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12 JORNAL DA UNICAMP Campinas, 6 a 12 de outubro de 2008

A Dançando conforme a
LUIZ SUGIMOTO
sugimoto@reitoria.unicamp.br

profissão de músico a-

musica
presenta suas singulari-
dades, mas este traba-
lhador também vem se

´
submetendo aos pa-
drões de flexibilidade exigidos em
outras áreas de atividade, a fim de fa-
cilitar sua inserção no mercado de tra-
balho, hoje composto por profissio-
nais que vêem na versatilidade o prin-
cipal mecanismo de sobrevivência. O
trabalho e a formação profissional no
campo da música é o tema de “Eu
despedi o meu patrão”, tese de dou-
torado de Zilmar Rodrigues de Sou-
za, orientada pelo professor Ricardo
Goldemberg e apresentada no Insti-
tuto de Artes (IA) da Unicamp.
Zilmar Rodrigues, que dirige a Es-
cola de Música da Universidade Fede-
ral do Rio Grande do Norte (UFRN),
faz uma distinção entre o trabalhador
músico e os demais trabalhadores. “A Segundo o autor da tese, “é
estrutura orquestral ilustra bem a con- comum o músico de orquestra
cepção de divisão e especialização do sair de um concerto e ir tocar
trabalho no âmbito musical, que é si- jazz num bar”
milar à divisão de tarefas numa indús-
tria automobilística. Mas, embora o
músico execute uma habilidade aparen-
temente repetitiva, ele é valorizado na
sua individualidade. Já para o operá-
rio, o trabalho é um meio de satisfazer
as necessidades situadas fora dele”.
Segundo o pesquisador, a ativida-
de musical também inclui aspectos
rotineiros como o treinamento base-
ado na repetição obstinada de movi-
mentos, as técnicas de ensaio que
pedem a retomada exaustiva de tre-
chos da música e até o ritual que an-
tecede o ensaio – pontualidade no
horário, afinação do instrumento,
aquecimento. “Ainda assim, e mes-
mo o trabalho sendo parcelar, a ativi-
dade do instrumentista é dinâmica e
traz a idéia de interpretação coletiva”.
Rodrigues acrescenta que o ope-
rário, por sua vez, é alienado do pro-
duto de seu próprio esforço, desper-
tando interesse apenas por sua força
de trabalho, sendo por vezes reconhe-
cido como “funcionário do mês”. “Já
o músico tem seu nome incluído na lho assalariado. Resta ao músico tor- na Unicamp, tem alunos que vieram
programação, no portfolio e no dis-
co da orquestra. Além disso, se qual-
quer trabalhador da indústria pode ser
nar-se plural em suas atividades, flexí-
vel perante o mundo do trabalho; um
indivíduo que seja quase uma ‘firma’”.
de São Paulo e da Argentina para es-
tudar violoncelo com ele”.
Zilmar Rodrigues informa que o
Do estigma ao
substituído, um violinista de notori-
edade dificilmente será preterido por
Ao pleitear a vaga no doutorado
na Unicamp, o pesquisador apresen-
autodidatismo ainda é muito presente
na formação do músico e que muitas
temor dos pais
outro, pois tem uma forma pessoal tou projeto para estudar o impacto e orquestras do país não exigem o diplo- Em um dos capítulos da sua tese
de tocar, imprimindo a sua marca”. os frutos da reforma nos cursos téc- ma para a admissão de músicos. “A de doutorado, Zilmar Rodrigues de
De acordo com o autor da tese, o nicos de música. Aprovado para o seleção visa atestar a competência do Souza procura mostrar como a
próprio músico sempre tendeu a se programa, ele se deparou com auto- candidato. Da mesma forma, diploma profissão de músico foi se
diferenciar dos demais trabalhadores, consolidando no Brasil, recorrendo
res da sociologia das profissões e não é pré-requisito para o músico po-
para isso a clássicos da literatura e a
como se a sua obra, enquanto fruto decidiu incluir no projeto a questão pular entrar no mercado de trabalho”. trechos de músicas e letras. “O
do talento, não tivesse preço. “Entre- da profissionalização, visando saber O diploma é uma exigência, sim, violonista dos romances de Lima
tanto, esta idéia de trabalhador sin- quem é o trabalhador músico de hoje. na academia. Segundo o autor do es- Barreto – como em Clara dos Anjos e
gular vai sendo revista, diante das “Promover este recorte na área pro- tudo, em concursos para professores em Triste Fim de Policarpo
mudanças ocorridas nas últimas dé- fissional foi um desafio, pois a forma- adjuntos exige-se inclusive o douto- Quaresma – aparece sempre como
cadas, como novas configurações da ção do músico é variada e o auto- rado em música, o que já representa- um malandro à margem da sociedade.
música na sociedade, novos espaços didatismo ainda é predominante”. ria uma grande mudança no cenário É difícil estudar uma profissão em
de atuação, bem como novos concei- Rodrigues também se deu conta de da profissionalização. “O magistério que seu próprio exercício esteve
tos estilístico-musicais e novas pos- que ainda existe um muro entre a mú- sempre foi uma fatia importante do vinculado à boemia e malandragem”.
sibilidades de consumo”. sica popular e a música erudita, en- mercado de trabalho para o músico. As observações na Escola de
Rodrigues ressalta que, com o ba- Música da UFRN permitem a Zilmar
contrando dificuldades para fazer esta São portas que vão se abrindo, embo-
Rodrigues afirmar que esta imagem
rateamento dos custos da gravação e delimitação. Julga, entretanto, que os ra sejam pouquíssimas as pós-gradu- perdura até hoje. “Quando o filho
a popularização dos estúdios, e a limites entre o erudito e o popular se ações no país e a Unicamp e a UniRio escolhe a música como profissão,
digitalização musical e a veiculação tornam cada vez mais tênues. “É co- sejam as únicas a oferecer o curso de percebe-se claramente o receio dos
da música via Internet, ficou fácil mum o músico de orquestra sair de graduação em música popular”. pais com relação às dificuldades Zilmar Rodrigues de Souza, autor do
produzir o próprio disco e divulgá-lo um concerto e ir tocar jazz num bar”. financeiras futuras. Se for uma filha, trabalho: o músico está sujeito às
na rede. “Agora, o músico precisa Crônicas o receio aumenta, pois a visão é de normas e regras delineadas pelo
pensar nas estratégias que irá utili- Diploma A partir de informações obtidas que ela vai entrar em espaço mercado
zar para dar visibilidade ao produto Na tese, Rodrigues tece concei- nas entrevistas com alunos da Esco- dominado por homens. Mesmo nos
por ele criado”. tos e reflete sobre o profissional da la de Música, Rodrigues escreveu cursos que oferecemos para crianças performática. Quando chega, ele
música, além de colher a opinião de cinco crônicas comentadas sobre o da comunidade, os pais apreciam a encontra uma estrutura burocratizada,
idéia da educação musical, mas com departamentos e coordenações,
Flexibilidade alunos e professores da Escola de trabalhador músico, que compõem
temem qualquer orientação para a sendo obrigado a participar de
Zilmar Rodrigues está atento às Música da UFRN sobre formação, um dos capítulos da tese. “Elas en- formação profissional”. reuniões e comissões, corrigir provas,
mudanças desde 1999, quando assu- profissão e mercado. Ele observa que volvem questões como gênero, Rodrigues convida ainda a fazer pesquisa e também tocar. Tudo
miu a coordenação do curso técnico o músico, ao chegar à escola, geral- sindicalização, saber formal e autodi- reflexões sobre a profissionalização isso toma muito do tempo que um
na Escola de Música da UFRN. Era mente já foi iniciado no instrumen- datismo, e também a flexibilidade, no país, atentando para a músico gostaria de dedicar ao seu
o momento em que o Ministério da to, e alguns buscam o diploma ape- considerando que o profissional ver- desconstrução da indústria instrumento”.
Educação promovia uma reforma na nas para validar esta condição. “Os sátil é aquele que possui mais chances fonográfica, que antes intermediava o De um modo geral, Zilmar
Educação Profissional, com novas outros querem mesmo o aprimora- de se inserir no mercado”. sucesso do músico popular. “O Rodrigues afirma que trabalho do
orientações curriculares para adequar mento técnico, sendo comum apon- Um exemplo é do saxofonista sucesso era então medido pela músico possui singularidades nem
esta formação às demandas de mer- tarem o excesso de teoria em detri- que, ao pleitear uma vaga, é solicita- vendagem de discos. Hoje, sempre notadas noutras áreas
cado. “Conceitos como flexibilidade mento da prática”. do a também tocar instrumentos pró- entretanto, o disco não é mais um profissionais, como talento,
fim, e sim um meio de o músico se criatividade, inspiração e
e modularização, tão discutidas em O ensino de música no país, ex- ximos, como flauta e clarinete. Uma
projetar, aproveitando o barateamento originalidade, mas que, no entanto,
outras áreas, foram transpostas tam- plica o pesquisador, vem de um mo- crônica de Zilmar Rodrigues trata de e o fácil acesso a gravações para hoje está sujeito às normas e regras
bém para a música”. delo conservatorial que privilegia a um aluno baterista que abdicou em divulgar sua música rapidamente pela delineadas pelo mercado. “O
O pesquisador informa que a in- performance, ao passo que a acade- parte do autodidatismo para apren- Internet”. exercício da profissão musical passa
tenção é de que os currículos ofere- mia privilegia o saber certificado. der edição de partituras e harmonia. A tese trata também do trabalho a se inserir num contexto de relações
çam aos alunos uma vivência do que “Muitos alunos procuram a escola “Ele ganhou dinheiro editando parti- do professor de música nas concretas e complexas referente à
enfrentarão como profissionais. por causa da excelência de um pro- turas no computador e passou a leci- instituições de ensino, que o autor divisão do trabalho no mundo
Mais: que eles sejam preparados para fessor. Aliás, outra peculiaridade na onar harmonia. A idéia de flexibili- considera outra vítima de conflitos. capitalista, no que diz respeito aos
gerenciar a própria carreira, evitan- música é a figura do mestre, que sem- dade vinda do setor produtivo, em “Geralmente, quem se propõe a meios de produção, às profissões,
do muitas vezes a especialização em pre cumpriu papel essencial no âm- que o trabalhador tem a sua ocupa- ensinar na universidade é um músico relações de emprego e carreiras
um instrumento ou gênero musical. bito do ensino musical. Um docente ção mas desempenha várias funções, de excelência, com grande habilidade profissionais”.
“São poucos os espaços com traba- da nossa escola, que faz doutorado está chegando à música”.

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