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POESIA PORTUGUESA: A TRADIÇÃO Ser coluna de fumo, astro perdido,

DA MODERNIDADE Forçar os turbilhões aladamente,


Maria Lúcia Ser ramo de palmeira, água nascente
E arco de oiro e chama distendido...
PARTIDA
Asa longínqua a sacudir loucura,
Mário de Sá-Carneiro Nuvem precoce de sutil vapor,
Ânsia revolta de mistério e olor,
Sombra, vertigem, ascensão Altura!

Ao ver escoar-se a vida E eu dou-me todo neste fim de tarde


[humanamente À espira aérea que me eleva aos cumes.
Em suas águas certas, eu hesito, Doido de esfinges o horizonte arde,
E detenho-me às vezes na torrente Mas fico ileso entre clarões e gumes!...
Das coisas geniais em que medito.
Miragem roxa de nimbado encanto 
Afronta-me um desejo de fugir Sinto os meus olhos a volver-se em espaço!
Ao mistério que é meu e me seduz. Alastro, venço, chego e ultrapasso;
Mas logo me triunfo. A sua luz Sou labirinto, sou licorne e acanto.
Não há muitos que a saibam refletir.
Sei a Distância, compreendo o Ar;
A minh’alma nostálgica de além, Sou chuva de oiro e sou espasmo de luz;
Cheia de orgulho, ensombra-se Sou taça de cristal lançada ao mar,
[entretanto, Diadema e timbre, elmo real e cruz...
Aos meus olhos ungidos sobe um ........................................................
[pranto ........................................................
Que tenho a força de sumir também.
O bando das quimeras longe assoma...
Porque eu reajo. A vida, a natureza, Que apoteose imensa pelos céus!
Que são para o artista? Coisa alguma. A cor já não é cor  é som e aroma!
O que devemos é saltar na bruma, Vêm-me saudades de ter sido Deus...
Correr no azul à busca da beleza.
Ao triunfo maior, avante, pois!
É subir, é subir além dos céus O meu destino é outro  é alto e é raro.
Que as nossas almas só acumularam, Unicamente custa muito caro:
E prostrados rezar, em sonho, ao Deus A tristeza de nunca sermos dois...
Que as nossas mãos de auréola lá ESCAVAÇÃO
[douraram.
Numa ânsia de ter alguma cousa,
É partir sem temor contra a montanha Divago por mim mesmo a procurar,
Cingidos de quimera e de irreal; Desço-me todo, em vão, sem nada achar,
Brandir a espada fulva e medieval, E a minh’alma perdida não repousa.
A cada hora acastelando em Espanha.
Nada tendo, decido-me a criar:
É suscitar cores endoidecidas, Brando a espada: sou luz harmoniosa
Ser garra imperial enclavinhada, E chama genial que tudo ousa
E numa extrema-unção de alma ampliada, Unicamente à força de sonhar...
Viajar outros sentidos, outras vidas.
Mas a vitória fulva esvai-se logo...
E cinzas, cinzas só, em vez de fogo... Não sinto o espaço que encerro
 Onde existo que não existo em mim? Nem as linhas que projeto
............................................................. Se me olho a um espelho, erro 
............................................................. Não me acho no que projeto.

Um cemitério falso sem ossadas, Regresso dentro de mim


Noites d’amor sem bocas esmagadas  Mas nada me fala, nada!
Tudo outro espasmo que princípio ou fim... Tenho a alma amortalhada,
Sequinha dentro de mim.
DISPERSÃO
Não perdi a minha alma,
Perdi-me dentro e mim Fiquei com ela, perdida,
Porque eu era labirinto, Assim eu choro, da vida,
E hoje, quando me sinto, A morte da minha alma.
É com saudades de mim.
Saudosamente recordo
Passei pela minha vida Uma gentil companheira
Um astro doido a sonhar. Que a minha vida inteira
Na ânsia de ultrapassar, Eu nunca vi... mas recordo
Nem dei pela minha vida...
A sua boca doirada
Para mim é sempre ontem, E o seu corpo esmaecido,
Não tenho amanhã nem hoje: Em um hálito perdido
O tempo que aos outros foge Que vem na tarde doirada.
Cai sobre mim feito ontem.
(As minhas grandes saudades
(O Domingo de Paris São do que nunca enlacei.
Lembra-me o desaparecido Ai, como eu tenho saudades
Que sentia comovido Dos sonhos que não sonhei!...)
Os Domingos de Paris:
E sinto que a minha morte 
Porque um Domingo é família, Minha dispersão total 
É bem-estar, é singeleza, Existe lá longe, ao norte,
E os que olham a beleza Numa grande capital.
Não têm bem-estar nem família).
Vejo o meu último dia
O pobre moço das ânsias... Pintado em rolos de fumo,
Tu, sim, tu eras alguém! E todo azul-de-agonia
E foi por isso também Em sombra e além me sumo.
Que te abismaste nas ânsias.
Ternura feita saudade
A grande ave doirada Eu beijo as minhas mãos brancas
Bateu asas para os céus, Sou amor e piedade
Mas fechou-as saciada Em face dessas mãos brancas...
Ao ver que ganhava os céus.
Tristes mãos longas e lindas
Como se chora um amante, Que eram feitas pra se dar...
Assim me choro a mim mesmo: Ninguém mas quis apertar...
Eu fui amante inconstante Tristes mãos longas e lindas...
Que se traiu a si mesmo.
Eu tenho pena de mim, Assombro ou paz? Em vão... Tudo esvaído
Pobre menino ideal... Num baixo mar enganador de espuma;
Que me faltou afinal? E o grande sonho despertado em bruma,
Um elo? Um rastro?... Ai de mim!... O grande sonho  ó dor!  quase vivido...

Desceu-me n’alma o crepúsculo; Quase o amor, quase o triunfo e a chama,


Eu fui alguém que passou. Quase o princípio e o fim  quase a expansão...
Serei, mas já não me sou; Mas na minh’alma tudo se derrama...
Não vivo, durmo o crepúsculo. Entanto nada foi só ilusão!
Álcool dum sono outonal
Me penetrou vagamente De tudo houve um começo... e tudo errou...
A difundir-me dormente  Ai a dor de ser-quase, dor sem fim... 
Em uma bruma outonal. Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim.
Asa que se elançou mas não voou...
Perdi a morte e a vida,
E, louco, não enlouqueço... Momentos de alma que desbaratei...
A hora foge vivida Templos aonde nunca pus um altar...
Eu sigo-a, mas permaneço... Rios que perdi sem os levar ao mar...
............................................. Ânsias que foram mas que não fixei...
Castelos desmantelados,
Leões alados sem juba... Se me vagueio, encontro só indícios...
.............................................. Ogivas para o sol  vejo-as cerradas;
E mãos de herói, sem fé, acobardadas,
Puseram grades sobre os precipícios...
ESTÁTUA FALSA
Num ímpeto difuso de quebranto,
Só de ouro falso os meus olhos se douram; Tudo encetei e nada possui...
Sou esfinge sem mistério no poente. Hoje, de mim, só resta o desencanto
A tristeza das coisas que não foram Das coisas que beijei mas não vivi...
Na minh’alma desceu veladamente. .........................................................
........................................................
Na minha dor quebram-se espadas de ânsia,
Gomos de luz em treva se misturam. Um pouco mais de sol  e fora brasa,
As sombras que eu dimano não perduram, Um pouco mais de azul  e fora além.
Como Ontem, para mim, Hoje é distância. Para atingir, faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...
Já não estremeço em face do segredo;
Nada me aloira já, nada me aterra:
A vida corre sobre mim em guerra, A QUEDA
E nem sequer um arrepio de medo!
Sou estrela ébria que perdeu os céus, E eu que sou o rei de toda esta incoerência,
Sereia louca que deixou o mar; Eu próprio turbilhão, anseio por fixá-la
Sou templo prestes a ruir sem deus, E gira até partir... Mas tudo me resvala
Estátua falsa ainda erguida ao ar... Em bruma em sonolência.
QUASE Se acaso em minhas mãos fica um pedaço de
ouro,
Um pouco mais de sol  eu era brasa. Volve-se logo falso... Ao longe o arremesso...
Um pouco mais de azul  eu era além. Eu morro de desdém em frente dum tesouro,
Para atingir, faltou-me um golpe de asa... Morro à míngua, de excesso.
Se ao menos eu permanecesse aquém...
Alteio-me na cor à força de quebranto,
Estendo os braços de almanem um espasmo (Dispersão, in Obras Completas. Rio de
venço!
Peneiro-me na sombra em nada me condenso... Janeiro: Nova Aguilar, 1995, p. 53-72)
Agonias de luz eu vibro ainda entanto.
Não me pude vencer mas posso-me esmagar,
 Vencer às vezes é o mesmo que tombar 
E como inda sou luz num grande retrocesso, Eu não sou eu nem sou o outro,
Em raivas ideais ascendo até ao fim:
Sou qualquer coisa de intermédio:
Olho do alto o gelo, ao gelo me arremesso...
.................................................................. Pilar da ponte de tédio
..................................................................
Tombei... Que vai de mim para o Outro.
.................................................................. (1914 – Idem, p. 82)
E fico só esmagado sobre mim!...

BIBLIOGRAFIA SOBRE MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO

ADERALDO, Noemi Elisa. O Simbolismo do Fogo. In Conferências e comunicações. VI


Encontro Nacional de Professores Universitários Brasileiros de Literatura Portuguesa.
Assis, 1980. p. 285-303

AREAS, Wilma. Uma leitura de Sá-Carneiro. Nova Renascença n. 12, Porto, 1983.

AZEVEDO FILHO, Leodegário. Mário de Sá-Carneiro e a teoria do duplo. In: DUARTE,


L.P. (coord.) Anais da semana de estudos Mário de Sá-Carneiro. Belo Horizonte:
CESP - FALE - UFMG, 1994, p. 107-109.

BRANCO, Lúcia Castello. Mário de Sá-Carneiro e a dispersão do sujeito. In: DUARTE,


L.P. (coord.) Anais da semana de estudos Mário de Sá-Carneiro. Belo Horizonte:
CESP - FALE - UFMG, 1994, p. 111 -117.

MACHADO, Lino. Inter-relações: A confissão de Lúcio e outros textos de Mário de Sá-


Carneiro. In: DUARTE, L.P. (coord.) Anais da semana de estudos Mário de Sá-
Carneiro. Belo Horizonte: CESP - FALE - UFMG, 1994, p. 145-150.

MARTINS, Fernando Cabral. O modernismo em Mário de Sá-Carneiro. Lisboa: Estampa,


1994.

MIRANDA, José Américo. A confissão de Lúcio: encenação de um suicídio. In: DUARTE,


L.P. (coord.) Anais da semana de estudos Mário de Sá-Carneiro. Belo Horizonte:
CESP - FALE - UFMG, 1994, p. 125-132.

NOLASCO, Paulo Sérgio. O móbil da representação em "Apoteose" e A confissão de


Lúcio. In: DUARTE, L.P. (coord.) Anais da semana de estudos Mário de Sá-Carneiro.
Belo Horizonte: CESP - FALE - UFMG, 1994, p. 1151-156
OLIVEIRA, Silvana Maria Pessôa. Brasas e chamas: as metáforas da escrita em A
confissão de Lúcio. In: DUARTE, L.P. (coord.) Anais da semana de estudos Mário de
Sá-Carneiro. Belo Horizonte: CESP - FALE - UFMG, 1994, p. 133-135.

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