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JORGE MIRANDA
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político, como tais definisse seria o mesmo que admitir a nao consagracáo,
a consagracáo insuficiente ou a violacáo reiterada de direitos como o di-
reito á vida, a liberdade de crencas ou a participacáo na vida pública só
porque de menor importancia ou desprezíveis para um qualquer regime po-
lítico; e a experiencia, sobretudo na Europa nos anos 30 e 40 deste século,
ai estaría a mostrar os perigos advenientes dessa maneira de ver as coisas.
Julgamos nao procedentes as dúvidas e as objeccoes, por varios motivos.
Na verdade, precisamente por os direitos fundamentáis poderem ser en-
tendidos prima facie como direitos inerentes á própria nocáo de pessoa, como
direitos básicos da pessoa (2), como os direitos que constituem a base jurídi-
ca da vida humana no seu nivel actual de dignidade, como as bases principáis
da situagáo jurídica de cada pessoa (3), eles dependem das filosofías políticas,
sociais e económicas e das circunstancias de cada época e lugar (4).
Nao excluimos —bem pelo contrario— o apelo ao Direito natural, o apelo
ao valor e á dignidade da pessoa humana, a direitos derivados da natureza
do homem ou da natureza do Direito. Mas esse apelo nao basta para diluci-
dar a problemática constitucional dos direitos fundamentáis, porquanto o
ámbito destes direitos vai muito para além da fundamentacáo própria do
Direito natural. Quer no século xix quer sobretudo no secuto xx os direitos
tidos como fundamentáis sao táo latos e numerosos que nao poderiam entron-
car (ou entroncar directamente) todos na natureza e na dignidade da pessoa.
Só alguns sao impostos pelo Direito natural, nao decerto —por importantes
que sejam— o sao o direito de antena (art. 40° da Constituicáo portuguesa)
ou o direito de accao popular (art. 52°, n° 2) ou os direitos das comissóes de
trabalhadores (art. 55°).
Em contrapartida, com o conceito material de direitos fundamentáis nao
se trata, por definicáo, dos direitos declarados, estabelecidos, atribuidos pelo
legislador constituinte pura e simplesmente; trata-se dos direitos resultantes
da concepeáo de Constituicáo dominante, da ideia de Direito, do sentido
jurídico colectivo (conforme se entender, tendo em conta que estas expressóes
correspondem a correntes filosófico-jurídicas distintas). Ora, sendo assim, só
muito difícil, senáo impossivelmente, poderá supor-se que tal concepeáo, tal
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ideia ou tal sentimento nao assente num mínimo de respeito pela dignidade
do homem concreto. O que significa que, ao cabo e ao resto, poderá encon-
trar-se, na generalidade dos casos, com maior ou menor autenticidade, a
proclamacáo dos direitos postulados pelo Direito natural —para quem a este
adira— e de vocacáo comum a todos os povos.
De qualquer forma, quando, porém, tal concepcáo, tal ideia ou tal senti-
mento se traduza numa Constituicáo material pouco favorável aos direitos
das pessoas, compressora deles ou negadora de direitos que, noutras partes
do mundo ou que á luz de urna consciéncia universal, deveriam ser reconhe-
cidos, o que está em causa entao nao é o elenco e o valor dos direitos funda-
mentáis em si; o que está em causa é a deficiencia dessa Constituicáo material
em confronto com outras, o carácter do regime político correspondente, a si-
tuacáo de opressáo ou alienacáo em que viva certo povo. Urna nocáo como
a proposta, longe de indiferente á realidade, permite, pois, submeté-la a ura
juízo crítico. Situando os direitos fundamentáis no quadro da Constituicáo
material, permite apercebé-los á luz dos factores que a condicionam.
(5) Assim também, CASTRO MENDES, op. cit., loe. cit., p. 102; VIEIRA DE ANDRADE,
Os direitos fundamentáis na Constituigao portuguesa de 1976, Coimbra, 1983, pp. 76
c ss.; GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional, A" ed., Lisboa, 1986, pp. 444-445.
(6) Art. 4o.
(7) Art. 8°, § Io.
(8) Também o art. 269°, n° 2, estatuí que os funcionarios e agentes do Estado e
demais entidades públicas nao podem ser prejudicados ou beneficiados «em virtude do
exercício de quaisquer direitos políticos previstos na Const¡tuic.5o» —o que inculca que
pode haver outros nela nao previstas.
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(9) General Theory of Law and State, Nova Iorque, 1961 (reimpfessáo), pp. 266-267.
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(10) A parte III versa sobre organizafáo do poder político e a parte IV sobre a
garantía e a revisao da Constituido.
(11) V., por todos, sobre o assunto, JORGE MIRANDA, A Constituigao de 1976, cit.,
máxime pp. 268 e ss., e autores citados.
(12) Já chamada por um autor a decisao-guia de toda a Constituicáo (HEINRICH
EWALD HÓRSTER, «O Imposto Complementar e o Estado de Direito», in Revista de
Dircilo e Economía, 1977, p. 59).
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(13) Sao elas, na parte II: os arts. 106°, n° 2, e 110°, n°s 1 c 2. E na parte I I I :
os arts. 116°, n° 2, alinea a); 117°, n°s 1 e 2; 118° e 265"; 127°, n° 1; 246°, n° 1;
263°, n° 1; 268°; 269°, n°s 2 e 3, e 276°.
(14) A expressáo é de G O M E S C A N O T I L H O e VITAL M O R E I R A , Constitui^ao da Re-
púlbica Portuguesa Anotada, 2" cd., I, Coimbra, 1984, p. 123.
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(15) Tal como, antes da revisao constitucional, era o caso da liberdade de criacáo
de escolas particulares (art. 13°, n°s 3 e 4, do Pacto de Direitos Económicos, Sociais
e Culturáis).
(16) V. Diario da Assembleia Constituinte, n° 35, de 22 de Agosto de 1975, pp. 941
e ss. A proposta foi de iniciativa do Partido Popular Demócrata (hoje Partido Social-
Democrata) e defendida, entre outros, pelos Deputados COSTA ANDRADE e MOTA PINTO.
Contra ela aduziu-se que ai subjazeria «uma concepcáo idealista de uma irredutível na-
tureza humana», esquecendo que os direitos sao «exprcssáo das relacóes sociais que entre
os homens se estabelecem no quadro da producáo do seus meios de subsistencia» (Depu-
tado OLIVEIRA E SILVA) e que a sua fonte material tem sido «a luta histórica do ho-
mem na sua luta pela libertacáo c pelo progresso» (Deputado VITAL MOREIRA).
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jurídica (17). E, por isso também, na revisáo de 1982, uma proposta de senti-
do análogo á de 1975 seria do mesmo modo afastada, por redundante ou por
envolver o risco de eventual compressáo dos direitos expressamente decla-
rados.
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4. O SENTIDO DA CONTRAPOSI<?ÁO
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(18) Veja-se, por exemplo, o direito a vida: nel parece sobressair o elemento di-
reito; contudo, igualmente ai aparece o elemento de garantia que se traduz, nomeada-
mente, na proteccao penal da vida humana —de toda a vida humana, antes e depois
do nascimento. Relativamente á liberdade de imprensa 6 o elemento liberdade que
está mais presente, mas encontra-se também o elemento garantia. O direito de resis-
tencia é fundamentalmente uma garantia, é algo de instrumental relativamente á defesa
de outros direitos, mas também é um direito quando considerado autónomamente.
O direito a greve é simultáneamente um direito, uma liberdade e uma garantia; corae-
cou por ser apenas algo de lícito, depois uma liberdade e hoje é um verdadeiro direito
stricto sensu. Os direitos políticos, se, por um lado, tém um sentido de direitos, sao
também a garantia dos demais direitos e alguns sao configuráveis como liberdades
(v.g., a liberdade de associacáo e formacáo de partidos políticos).
Cfr. CASTRO MENDES, op. cit., loe. cit., p. 109; A. MONTEIRO FERNANIJES, Rejlexoes
sobre a natureza do direito á greve, ib'idem, II, pp. 321 e ss.
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tias (art. 22°) e deve tutela quer civil (19) quer penal contra violacóes pro-
vindas de quaisquer cidadáos.
Por outro lado ainda, quanto a algumas liberdades, exigem-se mesmo in-
tervencóes e até prestacóes positivas (20), sem as quais se frustra o seu exer-
cício ou o seu exercício por todos os cidadáos e todos os grupos: assim, com
a liberdade de imprensa, que implica o assegurar pela lei dos meios necessá-
rios á salvaguarda da sua independencia perante os poderes políticos e eco-
nómicos (art. 38°, n°s 5 e 6), e a posibilidade de expressáo e confronto das
diversas correntes de opiniáo nos meios de comunicacáo social estatizados
(art. 39°, n° 1); com a liberdade religiosa (art. 41°, n° 5); com o direito de
manifestacáo (art. 45°, n° 2); com a liberdade sindical (art. 56°, nü 4); ou
com a liberdade de propaganda eleitoral, associada á igualdade das diversas
candidaturas e á imparcialidade das entidades públicas [art. 116°, n° 3, ali-
neas a), b) e c)].
6o) Pode e deve falar-se, sim, numa atitude geral de respeito, resultante
do reconhecimento da liberdade da pessoa de conformar a sua personalidade
e de reger a sua vida e os seus interesses. Esse respeito pode traduzir-se quer
em abstencoes quer em accoes do Estado e das demais entidades públicas ao
servico da realizacao da pessoa, individual ou institucionalmente conside-
rada (21), mas nunca em substituicáo da accao ou da livre decisáo da pessoa,
nunca a ponto de o Estado penetrar na sua personalidade e afectar o seu
ser (22).
É fundamentalmente neste sentido de respeito e preservacáo da persona-
lidade e da capacidade de accáo das pessoas que se justifica ainda dizer que
(19) Recordem-sc sobretudo os arts. 70° e 496° do Código Civil e, na Constituido,
os arts. 37°, n" 4, in fine, e 66°, n° 3.
(20) Ou obrigac.6es acessórias de fazer, na expressáo de PHILIPPE BRAUD (La no-
tion de liberté en droit publie ¡raneáis, París, 1968).
(21) Cfr. GEORGES VLACHOS, «La structure des droits de l'homme en régime plu-
raliste», in Revue Internationale de Droit Comparé, 1972, p. 315: nao é mais um dever
abstracto de abstemio negativa sistemática que determina a esséncia do Direito do
Homem e, designadamente, do direito individual; é a obrigaejio que decorre —para o
Estado como para os grupos ou os particulares— da ideia de nao alienado da perso-
nalidade e que gera, consoante os casos, tanto um dever de nao fazer como urna in-
jun^ao de agir, concreta e eficazmente, para salvaguardar a liberdade do homem.
(22) Cfr. FICUEIREDO DÍAS, «Sobre o papel do direito penal na protecejio do am-
biente», in Revista de Direito e Estudos Sociais, ano IV, n° 1, Janeiro-Julho de 1978,
p. 11, salientando que os direitos, liberdades e garantías respeitam a urna forma de
actuado do homem em que a dependencia recíproca com a comunidade ou se nao
verifica ou nao é necessária.
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(23) Aqui pór-se-ia o problema da fronteira (ou da nao fronteira) entre direitos
fundamentáis e direitos de personalidade.
(24) Cfr. GIOVANNI CORSO, «I diritti fondamentali nella Costituzione Italiana», in
Rivísta Trimestrale di Diritto Pubblico, 1981, p. 768.
(25) Cfr. a formulacao genérica do art. 57° da Constituido venezuelana: «As obri-
gacoes que incumben ao Estado quanto á assisténcia, á educacáo e ao bem-estar do
povo nao excluem as que, em virtude da solidariedade social, recaem sobre os particu-
lares segundo a sua capacidade...»
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(26) Salvo, quanto aos preceitos nao exequíveis por si mesmos, inconstitucionali-
dade por omissáo (art. 283°).
(27) Cfr. o primitivo art. 50°.
(28) Bem como do Plano (art. 91", n° 2) ou da política tributaria (art. 106°, n° 1).
(29) Cfr. GEORGES VLACHOS, op. cit., loe. cit., pp. 310 e ss.
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mana (art. I o ). Apenas por esta forma se captaráo as suas relacóes e se resol-
veráo problemas práticos de definicao de conteúdo e de aplica?áo (30).
12°) Finalmente, também por tudo ¡sto se afigura menos prudente recon-
duzir a distingo entre direitos, liberdades e garantías e direitos económicos,
sociais e culturáis a urna qualquer contraposicáo, quanto ao conteúdo, entre
direitos subjectivos e pretensoes jurídicas (31) ou expectativas jurídicas. A re-
lativa homogeneidade dos direitos, liberdades e garantías, primeiro, a hetero-
geneidade, outrossim, dos direitos sociais, depois, a imbricacio entre uns e
outros, a variedade das situacoes da vida nao aconselham tal conceituacáo
em globo. Ela terá de ser procurada caso a caso, direito a direito.
13°) Em suma, os direitos, liberdades e garantías sao direitos de auto-
nomía, de manifestacáo, de individualizacáo: revelam a esséncia da pessoa;
tém por contrapartida urna posicao de respeito pela esfera própria da pessoa
pelo Estado e pelas demais entidades públicas (e, em certos casos, privadas);
traduzem-se em limitacoes que o poder público se impoe (32) e que impoe
a outros poderes. Os direitos sociais, por seu turno, sao direitos de necessi-
dade e, ao mesmo tempo, de comunicagáo: tém que ver com as condicoes
de existencia da pessoa; tém por contrapartida a prestacáo de bens e de ser-
vigos; dependem de urna accáo modificadora das estruturas económicas,
sociais e culturáis.
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III. Esse regime específico dos direitos, liberdades e garantias tem tres
vertentes: uma, material; outra, orgánica; e outra, respeitante a revisáo
constitucional.
Fundamentalmente, consiste em:
a) Carácter preceptivo, de vinculacáo ¡mediata, para as entidades públi-
cas e para as entidades privadas, das normas constitucionais atributivas de tais
direitos (arts. 18° e segs.), enquanto que, insistimos, a efectivac,áo dos direitos
económicos, sociais e culturáis depende da transformado das estruturas eco-
nómicas e sociais, designadamente da socializacáo dos principáis meios de
producto [art. 9", alinea d), citado], bem como do esforgo nacional e da
cooperacáo internacional de harmonía com a organizacáo e os recursos do
país (art. 22° da Declarado Universal).
b) Reserva de competencia legislativa do Parlamento sobre direitos,
liberdades e garantias [relativa, em geral, art. 168°, alinea b), e absoluta,
quanto a algumas materias, art. 167", alineas c), d), e), f) e m)] e na corres-
pondente reserva de aprovagáo de tratados [art. 164°, alinea i)].
c) Insercáo dos «direitos, liberdades e garantias dos cidadaos» e dos
«direitos dos trabalhadores, das comissóes de trabalhadores e das associacóes
sindicáis», correspondentes, respectivamente, aos direitos dos capítulos I e II
(33) Neste sentido, por todos, ALESSANDRO PACE, Problemática delle liberta costi-
tuzionali, Padua, 1985, p. 22.
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(40) Sobre o art. 17° inicial, cfr. CASTRO MENDES, op. cit., loe. cit., pp. 106-107;
HORSTER, op. cit., loe. cit., pp. 94 c 105; ALMENO DE SÁ, «A revisáo do Código Civil
e a Constituiíao», in Revista de Direito e Economía, n" 2, Julho-Dezembro de 1977,
pp. 425 e ss.; VIEIRA DE ANDRADE, Direito Constitucional.—Direitos Fundamentáis, po-
licopiado, Coimbra, 1977-78, pp. 162-163 e 170-171; GOMES CANOTILIIO C VITAL MO-
REIRA, op. cit., T ed., Coimbra, 1978, pp. 61 e 74 e ss.; Parecer n" 18/78 da Comissao
Constitucional, cit., loe. cit., p. 17 e ss., e deelaracóes de voto dos vogais AMÁNCIO
FERREIRA e NUNES DE ALMEIDA, ibídem, pp. 37 e ss., e 49 c ss.
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(41) De resto, havia outras disposicoes que falavam em direitos dos trabalhadores
em sentidos algo diversos: o art. 53° (hoje art. 60°), sobre direitos laboráis stricto sensu,
e o art. 290°, alinea e), já citado.
(42) GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, op. cit., 1° ed., p. 75.
(43) No sentido de os «direitos fundamentáis dos trabalhadores» corresponderem
aos direitos, liberdades e garantías dos trabalhadores, Parecer n° 10/78, de 28 de Mar?o
de 1978, da Comissáo Constitucional (in Pareceres, V, pp. 47 e ss.).
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das escolas (art. 77°), na defesa dos consumidores (art. 110°, n° 3), na refor-
ma agraria (art. 104°) e na administracáo pública (art. 267°, n° 4); as garan-
tías das enancas contra todas as formas de discriminacáo e de operssáo e
contra o exercício abusivo da autoridade na familia e ñas demais instituicóes
(art. 69°, n° 2), a autonomía da Universidade (art. 76", n° 2), e os direitos
de organizacóes populares de base (arts. 118°, 248° e 265°).
Em compensacáo, nenhuma dificuldade há em admitir direitos de natu-
reza análoga á dos direitos, liberdades e garantías apenas previstos na lei.
Desde que sejam direitos fundamentáis no sentido e no contexto atrás de-
finidos, também poderáo ser direitos de natureza análoga á dos direitos,
liberdades e garantías.
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(48) Como faz VIEIRA DK ANORADE, op. ti/., pp. 210 e 211.
(49) Tal como no preámbulo se diz «garantir os direitos fundamentáis dos cida-
dáos», e nao atribuir.
(50) Sobre o problema, v. VIEIRA DE ANDRADE, op. cit., pp. 40 e ss. Cfr. já F. LUCAS
PIRES, Urna Constituifao para Portugal, Coimbra, 1975, pp. 17 e 30 c ss. Ou a justifi-
cacao dada para um preceito introdutório do capítulo de direitos fundamentáis a decla-
rar a dignidade humana inviolávcl, em projeeto de revisáo total da Constituicáo suíca:
«A proteccao da dignidade humana é, de algum modo, o último recurso do direito
quando a garantía de todos os outros direitos fundamentáis se revelasse exccpcional-
mente ineficaz. Neste sentido, ela é, ao mesmo tempo, o mais primario e o mais sub-
sidiario de todos os direitos» (Comission d'experts pour la préparation d'une revisión
totale de la Constitution, Rapport, Berna, 1977, p. 34).
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II. Nao se visa com isto fazer ressurgir as nocóes ou ilusóes oitocentis-
tas do «individuo sem individualidade» (51) nem se ignora que cada pessoa
tem de ser compreendida em relacao com as demais pessoas. Pretende-se, sim,
frisar que em cada homem e em cada mulher estao presentes as faculdades
da humanidade (52) e que todo e qualquer homem, toda e qualquer mulher
é irredutível e insubstituível enquanto tal, enquanto cidadáo, enquanto tra-
balhador (53). E, por isso, completa-se a referencia á dignidade da pessoa hu-
mana com referencia á «mesma dignidade social», que tém todos os cidadaos
e todos os trabalhadores (arts. 13°, n° 1, e 60°, n° 1, alinea b), decorrente da
insercáo numa comunidade determinada (54).
De que nao se trata de fazer ressurgir as nocóes oitocentistas comprova-o
exuberantemente o estatuto da propriedade na Constituicáo. Situando-a entre
os direitos económicos, sociais e culturáis, e nao entre os direitos, liberdades
e garantías do título II, a Lei Fundamental de 1976 vem salientar que os
(51) De que, apesar de tudo, poderia ser acusado o art. Io do Código Civil de
1867, ao dizer: «Só o homem é susceptível de direitos e obrigacóes».
(52) Recorde-se que nao é exactamente o mesmo falar em dignidade da pessoa
humana ou em dignidade humana. Aquela expressáo dirige-se ao homem concreto e
individual; esta a humanidade entendida ou como qualidade comum a todos os homens
ou como conjunto que os engloba e ultrapassa. Declarando a comunidade política por-
tuguesa «baseada na dignidade da pessoa humana», a Constituicáo afasta e repudia
qualquer tipo de interpretacáo transpersonalista ou simplesmente autoritaria que pudesse
permitir o sacrificio dos direitos ou até da personalidade individual em nome de pre-
tensos interesses colectivos. Mas a expressáo «dignidade humana» ainda aparece no
art. 26°, n° 2, e aparecía no art. 6°, n" 3, da Constituicáo de 1933.
(53) Nao tinha, pois, razao o Deputado ANTONIO REÍS quando, apesar de se afirmar
de acordó com o conteúdo fundamental da expressáo «dignidade da pessoa humana»,
dizia na Assembleia Constituinte que ela permitia introduzir uma dimensáo extra-social,
individual e, por ventura, metafísica no texto da Constituicáo (Diario, n° 25, p. 624).
Cf. a demostracáo do contrario en CASTANHEIRA NEVES, A Revolu(ño e o Direito,
Lisboa, 1976, pp. 68 c ss., e 207 e ss.
(54) É curioso realcar a diferente origem das expressóes nos projectos de Consti-
tuicáo. Enquanto que «dignidade da pessoa humana» veio do art. 1" do projecto de
Constituicáo do Partido Popular Demócrata e do art. Io da Constituicáo de Bona, «digni-
dade social» veio do projecto de Constituicáo do Partido Socialista e do art. 3° da Cons-
tituicáo italiana.
Na Assembleia Constituinte, chegou a ser proposta a eliminacáo da referencia a
dignidade social. Segundo o Deputado VITAL MOREIRA, ela apontaria para um conceito
sociológico, insusceptível de homogeneizacáo através duma afirmacáo jurídica. Em con-
trapartida, o Deputado JOSÉ LUÍS NUNES justificou-a, sustentando que, desde que se
aceitasse a expressáo «cidadáo», tena que se entender também «a mesma dignidade
social». V. o debate in Diario, n° 44, pp. 908 e ss.
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8. OS DEVERES NA CONSTITUI£ÁO
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(65) Algo diversamente, GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, op. cit., I, pp. 141
e ss.
(66) Ou deveres associados a direitos, como lhes chama VIEIRA DE ANDRADE,
op. cit., pp. 152 c ss.
(67) Como fazem GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, op. cit., 1, p. 142, e, de
certo modo, VIEIRA DE ANDRADE, op. cit., pp. 153-154.
(68) A questao tem sido discutida sobretudo a respeito do dever cívico de voto:
v. o nosso «O Direito Eleitoral na Constituigáo», in Estudos sobre a Constituicáo,
II, p. 472.
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evidentemente (até pela sua conexao com o direito á educac.áo), nada impede
que a lei torne obrigatório o ensino secundario, e nao apenas o básico.
No entanto, porque falta urna disposicáo semelhante á do art. 16°, n° 1
—e, num Estado de Direito, nao poderia deixar de faltar— tem de se con-
cluir que nao existe no Direito portugués um conceito material de deveres
fundamentáis paralelo ao de direitos fundamentáis. Deveres fundamentáis
sao apenas os que constam da Constituicáo (69). Quando muito, poderia,
porventura, dizer-se que aos direitos, liberdades e garantías corresponde um
dever geral de respeito —manifestado, nomeadamente, na vinculac.áo das
entidades privadas aos preceitos que lhes respeitam (art. 18°, n° 1)— e que
aos direitos económicos, sociais e culturáis corresponde um dever geral de
solidariedade social.
Há, porém, naturalmente limites a que está sujeito o legislador ordinario
na fixacáo de novos deveres. Sao essencialmente tres esses limites: 1) obser-
vancia dos principios da universalidade e da igualdade (arts. 12° e 13°);
2) nao imposicáo, por meio ou a pretexto de deveres, de restribes nao auto-
rizadas pela Constituicáo aos direitos, liberdades c garantías ou que afectem
o seu conteúdo essencial (art. 18°, n°s 2 e 3, 2a parte) (70); 3) necessidade,
por isso mesmo, de lei geral e abstracta (art. 18°, nu 3, Ia parte).
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