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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

FACULDADE DE DIREITO
DEPARTAMENTO DE SEGURANÇA PÚBLICA

RODSON WILLIAM BARROSO JUAREZ

JUIZADO ESPECIAL CRIMINAL


Percepções de um modelo de justiça

Niterói/RJ
Março/2016
UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
FACULDADE DE DIREITO
DEPARTAMENTO DE SEGURANÇA PÚBLICA

RODSON WILLIAM BARROSO JUAREZ

JUIZADO ESPECIAL CRIMINAL


Percepções de um modelo de justiça

Trabalho apresentado como avaliação parcial


para a disciplina Sociologia Jurídica,
ministrada pelo Prof. Dr. Pedro Heitor ao
curso de Bacharelado em Segurança Pública
da Universidade Federal Fluminense no
período letivo 2015.2.

Niterói/RJ
Março/2016
SUMÁRIO

1 O Campo ............................................................................................................................ 03

2 O Trabalho dos Profissionais ..................................................................................... 04

3 Relação com a Teoria ................................................................................................ 06

Bibliografia ................................................................................................................... 08
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1 O Campo
No dia 16 de março de 2016 foi realizada pesquisa de campo do Tribunal de Justiça do
Estado do Rio de Janeiro, comarca de Niterói, no prédio do Fórum Desembargador Enéas
Marzano, no Juizado Especial Criminal (JECRIM), com a finalidade de observar e descrever
aspecto do trabalho realizado por profissionais do direito dentro de um fórum de justiça,
atendendo ao enunciado de avaliação parcial da disciplina Sociologia Jurídica, ministrada ao
terceiro período do curso superior de Bacharelado em Segurança Pública da Faculdade de
Direito da Universidade Federal Fluminense.
A escolha por uma Vara de procedimento mais dinâmico, obedecendo aos objetivos da
legislação brasileira para a celeridade das ações do Judiciário, deu-se pela expectativa de
assistir a mais de uma audiência com apenas um visita, na tentativa de promover o
estranhamento dos procedimentos formais aplicados no cotidiano daquele ambiente,
produzindo efeitos diferentes conforme o procedimento adotado pelos funcionários da Justiça
do Estado do Rio de Janeiro.
Mesmo com estrutura arquitetônica moderna, com portas de vidro que espelham pátio
e jardim, provocando uma evidente separação entre o cidadão comum e o ambiente do
judiciário, o acesso ao campo se deu de forma simplificada, pois a prática da publicidade do
JECRIM, por força legal, acaba servindo às convenções dos diversos cursos de Direito da
cidade na demanda por horas curriculares de atividades complementares, criando um caminho
amplo e de alto fluxo de estudantes, possibilitando a circulação de pesquisadores nas salas de
audiências.
A porta principal ostenta placas de papel que sinalizam ENTRADA e SAÍDA, já
promovendo segregação pela possibilidade de decodificação da comunicação pela pretensa
alfabetização dos usuários do sistema judicial. Logo depois da porta, seguranças armados
orientam a passagem por detectores de metal e máquinas de raio “x” para varredura das bolsas
dos indivíduos usuários, representando forte constrangimento no comportamento daquele que
passa pela revista, revalando o perfil de desconfiança do ambiente. Um balcão identificado
por placa em material refinado com a grafia “informações” pressupões a possibilidade de
recepção e acolhimento, mas a frieza no tratamento devolve o usuário ao seu lugar de
descolamento daquele ambiente.
A fila para acesso aos elevadores que conduzem ao andar informado pela recepcionista
agrega pessoas com trajes formais, com paletós, sapatos de couro fino, mulheres usando saltos
altos e bolsas de grife, usando linguagem formal e pouco descontraída. Ao chegar ao andar
indicado não há sinais visuais claros que situem o usuário, mas com insistência acaba-se
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achando a secretaria da vara. Mais um local de tratamento frio e seco informa as salas de
audiência e as pautas do dia, expostas em mural no corredor com poucas cadeiras de espera e
pessoas que se entreolham com desconfiança e silencio, oras quebrados pela linguagem e tom
característicos, carregados de tecnicidade.

2 O Trabalho dos Profissionais


A dinâmica de desenvolvimento das atividades dentro do juizado se manifestou,
durante a realização da pesquisa de campo, em desconformidade com as previsões legais
apara as audiências preliminares de conciliação. Como a vara trata de processos criminais de
menor potencial ofensivo, com ritos previstos na Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995,
que dispõe sobre os Juizados Especiais Cíveis e Criminais e dá outras providências, a clientela
atendida e os casos que deram origem ao processo se manifestam como produto do cotidiano
dos indivíduos, causando transtornos mediáveis.
Mesmo com o ordenamento legal citado prevendo, em seu artigo 72, a presença o Juiz
na audiência preliminar e a condução da conciliação por tal Juiz ou de outro conciliador, mas
sobre a supervisão do primeiro, conforme artigo 73 do mesmo instituto, o que se observou foi
a condução por conciliadores voluntários, sem a presença de serventuário do judiciário,
tampouco de um Juiz. Assim, os conciliadores presentes, todos bacharéis em Direito, mesmo
a legislação não restringindo a formação acadêmica citada, mas preferindo-a, passam a dar
vida ao rito formal da audiência.
A realização do pregão, com chamamento repetido por três vezes em alto e bom som
do nome completo dos envolvidos no processo (partes), ecoando nos corredores do nono
andar do fórum. As partes entram por uma porta que dá acesso a uma antessala com vasos e
poltronas confortáveis, mas de intenso fluxo, pois o objetivo das pessoas naquele ambiente é
chegar à sala de audiências, atendendo ao chamado dos conciliadores. Nas quatro salas,
identificadas por placas contendo os respectivos números de 1 a 4, ficam dispostas duas
mesas. Em uma sentam os conciliadores, que compartilham um computador, conectado à rede
interna do Tribunal e a uma impressora. Na outra mesa ficam dispostas quatro cadeiras, duas
de cada lado, reservada às partes do processo e seus devidos advogados. No canto da sala fica
uma cadeira reservada para estudantes, evidentemente deslocada da mesa doas partes.
Um dos conciliadores toma a liderança dos trabalhos e abre a audiência com
saudações convencionais como “boa tarde”. O outro conciliador reserva-se à função de
registro do termo ou resumo da audiência, intervindo quando solicitado pelo conciliador que
preside os trabalhos ou quando percebe a necessidade de equilibrar o ambiente, emanando
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sugestões ou opiniões para a boa prática da comunicação. Durante as quatro audiências


preliminares realizadas e presenciadas pela pesquisa, logo após a saudação inicial, o
conciliador perguntava sobre a existência ou possibilidade de acordo ou conciliação. Mesmo
antes de fazer uma leitura prévia do processo ou alinhamento das razões de cada parte,
impondo um perfil claro para as partes e sem construir espaço de negociação ou de mediação
de conflitos, desconsiderando as causas do conflito, mas focando em seus efeitos.
As partes que não se apresentaram com advogados foram conduzidas pela rotina do
conciliador, que demonstrou relativo saber do direito e manifestou postura dominante da
relação ma maioria das audiências, revelando o perfil hierárquico da audiência de conciliação,
ou seja, representava a figura do juiz de direito que deveria fazer parte da audiência, mas que
acaba revelando sua presença na aplicação de rotinas de outros tribunais, de experiências
pregressa do conciliador.
A conversa entre os conciliadores durante a realização das audiências demonstra
pouco entrosamento com o sistema interno do Tribunal de Justiça, o que acaba quebrando o
ritmo das falas na audiência, uma vez que dirigem atenção demasiada ao registro das ideias
centrais da conciliação, em detrimento da atenção demandada pelas partes, que demonstram
inquietação enquanto aguardam a conclusão de um parágrafo no registro pelo conciliador
para, então, retomarem a negociação.
Advogados que acompanham as partes representam um papel de alta relevância na
dinâmica da audiência preliminar, empregando termos técnico-jurídicos, calando as partes e
tomando decisões inclusive sobre valores e condições de reparação de ofensas. A postura de
disputa entre tais advogados conflita mais com o papel de liderança do conciliador do que
com a questão que dera causa ao processo, desvirtuando a finalidade da audiência, que passa a
representar mais um rito processual padronizado do que a possibilidade de resolução ou
restauração da harmonia entre as partes.
Exemplo claro dessa percepção pode ser observado em caso dano ao patrimônio,
considerando a ação de um condômino danosa, causando prejuízo material em instalação
comum de seu condomínio, reclamado pela síndica. Processo robusto, com juntada de perícia
particular, degravação de áudio e descrição de documento em vídeo. A síndica cobrou todos
os custos com troca de fechadura, mão de obra, perícia e honorários advocatícios, exigindo
ressarcimento do valor. O réu considerou a cobrança abusiva, relatando que não deu causa ao
dano nem aos custos demandados. Mas o conciliador entrou em confronto direto com um dos
advogados, em disputa por poder simbólico, o que acabou contaminando a possibilidade de
conciliação entre as partes.
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3 Relação com a Teoria


Perceber as manifestações simbólicas no campo realizado não demanda grande
exercício, pois ao não se identificar como pertencente a um determinado sistema simbólico, os
códigos e signos se manifestam mais claramente, uma vez que não ocorreu prévia
internalização de condições que fizesse naturalizar as rotinas desenvolvidas na dinâmica do
Tribunal de Justiça, por exemplo.
Pierre Bourdieu (1989), quando escreve sobre o poder simbólico, deixa claro que a
percepção de um sistema de representações simbólicas demanda destreza do pesquisador
quando estiver realizando campo, pois é preciso saber descobri-lo onde é mais ignorado. Essa
lição nos proporciona a percepção da condição da naturalização das ações cotidianas, que não
demandam reflexões, mas se desenvolvem despretensiosamente, e seguem negadas quando
identificadas por observador externo.
A disposição dos assentos, a linguagem, a vestimenta, o prédio e seus acessos. Tudo
isso carrega perfil simbólico naturalizado por operadores do Direito, que atualizam
significados e os reintroduzem em seus sistemas simbólicos, tornando-os naturais e não
reconhecidos. Essa prática, modela seu comportamento, modulando suas manifestações sócias
e provocando afastamento de seu grupo, ou campo, de outros, inclusive de seus próprios
clientes. Um dos sistemas simbólicos mais evidentes é o uso da linguagem característica do
meio no qual estão imersos na ação profissional, passando a consolidá-la como “estrutura
estruturante” (BOURDIEU, 1989).
Essas estruturas, construídas a partir da linguagem, por exemplo, passam a compor
universos representativos do “(...) mundo dos objetos como aspecto ativo do conhecimento”
(BOURDIEU, 1989). Assim, quando os advogados das partes citam as leis por seus números,
utilizam verbetes jurídicos, termos do latim, estão demonstrado seu status de conhecimento e
sua capacidade de pertencimento ao grupo, ao mesmo tempo em que afasta seu cliente desse
mesmo grupo, supervalorizando seu conhecimento.
Mas no caso exemplificado do condomínio, a disputa por capital simbólico veio
emergir no diálogo entre o conciliador e um dos advogados, que questionou o tempo atuação
na advocacia por parte do conciliador, evidentemente mais jovem que o interpelante. A carga
simbólica embutida nesse questionamento ficou evidente para os demais, mesmo aos não
participantes daquele campo jurídico, causando desconforto e necessidade de resposta do
conciliador, que informou não classificar os litigantes e seus representados por esse quesito
levantado para hierarquizar indivíduos do mesmo grupo.
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Questão intrigante é manifesta na postura de ambos em uma audiência de conciliação


no JECRIM, mantendo a formalidade na interação, mesmo quando os símbolos requisitados
não conferem com os códigos utilizados, corroborando com a abordagem de Liora Israël
(2012), quando compara as funções de uma corte judicial às funções de atores em uma peça
cênica, com representações de personagens e direção por parte de juízes. No exemplo em
análise, o papel do Juiz passa a ser reproduzido pelo conciliador, que se veste dessa
representação e porta-se como um juiz, exigindo a palavra e a obediência dos demais, como se
a audiência de conciliação fosse uma audiência de instrução e julgamento na presença de juiz
nato.
Outra absorção da compreensão de Israël (2012) está na percepção do que ocorre na
ausência da plateia, ou seja, quando os indivíduos não pertencentes àquele grupo ou campo
não estão presentes. Reparações e ajustes de conduta e falas são livres e, despidos de seus
personagens, admitem linguagem não excludente, deixando a modulação em segundo plano
ou para momento oportuno, diante de uma plateia reconstituída.
Seguindo no exemplo do processo do dano ao patrimônio do condomínio, o
enfretamento direto entre o conciliador e um dos advogados, além de demonstrar afirmações
de posicionamento dentro de um mesmo sistema simbólico, demonstrou essa modulação
própria de um ator em cena, pois quando o advogado deixou a sala de audiência sem chegar a
um acordo para seu cliente, o conciliador que dirigia a sessão respirou fundo, fechou os olho,
levantou e baixou os ombros, demonstrando evidente alívio ao terminar aquela cena. Olhou
para a conciliadora que registrara e reduzira a termo a audiência e exclamou seu
descontentamento: “mas que cara desagradável!”. Essa mudança na modulação
desconsiderou, por um breve momento, a presença do pesquisador na sala. Ajustou sua
abordagem, pactuou com a outra conciliadora e realizaram novo pregão.
Essa modulação não ocorre somente na dimensão preconizada por Israël (2012), mas
representa, também, a “violência simbólica” considerada por Bourdieu (1989), na medida em
que o comportamento do conciliador impõe uma definição de mundo social aos participantes
da audiência, demandando para si as respostas para os conflitos pelo emprego do monopólio
dos instrumentos de conhecimento, transformando os conflitos simbólicos da vida cotidiana
em lógica de transformação social indireta, por meio de processos específicos.
Tal condição se revelou na condução de outra audiência; sobre acidente de trânsito,
sem a presença da vítima e do Ministério Publico. Ainda assim, a proposta de transação penal
foi realizada pelo conciliador, que induziu o réu a não aceitar, por ora, postergando a solução
do processo pela aplicação de multa em oportunidade futura caso a vitima comparecesse.
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Assim, essa imposição representa essa violência simbólica conceituada por Bourdieu (2012),
pois a resposta representa essa definição de mundo social, aplicada de forma indireta por
especialista. Assim, a solução é requerida por um sistema simbólico e aplicada dentro de suas
matrizes de conhecimento.
Ambos os exemplos tratados até aqui revela a tentativa do Direito Formalista, mesmo
em procedimento primando pela oralidade, em produzir os efeitos próprios de um sistema
simbólico específico. A percepção de Bourdieu (1989), em relação a essa característica do
Direito em demandar essa autonomia absoluta da forma jurídica do mundo social, aponta o
instrumentalismo como reflexo ou utensílio em favor dos dominantes, os especialistas, ou
operadores do Direito.
O que se pode apreender do comportamento dos conciliadores observados pela
pesquisa no JECRIM no Tribunal de Justiça em Niterói é a incorporação da figura do juiz nas
audiências de conciliação. Não que represente somente um movimento de usurpação da
função máxima na audiência por deliberada intenção do conciliador. Werneck Vianna (1999)
analisa esse comportamento nas relações sociais brasileiras, identificando a judicialização das
relações após período de positivação das leis e imposição do comportamento. Os indivíduos
passam a outorgar a solução de suas lides ao protagonista do processo de harmonização
social, o juiz, que passa a significar o vigilante e garantidor de direitos e das leis.
Assim, quando o juiz não se faz presente numa audiência formal, mesmo que
preliminar, as partes imputam essa função ao conciliador, que representa a autoridade
judiciária naquela sessão. Mesmo os especialistas, advogados representando seus clientes,
demandam por essa atenção e figura representativa, realmente protagonista naquela cena.
Então, o conciliador, mesmo que não queira recepcionar a figura ou representar o personagem
do juiz, replica a violência simbólica de dominação instrumental e posicionamento
hierárquico dentro do grupo, produzindo efeitos reais da via social.

Bibliografia

BOURDIEU, P. O Poder Simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989. Capítulos I e


VIII.

ISRAËL, Liora . As encenações de uma justiça cotidiana. Revista Ética e Filosofia Política.
Juiz de Fora, 2010. Acesso em 19 Mar. 2012.

WERNECK VIANNA, L. et al. A judicialização da política e das relações sociais no


Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 1999.

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