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Memórias De Um Psicopata1

Boa noite. Muito obrigado por terem vindo. É sempre bom ter alguma companhia... de
vez em quando.
Sabem, podemos conhecer o corpo humano de duas formas: a científica, teórica,
dos mapas e a prazenteira, a que nos ajuda a conhecê-lo de facto... por dentro... eu
sempre aderi ao dito popular não me importa se és bonito ou feio, importa é como és por
dentro.
Já o tentaram abrir o corpo humano? Não? Tentem, a desilusão do que vêm não
compensa a excitação de adivinhar. Não é uma desilusão suficientemente grande, não
entusiasma. As grandes desilusões entusiasmam mas as médias não, desencantam, é
tudo.
Depois de ouvirmos tantas histórias acerca da maravilha que é ser humano
ficamos perfeitamente desalentados quando vemos que o que vai por dentro do corpo é
aquilo que vai nas ruas, uma catrefada de líquido escuro e putrefacto, em zonas
irregulares, por umas ruelas sujas e escuras que deitam um cheiro nauseabundo a quê? A
homem, a homens, a humanos, buracos e mais buracos, misturas promíscuas de líquidos
vindos de várias fontes, de várias cores, de vários cheiros, relevos e orifícios... o corpo
humano aberto reflecte o que de sujo e imundo vai nas ruas do Homem.
Mas não vos vou falar das zonas que toda a gente conhece, não, não vos vou
falar do fígado, esse órgão de aspecto macio, que lembra vagamente borracha e onde um
golpe bem dado, com energia suficiente, fará jorrar um líquido viscoso e amarelado que
dá pelo nome de bílis ... se o golpe for mesmo bem dado pode chegar ao pâncreas e aí
sim, dois sucos se unem em mais uma junção promíscua do Homem.
Não vos vou falar do calcanhar, do tendão-de-aquiles, essa espécie de corda que
promove o movimento e cujo corte rápido e seco provoca uma espécie de paralisia e
cuja recuperação é morosa e difícil, podemos rastejar para sempre ... em vez de andar ...
mas também é o que faz o Homem, rasteja aos pés dos que idolatra ou lhe interessam.
não vos vou falar dos olhos, esse órgão em que confiamos para nos guiar em quase tudo
o que fazemos e no qual, um dedo bem espetado, com golpe seco e rápido, possibilita a
saída da íris, ou seja, deixamos de ver, mas também o Homem já não vê nada, limita-se
a seguir os instintos promíscuos, só isso.

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De Bruno Schiappa – escrita e levada a cena em 1999 no teatro da Trindade – sala estúdio

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Também não pensem que vos vou falar no pescoço, essa zona de vaidade e cujo
corte na carótida faz espichar um jorro de sangue que é essencial para a irrigação do
cérebro e sem o qual ele não filtra informações. É claro que o Homem não precisa de
jorrar nada da carótida, o seu passatempo favorito é jorrar e jorrar e jorrar, com um
prazer que ele não sabe que passa pela dor. Enfim, não vos vou falar destas zonas ... vou
falar de outras ... outras que conheci por acaso, por intuição ... ou melhor ... por
instinto ... depois gostei e continuei ... estão confortáveis? Espero que sim, espero não
vos estar a maçar com esta minha descrição. A que se segue é muito mais interessante.
Prende-se com o acaso. O tédio. Eu tive uma mãe, sim, já sei, todos tivemos ou temos
uma mãe, mas a minha não era especial, não era nada de especial estão a ver? Só falava,
falava, era muito religiosa e tudo passava pelo que se deve ou não deve fazer “Não
deves fazer isto, não deves fazer aquilo, é pecado, Deus castiga, Deus” DEUS, DEUS,
eu nem sequer o tinha visto nunca, o tipo, para mim, era um gajo esquisito,
omnipotente, omnipresente, omnisciente dizia ela, era preciso ser um gajo
esquizofrénico para ser assim, e sempre a achar tudo mal, mas ela continuava, Deus
tudo pode e vê, etc., etc., etc.
Comecei primeiro a não ligar, mas ela não me deixava pensar, falava, falava,
falava, por isso um dia beijei-a na boca e quando ela ia dizer que Deus não permitia isso
abri-lhe a boca com as mãos e arranquei-lhe a língua com os dentes, exacto, mas mesmo
assim ela emitia uns sons agudos, eu pensava que sem língua as pessoas ficavam mudas
totalmente, que ignorante que eu era, claro que não, peguei num alicate, afastei os
maxilares, fui mais fundo e vazei um orifício pequeno que lá estava, deixou logo de
haver som. Aquilo intrigou-me muito de modo que fui á procura de um atlas do corpo
humano para ver se via alguma explicação... e havia, chamam-lhe cordas vocais, são
umas fibras de tecido elástico e resistente, revestidas por uma membrana delicada.
Relaxadas dão os sons graves e fortemente esticadas dão os sons agudos. Olhei para a
minha mãe e verifiquei que ela já não tinha as dela para uso portanto não valia a pena
falar-lhe no assunto. Na mesma página estava uma imagem da língua a explicar que a
mesma denuncia os sabores amargo, doce, ácido e salgado tornei a olhar para a minha
mãe e achei que não precisava de lhe dar de comer uma vez que ela não iria ter nunca
mais o prazer de sentir os sabores das coisas. Só que me esqueci de um pequeno
pormenor, quando não se come morre-se... e foi o que aconteceu.

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