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O Zen e a música

24/11/2014
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Celso Cintra
Este ano, a 42ª turma do Curso de Música da Universidade Federal de Uberlândia, que se formou no 1º semestre de 2014 – e
que adotou o nome de Prof. Me. Adelcio Camilo Machado, grande professor e amigo que fiz durante sua estada aqui em
Uberlândia – convidou-me para que eu fosse paraninfo de sua colação de grau. Após ter feito a lição de casa, pesquisando o
significado e a importância de ser paraninfo de uma turma, que é como um padrinho para esta turma, descobri também que o
discurso do paraninfo, também chamado de Oração do Paraninfo*, deve ser como uma última aula antes dos formandos
colarem grau e se tornarem de fato profissionais do curso que resolveram estudar na faculdade.

Nossas falas no curso de música são um pouco mais curtas, então eu apenas tive uma ideia e elaborei mentalmente o que ia
dizer, sem escrever meu discurso. Nele eu junto duas histórias, uma de John Cage e outra de meu amigo e parceiro musical
de longa data, Eduardo Penha, com quem continuo trabalhando até hoje, agora com o Espiral Harmônica Trio. Como
algumas pessoas gostaram e vieram me parabenizar e agradecer pelo que falei, resolvi tentar reproduzir aqui, agora de
maneira escrita, a minha Oração de Paraninfo. Se tivesse que dar um título seria “O Zen e a Música”, e ele foi mais ou
menos assim:

Queridas formandas, caros formandos, boa noite.

Queria antes de tudo agradecer ao convite e dizer que me sinto muito lisonjeado por vocês terem me dado a honra de ser o
paraninfo de sua turma. Pelo que pesquisei, o paraninfo é como um padrinho que abençoa o caminho de seu afilhado para
seu percurso na profissão que escolheu e o seu discurso, também chamado de oração, deve ser como uma última aula, um
último ensinamento antes do formando tornar-se de fato um profissional. Como não pretendo dar uma aula muito extensa
juntarei duas histórias.

Começo com uma história de John Cage, um de meus compositores e pensadores da música prediletos. Ele foi aluno do Dr.
Daisetz Teitaro Suzuki, especialista e um dos responsáveis pela transmissão do pensamento Zen-Budista ao Ocidente. John
Cage nos conta no seu livro De Segunda a um Ano** que estava em uma conferência de Suzuki em que ele disse:

“Antes de estudar Zen, homens são homens e montanhas são montanhas. Enquanto se estuda Zen as coisas se tornam
confusas: não se sabe exatamente o que é o que e qual é qual. Depois de estudar Zen, homens são homens e montanhas são
montanhas”. Ao final da palestra veio a pergunta: "– Dr. Suzuki, qual a diferença entre homens são homens e montanhas
são montanhas antes e depois do Zen?" O Dr. Suzuki então respondeu: “A mesma coisa, só um pouco como se você tivesse
os pés um tanto fora do chão”.

A esta história junto outra, de um grande amigo e parceiro musical, Eduardo Penha, que uma vez falou-me algo mais ou
menos assim:

“Alguém que queira tornar-se médico, não é médico, entra na faculdade, estuda o tempo necessário para se formar, e depois
vai clinicar. Alguém que queira tornar-se engenheiro, não é engenheiro, estuda o tempo necessário para se formar, e depois
vai trabalhar como engenheiro. O mesmo se dá com alguém que queira tornar-se advogado: depois de se formar, vai exercer
sua profissão. Já no caso da música as coisas são um pouco diferentes: antes de entrar na faculdade, a maioria já é músico ou
musicista, já toca ou canta em algum bar ou orquestra, dá aula particular ou em alguma escola. Ele entra na faculdade e ao se
formar ele vai continuar sendo músico ou musicista, vai continuar tocando ou cantando em algum bar ou orquestra, e vai
continuar dando aulas particulares ou em alguma escola”.

Após ouvir isso alguém poderia perguntar: “Qual a diferença, então, entre ser músico ou musicista, tocar ou cantar em
algum bar ou orquestra e dar aulas particulares ou em alguma escola, antes e depois da faculdade?”

E aqui vai minha contribuição ao juntar estas duas histórias e dizer que não há nenhuma diferença, a não ser o fato de que
você está um pouco acima do chão. E é essa uma das funções da música e, portanto, é para isso que existimos como
músicos: fazer com que as pessoas se sintam um pouco acima do chão. Vão e deem ao mundo um pouco disso! Obrigado.

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*Recomendo a leitura do belo texto “Oração de Paraninfo” feito por Mário de Andrade à turma que se formou em 1935 no
Conservatório Dramático e Musical de São Paulo.
**CAGE, John. De segunda a um ano. Trad. Rogério Duprat e Augusto de Campos. Rio de Janeiro: Cobogó, 2013.

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