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ANAIS XI SEMANA DE HISTÓRIA POLÍTICA

RELAÇÕES DE PODER: CRISE, DEMOCRACIA E POSSIBILIDADES


VII SEMINÁRIO NACIONAL DE HISTÓRIA: POLÍTICA, CULTURA E SOCIEDADE
ISSN: 2175-831X - PPGH/UERJ 2016

AS FACES DA ALQUIMIA: CIÊNCIA, RELIGIÃO E CULTURA

Bruno Sousa Silva Godinho

Resumo: Este texto visa explorar diferentes aspectos da história e historiografia da alquimia.
Privilegiando os tópicos de ciência, religião e cultura, pretendemos demonstrar algumas das
pesquisas já realizadas e as possibilidades por elas abertas numa ampla perspectiva da
história, não apenas da ciência, mas também social e da cultura, abarcando relações de poder,
representações e instituições.

Palavras-chave: Alquimia; História Cultural; História da Ciência.

Abstract: This article aims to explore different aspects of the history and historiography of
alchemy. Privileging the topics of science, religion, and culture, we intend to demonstrate
some of the researches already in place and the possibilities they opened in an ample
perspective of history, not only of science, but also of social history and the history of culture,
encompassing power relations, representations and institutions

Keywords: Alchemy; Cultural History; History of Science.

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ANAIS XI SEMANA DE HISTÓRIA POLÍTICA
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ISSN: 2175-831X - PPGH/UERJ 2016

O século XII europeu, reconhecido como período de intensa renovação cultural


europeia, com os redescobrimentos e traduções de inúmeros textos antigos, é o marco em que
a alquimia desponta na cultura latina medieval. A história da alquimia no Ocidente tem seu
início atribuído a uma tradução do texto De compositione alchemiae, feita por Robert de
Chester, por volta do ano 1144.1 A partir desse momento a alquimia estará presente nas
considerações dos principais intelectuais da Idade Média e estenderá sua presença na Era
Moderna.
No que diz respeito à sua historiografia, podemos dizer que o tema adquiriu intensa
presença nas pesquisas acadêmicas a partir dos anos 1970. Sobretudo os historiadores da
ciência abraçaram o tema, que por muito tempo havia sido por eles rejeitado, desenvolvendo
hoje um verdadeiro nicho de pesquisa que, parece-nos, se expande rapidamente pela Europa e
pelos Estados Unidos. Todavia, diversas contribuições – muitas delas paradigmáticas – já
haviam sido feitas ao longo do século XX, desde a volumosa obra “A history of magic and
experimental science”, de Lynn Thorndike, ao famoso “Ferreiros e alquimistas”, de Mircea
Eliade.2 Nas próximas páginas consideraremos boa parte dessa produção e seus resultados
para o campo de estudo desse tema hoje.
Podemos dizer que a alquimia, na Idade Média, teve relações estreitas com a ciência
no que hoje nós chamaríamos de física, química e medicina. O que hoje compreendemos
como campos separados da física e da química, na ciência medieval atuavam dentro da
filosofia. Os princípios de movimento, de mudança dos corpos, da matéria, eram todos
pensados pelos filósofos medievais na lógica do macro e microcosmo. Existia uma relação
entre as coisas da terra e as do céu; no mais das vezes, essa relação se traduziu entre as coisas
dos homens e as coisas de Deus para a cristandade latina.3
A alquimia do Ocidente medieval (doravante alquimia latina) preocupou-se,
inicialmente, com a questão da transmutabilidade dos metais: seria possível ou não que uma
espécie de metal fosse transformada em outra? Em outras palavras: era possível transmutar
cobre em ouro? Essa questão suscitou intensos debates entre os pensadores medievais,
despertando o interesse de mentes como a de Alberto Magno e Roger Bacon. A transmutação
dos metais foi encarada, primariamente, como objeto da ciência.4
Essa ciência medieval era, sobretudo, de bases aristotélicas. Como nos diz Alexandre
Koyré, os escritos aristotélicos chegaram ao Ocidente através de traduções do árabe e, depois,
direto do grego, por volta do século XIII e, talvez, tão cedo quanto o fim do século XII.5

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Chegaram, portanto, concomitantemente aos primeiros escritos alquímicos. Fortuitamente, os


textos alquímicos também tinham procedência arábica pois foram os árabes seus primeiros
receptores e tradutores após o período egípcio-helenístico da alquimia, assim como
antecessores imediatos dos europeus na exploração do conhecimento alquímico.6
É interessante notar que a alquimia nunca foi realmente agregada ao currículo da
universidade medieval. Segundo William Newman, isso se deveria pelas fraudes envolvendo
a alquimia, assim como o fato de que a alquimia nunca teve posição segura entre as
disciplinas do ensino escolástico. Diz o autor que diferente da medicina pré-moderna, “que
era tão ineficaz em curar quanto a alquimia para transmutar metais”, a alquimia só entraria no
currículo universitário no século XVII e com ressalvas: ela aparece sob a alcunha de
chymiatria, uma espécie de medicina química.7
Na segunda metade do século XII as traduções de textos alquímicos árabes para o
latim já estavam diminuindo e começavam a surgir os primeiros textos originais da alquimia
latina.8 Nesse período, os intensos debates anteriormente mencionados se dão em meio a uma
confusão nas traduções que circulavam à época. A tradição latina da alquimia apoiava-se
numa ideia contida no “Meteorologica”, de Aristóteles, de que os metais são compostos por
dois elementos fundamentais, cujas proporções formam metais mais ou menos perfeitos,
tendo como parâmetro de perfeição o ouro. Esses elementos fundamentais, mercúrio e
enxofre, seriam passíveis de manipulação, de forma que poder-se-ia alterar sua combinação
para aperfeiçoar um metal menos perfeito.9
Alfredo de Sarashel, um tradutor inglês, incluiu ao final de uma tradução do
“Meteorologica” de Aristóteles, um texto de autoria do árabe Ibn Sina (Avicena) –
comentador de Aristóteles e ferrenho opositor da alquimia. Para Avicena, era impossível
transmutar os metais, pois o homem seria incapaz de superar a natureza. Dado que o texto de
Avicena ficou conhecido como parte do livro do Estagirita, e dada a influência dos escritos
aristotélicos no Ocidente medieval, entrou em circulação a ideia de que Aristóteles era
contrário à possibilidade de transmutação dos metais.10 Essa preocupação científica de
compreender a transmutação dos metais não se resolverá por muito tempo, adentrando até
mesmo o século XVIII na Europa.11
Outro aspecto da alquimia latina foi seu envolvimento com a medicina. No século
XIII, Roger Bacon despontava como um dos maiores pensadores de sua época, escrevendo
sobre todo tipo de empreendimento científico. A medicina não escapou da visão de Bacon.

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Suas críticas eram ferrenhas aos médicos de sua época, os acusando de não levarem em
consideração a autoridade dos antigos. Mais importante, contudo, era que eles não
reconheciam a importância da pedra filosofal, cujas capacidades restaurativas e preservativas
(e não exatamente curativas) seriam superiores às de qualquer outro remédio conhecido.12
Em meados do século XIV, quando a Peste Negra assolou a Europa, alguns
alquimistas e médicos começaram a investigar as possibilidades medicinais da operação
alquímica. Dentre os alquimistas, pode-se citar o franciscano João de Rupescissa. João
propunha a produção de um remédio à base das quintessências de vinho e ouro: a
quintessência (mais um conceito aristotélico) consistiria numa forma primordial e pura da
matéria, com propriedades curativas enormes: seria capaz até mesmo de reavivar os
moribundos para que pudessem passar pelos últimos ritos antes da morte, a confissão dos
pecados e os últimos desejos.13
No senso comum estabeleceu-se uma relação histórica e intrínseca entre a alquimia e a
química moderna. Contudo, no que se refere à Idade Média, podemos dizer que essa relação é
uma das menos importantes. Não queremos dizer com isso que não exista uma relação, por
exemplo, entre o aparato experimental de laboratório utilizado pelos alquimistas medievais e
os químicos modernos. As bases científicas, contudo, estavam muito mais próximas da
filosofia natural e da física do que necessariamente da ideia de elementos. A química, como
uma ciência, surge a partir da formação de um discurso efetivamente moderno em oposição à
alquimia.
Segundo Principe14, a prática da produção de ouro (doravante crisopeia) começa a
declinar no século XVIII. Sendo a crisopeia a base da alquimia transmutatória, esta última
acompanha seu declínio. Segundo o autor, a partir da década de 1720 é possível identificar
uma crescente literatura que denuncia a alquimia como uma prática fraudulenta. Esta
acusação não é nova: o século XIV teve denúncias de peso nas palavras do papa João XXII15
e do escritor Geoffrey Chaucer16. O XVIII, século do Iluminismo, lança sua força contra a
alquimia da mesma forma que a lança contra a Idade Média.
Ademais, a forma da palavra “química” surge apenas na Era Moderna, por volta do
século XVI, quando alguns autores começam a optar pela retirada da partícula “al-” –
derivada do árabe, que formava “al-kimiya” e cujo radical “kimiya” teria sua origem provável
no grego “chemeia”. Essa ruptura entre as palavras ocasiona, na historiografia, a sugestão do
resgate do termo “chymistry” (uma forma antiga do inglês, utilizada por diversos autores, mas

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notadamente por Robert Boyle) por Lawrence M. Principe e William R. Newman, para as
práticas do século XVI em diante, a partir de quando torna-se extremamente difícil traçar
bases sólidas de diferenciação entre o que seria alquimia e o que reconhecemos hoje como
química.17
Falaremos, agora, das relações da alquimia com a religião no Ocidente medieval. Isto
quer dizer, necessariamente, falar da cristandade latina. Isto se explica por razões bastante
simples: a alquimia, como pôde ser percebido, é uma prática para letrados e, não apenas isso,
para aqueles minimamente versados em filosofia. Não à toa, os debates do século XIII são
empreendidos quase que exclusivamente por membros da Igreja.18 As únicas exceções são os
autores anônimos, aos quais não podemos atribuir associação a nenhuma instituição religiosa,
mas certamente foram pessoas que desfrutaram do ensino escolástico.
A prática alquímica, embora tenha sido combatida durante a Idade Média pela Igreja
Católica, jamais deixou de ser praticada. Os primeiros debates no século XIII questionaram a
prática do ponto de vista intelectual, científico, sem sucesso. Em 1322, como já mencionado,
o papa João XXII publica um decreto que condena a alquimia sob a alegação de que ela
constituía uma prática fraudulenta e danosa à situação fiscal da Europa.19 Wilfred Theisen
mostra que, mesmo desde o século XIII, as ordens monásticas proibiam seus membros de
praticar, incentivar ou serem coniventes com a alquimia, sob pena de prisão e, em casos mais
extremos, excomunhão.20 As proibições, no entanto, jamais funcionaram. A produção
alquímica nunca parou de crescer desde sua chegada ao Ocidente medieval.
Theisen atribui a atração da alquimia para os membros eclesiásticos às características
positivas que a prática prometia. Para os membros de ordens monásticas, envolvidos com o
cuidado das comunidades do entorno de seus claustros, a crisopeia era altamente interessante
para ajudar os pobres, desvalidos, órfãos, etc. Não só isso, o dinheiro seria muito bem
recebido na construção de novas igrejas e mosteiros.21
Os motivos não eram apenas econômicos, pois como já vimos a medicina era uma
meta importante na criação alquímica para alguns. O já mencionado João de Rupescissa fazia
parte da corrente espiritual dos franciscanos e sua alquimia era altamente influenciada por sua
espiritualidade.22 De tal forma que o remédio alquímico que buscava não era universal, mas
“ele seleciona entre a população aqueles que estão certos, por considerações morais e
espirituais, que é impossível que sejam vítimas da punição de Deus” (tradução nossa)
causada pelas doenças.23

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Essa última menção a João de Rupescissa nos leva a uma das questões mais antigas do
tema: a espiritualidade na alquimia. Uma gama de autores sustentou, desde o século XIX, que
a alquimia era uma prática estritamente espiritual. Toda a linguagem cifrada utilizada não
passaria de analogia para operações espirituais.24 Entretanto, a contextualização dos textos
alquímicos não suporta essa afirmação.25 Muito pelo contrário, a alquimia não possui uma
espiritualidade intrínseca, mas um grande potencial para espiritualidade que a cristandade
latina abraça.
Principe oferece algumas explicações para os fatores de segredo na linguagem
alquímica, mas acreditamos que um do mais fortes seja uma simples permanência que dura
desde Zósimo de Panópolis, alquimista que viveu entre os séculos III e IV, até tão tarde
quanto o século XV. Zósimo identifica, em seus textos, que os metais são formados de duas
partes: uma não-volátil, que ele chama de soma (corpo), e uma volátil, que ele chama de
pneuma (espírito). Essas terminologias, que para Zósimo serviam como decknamen26, podem
ser verificadas em diversos outros textos, como por exemplo o Compound of Alchimy, do
inglês George Ripley.
Organizado em versos, e apresentado em doze estágios representados como portões
(gates) de um castelo, o Compound apresenta em diversas partes essa mesma terminologia.
Por exemplo, no primeiro estágio (Of calcination) da obra, Ripley diz: “Na figura da
Trindade, / Três do corpo e três do espírito, / E para a unidade da substância espiritual / Um a
mais que da substância corporal” (tradução nossa).27 O autor se refere a proporções entre os
elementos utilizados no processo: mercury (mercúrio, que normalmente corresponde à teoria
do mercúrio-enxofre, não sendo o elemento mercúrio, mas um princípio da composição dos
metais), Sonne (sol, que significava o ouro) e Mone (lua, que significava a prata).
Acreditamos que essa terminologia tenha sido mal interpretada por diversos autores,
com base numa simples hermenêutica dos textos. As correntes teóricas da alquimia, os
elementos filosóficos presentes, o contexto sociocultural de produção do texto e a
espiritualidade do autor são elementos fundamentais numa análise histórica dos textos
alquímicos. Se a alquimia possuísse uma espiritualidade intrínseca, como se propunha, seus
praticantes teriam de abrir mão de suas próprias espiritualidades e haveria uma estrutura
monolítica jamais afetada pelas variações culturais, sociais e políticas.
O contexto em que a alquimia chega ao Ocidente medieval é um momento de intensa
renovação espiritual no cristianismo. Entre os séculos XII e XIV surgem diversas novas

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formas de exercício da espiritualidade cristã: o eremitismo, a vita apostolica, as ordens


monásticas cisterciense e cluniacense, a imitatio Christi.28 Como mostra Étienne Gilson, a
própria filosofia medieval tem uma predominância do espírito cristão sobre qualquer
aristotelismo ou platonismo, se constrói no seio da religião uma estrutura de pensamento
orientada pela espiritualidade cristã que foi influente por séculos a fio.29
Outro exemplo da relação da alquimia com a religião e a espiritualidade no Ocidente
foi sua ligação com a Bíblia. Em “Os alquimistas judeus”, Raphael Patai identifica uma série
de episódios bíblicos cujo simbolismo e significado foi extremamente atraente para os
alquimistas, sobretudo os medievais. Sua obra mostra como é imprescindível ter em
consideração aspectos contextuais, para além do que os próprios textos nos dizem. Como nota
o autor, esses elementos foram fundamentais para a “imaginação” dos alquimistas e
auxiliaram na construção de uma genealogia para a alquimia.30 Remontar aos tempos bíblicos,
sobretudo na Idade Média, conferia estatuto histórico às coisas e para a alquimia isto não foi
diferente.31
O historiador da alquimia deve ter em conta fenômenos como esses a fim de que possa
colocar questões pertinentes aos seus documentos e que estejam em sintonia com seus
contextos de produção. Postas estas considerações, podemos agora fazer observações
referentes ao impacto da alquimia sobre algumas formas e manifestações culturais da Idade
Média.
Tratamos, até o momento, essencialmente da alquimia latina. A historiografia,
sobretudo a que reavivou o tema nos anos 1970 na história da ciência, tem realizado grandes
esforços para situar as principais questões científicas e filosóficas por trás da alquimia.
Culturalmente, no entanto, algumas questões permanecem pouco exploradas. É comum
acordo entre os historiadores da alquimia que os primeiros textos de espírito científico que
dariam base ao conhecimento alquímico estão situados na Grécia e no Egito helenístico.
Todavia, é nessa mesma época que alguns dos textos que formarão a base do aspecto
mitológico da alquimia surgem, sobretudo aqueles ligados à figura de Hermes Trismegisto.
O nome de Hermes como fundador mítico passou da alquimia bizantina para
a islâmica e então para a latina, para onde transmitiu conteúdos filosóficos
de origem ainda indefinida, mas indisputavelmente não apenas clássica
(grega). Acreditava-se que os ensinamentos de Hermes, gravados em uma
preciosa tábua de esmeralda, levariam os alquimistas (e com eles magos e

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outros caçadores de segredos) ao conhecimento da unidade do Todo e à


descoberta da mais profunda arcana naturae, cuja posse foi avidamente
desejada desde pelo menos a Antiguidade tardia em diante para o
melhoramento da vida da humanidade (ou apenas de si mesmo) (tradução
nossa).32
A figura de Hermes será extremamente presente na alquimia. O antiquário Elias
Ashmole, famoso por ter sido um entusiasta da alquimia na Inglaterra do século XVII,
compilou uma série de textos alquímicos numa obra que chamou de “Theatrum chemicum
Britannicum” (note-se a queda da partícula “al-”). O subtítulo da obra, publicada em 1652,
diz “contendo diversas peças poéticas dos nossos famosos filósofos ingleses, que escreveram
os mistérios herméticos em sua própria língua antiga”.33 Certamente esse tipo de evidência
tornou demasiado complexo o trabalho dos primeiros historiadores no que diz respeito à
clareza da “separação” (se assim podemos dizer) entre a alquimia e a química.
Durante o fim da Idade Média e os períodos de renascimentos, a produção alquímica
foi prolífica. Com a expansão das línguas vernáculas nesse período, e sendo ela própria fruto
de processos de tradução, a alquimia se encontrou na interseção entre o latim e o vernáculo.
Michela Pereira aponta que nessa época alquimistas praticantes provavelmente escreviam
suas obras em latim, mas se comunicavam com seus aprendizes no vernáculo.34 O quadro, no
entanto, foi se alterando ao longo dos séculos XIV e XV com diversas obras surgindo em
línguas vernáculas. A Inglaterra, por exemplo, foi especialmente prolífica a partir do século
XV com alquimistas como George Ripley, Thomas Norton e John Dee.35 A vernacularização
da alquimia, contudo, permanece largamente inexplorada por seus historiadores.
Outra característica textual da alquimia merece ainda destaque: o estilo de escrita.
Fenômeno igualmente inexplorado pelos historiadores da alquimia, a poesia alquímica está
presente ao longo de toda a história da alquimia no Ocidente. Didier Kahn dedicou uma dupla
de artigos a esse tema.36 O famoso poema “Roman de la Rose”, de Jean de Meun, já no século
XIII apresentava uma seção alquímica. Kahn demonstra que as principais línguas europeias
tiveram seus exemplos de poesia alquímica durante da Idade Média, com exceção da italiana
– esta teria de esperar até o século XVI para que atingisse o ponto que as outras línguas do
Ocidente cristão atingiram. Segundo Kahn, a versificação dos textos alquímicos era um
recurso mnemônico: dada a grande quantidade de informações e instruções, era necessário
torná-las mais fáceis de lembrar.37

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Em conclusão, pudemos ver que a alquimia proporciona aos historiadores uma série de
aberturas: ela circula pela história intelectual medieval, tem seus efeitos sobre as ordens
monásticas e a Igreja Católica, tem um papel todo particular na literatura medieval. Buscamos
apresentar dentro das possibilidades de abordagem do tema uma pluralidade de vertentes
historiográficas da alquimia, algumas mais preocupadas com seu lado científico, outras mais
voltadas ao lado filosófico. A Era Moderna é considerada a época de ouro da alquimia, em
que houve a maior produção textual e sua proximidade com as teorias da química moderna é
ao mesmo tempo perigosa e atraente para os estudiosos; portanto, é nesse período que se
concentra a maioria dos pesquisadores. Faz-se necessário, por essa mesma razão, reforçar que
o tema ainda apresenta enorme potencial de pesquisa para os historiadores da cultura e
acreditamos que vários laços do Medievo com a Antiguidade que permanecem obscuros
podem ser iluminados pelo estudo da alquimia medieval.

1
PRINCIPE, Lawrence M. The secrets of alchemy. Chicago: University of Chicago Press, 2013, p. 51.
2
Para um resumo e crítica da historiografia da alquimia, cf. NEWMAN, William R.; PRINCIPE, Lawrence M.
“Some problems with the historiography of alchemy”. In: NEWMAN, William R.; GRAFTON, Anthony (orgs.).
Secrets of nature. Londres: MIT Press, 2001, pp. 385-431.
3
Para uma visão ampla dos conceitos macrocosmo e microcosmo, cf. GUREVITCH, A.J. Categories of
medieval culture. Londres: Routledge & Kegan Paul, 1985, pp. 41-92.
4
NEWMAN, William R. “Tecnologia e debate sobre alquimia na Baixa Idade Média”. Trad. Bruno Sousa Silva
Godinho. In: Revista Signum. Belo Horizonte: Associação Brasileira de Estudos Medievais, vol. 17, nº 1, pp.
314-346, 2016.
5
KOYRÉ, Alexandre. Estudos de história do pensamento científico. Trad. Márcio Ramalho, 3ª ed. Rio de
Janeiro: 2011, p. 30.
6
PRINCIPE, op. cit., pp. 9-50.
7
NEWMAN, William R. Promethean ambitions. Chicago: University of Chicago Press, 2004, p. 72.
8
Op. cit., p. 54.
9
A ideia do “Meteorologica” posteriormente fica conhecida como teoria do mercúrio-enxofre e já estava
presente na alquimia árabe, como demonstra PRINCIPE, op. cit., p. 35-7.
10
NEWMAN, op. cit., p. 320-24.
11
Cf., por exemplo, PRINCIPE, Lawrence M. “The end of alchemy? The repudiation and persistence of
chrysopoeia at the Académie Royale des Sciences in the eighteenth century”. In: Osiris. Chicago: Chicago
University Press, vol. 29, nº 1, pp. 96-116, 2014.
12
GETZ, Faye Marie. “To prolong life and promote health. Baconian alchemy and pharmacy in the English
learned tradition”. In: CAMPBELL, Sheila; HALL, Bert; KLAUSNER, David (orgs.). Health, disease and
healing in medieval culture. Londres: Macmillan, 1992, pp. 141-151.
13
CRISCIANI, Chiara; PEREIRA, Michela. “Black Death and golden remedies. Some remarks on alchemy and
the plague”. In: BAGLIANI, Agostino Paravicini; SANTI, Francesco (orgs.). The regulation of evil. Florença:
Sismel, 1998, pp. 13-22.
14
PRINCIPE, L.M. The secrets of alchemy. Chicago: University of Chicago Press, 2013, p. 84.
15
Cf. WALSH, James J. “Pope John XXII and the supposed bull forbidding chemistry”. In: Medical Library and
Historical Journal. Nova Iorque: Association of Medical Librarians, vol. 3, nº 4, 1905, pp. 248-263.
16
Cf. CHAUCER, Geoffrey. “O conto do Criado do Cônego”. In: Os contos de Canterbury. Trad. Paulo Vizioli.
São Paulo: Ed. 34, 2014, pp. 701-38.
17
NEWMAN, William R.; PRINCIPE, Lawrence M. “Alchemy vs. Chemistry: the etymological origins of a
historiographic mistake”. In: Early Science and Medicine. Leiden: Brill, vol. 3, nº 1, 1998, pp. 32-65.
18
NEWMAN, op. cit., p. 324-33.

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19
PRINCIPE, op. cit., 61.
20
THEISEN, Wilfrid. “The attraction of alchemy for monks and friars in the 13th-14th centuries”. In: American
Benedictine Review. Richardton: American Benedictine Review Inc., vol. 46, nº 3, 1995, pp. 239-253.
21
Op. cit., 247.
22
Para uma leitura mais aprofundada sobre João de Rupescissa e sua alquimia, cf. DEVUN, Leah. Prophecy,
alchemy and the End of Time. Nova Iorque: Columbia University Press, 2009.
23
CRISCANI; PEREIRA, op. cit., p. 14. Trecho original: “(...) he selects from amongst the populace those who
are sure, out of moral and spiritual considerations, that it is impossible for them to be addressees of God’s
punishment”.
24
Na interpretação psicanalítica de Jung, as operações espirituais são, na verdade, operações mentais. Cf. JUNG,
Carl Gustav. Psicologia e alquimia. Trad. Dora Mariana Ribeiro Ferreira da Silva, 6ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes,
2012.
25
NEWMAN, W.R.; PRINCIPE, L.M. “Some problems with the historiography of alchemy”. In: NEWMAN,
William R.; GRAFTON, Anthony (orgs.). Secrets of nature. Londres: MIT Press, 2001, p. 388-401.
26
Decknamen é um termo alemão utilizado para designar palavras que escondem o sentido de outras. Esse
artifício era recorrentemente utilizado pelos alquimistas.
27
RIPLEY, George. The Compound of Alchimy. Ed. Ralph Rabbards. Londres: 1591, f. 14v. No original: “In
figure of the Trinitee, / Three of the bodie and of the spirite three, / And for the unitie of the substance spirituall /
One moe than of the substance corporall”. Disponível em:
<http://catalogue.libraries.london.ac.uk/record=b3278184~S12>. Acesso: 19 out. 2016.
28
VAUCHEZ, André. A espiritualidade na Idade Média ocidental. Trad. Lucy Magalhães. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Ed., 1995.
29
GILSON, Étienne. O espírito da filosofia medieval. Trad. Eduard Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2006,
pp. 53-84.
30
PATAI, Raphael. Os alquimistas judeus. Trad. Maria Clara Cescato e Diana Souza Pereira. São Paulo:
Perspectiva, 2006. Cf. especialmente o segundo capítulo da parte um, “Figuras bíblicas como alquimistas”, pp.
49-86.
31
Cf. OBRIST, Barbara. “Views on history in medieval alchemical writings”. In: Ambix. Online: Society for the
History of Alchemy and Chemistry, vol. 56, nº 3, 2009, pp. 226-238.
32
PEREIRA, Michela. “Alchemy and hermeticism: an introduction to this issue”. In: Early Science and
Medicine. Leiden: Brill, vol. 5, nº 2, 2000, p. 116-7. Trecho original: “The name of Hermes as the mythical
founder passed from Byzantine to Islamic and later to Latin alchemy, where it conveyed philosophical contents
of still undefined but indisputably not just classical (Greek) origin. Hermes’ teachings, engraved on a precious
emerald tablet, were believed to lead alchemists (and, with them, magicians and other secret-hunters) to the
knowledge of the unity of the All and to the discovery of the innermost arcana naturae, whose possession was
eagerly desired at least from late Antiquity onward in order to improve humanity’s (or simply one’s own) life”.
33
ASHMOLE, Elias. Theatrum chemicum Britannicum. Londres: 1652. Trecho original: “Containing severall
poeticall pieces of our famous English philosophers, who have written the Hermetique Mysteries in their owne
ancient language”. Disponível em: <https://archive.org/details/theatrumchemicum00ashm>. Acesso: 19 out.
2016.
34
PEREIRA, Michela. “Alchemy and the use of vernacular languages in the Late Middle Ages”. In: Speculum.
Chicago: University of Chicago Press, vol. 72, nº 2, 1999, p. 337.
35
Sobre George Ripley, cf. RAMPLING, Jennifer. “Establishing the Canon: George Ripley and his alchemical
sources”. In: Ambix. Online: Society for the History of Alchemy and Chemistry, vol. 55, nº 3, 2008, pp. 189-208.
Sobre John Dee, cf. CLULEE, Nicholas H. John Dee’s natural philosophy. Londres: Routledge, 2013. Apesar de
possuir certa fama por seu texto “Ordinall of Alchemy”, não há pesquisas de vulto dedicadas a Thomas Norton.
36
KAHN, Didier. “Alchemical poetry in Medieval and Early Modern Europe: a preliminary survey and
synthesis. Part I – Preliminary Survey”. In: Ambix. Online: Society for the History of Alchemy and Chemistry,
vol. 57, nº 3, 2010, pp. 249-274, e DIDIER, Kahn. “Alchemical poetry in Medieval and Early Modern Europe: a
preliminary survey and synthesis. Part II – Synthesis”. In: Ambix. Online: Society for the History of Alchemy
and Chemistry, vol. 58, nº 1, 2011, pp. 62-77.
37
KAHN, op. cit., p. 64-65.

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