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BENSUSSAN Uma Ética Do Indecidível PDF
BENSUSSAN Uma Ética Do Indecidível PDF
indecidível
Gérard Bensussan
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uma ética do indecidível
Gérard Bensussan1
-Nacionalidade ?
-Variável !
1
Professor de filosofia da Université Marc Bloch – Strasbourg II.
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Um lugar sem (aí) ser
(« não é necessário senão uma porta... ») e assim desenha, apesar de tudo,
alguma coisa como um lugar que não se dá nem se faz. « Alguma coisa como
um lugar » não é fácil de figurar ou sugerir. Eu diria, sonhando aqui muito
precisamente com Heidegger, que o indecidível abre um lugar sem ser, um
lugar sem (aí) ser ou, em todo caso, sem poder aí deter-se como em um só
lugar. Em um texto de 1951, Construir, Habitar, Pensar, o autor de Sein und Zeit
propôs uma meditação profunda do ser do Lugar. Aí ele determina o Lugar
como « o que não existe antes » de sua colocação na posição ou no espaço pelo
que aí se constrói3. Como escreve Heidegger, o Lugar não devém um Lugar 3. Essais et conférences, Gallimard,
p. 182-3, trad. A. Préau .
senão « graças à ponte », para retomar um exemplo recorrente desse texto. O
espaço não é o que faz face aos homens como um objeto exterior, e não é mais
uma experiência interior que seria da ordem da representação. Conviria, pelo
contrário, reportar-lhe a essência ao que o limita e o organiza, a isso que abole
« o espaço a si parecido, quer se acresça ou se negue » (Mallarmé) para fazer
« um » espaço « colocado » (verstattet) por um lugar que aí dispõe os confins.
O lugar confere então seu ser, ou sua reunião « quadripartite », aos espaços
que nós habitamos. Ele é sempre um lugar-sede. Por outro lado, o lugar do
indecidível é certamente um não-lugar, um lugar sem comandante, sem cauda
nem cabeça. O indecidível decapita o lugar de seu ser, porque dele destitui a
essência localizável, decidível, e nele dissemina a citação4 a sua aumentação 4. O autor faz um jogo com o
termo ‘assignation’, que em francês
interminável. De alguma maneira, o indecidível tem portanto « a ver » com quer dizer tanto citação (no
sentido jurídico) quanto hipoteca
o lugar. Mas de qual lugar pode tratar-se? E por que esse ter-a-ver, de que (no sentido de uma garantia
jurídica, igualmente, constituída
maneira e sobre qual modo? É a decisão que vem aqui cindir. O indecidível, ela mesma por um lugar).
com efeito, não é tal senão em « seus lugares », mais de um lugar, sempre, e os
ditos lugares são os lugares mesmos da decisão, ou os lugares de seu não-lugar,
de alguma maneira. O indecidível nomeia então, fora de toda figura, o que se
faz lugar entre os lugares.
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Na trajetória derridiana, o indecidível obtém e retira seus problemas
de uma travessia e de uma meditação do espaço da verdade de uma escritura.
Que baste aqui reenviar ao pharmakon, ao hymen ou, ainda, e melhor ainda,
à flutuação. Um traço de indecidibilidade se marca e se remarca na operação
poética mallarmaica segundo a leitura que desenvolve « La double séance »5. 5. La dissémination, Seuil, 1972,
p. 215-347.
Esse traço subtrai. Ele inaugura uma condição e uma possibilidade: subtrair-
se à pertinência e à autoridade da verdade, aí onde a filosofia, e para além
dela toda sorte de escrituras, não autorizariam o acolhimento de semelhante
subtração. Trata-se, portanto, também de fazer lugar a esse não-lugar da
filosofia, mas não revertendo a verdade ou invertendo os signos, nem dando-
lhe lugar em uma nova escritura ou em novos « valores ». Fazer lugar a esse
não-lugar consistirá em deslocar o rastro da escritura de tal maneira que aí se
inicie um « des-encaixe »6, e em primeiro « lugar » um desencaixe do sentido. 6. Ibid., p. 238
é capital não se equivocar. Com efeito, a estrutura de hymen e a lógica da 9. La dissémination, ed. cit.,
suplementaridade que ela vai introduzir parecem elas mesmas constantemente p. 334 – grifo meu.
levadas pela passagem decidida, decisiva, a um ultrapassamento. Elas evocam 10. Ibid., p. 282.
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recobrimento o mais sedutor, o mais « relevante », porque o mais semelhante
a esta gráfica [aquela da suplementaridade e do hímem]. É por isso que
pareceu necessário designar a Aufhebung como a meta decisiva. »11 Não mais
do que um lugar-sede (Heidegger), o lugar fora-de-lugar do indecidível não é
um lugar de passagem (Hegel). Ele não garante nem trânsito nem transação 11. Ibid., p. 303-4.
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Flutuação
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uma reserva, uma guarda, mas também um risco sem mesura, uma extrema
exposição, esses se entre-implicando por aquelas. A morte pode sempre deter-
se no encontro de uma decisão que resolveria para um contra o outro desejo,
mesmo para um no outro, para o um do dois, como na dialética do mestre e
do escravo. Mas ela bem pode também encarnar-se, retorcida e inesperada,
na quase-desaparição do lugar realizada pela indecisão suspensiva do « nem
isso nem aquilo ». Aconteceu que Derrida relaciona expressamente a lógica
da flutuação ética e da suplementarização desconstrutiva a um biografema
preciso, a experiência de uma francesidade indecidível, de uma nacionalidade
flutuante, outorgada e retomada, concedida e ameaçada: « os Judeus da Argélia
de minha geração [os quais] não eram, de mil maneiras, indecidivelmente,
nem franceses nem não-franceses »14. Eu me permito aqui adicionar ou incluir 14. « Abraham, l’autre ». In:
Judéités, dir. J.Cohen et R.Zagury-
o seguinte: após a guerra, e uma vez reestabelecido o decreto Crémieux, que Orly, Galilée, 2003, p. 28.
lhe restituía seus direitos civis de Francês, Léon Bensussan, meu tio, um desses
Judeus da Argélia da geração de Derrida, respondia a um funcionário que lhe
questionava qual era sua « nacionalidade »: « variável ! ». Indecidível, portanto,
ou ainda: mais de uma, isto é: não tenho senão uma e não é a minha! A ética dos
dominados, como ética marrana, irônica, impaciente, certamente diz respeito
a uma certa recusa, mesmo à língua e seus retornos, de dar crédito a resultados
obrigatórios e institucionalmente enquadrados, tais como são propostos às
pertencenças exclusivas, às escolhas, às alternativas entre os conceitos, os
opostos contraditórios, às figuras ou mesmo às dobras internas às figuras.
Assim, não é necessário « escolher seu campo » e seu sedentarismo. Isso seria,
em menos de dois, renunciar. Seria necessário, pelo contrário, atravessar a
khôra, o que abre o lugar, todos os lugares, e faz nascer ao acontecimento de
uma decisão. O « nem isso nem aquilo » não significa o abandono resignado
dos dois – é o inverso. Importa que se tenha fortemente o esse e o aquele
na curvatura mesma da decisão indecidível, mais precisamente confiar-se a
ambos, às suas instâncias decisivas.
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Conformar-se da decisão, sem poder decidi-la ou mesmo decidir quanto
a decidir sem confiar em quem quer que seja – entre o indecidível, por onde
o lugar do cortar se desloca, e a decisão combinada, programada e calculada
nos efeitos que espera, se insinua nada menos que o outro, o outro da vontade
autônoma, o outro donde fulgura o que há lugar de decidir. Se o indecidível é
o tempo da decisão, esse tempo é sempre o tempo de um outro. Esta restituição
da decisão no indecidível do tempo de um outro não significa, novamente, um
consentimento inerte a minha própria despossessão e ao confisco de minha
potência de agir – como se pura, simplesmente e de uma ponta à outra, eu
deixasse fazer o outro em « preferindo não »15 decidir. O indecidível emprega 15. O autor faz aqui um jogo
com os verbos: je vole, je voile e
uma configuração bem diferente, uma vez que se mantém, foi dito, nos lugares je voltige, dificilmente preservada
em português. (N. do T.)
mesmos da decisão e de seu desencaixe. Eu faço, eu ajo, me mantenho sempre
à borda do decidir e nele me sustento tão longe quanto posso. E, no entanto,
eu « sei » que nada o fará : « minha » decisão obedece a coisa totalmente outra
que a minha liberdade, minha capacidade de iniciativa, minha consciência
antecipante – salvo se limitar-se, Derrida aí insiste sem cessar, a um programa
ou a um projeto, os quais serão eles mesmos incessantemente frustrados, pelos
azares do outro e pelas imprevisibilidades do tempo, pelo resto estritamente
indecidível de toda decisão. Decidir, ter a decidir, é deter-se diante do outro,
fazer com o outro, como se diz. O indecidível é sempre já tomado por esse
fazer-com. Uma decisão desligada desse com seria uma decisão « frágil » e
já comprometida, já decidida à contra-corrente dela mesma. Os acessos
indecidíveis da decisão, o que a bordeja antes dela e depois dela, podem ser
aproximados em uma certa língua messiânica, ou, muito mais precisamente,
nos clarões messiânicos que toda palavra falada manifesta em sua força
cotidiana.
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aparente impossibilidade em um requerimento no entanto muito simples : a
língua lhes é inóspita e ela é no entanto o que os acolhe. Eles formam a instância
de um chamado que eu apreendo dizendo a tal outro para « vir » ou para me
« amar ». Eu « decido » dizer, e dizer imperiosamente, porque não posso fazer
de outra forma, não posso dizer numa não-língua. É-me necessário dizer
na língua do outro, na outra língua que eu jamais falarei. Tudo nesse dizer
é portanto radicalmente golpeado de indecisão ou de indecidível : a vinda, o
amor, o vindouro e o amado a que me remeto. O dizer, aqui, não tem outro
sentido senão o indecidível ao qual ele se expõe. Escutemos as duas vozes tão
próximas e tão díspares a um só tempo, de Derrida, e então de Rosenzweig.
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no imperativo, o comando imediato, jorrado do instante e já
em vistas de devir sonoro no instante de seu jorrar – pois devir
sonoro e jorrar são uma e mesma coisa no amor –, o « ame-me »
do amante, eis a perfeitamente pura linguagem do amor. Então
quando o indicativo tem detrás de si todas as circunstâncias que
fundaram a objetividade e o passado aparece como a forma a
mais pura, o comando é um presente absolutamente puro, sem
nada que o prepare. E não somente sem nada que o prepare, mas
absolutamente sem premeditação. O imperativo do comando não
faz previsão nenhuma para o porvir; ele não pode imaginar senão
a imediatez da obediência. Se ele fosse pensar em um porvir ou
um « sempre », não seria em nada um comando, não seria uma
ordem, mas uma lei ».17 17. Franz Rosenzweig, L’étoile de
la Rédemption, trad. Derczanski /
Schlegel, Paris, 2. ed., Seuil, 2003,
p. 251-2. Acrescento que Derrida
aventa, ele mesmo, a possibilidade
de que as duas sentenças sejam
Apesar das oscilações muito significativas quanto ao uso de alguns assim justapostas, quando afirma,
repetidamente, “eu amo sempre o
termos, « comandar », « presente », « pessoa », que se poderia facilmente que eu amei”.
explicar sem apaga-las nem força-las, essas duas meditações engajam-se, cada
uma à sua maneira, sobre a estreita passagem do acontecimento de uma palavra
viva, urgente e impossível, arrancando-se à ordem da língua. É em virtude
desta potência de arrancamento da palavra de sua « ordem », de uma palavra
à distância dela mesma, distanciada dela mesma, que pode-se aqui (« aqui »,
como insiste Derrida) evocar a messianidade da injunção indecisa, carregada
pelo instante e absolutamente não premeditada. A « subtração » para Derrida
ou o « devir-sonoro » para Rosenzweig são modos ou exercícios de palavra
em direção ao outro por onde o indecidível (« o avanço do venha sobre vir »
o qual, como « ame-me », não faria « previsão nenhuma para o porvir ») abre
fora-da-lei à resposta do outro. Este é de fato o decisor do indecidível, atando
o tempo e a espera, o incerto e o iminente.
3. Esse outro ordena algo como uma esperança (de que isso venha
e de que isso ame, logo em seguida).
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Esta tripla articulação permite compreender melhor ou melhor
determinar a ética da flutuação ou a ética dos dominados/marranos que
colocou-se em questão. Para dizer a coisa mesma, uma certa messianicidade
sem messianismo é muito profundamente implicada em uma possível ética
do indecidível, para além mesmo de seus esperados derridianos estritos. É
necessário precisar de uma vez o conteúdo da esperança no que ele se aglomera
ao tempo e ao outro no indecidível – não a esperança em geral, portanto, mas
a esperança pelo indecidível ou esperança enquanto ela comanda toda decisão
vivente.
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colocando-se assim na espera imediata dele mesmo, se suspende em sua
irresolução de cada instante : venha, ame-me. Assim aproximado em sua
condensação instantânea, o esperar se encontra descarregado de todos os
cálculos, de todos os investimentos de sentido e de todas as determinações
racionalizantes que o sobremarcam tão logo ele lide com as coisas distantes.
Ele poderia então escapar muito bem tanto de sua constante depreciação
pela filosofia e pelos filósofos quanto de sua redução concomitante a uma
virtude teológica, religiosa ou laica. A decisão ela mesma poderia ser o objeto
de uma distribuição inédita. Não se « decide » senão pelas coisas longínquas,
na ilusão do programa e da empresa. Quanto mais o objeto da decisão de
aproxima do instante do cortar, até confundir-se em um indecidível-im-pré-
pensável, mais a decisão dá lugar a um confiar-se à tensão insigne do tempo
e ao esperar de uma de-tensão. É esse movimento de um dizer ininvestível
pela espera e atencipação que atesta o modo gramatical do imperativo da
segunda pessoa do singular, o único que possa manifestar uma ordem sem
ordem, um endereçar sem espera, uma afirmação e uma positividade sem
dialética e sem processo preventivo.
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o amanhã e para o incerto, age-se com razão »18. A afirmatividade essencial19 18. Pensées (452/130), Œuvres
complètes, Pléiade, p. 1216.
do indecidível e a gloriosa incerteza que o acompanha permitem que se
19. Reenvio o leitor, se posso, a
possa a ela associar o esperar pelo iminente, o quase-já-lá, o impossível. “Oui, la survie... Note sur le carré
affirmatif de la déconstruction”.
Elas obrigam mesmo a se colocar ao lado desta esperança e a tentar pensar In: Rue Descartes, “Pensar com
Jacques Derrida”, dir. J. Cohen,
uma ética desse esperar, flutuante, marrana e messiânica, votada à injunção n° 52, Paris, 2006.
indecidível do outro, vinda dele e a ele endereçada.
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