
150.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016 162
entoando a elas sua própria melodia!”5 e assim mostrar o descompasso entre o conceito
e a crença no conceito, descompasso esse que revela que a fixação na categoria trabalho
não é outra coisa senão o ponto nodal a partir do qual o fetichismo da mercadoria
dominou o marxismo.
5 MARX, Karl. Crítica da Filosofia do Direito de Hegel – Introdução. São Paulo: Boitempo, 2010, p. 148.
6 MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã. São Paulo: Boitempo, 2007, p. 63, grifo nosso.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016 164
pertencente a uma classe, que assim só se comporta enquanto classe pela necessidade de
luta. A noção pré-definida de um indivíduo pertencente à classe trabalhadora parece
aqui ser suplantada por uma definição circunstancial de luta, conceito mais amplo e de
menor rigidez do que o costumeiramente utilizado. Para alguns talvez seja possível
tomar esta passagem, apesar de sua clareza, como erro ou descuido de Marx. Ocorre que
esta, no entanto, não se trata de uma passagem isolada, como podemos ver
anteriormente na mesma obra, quando Marx e Engels tratam da oposição entre cidade e
campo:
Mais uma vez a identificação negativa do trabalho como tal, ou seja, sem
ressalvas, com a propriedade privada. O mesmo se dá em outra parte, onde Marx diz
sobre a concorrência entre Estados Nacionais que “Essas diferentes formas são outras
tantas formas da organização do trabalho e, assim, da propriedade”8. Frente a essas
citações todas se poderia ainda querer argumentar, mas não sem forçar a interpretação,
que Marx está implicitamente criticando a divisão e organização do trabalho e não o
trabalho enquanto trabalho. Neste sentido, no entanto, a passagem abaixo suprime
qualquer dúvida:
7 MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. Op. Cit., p. 52, grifo nosso.
8 De modo menos claro encontramos na mesma página “A grande indústria torna insuportável para o
trabalhador não penas a relação com o capitalista, mas sim o pr prio trabalho”. MARX, Karl & ENGELS,
Friedrich. Op. Cit., p. 61.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016 165
9 MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. Op. Cit., p. 72, grifo nosso.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016 166
Podemos por toda a obra de Marx coletar passagens semelhantes, mas talvez a
mais clara e detalhada afirmação do trabalho como negatividade derivada e criadora da
propriedade privada se encontra na crítica que o jovem Marx faz à Friedrich List:
política). São Paulo: Boitempo; Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2011, p. 255-256, grifo nosso.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016 167
atacar isto não apenas como um estado material das coisas, mas também
como atividade, como trabalho. É um dos maiores mal-entendidos falar
de um trabalho humano livre, social, trabalho sem propriedade privada.
“Trabalho” em sua essência é não-livre, inumano, atividade não social,
determinado pela propriedade privada e criador da propriedade privada.
Por isso a abolição da propriedade privada será realidade apenas quando
for concebida como a abolição do “trabalho” (uma abolição a qual, claro,
se tornou possível como resultado da atividade material da sociedade e a
qual deve de modo algum ser concebida como a substituição de uma
categoria pela outra). Uma “organização do trabalho”, assim, é uma
contradição. A melhor organização que o trabalho pode dar é a presente
organização, livre competição, a dissolução de todas suas aparentemente
anteriores “organizações” sociais13.
Qualquer uma das passagens acima deve já ser suficiente para que o marxista
apegado à categoria trabalho comece a se questionar sobre este pressuposto, esse a
priori do qual parte. Nesta específica citação da crítica ao List, a crítica poderia se dirigir
diretamente a qualquer uma das organizações que se consideram “revolucionárias” e
que dirigem toda sua atividade a partir deste que é, nas palavras do próprio Marx, um
dos “maiores mal-entendidos”.
Como veremos no próximo ponto, em passagens do Grundrisse, Marx retoma a
interpretação do trabalho como categoria histórica e em uma delas até desenvolve os
contornos essenciais de uma crítica categorial ao trabalho. Aqui, no entanto, apenas
13 A clareza da posição de Marx neste texto contrastando com a edição em Inglês com glosas do Partido
Comunista, que se vê obrigado a “interpretar” esta passagem de Marx no sentido de que ele falaria
apenas do trabalho alienado, obrigam-nos a trazer o original em alemão, para afastar qualquer dúvida
de tradução:„Was setzt man z. . mit dem Arbeitslohn fest? Das Leben der Arbeiter. Man setzt weiter
damit fest, dass der Arbeiter der Sklave des Kapitals, dass er eine „Ware” ist, ein auschwert, dessen
höherer oder niedrigerer Stand, Steigen oder Fallen, von der Konkurrenz, von der Nachfrage und Zufuhr
abhängt, man setzt damit fest, dass seine Tätigkeit nicht eine freie Äußerung seines menschlichen
Lebens, dass sie vielmehr ein Verschachern seiner Kräfte, eine Veräußerung (Verschacherung)
einseitiger Fähigkeiten desselben an das Kapital, mit einem Wort, dass sie „Arbeit” ist. Man vergesse es
nun. Die „Arbeit” ist die lebendige Grundlage des Privateigentums, das Privateigentum als die
schöpferische Quelle seiner selbst. Das Privateigentum ist nichts als die vergegenständlichte Arbeit.
Nicht allein das Privateigentum als sachlichen Zustand, das Privateigentum als Tätigkeit, als Arbeit,
muss man angreifen, wenn man ihm den Todesstoß versetzen will. Es ist eines der größten
Missverständnisse, von freier, menschlicher, gesellschaftlicher Arbeit, von Arbeit ohne Privateigentum
zu sprechen. Die „Arbeit” ist ihrem Wesen nach die unfreie, unmenschliche, ungesellschaftliche, vom
Privateigentum bedingte und das Privateigentum schaffende Tätigkeit. Die Aufhebung des
Privateigentums wird also erst zu einer Wirklichkeit, wenn sie als Aufhebung der „Arbeit” gefasst wird,
eine Aufhebung, die natürlich erst durch die Arbeit selbst möglich geworden ist, d. h. durch die
materielle Tätigkeit der Gesellschaft möglich geworden, und keineswegs als Vertauschung einer
Kategorie mit einer andern zu fassen ist. Eine „ rganisation der Arbeit” ist daher ein Widerspruch. Die
beste Organisation, welche die Arbeit erhalten kann, ist die jetzige Organisation, die freie Konkurrenz,
die Aufl sung aller frühern scheinbar „gesellschaftlichen” rganisationen derselben. MARX, Karl. Über
F. Lists uch „Das nationale System der politischen Ökonomie”. 1845, disponível em
http://www.marxists.org/deutsch/archiv/marx-engels/1845/list/flist.htm. Acessado em 17/02/2016.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016 168
para fecharmos este ponto que visa tão simplesmente demonstrar que a compreensão de
Marx sobre o trabalho não se reduzia a uma ontologização deste último, vale trazer uma
passagem por ele escrita em seus últimos anos. Assim também se evita qualquer
argumentação de que ele em algum momento após o início dos Grundrisse tenha
“descoberto” o trabalho como categoria trans-histórica. Em 1875, Marx escreve a Crítica
ao Programa de Gotha, uma carta endereçada para os líderes do partido social
democrata de Eisenach, onde Marx critica, muitas vezes de maneira irônica, o programa
que por eles seria proposto para se fundir com os lassalianos. Tal programa contém uma
passagem onde se lê que “a emancipação do trabalho tem que ser obra da classe
operária, diante da qual todas as demais classes não constituem senão uma massa
reacionária”, e a qual Marx comenta debochadamente como segue abaixo, mostrando o
quão tola para ele é a ideia de que o fim revolucionário seja “emancipar o trabalho”:
Como dissemos acima, em pelo menos uma passagem dos Grundrisse, uma
especialmente longa, Marx delineia alguns dos aspectos essenciais de uma crítica
categorial do trabalho. Esta passagem, de difícil compreensão, será analisada
cuidadosamente neste ponto, visando evidenciar seu significado. Enfatizamos desde já
que as citações utilizadas daqui para frente constituem um texto contínuo, uma
começando onde termina a anterior, sem supressões. Sua primeira parte é muito
significativa, referindo-se diretamente ao tema a ser tratado:
14 MARX, Karl. “Crítica ao Programa de Gotha” in Karl Marx e Friedrich Engels, Textos, Vol. 1. São Paulo:
Edições Sociais, 1977, p. 233.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016 169
aparecem como “trabalho” que produz “valor”. Como todos os valores de uso diferentes
entre si se resumem na abstração do valor, todas as diferentes atividades produtivas se
resumem na abstração trabalho. É por isso que Marx continua:
Na passagem acima Marx declara expressamente que, pelo menos por um lado, o
trabalho não pode ser considerado apenas uma expressão abstrata, conceitual, para a
relação mais simples em que o homem aparece como produtor. Para surgir o conceito
abstrato de trabalho desvinculado de qualquer atividade concreta, é necessário que a
própria sociedade tenha se abstratificado de forma que um aspecto seja comum a todas
as atividades produtivas concretas. Como dito na parte citada anteriormente, a
igualdade entre estas atividades é a própria produção de riqueza abstrata, a própria
produção de valor. É só quando todas as atividades estão submetidas a esta igualdade de
produzirem valor que elas podem igualmente ser consideradas dentro da mesma
categoria. A noção abstrata de trabalho e a noção abstrata de valor surgem em conjunto
com a realidade de uma sociedade em que toda a atividade produtiva se submete à
produção de valor, tornando-se, assim, apesar de suas enormes diferenças práticas, a
mesma atividade abstrata, o trabalho. Abstração aqui a dizemos no sentido de
“abstrair”, de se desvincular de suas formas concretas, como acontece com o trabalho
limite21. Deste modo, ainda que ela forneça o enquadramento geral da crítica categorial
ao trabalho, não chega a extrair de sua própria análise suas consequências últimas e
mais radicais. Também, por não ir diretamente ao ponto, dificulta o entendimento da
historicidade da categoria trabalho. No entanto, depois de se ler as passagens acima não
há como dizer sem vacilar que Marx considerava o trabalho como categoria ontológica.
Demolido o preconceito, é hora de começar a análise.
Como afirmamos na introdução deste artigo, este subtítulo pode ser lido
separadamente por conter o núcleo da argumentação colocado de forma mais acessível.
Os subtítulos anteriores analisam diferentes passagens em que Marx trata do trabalho
para mostrar que, por vezes, ele afirma expressamente seu fim – demonstrando assim
que o tratamento “ontológico” do trabalho não é o único em sua obra. Já os subtítulos
posteriores aprofundam as conclusões aqui obtidas. A decisão de tornar essa parcela do
artigo possível de se ler separadamente visa facilitar ao leitor as conclusões mais gerais.
Recomendamos, no entanto, para aqueles que desejam se aprofundar, testar os
pressupostos e alcançar as conclusões mais radicais da análise, a leitura integral do
artigo.
Quanto a esta parte, é interessante começarmos asseverando que a análise que se
desenvolverá é uma análise da categoria trabalho. Com isso queremos dizer que não
estamos analisando o trabalho apenas do ponto de vista conceitual (a ideia de trabalho)
e nem meramente do ponto de vista “material” ou “empírico”, das técnicas,
21 Kurz diz sobre este trecho de Marx: “Marx aproxima-se aqui de uma crítica que ele próprio ainda não
leva até ao fim. Ele desenvolve (contrariamente à maioria dos marxistas) uma crítica radical da
abstracção real contida no conceito de trabalho moderno; mas em simultâneo mantém-se refém da
ontologia do trabalho protestante e iluminista, tal como a tinha inscrita nos seus estandartes o
movimento operário, surgido no mesmo contexto hist rico da sua teoria.” KURZ, Robert. A Substância
do Capital. Disponível em http://obeco.planetaclix.pt/rkurz203.htm, acesso em 17/02/2016. De fato a
distinção entre dois níveis contraditórios de análise pelo próprio Marx, um ligado à análise da
mercadoria e sua negatividade e outro operando por dentro das categorias capitalistas, são um dos
pilares da interpretação da teoria marxiana pela “nova crítica do valor”. Em relação a este “duplo”
caráter da abordagem de Marx em relação ao trabalho, ver DUAR E, Cláudio R. “A superação do
trabalho em Marx: em busca do tempo não-perdido”. Revista Sinal de Menos, Ano 1, nº 3, 2009.
Disponível em: http://www.sinaldemenos.org.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016 174
Algumas pessoas não se importam com cremes ou plantas, outras também muito
justificadamente são contra o consumo de carne. Alguém dirá que produzir carne não é
trabalho? O fato de individualmente considerarmos algo importante ou não, não é o que
determina também o que seja a utilidade22 – isso está em dependência da totalidade das
interações da sociedade e nem sempre voltada para um fim específico discriminável.
Dizemos isso para mostrar que valor de uso é algo que não se pode definir
concretamente e nem restritivamente, pois como Marx mesmo diz, na primeira página
de O Capital, “a natureza dessas necessidades, se elas se originam do estômago ou da
fantasia, não altera nada na coisa”23, citando ainda, no mesmo ponto, Barbon: “Desejo
inclui necessidade, é o apetite do espírito e tão natural como a fome para o corpo (...) a
maioria (das coisas) tem seu valor derivado da satisfação das necessidades do espírito”.
Vejamos mais um exemplo banal, mas que ajuda sobremaneira entender a
complexidade do problema: uma vela serve para produzir luz – mas também para o
ritual que invoca entidades em rituais do Candomblé. Apesar dos espíritos não serem
algo concreto, nem por isso a utilização da vela para sua invocação deixa de ter uma
utilidade, ainda que seja uma de significação que alguns ateus poderiam considerar
“meramente cultural”.
Se tentarmos conceituar “trabalho” como produtor de valor de uso podemos,
assim, dizer que tudo é trabalho, mesmo respirar. Mas um conceito que serve a tudo não
serve a nada, uma vez que nada mais se diferencia dele. Como diz um dos expoentes da
“nova crítica do valor”, Anselm Jappe:
22 David Ricardo no fechamento de sua grande obra á dizia que “Um con unto de gêneros de primeira
necessidade e de satisfações não pode ser comparado com outro conjunto; o valor de uso não pode ser
medido por nenhum padrão conhecido, pois cada um calcula o seu valor de maneira diferente”.
RICARDO, David. Princípios de Economia Política e Tributação. São Paulo: Abril, 1982, p. 284.
23 MARX, Karl. O Capital: Crítica da Economia Política. Op. cit., p. 45.
24 JAPPE, Anselm. As Aventuras da Mercadoria. (Para uma nova crítica do valor). Lisboa: Antígona,
2006, p. 110.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016 176
Não há como fugir disso, pode-se virar e revirar como quiser, se trabalho é
produzir valor de uso de forma consciente, ou seja, alterar a natureza com fins humanos,
tudo que o humano fizer para si, ainda que seja simples divertimento, será trabalho. É
por isso que as pessoas que tentam conceituar “trabalho” se encontram sempre em
apuros, nunca chegando a um bom resultado, já que neste nível não é possível dar uma
resposta clara, coerente, não contraditória. Nestas discussões é uma constante recorrer
ao achismo de “penso que isso seja trabalho”, sempre sem conseguir resolver a questão
de maneira clara. Não há como achar um critério para o que seja utilidade humana,
valor de uso, pois a própria noção do que seja útil é socialmente desenvolvida nos
indivíduos – e não kantianamente como algo universalmente válido, abstratamente
comum a todos.
Até aqui nos movemos entre a questão conceitual do trabalho e a produção de
valores de uso – tão cara ao marxismo tradicional – o que, conforme se viu, não permite
a resolução da questão. Tratamos apenas da relação de trabalho como relação entre o
ser humano e a natureza para suprir suas necessidades, aquilo que geralmente se
considera ontológico – a necessidade de fazer a síntese. Não analisamos, no entanto, o
trabalho como relação social, como forma que a síntese toma em sua mediação na
sociedade. Para isso, precisamos nos voltar para o que há de social no processo de
produção, para a estrutura da sociedade que faz da produção uma totalidade por meio
da imposição de trabalho (ainda que haja liberdade de escolher para qual patrão
trabalhará) a cada um de seus membros.
Ao mesmo tempo, temos de nos desprender da concretude dos objetos
produzidos para sua significação abstrata social. Devemos olhar agora para a face
cintilante do dinheiro e das mercadorias, o valor (de troca) que se opõe ao valor de uso.
Segundo Marx, ele, diferentemente do valor de uso, não é algo próprio da coisa, mas
uma relação social projetada na coisa. Não é pela matéria, pelos átomos que compõe a
mercadoria que se estabelece seu valor; nenhum químico conseguiu e nem conseguirá
encontrar o valor de algo com um microscópio – pois ele não é uma característica da
própria matéria, mas sim algo puramente social projetado nela. Para compreendermos
como o valor é a projeção de uma relação social (e também a projeção que possibilita a
própria relação), é interessante comparar o valor com o que ocorre em uma sociedade
em que as relações sociais sejam completamente diferentes.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016 177
Se, numa comunidade “primitiva”, um selvagem gasta em média cinco horas para
construir um arco, enquanto outros gastam em média 10 horas para caçar um antílope,
um antílope “vale” dois arcos nesta sociedade, certo? Não, errado. O arco e o antílope
não “valem” nada, por que no interior desta comunidade não há trocas. Os arcos vão
para quem vai caçar e o antílope será comido pela tribo. A determinação quantitativa
do valor como tempo de trabalho depende primeiramente da existência qualitativa do
valor como forma, ou seja, o valor só pode existir tendo como pressuposto a existência
de produtores separados que precisam trocar seus trabalhos. Sem isso não há troca, não
há valor, mas apenas produção e consumo coletivo. No interior da tribo a produção não
está submetida ao valor, pois como todos produzem coletivamente as relações não
projetam esta comparação abstrata dos produtos do trabalho. É fundamental se
compreender que o valor só pode existir a partir da fragmentação da produção social
entre diferentes produtores individuais.
O mesmo ocorre no interior da família moderna, no interior das relações de
parentesco não mediadas pelo dinheiro. Se, em uma família, a mãe cozinha o almoço, o
filho vai ao supermercado comprar os alimentos e o pai dá o dinheiro, isso significa que
uma hora que o filho gastou no supermercado “vale” o mesmo tanto de dinheiro que o
pai forneceu, que por sua vez “vale” as mesmas três horas que a mãe gastou cozinhando?
É evidente que não! A relação de esforço no interior da família não é diretamente a
comparação dos esforços produtivos, a sua igualação na troca de equivalentes. Enquanto
as pessoas não estão se encontrando em um mercado para trocar, o produto de seus
trabalhos não aparece sob a forma de valor, não adquire assim a forma de mercadoria25.
A forma de valor depende da relação de comparação abstrata que ocorre na troca.
Não é próprio da atividade produtiva gerar valor, mas apenas da atividade produtiva
privada que só se torna social por meio da troca, assumindo por isso um valor. Se a
produção é coletiva, o produto da atividade produtiva não aparece sob a forma
metafísica de valor, porque não há comparação dos esforços na troca. Que no
comunismo algumas coisas irão depender de determinado tempo de esforço humano,
25 O exemplo aqui da organização da família vale tão somente para ilustrar como no interior desta as
atividades de cada um não têm diretamente o caráter de valor. Mas, de outro modo, podemos dizer que
as atividades no interior da família moderna existem como o avesso, o lado oposto do valor, com a
divisão sexual das atividades também já definidas na origem mesma do valor, como bem sinaliza
Roswitha Scholz. Ver: SCH LZ, Roswitha. “ Valor é o Homem”. Exit! Online em Português: 1992.
Disponível em http://obeco.planetaclix.pt/rst1.htm. Acessado em 27 de setembro de 2015.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016 178
seja físico ou intelectual, para sua produção, não resta nenhuma dúvida. A questão
debatida não está neste ponto, mas na própria forma social que estes produtos da
atividade humana tomam. No comunismo, não há de existir valor, pois não há trocas
mercantis, não há comparação abstrata dos produtos da atividade humana. O
comunismo é, toscamente dizendo, como uma colossal família, ninguém troca seu
esforço pelo esforço do outro, mas tão somente “cada um conforme suas capacidades,
para cada um conforme suas necessidades”26.
Voltando à questão do trabalho, falávamos que não é possível conceituar o que é a
utilidade ou valor de uso universalmente, conforme fins determinados, pois ele é
definido socialmente, isto é, pelas necessidades culturais daquela sociedade e dos
indivíduos que a compõe. Quando entramos na análise do valor a coisa muda
radicalmente de figura. Aqui conseguimos definir fins determinados, uma utilidade
objetivamente dada que é a de produzir valor. Falar que regar suas próprias flores é
trabalho pode parecer estranho, mas ninguém discutirá que um jardineiro que ganha
sua vida cuidando do jardim dos outros trabalha. Em termos de produção de valor de
uso, de síntese com a natureza, ambos são a mesma coisa27. A diferença é que a primeira
26 Marx previa que, no socialismo, essa solidariedade total não existiria, pois com o baixo nível de forças
produtivas ainda haveria escassez e com ela os “estreitos limites do direito burguês”. Uma contabilização
a partir do tanto de esforço produtivo de cada um deveria então existir, mas a forma mesma de valor já
não existira mais. Os esforços não seriam trocados, mas os limites da troca, a equivalência (a
comparação) que dela deriva e que é a base do direito continuaria a existir na forma de “trabalhou tanto,
merece tanto em produtos do trabalho”, mas sem ter de ir ao mercado, já que o que seria produzido por
cada um seria previamente acordado. Hoje, com uma revolução bem sucedida, mesmo este limite não
mais existiria, pois tecnologicamente já superamos a linha da escassez há algumas décadas. Ver MARX,
Karl. “Critica do Programa de Gotha”. p. Cit., p. 232-233.
27 Isaak Rubin foi talvez o primeiro na esteira de Marx que percebeu que a análise da noção de trabalho
produtivo leva em conta o objetivo colocado pela organização social e não a produção de utilidades
humanas assim consideradas. Como ele diz ao falar da abordagem dos economistas “o fator decisivo é o
conteúdo do trabalho, isto é, seu resultado, que usualmente é um objeto material para o qual está
dirigido o trabalho e é criado pelo mesmo. O problema abordado em Marx nada tem em comum com
este outro, exceto o nome. O trabalho produtivo, para Marx, significa: trabalho engajado no dado
sistema social de produção. Marx está interessado na questão de qual produção social se trata, de como
a atividade de trabalho das pessoas empenhadas no sistema de produção social difere da atividade de
trabalho das pessoas que não estão empenhadas na produção social (por exemplo, o trabalho voltado
para a satisfação de necessidades pessoais ou para o serviço doméstico). Qual o critério para que se
inclua a atividade laboriosa das pessoas na produção social, o que a torna trabalho “produtivo”?”
RUBIN, Isaak. A Teoria Marxista do Valor. São Paulo: Brasiliense, 1980, p. 279. Rubin, porém, além de
se manter nos limites do próprio Marx e não levar ao fim a critica categorial do trabalho, analisa o
trabalho como produtivo apenas do ponto de vista do capital, isto é, o trabalho que produz mais-valor e
assim aumenta o capital. Entretanto, é necessário também considerar o trabalho engajado no dado
sistema social de produção como produtivo do ponto de vista do intercâmbio de mercadorias. Na
produção simples de mercadoria, aquela que subsiste no capitalismo na forma de, por exemplo, trabalho
autônomo, produz-se valor, embora não se produza mais-valor. Deste modo é preciso considerar que a
[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016 179
categoria trabalho admita não só o trabalho assalariado, mas todo aquele que se relacione e que se faça
diretamente para o mercado, ainda que sua expressão mais geral só apareça no capitalismo.
28 Isto, seja na produção simples ou na produção capitalista de mercadorias, já que ambas apesar de suas
só pode existir como expressão do abstrato 30. Sem a abstração realizada pela produção
mercantil não existe a categoria trabalho, que se apresenta necessariamente nesta
dualidade. Sem o trabalho abstrato, o concreto não seria trabalho, mas sim uma
atividade humana qualquer, diferenciada e importante por si. Cuidar de um filho em
casa é sem dúvida um esforço que gera algo útil, a educação do filho e progresso das
forças produtivas sociais pelo avanço daquele indivíduo. No entanto, não gera valor, não
entra naquele vínculo social mais amplo criado por meio do mercado e, por este motivo,
não se percebe isso como sendo um trabalho. Agora, quando somos professores de uma
escola infantil e educamos o filho do outro e para isso recebemos, aí sim trabalhamos. O
mesmo ocorre quando uma aula particular é dada por um professor independente, não
assalariado31. O trabalho do professor apresenta-se como trabalho concreto (sua
atividade na sala de aula), mas que só se apresenta assim por estar submetido a compor
a comparação abstrata dos trabalhos no mercado produzindo riqueza em sua forma
abstrata de valor – e assim é ele mesmo trabalho abstrato, esforço humano
indiferenciado32. Algo que não fosse trabalho abstrato seria um tipo de atividade como
ensinar algo a um amigo ou familiar, ou seja, aquele que não aparece sequer como
trabalho concreto.
Em uma sociedade não dominada pelo valor, no comunismo, o cuidado e a
educação das crianças serão atividades como outras que deverão ser desempenhadas
30 Como primeiramente afirmou Robert Kurz: “Em rigor, a designação “trabalho abstracto” representa um
pleonasmo l gico como por exemplo “cavalo-branco branco”), uma vez que o atributo á está contido no
pr prio conceito; é que, de facto, o “trabalho” á é uma abstracção. nversamente, o conceito “trabalho
concreto” representa uma contradictio in adjecto como por exemplo “cavalo-branco preto”), á que o
atributo está em contradição com o conceito; como abstracção (mesmo conceptualmente, apenas
nascendo no terreno de uma abstracção real social) o “trabalho” não pode ser per se ”concreto” no
sentido de uma determinada actividade. Poder-se-ia dizer que estas definições de Marx reflectem o
paradoxo real da relação do capital e da sua socialização do valor, já que nas mesmas o que é em si
concreto, a diversidade do mundo, é de facto “realmente”) reduzido a uma abstracção, e assim a relação
entre o geral e o particular é posta de pernas para o ar. O geral já não é uma manifestação do particular,
mas pelo contrário o particular já apenas é uma manifestação da generalidade totalitária; o concreto,
assim sendo, também á não representa a diversidade estruturada do particular, mas não “é” senão a
“expressão” da generalidade realmente abstracta, da “substância” universal”. KURZ, Robert. A
Substância do Capital. Op. Cit.
31 Pois apesar deste não fazer crescer o capital de outrem, seu esforço troca-se por dinheiro e assim entra
no metabolismo social do valor, na comparação abstrata dos esforços produtivos efetuada pelo mercado
e já pressuposta na produção capitalista.
32 Mais que isso, sua atividade como professor existe como meio para que ele obtenha dinheiro e possa
sobreviver; assim, sua existência concreta como professor é a manifestação particular de um mecanismo
abstrato, o valor. É por isso que, no capitalismo, o abstrato, longe de ser mera generalização do concreto,
passa a ser o seu determinante: o trabalho (atividade indiferenciada que produz valor) é agora a
realidade universal que gera todas as realidades concretas, a ela subordinadas.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016 181
Para chamar algumas das atividades de trabalho é necessário dizer que outras
formas de síntese com a natureza, como cuidar da prole, não são trabalho35. Isso apenas
pode ocorrer quando na divisão das atividades sociais algumas adquirem maior
importância que as outras – e, assim, surge uma restrição ao consumo coletivo nesta
sociedade por conta desta diferenciação. Com isso, não se nega que a atividade
produtiva vá ocorrer sempre, mas sim que o entendimento de determinadas atividades
em si completamente diferentes sob um mesmo conceito abstrato é que vai deixar de
existir. Não haverá mais diferenciação entre as atividades quando o que for socialmente
relevante for aquilo que é relevante para a humanidade considerada em suas múltiplas
necessidades culturais – e não mais conforme os ditames da reducionista produção do
valor. A própria noção de trabalho acaba; resta, como Marx disse em passagens já citada
nos pontos anteriores, a atividade emancipada de seu invólucro negativo capitalista.
Este invólucro é o próprio trabalho, a negação das possibilidades concretas pela
submissão das atividades sociais a um abstrato, o valor. Com o fim da fragmentação das
atividades produtivas e do valor, o trabalho estará igualmente fadado a desaparecer;
como consequência, a atividade produtiva se apresentará para além da forma de sua
limitação mercantil.
Após o que foi dito, é possível retornarmos à exposição que Marx faz no início de
O Capital. Lá, a mercadoria se mostra como uma forma desprovida de conteúdo36, mas
é esta forma que domina todas as coisas, colocando-as no circuito de trocas. Os
economistas tenderam a ver esta forma como natural e eterna, como qualidades das
próprias coisas, enquanto Marx mostra como ela é socialmente determinada, projeção
de uma forma de sociedade historicamente determinada. Nossa análise, na esteira das
análises anteriores, aponta para algo muito similar em relação ao trabalho: ele é pura
forma, sem conteúdo, mas reveste as atividades concretas. O pressuposto aqui é o
mesmo para a existência da forma mercadoria e da forma trabalho: produtores
35 É claro que se pode abusar do termo e dizer que tudo que envolva o mínimo de esforço é trabalho.
Fazendo isso, no entanto, saímos do mundo do conhecimento e cruzamos a porta do cinismo burguês
em sua versão pós-moderna, que se presta a negar a possibilidade de conhecer apenas para manter as
coisas justamente como estão.
36 “ odo começo é difícil; isso vale para qualquer ciência. entendimento do capítulo , em especial a
parte que contém a análise da mercadoria, apresentará, portanto, a dificuldade maior. Quanto ao que se
refere mais especificamente à análise da substância do valor e da grandeza do valor, procurei torná-las
acessíveis ao máximo. A forma do valor, cuja figura acabada é a forma do dinheiro, é muito simples e
vazia de conteúdo.” MARX, Karl. O Capital. Op. Cit., p. 11.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016 183
privados que trocam sua produção. O objeto produzido reveste-se assim da forma
mercadoria na mesma medida em que a atividade de produção reveste-se da forma
trabalho.
Marx, em uma passagem dos Grundrisse já citada neste texto, diz que “a
representação do trabalho nesta universalidade – como trabalho em geral – é também
muito antiga”, apesar de que “concebido economicamente nessa simplicidade” é o
trabalho “uma categoria tão moderna quanto as relações que geram esta simples
abstração”. Kurz critica esta afirmação da seguinte maneira:
38 Nos estágios primitivos, por exemplo, nem eram considerados pelos seus pares como humanos, mas
como os animais e vegetais representados conforme o totem de seu clã.
39 MARX, Karl et ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã. Op. Cit., p. 64- 65.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016 185
que tem de estar pressuposta para as pessoas poderem comparar seus produtos na
troca. O segundo é justamente a desigualdade sacramentada, o domínio sobre o outro,
que retira o produto sem dar outro equivalente em troca. Há, por isso, uma relação
umbilical entre a abstração das diferentes atividades produtivas na mesma categoria
“trabalho”, o surgimento e desenvolvimento das formas da riqueza concreta na
abstração “valor”, o desenvolvimento da categoria direito como igualdade abstrata e
pressuposta entre os “homens” (também considerados nesta categoria abstrata e não
como indivíduos concretos) e a economia, categoria em que os homens se encontram em
concorrência como proprietários formalmente iguais de mercadorias. Podemos dizer em
termos de formas sociais que àqueles que produzem em abstrato corresponde uma
forma de riqueza em abstrato e uma abstração de si próprio na categoria “homem”, bem
como uma esfera econômica apartada do resto da realidade onde vigora uma lógica
estritamente concorrencial.
Quando olhamos para o passado em busca do surgimento destas categorias, as
encontramos em diferentes graus de desenvolvimento, mas todas evoluindo em
conjunto (quando evoluem), com algum grau de uniformidade entre elas, dada uma
específica época histórica. Elas se tornam cada vez mais acabadas e dominantes
conforme a relação mercadoria se desenvolve submetendo os demais tipos de relações
sociais à sua forma – e por outro lado a mercadoria mesma só pode ser compreendida
como sendo constituída destas múltiplas manifestações. Isso pode ser percebido e
rastreado com alguma clareza pelo menos a partir do desenvolvimento do mercado no
início da antiguidade, quando a primeira grande expansão do comércio faz surgir (ou as
tornar mais perceptíveis, dado maior grau de acabamento) estas categorias, ainda que
em estágio embrionário. Naquela época o comércio se desenvolvia rapidamente, de
forma que por volta de 680 A.C surgiria a cunhagem de moeda40. O dinheiro, a forma do
valor mais desenvolvida – conforme explicado por Marx em o Capital –, enfim surgira
pela primeira vez. As moedas anteriores podiam ser cunhadas em metais preciosos e
valer diretamente pelo valor dos metais que as compunha. A forma dinheiro, no
entanto, pressupõe um degrau ainda maior de abstração, pela qual, garantida por uma
autoridade simbólica a moeda não mais vale pelo material utilizado em sua confecção,
mas pelo puro lastro simbólico. Apesar de toda a diferença histórica que nos separa, a
abstração monetária que conhecemos, depurada de toda materialidade (ex.: créditos
eletrônicos), guarda profunda semelhança de forma com aquela da antiguidade.
Antes da fase clássica grega, provavelmente entre o ano 750 e 650 antes de cristo,
viveu Hesíodo, o grande poeta que registrou em seus escritos as rápidas mudanças dessa
transformação essencial na forma das relações sociais. Em Os Trabalhos e Os Dias,
Hesíodo se foca nos afazeres dos homens comuns e seus temas preferenciais são
justamente a Justiça e o Trabalho41. É considerado por muitos o primeiro de todos os
economistas, por lidar com o problema da escassez, e desenvolve uma ética do trabalho
que em muito lembra a que surgirá antes do início do capitalismo42. Sua defesa
apaixonada de Diké, Deusa da Justiça como igualdade que despontava entre os Gregos
na época e que se opõe a Thêmis, divindade mais antiga que representa a Justiça como
poder da nobreza43, também deixa vivo relato das mudanças culturais ocasionadas pelo
rápido desenvolvimento mercantil: a igualdade formal pressuposta na troca penetrando
de diversas maneiras no tecido social. Mesmo já com todo esse desenvolvimento
causado pela forma mercantil, esta ainda é embrionária, e com ela também a concepção
41 Como escreveu o grande helenista Werner Jaeger: “Homero acentua com maior nitidez, que toda
educação tem o seu ponto de partida na formação de um tipo humano nobre, o qual nasce do cultivo das
qualidades próprias dos senhores e heróis. Em Hesíodo revela-se a segunda fonte da cultura: o valor do
trabalho. O título de Os Trabalhos e os Dias, dado pela posteridade ao poema rústico didático de
Hesíodo, exprime isso perfeitamente. O heroísmo não se manifesta só nas lutas em campo aberto, entre
cavalheiros nobres e seus exércitos. Também a luta silenciosa e tenaz dos trabalhadores com a terra dura
e com os elementos tem seu heroísmo e exige disciplina, qualidades de valor eterno para a formação do
Homem. Não foi em vão que a Grécia foi o berço da humanidade que põe acima de tudo o apreço pelo
trabalho”. JAEGER, Werner. Paideia: A formação do homem grego. São Paulo: Martins Fontes, 2010,
p. 85.
42 “ ...) trabalha, Perses, divina prole, para que a Fome te odeie, e te ame Deméter de bela coroa, a
venerável, e encha o teu celeiro de alimento. A Fome é em tudo a companheira do homem ocioso; deuses
e homens se indignam com quem ocioso vive, semelhante em caráter aos zangões sem ferrão, que
consomem o esforço das abelhas, ociosos a comer; para ti seja caro organizar os trabalhos regrados, de
modo que os teus celeiros se encham de alimento no tempo certo. Com trabalho os homens tornam-se
ricos em rebanhos e opulentos, e trabalhando serás muito mais querido dos imortais” e dos mortais:
muito eles odeiam os ociosos. O trabalho não é nenhuma desonra; desonra é não trabalhar. E se
trabalhares, logo o ocioso procurará igualar tua riqueza: ao rico acompanham mérito e prestígio
Qualquer que seja tua fortuna, trabalhar é preferível, se o teu louco espírito dos bens alheios desvias
para o trabalho e atentas para a subsistência, como te ordeno. A vergonha não é boa para cuidar de um
homem necessitado, a vergonha, que aos homens muito prejudica e beneficia: a vergonha liga-se à
pobreza tal como a audácia à prosperidade.” HES D . Os Trabalhos e Os Dias. Trad. Alessandro
Rolim. Curitiba: Segesta, 2012, p. 93-95.
43 “Ó Perses, coloca essas coisas no teu coração, e agora dá ouvidos à Justiça, e esquece de todo a força.
Pois o filho de Crono fixou para os humanos esta lei: que peixes, feras e pássaros alados devorem-se uns
aos outros, á que ustiça não há entre eles; mas para os humanos deu a ustiça”. HES D . Os
Trabalhos e Os Dias. Op. Cit., p. 91.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016 187
de trabalho, abordado por Hesíodo apenas em dois sentidos: o trabalho no campo, com
o solo e os animais, e no comércio marítimo44. Neste sentido também se repete, de certa
maneira, a ordem que vemos no desenvolvimento da própria economia política na
modernidade: como dissemos acima acompanhando Marx, lá aparecem primeiro teorias
que colocam o trabalho que produz valor alternadamente como trabalho específico no
comércio (mercantilismo) e trabalho na agricultura (fisiocratismo); aqui (em Hesíodo) o
que é representado como trabalho acaba por se resumir nestes mesmos dois pontos. Sua
abstração como “trabalho”, ainda que limitada à categoria da subsistência e do comércio
de excedentes, já dá claro sinal da generalização que a diferencia de sociedades mais
primitivas, onde só há atividades consideradas em sua especificidade ou sob
generalizações de outro caráter que não econômico. A época de Hesíodo é, não por
coincidência, o tempo da primeira grande difusão da produção simples de mercadorias,
que em pouco tempo daria origem à primeira moeda cunhada, à primeira democracia
grega e aos primeiros filósofos45.
Pelo fato de estarmos conduzindo aqui uma análise categorial que em muito
difere da do marxismo tradicional, podem alguns afirmar que as conclusões aqui
alcançadas são idealistas. Para estes resta-nos dizer que afirmar isso revela o
desconhecimento da dialética entre ideia e realidade. Os conceitos a que nos referimos
articulam (e são, ao mesmo tempo, articulados por) uma realidade social que não é
simplesmente fática, empírica, mas sim puramente relacional. O mundo humano tal
como até hoje o conhecemos não é de uma realidade meramente material, sensível, mas
uma realidade construída por relações abstratas – metafísicas como Marx mesmo
afirma – como o valor, o dinheiro, o capital, o direito. Os conceitos surgem com
44 “Então arrasta a rápida nau para o mar, e dentro a carga adequada dispõe, para que leves lucro para
casa – assim meu e teu pai, ó Perses, seu grande tolo, necessitando de um bom sustento, costumava
navegar em barcos (...) lembra-te dos trabalhos todos na hora certa, sobretudo quanto à navegação.
Elogia a nau pequena, mas põe tua carga numa grande: quanto mais carga, mais lucro sobre lucro”
HESIODO. Os Trabalhos e Os Dias. Op. Cit., p. 125.
45 THOMSON, George. Os Primeiros Filósofos: estudos sobre a sociedade grega antiga, volume II. Lisboa:
46 Sobre esta afirmação ver L , hiago Ferreira. “Sohn-Rethel e o Profundo Significado Filosófico dos
Primeiros Capítulos de O Capital”. Disponível em
http://www.ifch.unicamp.br/formulario_cemarx/selecao/2012/trabalhos/7133_Lion_Thiago.pdf.
Acessado em 17/02/2016.
47 Entenda-se aqui que “acreditar” não é uma decisão individual. Mas, ao contrário, uma crença coletiva
que se impõe aos diversos indivíduos através do mecanismo do fetichismo da mercadoria e, assim,
independentemente de um indivíduo singular.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016 189
apenas subjetiva, mas, principalmente, e isso é o que revela a análise, objetiva, como
forma de consciência socialmente determinada. Do mesmo modo, se todos acordassem
como que por um toque de mágica com consciência comunista, o comunismo estaria
praticamente dado. No entanto, não se trata aqui de idealismo, pois o que se impõe não
é a primazia do conceito, mas sua unidade com a realidade na forma da própria relação
social, uma realidade que assim não é meramente empírica, mas desde já relacional e
simbólica. A reprodução social deve sempre ser vista nesta dinâmica entre realidade e a
consciência socialmente necessária que a estrutura.
A análise de Marx do desenvolvimento da forma mercadoria não é uma mera
descrição do mundo objetivo, exterior, mas compreende em si o desenvolvimento da
própria subjetividade. Ela é a descrição de como uma relação se forma por meio dos
indivíduos adquirindo a objetividade das leis do mercado ao mesmo tempo em que os
indivíduos cada vez menos se comportam como membros de uma comunidade e mais
como sujeitos individualistas que se relacionam por meio do dinheiro. A análise da
mercadoria não é pura análise da objetividade e nem da subjetividade, mas uma esfera
de mediação, onde se trata das relações que constituem conjuntamente a subjetividade
“interna” de cada humano e o mundo objetivo “exterior”, que assim são abordados de
maneira implícita. A exposição da mercadoria ocupa em Marx o mesmo lugar que a
exposição da Lógica da Essência em Hegel48. Quando, na introdução de sua Ciência da
Lógica, Hegel está discorrendo sobre a divisão entre lógica do ser (objetiva, que parte do
mundo exterior), lógica da essência (esfera de mediação) e lógica do conceito (subjetiva,
que parte da consciência), ele diz sobre a unidade do conceito consigo mesmo, na lógica
da essência, e seu modo de exposição:
48É o que diz, inclusive, Engels em carta a Conrad Schmidt, datada de 1891: “Se você comparar o
desenvolvimento da mercadoria n’O Capital de Marx com o desenvolvimento do ser à
essência em Hegel, você terá um bom paralelo em relação ao desenvolvimento concreto que resulta
dos fatos; ...)” tradução e grifo nossos). Ver ENGELS, Friedrich. Engels to Conrad Schmidt in Zurich in
Marx-Engels Correspondence, 1891: Disponível em
https://www.marxists.org/archive/marx/works/1891/letters/91_11_01.htm. Acessado em 20/02/2016.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016 190
lógica ela ainda foi situada sob a lógica objetiva, pois embora a
essência já seja o interior, o caráter de sujeito tem de ser
reservado expressamente ao conceito.49
49 HEGEL, G.W. F. Ciência da Lógica. (Excertos). São Paulo: Barcarolla, 2011, p. 42.
50 “What was of great use to me as regards method of treatment was Hegel’s Logic at which had taken
another look by mere accident, Freiligrath having found and made me a present of several volumes of
Hegel, originally the property of akunin.” MARX, Karl. “Carta a Engels de 16 de aneiro de 1858”.
Disponível em http://www.marxists.org/archive/marx/works/1858/letters/58_01_16.htm. Acessado
em 15/09/13.
51 MARX, Karl. O Capital. Op. Cit. p. 54.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016 191
trabalho vivo = capital variável e que trabalho morto = capital constante. O que significa
esta recorrente igualação entre a mercadoria (tanto em seu caráter pouco desenvolvido
de valor na circulação simples quanto em sua evolução como capital) e trabalho?
Significa que ambos são tratados como expressões da mesma coisa, uma única e mesma
forma que pode ser analisada pelo lado da lógica objetiva ou da lógica subjetiva. A forma
trabalho é = à forma mercadoria, ambas são a mesma coisa emanando da produção
privada que constitui a atividade da forma trabalho e o produto da forma mercadoria.
Neste sentido é mais fácil de entender diversas passagens, inclusive do jovem Marx, na
qual ele diz que “a essência subjetiva da propriedade privada, a propriedade privada
enquanto atividade sendo para si, enquanto sujeito, enquanto pessoa, é o trabalho”52.
Retirando a determinação do trabalho como abstração das atividades produtivas
de valor, o que sobra? Sobra apenas a atividade produtiva, isto é, as relações que os
humanos mantêm com a natureza e com outros humanos (que afinal também são
natureza, considerada da forma mais ampla possível). Isso só revela que a cisão interna
à sociedade, entre o que a priori se considera socialmente produtivo e o que não se
considera, deixa de existir. Deste modo, os conceitos que se remetem a estas cisões
também perdem serventia; assim desaparece a noção de trabalho e a prática coercitiva
que carrega este nome. Cuidar de filhos quando superarmos o reino da necessidade no
comunismo será meramente cuidar de filhos, como construir uma máquina será
meramente construir uma máquina – e não formas de representação de uma atividade
em abstrato, o trabalho.
Este tipo de análise que aqui chamamos de categorial deriva da relação dialética
entre o que percebemos separadamente como prática e forma de consciência – e é
importante compreender que uma não existe sem a outra, pois as formas de consciência
sustentam a prática social que lhes criou e vice-versa. De posse deste entendimento, o
conceito trabalho se revela parte de uma realidade em que algumas atividades humanas
são válidas para determinado tipo de relação atualmente dominante, o intercâmbio de
mercadorias, e, assim, seus produtos aparecem sob a forma de valor. Outras tantas
formas completamente necessárias de relações com a natureza e entre os indivíduos
ficam de fora desta categoria “trabalho”. Ficam, como diria a “nova crítica do valor”,
dissociadas. Isto porque a própria produção não está voltada para a satisfação de
52 Marx,Karl. Manuscritos Econômico-Filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2010, p. 99.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016 192
As categorias são algo real, mas no sentido que são ao mesmo tempo algo de
nossa consciência. O fetichismo, em especial em sua forma hoje dominante, o fetichismo
da mercadoria, é uma forma de limitação das possibilidades, um aprisionamento
inconsciente às limitadas formas de relações entre os homens. É a submissão do que é
considerado produtivo ao valor; assim, por este modo, a atividade humana se afirma
como social apenas na negatividade do trabalho, a categoria que reúne todas as
diferentes atividades produtoras de riqueza abstrata. O marxismo tradicional e dentro
dele mesmo o crítico marxismo ocidental tomam esta negatividade como algo positivo e
entronizam o trabalho como algo digno de adoração. Ocorre que, enquanto o trabalho
for tomado como emancipador, estaremos adorando nossa própria limitação, nossa
submissão à realidade categorial construída a priori. O fetiche do trabalho é o
fetichismo da mercadoria tomado por sua face menos brilhante. Aqui a atividade, por
sua própria limitação a imperativos abstratos, nos aparece como imposição, como
negativo.
Uma importante crítica deve, no entanto, ser endereçada a esta análise de Krahl e
mesmo a Marx, conforme o que há muito percebeu Hegel e que hoje é moeda corrente
na psicanálise lacaniana. A alienação do sujeito é estrutural, não é possível surgir um
sujeito sem a alienação, um sujeito puro que “salte” para fora da estrutura categorial e
encontre a Coisa como ela é, o Em si hegeliano ou o Real lacaniano nele mesmo. Nesse
sentido, não é possível um sujeito que não seja formado pela sua relação com os outros
mediada pelo simbólico da linguagem em todas suas expressões, e nem um
conhecimento das coisas que não seja mediado pela forma social. Devemos então
abandonar a ideia, expressa na citação acima, de superar esta imanência na consciência,
e aceitar integralmente essa imanência, como um dos autores deste artigo escreveu em
outro lugar:
Sem abandonar esta crítica hegeliana, é possível manter a crítica de Marx em seu
interior. Não é porque não se pode abandonar a imanência na consciência que não se
pode afastar a forma fetichista da mercadoria. Com essa importante ressalva, as
afirmações de Marx se mantêm. É possível mudar a estrutura de abstração do
pensamento e da realidade sem que isso signifique sair de toda estrutura categorial,
justamente reconhecendo que a realidade tem a forma conceitual e assim a dominando
em sua determinidade. Assim, afirmações de Marx, como a seguinte, permanecem
totalmente válidas:
55 MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã. Op. Cit., 37-38.
56 Marx diz que a forma de algo se tornar um valor de troca é ser um não valor de uso. Esta contradição é,
segundo ele, a base do sistema mercantil. Para os bens materiais isso é plenamente válido, mas os bens
imateriais, que desde a terceira revolução industrial se tornaram elemento central da economia, fogem
desta lógica. Um arquivo de música na internet, diferentemente de um disco, pode tocar
simultaneamente em diferentes partes do globo. Sua manutenção na esfera das trocas mercantis tem de
ser garantida repressivamente pelos poderes estatais, represando assim as forças produtivas que o
próprio comércio ajudou a desenvolver. A relação mercadoria, de forma de progresso acelerado das
forças produtivas, torna-se seu contrário.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016 196
das forças produtivas que não mais necessitam de esforço individual é a crise do valor
que agora se tornou visível. A crise do valor é, ao mesmo tempo, crise de todo o
categorial que com ele surgiu. É a crise de todas as parcelas da realidade social (como o
direito, o Estado, o dinheiro, a arte, a filosofia, a ciência, as relações entre os sexos etc..),
pois é a crise da própria fragmentação da realidade em parcelas. A desfragmentação
da produção é a desfragmentação da totalidade e a possibilidade da unidade entre
realidade e sentido, não mais fragmentado e contraditório. Estamos presos dentro das
categorias, presos dentro desta limitação das possibilidades que é o valor. A crise que
vivemos é a crise desse categorial, da qual devemos nos desvencilhar de forma a
prosseguirmos já em outro nível existencial em que escolhamos livremente as categorias
que queremos como realidade.
A crítica do fetichismo da mercadoria é a parte mais complicada da teoria
marxiana não apenas por sua minúcia e nem, por outro lado, por sua abrangência que
inclui em si a própria forma de pensamento e, desta forma, todas as áreas do
conhecimento. A crítica do valor é complicada, sobretudo, porque se trata de um
negativo, a crítica que revela como as categorias sobre as quais erigimos nosso
pensamento e nossa vida são históricas e, por isso, se dissolverão. Neste sentido, é
impossível lastrear a totalidade do pensamento em uma categoria, a não ser quando esta
categoria é tomada em si como negatividade, como negação das possibilidades
concretas pelo próprio categorial. O pensamento só deve se apoiar na categoria para ver
para além dela, para, negando-a, negar a negação que ela representa. A elevação da
consciência a essa compreensão é o fim do limite a priori no pensamento (que
corresponde justamente à formação do saber absoluto de sua própria condição
reflexionante, como em Hegel) e finalmente sua interpretação coerente como mais um
dos estágios nos quais a natureza se desenvolve rumo ao desconhecido, ao novo, ao
ilimitado. Aqui a ciência perde o caráter estéril que adquiriu ao nascer em oposição à fé,
e o conhecimento retoma todo seu elemento sublime como forma privilegiada de
religação. O pensamento emancipado é o pensamento emancipado das categorias que o
limitam, que enquanto em contradição com relações sociais alienadas, com limitação
categorial do próprio ser, só pode se colocar como um negativo. Por isso, é tão difícil
para a crítica do valor estabelecer um positivo, dizer como a sociedade emancipada será,
[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016 197
porque a própria emancipação não pode ser definida senão em sua forma de negação da
limitação.
Com o fim da escassez, e, portanto, da necessidade, está dada a possibilidade de
pôr fim à determinação involuntária da atividade produtiva – e assim o fim da
determinação de quais atividades “contam” para a comparação social, uma vez que a
própria possibilidade de comparação acaba. As necessidades sociais tornar-se-ão
necessidades dos indivíduos concretos, dos indivíduos como tais, sem nenhuma
definição a priori, isto é, sem submissão a categorias, a padrões predefinidos. Assim, a
atividade se liberta de sua camisa de força no trabalho e se torna (auto) atividade
humana, pois como Marx já há cerca de 170 anos apontou:
A transformação do trabalho em autoatividade corresponde a
transformação do restrito intercâmbio anterior em intercâmbio entre os
indivíduos como tais.57
57 MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã. Op. Cit., p.74.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016 198
58 TWAIN, Mark. As Aventuras de Tom Sawyer. Porto Alegre: L&PM, 2002, p. 23.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016 199
Primeiras notas
Como o título sugere, este artigo é o pontapé inicial para uma reflexão sobre
novos termos e horizontes para a crítica da música. Um tal engajamento teórico nos
parece fundamental em um momento histórico como o nosso. Provavelmente, tal apelo
por uma renovada reflexão da forma e papel da crítica musical poderia ser feito para
todas as outras artes, mas nos parece que a música vive na atualidade um paradoxo não
existente em todas as outras, pois ela parece estar ao mesmo tempo excessivamente
presente e demasiado ausente da vida das pessoas. Como bem percebeu Charles Rosen 2,
no seu Nos Confins do Sentido, a apelação por uma autonomia das obras de arte é mais
convincente na música, particularmente na instrumental, e até mesmo um certo caráter
não-histórico ou atemporal da arte é mais perceptível nesta modalidade artística. Dessa
maneira, além de ser mais factível a um apelo para a volta de uma tão esquecida
autonomia (mesmo que relativa) das artes, cremos que a partir da música podemos
engajar uma outra forma de crítica social, menos culturalista e identitária do que a que
está a venda no mercado.
Neste artigo damos uma primeira pincelada em diversos temas e horizontes que
achamos ser pertinentes para a crítica, vislumbramos aprofundar e desenvolver a maior
parte deles no futuro.
1 - Temporalidade
Em uma era de expectativas decrescentes, onde nada mais se espera do futuro
além de uma representação de um passado seletivo, as únicas coisas que parecem ser
3 ARA ES, Paulo 2014), “ novo tempo do mundo”. n:__. O novo tempo do mundo, São Paulo,
Boitempo, p. 94.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016 201
“os programas de concerto são manifestadamente benéficos quando eles nos esclarecem
músicas às quais não estamos familiarizados, porém mais comumente eles o são em um
sentido negativo – quer dizer que eles previnem o público que a peça a ser escutada
durará três quartos de hora e não dez minutos, evitando assim que eles se
agitem/mexam nervosamente durante a execução”.8
Desta forma, ouvir, escutar se torna um desafio pessoal que de uma certa forma desafia
o tempo. Exige uma paciência e uma relação de indeterminação com o tempo que não
parece mais estar na ordem do dia. Se na sociedade das mercadorias “tempo é dinheiro”,
como o crítico pode querer que alguém gaste o seu tempo efetivamente escutando a
música?
2 - Escuta e Condomínio
Música é a arte da escuta, como nos esclarece François Nicolas. É esta escuta,
porém, ainda possível no mundo atual em que vivemos? Existe quem crie música,
porém há quem as escute? Sendo uma arte da escuta, e não do tempo, a música
pressupõe que, para existir, seja escutada por um terceiro elemento. Ela impõe para a
sua existência uma intenção, uma necessidade de ser parte de um todo social. O
paradoxo é que para ser autônoma ela pressupõe que não pode existir sem esse terceiro
termo. Sua autonomia então é relativa, mas ao mesmo tempo é suscitada na
possibilidade de ser escutada em si mesma. Não há sentido na música se ela não é para
ser escutada. O triângulo músico-música-público não pode ficar incompleto.
Nicolas defende, apoiando-se na teoria badiousiana de mundo9, uma tese
materialista da música, em que esta, por sua vez, faz mundo10. No mundo-música todas
as músicas são colocadas no mesmo plano e convivem num a priori de igualdade
absoluta, independentemente de suas origens temporais ou geográficas. Elas convivem
em pé de igualdade. Um outro aspecto importante é que Nicolas defende que a música
se desenrola na escuta, e não no tempo, como ela é normalmente vista. Tal
deslocamento de uma arte do tempo para se tornar uma arte da escuta, muda
completamente a perspectiva que podemos ter sobre a música. Ela se torna uma arte
não de uma entidade exterior e independente do ser humano – o tempo – mas uma arte
de uma ação humana, da escuta. Quem escuta, e isso vale para o músico e o público,
passa a ser responsável pela constituição da música, pois “a escuta é uma compreensão
da forma da peça que procede de maneira endógena”11 e tal ação é “um embarque,
selvagem ou charmoso, mas sempre imprevisto.”12 Desta forma a escuta musical seria o
local da escuta por excelência. Nos resta então uma questão, qual o paradigma da forma
de escuta atual?
Jamais ouvimos tanta música, mas nunca escutamos tão pouco. Com as novas
tecnologias podemos carregar a música em quantidade infinita para qualquer lugar. Se
antes saíamos de casa para assistir música, hoje colocamos um fone de ouvido e ela
parte diretamente para o nosso cérebro. É imagem comum atualmente vermos pessoas
no transporte público ou andando na rua com seus fones de ouvidos ligados nos seus
celulares ou mp3-player “curtindo um som”. Uma outra faceta de tal situação é aquela
em que o motorista de carro, no insuportável engarrafamento diário, coloca o volume no
máximo e “curte um som” nas alturas – som este ainda mais alto quando o carro é um
importado conversível ou uma caminhonete de luxo. Há ainda aqueles que se trancam
no quarto e enquanto navegam na internet colocam um fone de ouvido no computador,
outros, por sua vez, se trancam nos seus quartos e colocam o auto-falante no máximo.
Tais formas de escuta musical nos remetem à forma de vida que o psicanalista Christian
Dunker chamou de: vida em forma de condomínio. Analogamente, em tais casos o que
temos é uma: forma de escuta condominial. E esta é a forma de escuta predominante no
nosso presente.
O condomínio é lógica de vida brasileira, mas neste caso é lógica de escuta
mundial. Dunker localiza o principio do desenvolvimento de tal forma de vida ainda nos
anos 70, com a criação dos primeiros condomínios fechados nos entornos da cidade de
São Paulo. Esta seria uma lógica que abrange “a transformação dos problemas relativos
à saúde pública, mental e geral, em meros problemas de gestão” 13. Tal lógica tem como
fundamento um “conceito de defesa, cujo modelo é o forte de ocupação”, área cercada
por “muros de defesa, cujo objetivo militar é impedir a entrada”14. Mutatis mutantis,
não seriam o uso contínuo de fones de ouvidos, o volume máximo no automóvel ou a
porta trancada do quarto muros para os nossos ouvidos? Afinal de contas, “A lógica do
condomínio tem por premissa justamente excluir o que está fora de seus muros”15.
Ora, por que então a música nos parece ser uma coisa totalmente fora da vida das
pessoas mesmo se ela jamais esteve tão presente quanto na atualidade? Nesta forma de
escuta condominial, a música perde o seu caráter social e de partilha coletiva que possui.
Aqui, “o muro faz lugar por meio da fronteira”16. A música está lá, mas é como se lá não
estivesse. A possibilidade para a universalidade da música exige que sua escuta seja
simultaneamente coletiva e individual. A música atinge a todos os que a escutam de
forma simultânea, mas não de forma similar. Tal experiência exprime uma forma
irreconciliável entre o universal e o particular, onde um não pode ser reduzido ao outro,
mas onde, de uma certa forma, um constitui o outro, pois na minha singularidade
enquanto ouvinte eu constituo o coletivo que escuta a música e na coletividade abarcada
pela música me constituo como indivíduo ouvinte. Na escuta condominial não existe
esta relação dialética, o aspecto coletivo é excluído e aquele que escuta só tem a si
próprio como referência, ele está murado e resguardado do “perigo” que a ação coletiva
13DUNKER, Christian I. L (2014), Mal-estar, sofrimento e sintoma. Uma psicopatologia do Brasil entre
muros. São Paulo, Boitempo, p. 42.
14 Ibidem, p. 50
15 Ibidem, p. 52.
16 Ibidem, p. 65.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016 205
17 Ibidem, p. 59.
18 Ibidem, p. 64.
19 Ž ŽEK, Slavoj (2000), The Fragile Absolute. London, Verso, p. 21-40.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016 206
repetindo o gesto de ir até ela buscar algo que ela não contém mas finge nos oferecer.
Tal situação também nos lembra uma premissa comum de ser lida nas antigas revistas
de guitarra, onde falando da quantidade de notas tocadas, os colunistas diziam que às
vezes “mais é menos, e menos é mais”. Em um certo sentido uma escuta mecânica e
passiva, excessiva e condominial, não finaliza a música por completo, ela se perde no
justo momento da sua concretização, não cumpre a sua promessa.
Tal crítica nos parece uma leitura bastante interessante da situação e recepção da
música no Brasil. Há um problema, porém: Dunker dá muito peso para a música em si.
Em tal análise nos parece que a música determina o modo de vida a ela atrelado (ou no
mínimo teria um igual peso na equação). A nossa hipótese vai na direção contrária. O
modo de vida é que escolhe a música com que vai dançar e esta só pode ser entendida
como necessária, portanto atrelada a este, de forma retroativa. Apenas em um segundo
momento, já atrelada a este modo de vida, é que a música vai, da sua forma particular,
passar a determiná-lo. Podemos lembrar, por exemplo, que o modo de vida condominial
começa a surgir nos anos 70 e este funk nos anos 90. Apenas depois deste funk existir, o
modo de vida já existente pôde passar a ser associado também com essa forma de se
fazer música. De uma certa forma, esse último chegou para animar a festa depois que
esta já estava a pleno vapor.
Ademais, é interessante observar que tal crítica de Dunker nos remete a um
recente debate que tomou uma relativa dimensão, na sequência da publicação de duas
colunas pelo filósofo Vladimir Safatle no jornal Folha de São Paulo, a primeira
intitulada: “O Fim da Música”; e a segunda, uma tréplica às críticas feitas à primeira:
“Os alicerces da cidade”. Na primeira delas, Safatle faz uma análise da situação da
música no Brasil na última década, comparando o que nela aconteceu com momentos
passados da história musical colocando-os em paralelo com a história geral do país. A
sua tese é a de que, pela primeira vez, em um momento de desenvolvimento econômico
não tivemos uma certa explosão criativa musical no âmbito nacional. Por uma outra via,
Safatle se aproxima da análise de Dunker quando afirma que:
“A despeito de experiências musicais inovadoras nestas últimas décadas, é certo que elas
conseguiram ser deslocadas para as margens, deixando o centro da circulação
completamente tomado por uma produção que louva a simplicidade formal, a
estereotipia dos afetos, a segurança do já visto, isso quando não é a pura louvação da
inserção social conformada e conformista.”21
De uma certa forma o condomínio se estende também para tais casos, quando
demandas por segurança e conformidade pelo já escutado passam a invadir, sob as mais
diversas formas, todas as classes e estratos sociais em todas as áreas do país. Na sua
relação com música também se exprime o condomínio no qual se envolve neste
momento histórico a sociedade brasileira, e ele ultrapassa, e muito, as fronteiras do que
é normalmente conhecido como condomínio habitacional.
Na sequência, é interessante observar que após as mais diversas críticas que
recebeu como reação ao primeiro artigo 23, na sua tréplica Safatle faz uma dura crítica à
crítica musical no Brasil quando diz, por exemplo, que: “há uma incrível covardia crítica
em relação à miséria musical do que circula de forma maciça nesta última década”24 e
afirmando que:
“para estes que acham não fazer sentido qualquer crítica da forma musical, que acham
que qualquer análise crítica da produção cultural é mistificação de classe, teria muito a
dizer, mas insistiria em um ponto: vocês, no fundo, não acreditam que existam
julgamentos estéticos, apenas se acomodam a análises sociológicas”.25
Tal discussão é imprescindível e este artigo se encaixa neste debate por acreditar
que, se admitimos que é importante observar a música do seu ponto de vista social, a
situação atual clama por repensá-la pela outra via, esteticamente e em toda a sua
potencial autonomia. Desta forma, talvez possamos nos contrapor aos lugares comuns
que visam afirmar que existiria um público específico, seletivo, pequeno ou enorme,
especialista ou ignorante para cada determinada música, que cada forma de música
deve visar um tipo de ouvinte em particular ou barbáries afirmativas semelhantes. Não
podemos continuar com esses giros em falso, a música abraça todo o potencial da
humanidade em si.
3 - Simbolismo e Sentido
Anselm Jappe, nas suas análises estéticas, tem como ponto de partida a
relevância que o simbolismo que as mais diversas produções culturais produzidas pela
23 Com uma boa parte parecendo se dirigir a outra coisa e não ao que havia sido escrito...
24 SAFA LE, Vladimir 2015b) “ s alicerces da cidade”, disponível em:
http://www1.folha.uol.com.br/colunas/vladimirsafatle/2015/10/1694347-os-alicerces-da-cidade.shtml
25 Idem, Ibidem.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016 209
119.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016 210
musical Tinhorão observa que a criação musical do mercado busca ser feita
normalmente de forma banal e repetitiva, para poder chegar ao máximo possível de
pessoas, criando uma espécie de média da sociedade, de forma “que não satisfaz de
maneira profunda a ninguém, mas garante a aceitação geral”.29 Um desdobramento
claro de tal procedimento é a música feita para a propaganda: o jingle. Se antes
destinado apenas a este fim, podemos afirmar que, em uma certa reviravolta negativa,
tal forma de música se tornou o padrão da indústria cultural que, a grosso modo,
atualmente produz meros jingles travestidos de música.
Jappe também atenta para o importante papel que uma certa “esquerda” teve,
apoiada nos motes e conceitos de uma pseudo-igualdade e democratização, na
transformação da cultura em mercadoria. Ali onde elas tinham um sentido de existir,
exatamente nos locais onde elas não estavam estabelecidas de uma vez por todas, as
“esquerdas” quiseram abolir qualquer forma de hierarquização. Segundo o autor, “é
justamente a existência de uma hierarquia de valores que pode negar e contestar a
hierarquia do poder e do dinheiro, a qual, ao contrário, reina sem partilha na época
onde negamos toda hierarquia cultural”.30 Desta forma, o relativismo é uma falsa
maneira de emancipação e induz o erro ao alvo à crítica social. Parece-nos que devemos
recomeçar a admitir que existe uma diferença qualitativa entre os objetos culturais, logo
entre os objetos musicais, entre o que não passa de diversão e o que aponta para a
verdade. Readmitir um julgamento qualitativo e não puramente relativo ou subjetivo.
Bastaria observar melhor os reflexos da dominação da mercadoria, pois para esta tudo é
igual, não há diferença qualitativa, assim “deixar todo mundo 'livre', com apelo a um
espontaneísmo, não cria as condições de liberdade.”31
Por outro lado, Rosen enfatiza o problema que vários críticos enfrentam na
tentativa de achar os vestígios do que quiserem arbitrariamente achar dentro de uma
música determinada. Ele observa que “a música se aproxima o tempo todo da ausência
de significação, do sem-sentido”.32 É comum, por exemplo, críticos tentarem achar
sinais do sofrimento de um compositor dentro de uma determinada música ou que um
ritmo determinado na verdade representasse, na música, o fluxo do rio da terra do
29 TINHORÃO, José Ramos, Cultura Popular Temas e Questões, São Paulo, Ed. 34, 2006, p. 199.
30 JAPPE, op. cit, p. 224.
31 Idem, Ibidem, p. 226.
32 ROSEN, op. cit, p. 20.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016 211
4 - Função e Utilidade
Como bem observou o crítico Jorge de Almeida, “a percepção das contradições da
situação musical da época passa a exigir do crítico a reflexão sobre as contradições da
situação social da época”.35 A crítica da arte ocorre de fato quando esta faz aparecer um
espaço isolado que corta esta última de toda funcionalidade, coloca-a a nu, sendo capaz
de denunciar através de si própria, introduzindo o caos na ordem. A arte é um fato social
que se coloca na sociedade se opondo a ela e se inscreve no seu seio para melhor
exprimir as suas contradições. Desta forma, ela manifesta o seu legítimo interesse, pelo
negativo da dominação social, pelo seu futuro, pela emancipação do homem.
Contraditoriamente, ela corre o tempo todo o risco de ser absorvida pela ordem social
dominante e de ter a sua função crítica desviada para reabsorção desta na reprodução
do mundo. Ela faz aparecer na aparência da unidade a realidade da fragmentação,
exprimindo negativamente a harmonia e encarnando as suas contradições. A arte rende
justiça ao singular realizando o que o pensamento conceitual não consegue mais. Trás o
que resta à luz do dia. Recusar esta condição significa dizer que aceitaremos tudo o que
já está dado.
Vista desta forma a música pode continuar a carregar a perspectiva de criar algo
que ainda não tenha advindo, afinal de uma certa forma “uma das funções da arte
sempre foi a de mostrar aos indivíduos um mundo superior”36, um mundo onde
encontrávamos a liberdade e intensidade ausentes no dia a dia, não uma mera repetição
deste, ou como dirá Adorno, “em todas as obras autênticas, aparece alguma coisa que
não existe”37. No entanto, somos diariamente bombardeados com o oposto, com a
insistência na eliminação da ideia de que algo possa existir de diferente da realidade
banal que nos cerca. Tal perspectiva não é uma simples utopia. A possibilidade existe
efetivamente pois algumas das obras do passado, à sua maneira, colocavam o sujeito em
crise ao invés de consolá-lo, delas não se esperava uma confirmação do local habitual do
conforto, mas uma alteração do lugar estabelecido. Estas vislumbravam outros modos
de vida. Além disso, para ser relevante, a música deve questionar certas categorias
correntes que passam como naturais e automaticamente positivas, pois de uma certa
forma, são as obras que nos julgam, antes mesmo de julgá-las, elas estabelecem os seus
parâmetros, elas que escolhem o seu público e a elas que este deve ser suficiente – sob
um certo ponto de vista, a arte não é democrática, ao menos não no sentido mais
corrente do termo. Ela o é na sua potencialidade universal, mas não é efetivamente, pois
não atinge a todos da mesma forma, nem é certo que atinja a todos em algum momento.
Adorno, e também Jappe, afirmam que, da sua própria maneira, a arte prova que
nem tudo que existe é útil. O primeiro nos lembra que “as obras eram sem finalidade
porque elas escapavam da relação fim-meio da realidade empírica” pois, “a finalidade
imanente das obras de arte lhe vinha do exterior”38. Para o segundo,
“a arte, se não quer participar da marcha deste mundo, deve se abster de vir ao
encontro das 'pessoas', facilitar as suas vidas, tornar a sociedade mais simpática,
ser útil, agradar, ela resta mais fiel à sua vocação quando ela se opõe a
comunicabilidade fácil e se esforça de confrontar o seu público com algo maior do
que ele.”39
Segundo Jappe, apesar de tudo, a esfera cultural ainda seria um lugar aonde podem se
produzir coisas inúteis que estejam intrinsecamente ligadas à criação de riquezas e
capazes de verdadeiras críticas – normalmente reprimidas ou rejeitadas – que falam da
sua forma da vida social mas que, por não estarem diretamente implicadas no ciclo de
acumulação do capital, normalmente pagam o preço de serem marginalizadas. Mesmo
tal força da arte não consegue sempre resistir a dinâmica do capitalismo. Bens culturais
passam a ser produzidos em massa e entram na lógica da mercadoria e mesmo obras
inicialmente autônomas entram na roda. Se a arte tem algum objetivo de ir além da
mera reprodução da indústria cultural deve, observa Jappe, levar em conta estes fatos.
Sobre a crítica musical mais precisamente, Adorno é certeiro ao afirmar que “em
diversos casos, aquilo que se pensa, se fala e se escreve sobre música difere muito de sua
função, daquilo que ela de fato cumpre na vida dos seres humanos, seja em sua
consciência, seja em seu inconsciente.”40 Observando a posição deste filosofo, Jorge de
Almeida remarca que já na sua época, e nos parece que hoje de forma ainda mais
agravada:
5 - Posição do músico
Para entrar na lógica do mercado tudo é colocado no mesmo nível, porém de
maneira inversa, sobrepondo ao objeto os aspectos exteriores a ele, tais como a origem
social e geográfica de quem o concebeu, e só então ele passa a valer. Como continuar
criando música nestas condições? Ao que parece, na mesa só existem respostas prontas
ou que apontem para uma certa individualização da razão da criação musical. Ela existe,
não negamos, é certo que respostas como “porque quero” ou “porque eu posso” não são
em princípio falsas. Porém, tais respostas não dão conta do problema temporal
suscitado e social implícito, pois como Adorno percebeu, mesmo “o discurso mais
solitário do artista vive ainda do paradoxo que consiste a falar aos homens graças a
solidão, na renúncia de uma comunicação rotineira”42.
Todos devem ser, e são, capazes de viver a arte, viver a música, porém devemos
entender que não no sentido que o sistema nos estimula: “seja criativo, você também
pode ser um criador, você também deve compor música com os aplicativos do seu
celular”. Isso nos coloca uma série de questões. Quem pode criar? Quem vai criar?
Todos podemos? São todas questões que desviam do foco real. Se pensarmos por uma
outra perspectiva, como nos lembra François Nicolas, quem escuta também faz música.
Vivê-la como ouvinte, como alguém que a escuta, é viver constituindo a música. De uma
certa forma, é criá-la. Mas para isto, o sujeito não deve apenas escutar, ele deve querer
escutar, inverter a passividade comumente associada à escuta e torná-la ativa.
Infelizmente, estando este poder de constituição do ouvinte totalmente mascarado,
estamos cada dia mais afastados da música. Há um nítido problema na visão que quer
que o espectador, “democraticamente”, possa ver ou escutar o que quiser, ou seja, se
projetar lá onde ele não está. Uma obra bem sucedida não é mais vista como um
pequeno passo na realização humana.
Muitos artistas não trabalham propriamente a matéria da sua arte, não fazem
atenção ao trabalho do material nas suas obras. Tal atenção seria condição fundamental
para que algo possa ser vislumbrado e surgir. Para Jappe, esta seria uma outra
manifestação de narcisismo, “a cultura do 'projeto' para a qual a matéria não passa
normalmente de um suporte inerte que o sujeito pode manipular para ali depositar as
suas ideias”.43 Na música tal problema passa sobretudo nas questões que suscitam: a
mixagem, o sampler, a edição, a citação, todas no limite do plágio, funcionando quase
que como uma “criatividade de supermercado”. O autor insiste na necessidade de se
“explorar as potencialidades e os limites da matéria, do som, das palavras, e ver se
podemos chegar juntos, no lugar de as manipular à sua vontade, constituir assim um
primeiro passo em direção à uma relação menos violenta com o mundo, os outros
homens, a natureza”.44 Não basta uma boa vontade ou gentileza, a arte não pode se
tornar uma terapia ou parte de um cotidiano convivial. O tempo histórico da arte não é o
mesmo da vida do artista. Este último deve se confrontar com o passado, não pode
querer ou pretender estar em um outro tempo que não o seu. A arte deve ser outra coisa
e o artista deve ser capaz de aspirar mais do que o pessoal.
Os artistas terminam entrando no jogo e disputando a tapas, como concorrentes,
os olhares daqueles que podem lhes financiar e, no capitalismo, não se pode apenas
aceitar apenas uma parte do jogo, ele não vem com peças faltando. A capitulação total
dos envolvidos é mais um episódio na mercantilização completa da vida e de todos os
seus aspectos. No que podemos chamar de estética do mundo contemporâneo traços de
medo são instantaneamente reconhecidos, há uma fuga constante do risco e da luta
necessária para conceber uma obra musical. Risco que está sendo substituído por uma
aceitação passível de tudo e de qualquer coisa. Não há mais espaço para um discurso ou
para uma ideia, assim para entrar na lógica do mercado tudo é permitido e encorajado
de ser feito. Alguns artistas fazem música com um olhar para o passado, como uma
constante reinvenção de uma tradição, como se tentassem atualizá-la deixando-a ainda
mais no passado. Não seria apenas algo como uma evocação de um passado, que é
muitas vezes imaginado, mas uma reificação de uma ideia que na realidade nunca
aconteceu e portanto não pode se repetir. Aqui, a segunda vez não se repete como farsa,
mas como puro simulacro.
Talvez exista a hipótese radical de uma subtração, uma ação negativa de recusar a
criação. Giorgio Agamben45 remarca que possuímos a potência de fazer e de não fazer
nada, mas também a de não fazer o que podemos, de resistir a fazer algo que somos em
princípio capazes de realizar. Temos, por exemplo, a capacidade de poder fazer música,
mas também a capacidade de resistir, de escolher não fazer uma música. Da sua parte, o
filósofo Alain Badiou46, na última das suas quinze teses sobre a arte contemporânea, nos
propõe que é melhor não fazer nada em termos artísticos, se o que vamos fazer contribui
para tornar visível o que já é reconhecido pelo império. Talvez uma espécie de decreto
unilateral e autônomo talvez possa ser dado pelo artista músico. Esgotadas as
possibilidades de tal ação e assumindo a potencialidade que o criador musical possui de
poder criar uma música, escolher não fazê-lo se esta não passar de uma mera repetição
de algo previamente existente, aceito e estabelecido. Ter em mente o objetivo claro de
que aquilo que antes ali não estava, de uma certa forma, abre uma brecha temporal no
sistema e, retroativamente, recoloca as possibilidade para novas criações na ordem do
dia. E ter a certeza de que ele é capaz de criar isto, mas que para isso talvez um gesto
prévio e radical de não aceitar mais participar do jogo seja necessário.
6 - Conclusão provisória
Não acreditamos que alguém não seja potencialmente capaz de, a priori, apreciar
não importa qual obra musical. Mas a aquisição de capacidade é um processo, longo e
difícil, que envolve aspectos exteriores e interiores ao indivíduo. Envolve uma crítica
ativa enquanto ouvinte. Ao mesmo tempo não acreditamos na máxima repetida de que a
massa e qualidade são impossíveis de andar juntas como nos fazem crer todo dia.
Sustentamos que não. É possível que em um outro sistema e modo de vida estes dois
conceitos vendidos como antagônicos possam, de alguma forma, se reconciliar. Por ser
construída sobre parâmetros discursivos universais (e não naturais como outros
sustentam47) a música pode ser possível de ser apreciada por qualquer um. Assim como
uma política verdadeira deve ser emancipatória e colocada no centro do povo, uma
música verdadeira deve poder unir as pessoas na sua singularidade e autonomia,
unindo-as em um processo de verdade, sem a necessitar fazer apelo a identidades
exteriores ao seu mundo. Todavia, não podemos determinar o ouvinte, nem o que ele vai
ou pode ouvir, por condições exteriores à música. Não obstante, podemos fazer recurso
a Marx, pois como bem observou Safatle, “como não há arte proletária, cultura
proletária, religião proletária, moral proletária, Estado proletário, pois, como dizia
Marx, os proletários são aqueles que não têm religião, Estado, moral.”48 Frente à
música, somos todos proletários.
O apelo por uma nova crítica musical vem igualmente acompanhado de nova
reflexão teórica, pois como Adorno bem observou, ambas ações estão interligadas: “toda
teoria da arte deve ser igualmente uma crítica da arte”.49 Além disto, esta crítica deve ter
coragem de realizar com firmeza o gesto bartelebiano e dizer: “eu preferia não fazer”, e
não fazer determinadas críticas. Ser capaz, quando necessário, de se subtrair. Adorno
separa claramente o que se aproxima da concretude material e negativa na arte. Para ele
a música pode representar uma verdade singular que, porém, no meio de todos os
entulhos não consegue adquirir autonomia temporal, como se o instante em que ela
passa a existir deixasse de ser relevante ou deixasse mesmo de existir no próprio
momento da sua realização. Como a música, por não possuir mais tempo causal, já não
representa nada em seu tempo, este passa a ser indiferente à percepção e à assimilação
desta. A crítica deve ser capaz de bem discernir as questões relativas à música, ao
mundo-música, e às questões do seu entorno social ou geográfico. Por fim, a crítica deve
parar de julgar ou se ater a gostos, sobretudo deixar de lado o seu próprio gosto, e parar
de realizar uma crítica unicamente biográfica, a partir de dados estatísticos ou se ater a
discussões sobre eventuais relações institucionais desta arte.
Resta, porém, o problema de como a música pode ainda expressar uma verdade.
Parece-nos que neste sistema é praticamente impossível. A perspectiva não é clara e
nem nos dá coragem sobre se algo está ou não por vir. Porém, não é a música que deve
fazer apelo à política. Embora, seja verdade que a condição da música ser efetivamente
universal e carregar em si a dimensão de igualdade que ela porta, seja política, pois
envolve a mudança completa da realidade onde ela se manifesta. Em outras palavras, a
música será efetivamente possível apenas em outro mundo onde o comum seja o
padrão.
Um trem desgovernado
4 Numerosos sociólogos, de acordo com passagem de Lefebvre (1991), diriam que a classe trabalhadora
prefere a segurança; a segurança do emprego, às aventuras revolucionárias. Porém, segundo o mesmo,
ao optar por tal segurança o proletariado abandonaria sua missão histórica, renunciando a si mesmo.
“Se ele ‘escolhe’ a integração à sociedade gerida pela burguesia e organizada segundo as relações de
produção capitalista, ele abandona sua existência de classe.” Vencer a tendência à inércia, nesse sentido,
seria um movimento de negação de um suicídio de classe.
5 A noção de fluxos de ondas de pensamento foi apresentada por Harvey (2012).
6 Segundo Santos (2007), utopias realistas seriam aquelas suficientemente utópicas para desafiar a
realidade, mas também realistas o suficiente para não serem descartadas facilmente. Nesse sentido,
parece haver um paralelo entre essas utopias e a sociedade urbana de Lefebvre: “Enunciamos um objeto
virtual, a sociedade urbana, ou seja, um objeto possível, do qual teremos que mostrar o nascimento e o
desenvolvimento relacionando-os a um processo e a uma práxis uma ação prática)”. LEFE VRE,
[1970]/1999, p. 16)
7 Lefebvre aprofunda a discussão sobre a sociedade burocrática de consumo dirigido em seu livro, A
Vida Cotidiana no Mundo Moderno [1968]. Nessa sociedade, segundo ele, reinariam os fundamentos do
mal-estar civilizatório, especialmente captados pela história da vida cotidiana. Uma realidade, como o
próprio conceito sugere, controlada pelo Estado, o qual, via manipulação subjetiva do sistema de
valores, acaba por direcionar e definir o próprio sistema de consumo.
8 A inspiração de trabalhar com a ideia de “umbral” surgiu a partir de uma passagem do próprio Lefebvre
1999). “Um movimento do pensamento em direção a um certo concreto, e talvez para o concreto, se
esboça e se precisa. Esse movimento, caso se confirme, conduzirá a uma prática, a prática urbana,
apreendida ou reapreendida. Sem dúvida, haverá um umbral a transpor antes de entrar no concreto, isto
[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016 222
é, na prática social apreendida teoricamente.” LEFE VRE, 1999, p.18). este ensaio, foi devaneado que
existiria não apenas um mas dois umbrais a serem transpostos para a efetivação dessa prática urbana, a
qual, por sua vez, nos levaria ao objeto virtual – mas possível (objeto possível) – a sociedade urbana.
9 LEFEBVRE, 1999, p.17
10 De acordo com Sampaio (2015) o contexto da violência na esfera citadina acionaria uma espécie de
“inversão analítica”: o objeto de reflexão teórica, compreendido pela violência urbana, passa a ser a
própria urbanização enquanto processo essencialmente violento; a engrenagem da violência em suas
diversas manifestações.
11 O discurso da redenção econômica é tão bem fundamentado que levanta cartazes em Mariana-MG, por
exemplo, a favor da mineradora Samarco; a mesma que há poucos dias foi responsável por um desastre
socioambiental de dimensões incalculáveis: o rompimento da barragem do Fundão no distrito de Bento
Rodrigues. Fará sentido a passagem de Lefebvre (1991): a classe trabalhadora prefere a segurança do
emprego, à aventura revolucionária? Estaremos fadados ao suicídio de classe?
[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016 223
15 A PL 5069/2013 é considerada um retrocesso ao direito das mulheres à saúde por dificultar o acesso ao
aborto legal (pílula do dia seguinte), além de contribuir para o constrangimento de mulheres vítimas de
violência sexual. Há ainda um velado, porém notório, caráter de classe, já que as mais prejudicadas
seriam as mulheres negras, jovens e pobres que não podem pagar pelo acesso ao aborto (ilegal) seguro.
16 MAGALHÃES, 2015, p. 157.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016 225
concreto. A superação dos umbrais, finalmente, seria parte de uma radical manobra
crítica. Se a curva for acentuada, o trem descarrilará.
Referências
ACSELRAD, H. “As práticas espaciais e o campo dos conflitos ambientais”. In: ACSELRAD, H.
(org.) Conflitos ambientais no Brasil. Rio de Janeiro: Relume, 2004, p.14-35.
BRASIL, Câmara dos Deputados, Projeto de Lei 5069/2013, que dispõe sobre “Anúncio de meio
abortivo ou induzimento ao aborto”. Disponível em:
http://www2.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1061163&filename
=PL+5069/2013 Acesso em: 24 de novembro, 2015.
CANETTIERI, T. Referência de espaço digital, arquivo pessoal, 2015.
EDITORIAL, Sinal de Menos, nº11, v.1, 2015, disponível em:
http://sinaldemenos.org/2015/04/26/sinal-de-menos-11-vol-1/, acesso em: 19 de novembro,
2015.
HARVEY, D. Condição pós-moderna. São Paulo: Edições Loyola, 2012.
LEFEBVRE, H. “Da cidade à sociedade urbana”. In: LEFEBVRE, H. A revolução urbana [1970].
Belo Horizonte: Editora UFMG, 1999, p.15-32.
LEFEBVRE, H. “A sociedade burocrática de consumo dirigido”. In: LEFEBVRE, H. A vida
cotidiana no mundo moderno [1968]. São Paulo: Ática, 1991, p. 77-108.
LUXEMBURGO, R. Reforma ou Revolução? São Paulo: Edição Expressão Popular Ltda, 1999,
p.17-28.
MAGALHÃES, F. N. C. “Produção do espaço na cidade do neoliberalismo e novas aberturas no
espaço digital”. In: COSTA, G. M.; et al (org.) Teorias urbanas. Belo Horizonte: C/Arte, 2015,
p.145-168.
MELO, M. G. P. de, “Da crítica ao direito ao direito à cidade: uma primeira aproximação”. In:
COSTA, G. M.; et alli (org.) Teorias urbanas. Belo Horizonte: C/Arte, 2015, p.231-258.
SAMPAIO, R. A. “A violência do processo de urbanização”. In. CARLOS, A. F. A. (org.) A Crise
Urbana. São Paulo: Contexto, 2015, p.55-84.
SANTOS, B. de S. Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social. São Paulo:
Boitempo, 2007.
Ž ŽEK, S. Bem-vindo ao deserto do real: cinco ensaios sobre o 11 de setembro e datas
relacionadas. São Paulo: Boitempo (col. Estado de sítio), 2003.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016 228
Frank Ruda
“Kill your middle class indecisions, now is not the time for liberal thought”
Bloc Party
Indiferença e fatalismo
Há uma passagem notável no último e, talvez, ao menos hoje, mais obscuro livro
do primeiro filósofo moderno do sujeito, a saber, a obra As paixões da alma, de René
Descartes. Nessa passagem, Descartes nota que em uma situação na qual não se sabe
como agir ou da qual não se sabe o que pensar porque as coisas não são claras o
bastante e ainda não se obteve conhecimento o suficiente para avaliá-la, uma certa dose
de indiferença ou de irresolução pode ser de ajuda. Distanciar-se da situação e refletir
pode ajudar – a irresolução “é causa de que... [a alma] disponha de tempo para escolher
antes de se decidir, no que verdadeiramente apresenta certa utilidade que é boa”.3 No
2 Descartes introduz este conceito em seus Discurso sobre o método, ao afirmar: “a fim de não
permanecer irresoluto [irrésolu] ... formei para mim mesmo uma moral provis ria”, Descartes, 2010a,
p. 79.
3 Descartes, 2010b, p. 382.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016 230
entanto, e é isso o que torna notável essa consideração, Descartes dá seguimento a esse
pensamento sustentando que permanecer nesse estado de indiferença, num estado que
se abstém da ação, “quando dura mais do que o necessário, e quando leva a empregar no
deliberar o tempo requerido para o agir, é muito má”.4 Assim, o inicialmente instrutivo e
útil modo da indiferença ou da irresolução pode muito facilmente se tornar um
problema para o sujeito quando ele não é mais capaz de deixá-lo. E a irresolução no
juízo e na ação, a indecisão (Descartes usa os dois termos quase como sinônimos) é um
resultado de um tornar-se indiferente do próprio agente que deveria ter agido. Em vista
desse diagnóstico, Descartes aborda também em seu As paixões da alma uma forma de
enfrentar, superar e combater a irresolução - e irresolução, como se deve acrescentar, é
“um tipo de receio”.5 O meio próprio para se enfrentar esse tipo de receio – receio que,
deve-se recordar, sempre possui esse efeito de destituição subjetiva - e para superar
aquela indiferença que era inicialmente útil leva o nome de fatalismo.6
O que investigarei adiante é algo dúplice: em primeiro lugar, em uma espécie de
tour de force através de algumas posições da história da filosofia, tentarei dar conta do
que pode ser chamado de o problema da indiferença, que eu tomo, seguindo Descartes,
como sendo ligado estreitamente, talvez mesmo como sinônimo do problema da
irresolução. Assumo que essa caracterização também pode ser instrutiva para uma
compreensão crítica de nossa situação contemporânea. Nessa primeira parte, recorrerei
então a determinadas fontes a fim de esboçar os contornos de uma crítica do estado de
indiferença. Na segunda parte, formularei uma defesa da solução cartesiana, uma defesa
do fatalismo como meio de enfrentar o estado estagnante de indiferença. Isso implicará
no esboço de uma pré-condição crucial para o conceito de liberdade.
4Ibid.
5 bid. termo francês usado aqui por Descartes é “crainte”.
6 Para ser mais preciso, Descartes propõe “coragem e ousadia” como meios diretos de enfrentar a
irresolução, na medida em que são “uma paixão e não um hábito...” Descartes, 2010b, p. 383). odavia,
quando ele fala, um pouco antes no livro, sobre um obstáculo específico que surgem de coisas que não
dependem de n s ibid, p. 367), Descartes afirma primeiro que “elas nos desviam de dedicar nossa
afeição a outras coisas cu a aquisição depende de n s” ibid, p. 368) e podem ser combatidas
assumindo-se “a Providência divina... uma fatalidade ou uma necessidade imutável” ibid.). Elaborarei
em que sentido assumo que a situação que Descartes retrata a respeito da indiferença também pode ser
superada por esse tipo de fatalismo - que também requer, constitutivamente, coragem.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016 231
Em sua obra de 1873, A religião nos limites da simples razão, Kant nota: “Mas,
em geral, interessa muito à doutrina dos costumes não admitir, enquanto for possível,
nenhum termo médio moral, nem nas ações (adiaphora [moralmente indiferente]) nem
nos caracteres humanos; porque em semelhante ambiguidade todas as máximas correm
o perigo de perder a sua precisão e firmeza”.7 As máximas se tornam indeterminadas,
imprecisas e instáveis se há algo como uma intermediariedade, indiferença, adiaphora.8
E, no mesmo livro, Kant descreve aquilo a que visa com essa espécie de imprecisão e
instabilidade. “Uma ação moralmente indiferente (adiaphoron morale) seria uma ação
resultante apenas de leis da natureza, ação que, portanto, não se encontra em nenhuma
relação com a lei moral enquanto lei da liberdade, porquanto não é fato algum (...)”.9 O
que Kant afirma aqui é algo de grande alcance e enorme importância. Para dizer em
termos simples, ele diagnostica que tão logo os seres humanos agem de maneira
indiferente, isto é, tão logo os seres humanos simplesmente não se importam, 10 eles não
agem como se fossem livres. Agir da maneira que Kant chama de indiferente é o que
define ações que podem ser descritas recorrendo-se a meras leis naturais.11 Isso significa
que na medida em que alguém age com indiferença, isto é, de tal modo que suas ações se
relacionam a algo, digamos, à sua finalidade ou objetivo, de maneira indiferente -
simplesmente não se importando com qual seja o resultado da ação, por exemplo - isso
torna possível conceber essas ações como deriváveis, dedutíveis de meras leis da
natureza. E as leis da natureza, como é claro para Kant, são exatamente o inverso do
conceito e da lei da liberdade.
Poder-se-ia dizer de outro modo: na medida em que as ações são ou se tornam
indiferentes a respeito daquilo a que elas visam, elas não podem mais ser consideradas
ações (nas palavras de Kant: atos [Taten]) em sentido próprio. Pois, para Kant, o
que não são nem boas nem más, nem belas nem feias, etc. Para uma abordagem da indiferença dos
estoicos, cf. Geier, 1997.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016 232
12 Para uma visão global breve e instrutiva de uma abordagem filosófica do comportamento animal, cf.
Simondon, 2012.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016 233
maneira que não é propriamente humana (o que quer que isso queira dizer ou como
quer que se possa considerá-lo) e em que sentido pode-se tomar a indiferença como
uma apresentação categórica capaz de explicar esse tipo de ação. O que deveria ser
afirmado é que Kant utiliza o próprio termo indiferença em um sentido bastante
moderno, pois na filosofia medieval (em Guilherme de Ockam, por exemplo) ela ainda é
compreendida como um nome para faculdade da vontade não causal (i.e., contingente) e
de duas vias (i.e., indeterminada) 13 - como a faculdade, por exemplo, de escolher x ou
não-x “indiferentemente”, o que equivale a dizer, sem nenhuma necessidade causal. O
uso do termo por Kant indica que tornar-se indiferente nas próprias ações e juízos é o
exato oposto da definição medieval do termo. A indiferença agora conduz ou mesmo
implica precisamente na determinação causal ou heterônoma de uma ação. A questão é,
portanto: o que significa agir de modo indiferente? Mais precisamente: indiferente a
respeito de quê? Aqui pode ser de ajuda retornar a Descartes.
13 Isso é bastante explícito em Ockam. Cf. Ockam, 1967, p. 501. Ali, ele sustenta que indiferença e
contingência são duas precondições da ação livre e voluntária.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016 234
“Pois, para que eu seja livre, não é necessário que eu seja indiferente na escolha de um
ou de outro dos dois contrários; mas antes, quanto mais eu pender para um, seja porque
eu conheça evidentemente que o bom e o verdadeiro aí se encontrem, seja porque Deus
disponha assim o interior do meu pensamento, tanto mais livremente o escolherei e o
abraçarei. E certamente a graça divina e o conhecimento natural, longe de diminuírem
minha liberdade, antes a aumentam e fortalecem. De maneira que essa indiferença que
sinto, quando não sou absolutamente impelido para um lado mais do que para o outro
pelo peso de alguma razão, é o mais baixo grau da liberdade...”16
A indiferença é o sentimento de que não importa que escolha eu tome. Portanto,
para Descartes, ela é o grau menor e mais pobre da liberdade. Isso porque eu não tenho
qualquer inclinação para nenhuma das duas opções de minha escolha, nem em razão de
algum conhecimento, nem em razão de um compromisso contingente. O conhecimento
aumenta minha liberdade na medida em que me impele para uma das duas direções
possíveis. Crenças e compromissos também o fazem, então, para Descartes. Todavia,
indiferença é aquilo que resulta – como um afeto – quanto eu não me inclino para
nenhuma das duas direções disponíveis, quando ambas tem a mesma validade para
mim. Isso significa que tenho o sentimento de indiferença quando a liberdade se torna a
mera existência de uma escolha. Não uma escolha que deve ser tomada, não uma
escolha que está em vias de ou que deve se tornar efetiva ou realizada, na escolha efetiva
de um dos dois lados. Liberdade de escolha, isto é, a possibilidade de escolher sem
realmente escolher (na medida em que não me importa qual lado escolher), é o que
produz indiferença. Uma vontade que quer X e não-X ao mesmo tempo é uma vontade
indiferente. É por isso que a irresolução é, para Descartes, estruturalmente análoga à
indiferença. E não se deve esquecer: é a indiferença, portanto, a fonte de meu errar e de
meu cometer enganos. Por quê? Porque quanto me torno indiferente eu já cometi um
engano. Assumi que a liberdade já estava efetivada na possibilidade de ter uma escolha e
não na efetividade do escolher. A indiferença é o resultado de uma percepção errônea a
respeito do próprio conceito, da própria concepção de liberdade. Realizo juízos
falaciosos porque já realizei um juízo falacioso ao compreender assim a liberdade. Um
tal conceito enganoso de liberdade assenta as bases para todos os enganos futuros que
16 Ibid, p. 173-4.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016 236
17 Kojève, 2002, p. 174. Cf. também o comentário sobre essa afirmação em Comay, 2011, p. 92 et seq.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016 237
vontade, a vontade livre que hipostasia a indeterminação não alcança uma pretensão
universal, mas uma pretensão meramente particular. Contra sua própria vontade –
contra a vontade livre da vontade livre – essa identificação da indeterminação com a
liberdade simplesmente se mostra como não sendo senão uma determinação particular
da liberdade. Assim, em que pese buscar escapar de toda determinação, a vontade livre
se determina, contra sua própria vontade, pela sua pretensão de indeterminação. Ser
indiferente em relação à determinação, identificando indeterminação e liberdade, como
se pode concluir de Hegel, não conduz à universalidade, mas bem ao fundo de uma mera
particularidade, uma vez que a indeterminação, precisamente, não é um conceito
universal, mas se restringe à negação abstrata de toda determinação concreta e, assim,
não é senão um de dois lados da mesma moeda. De um lado está a determinação pura e
simples, do outro a indeterminação (abstrata e, assim, particularizada). Entretanto, se a
definição de um conceito não é derivada senão de uma negação abstrata de seu oposto
abstrato, ele não é um conceito universal, mas apenas um conceito particular. À maneira
da astúcia da razão – contra a vontade da vontade livre que quer a indeterminação como
liberdade –, essa consequência não pode ser evitada.
A insistência na liberdade como indeterminação, portanto, se vira de ponta
cabeça contra sua vontade, literalmente, e determina a vontade livre. A vontade livre, ao
buscar escapar da determinação, se torna, assim, determinada em seu próprio voo pelo
ato de escapar. Essa determinação (a da insistência na indeterminação) não é, portanto,
um resultado de um ato de autodeterminação livre: a vontade livre quis evitar a
determinação e, apesar disso, acabou indo parar nela. É por isso que essa determinação
involuntária da vontade se revela uma determinação heterônoma da vontade. Pois não é
posta por si mesma. Ela se apoia em uma má compreensão da liberdade, pois a
liberdade, precisamente, não é identificável com a indeterminação. Não é possível
simplesmente se livrar da determinação. O que acontece, então, quando me abstenho de
todas as determinações concretas, me torno indiferente em relação a elas e
simplesmente insisto na possibilidade da determinação, de escolha, é que minha má
compreensão do que é a liberdade se volta contra mim e nisso eu cometo uma violência
contra mim mesmo.20 Isso porque eu reduzo meu próprio apelo à universalidade e à
20É por esse motivo que Hegel sustenta que, após o primeiro caso em que a liberdade foi identificada à
indeterminação, a saber, a Revolução Francesa, depois que ela levou embora todas as determinações no
[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016 239
mundo, o mundo teve então ele mesmo que se voltar em um certo ponto contra seus próprios
protagonistas que encarnavam a determinação da indeterminação. A identificação de liberdade e
indeterminação, que também vejo estar em ação na identificação de liberdade e liberdade de escolha,
acaba levando à violência autoinduzida. Seria interessante, apesar de eu não poder fazê-lo aqui,
relacionar isso de forma sistemática ao argumento sobre a tirania da escolha como desenvolvida em
Salecl, 2011.
21 Hegel, 1989, p. 64-65 [N. do T.: Citação a partir da edição alemã da Suhrkamp, com tradução do
tradutor deste artigo, uma vez que a edição brasileira não possui os adendos orais de sala de aula de
Hegel (os ditos mündliche Zusätze)]. Seria importante demonstrar por que Hegel assume que no
próximo parágrafo ele pode estender essa análise e desenvolver uma crítica da arbitrariedade a partir
dela. Deixo essa demonstração para outra ocasião.
22 Não se poderia também assumir que esse diagnóstico mesmo é muito adequado para o mundo em que
como um enunciado completamente neutro e objeto sobre as condições subjetivas da ação: Age como se
fosses livre! O imperativo prepara ainda o fundamento lógico para todas as injunções para gozar,
consumir, ser flexível, criativo etc.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016 240
mesmo, termino agindo precisamente como os animais fazem. Por que é assim? Porque,
para Hegel, o animal é aquele que pode ser definido de modo mais básico pela afirmação
de que ele não sabe seus limites como seus limites. Como Hegel afirma: “Se aquilo que
tem uma falta não está ao mesmo acima de sua falta, a falta não lhe é uma falta. Um
animal possui faltas para nós, não para si próprio”.24 O animal que possui uma falta, ao
qual falta algo desde nosso ponto de vista, não tem a consciência de sua própria falta. É
por isso que Hegel pode afirmar numa maravilhosa passagem de suas Preleções sobre O
Belo na Arte que: “o homem é um animal, mas mesmo em suas funções animais ele se
não comporta como um ser passivo [bleibt er nicht als in einem Ansich stehen, i.e., não
permanece parado ou estático como um algo em-si], como o faz o animal; ao contrário
do animal, adquire consciência das suas funções, as conhece e as eleva... à ciência
consciente de si... porque ele sabe que é um animal, ele deixa de ser um animal”.25
Assim, ao insistir em um conceito indeterminado de liberdade, isto é, de liberdade de
escolha, não experimento meus limites (postos por mim mesmo) como limites. Isso
porque ajo como se eu fosse livre, e todavia não o sou; e, portanto, me coloco assim na
posição de agir como se eu fosse um animal. Isso decorre diretamente de minha má
compreensão de minha própria essência, ou seja, da liberdade.
A má compreensão da minha própria natureza produz como efeito que eu não
queira minha própria liberdade como realizada, mas que eu a queira como possível,
como possibilidade. Incorro, assim, na situação de querer, contra minha vontade
explícita, minha própria falta de liberdade. É a isso que o ser indiferente – indiferente a
determinações – acaba, em última instância, se reduzindo. Esse resultado pode também
ser articulado do seguinte modo: a indiferença em relação a determinações não apenas
conduz a uma má compreensão da liberdade, no sentido de que sou determinado contra
minha própria vontade, mas também conduz ao efeito de que ações (no sentido próprio
do termo) se tornam indistinguíveis de não-ações ou pseudoações. Pois, como assumo,
estou agindo sem tomar partido, mas estou tomando partido contra tomar partido.
Penso que sou irresoluto, e todavia não sou. O ato mesmo que me faz indiferente está
também me forçando a me determinar sem e contra a minha vontade. Ajo como se
estivesse agindo, e, no entanto, uma vez que a verdadeira ação implica na liberdade,
26 Aqui pode-se, é claro, lembrar da famosa análise elaborada por Slavo Žižek sobre como nas sociedades
contemporâneas o ato de consumo vem acompanhado de um excedente ideológico que me faz acreditar
que também estou agindo politicamente, por exemplo, quando compro um café na Starbucks e pago
mais por ele para dar apoio a crianças que sofrem em algum lugar na África. De fato, faço aquilo que
sempre fiz – consumir – e, todavia, sem sentir nenhuma culpa ou ser acometido por alguma má
consciência, pois assumo que meu ato de consumo também implica num momento de engajamento
político-social.
27 ovem Marx fala do trabalhador como um exemplo, para a economia política, do “animal de trabalho,
[...] uma besta reduzida às mais estritas necessidades corporais”. Cf. Marx, 2010, p. 31.
28 Idem, p. 26.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016 242
29 Para uma análise extensiva deste diagnóstico em Marx e do todo da questão sobre como produção e
redução se vinculam através de procedimentos de abstração, ver Ruda, no prelo.
30 Simmel, 2005, p. 53.
31 Sobre isso, cf. também Lohmann, 1992, pp. 81-129.
32 Marx, 2013, p. 674. Isso reflete, obviamente, aquilo que já o jovem Marx notou quando afirmou:
“Quanto menos tu fores, quanto menos externares a tua vida, tanto mais tens...”, Marx, 2010, p. 142.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016 243
lo por inteiro, mas a própria lógica do capital faz com que seja muito mais sábio
permanecer na possibilidade de gastá-lo do que efetivamente gastá-lo.33 Mas Marx
diagnosticou no capitalismo uma redução constante dos seres humanos a uma
determinação heterônoma que os faz funcionar como coisas, isto é, como autômatos,
máquinas, ou como meros corpos, animais descritíveis em termos meramente
mecânicos.34 O verdadeiro problema é que eles ainda percebem suas não-ações
abstratas como um modo de efetivar sua liberdade. Essa dinâmica geral, “a essência da
produção capitalista, ou, se se quiser, do trabalho assalariado”, foi enquadrada por Marx
como a lógica na qual o ser humano experimenta um constante “enriquecimento como o
seu próprio empobrecimento”.35 Pode-se também dizer: sua própria carência de
liberdade como liberdade. O que essa fórmula articula é um modo muito preciso de
apresentar o aspecto sociopolítico daquilo a que me referi com a categoria da
“indiferença”. É dizer, o enriquecimento como seu próprio empobrecimento também
implica numa má compreensão da própria liberdade, e isso conduz a uma
desqualificação da autodeterminação voluntária, o que acarreta uma determinação
heterônoma e reduz o homem a apenas essa determinação.
E, todavia, deve-se manter em mente que o capitalismo obviamente não é
natureza, não é natural e, por isso, a animalidade à qual ele reduz o ser humano não é
uma primeira natureza. No interior da cultura, qualquer forma de natureza já é
mediada, isto é, já é segunda natureza e, nesse sentido, a animalidade à qual os seres
humanos são reduzidos é uma segunda animalidade já processada, já adaptada e
produzida. Em outras palavras: é indiferença produzida. O capitalismo extrapola e
hipostasia um aspecto animal dos animais humanos, mas um aspecto que ele mesmo
produz. E é também por isso que essa animalidade mesma é aberta à modificação, à
mudança, à troca, à mercantilização (for modification, for (ex-)change, for
commodification) – na medida em que corpos, coisas e também animais já podem
funcionar muito facilmente como objetos, também podem ser comprados e vendidos. A
consequência disso é que as pessoas não sabem que são indiferentes, e isso é
33 Pode-se, é claro, perguntar se essa é ainda uma descrição adequada da dinâmica de mercado
contemporânea. Assumo, no entanto, que ainda o é, desde que acrescentando que há ainda uma lógica
peculiar no gastar o dinheiro que não se tem a fim de preservar o status quo no qual, novamente, não se
gasta o dinheiro que se tem.
34 Ele reduz “a sua atividade [do trabalhador] ao movimento mecânico mais abstrato”, Marx 2010, p. 141.
35 Marx, 1968, p. 255
[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016 244
precisamente uma das razões que as torna indiferentes. Elas percebem suas própria
carência de liberdade como sua liberdade – devido a uma concepção errônea de
liberdade na qual se apoiam. Talvez seja ainda mais exato dizer que elas o sabem, mas
não acreditam naquilo que sabem. Elas não sabem, ou não acreditam que sabem, que
não estão numa relação adequada com sua própria essência e natureza, mas agem como
se estivessem. Nos termos de Hegel, pode-se reformular isso dizendo que há uma
contradição que diz respeito à relação entre conceito e realidade, mas que, na posse de
um conceito mal interpretado, essa contradição desaparece. É por isso que, outra vez,
seguem daí ainda outras falácias.
Pode-se aqui suplementar esse diagnóstico com a recordação da afirmação de
Heidegger sobre o caráter distintivo dos humanos e dos animais, a saber, o de que seres
humanos são aqueles seres que tem (e se relacionam com, projetam no interior de) um
mundo, enquanto animais vivem em um ambiente (no qual não é possível algo como um
projetar).36 O que acontece quando há indiferença é que as pessoas perdem seu mundo
(e também todo tipo de projetar). De acordo com um uma afirmação diagnóstica bem
conhecida de Alain Badiou, o mundo de hoje não é mais um mundo, e o nome desse
não-mundo, essa ausência de mundo, é, para ele, mercado. 37 O que é um mundo que já
não é um mundo? É um ambiente, um ambiente de e para predadores e outras espécies
animais “individualmente fracas e avidamente perseguidas”.38 Isso se deve ao fato de
que o próprio conceito de mundo implica que ele pode ser criado e modificado. Um
mundo é um produto – ao menos de projeções e de esforços coletivos – enquanto um
ambiente é como é; nenhuma transformação sua pode ser vislumbrada em seu interior.
Ambientes são como são e, ao menos até um grau muito fundamental, permanecerão
como eram, a não ser que algo os modifique desde fora – como o cometa que se acredita
ter extinto os dinossauros. Ambientes são naturais e se o mundo, ao não ser um mundo,
se torna um ambiente, ele se torna também uma entidade desistoricizada – uma
entidade sem história. Mundos são produtos de ações, interações, projeções, lutas e
eventos. Lutas no interior de um ambiente não mudam nada, elas apenas mostram que
vige o princípio da sobrevivência dos mais adaptados, isto é, que há algum tipo de
competição natural(izada). No interior de um mundo, lutas podem vir a ser algo que
induz a mudança do mundo, e mesmo que transforma aquilo que pensamos sermos
capazes de fazer. No interior do ambiente natural do mercado – que, como deve ser
claro, é um ambiente produzido – não há luta nem transformação imaginável na medida
em que mesmo a liberdade é naturalizada e transformada em uma capacidade dada do
corpo (por exemplo, a capacidade de desejar ou de expressar a si mesmo livremente). O
que há, então, a ser feito? Como retornar à possibilidade impossível de uma luta, mesmo
que uma luta contra a própria concepção errônea de liberdade? Como lutar contra a
própria ideologia espontânea da vida cotidiana, uma ideologia que naturaliza a própria
liberdade?
quais o corpo não é a causa, mas que tampouco são meramente intelectuais, mas antes
movimentam o corpo.40
A vontade é definida, neste livro, como algo que não é uma capacidade corporal,
mas como uma instância que produz efeitos sobre o corpo. Pode-se, assim, deduzir
retroativamente sua existência a partir de seus efeitos. Todavia, o corpo também pode
produzir efeitos naquilo que lhe move, ele pode produzir efeitos sobre aquilo que produz
efeitos sobre ele. Ele pode apresentar restrições corporais aos efeitos que a vontade pode
produzir, ao delinear um âmbito específico do corporalmente possível, daquilo que o
corpo pode fazer. Há, portanto, uma relação peculiar entre algo que é por inteiro
finitude (corpo) e algo que é por inteiro infinitude (vontade). Mas essa relação possui
dois lados.41 Não apenas porque possui dois polos, mas ainda porque os efeitos que um
polo produz sobre o outro são radicalmente diferentes – uma relação que parece
diferente a partir de cada um dos lados envolvidos. A vontade, a expressão da alma,
pode tornar possível o que não é possível para o corpo por si mesmo e, portanto, não
pode ser considerada uma capacidade do corpo. O corpo, por outro lado, limita os
efeitos da vontade e é capaz de introduzir (pensamentos de) limitações na alma de tal
modo a bloquear a infinitude da vontade. O vínculo entre alma e corpo é, assim, não
uma simples relação, na medida em que assume formatos bastante diferentes
dependendo de onde é percebido.
Essa relação, que não pode de fato ser chamada de relação em sentido próprio,
introduz o que Descartes chama de “combates” na alma42 – a alma luta contra os efeitos
que o corpo produz sobre ela, suas paixões, a fim de sustentar uma compreensão
adequada de sua própria liberdade e independência. E Descartes infere daí: isso “leva a
alma a sentir-se impelida quase ao mesmo tempo a desejar e a não desejar uma mesma
coisa; e daí é que se teve ocasião de se imaginar nela duas potências que se
combatem”.43 Isso é o que pode acontecer quando a alma assume a perspectiva do corpo
– um estado de indiferença pode surgir, no qual a alma deseja ao mesmo tempo tanto
40 Para ser mais preciso: Descartes distingue entre atividades da alma que determinam ou a alma ela
mesma ou o corpo, e entre percepções que ou são causadas pela alma ou pelo corpo. Portanto, pode
haver percepções corporais que movem a alma – algo que permite a abordagem disso que chamo de
indiferença. Cf. Descartes, 2010b, pp. 307-308. Deixo uma elaboração completa dessa distinção para
outra hora e lugar.
41 Um modo mais preciso de dizer é: não há relação entre o corpo e a alma.
42 Descartes, 2010b, pp. 321-322.
43 Descartes, 2010b, p. 322.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016 247
sua liberdade quanto sua não-liberdade –, e a razão para isso está numa confluência da
determinação que tem origem na alma e daquelas que emergem do corpo. Para lidar
com esse tipo de conflitos, Descartes sustenta que é necessária uma definição diferente
de autodeterminação livre. Ela não pode ser nem puramente intelectual e conceitual
nem puramente corporal. Para esse fim, é preciso equipar a vontade, no combate, com
“suas próprias armas”, “juízos firmes e determinados”.44 Quanto mais firme o juízo
(manifestando a liberdade da alma), mais firme a realização da sua liberdade. Sua
fortaleza só pode ser medida por seus efeitos, por suas ações.45 Ações que considero
serem livres, autodeterminadas, mas que são ações determinadas heteronomamente,
demonstram a carência dessa espécie de firmeza. Mas como é possível alcançar a certeza
de que se é firme e determinado na própria vontade e na própria ação? De um lado, isso
claramente tem a ver com conhecimento46 – conhecimento da situação em que se está e
conhecimento do que é o bem e o mal. No entanto, do outro lado, o caráter firme dos
juízos da vontade não pode ser completamente derivado do conhecimento. A razão disso
está precisamente na noção cartesiana de verdade, uma vez que ela apresenta um ponto-
limite do conhecimento. É, então, crucial elaborar brevemente esse conceito de
liberdade.
Descartes oferece uma abordagem clara, ainda que difícil, da liberdade em seu
Discurso do método. Ele começa com uma consideração simples: sou capaz de duvidar
porque sei que posso errar. A partir daí, posso inferir que sou capaz de duvidar, pois tive
a experiência do fracasso. Sou capaz de duvidar porque sei que não sou perfeito. É isso
que torna possível obter negativamente o conceito de liberdade, pois possuo o conceito
de falta (erro, fracasso) e uma compreensão própria desse conceito implica em seu
44 Descartes, 2010b, p. 323.
45 Se a alma perde o combate com as solicitações corporais, essa perda aparece sob o disfarce da paixão do
medo (recorde-se que a indiferença é, como citado no início, uma espécie de medo), que “representa a
morte como um extremo mal, que s pode ser evitado pela fuga” Descartes, 2010b, p. 323) sto é
crucial: se o corpo começa a determinar a alma e seus meios de determinar a si própria, a saber, a
vontade, o efeito é um medo fundamental da morte que se assenta no reino da finitude. As
consequências desastrosas de qualquer hipóstase da finitude tem sido analisadas por Badiou em:
Badiou, 2013-2014.
46 Descartes sintetiza isso sob o slogan: “a força da alma não basta sem o conhecimento da verdade”,
47 Jacques Alain-Miller se referiu uma vez à falta da falta como “um lugar – onde não há nada”, Miller,
2002, 139.
48 Descartes, 2010a, pp. 88-89.
49 Idem, p. 90.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016 249
materialização corporal do que o cogito. Ele deve ser aquilo que só pode ser apreendido
no interior de um discurso, de um mundo, mas como aquilo que é ao mesmo
logicamente 'anterior' a ele (uma vez que o criou): Ele é o pré-discursivo pós-
discursivamente apreensível, a falta da falta.
Ele é aquilo que não podemos compreender discursivamente (imaginando-o).
Mas podemos pensar que há algo que não podemos compreender. Posto de modo
distinto: podemos pensar que há algo que não podemos pensar. Podemos pensar
naquilo que terá sempre sido logicamente 'anterior' a qualquer discurso e que é
impensável na medida em que o pensamento é essencialmente discursivo. Se toda
existência – mesmo o cogito – pertence a um arranjo discursivo, Descartes demonstra
que podemos pensar o que é, mas não existe. Podemos pensar um ser – “Deus” – mas
pensamo-lo como algo impensável, pois ele não existe. Temos, assim, uma ideia clara e
distinta do impensável, que é, portanto, completamente racional. Podemos pensar o
impensável como aquilo que não podemos pensar, mas somo, todavia, forçados a
pensar.
Mas o que é pensado se se pensa aquilo que não se pode pensar? A resposta de
Descartes é: liberdade. Pensa-se, portanto, a essência do ser humano.
Consequentemente, Descartes é um dualista, mas um dualista peculiar. É um dualista
porque pensa que há, de um lado, o pensamento, o discurso etc., e, do outro, há o
impensável. O que isso significa? Nas Meditações, Descartes mostrou que posso errar
porque, em um aspecto, sou absolutamente análogo a Deus, a saber, no que diz respeito
à minha liberdade. Sou tão infinitamente livre que minha vontade pode querer A e não-
A ao mesmo tempo. É por isso que posso errar, mas isso também implica uma afirmação
acerca da essência de Deus e, na medida em que lhe sou semelhante nesse aspecto,
também acerca da essência dos seres humanos. Jean-Paul Sartre demonstrou que a
liberdade de Deus, em Descartes, é a de uma contingência absoluta da vontade criativa
(é por isso que Deus é o nome do infinito), em suma: Deus não tem a necessidade de
criar, ele quer criar, e é contingente que ele o queira.50 Se a essência humana é análoga à
de Deus, humanos são tão livres quanto ele é, e se Deus é o nome para o impensável,
então isso quer dizer que minha essência não é uma essência natural. Pois Deus não é
50Sartre, 1968. Nesse aspecto, Descartes antecipa a tese de Meillassoux de que a contingência precede
todo tipo de existência.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016 250
natural; ele é o criador da natureza. É por isso que minha essência deve ser – ainda que
eu apareça, quando existo, como uma entidade natural – não natural ou mesmo a-
natural. Minha liberdade é a-natural e sou, ao mesmo tempo, um ser natural. Todavia,
e essa é a pretensão de Descartes, não se deve nunca naturalizar uma essência. Pois tão
logo alguém concebe a liberdade meramente como uma capacidade que se possui
naturalmente (incorporada no próprio corpo), já está concebendo erroneamente a
liberdade e caindo em um estado de indiferença. Contra isso, a pretensão de Descartes é
a seguinte: não há relação entre o humano e o animal, entre corpo e alma – são
substâncias distintas – mas há algo como um animal humano, uma corporificação da
não-relação. Não há relação entre a alma e o corpo, mas já algo como uma
corporificação dessa não-relação mesma, que é o animal humano.
Agindo-como-se-não-se-fosse-livre: o fatalismo
Isso porque logo que começo a enfatizar o talvez, o “pode ser”, a possibilidade dos
dois lados de uma escolha em detrimento da escolha de um dos dois lados, eu não
apenas tomo partido da indeterminação mas também da ideia de que as coisas
poderiam se dar de qualquer maneira. Concebo a contingência, consequentemente, em
termos de arbitrariedade. Pode-se, portanto, derivar daí que a indiferença também é o
nome de um status no qual qualquer via está bem para mim.51 A indiferença enfatiza a
arbitrariedade de duas vias possíveis que podem até mesmo se mostrar conceitualmente
como contraditórias; e, tão logo ajo assim, enfatizo algo que pode ser, mas que também
pode não ser. Com isso, tomo partido de uma forma fraca de contingência. Não de uma
contingência que me permitiria fazer uma escolha – contingência como a origem da
liberdade – mas de uma contingência da escolha e de seu resultado. Tomo partido, com
isso, daquilo que Descartes chama de “fortuna”.52 Tão logo penso que possuo o poder de
escolher qual será o curso do mundo ou da história e permaneço no interior dessa mera
possibilidade, tenho a impressão de que poderia determinar o mundo a qualquer
momento que queira. No entanto, o que ocorre, de fato, é que fico dependente dos
contextos de fortuna arbitrários que já sempre me determinam de maneira heterônoma.
Quando acredito que a realidade e a efetividade de minha liberdade está em sua
possibilidade mesma, hipostasio essa possibilidade e termino sendo determinado pela
arbitrariedade.
Para evitar essa hipóstase de uma contingência fraca, apenas uma coisa pode
ajudar: a defesa da necessidade absoluta, do determinismo total. 53 A ideia que Descartes
avança é a seguinte: é preciso assumir que tudo já está pré-determinado, mesmo que
nunca se possa e nunca se vá saber de que modo. Essa disposição da mente é a única que
evita que eu caia na posição idealista de assumir que eu poderia determinar qualquer
coisa, e que todas as coisas estão em meu poder, isto é, que liberdade é uma capacidade.
Uma tal postura, em primeiro lugar, suspende a identificação de liberdade e capacidade.
E permite assumir o impacto determinado completo da contingência (de Deus), que, em
51 Em termos políticos, isso implica obviamente não apenas na abolição da política, mas também no
próprio procedimento no qual qualquer eleição parlamentar se baseia fundamentalmente.
52 Fortuna é, portanto, para Descartes, uma “quimera que provém apenas do erro de nosso
54 A coragem “dispõe a alma a se entregar poderosamente à execução das coisas que ela quer fazer, de
qualquer natureza que se am”, Descartes, 2010b, p. 383. A ousadia é definida como “uma espécie de
coragem que dispõe a alma à execução das coisas que são mais perigosas”, idem, ibidem. E livrar-se da
liberdade como uma capacidade minha é uma manobra bastante perigosa.
55 Descartes afirma aqui algo semelhante a Badiou: Não temos nenhum poder contra a verdade. Cf.
Badiou, 2005.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016 253
ente inumano. Se se assume isso, pode-se evitar a espécie de indiferença que delineei
acima. O fatalismo, a defesa da necessidade absoluta, pode ser considerado uma
ferramenta para uma renovação de um humanismo verdadeiramente inumano, de ações
reais e de ações do real, em suma: de liberdade. Era o que Descartes pensava, e para
mim isso parece válido especialmente hoje: apenas uma fatalista pode ser livre. Isso
porque não há nada sobre o que ter esperanças, nada no que se fiar, e em certo sentido
não há nada sobre o que tenhamos algum poder. Mas isso evita que se caia na armadilha
de agir como se se fosse livre. Portanto, hoje ainda mais, sustento que é preciso arriscar
ser um fatalista. Dever-se-ia arriscar seguir o novo grito de batalha: aja como se não
fosses livre.
Referências
HEGEL, G. W. F. Grundlinien der Philosophie des Rechts (= Werke Bd. 7). Frankfurt a.M.:
Suhrkamp, 1989.
HEGEL, G. W. F. Curso de estética: O belo na arte. Trad. Orlando Vitorino. São Paulo: Martins
Fontes, 1996.
HEGEL, G. W. F. Linhas fundamentais da Filosofia do Direito. Trad. Paulo Meneses et al. São
Paulo: Loyola; São Leopoldo: Unisinos, 2010.
HEGEL, G. W. F. Fenomenologia do espírito. 6ªed. Trad. Paulo Meneses, colab. K.-H. Efken e J.
N. Machado. Petrópolis: Vozes, 2011.
HEIDEGGER, Martin. Os conceitos fundamentais da metafísica: mundo, finitude, solidão. 2.
ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011.
KANT, Immanuel. A religião nos limites da simples razão. Trad. Artur Mourão. Lisboa: Edições
70, 1992.
KOJÈVE, Alexandre. Introdução à leitura de Hegel. Trad. Estela Abreu. Rio de Janeiro:
Contraponto, 2002.
LOHMANN, Georg. Indifferenz und Gesellschaft: Eine kritische Auseinandersetzung mit Marx.
Frankfurt a.M.: Suhrkamp, 1991.
MARX, Karl. Theorien über das Mehrwert. Dritter Teil (= Marx-Engels Werke Bd. 26.3).
Berlim: Dietz, 1968.
MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos. Trad. Jesus Ranieri. São Paulo: Boitempo,
2010.
MARX, Karl. O Capital: Crítica da economia política. Livro I. O processo de produção do capital.
Trad. Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2013.
MILLER, Jacques-Alain. Matrice. In: ________. Un debut de la vie. Paris: Gallimard, 2002,
pp. 135-144.
NANCY, Jean-Luc. Descartes : L’extension de l’âme / Exister c’est sortir du point, Strasbourg:
Editions du Portique, 2004.
OCKAM, Guillemi de. Scriptum in Librum Primum Sententiarum, Ordinatio, Opera
Theologica, Prologues et Distinctio Prima. St. Bonaventure: Franciscan Institute Publications,
1967.
RUDA, Frank. Hegel’s abble: An nvestigation into Hegel’s Philosophy of Right. London/New
York: Continuum, 2011.
RUDA, Frank. Who Thinks Reductively? Capitalism’s Animals, in: theory@buffalo (no prelo).
SALECL, Renata. The Tyranny of Choice. London: Profile Books, 2011.
SARTRE, Jean-Paul. A liberdade cartesiana. In: ________. Situações I. Lisboa: Europa-
América, 1968, pp. 282-301.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 8, n°12, vol. 1, 2016 255
IMPEACHMENT
Memória do 1º ato da farsa brasileira de 2016
Uma Vergonha, Vergonha, Vergonha. Impeachment pelo Meu Pai Que Tanto Sofreu Na
Mão do PT. Impeachment por Você, Meu Pai. Impeachment Para Dizer Tchau ao
Partido das Trevas. Impeachment pela Família Paulista. Impeachment Porque o Povo
Está Morrendo Nos Hospitais E Ninguém Faz Nada. Impeachment pelo Estado de São
Paulo Que É Governado Há 20 Anos Por Políticos Honestos do Meu Partido.