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ENTREVISTA
‘Continente
consolidou
as democracias’
Com exceção de Venezuela QUEM É
e Cuba, América Latina teve
desenvolvimento político ✽ Jorge Mario Vargas Llosa,
extraordinário nos últimos escritor, jornalista, ensaísta e
30 anos, diz escritor peruano político peruano. Escreveu
mais de 30 romances, peças
Wálmaro Paz de teatro e ensaios. Recebeu
ESPECIAL PARA O ESTADO o prêmio pela “cartografia
PORTO ALEGRE das estruturas do poder e
mordazes imagens da resis-
Prêmio Nobel de Literatura des- tência, da rebelião e derrota
te ano, o escritor peruano Ma- do indivíduo”
rio Vargas Llosa afirmou ontem
em entrevista coletiva que a
América Latina teve um desen- uma forma partidária sobre es-
volvimento político extraordi- tas eleições.
nário nos últimos 30 anos.
“Houve uma consolidação das ● Seu fazer literário deve mudar
democracias no continente ape- depois do Nobel?
sar de ainda permanecer a dita- Não creio que o prêmio tenha
dura cubana dos irmãos Castro, influência sobre isso. Minha for-
a tentativa de ditadura da Vene- ma de escrever não vai melho-
zuela capitaneada por Hugo rar nem piorar por causa do No-
Chávez e os governos autoritá- bel. Tampouco vão mudar os te-
rios da Bolívia e da Nicarágua”, mas, que fazem parte da expe-
argumentou ele, em Porto Ale- riência de um escritor. Todos
gre, pouco antes de apresentar eles nascem de certas experiên-
sua palestra na Universidade Fe- cias chaves. As técnicas que uti-
deral do Rio Grande do Sul no lizo para narrar já fazem parte
ciclo anual de conferências do que sou. Mas a minha vida
Fronteiras do Pensamento. será um pouco alterada por cau-
sa da curiosidade, da falta da
● Quando o senhor recebeu o privacidade e da impossibilida-
Nobel disse que parou de pen- de de isolar-me.
sar. Por quê?
Recebi a chamada, esperei 14 ● Como o senhor analisa a políti- Populismo. ‘O caso da Argentina me parece um caso muito triste. Me dá muita pena’, afirmou o escritor Mario Vargas Llosa
minutos e a notícia se fez públi- ca dos governos latino-america-
ca. Às 6 horas da manhã, em nos, em grande parte de esquer- temos uma direita democráti- ● Por que o o senhor tem feito mãos do casal Kirchner. Paro das na vida, mas creio que seja
Nova York, minha casa havia si- da, e como avalia o governo ar- ca. Uma direita que não usa o críticas ao governo argentino? por aí... de forma indireta, através das
do invadida por 20 pessoas des- gentino? golpe de estado militar, que O caso da Argentina me parece consciências da sensibilidade
conhecidas, com câmeras, que Creio que na América Latina, se mantém a legalidade institucio- muito triste. Me dá muita pena. ● Suas ideias sobre política mu- que ajuda a formar. Mas de uma
me entrevistavam. Não tive a comparamos com o passado, nal no Chile, Peru e Colômbia. Hoje ninguém recorda que a Ar- dam, mas sobre a literatura o forma imprevisível que não se
tempo de pensar com essa inva- há um progresso considerável. São casos muito positivos por- gentina foi um país desenvolvi- senhor ainda pensa da mesma pode planificar nem programar.
são tão terrível dos meios de co- Quando eu era jovem a Améri- que, se queremos ter uma de- do na mesma época em que to- maneira que na sua juventude? Uma pessoa não pode afirmar
municação em minha vida. O ca Latina estava cheia de ditadu- mocracia arraigada, necessita- da a América Latina era subde- Seguramente minhas ideias mu- que escrevendo desta ou daque-
Nobel desperta uma curiosida- ras de um extremo a outro. O mos que existam esquerda e di- senvolvida. Ninguém mais se daram. Por exemplo, nos anos la maneira vai conseguir provo-
de frívola. O ganhador do prê- que havia era ditadura militar. reita democráticas. lembra que a Argentina foi um 50 quando estava na universida- car mudanças na sociedade. A li-
mio perde completamente a pri- Os governos civis e democráti- dos primeiros países do mundo de, seguia as teses de Sartre, so- teratura tem um efeito sobre a
vacidade, se converte em uma cos eram exceção à regra: Costa ● Quais são os problemas que o que acabou com o analfabetis- bre a literatura comprometida. sociedade. Um efeito que não é
figura pública, condicionado Rica, Chile, Uruguai e não havia senhor vê para esses governos? mo. A Argentina teve um siste- Fui seduzido pela ideia de que a dominado pelo escritor, mas
por forças que não controla. A muitos mais. Nesse sentido te- Sou muito otimista, mas ainda ma de educação que foi modelo literatura poderia ser um instru- provoca um desassossego, uma
pessoa se converte num zumbi, mos um progresso considerá- há muitos problemas. A cor- para o mundo. Se tivesse segui- mento para transformar a socie- espécie de mal-estar, e sempre
uma espécie de autômato que vel. Hoje temos poucas ditadu- rupção é uma praga que se es- do esse rumo, seria hoje um dade. O ensaio de Sartre, cha- resulta em atitude crítica. Creio
atua por movimentos determi- ras. Além de Cuba, há uma semi- tende por todo o continente. dos países mais avançados do mado O que é a Literatura, im- que a literatura estimula muito
nados por forças externas. ditadura que é a de Chávez e go- Temos o problema do narco- planeta, mas não é. As razões pressionou-me muito e deu um a crítica frente a todos os aspec-
Mas, mesmo assim, fiquei mui- vernos que são um pouco popu- tráfico, uma indústria muito são puramente políticas: pelos grande alento à minha vocação. tos da realidade, e essa é a ra-
to contente é uma experiência listas, com vocação autoritária, poderosa economicamente e maus governantes, pelos dema- Eram ideias estimulantes para zão por que todos os regimes
surpreendente. como Nicarágua e Bolívia. Mas que pode competir com o Esta- gogos e também pela ditadura um jovem. Eu via que, além de autoritários e totalitários esta-
o resto da América Latina tem do de igual para igual. Isso militar, que muito contribuiu ser uma arte, a literatura era beleceram sistemas de censura,
● O que o senhor está achando governos democráticos, nasci- acontece porque o narcotráfi- para essa ruína. O governo também uma maneira de inter- de controle da literatura. Por-
das eleições no Brasil? dos de eleições. Há pluralismo co tem uma enorme força cor- atual da Argentina parece que vir na vida pública, defendendo que viram nela um perigo. Na
Alegro-me que haja eleições no político, com liberdade de ex- ruptora. São problemas que te- tocou o fundo da demagogia, as melhores opções. Porque as verdade, ela é um perigo para
Brasil. Espero que sejam muito pressão. São democracias im- mos de combater, mas o mar- do populismo e da falta de inte- tarefas criativas eram uma ar- qualquer ditadura porque esti-
livres e autênticas. Desejo que perfeitas, porém democracias. co está cada vez mais adequa- gridade moral. É uma crítica ma política para lutar contra a mula uma atitude crítica frente
os brasileiros votem com inteli- Temos fenômenos muito inte- do: democracia política e eco- carregada de tristeza, mas tam- injustiça. Eram ideias exalta- ao mundo, à realidade. Assim
gência, com acerto. Para que o ressantes, o que não existia no nomia de mercado. Podemos bém de solidariedade com um das, mas logo vimos que não fo- eu mudei muito. A partir de um
governo eleito mantenha este passado. Temos uma esquerda sair do subdesenvolvimento e, país que, em certa época, já foi ram confirmadas pela realida- momento, descobri o humor,
processo de desenvolvimento, democrática em países como ao mesmo tempo, diminuir a o mais culto da America Latina. de. O próprio Sartre deixou de que eu achava não ser literatu-
de modernização, que leve a ca- Uruguai e Brasil. É uma esquer- violência e criar igualdade de Era o país por onde conhecía- fazer literatura para escrever en- ra. Descobri o humor com a no-
bo o Brasil e que impressionou da que respeitou a democracia oportunidades. Essa é a boa di- mos a literatura mundial, com saios políticos ou filosóficos. vela chamada Pantaleão e as Visi-
o mundo inteiro. E que corrija e, no campo econômico, renun- reção que afortunadamente já suas editoras, suas revistas co- Por outro lado, ficou evidente tadoras. Eu vi que o humor po-
também os possíveis erros que ciou às velhas receitas socialis- foi tomada pela maioria dos mo Sur. Por isso, é triste pen- que a literatura não produz mu- deria ser uma forma riquíssima
este governo possa ter cometi- tas e começou a utilizar políti- países latino-americanos. Se sar que o país de Jorge Luis Bor- danças históricas imediatas e de contar algumas histórias.
do. Não posso falar mais, não cas liberais e da social-democra- compararmos com 20 ou 30 ges, de Vitorio Ocampo, da re- não pode ser convertida em ins- Mudei muito, só não mudei o
estou informado dos detalhes e cia que foram muito proveito- anos, há um progresso extraor- vista Sur, das editoras Losada, trumento de ação política. A li- pensamento de que a literatura
seria irresponsável opinar de sas para esses países. Também dinário na América Latina. Sudamericana, hoje esteja nas teratura deixa marcas profun- é imprescindível.