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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

GABRIEL REBELLO
FERNANDO ALBUQUERQUE VICTORINO
RODRIGO JOSÉ DUARTE BAPTISTA FILHO

TRABALHO DE DIP

Rio de Janeiro
2018
Aspectos jurídicos da chamada “conciliação nacional”

O golpe militar de 1964 inaugura um período de repressão política inédito no


Brasil. O golpe depôs João Goulart da Presidência da República, sob pretexto de afastar
imaginária influencia comunista do país em um contexto de Guerra Fria. O regime que
inicialmente não pretendia, de acordo com a ala mais moderada, se estender até a
convocação de novas eleições, durou 21 anos.

Depois da presidência de Castelo Branco, general da citada ala moderada,


assume em 1967 o general Costa e Silva que no ano seguinte baixa o Ato Institucional
número 5, instrumento importante do recrudescimento do regime. Nos anos seguintes
foi criado o Destacamento de Operações de Informação – Centro de Operações de
Defesa Interna, o DOI-CODI, que centralizou e sistematizou a repressão aos opositores
do governo, sob o comando de Geisel, até então ministro.

O número de pessoas que passaram pelo DOI-Codi de São Paulo chega a 6.700,
dos quais presume-se que pelo menos 50 foram assassinados estando sob custódia do
exército. Entre eles, o operário Manoel Fiel Filho e o jornalista Vladimir Herzog.

No dia 24 de outubro de 1975, Vladimir Herzog, que ocupava o cargo de diretor


de jornalismo da TV Cultura, foi torturado e morto na sede do DOI-Codi, apesar de ter
se apresentado espontaneamente e não representar perfil de “subversivo perigoso”. Na
época, a versão oficial dos militares classificava o episódio como suicídio, procurando
sustentar sua narrativa com base numa fotografia e num laudo médico – ambos
evidentemente forjados.

A morte de Herzog causou grande comoção. Ocorreram vários dias de greves


chamadas tanto pelo sindicato de jornalistas e por estudantes e professores
universitários. Milhares de pessoas participaram da missa ecumênica realizada na
catedral da Sé, em São Paulo.

Em 1976, a família de Herzog move ação para declarar a responsabilidade da


União pela tortura e morte do jornalista. O processo, terminado com decisão definitiva
apenas em 1995, culminou no pagamento de indenização aos familiares e no
reconhecimento da responsabilidade estatal pelo crime. Vale lembrar que a família
Herzog não cessou suas tentativas de buscar a responsabilização penal e especialmente
declarações públicas do Exército.

Nova investigação iniciada em 1992, após solicitação do Ministério Público, foi


arquivada pelo TJ-SP com base na Lei da Anistia. Em 1993, tal decisão foi reiterada
pelo STJ. Não é só o caso Herzog que encontra resistência na Anistia: todas as 27 ações
penais em curso contra agentes militares têm n… A lei 6.683 de 28 de agosto de 1979,
popularmente conhecida como Lei da Anistia, foi um dos elementos centrais do pacto
realizado entre militares e setores da oposição pela transição democrática brasileira.
Imposta no período final da ditadura, sua função real foi – e ainda é – a proteção de
militares envolvidos violações de direitos humanos em face do ocaso do regime.

Tentando atender ao outro lado da conciliação, o Estado brasileiro oferece desde


1995 indenizações para familiares de pessoas desaparecidas após detenção por razões
políticas. Isso foi possível graças a lei nº 9.140, sancionada pelo presidente Fernando
Henrique e posteriormente ampliada no governo Lula. A lei reconhecia a
responsabilidade estatal pelos desaparecimentos forçados mas deixava intocada a
responsabilidade imediata dos agentes militares envolvidos – uma estratégia
conciliatória questionável em vários aspectos.

É evidente que a efetividade da resposta penal com objetivo da “não-repetição”


pode ser questionada e relativizada, especialmente se comparada a importância dos
arranjos institucionais e outros mecanismos de controle democrático das Forças
Armadas. Mas o Estado tem protegido os militares até mesmo no âmbito civil. Em 2008
o Ministério Público inicia Ação Civil Pública buscando a declaração judicial da
responsabilidade pessoal do Col. Brilhante Ustra e Col. Maciel pelos desaparecimentos
forçados em São Paulo e o consequente suporte regressivo dos ônus financeiros
assumidos pela União através da lei nº 9.140. A ACP foi julgada improcedente pela 8ª
Vara Federal de São Paulo também com base na Lei de Anistia. Em 2012 nova ação
declaratória contra o coronel avançou até o STJ que reconheceu a responsabilidade civil
com ex-presos políticos torturados, mas o réu morreu antes do processo chegar ao STF.

É possível imaginar qual seria a decisão da Suprema Corte se considerarmos que


em abril 2010 ela foi contrária a revisão da Lei da Anistia. Meses depois, o Brasil era
condenado na CIDH no caso da guerrilha do Araguaia, em sentença bastante crítica a lei
da Anistia:
Em virtude dessa lei, até esta data, o Estado não investigou, processou ou
sancionou penalmente os responsáveis pelas violações de direitos humanos
cometidas durante o regime militar, inclusive as do presente caso.

Isso se deve a que “a interpretação [da Lei de Anistia] absolve automaticamente


todas as violações de direitos humanos que tenham sido perpetradas por agentes
da repressão política”. 1

[...]

Dada sua manifesta incompatibilidade com a Convenção Americana, as


disposições da Lei de Anistia brasileira que impedem a investigação e sanção de
graves violações de direitos humanos carecem de efeitos jurídicos. Em
consequência, não podem continuar a representar um obstáculo para a
investigação dos fatos do presente caso, nem para a identificação e punição dos
responsáveis, nem podem ter igual ou similar impacto sobre outros casos de
graves violações de direitos humanos consagrados na Convenção Americana
ocorridos no Brasil. 2

A estratégia jurídica do caso Herzog

A mais recente condenação do Brasil na CIDH envolve o caso da tortura e morte


do jornalista Vladimir Herzog, introduzido no capítulo anterior. Se por um lado ela
reproduz a postura da Corte em relação ao caso da Guerrilha do Araguaia em 2010, a
repercussão no contexto nacional é significativamente distinta da condenação anterior,
por duas razões fundamentais.

Em primeiro lugar, ela vem como capítulo mais recente de uma nova ofensiva
das “instituições democráticas” que tem como marco inicial a Comissão Nacional da
Verdade, instituída em 2011. Em segundo, ela aparece num momento de intensa crise
política marcada, entre vários outros elementos, pelo acentuado uso das forças militares
pelo Governo Federal – cujo ápice é a intervenção federal no Rio de Janeiro – e pelas
recentes notáveis violações ao Estado de Direito (caso Lula, impeachment etc).

Vamos analisar estratégia jurídica de modo analítico, separando os dois


elementos constitutivos da essência jurídico-política da condenação, que são: o
reconhecimento do caso Herzog como “crime contra a humanidade”; a tentativa de
superar o argumento da insegurança jurídica.

Assim:

A Corte conclui que os fatos registrados contra Vladimir


Herzog devem ser considerados crime contra a humanidade, conforme a
definição do Direito Internacional desde, pelo menos, 1945. Também de
acordo com o afirmado na sentença do Caso Almonacid Arellano, no
momento dos fatos relevantes para o caso (25 de outubro de 1975), a
proibição de crimes de direito internacional e crimes contra a
humanidade já havia alcançado o status de norma imperativa de direito
internacional (jus cogens), o que impunha ao Estado do Brasil e, com
efeito, a toda a comunidade internacional a obrigação de investigar,
julgar e punir os responsáveis por essas condutas, uma vez que
constituem uma ameaça à paz e à segurança da comunidade
internacional. 3

Para sustentar tal conclusão, a Corte argumenta que a identificação de uma


conduta como “crime contra humanidade” independe da sua tipificação no ordenamento
jurídico nacional, apelando para a ideia de que na data no fato tal qualificadora já era
reconhecida pelo Direito Internacional, portanto negando a defesa do Estado que
alegava que a responsabilização penal dos envolvidos feria a irretroatividade da lei
penal vez que o Brasil só tornou-se signatário do Estatuto de Roma em 1998 e da
Convenção Americana em 1992. Em outro parágrafo, a Corte complementa:

[...] a Corte reitera que a alegada “falta de tipificação dos crimes contra
a humanidade” no direito interno não tem impacto na obrigação de
investigar, julgar e punir seus autores. Isso porque um crime contra a
humanidade não é um tipo penal em si mesmo, mas uma qualificação de
condutas criminosas que já eram estabelecidas em todos os
ordenamentos jurídicos: a tortura (o seu equivalente) e o
assassinato/homicídio. A incidência da qualificação de crime contra a
humanidade a essas condutas tem como efeito impedir a aplicação de
normas processuais excludentes de responsabilidade como
consequência da natureza de jus cogens da proibição dessas condutas.
Não se trata de um novo tipo penal. 4

As investigações e possível punição de envolvidos depende, obviamente, da


atuação das instituições internas. Concretamente, isso significa que é necessário que o
Supremo Tribunal Federal reveja seu entendimento de 2010, realizando o controle de
convencionalidade. Mas isso é bastante improvável no cenário político atual.

Sem dúvida, após a condenação o MPF reabriu – pela quarta vez – as


investigações sobre o caso Herzog. De qualquer modo, isso não indica nenhuma
mudança de comportamento institucional, apenas nova tentativa dessa vez fazendo uso
político e jurídico de condenação na CIDH.

O grande problema é que as alianças – políticas e de classes – que deram origem


e sustentaram a Nova República foram rompidas. Qualquer tipo de ataque as Forças
Armadas poderia ser hoje um tiro no pé. Em todo caso, a modificação do entendimento
do Supremo é improvável, visto que ainda esse ano, diante da franca ameaça do
Comandante do Exército, apenas um Ministro reagiu devidamente.

Referências

1. Caso Gomes Lund e outros ("Guerrilha do Araguaia") Vs. Brasil, par. 135.

2. Caso Gomes Lund e outros ("Guerrilha do Araguaia") Vs. Brasil, par. 174.

3. Caso Herzog e outros vs. Brasil, par. 242.

4. Caso Herzog e outros vs. Brasil, par. 308.

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