Você está na página 1de 13

uma ética do

indecidível
Gérard Bensussan
41
uma ética do indecidível
Gérard Bensussan1

-Nacionalidade ?

-Variável !

« Roma não está em Roma, ela está toda onde eu estou ».


« Minha cabeça está no espaço, mas o espaço inteiro em minha cabeça ».

Essas duas proposições, bem conhecidas, a primeira de Corneille, a segunda


de Schopenhauer – às quais poderíamos indefinidamente acrescentar outras
– abrem perspectivas perfeitamente desconjuntadas e seus registros são tão
disparatados que seria evidentemente cômico querer as reunir segundo um
sentido, segundo uma significação pertinente. Sua associação visa, todavia,
e apesar de tudo, à produção ou à sugestão de um efeito de desencaixe, isto
é, a uma indecidibilização de toda situação ou localização homogêneas.
Como decidir do lugar? E como localizar ou circunscrever uma decisão? E
quem decidirá da decisão? Onde é o lugar, onde está a decisão? Qual estatuto
conceder ao lugar que se faz lugar aqui, lá, alhures? A indecidibilidade desloca
enquanto é ela mesma uma autodivisão contínua, isto é, enquanto não se
decide, salvo para se programar ou performar-se. No que diz respeito a isso,
e contra um certo uso linguageiro derridiano, ela não desenha nenhuma lei
nem se constrói em teorema, ela não inaugura nenhum tipo de axiologia ou
axiotopologia. Ela dessitua e desregra.

1
Professor de filosofia da Université Marc Bloch – Strasbourg II.

42
Um lugar sem (aí) ser

Diremos então, para começar, que o indecidível consiste em não


co-locar2. Não sobre o modo de uma simples negatividade que tomaria 2 O autor joga com as expressões
‘faire lieu’ e ‘donner lieu’. Embora
o avesso do co-locar ou do dar-lugar para indicar a via dialética do Lugar ambas possam ser traduzidas por
‘dar lugar’ no português, optou-se
de todos os lugares. Mas segundo a operação de uma entreabertura, de um pelo neologismo e hifenização
do verbo ‘colocar’, de modo a
entredistanciamento. A porta do indecidível não estará jamais aberta ou assinalar a diferença entre as duas
fechada. Nem cerrada nem escancarada, ela desafia a prescrição convencional expressões. (N. do T.)

(«  não é necessário senão uma porta...  ») e assim desenha, apesar de tudo,
alguma coisa como um lugar que não se dá nem se faz. « Alguma coisa como
um lugar » não é fácil de figurar ou sugerir. Eu diria, sonhando aqui muito
precisamente com Heidegger, que o indecidível abre um lugar sem ser, um
lugar sem (aí) ser ou, em todo caso, sem poder aí deter-se como em um só
lugar. Em um texto de 1951, Construir, Habitar, Pensar, o autor de Sein und Zeit
propôs uma meditação profunda do ser do Lugar. Aí ele determina o Lugar
como « o que não existe antes » de sua colocação na posição ou no espaço pelo
que aí se constrói3. Como escreve Heidegger, o Lugar não devém um Lugar 3. Essais et conférences, Gallimard,
p. 182-3, trad. A. Préau .
senão « graças à ponte », para retomar um exemplo recorrente desse texto. O
espaço não é o que faz face aos homens como um objeto exterior, e não é mais
uma experiência interior que seria da ordem da representação. Conviria, pelo
contrário, reportar-lhe a essência ao que o limita e o organiza, a isso que abole
« o espaço a si parecido, quer se acresça ou se negue » (Mallarmé) para fazer
« um » espaço « colocado » (verstattet) por um lugar que aí dispõe os confins.
O lugar confere então seu ser, ou sua reunião « quadripartite », aos espaços
que nós habitamos. Ele é sempre um lugar-sede. Por outro lado, o lugar do
indecidível é certamente um não-lugar, um lugar sem comandante, sem cauda
nem cabeça. O indecidível decapita o lugar de seu ser, porque dele destitui a
essência localizável, decidível, e nele dissemina a citação4 a sua aumentação 4. O autor faz um jogo com o
termo ‘assignation’, que em francês
interminável. De alguma maneira, o indecidível tem portanto « a ver » com quer dizer tanto citação (no
sentido jurídico) quanto hipoteca
o lugar. Mas de qual lugar pode tratar-se? E por que esse ter-a-ver, de que (no sentido de uma garantia
jurídica, igualmente, constituída
maneira e sobre qual modo? É a decisão que vem aqui cindir. O indecidível, ela mesma por um lugar).
com efeito, não é tal senão em « seus lugares », mais de um lugar, sempre, e os
ditos lugares são os lugares mesmos da decisão, ou os lugares de seu não-lugar,
de alguma maneira. O indecidível nomeia então, fora de toda figura, o que se
faz lugar entre os lugares.

43
Na trajetória derridiana, o indecidível obtém e retira seus problemas
de uma travessia e de uma meditação do espaço da verdade de uma escritura.
Que baste aqui reenviar ao pharmakon, ao hymen ou, ainda, e melhor ainda,
à flutuação. Um traço de indecidibilidade se marca e se remarca na operação
poética mallarmaica segundo a leitura que desenvolve « La double séance »5. 5. La dissémination, Seuil, 1972,
p. 215-347.
Esse traço subtrai. Ele inaugura uma condição e uma possibilidade: subtrair-
se à pertinência e à autoridade da verdade, aí onde a filosofia, e para além
dela toda sorte de escrituras, não autorizariam o acolhimento de semelhante
subtração. Trata-se, portanto, também de fazer lugar a esse não-lugar da
filosofia, mas não revertendo a verdade ou invertendo os signos, nem dando-
lhe lugar em uma nova escritura ou em novos « valores ». Fazer lugar a esse
não-lugar consistirá em deslocar o rastro da escritura de tal maneira que aí se
inicie um « des-encaixe »6, e em primeiro « lugar » um desencaixe do sentido. 6. Ibid., p. 238

«  Enquanto depende deles, enquanto neles se dobra, o texto [mallarmaico]


joga então uma dupla cena. Ele opera em dois lugares absolutamente
diferentes, mesmo que eles não sejam separados senão por um véu, a uma só
7. Ibid., p. 273.
vez atravessado e não atravessado, entreaberto »7.
8. Genèses, généalogies, genres et
Essa dupla cena, ou essa « estrutura bífide »8, é dita e longamente descrita le génie. Les secrets de l’archive,
por Derrida como «  dois sem um  »9. Esta matriz, por assim dizer, do dois- Paris, Galilée, 2003, p. 43 – esta
estrutura bífide caracterizaria a
sem-um significa fortemente a intenção expressamente antidialética aberta forma literária enquanto, para
ela, “seu segredo é ainda melhor
pela possibilidade de proposições indecidíveis. Aqui uma grande sutileza é selado e indecidível quando não
consiste, em última análise, em
requerida, pois se trata, com efeito, de esboçar proposições a que o idioma um conteúdo oculto, mas em
uma estrutura bífida que pode
metafísico não pode ar lugar e que não terão posição senão acontecimental, guardar em reserva indecidível
como configurações inadmissíveis e singulares. A manobra antiespeculativa isso mesmo que ela confessa,
mostra, manifesta, exibe, expõe
é tão sutil que ela deve passar por uma «  dialética imitada  »10 sobre a qual indefinidamente.”

é capital não se equivocar. Com efeito, a estrutura de hymen e a lógica da 9. La dissémination, ed. cit.,
suplementaridade que ela vai introduzir parecem elas mesmas constantemente p. 334 – grifo meu.

levadas pela passagem decidida, decisiva, a um ultrapassamento. Elas evocam 10. Ibid., p. 282.

ultra-passagem de uma na outra, de uma nas duas, a qual reconstituiria, sem


falhar, uma unidade de verdade na contradição dialética e sublimaria o dois
do dois-sem-um em um um-com-dois, assegurando assim a «  felicidade  »
especulativa do indecidível, de um indecidível que houvesse cedido à tentação
dialética do decidível nela houvesse se efetuado. Derrida é muito claro sobre
esse ponto: « é necessário sustentar a crítica sobre o conceito de Aufhebung
ou relève que, como motor último de toda dialeticidade, permanece o

44
recobrimento o mais sedutor, o mais « relevante », porque o mais semelhante
a esta gráfica [aquela da suplementaridade e do hímem]. É por isso que
pareceu necessário designar a Aufhebung como a meta decisiva. »11 Não mais
do que um lugar-sede (Heidegger), o lugar fora-de-lugar do indecidível não é
um lugar de passagem (Hegel). Ele não garante nem trânsito nem transação 11. Ibid., p. 303-4.

entre dois espaços releváveis em um lugar dialeticamente habitável. O des-


encaixe que ele efetua é uma dis-tensão, isto é, uma temporalização da
temporalidade da hesitação, do suspenso, da interrupção, da oscilação. Esse
tempo é passividade, afecção, destituição – do decidível pelo indecidível. Por
ele indica-se o que vem desassegurar todo domínio, que é sempre domínio
do tempo e da presença, empresa sobre um porvir decidido ou a decidir. Mas
esse tempo « bífido » emprega também uma tomada, o vencimento de uma
tomada de decisão, antes mesmo que ela o seja, antes de toda significação.
Eu diria do indecidível que ele é o tempo da decisão. Nela ele dis-põe, em
todo caso, o quase-transcendental como busca, como « espera sem desígnio
em vista  », para retomar uma sentença de Levinas a propósito do tempo,
justamente. Portanto ele desfaz, evidentemente, toda possibilidade de sentido
como pressuposição, como disponibilidade, como reserva preliminar, quer
como aquilo de que se pode assegurar-se antes mesmo de possuir algo a
resolver ou a decidir. Não há indecidível senão do sentido e não há decisão
senão sobre o sentido e no tempo: o desencaixe não pode ocorrer senão como
deslocamento em direção a um certo in-sensato ou ainda como temporização
do tempo da decisão indecidível. Dito de outra forma, o indecidível se de-
porta de uma só vez para além ou para aquém de todo saber decisional ou
de toda organização sensata da solução, da resolução, da boa decisão. Pode-
se sem hesitar determinar esses usos como éticos ou prático-éticos. Sempre
tenho que decidir sobre o que não sei, no elemento mesmo de um não-saber
ou de um não-sentido, no balanço angustiado entre as escolhas igualmente
decidíveis (ou indecidíveis, pois). Toda decisão se toma, ou ela toma aquele
que a « toma », em uma temporalidade do abandono, isto é, em um abismo de
indecidibilidade. De outro modo, Derrida o assinalou forte e frequentemente,
a decisão aí não é uma. Se ela sabe já o que tem a fazer, ela não faz senão
preceder a ela mesma até seu topos, sua possibilidade sempre-já atualizada.
Ela obedece portanto a um sempre mais-de-um (ou de uma) ou a um entre-
os-dois.

45
Flutuação

Desse sintagma maior do indecidível, a flutuação de «  La double


séance  » oferece algo como um quase-conceito, radicalmente concorrente
da relève: « flutuação entre os textos : a flutuação, suspenso aéreo do véu, da
gaze ou do gás...evolui segundo o hymen. Cada vez que ela aparece, a palavra
flutuação sugere a sugestão mallarmaica, desvela com dificuldade, muito
próxima de desaparecer, a indecisão do que permanece suspenso, nem isso
nem aquilo, entre aqui e lá... Entre os dois, confusão e distinção... A hesitação
de um « véu », de um « voo », de um « obstáculo » » 12. Esta indecisão, em não 12. Ibid., p. 292-3.

se decidindo, impede a decisão em sua indeterminação inata e a engaja no


que ela tem de incalculável. Ela forma em última instância uma ética que se
poderia nomear uma ética da flutuação. É necessário guardar-se de entender
demasiado apressadamente a expressão em um mau sentido, como o mau
flutuar do eterno indeciso ou a infeliz indecisão do fraco. Em jogo sobre sua
dupla cena dividida sem remédio, « sem um », implicado em sua estrutura
bífida e adialética, o indecidível atribui e expõe a decisão e a responsabilidade
às oposições, às distinções, às fronteiras, aos cortes « entre os dois » (conceitos,
territórios, línguas...). A ética da flutuação não se deixa aproximar senão
como truque da ubiquidade e, para dizer tudo, marranismo. Poder-se-ia
determinar elipticamente o marranismo como jogo ético do indecidível e
do impartilhável, oculto sob a moral exibida de uma decisão publicamente
partilhada. A ética marrana da flutuação é o mercúrio prático-moral ao uso
daqueles que se mantém alhures, os exilados do lugar-uno, os tenentes do
mais de um lugar. Ela é, pois, sob certos aspectos, uma ética dos dominados
– menos em um sentido político imediato que a prenderia em uma oposição
termo a termo dos dominados e dos dominantes, que em uma figura que
Derrida nomeia em algum lugar, em uma conversa, « estratégia do vivente »,
ou ainda « estratégia do desejo ». Se se pode dizê-lo assim, a máxima aí seria:
« você não me pegará! », em todo caso não aí onde eu teria podido me reunir
todo em um, e não de imediato, pois, divisível, eu voo, eu velo e eu salto13. O 13. O autor faz aqui um jogo
com os verbos: je vole, je voile e je
desencaixe que se pode daqui em diante qualificar de marrano produz um voltige, dificilmente preservada em
português. (N. do T.)
diferimento, um distanciamento ético. O indecidível contém um recurso,

46
uma reserva, uma guarda, mas também um risco sem mesura, uma extrema
exposição, esses se entre-implicando por aquelas. A morte pode sempre deter-
se no encontro de uma decisão que resolveria para um contra o outro desejo,
mesmo para um no outro, para o um do dois, como na dialética do mestre e
do escravo. Mas ela bem pode também encarnar-se, retorcida e inesperada,
na quase-desaparição do lugar realizada pela indecisão suspensiva do « nem
isso nem aquilo ». Aconteceu que Derrida relaciona expressamente a lógica
da flutuação ética e da suplementarização desconstrutiva a um biografema
preciso, a experiência de uma francesidade indecidível, de uma nacionalidade
flutuante, outorgada e retomada, concedida e ameaçada: « os Judeus da Argélia
de minha geração [os quais] não eram, de mil maneiras, indecidivelmente,
nem franceses nem não-franceses »14. Eu me permito aqui adicionar ou incluir 14. « Abraham, l’autre ». In:
Judéités, dir. J.Cohen et R.Zagury-
o seguinte: após a guerra, e uma vez reestabelecido o decreto Crémieux, que Orly, Galilée, 2003, p. 28.
lhe restituía seus direitos civis de Francês, Léon Bensussan, meu tio, um desses
Judeus da Argélia da geração de Derrida, respondia a um funcionário que lhe
questionava qual era sua « nacionalidade »: « variável ! ». Indecidível, portanto,
ou ainda: mais de uma, isto é: não tenho senão uma e não é a minha! A ética dos
dominados, como ética marrana, irônica, impaciente, certamente diz respeito
a uma certa recusa, mesmo à língua e seus retornos, de dar crédito a resultados
obrigatórios e institucionalmente enquadrados, tais como são propostos às
pertencenças exclusivas, às escolhas, às alternativas entre os conceitos, os
opostos contraditórios, às figuras ou mesmo às dobras internas às figuras.
Assim, não é necessário « escolher seu campo » e seu sedentarismo. Isso seria,
em menos de dois, renunciar. Seria necessário, pelo contrário, atravessar a
khôra, o que abre o lugar, todos os lugares, e faz nascer ao acontecimento de
uma decisão. O « nem isso nem aquilo » não significa o abandono resignado
dos dois – é o inverso. Importa que se tenha fortemente o esse e o aquele
na curvatura mesma da decisão indecidível, mais precisamente confiar-se a
ambos, às suas instâncias decisivas.

O tempo do outro: venha, me ame

47
Conformar-se da decisão, sem poder decidi-la ou mesmo decidir quanto
a decidir sem confiar em quem quer que seja – entre o indecidível, por onde
o lugar do cortar se desloca, e a decisão combinada, programada e calculada
nos efeitos que espera, se insinua nada menos que o outro, o outro da vontade
autônoma, o outro donde fulgura o que há lugar de decidir. Se o indecidível é
o tempo da decisão, esse tempo é sempre o tempo de um outro. Esta restituição
da decisão no indecidível do tempo de um outro não significa, novamente, um
consentimento inerte a minha própria despossessão e ao confisco de minha
potência de agir – como se pura, simplesmente e de uma ponta à outra, eu
deixasse fazer o outro em « preferindo não »15 decidir. O indecidível emprega 15. O autor faz aqui um jogo
com os verbos: je vole, je voile e
uma configuração bem diferente, uma vez que se mantém, foi dito, nos lugares je voltige, dificilmente preservada
em português. (N. do T.)
mesmos da decisão e de seu desencaixe. Eu faço, eu ajo, me mantenho sempre
à borda do decidir e nele me sustento tão longe quanto posso. E, no entanto,
eu « sei » que nada o fará : « minha » decisão obedece a coisa totalmente outra
que a minha liberdade, minha capacidade de iniciativa, minha consciência
antecipante – salvo se limitar-se, Derrida aí insiste sem cessar, a um programa
ou a um projeto, os quais serão eles mesmos incessantemente frustrados, pelos
azares do outro e pelas imprevisibilidades do tempo, pelo resto estritamente
indecidível de toda decisão. Decidir, ter a decidir, é deter-se diante do outro,
fazer com o outro, como se diz. O indecidível é sempre já tomado por esse
fazer-com. Uma decisão desligada desse com seria uma decisão « frágil » e
já comprometida, já decidida à contra-corrente dela mesma. Os acessos
indecidíveis da decisão, o que a bordeja antes dela e depois dela, podem ser
aproximados em uma certa língua messiânica, ou, muito mais precisamente,
nos clarões messiânicos que toda palavra falada manifesta em sua força
cotidiana.

« Venha » é uma dessas explosões da língua das quais Derrida aplicou-


se a fornecer uma análise « subtrativa », tanto quanto semelhante sintagma
seria de uma só vez subtraído à ordem que o porta, à língua que o proíbe e o
autoriza de uma só vez. Eu aí ajuntaria a analítica rosenzweigiana do « Ame-
me », que atesta uma proximidade acentuada e mesmo uma profunda afinidade
«  estelar  » com o comentário derridiano. Esses dois curiosos imperativos
presentes na segunda pessoa do singular, « venha », « ame-me », impõem uma

48
aparente impossibilidade em um requerimento no entanto muito simples : a
língua lhes é inóspita e ela é no entanto o que os acolhe. Eles formam a instância
de um chamado que eu apreendo dizendo a tal outro para « vir » ou para me
« amar ». Eu « decido » dizer, e dizer imperiosamente, porque não posso fazer
de outra forma, não posso dizer numa não-língua. É-me necessário dizer
na língua do outro, na outra língua que eu jamais falarei. Tudo nesse dizer
é portanto radicalmente golpeado de indecisão ou de indecidível : a vinda, o
amor, o vindouro e o amado a que me remeto. O dizer, aqui, não tem outro
sentido senão o indecidível ao qual ele se expõe. Escutemos as duas vozes tão
próximas e tão díspares a um só tempo, de Derrida, e então de Rosenzweig.

«  Venha não é uma modificação de vir […] Por consequência


minha «  hipótese » não designa mais uma operação lógica ou
científica. Ela descreve sobretudo o avanço insólito de venha
sobre vir. É um passo a mais ou a menos sob vir. É subtrair alguma
coisa em toda posição, tal como ela se propaga e recita através dos
modos do vir ou da vinda, por exemplo, o porvir, o acontecimento,
o advento, etc., mas também através de todos os tempos e modos
verbais do ir-e-vir. Venha não dá uma ordem, ele não procede
aqui de nenhuma autoridade, de lei nenhuma, de nenhuma
hierarquia […] Uma « palavra », deixando inteiramente de ser
uma palavra, desobedece à prescrição gramatical ou linguística,
ou semântica, que lhe determinariam ser – aqui – imperativo,
presente, a tal pessoa, etc. Eis uma escritura, a mais arriscada
que seja, subtraindo alguma coisa à ordem da linguagem que ela
aí dobra em retorno com um rigor muito suave e inflexível […]
Venha não é um imperativo, não é um presente. Não sê-lo, eis o
que o que não lhe confere uma sorte de selvageria não linguística
deixando o acontecimento venha em liberdade. Isso insiste, pelo
contrário, na língua de maneira singular, inquietando todas as
seguranças linguísticas, gramaticais, semânticas. Venha não dá
uma ordem no presente a uma pessoa »16. 16. Parages, Galilée, 1986, p. 25-
6. Não dou conta alguma aqui
da referência blanchotiana da
sentença.
« O amor não é somente livre oferenda? E eis que se o comanda?
Sim, certamente, não se pode comandar o amor; nenhum terceiro
pode comandá-lo nem obtê-lo pela força. Nenhum terceiro
o pode, mas o único o pode. O comando do amor não pode
vir senão da boca do amante. Somente aquele que ama pode
dizer: Ame-me […] O amor daquele que ama não possui outra
palavra para expressar-se senão o comando […] O comando

49
no imperativo, o comando imediato, jorrado do instante e já
em vistas de devir sonoro no instante de seu jorrar – pois devir
sonoro e jorrar são uma e mesma coisa no amor –, o « ame-me »
do amante, eis a perfeitamente pura linguagem do amor. Então
quando o indicativo tem detrás de si todas as circunstâncias que
fundaram a objetividade e o passado aparece como a forma a
mais pura, o comando é um presente absolutamente puro, sem
nada que o prepare. E não somente sem nada que o prepare, mas
absolutamente sem premeditação. O imperativo do comando não
faz previsão nenhuma para o porvir; ele não pode imaginar senão
a imediatez da obediência. Se ele fosse pensar em um porvir ou
um « sempre », não seria em nada um comando, não seria uma
ordem, mas uma lei ».17 17. Franz Rosenzweig, L’étoile de
la Rédemption, trad. Derczanski /
Schlegel, Paris, 2. ed., Seuil, 2003,
p. 251-2. Acrescento que Derrida
aventa, ele mesmo, a possibilidade
de que as duas sentenças sejam
Apesar das oscilações muito significativas quanto ao uso de alguns assim justapostas, quando afirma,
repetidamente, “eu amo sempre o
termos, «  comandar  », «  presente  », «  pessoa  », que se poderia facilmente que eu amei”.
explicar sem apaga-las nem força-las, essas duas meditações engajam-se, cada
uma à sua maneira, sobre a estreita passagem do acontecimento de uma palavra
viva, urgente e impossível, arrancando-se à ordem da língua. É em virtude
desta potência de arrancamento da palavra de sua « ordem », de uma palavra
à distância dela mesma, distanciada dela mesma, que pode-se aqui (« aqui »,
como insiste Derrida) evocar a messianidade da injunção indecisa, carregada
pelo instante e absolutamente não premeditada. A « subtração » para Derrida
ou o « devir-sonoro » para Rosenzweig são modos ou exercícios de palavra
em direção ao outro por onde o indecidível (« o avanço do venha sobre vir »
o qual, como « ame-me », não faria « previsão nenhuma para o porvir ») abre
fora-da-lei à resposta do outro. Este é de fato o decisor do indecidível, atando
o tempo e a espera, o incerto e o iminente.

1. O indecidível é o tempo da decisão (dizer: «  venha  », «  ame-


me »).

2. Esse tempo indecidível é o tempo de um outro (a quem eu digo :


« venha », « ame-me »).

3. Esse outro ordena algo como uma esperança (de que isso venha
e de que isso ame, logo em seguida).

50
Esta tripla articulação permite compreender melhor ou melhor
determinar a ética da flutuação ou a ética dos dominados/marranos que
colocou-se em questão. Para dizer a coisa mesma, uma certa messianicidade
sem messianismo é muito profundamente implicada em uma possível ética
do indecidível, para além mesmo de seus esperados derridianos estritos. É
necessário precisar de uma vez o conteúdo da esperança no que ele se aglomera
ao tempo e ao outro no indecidível – não a esperança em geral, portanto, mas
a esperança pelo indecidível ou esperança enquanto ela comanda toda decisão
vivente.

Esperar pelo indecidível

Não se espera senão pelo que está em tensão no instante mesmo


em que o esperar se estabelece, de uma vinda, de um amor. Dito de outro
modo, não se espera pelas coisas longínquas – ou então trata-se de uma
esperança que constitui o esquema pelo qual se imagina o porvir e se dá
seu conceito. Espera-se portanto pelo que é muito próximo, seja o mais
incalculável, o mais não-pré-determinável, o mais im-pré-pensável, pelo
que está o mais carregado de espera e de inquietude, no instante. De um
lado « venha, ame-me » não pode dizer-se senão a partir de uma vinda já
vinda, um amor já aí – não se poderia endereçar-se a quem se apresenta,
que não entenderia, nesse sentido, nem o vir, nem o amar, nem a imperiosa
injunção. É bem necessário que alguma coisa dessa espera esteja já contida
no endereçamento que dela jorra para que ela possa somente proferir-se.
Mas, por outro lado e ao mesmo tempo, esta atualização prévia não efetua
nenhuma reatualização automática, ela não é nem tem garantia de nada.
Pelo contrário, ela exacerba a questão de sua renovação indecidível, ela exige
que eu não saiba decidir, isso de que não há lugar para mim « decidir », que
é requerido e improvável a um só tempo. O esperar condensa assim o mais
próximo e o mais indecidível em uma intensidade temporal inaudita. Aí,
logo em seguida, isso acontece, isso vai acontecer; mas o acontecimento,

51
colocando-se assim na espera imediata dele mesmo, se suspende em sua
irresolução de cada instante  : venha, ame-me. Assim aproximado em sua
condensação instantânea, o esperar se encontra descarregado de todos os
cálculos, de todos os investimentos de sentido e de todas as determinações
racionalizantes que o sobremarcam tão logo ele lide com as coisas distantes.
Ele poderia então escapar muito bem tanto de sua constante depreciação
pela filosofia e pelos filósofos quanto de sua redução concomitante a uma
virtude teológica, religiosa ou laica. A decisão ela mesma poderia ser o objeto
de uma distribuição inédita. Não se « decide » senão pelas coisas longínquas,
na ilusão do programa e da empresa. Quanto mais o objeto da decisão de
aproxima do instante do cortar, até confundir-se em um indecidível-im-pré-
pensável, mais a decisão dá lugar a um confiar-se à tensão insigne do tempo
e ao esperar de uma de-tensão. É esse movimento de um dizer ininvestível
pela espera e atencipação que atesta o modo gramatical do imperativo da
segunda pessoa do singular, o único que possa manifestar uma ordem sem
ordem, um endereçar sem espera, uma afirmação e uma positividade sem
dialética e sem processo preventivo.

Há no indecidível uma aquiescência plena ao dois-sem-um – de que


foi dito que não se acomodava nem com uma resignação a um dos dois,
nem autorizava um ultrapassamento especulativo dos dois no um, nem
renunciava a agir e a decidir. Uma « razão », no sentido em que Pascal podia
escrever que trabalhar « pelo incerto » era o único fazer razoável, o único
fazer « para amanhã » – uma « razão », portanto, joga indecidivelmente contra
as racionalidades da decisão amadurecida e refletida: « Quantas coisas faz-se
pelo incerto, as viagens sobre o mar, as batalhas! Pois eu digo que não seria
necessário nada fazer do todo, pois nada é certo... Quando se trabalha para

52
o amanhã e para o incerto, age-se com razão »18. A afirmatividade essencial19 18. Pensées (452/130), Œuvres
complètes, Pléiade, p. 1216.
do indecidível e a gloriosa incerteza que o acompanha permitem que se
19. Reenvio o leitor, se posso, a
possa a ela associar o esperar pelo iminente, o quase-já-lá, o impossível. “Oui, la survie... Note sur le carré
affirmatif de la déconstruction”.
Elas obrigam mesmo a se colocar ao lado desta esperança e a tentar pensar In: Rue Descartes, “Pensar com
Jacques Derrida”, dir. J. Cohen,
uma ética desse esperar, flutuante, marrana e messiânica, votada à injunção n° 52, Paris, 2006.
indecidível do outro, vinda dele e a ele endereçada.

(tradução de Daniel Barbosa Cardoso)

53

Você também pode gostar