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O Outro lado da Inocência

Taylor Caldwell

Título original: THIS SIDE OF THE INNOCENCE.

Tradução de: FELISBELA GODiNHO CARNEIRO

Copyright 1946 by Reback and Rcback

Primeira edição: 7500 exemplares

Um jardim foi a primeira prisão, até que o homem, com a felicidade e a coragem de Prometeu,
pecou para se libertar dela. A partir de então surgiram a Babilónia,
Nínive, Veneza, Londres, armarinheiros, ourives, tabernas, teatros, sátiras, epigramas, jogos - e tudo
isto penetrou na cidade e no outro lado da inocência.
Charles Lamb

Dedicado a
FREDA e FELIX MUEHLNER

PRIMEIRA PARTE
Capítulo primeiro
Jerome Lindsey tinha a sensação de que as notícias desagradáveis chegavam sempre,
invariavelmente, quando ele e o tempo de Nova Iorque estavam de humor execrável.
No dia anterior, o ar tinha estado magnificamente suave e fragrante; apesar de o mês de Dezembro
ir já a meio, o Sol surgira rodeado de um belíssimo halo dourado,
quase místico, parecendo conjugar-se de uma maneira absoluta com as razões da sua própria
bonomia: uma jovem, particularmente desejável e deliciosa, tinha-lhe dado
todas as promessas de sucumbir ao cerco que lhe fizera ao longo da noite. No dia anterior, sim; no
dia anterior Jerome tinha parecido muito mais jovem do que agora.
Sentira-se até esfusiante e cheio de exuberância. Mas... isso tinha sido no dia anterior.
Agora, sentia-se mais do que senil. Era uma senilidade misturada com várias sensações de angústia.
Estava até quase a admitir que o champanhe não ligava bem com
ele, mas essa plebeia confissão remexia ainda desconfortavelmente dentro de uma cabeça que lhe
dava sinais agoirentos de que algures, de um modo qualquer, durante
a noite, ele tinha sido selvaticamente espezinhado por uma manada de cavalos enfurecidos. A dama,
essa, infelizmente, não tinha tropeçado nele. Revelara-se, pelo
contrário, muito mais acessível do que ele esperara. Desejava, até, que ela tivesse mostrado um
pouco mais de recato.
O tempo parecia condizer com o seu humor e as suas sensações. O nevoeiro envolvia os prédios
castanhos do outro lado da rua e parecia cair em flocos de algodão cinzento
arrastados em torvelinho. O vento assobiava nas janelas. O pavimento estava sujo e lamacento, e as
poucas pessoas que passavam corriam apressadas e encolhidas debaixo
dos guarda-chuvas, que brilhavam baços e pálidos.
Nem mesmo o correio parecia despertar nele qualquer centelha de vida, enquanto deambulava,
pesado e mole, entre cafeteiras e chávenas de café, e só café. Havia alguns
Convites estúpidos e aborrecidos, mas o monte empilhado em cima da mesa compunha-se quase
exclusivamente de contas. Olhou-as, com um esgar de dor, coçou a cara,
e atirou-as, sem as abrir, para o cesto dos papéis. Jim, o seu criado, recuperá-las-ia mais tarde para
as deixar, depois, num monte limpo e ordenado, em cima da
secretária. Por agora, não queria incomodar-se a olhar sequer para elas. Tal como não queria
incomodar-se a olhar para a sua
própria cara, que lhe diria, inevitavelmente, que parecia muito mais velho do que os seus trinta e
quatro anos, e muito mais repelente do que na realidade era, em
momentos em que a cabeça lhe estalava menos.
Estava ainda por barbear, pois não suportava fazer a barba depois de uma noite particularmente
excitada e demolidora. Isso apenas aumentaria as suas suspeitas de
que o crâneo estava prestes a desfazer-se em pedaços. Os olhos ardiam-lhe, lacrimejantes; sentia-os
escaldar, ásperos e inchados.
Pestanejou e inclinou-se um pouco mais para a frente para melhor conseguir examinar as duas
últimas cartas à luz do belíssimo candeeiro de abalastro que tinha comprado
em Itália, no Verão passado.
Havia uma carta da irmã, Dorothea. Estremeceu e encolheu os ombros num gesto de indiferença.
Estava quase a pôr a carta de lado para a ler noutra altura em que se
sentisse um pouco melhor, quando reparou que o envelope era grosso e volumoso.
Dorothea não tinha por hábito escrever cartas muito longas. De uma maneira geral, bastava-lhe uma
fina folha de papel e mesmo isso exigia um considerável esforço
mental por parte de Jerome.
A sua curiosidade foi mais forte do que o estremecimento involuntário que o percorreu à simples
idéia de ler uma das cartas de Dorothea, e abriu-a. Enquanto o fazia,
gritou a Jim que lhe trouxesse mais café.
Depois, começou a ler a carta da irmã:
"Hilltop,
Riversend, Nova Iorque,
15 de Dezembro de 1868
"Querido Jerome:
"No mesmo correio em que recebes a minha carta, receberás, sem dúvida, também, a epístola do
papá, com notícias que te parecerão simplesmente agradáveis e amistosas,
e as quais tu, com a tua maneira de ser descuidada, possivelmente aprovarás. Receio, no entanto,
que elas mal despertarão o teu supérfluo interesse, até porque tu
nunca revelaste aquela solicitude e lealdade para com a família que tão importante é para a querida
vida do papá.
"Perdoar-me-ás, espero, por trazer de novo atua memória o persistente e infatigável escárnio com
que sempre consideraste o sentimento que o papá tem para com tudo
o que diz respeito à família e à tradição mas a verdade é que isso sempre me magoou
profundamente. Mesmo quando ainda eras um rapazinho de escola, parecias achar
os sentimentos do papá pouco menos do que
ridículos, e o meu coração ainda estremece de terror, quando me recordo do que lhe disseste no dia
em que completaste dezassete anos. Como se a tradição, a honra
e o orgulho da família fossem qualquer coisa de reprovável e vazio de valor, e não algo que deve ser
respeitado pelos jovens com pretensões sofisticadas e mundanas!
"Receio que a minha sensibilidade esteja tão perturbada com esta recordação, e também com a
lembrança de outras coisas não menos condenáveis, que esteja a afastar-me
do assunto que me levou a escrever-te. Mas quero assegurar-te que apenas a minha agitação e a
minha angústia me impelem a escrever-te esta carta, pois temos sido
sempre pouco menos que amigos, embora sejamos irmão e irmã. Depois, a minha consciência
perturba-me, por vezes, com uma sensação de culpa. Sou quatro anos mais velha
que tu, e foi aos meus cuidados que a nossa querida mamã te deixou, antes de entregar a sua alma
ao Senhor. Será que falhei no meu dever? Haverá em ti recriminações
escondidas que me poderias fazer e só não o fazes por simples delicadeza fraterna? Mas não! Custa-
me a acreditar que isso aconteça. A delicadeza nunca foi um dos
traços mais marcantes do teu carácter.
"Decerto, assim Deus me ouça, não sou culpada do teu curioso sentido de humor, da tua febril e
agitada maneira de viver, da tua extravagância e irresponsabilidade,
das tuas dívidas e das tuas loucas aspirações a uma carreira artística. Se algumas culpas me podem
ser atribuídas, elas devem-se ao facto de nunca ter sido capaz
de te compreender e dos meus preceitos de integridade, honra e uma maneira edificante e digna de
viver nunca terem surtido qualquer espécie de efeito sobre ti.
"Espero, e de todo o coração rogo ao Senhor, que a querida mamã não me acolha com tristes
reprovações, quando a ela me juntar naqueles calmos campos de paz, depois
de completada a minha caminhada por este mundo. Fiz o melhor que pude e posso afirmar isto com
toda a minha humilde sinceridade."
- Querida Dorothea! - disse Jerome, enquanto pegava noutra fina folha de papel, cheia de uma letra
apertada, em linhas muito estreitas, de tinta roxa.
"Deve entender-se", continuava a escrever Dorothea, numa letra que se ia tornando cada vez mais
agitada, "que, como tu tens revelado, nos últimos anos, tão pouco
interesse pelos assuntos da família, dadas as tuas constantes peregrinações pela Europa, as tuas
longas e indiferentes estadas em Nova Iorque, Boston, e Filadélfia,
e a tua permanência junto de damas e cavalheiros mundanos, sem qualquer probidade e um olhar
sério para os problemas do Mundo, deve entender-se, dizia eu, que a
notícia de que o nosso primo Alfred esteja para casar de novo pouco mais fará do que provocar-te
um ligeiro erguer de sobrancelhas. Mas, seja como for, peço-te que
medites um pouco nas implicações desse passo".
- bom Deus! - exclamou Jerome, em voz alta, e rindo a bandeiras despregadas. - Aquele desajeitado
vai finalmente pedir a velha Dotty em casamento?
Inclinou-se mais para o candeeiro que parecia difundir uma luz mais brilhante naquela penumbra
sombria de Dezembro. Até ali, estivera a ler a carta de Dorothea com
aquela indiferença por tudo e por todos, excepto por si mesmo, que a sua irmã tão profundamente
condenava; mas, de súbito, o seu interesse fora despertado.
"Nas minhas orações", continuava Dorothea, "peço constantemente que nunca me esqueça de que
sou uma senhora cristã, que devo albergar, por isso, dentro do meu coração
apenas os sentimentos mais cristãos de caridade e tolerância e, como o nosso querido e para sempre
chorado presidente ensinava, "nenhum mau pensamento para com ninguém".
Tenho a certeza de que nem o meu pior inimigo me pode acusar, em boa verdade, de alguma vez ter
esquecido aqueles axiomas de conduta piedosa que foram implantados
no meu coração, quando ainda muito jovem, pela nossa querida mamã. Assim, imploro-te que não
renegues aquilo que me vejo obrigada a dizer-te, julgando que as minhas
angústias são provocadas por razões pouco piedosas, ou por preconceitos pouco cristãos.
"Não possuo nenhum desses snobismos ou pretensões que tanto afligem aqueles que não têm
qualquer segurança de um nascimento digno e nobre, nem tradições ou antecedentes.
Pela grandeza que nos foi dada pelos nossos antepassados, posso permitir-me ser tolerante e
amável. Mas... mesmo assim... eu rezo!
"Não tenho qualquer dúvida de que te causarei aborrecimento se te fizer notar, como já to fiz tantas
vezes, que o sentido que o papá tem do orgulho da família e
da tradição são as motivações supremas da sua vida, e por isso mesmo o venero e respeito. Não
seria sua filha se o não fizesse. A esperança que ele tinha de que
o Senhor o abençoasse com muitos filhos e filhas que vivessem à sua volta, e lhe oferecessem
famílias numerosas que partilhassem com ele a sua profunda reverência
pelo que lhe foi legado pelos seus antepassados, a continuidade do seu sangue e a imortalidade das
suas tradições sagradas! Mas Deus, na Sua sabedoria inexplicável
(que, devo confessar, não compreendo), achou por bem recusar essas bênçãos ao papá, e permitiu
que a querida mamã lhe oferecesse apenas dois filhos, tu e eu. Não
condeno os Céus, mas acho difícil de compreender...
"Quando comecei esta carta, tão difícil e tão amarga, dadas as circunstâncias em que a escrevo,
disse a mim própria, firmemente, que não devia reprovar-te, nem fazer-te
recordar coisas que é preferível esquecer. Mas, para melhor esclarecer o que tenho a dizer-te, vejo-
me obrigada a lembrar-te que embora estejas já com quase trinta
e quatro anos, não pareces ter ainda encontrado qualquer donzela digna entre as boas famílias das
nossas relações. Aliás, tu próprio declaraste repetidas vezes,
e até de maneira a que o papá ouvisse, que nunca te casarias e, portanto, que nunca darias ao papá
aqueles netos que ele tanto anseia, em silêncio e pacientemente.
"Se alguma coisa tenho a reprovar ao papá, é a maneira como ele sempre se mostrou tão tolerante
para contigo, dedicando-te um afecto que para mim chega a ser verdadeiramente
desconcertante. Nunca ele te impôs aquela conduta e aquele comportamento que não é necessário
impor a nenhum cavalheiro com sensibilidade e devoção filial. Permitiu,
até, que dissipasses os setenta e cinco mil dólares que a avó Holden te deixou, imprudentemente,
sem que uma só vez te dirigisse qualquer espécie de reprimenda,
e, na sua ternura e benevolência, sempre esteve realmente convencido de que tinhas dentro de ti um
dom especial. No entanto, à medida que os anos iam passando, eu
via a sua tristeza e o seu desgosto, embora tenha a certeza de que nem uma única palavra sobre isso
saiu da sua pena quando te escrevia. Pelo contrário, sempre te
enviou cheques de montantes consideráveis, a intervalos regulares, sem dúvida a teu pedido. Não te
esqueças de que sou a secretária do papá, e também a sua governanta,
e esses cheques acabam sempre, mais tarde ou mais cedo, por passar pelas minhas mãos.
"Disseste-me uma vez que, como o papá tinha adoptado o filho do seu irmão, Alfred, isso te
libertava de todas e quaisquer responsabilidades para com ele, e que ele
passara então a ter um filho que cumpriria o seu dever para com a família.
"Devo confessar-te que a tua indiferença quanto ao que tal acto poderia implicar me deixou pouco
menos que aterrorizada, mas ainda assim conservei meu silêncio.
Isto não significa que não estime o Alfred tão carinhosamente como se ele fosse meu irmão..."
- E talvez um pouco mais! - disse Jerome, com um sorriso irónico.
"... e que não me sinta satisfeita por ele ter trazido aos últimos dias de vida do papá um pouco de
alegria, conforto e paz. Tenho a certeza de que tu não negarás
a verdade do que afirmo. Mas o primeiro casamento de Alfred, com Martha Winchester, não deu
qualquer resultado senão o pobre Philip, que não tem
nem forças nem possibilidades, dentro de si próprio, para oferecer ao papá os bisnetos que ele
desejaria ter. Quando Martha morreu, logo após o nascimento de Philip,
foi como se as nossas esperanças se desvanecessem com ela."
- As tuas esperanças, não! - disse Jerome, com um sorriso escarninho e desagradável. - Pobre Dotty!
"Sempre acarinhámos o Philip, e posso afirmar, em plena sinceridade, de que sempre fui uma mãe
para ele", continuava Dorothea. "Por seu lado, ele tem sabido também
retribuir, ao papá e a mim própria, a afeição que ambos lhe dedicamos, como se compreendesse que
a sua deformidade foi um amargo desapontamento para todos nós.
"Ã medida que o tempo passava e Philip crescia, fomo-nos conformando com o nosso destino.
Alfred não mostrava qualquer desejo de se voltar a casar, e todos nós nos
fomos deixando ficar, vivendo a nossa existência tranqüila."
- Mas tu não! - exclamou Jerome, gargalhando, mordaz.
- Andavas atrás dele dia e noite, da maneira mais refinada e digna possível, claro!
"E então", escrevia Dorothea, numa letra agora tão nervosa e agitada que dificilmente se tornava
legível, aparecendo até manchada, curiosamente manchada, aqui e
ali, "como um raio fulminante surgido de súbito no azul dos céus, Alfred anunciou que tencionava
casar outra vez!"
- Ah! Ah! - exclamou Jerome, ajustando melhor o candeeiro. - Isto está a tornar-se verdadeiramente
interessante! Então, não é com a velha Dotty que ele quer casar,
afinal! Graças a Deus!
O seu rosto pareceu brilhar de malícia e de algo mais que revelava uma crueldade impiedosa.
"Naturalmente, o papá e eu ficámos surpreendidos. Mas suplico-te que compreendas e acredites que
não fiquei perturbada. Pelo contrário. Riversend tem uma boa quantidade
de senhoras agradáveis e aceitáveis, de idade adequada para casar com ele, pois, afinal de contas,
Alfred tem quase trinta e nove anos. Mas, embora eu lhe mencionasse
o nome de todas elas, a única resposta de Alfred foi um contínuo abanar de cabeça e um sorriso
misterioso. Por fim, apercebemo-nos de que ele estava pouco à vontade
e de que lançava ao papá constantes e furtivos olhares de súplica, que pareciam implorar perdão e
tolerância.
"Como sabes, Alfred é agora vice-presidente do papá no Banco. Então, Alfred contou-nos uma
história incrível que gelou o meu sangue. Parece que uma certa jovem,
sem quaisquer antecedentes de família digna, uma autêntica estranha da nossa cidade, lhe pediu, há
uns meses atrás, auxílio financeiro. Essa
jovem, que, como dizem, possui o mais medíocre, se não o mais sinistro passado (e deve ser
verdade, pois ela raramente fala da sua vida anterior), vem de Thorntonville,
aquela aldeola miserável que fica a cerca de quarenta quilómetros daqui. Foi contratada para ensinar
na nossa escola rural, recebendo, por esse trabalho, quarenta
dólares por mês. Ela diz que tem apenas vinte e dois anos de idade, mas tenho a certeza absoluta de
que é muito mais velha do que afirma ser, pois não só os seus
traços são duros e calculistas, e a expressão dos seus olhos extremamente desagradável, como
também possui um certo atrevimento e impertinência na maneira como se
comporta e como fala que revelam bem que tem mais idade do que aquela que admite ter. Por outro
lado, o seu modo de vestir não é nada próprio para uma professora,
e a qualidade e estilo dos seus fatos e vestidos é muito superior ao que honestamente lhe permitiria
o seu modesto salário, embora ela afirme ser ela própria que
os confecciona, a partir de modelos de Godey. Concedo-lhe isso, por caridade, mas o meu coração
fala de maneira diferente."
- Oh, oh! Sem dúvida nenhuma! - exclamou Jerome.
"Depois de passados os primeiros momentos de surpresa, viajei sozinha até Thorntonville, para
investigar sobre o passado desta jovem, cujo nome é Amalie Maxwell.
Para meu grande horror, cheguei à conclusão de que eram perfeitamente justas todas as minhas
suspeitas acerca dela.
"O pai fora um rendeiro bêbedo e a mãe tinha sido lavadeira e mulher de limpezas, tendo trabalhado
para as famílias mais respeitáveis daquela região até morrer,
há dez anos atrás. Mr. Maxwell foi mais tarde preso por embriagues e suspeita de numerosos
roubos. Duas das últimas acusações foram provadas, pelo que foi mandado
para a prisão estatal, onde morreu há sete anos, deixando Miss Maxwell entregue a si própria,
apenas com quinze anos (se é que é correcta a idade que afirma ter).
"Poderia imaginar-se que uma jovem daquela idade, consciente do seu passado e dos seus
antecedentes, procuraria encontrar um lugar de criada numa boa casa de famílias
dignas e ali, com humildade e perseverança, tentasse enterrar o seu passado e cativar a estima da
sua patroa. Mas... não foi nada disso que ela fez! Decidiu, como
ela diz, ser professora. Afirma que, desde a sua mais tenra idade, se sentiu perturbada pêlo
"analfabetismo" dos pobres, e que tencionava lutar contra isso com o
seu próprio trabalho. Quando lhe retorqui que Deus, na Sua imensa sabedoria, designa a cada
pessoa o seu próprio lugar na vida, e que é um sacrilégio tentar alterar
os desígnios divinos, ela riu descaradamente na minha própria cara.
"Aliás, o descaramento, devo dizê-lo, é a característica
predominante do seu carácter. Não possui nem modéstia nem boas maneiras, nem presença nem
qualquer espécie de graça ou distinção. Utiliza um tipo de linguagem que
nenhuma senhora de educação e de princípios ousaria utilizar. Tem o atrevimento e a ousadia de um
homem sem os mais rudimentares princípios de educação e respeito
pelos outros, e já mais de uma vez a ouvi praguejar como um carroceiro.
"Alfred, com toda a sua bonomia e insensatez, acha-a engraçada e refrescante, e rodeia-a de todos
os mimos e atenções, com uma idolatria e uma senilidade só próprias
de um homem velho como ele é, como se ela fosse sua filha! Masjá me apercebi de que, por vezes,
ela o deixa embaraçado. com a sua habitual falta de sentido das proporções,
ele começou a suplicar-me que fosse uma "mãe para com a rapariga", apesar de eu própria ter
apenas trinta e oito anos, e possuir demasiada educação para me ligar
a uma pessoa tão completamente desprovida de todos e quaisquer princípios!"
- O velho e imbecil Alfred! - exclamou Jerome, divertido e com um visível prazer espalhado no
rosto.
"Alfred deve ter perdido todo o seu juízo, Jerome, pois se assim não fosse não se teria atrevido a
fazer-me aquele pedido, que considero verdadeiramente insultuoso
e ridículo. Depois, ainda me pediu que ensinasse a Miss Amalie alguns princípios mais
rudimentares do trato social e da maneira como se deveria comportar em sociedade.
Prometi-lhe aceder ao seu pedido e, procurando esconder bem fundo no meu peito o meu desgosto e
o meu ultraje, convidei a jovem a viver connosco até ao seu casamento
com Alfred, que foi marcado para a semana do Natal. De demasiado bom grado ela abandonou a
sua "piedosa missão" de educar os filhos dos pobres, o que ainda mais
vem provar a sua hipocrisia e astúcia inatas. Ocupa, agora, o quarto cor-de-rosa.
"Para que melhor te apercebas da sua completa ausência de princípios de delicadeza e sentido das
proporções, informo-te que ela aceitou, de Alfred, quase mil dólares,
e foi a Nova Iorque, na minha companhia, comprar o mais flamejante e indiscreto guarda-roupa que
tu possas imaginar! É isso o seu enxoval! Uns chapéus, uns vestidos
ousadíssimos, umas cores que de maneira alguma são próprias da futura mulher de Alfred Lindsey!
Que falta de gosto e de recato! Há então um certo vestido vermelho
do qual quanto menos se falar melhor...
"Jerome, imploro-te que compreendas! Tu conheces Alfred, a sua sobriedade, o seu carácter íntegro,
a bondade do seu coração, o seu sentido do dever e responsabilidade,
a solidez dos seus princípios, a sua probidade, a devoção que ele sente pelas
tradições da família e pelo querido papá, e a sua posição no Banco! Imagina, então, esta mulher a
todos os títulos reprovável, sem quaisquer sentimentos de família,
sem educação nem decoro, filha de um ébrio e de uma lavadeira... uma mulher assim, esposa de
Alfred!
"Peço-te que acredites que se esta criatura revelasse o mais remoto sentimento de humildade e
reconhecesse a sua extraordinária sorte, se mostrassse, ainda que ao
de leve, consciência de que o seu anjo-da-guarda lhe oferecera o mais espantoso destino com que
ela jamais ousara sonhar, se ela afirmasse, ao menos, que estava
profundamente enamorada de Alfred e que estava pronta a transformar-se, por ele, numa esposa
devota, dócil e submissa... eu seria capaz de lhe perdoar e até de me
ligar a ela como uma irmã mais velha. Mas, por mais incrível que te pareça (e espero, sinceramente,
que me acredites, dadas as circunstâncias), a sua atitude demonstra
bem que foi Alfred quem teve uma sorte verdadeiramente singular, que foi Alfred que foi escolhido
pelos céus para receber uma dádiva ímpar, e que embora se sinta
moderadamente atraída por ele, foram precisos meses da mais pertinaz adulação, namoro e súplica
da parte de Alfred para que a conseguisse convencer a consentir em
casar com ele!
"Sei que vais soltar uma das tuas gargalhadas incrédulas, e sei também que irás desprezar esta
criatura pelas suas mentiras e pelo seu total e absoluto despudor.
Quando, amordaçando a minha dor e o meu desgosto, lhe perguntei, com toda a indulgência de que
fui capaz, porque é que tinha finalmente consentido em tornar-se sua
esposa, ela gargalhou e disse:
"- O meu quarto é demasiado frio no Inverno, e estou a ficar farta de comer carne apenas uma vez
por semana!
"Ela é uma atrevida, descarada, cheia de impertinência, ousadia e arrogância. Por mais que o tente,
nenhuma das minhas palavras conseguirá dar-te o retrato exacto
desta mulher.
"E agora, Jerome, pensa no significado de tudo isto. Ela será a esposa de Alfred, a mãe dos seus
filhos, que herdarão depois o Banco. Já há muito tempo, e por várias
vezes, tu disseste ao papá que não querias tomar parte activa nas actividades do Banco e que nada te
poderia convencer a viveres em Riversend. Mas suplico-te que
penses nesta mulher, e nos seus herdeiros, como futuros donos do Banco que há tantos anos foi
fundado pelo nosso bisavô, segundo primo de Lord Brandon, de Inglaterra.
Serás tu capaz de imaginar uma tal intrusa nas nossas vidas, uma criatura abjecta como ela é? Será
que o teu sangue descuidado não corre mais depressa nas tuas veias
ao pensares que os seus filhos irão usufruir da fortuna e do prestígio da nossa família? Que
herdaremos nós, nós, os verdadeiros descendentes do bisavô?
Seremos defraudados e repudiados pelos filhos de uma mulher que a caridade cristã me proíbe de
descrever em todo o pormenor."
Jerome ergueu os olhos da carta e ficou a olhar à sua frente, fixamente. Pela primeira vez o seu
rosto empalideceu de fúria.
- Raios! - murmurou ele, de sobrolho carregado.
Num gesto inconsciente, estendeu a mão para a caixa de prata que se encontrava em cima da mesa;
retirou dela um charuto, colocou-o entre os lábios, mas não o acendeu.
O brilhante fabuloso que usava num dos dedos cintilou à luz do candeeiro.
Deus do céu! Aquilo era um assunto que não podia ser encarado com risos de escárnio e
indiferença! Pelo contrário! Era demasiado sério, estupidamente sério. Não
se ralava nada com o Banco, desde que os cheques continuassem a chegar às suas mãos com
regularidade. Mas... continuariam eles a chegar assim com tanta regularidade
depois da morte do pai? Que louco tinha sido em não pensar nisso antes! Parecia-lhe absurda e
incrível a sua rematada loucura. Nem sequer era já um jovem... ia já
nos trinta e quatro anos. Não havia qualquer desculpa para tão flagrante falta de inteligência e tacto.
Uma aventureira, Deus do céu! Uma prostituta e uma vagabunda
a entrar naquela velha casa da colina, a imiscuir-se e a controlar os bens da família... e a deitar a
mão ao dinheiro! A apoderar-se de tudo quanto aquele idiota
do Alfred possuía? De tudo quanto o seu próprio pai possuía?
O seu olhar perturbado e irascível caiu sobre a outra carta. Era a carta do pai, sabia-o. Deixou cair
as muitas folhas escritas por Dorothea, que se espalharam,
esvoaçando, pelo chão, e agarrou ansioso na outra missiva. As mãos tremiam-lhe ligeiramente, com
um tremor crónico. Isso aborreceu-o, pela primeira vez. Reparou
que os dois primeiros dedos da sua mão direita estavam fortemente manchados de tabaco, e no rosto
desenhou-se-lhe um esgar que pretendia, talvez, ser irónico. Sentia
a língua espessa e o estômago revolvia-se-lhe, nauseado.
Quinhentos dólares gastos na noite anterior, e tudo o que ganhara em troca tinham sido baldes com
garrafas de champanhe gelado, prostitutas de bocas escancaradas
e uma noite passada numa cama que não era a sua. E agora, aquilo!
Abriu a carta do pai e começou a ler, inclinado para a luz. Era bastante mais curta que a da irmã, e
cheia de uma calma dignidade. O rosto lívido de Jerome pareceu
suavizar-se, involuntariamente, à medida que ia lendo, e nem sequer reparou que um pequeno papel
verde caíra de entre as folhas.
"Meu querido Jerome,
"Envio-te os mil dólares que me pediste, e espero que isso te seja suficiente por algum tempo. Mas,
meu rapaz, não hesites em pedir-me mais, se necessário, ainda
que a tua habitual mesada só te deva ser entregue em Fevereiro.
"Estou a escrever-te também para te convidar para um casamento. Estás surpreendido? Sabes bem
que desde há já muito tempo eu vinha insistindo com Alfred para que
casasse de novo, e a minha secreta esperança era de que ele pedisse a mão da nossa Dorothea, que
tem sido ao longo destes anos o esteio da minha existência, e seria,
sem dúvida alguma, eminentemente perfeita como sua esposa. Julgo que não violarei os segredos
íntimos do coração da tua irmã, se disser que ela sempre foi muito
dedicada a Alfred, e que o casamento dele com Martha foi um verdadeiro desabar de sonhos para a
pobre Dorothea.
"Depois da morte de Martha, comecei a sentir esperanças de novo. Dorothea foi sempre
extremamente dedicada ao jovem Philip, e Alfred estava-lhe muito grato por essa
atitude. O casamento entre ambos teria sido ideal.
"Mas... não tinha de ser, evidentemente. Ele escolheu uma jovem, uma professora da escola local.
Para meu desgosto, ela não é uma verdadeira residente de Riversend
e não tem família de posição. Além disso, é muito mais nova do que Alfred; dezassete anos, para ser
mais preciso. Eu teria feito outra escolha, se isso estivesse
nas minhas mãos, mas num assunto como este não há hipóteses de discussão.
"No entanto, não me sinto demasiado infeliz. Miss Amalie é uma jovem cheia de espírito e
originalidade, tem muita habilidade com os pincéis e as telas, e sabe tocar
piano com uma perícia espantosa. Os seus dons são todos naturais e absolutamente nada cultivados.
Tem uma sagacidade e uma inteligência surpreendentes, e consegue
manter-me distraído durante horas a fio, o que é muito amável da sua parte. (Às vezes, acho a minha
invalidez demasiado frustrante, para o meu gosto.)
"Poderia, talvez, dizer que seria mais agradável se ela tivesse um pouco mais de sobriedade nos
modos e um pouco mais de refinamento de porte e de linguagem. Mas
eu estou
velho e possivelmente o meu gosto está também um pouco antiquado, nada propenso a certos
modernismos. Desde a guerra que os jovens desenvolveram uma liberdade a
todos
os títulos condenável no meu tempo, e as mulheres, em especial, revelam um certo atrevimento
audaz que me deixa confundido.
"No entanto, não é possível deter o rolar dos tempos. Sem
dúvida que, aos olhos dos meus pais, eu também devo ter parecido demasiado irreverente, e lembro-
me até como o meu pai se insurgia, profetizando a minha desgraça.
"Quanto à família de Miss Amalie, ou à sua inexistência, isso não deveria constituir um factor
contra ela. Não é este um país cheio de forças novas, onde o homem
mais estranho é capaz de ascender a posições elevadas de respeito, dignidade e honra?
"Os antecedentes de Miss Amalie não me preocupam. Ela é uma jovem cheia de saúde e energia e é
também muito perspicaz. Tenho a certeza de que me dará os netos que
há tanto tempo espero. Eles serão graciosos e educados, eu sei, e até mesmo bonitos, porque ela é
uma jovem com muita presença e possuidora de um rosto adorável.
"Embora Dorothea discorde veementemente de mim, acho que encontro em Miss Amalie uma certa
semelhança com o retrato da minha avó, que está pendurado na biblioteca.
Os olhos têm uma coloração idêntica, embora a avó tivesse uma certa distinção que Miss Amalie
não possui. O cabelo é espantosamente o mesmo, preto, encaracolado
e exuberante; além disso, existe também entre ambas uma evidente semelhança no porte e na figura.
Se tivesses conhecido a tua bisavó, haverias de concordar comigo,
tenho a certeza.
"Espero que possas vir a Riversend, para o casamento. Sei que tu e Alfred nunca tiveram um pelo
outro muita simpatia, nos tempos da vossa juventude. Mas espero que
o tempo que passou tenha amenizado um pouco os vossos sentimentos, e que sejam capazes, agora,
de se olharem com uma agradável amizade fraterna. Já não se vêem há
quase cinco anos. Achas que tenho razão?
"Quanto a mim, não me tenho sentido muito bem desde a morte de Mr. Lincoln. Confesso que foi
um golpe bastante rude para mim, porque éramos bons amigos, se bem te
lembras. Mas, ainda assim, sou capaz de dar uma volta na minha pequena carruagem durante uma
hora por dia, sem que isso me deixe demasiado cansado, e encaro o futuro
do nosso país com um pouco mais de optimismo do que nos últimos anos. Havemos de conversar
acerca disso quando vieres. Confesso que aguardo ansiosamente a tua chegada,
pois já não nos vemos há quase dois anos, desde a última vez que te fui visitar em Nova Iorque.
"Na tua última carta não me falavas da tua velha ferida na perna, e sinto uma certa ansiedade por
saber como te encontras agora. Não me esqueci do meu orgulho por
ti, quando eras capitão no Primeiro de Infantaria de Nova Iorque, nem a terrível angústia em que
vivi durante os anos da guerra. Como está a tua perna agora?
"Dorothea mandou preparar os teus antigos aposentos e tenho a certeza de que me alegrarás com a
tua presença no casamento. Será possível vires alguns dias antes
do Natal?
O teu pai,
William Lindsey"
Jerome pôs a carta do pai em cima da mesa a seu lado, mas a palma da sua mão trémula manteve-se
pousada sobre ela. O pobre velho estava completamente desesperado.
Era mesmo dele tentar disfarçar e falar o melhor possível de uma coisa que ele próprio sabia não ter
qualquer espécie de valor, mas a sua preocupação era evidente
em cada linha da sua carta. Deus do céu, que calamidade!
Jerome levantou-se. Vacilou um pouco, quando uma dor mais violenta ameaçou rebentar-lhe a
cabeça. A porta abriu-se e, como se tivesse sido chamado, apareceu um homem
pequeno e magro, de rosto enrugado como uma noz e a cabeça completamente calva. Tinha uma
expressão lúbrica e astuta, cheia de argúcia e humor. O homem vestia uma
sóbria libré preta e havia nele algo da agilidade de um macaco e muito da sua rapidez subtil de
movimentos e da sua vivacidade.
- Jim! - disse Jerome. -Faz as malas. Vamos partir para um casamento, a não ser que eu o consiga
impedir. E... diabos me levem...! Hei-de impedi-lo, ou morrerei!
Capítulo segundo
O tempo ameno e extremamente agradável das duas primeiras semanas de Dezembro tinha sido
substituído por grossos novelos escuros que ameaçavam uma tempestade de
neve. Agora, o temporal varria, como brancos cavalos selvagens lançados à desfilada, os campos
que até então tinham estado cobertos de um verde aveludado e de um
cinzento suave. Nuvens agitadas e negras pareciam despenhar-se pelas colinas, e o extenso vale
enchia-se rapidamente de montes e dunas de neve, que o vento erguia
e arrastava como se de areia branca se tratasse.
Os pinheiros pareciam gemer, curvados, empurrados para trás, para logo serem atirados
violentamente para a frente, como ondas revoltas, pelas demolidoras rajadas
do vento, e os seus gemidos de angústia e de tortura erguiam-se pungentes nos ares, quais lamentos
de fagotes, misturados com o uivar e o bramir da
tempestade. Tudo se perdera numa humidade cinzenta, pegajosa e envolvente que parecia
desprender-se da imensidão negra e tumultuosa dos céus, que ressoavam, estrondosos,
como uma enorme harpa tocada por dedos dementes.
Riversend (anteriormente River End, mas alterada depois pelas línguas preguiçosas dos seus
habitantes), acocorava-se à boca do vale; um amontoado de pequenas casas,
igrejas minúsculas, lojas miniaturais e desoladas e uma ou duas mansões mais imponentes.
Pareciam encostar-se umas às outras, tiritando de frio, e as ruas pareciam
estreitar-se, aproximando-se mais e mais, hora após hora, contraindo-se como os músculos gelados
de um corpo vivo.
As casas encolhiam-se, repuxando as paredes para cima de si próprias, e as janelas estreitavam-se
como olhos assustados. Aqui e ali, uma luz amarelada tremelicava
ligeiramente por detrás das cortinas das janelas, e os candeeiros a gás nas esquinas das ruas tremiam
e diminuíam como velas ao vento, revelando por momentos, nas
alturas em que brilhavam com um pouco mais de intensidade, as dunas aguçadas da neve.
Não se via uma só criatura nas ruas, nem mesmo um pardal ou um cão vadio. Momento após
momento, a pequena cidade parecia dar a impressão de se ir afundando cada
vez mais na tempestade, como um objecto perdido buscando em vão um pouco de segurança.
O telhado da estação quase soçobrava já sob o peso de uma camada de cinqüenta centímetros de
neve fina e branca, uma brilhante cobertura, como de açúcar num bolo,
cintilando fugazmente à luz da lanterna que balouçava de um lado para o outro.
O comboio de Nova Iorque parou, resfolegando, junto da plataforma e soltou um apito abafado. O
fumo estendia-se ao longo de todo o seu comprimento, batido pelas
rajadas de vento, e o brilho pálido das luzes das carruagens tremeluzia, fraco, através da correnteza
das janelas. Ouviu-se um apito, em sinal de aviso, embora apenas
descessem dois passageiros. Depois, o comboio pareceu reunir as forças que lhe restavam;
estremeceu; o apito voltou a fazer-se ouvir, saltaram fagulhas por entre
a coluna de fumo, as luzes tremeram ainda mais, e com um longo rangido de ferros o comboio
começou a mover-se, para desaparecer dentro da noite branca e negra, sem
formas. Os trilhos ficaram de novo vazios, e as rajadas de vento voltaram de novo a reinar,
triunfantes.
Os dois passageiros que haviam descido do comboio inclinaram a cabeça e o corpo para a frente
tentando proteger-se contra o vento, e arrastaram-se para o abrigo
quente da estação,
batendo com as botas, limpando os olhos, esfregando as faces enregeladas.
Um deles era um homem alto, ainda novo, envergando um enorme casaco de pele, chapéu alto e
luvas também de pele. Debaixo do braço trazia um pequeno cão que gania,
tristemente. O outro homem, muito mais velho e mais baixo, e também muito menos elegantemente
vestido, colocou numerosas malas no chão manchado de tabaco. Dirigiu-se
imediatamente para o bojudo fogão a carvão, levantou-lhe a tampa e soprou, silvando, para as
brasas fumegantes. O homem mais novo pôs o pequeno cão no chão, que
estremeceu e ganiu junto das suas botas polidas.
- Bem! - exclamou o homem mais novo, lançando à sua volta um olhar de desagrado. - Pelo que
vejo, não está aqui ninguém à nossa espera. Mas devem ter recebido o
meu telegrama. Mandei-o há dois dias.
Lançando um olhar carrancudo para o balcão vazio, observou:
- Nem o maldito chefe da estação aqui está!
Voltou-se para o homem mais velho, que, inclinado ligeiramente para o lado, sacudia a gola do seu
casaco, e perguntou:
- Jim, lembras-te do telegrama?
- Sim, senhor, lembro-me bem. O senhor saiu especialmente por causa dele. O senhor dizia:
"Esperem-me, e ao meu criado, na terça-feira, no comboio da tarde..."
Calou-se e ficou a olhar para o seu amo, com um ar pasmado de macaco velho.
Ao fim de alguns momentos de silêncio, disse:
- Foi terça-feira que disse, não foi, senhor?
- Foi terça-feira, sim, Jim.
Jim pigarreou e depois disse, com voz enrouquecida e um pouco hesitante:
- Bem... hoje é segunda-feira, senhor. Terça-feira é amanhã...
O homem ainda novo fixou no criado um olhar vazio. Depois, disse com voz suave:
- Bem... diabos me levem! Porque não me disseste que dia era hoje, Jim?
O rosto enrugado do outro fechou-se na sua habitual expressão de macaco.
- Senhor, foi só quando já estávamos quase a chegar aqui que mencionou... com as minhas
desculpas, senhor... que o telegrama dizia terça-feira. Sempre pensei que
era segunda... até o senhor se referir a isso, no comboio.
O homem mais novo olhou sombriamente para o pequeno cão que gania, encolhido, a seus pés.
- Cala-te, Charlie! - exclamou, com ar ausente. Depois, começou a rir.
- Parece que nos metemos numa boa embrulhada. Ergueu a voz e gritou:
- Onde é que se meteu esse danado do chefe da estação?
A porta abriu-se, deixando entrar uma rajada de vento e de neve, e um homem baixo e atarracado
penetrou na sala, praguejando. Era um estranho, totalmente desconhecido
para os dois passageiros.
Quando o chefe da estação se deteve, ficando a olhar para eles, admirado, o mais novo perguntou,
abruptamente:
- Onde está o velho Thompson? O outro replicou:
- Ora essa, senhor! Ele morreu já fez um ano! Sou o sobrinho dele, e fiquei aqui a substituí-lo.
Chegou agora no comboio, senhor?
- Não! Viemos no sopro do vento, que nos arrastou para aqui, do Pólo Norte. Olhe cá, homem,
parece que houve aqui um engano qualquer. Devia estar aqui uma carruagem
de Hilltop à minha espera. Sou Jerome Lindsey! Mas, pelos vistos, não está cá ninguém.
Rapidamente, o homem tirou o boné da cabeça, num gesto servil.
- Ora, senhor, estou contente por o ver, embora nunca nos tivéssemos encontrado. Mas conheço bem
todas as pessoas de Hilltop. Eles deviam estar aqui à sua espera,
não foi o que disse? Mas não vi nenhum sinal de carruagem lá fora.
Dirigiu-se à janela, esfregou o vidro embaciado e olhou para fora, perscrutando a noite.
- Não, senhor, nem sinais de carruagem. Nada. E daqui até Hilltop são mais de oito quilómetros, e
não há ninguém para lá mandar a informá-los.
Afastou-se da janela, encolhendo os ombros num gesto de impotência e desespero.
- Também não pode ir a pé, senhor! Não com esta tempestade, no meio da neve!
Jerome ergueu as abas do casaco, observou minuciosamente e com um ar desconfiado o único
banco que ali havia, e sentou-se. O cãozito saltou-lhe imediatamente para
os joelhos, enroscando-se contra ele. A criatura era de um amarelo torrado, cor de tabaco, com pêlo
comprido e sedoso e olhos irritados, raiados de sangue. Do seu
poiso seguro, rosnou para o chefe da estação.
- Animalzinho simpático! - titubeou o homem. Depois, soltando um suspiro de desalento, disse:
- Não, senhor, com esta tempestade e esta escuridão não pode ir por aí acima.
Jerome olhou intencionalmente para o seu criado, mas este ignorou por completo o seu olhar,
parecendo muito ocupado em esfregar vigorosamente as mãos junto do fogão.
Por fim, o criado retorquiu:
- Eu nunca aqui estive, infelizmente. Nem sequer conheço o caminho. Ficaria enterrado ao fim de
alguns metros. Amanhã teriam de procurar o meu cadáver e desenterrá-lo.
O rosto do chefe da estação pareceu iluminar-se de súbito. Fez estalares dedos e disse:
- Descobri, senhor! O carro de Hobson estará aqui dentro de meia hora, mais ou menos, com o leite
para o comboio de Siracusa. Ele nunca falta, haja enxurradas, tempestades
ou o inferno. É claro que o carro é aberto, e será uma viagem bem desconfortável, ao vento e à
neve, mas sempre é melhor do que nada, não é verdade? Ele tem uma
quinta a um quilómetro e meio de Hilltop, mas tenho a certeza de que, por consideração para com a
família, o levará até casa. Seja como for, o senhor não poderia
fazer o resto do caminho a pé, com este tempo.
- Que perspectiva tão agradável! - replicou Jerome, de rosto fechado.
Bateu ao de leve na cabeça molhada do cão, e continuou:
- Mas também não podemos ficar aqui até amanhã, não é? Eu sei! Mas o seu amigo Hobson poderia
informar Mister LindSey de que estou aqui, e então eles mandariam uma
carruagem buscar-nos imediatamente.
O chefe da estação abanou a cabeça, com um ar compungido.
- com uma tempestade como esta, senhor, e a tornar-se pior em cada minuto que passa, a carruagem
nunca conseguiria chegar até aqui. Na melhor das hipóteses, levaria
algumas horas... e depois? Como é que voltariam? Não, senhor, é melhor ir com Hobson, antes que
a tempestade piore ainda mais do que está.
Atirou um cesto cheio de carvão para dentro do fogão. O gesto assustou Charlie, o cão, de tal
maneira que este desatou a ladrar, histericamente.
- Dá-lhe um pouco de carne! - disse Jerome para o criado, com um ar cansado.
Jim abriu um cesto de vime, tirou de lá de dentro um saco de papel com fígado e outros pedaços de
carne, e estendeu alguns ao cão, com a sua mão escura e enrugada.
Mas o cão estava tão nervoso e fora de si que farejou, desconfiado, os dedos do homem e recusou
os petiscos que ele lhe oferecia.
- Demoniozinho imundo! - disse Jerome, batendo-lhe carinhosamente. - Cala-te, Charlie!
O candeeiro a óleo balouçou, vacilante, do tecto sujo. O fogão estalou. O vento batia pesadamente
contra as janelas. Via-se a camada de neve aumentar contra as vidraças.
O vidro ficava rapidamente coberto de gelo e as samambaias brancas aumentavam a cada instante,
transformando-se em verdadeiras esculturas de formas estranhas. Dedos
gigantescos e gelados pareciam invadir agora a pequena e fétida sala.
Jerome estremeceu de frio e, reparando nisso, o chefe da estação afirmou, pesarosamente:
- A temperatura está a baixar. Só temos três graus acima de zero. Dentro de uma hora será pior. Até
o coração parece gelar.
Retirou a chaleira que fervia em cima do fogão e afirmou, com ar mais alegre:
- O café está pronto, senhor! Quer uma chávena? Ajuda a agüentar o rio!
Jerome olhou, carrancudo, para a chaleira, mas depois disse, com um gesto de assentimento:
- Está bem, quero, sim! Obrigado.
Esfregou os lábios com a mão enluvada, e continuou:
- Parece que não temos outra hipótese senão irmos com Hobson. Se isto não é o inferno...
Atirou para trás o casaco ricamente forrado de peles, franziu o sobrolho e sacudiu alguns pêlos de
cão que se tinham pegado às suas finas calças pretas.
Enquanto lavava uma chávena rachada num balde de água que se encontrava junto do seu balcão, o
chefe da estação olhava disfarçada e curiosamente para Jerome.
"Deve ser o filho que estava em Nova Iorque, aquele que se diz ser um esbanjador e um
estouvado... o artista! Aquele que nunca vem a casa visitar o velho senhor
e deixa que o engomado e empertigado primo se apodere de todo o dinheiro. Deve ser um tipo bem
mal humorado, a julgar pelo seu aspecto e pelos seus maus modos, mas
tem um ar todo janota e elegante. Um verdadeiro tipo da cidade. Basta olhar para aquele sobretudo,
enorme, castanho como uma folha, e cheio de peles como se fosse
o casaco de uma dama. E o forro é também em pele. Deus do céu! E as luvas? E as botas polidas e
ponteagudas? E as polainas cinzentas? E aquela bengala, ali, de punho
de ouro, encostada a seu lado como se soubesse que é demasiado boa para gente da nossa classe?
E... se aquilo não são diamantes nos seus dedos...!? Está a tirar
as luvas! Estes homens da cidade mais as suas maneiras e as suas
modas! E tem um criado, também! Um valet... como lhes chamam!"
O chefe da estação limpou, furtivamente a chávena com um pedaço de pano cheio de nódoas.
Observou Jerome com mais atenção, quando reparou que ele parecera mergulhar
nos seus próprios pensamentos.
"Parece um tipo de mau humor. E cansado e carrancudo como se tivesse andado a trabalhar todo o
dia nos campos e se sentisse meio esfomeado, quase morrendo de desejos
pela boa comida de casa. É magro como uma sebe. Não tem quase carne nenhuma, nem nas pernas,
nem na cara, que mais parece ter sido talhada num carvalho castanho
e velho. E aquelas espessas sobrancelhas pregadas uma à outra. Não gosto dos seus olhos... embora
as mulheres costumem dizer que são muito finos e pretos e brilhantes.
Parece que também gostam muito daquelas orelhas espalmadas que ele tem... e daquele cabelo preto
e encaracolado...! Não, senhor, não gosto dos olhos dele! É daqueles
que é capaz de ser mau e cruel para com um cavalo ou até mesmo para com um homem, se algum
deles se atrever a cruzar o seu caminho. E... onde será que ele foi buscar
aquele nariz adunco, como o de um falcão? O velho senhor, que Deus o abençoe, não tem um nariz
assim, e Miss Dorothea também não. A boca dele também parece a de
um falcão... sorri com demasiada facilidade. Acho que ele se julga um homem muito fino e
elegante... com as suas mãos muito brancas cheias de anéis... a sua maneira
ide falar, pomposa e autoritária... os seus modos afectados e E presunçosos. Deve ser um tipo mau
como as víboras, que atacam sem se esperar, e também sem piedade.
E depois, aquela cor nas faces... não foi a água que a pôs lá, não! Tenho visto muitos beberrões para
o saber de cor!"
Jerome tinha o olhar sombrio fixo no lume. Sem voltar a cabeça, disse muito devagar:
- Espero que goste do que está a observar, homem!
O chefe da estação, aturdido, corou e ficou a olhar para ele. Jim, junto do fogão, sorriu com ar
escarninho, olhando de soslaio por cima do seu ombro magro para
o pobre homem, desajeitado e confundido. Jerome continuava a fitar o fogão, quase imóvel, excepto
o gesto ritmado com que afagava o cão.
- Desculpe, senhor! - gaguejou o chefe da estação. - Estava só curioso...
- bom, então olhe, homem, e satisfaça a sua curiosidade. Onde é que está esse tal café ?
com as mãos a tremer e o coração a bater, descompassado, de indignação, o chefe da estação deitou
um pouco do líqüido castanho na chávena, juntou-lhe um pedaço de
açúcar que
retirou de um cartucho que se encontrava em cima do balcão, e mexeu-o com uma colher de ferro.
Depois, aproximou-se de Jerome e estendeu-lhe a chávena. Charlie,
o cão, rosnou. Jerome pegou na chávena, num gesto lânguido, e cheirou-a, duvidoso. Levou-a aos
lábios, bebeu um pouco, fez uma careta e bebeu mais um golo. Os outros
dois homens observavam-no abertamente.
- Não é mau! - disse ele. - Mas tem demasiada chicória. E o café até nem é assim tão caro! De
qualquer modo, obrigado!
Segurou na chávena, com as duas mãos, procurando aquecê-las de encontro ao bojo. Olhou para o
criado e perguntou:
- E tu Jim?
Jim inclinou-se para o chefe da estação, que o detestava profundamente, e disse:
- Se não há chá...
- Não, não há chá! - respondeu o chefe da estação, friamente. - Nós, por estes lados, não gostamos
muito de chá. Mas há mais café.
O sangue parecia correr-lhe mais quente nas veias, de ódio e repulsa. Olhou para Jim, e disse ainda:
- Pode tomar café, se lhe apetecer!
Um inglês, hem? bom, não era um maldito inglês que havia de fazer pouco de um bom americano
como ele... Raios! Só se ele não pudesse!
- Então, café, e obrigado, bom homem! - retorquiu Jim, com um esgar afectado que pretendia ser
um sorriso.
"Como uma doninha, a querer ganhar confiança!", pensou o chefe da estação com os seus botões.
Jerome levantou-se e caminhou até à janela. O chefe da estação reparou que ele coxeava
ligeiramente da perna direita.
Não havia uma história qualquer de que ele tinha sido oficial durante a guerra e tinha ficado ferido?
Sim, andava como um soldado, e tinha ombros de soldado, e um
certo ar de quem está habituado a dar ordens, também. Mal se podia acreditar, com toda aquela
elegância requintada, mas a história devia ser verdadeira. Devia ter
sido o diabo em pessoa com os seus homens, pelo aspecto que tinha. Um osso duro de roer! E, no
entanto, estava a deixar que todo o dinheiro e o Banco lhe escapassem
das mãos, embora ele, Jack Thompson, conhecesse alguma coisa de homens como aquele... com um
nariz fino e adunco e uma linha sombria bem vincada em redor de uma
boca de falcão...! Estaria ele a abandonar, agora, a sua vida de esbanjador e de peralta, por causa do
dinheiro, ou teria vindo só para o casamento? Mas não, não
parecia nada ser o tipo capaz de se atrever por aqueles
sítios naquela altura do ano só por causa de um casamento... e muito menos por causa do casamento
de um primo... Dizia-se, até, que entre os dois as coisas nunca
tinham corrido bem. Nada de confiar no diabo quando ele aparece farejando à sua volta...
especialmente quando há dinheiro em jogo! E este... este era o diabo em
pessoa... disso tinha a certeza!
Jerome tinha inclinado a cabeça e estava a olhar através da janela, esfregando a vidraça gelada.
Começou a assobiar, num tom que mal se ouvia, enquanto olhava para
dentro da noite escura como breu. Jim bebia o seu café em pequenos golos. O cão aproximou-se do
dono, ganindo. Jerome baixou o olhar para ele e sorriu.
O chefe da estação quedou-se, surpreendido. Era um sorriso quase divertido e encantador, que
deixava entrever uma fileira de dentes brancos e fortes. Jerome pegou
de novo no cão e voltou para o banco. Estava agora mais à vontade, quase indolente. Cruzou as
pernas e dirigiu ao chefe da estação outro sorriso afectuoso.
- Vive em Riversend? - perguntou-lhe.
Tinha uma voz quente, agora, amável e insinuante, com uma ligeira acentuação de simpatia.
"Uma voz de lenhador manhoso!", pensou o chefe da estação, mas sem ressentimento.
Respondeu, depois, quase submisso:
- Sim, senhor, Mister Lindsey. Vivo ali em baixo, perto da casa do ferreiro. Era a casa do meu tio.
Recorda-se?
Jerome abanou a cabeça, num gesto quase pesaroso, e retorquiu:
- Estive fora muito tempo. É engraçado... mas não me lembro de si!
- Oh, não admira! Eu vivi em Thorntonville até o velho morrer, isto é, o meu tio.
Aquele nome fez agitar a memória de Jerome.
- Thorntonville...! - murmurou, pensativo. Calou-se, por instantes, e depois perguntou:
- Então, deve conhecer Miss Maxwell, a jovem que vai casar com o meu primo?
O chefe da estação abeirou-se mais de Jerome e respondeu-lhe:
- Na verdade conheço sim, senhor. Uma bela jovem, muito admirada.
A sua voz tinha uma nota de familiaridade que fez estremecer Jerome, por breves segundos.
Desviou os olhos, mordeu os lábios e recomeçou a assobiar, quase em surdina.
Jim pareceu empinar as orelhas, ponteagudas como as de um fauno, e sorriu,
sardónico. A sua cabeça redonda e calva reluzia à luz frouxa da lâmpada.
Ouviu-se um restolhar junto da porta e logo a seguir esta abriu-se violentamente. Um homem
corpulento, enrolado num casaco e com um boné enfiado na cabeça, entrou
na sala praguejando e sacudindo a neve que se lhe acumulara nos braços. Charlie desatou a ladrar
furiosamente, sem sair dos joelhos de Jerome.
O chefe da estação voltou-se para o recém-chegado, com um ar de alívio.
- Oh, ainda bem que chegaste, Bill! Olha lá, voltas para a quinta ainda hoje?
Bill Hobson olhava abertamente para os dois estranhos e não deu qualquer resposta, durante alguns
momentos. Depois disse, quase murmurando:
- Sim, tenho de ir. A velhota está de cama com o reumatismo e não vai poder ordenhar as vacas
amanhã de manhã.
Ficou a olhar para o chefe da estação, com um ar interrogador estampado no rosto.
- Bem, é que estes senhores têm de ir até Hilltop. Parece que os deviam ter vindo buscar aqui, mas
ninguém apareceu. Tens lugar para eles no carro, Bill?
Bill pigarreou, espantado, e depois retorquiu:
- É para o casamento?
Abanou a cabeça e, sem esperar resposta, continuou:
- Eles não iriam agüentar a viagem, pois a carroça é aberta. É melhor esperarem até amanhã e
partirem então numa carruagem ou numa charrete. Sim... é melhor esperarem
por umacharrete.
Jerome levantou-se e colocou de novo o cão debaixo do braço.
- Iremos contigo, Bill, se não te importas!
Capítulo terceiro
Aquilo era um verdadeiro inferno de escuridão ululante e raivosa, e o carro aberto avançava a custo,
gingando, rangendo, ameaçando atolar-se no imenso lençol de
neve. A lanterna que balouçava junto do assento reflectia-se fugazmente em milhões de pirilampos
brancos que volteavam numa dança louca e incessante mas pouco ou
nada revelava do caminho gelado e mole. Os três desgraçados passageiros, sentados uns contra os
outros na prancha de madeira que servia de banco, não conseguiam
descortinar sequer os vultos dos pinheiros que bordejavam o caminho, mas ouviam-lhes os gemidos
uivantes com que ousavam desafiar as rajadas cada vez mais violentas
daquele vento diabólico.
Os dois cavalos soltavam de vez em quando gemidos dolorosos enquanto tentavam abrir caminho
pelo vale, e o vapor branco da sua respiração era arrastado para trás,
ao longo dos quadris. O carro mais parecia um pequeno barquito indefeso lutando desvairadamente
contra as vagas imensas e revoltas de um mar negro como breu, e dois
dos passageiros, pelo menos, agarravam-se desesperadamente à prancha e mergulhavam os rostos
nas golas dos casacos. Em breve as mãos e os pés ficaram hirtos e entorpecidos,
e o gelo que deles se apoderara ameaçava espalhar-se pelo resto do corpo. Iam tão juntos uns aos
outros que sentiam os corações bater num ritmo desconcertante dentro
de cada um. Protegido por uma dobra do casaco de Jerome e apertado entre as suas magras coxas,
Charlie, o cão, gania lastimosamente procurando aconchegar-se ainda
mais contra o seu dono. Lá atrás, a bagagem rolava e saltava de um lado para o outro, a cada
solavanco do carro.
Conversar, era impossível. A única coisa que podiam fazer era tentar mover os músculos da cara e
fechar e abrir os olhos com força, para procurarem fazer cair a
neve perigosamente gelada das pálpebras, sobrancelhas e pestanas; sentiam sobre eles o peso da
neve furiosa que se ia amontoando nos braços e nos ombros, e procuravam
voltar a cabeça para o lado de modo a evitar, tanto quanto possível, o vento cortante. Respirar
tornara-se algo de quase doloroso e os três homens pareciam procurar,
ofegantes, cada vez com mais freqüência, um pouco de ar que lhes enchesse os pulmões doridos.
Não havia cobertores com que se pudessem cobrir. A esteira gelada em
que pousavam os pés apenas aumentava a sua miséria e o seu desconforto.
O carro percorreu os oito quilómetros até Hilltop em duas horas, duas horas de um sofrimento
penoso e indescritível. Jerome praguejou para si próprio e depois em
voz alta, mas o som perdeu-se no tumulto. A neve que se lhe derretia sobre os ombros parecia
penetrar através das grossas peles do seu casaco e chegar-lhe aos ossos.
Que louco tinha sido em se aventurar num inferno daqueles! De certeza que na manhã seguinte
acordaria cheio de febre... Isso se tivesse sorte e conseguisse chegar
são e salvo a Hilltop, e não ficasse para ali perdido no meio daquela imensidão gelada durante dias
e dias. Ouvia o assobiar da neve entre as rodas, o ranger dos
eixos... Por vezes, durante
minutos que mais pareciam uma eternidade, o carro ficava atolado, preso na neve, e os cavalos
empinavam-se, resfolegando, relinchando desesperados, lutando raivosamente
para se libertarem. Nessas alturas, Bill Hobson fazia estalar o seu chicote, gritando, berrando,
praguejando, sofrendo com os seus cavalos. Mas... não se atrevia
a parar, nem por um só instante.
Tinha dito a Jerome que não tentaria subir até Hilltop. O gelo estava muito espesso debaixo da
camada de neve, e o carro jamais conseguiria vencer a íngreme subida
até lá ao cimo. Os dois homens teriam de tentar seguir até à casa no alto da colina, pelos seus
próprios meios.
Jerome não tinha voltado a Riversend desde que ali estivera, cinco anos atrás, recuperando-se de um
ferimento grave com que a guerra o marcara. E tinha lá voltado,
nessa altura, apenas para corresponder aos pedidos invulgarmente insistentes de seu pai. Mas não
tinha sido um período particularmente feliz. De facto, não era capaz
de se recordar de nenhuma ocasião em que tivesse sido feliz em Hilltop. Em conversas com os seus
amigos e conhecidos, gostava de dizer, em tom pesaroso, mas com
um certo humor, que Riversend era o lugar mais absurdo que se podia imaginar, que a sua família
era insuperavelmente complacente e burguesa, e que, ao contrário
do que a humanidade acreditava, ainda havia lugares no Mundo onde o tempo parecia ter parado.
Especialmente Riversend.
Durante mais de trinta anos aquela pequena cidade nem sequer duplicara a sua população, e agora
viviam nela apenas dez mil almas, incluindo os habitantes das propriedades
vizinhas. E no entanto, outras povoações que ficavam à distância de um dia de viagem de Riversend
tinham conseguido alcançar a dignidade de verdadeiras cidades,
e algumas tinham, até, conseguido alcançar um certo renome e importância. Que se passava, então,
de errado com Riversend, que mal conseguia igualar o número dos
que morriam com novos seres? Jerome não sabia. Talvez a razão residisse no facto de a sua classe
média ser estúpida e retrógrada, odiando toda e qualquer mudança,
receando permitir a instalação de novas indústrias na zona e desconfiando dos estranhos que se
aventuravam por aquelas paragens. Riversend parecia permanentemente
mergulhada numa apatia e numa inércia entorpecedoras.
Era evidente que um ambiente daquele género desencorajava qualquer tipo de empreendimento. Por
exemplo, durante a guerra, um grupo "estrangeiro" havia pretendido
construir ali uma fábrica de confecção de cobertores para o exército, pois o rio oferecia excelentes
possibilidades como via rápida de transporte
para outras cidades e vilas e, além disso, existia ali mão-de-obra em quantidade suficiente.
Após longas e minuciosas discussões entre os senhores locais, foi-lhe recusado um sítio para a
construção da fábrica, e foi dado a entender aos "estrangeiros", com
acentuada e fria polidez, evidentemente, que a sua partida seria vista com muito bons olhos e até
com um certo agrado. A própria família de Jerome, e o Banco, claro,
tinha tomado parte activa nessa recusa. Jerome pensava que a única razão, embora secreta, dessa
negativa era que os poderosos locais receavam que os trabalhadores
das fazendas e da própria vila pudessem ganhar "idéias novas" trazidas pelos bons salários que
muito naturalmente começariam a ser pagos, criando, desse modo, grandes
"inconvenientes" aos empresários e fazendeiros locais.
- Queremos manter inalterada a atmosfera idílica da velha Riversend! - dissera então o prefeito, de
ar afectado e convencido, com o aplauso de todos os seus amigos.
- Na vida, existem outras coisas boas para além de fábricas e salários elevados, ruídos e barafundas.
Conservemos em Riversend a qualidade do Velho Mundo da nossa
vida pacífica! Conservemos, enquanto pudermos, o nosso ar de contentamento, de
calma e de contemplação! Não deixemos que venham perturbar a nossa paz e a nossa felicidade!
O facto de que os pobres de Riversend não tivessem qualquer espécie de felicidade e não
apreciassem aquela calma possibilidade de permanecerem cronicamente esfomeados
e mal vestidos não tinha importância nenhuma, era evidente! As raparigas das quintas e da cidade
serviam, como criadas, nas grandes mansões, por menos que oito dólares
por mês, e podiam arranjar-se excelentes jardineiros, criadose cocheiros por dez dólares, mais
alimentação e alojamento.
O ar feudal da pequena cidade e das quintas deliciava os donos das grandes propriedades. Agradável
e deliciosamente situada no seu extenso e paradisíaco vale, protegida
pelas colinas elevadas que a rodeavam, Riversend parecia destinada a passar a sua vida imersa num
sonho. Se os jovens e mais fortes, evidentemente criados por uma
sábia divindade para o serviço dos seus amos, revelavam uma inquietante tendênciapara
abandonarem as quintas e a própria cidade, partindo para cidades e vilas distantes,
em busca de emprego nas "obras públicas", a culpa era da nova linha férrea, é claro. Os donos de
Riversend tinham lutado desesperadamente para impedir a instalação
do ramal e parecia até que o sucesso estava do lado deles, até àquele dia incrível em que o "velho
senhor", Mr. William Lindsey, revelara de súbito muito da sua
energia antiga e exigira que se autorizasse a
entrada da linha na cidade. Aquilo chocou os amigos, deixando-os pouco menos que embasbacados
e petrificados de surpresa. Durante anos, ele tinha delegado toda a
autoridade no seu filho adoptivo e sobrinho, Alfred Lindsey, e jamais interferira em qualquer das
suas ordens ou decisões. Contudo, naquela ocasião, a sua frágil
voz fizera-se ouvir como uma severa e inflexível ordem vinda do túmulo, e o ramal aparecera em
pouco tempo. Jamais ele explicaria ou discutiria o assunto. Depois
dessa severa intrusão nos negócios do seu próprio Banco e da comunidade, retirara-se de novo para
o seu silêncio artrítico.
As mais lúgubres profecias realizaram-se, e os homens e mulheres jovens e capazes começaram a
abandonar Riversend, procurando empregos mais lucrativos. Agora, as
quintas forneciam, quase exclusivamente, a mão-de-obra local, e esta nem sempre se encontrava.
Era fácil entrar para um comboio e viajar confortavelmente para vilas
e cidades distantes, enquanto que, por outro lado, até mesmo os mais fortes e mais resistentes
passaram a considerar longa e enfadonha uma viagem de dois ou três
dias de carruagem ou a pé. Sem um caminho de ferro que trouxesse jornais e periódicos
regularmente de outras cidades maiores, nunca os mais novos teriam sentido
qualquer estímulo para as suas idéias revoltosas.
Jerome tinha estado em Hilltop durante esta controvérsia e tinha-se divertido enormemente com ela.
Gostava de ver o seu irmão adoptivo, e primo, sofrer constantes
ataques e procurar resolver os problemas a contento de todos, embora Alfred não fosse, por
temperamento e carácter, capaz de exprimir o seu desapontamento e desgosto
com qualquer espécie de veemência. Era, para além disso, a imagem viva do respeito e da
obediência filial.
No entanto, Alfred não era nenhum tolo. Suspeitava, e com considerável agudeza, que Jerome tinha
tido uma certa influência no alargamento do caminho-de-ferro até
Riversend. O "velho senhor" amava o seu verdadeiro filho, e embora Alfred fosse o último a
deplorar esse facto, e nunca tivesse, por qualquer palavra ou gesto ou
expressão, tentado afastar de Jerome o amor e a condescendência de seu tio, a verdade é que
lamentava que o seu primo tivesse tanto poder e tanta ascendência sobre
o pai. Alfred estava convencido de que essa ascendência não era positiva, nem trazia nada de bom.
Aliás, que espécie de bem poderia possuir uma pessoa como Jerome
Lindsey? Era um libertino e um devasso, egoísta e presunçoso para lá de todos os limites, e tão
cruel e tortuoso como uma serpente, com os seus modos lânguidos,
suaves e aparentemente afáveis, mas sempre pronto a atacar à primeira hipótese. Sempre que
interferia nos assuntos da comunidade,
embora o fizesse com pouca freqüência, felizmente, surgiam problemas. E o pior de tudo é que
Alfred acreditava firmemente que Jerome não interferia impulsionado
por quaisquer sentimentos altruístas nem seria capaz de levantar um dedo só que fosse para
defender ou aumentar o bem-estar local. Fazia tudo com um espírito de
pura maldade.
Infelizmente, Alfred tinha razão nas suas sombrias suspeitas.
Para Alfred, era motivo de real preocupação saber e sentir com tamanha acuidade que tal
antagonismo congénito existia entre ele e seu primo. Desde sempre que isso
o tinha incomodado de uma maneira muito profunda, mas de todas as vezes se comportara de modo
escrupulosamente polido e educado para com Jerome, deliberada e propositadamente
afável, tolerante e justo. E, no entanto, sempre tinha sido mais do que evidente que, mesmo durante
a sua infância, Jerome fora maliciosamente hostil para com Alfred,
que sentia um prazer cruel e quase diabólico em o perturbar, chocar e frustrar, mesmo nas coisas
mais simples e sem importância.
No entanto, quando o tio William adoptara Alfred, Jerome não fizera qualquer comentário. Nem
sequer escrevera a protestar. Não tinha revelado nem demonstrado qualquer
espécie de interesse. Tal atitude deixara Alfred confundido e admirado, pois sabia que uma só
palavra de desacordo por parte de Jerome teria feito com que o velho
Mr. Lindsey mudasse de idéias imediatamente. Alfred não conseguia, pura e simplesmente,
compreender a razão dessa atitude. Dorothea sugerira, então, que Jerome agia
dessa maneira porque não tinha interesse nem queria tomar parte nos assuntos e nas actividades do
Banco ou da comunidade, mas, embora não encontrasse outra razão
mais válida do que aquela que justificasse tal atitude de indiferença, Alfred não acreditava nela. Não
tinha Jerome sempre pedido a seu pai, e recebido, grandes
quantias de dinheiro? Não era ele extravagante, irresponsável e avarento? Então, como poderia ele
ser tão indiferente à adopção de seu primo? Alfred, como filho
adoptivo, partilhava igualmente com ele qualquer dinheiro ou propriedades, reduzindo, assim, a sua
herança. Não, não conseguia explicar a atitude do primo.
Se Jerome e Alfred tivessem alguma vez estado ligados um ao outro, se alguma vez tivessem sido
amigos, talvez Alfred pudesse compreender, de certa maneira. Mas Jerome
sempre tinha odiado, divertidamente odiado, o seu primo, tinha-o constantemente posto a ridículo e
insultado, rindo-se insolente da sua rectidão, da sua integridade,
da sua "consciência" dura como uma rocha, da sua piedade inflexível. Alfred, por seu lado, sempre
tinha lutado desesperadamente para conseguir aproximar-se do primo; tentara torná-lo mais
humano, dera longos passeios com ele, falara com ele durante horas a fio,
com insistência e acanhamento, tentando honestamente estabelecer entre ambos uma relação de
amizade; tinha-lhe escrito longas e freqüentes cartas durante o tempo
em que ele estivera no exército, e mesmo depois, e tinha escrupulosamente tentado criar uma
atmosfera de boa vontade e de respeito familiar.
Mas... Jerome tinha recebido todas as suas tentativas e todos os seus esforços com escárnio e
malevolência, tinha-se rido abertamente do "sentimentalismo" de Alfred,
tinha-o escarnecido e ridicularizado tanto em privado como em público. Não havia nada a fazer,
com semelhante carácter. Era demoníaco. Ultrapassava qualquer compreensão.
E, mesmo assim, foi só depois de muita luta e esforço que Alfred se rendeu e chegou à conclusão de
que Jerome era naturalmente mau e de coração duro, empedernido
perante as mais simples emoções humanas, arrogantemente desdenhoso de qualquer sentimento de
família... verdadeiramente desprezível, para o definir numa só palavra.
Como explicar, de outro modo, todo o seu repúdio pelas honestas tentativas de seu primo, e toda a
vergonhosa vida que levava? Como explicar, de outro modo, o seu
desprezo pelo próprio pai, o seu escárnio pela velha casa, a sua indiferença pelos assuntos de
família?
Tinha sido Alfred que entregara dinheiro a uma insistente senhora, uma quantia no montante de dez
mil dólares, pagos do seu próprio bolso, preferindo fazê-lo a provocar
qualquer perturbação ao seu tio William. Jerome nem sequer lhe pedira que o fizesse. A dama, de
Siracusa, tinha escrito ao tio William, e Alfred tinha interceptado
a carta. Mr. Lindsey estivera perigosamente doente nessa altura e Alfred tomara aquela decisão para
o poupar. Quando mais tarde informou Jerome, em Nova Iorque,
do que fizera, Jerome desatara às gargalhadas, num divertimento puro. Dissera a Alfred que ele era
francamente um idiota e que esperava que o primo tivesse recebido
qualquer gratificação pessoal por parte da dama em questão, em troca do dinheiro. Não havia nele
qualquer remorso, consciência, amabilidade ou decência. Quando Alfred,
chocado e abatido, lhe sugerira que muito provavelmente o filho dessa senhora era seu próprio
filho, Jerome encolhera simplesmente os ombros e fizera uma observação
obscena.
No entanto, Alfred tinha algumas consolações. O tio William gostava sinceramente dele e confiava
nele, também. Além disso, tinha uma aliada, forte e quase fanática,
na sua prima, Dorothea. Chegava a pensar muitas vezes que se Jerome
se afastasse definitivamente de casa, a vida seria, até, muito agradável. Quando este pensamento lhe
ocorreu, apressou-se a dominá-lo como se ele fosse indigno da
sua indestrutível lealdade para com toda a família e do seu forte sentido de justiça.
Apenas uma coisa o perturbava imensamente, deixando-o
triste e pensativo: porque é que Jerome o odiava? Ninguém mais
tinha por ele outro sentimento que não fosse afeição, respeito e
consideração. Tinha até feito a Jerome essa pergunta incómoda,
mas, como resposta, recebera apenas a habitual gargalhada de
desprezo e nada mais. No entanto, apesar de tudo isso, Alfred
continuava a escrever a seu primo com calma afeição, relatando-lhe tudo o que eventualmente lhe
pudesse interessar. Todavia
Jerome jamais se dignara responder-lhe. Alfred suspeitava que
ele nem sequer se dava ao incómodo de ler as suas cartas, e isso
perturbava-o, embora não o impedisse de continuar com aquela
correspondência para a qual nunca havia uma resposta na volta
do correio. A sua consciência nunca lhe permitiria agir de outro
modo.
Enquanto procurava manter-se sentado no carro, Jerome começou a pensar em todas estas coisas e
soltou uma gargalhada. Ninguém pareceu ouvir o seu riso no meio de
todo aquele temporal, mas Jim e o cão sentiram o prolongado estremecimento do seu corpo. Jim
tentou descortinar o rosto do amo no escuro, mas não conseguiu ver nada.
O criado inglês tinha os seus próprios pensamentos. Tinha acompanhado Jerome durante os últimos
três anos, e embora os seus salários tivessem a particularidade de
nunca serem pagos de uma maneira regular, a devoção de Jim para com Jerome não se alterara.
Trazia consigo a reverência de um verdadeiro criado inglês pela nobreza
autêntica, pelos senhores "finos" e descuidados. Além disso, sempre que Jerome tinha a bolsa cheia,
era pródigo em ofertas para o seu valete, e Jim jamais se esqueceria
de que, quando uma prolongada doença o retivera na cama durante muito tempo, fora Jerome que
cuidara dele com desvelada ternura e uma preocupação e afeição difíceis
de ultrapassar.
Jim não ficava horrorizado com as escapadelas do seu amo. Essas coisas eram de esperar de um
cavalheiro ainda jovem, e arranjava sempre maneira de o livrar de apuros,
com a sua agudeza de espírito e a sua inesgotável capacidade para resolver situações difíceis. Na
realidade, Jim gostava, até, da sua vida precária e imprevisível
com Jerome, e não a teria trocado por nada deste mundo, nem mesmo por um salário duas vezes
maior ou uma segurança e bem-estar duas vezes superior.
"Um homem tem de ter algum divertimento na vida! Isso é
que tem!", pensava ele, para consigo próprio. "E a vida com Mister Lindsey é tão alegre e divertida
como uma pantomima."
com Jerome, não havia nunca dois dias iguais. Nada daquela vida certinha e calma, com deveres
sempre regulares, tão maçadora e enfadonha para os que, como ele, tinham
um coração mais aventureiro.
Jim estava preocupado, agora; não por ele, mas por Jerome.
Perguntava a si próprio se o sobretudo de seu amo seria suficientemente quente e espesso para
repelir a neve e o vento. Os de "sangue azul" apanhavam sempre mais
doenças e indisposições que nunca afligiam os que possuíam uma fibra mais rija, como ele próprio.
Amaldiçoou o camponês por nem sequer lhes ter arranjado alguns
cobertores. Imaginava, com preocupação, que as finas botas de Jerome estariam provavelmente
todas molhadas, e que o seu amo poderia correr o risco de apanhar um
resfriado grave, ou mesmo uma pneumonia.
Jerome parecia ter adivinhado os seus pensamentos. (Ele que era sempre tão subtil e sensível.) Jim
sentiu que a sua mão enluvada lhe tocava o braço, apertando-lho
afectuosamente. O coração seco de Jim estremeceu, e o velho criado pestanejou de emoção. Que os
outros dissessem que Mr. Lindsey era "mau" e "cruel"! Loucos, loucos
é o que eles eram! Ora, os cabeças-duras não seriam nunca capazes de compreender o que
significava ser um verdadeiro cavalheiro. Mas ele, Jim, sabia muito bem! Durante
todo o tempo que prestara serviço, como criado, na América, nunca tinha trabalhado para um nobre
cavalheiro como aquele, um autênticogentleman!
Jerome aproximou-se mais do criado, colou a boca ao ouvido dele e gritou:
- No Inverno, este lugar é um verdadeiro inferno! "Sim, é um inferno!", repetiu Jim para si próprio.
Estava completamente entorpecido e enregelado. Mas não lamentava ter vindo. Ninguém melhor do
que ele seria capaz de tratar de Jerome no caso, mais do que provável,
de ele apanhar alguma doença com todo aquele frio. Franziu ainda mais o sobrolho e pensou:
"Que alguém se atreva a rondar a cama dele, que eu lhes mostrarei! Corro com eles todos, seja
quem for!"
De súbito, o carro guinou, vacilou perigosamente e deteve-se. O vento pareceu parar por breves
instantes.
O cocheiro gritou:
- Já cá estamos! No sopé da colina! Não posso ir mais longe!
Jim olhou à sua volta, incrédulo. Mas a escuridão continuava tão densa que não se conseguia
descortinar nada, e a neve
caía cada vez com mais intensidade. Sentia nas faces e na testa os seus beijos gelados e incessantes.
Quando tentou mover-se, sentiu que todo o seu corpo estava
duro como o ferro. Olhou para cima, desesperado. Lá muito ao longe, na direcção do céu, algumas
luzes brilhavam, entrecortadamente; desapareciam por instantes, para
voltarem a reaparecer segundos depois, como velas vistas à distância. Mas o pesado manto da noite
escondia tudo o resto.
Jerome esfregava o corpo e sacudia-se, praguejando de um modo obsceno. Jim obrigou o seu
próprio corpo a descer do carro, lentamente. Os pés... nem sequer os sentia.
Tacteou no escuro, à procura das malas. A pouca distância, ouviu o ganir fraco de Charlie. Pegou
nas malas e colocou-as no chão. Logo a seguir, embora continuasse
sem conseguir ver nada à sua volta, apercebeu-se de um restolhar e chiar de rodas. Era o carro que
se afastava na noite. Ele e Jerome ficaram sozinhos, sem conseguirem
ver-se um ao outro.
- Anda! - gritou Jerome. - Põe o teu braço à volta do meu. Malditas malas!
Num gesto brusco, tirou uma das malas das mãos do criado.
Jim jamais conseguiria esquecer aquela escalada longa e tortuosa através da neve, do vento e da
escuridão. Apenas o bater do braço de Jerome contra o seu o mantinha
em contacto com a vida. A cada passo que dava, afundava-se até aos joelhos; por vezes, escorregava
e caía na neve funda e tão fria que parecia queimar. No entanto,
a pouco e pouco, a neve foi-se tornando visível, em dunas brancas, e as luzes que brilhavam lá em
cima pareciam aproximar-se. Por fim, estavam tão próximas que se
podiam distinguir colunas amareladas acenando sobre a brancura da neve, e uma enorme massa
escura surgiu diante dos seus olhos. Caminhavam agora aos tropeções, através
de uma neve mais macia e sobre aquilo que devia ser, ao que parecia, a vereda que conduzia até à
casa. Enormes vultos negros dos pinheiros apareceram, agitados e
dobrados violentamente pela tempestade. Passo a passo, ofegantes, escorregando aqui, quase caindo
ali, soltando imprecações a cada instante, os dois homens conseguiram
percorrer o caminho até chegarem diante de uma enorme porta em arco. Pouco depois, já Jerome
batia nela com os seus punhos cerrados, chamando em altos gritos. Charlie,
refugiado dentro de um dos enormes bolsos do casaco de Jerome, começou a ladrar furiosamente.
Uma luz cintilou por detrás da pequena janela da porta, e ouviu-se o som de correntes a serem
retiradas. Logo a seguir a porta abriu-se, cautelosamente, e o rosto
de uma jovem apareceu, assustado e hesitante. Jerome limpou a neve da cara e gritou-lhe:
- Abre a porta, pelo amor de Deus, rapariga! Sou Mister Lindsey! Abre a porta, já disse!
Empurrou a porta com tanta força que a pobre criada foi atirada para trás, cambaleou, e quase se
estatelou no chão, tremendo.
Jim viu à sua frente uma enorme sala forrada a madeira, um chão de tijoleira vermelha, um imenso
relógio de pé que reluzia à luz quente de um candeeiro imponente,
e uma magnífica escadaria em madeira de carvalho.
"Exactamente como no meu velho país!", pensou ele, agradado e um pouco surpreendido.
Uma lareira ardia numa das paredes do fundo, com os seus enormes toros vermelhos e brilhantes, e
sobre ela estava dependurado um enorme retrato.
Jerome colocou o cão no chão, e logo este desatou a ladrar acintosamente para a rapariga, fazendo-a
recuar, a tremer de medo. Jim pousou as malas e olhou para o
fogo, longamente. Jerome estava a sacudir o casaco; tirou-o depois e bateu com os pés no chão para
fazer cair a neve que se acumulara em cima deles.
- Onde está Mister Lindsey, o meu pai? - perguntou.
A rapariga desapareceu rapidamente e em silêncio por uma porta à esquerda. Os dois homens
ficaram sozinhos. Sorrindo, Jerome voltou-se para o criado e disse:
- Bem, cá estamos, finalmente, em casa! Aquele lume parece excelente!
Caminhou até à lareira, e Jim apressou-se a segui-lo, ávido. As suas mãos estavam roxas e hirtas.
Estendeu-as para o calor que se desprendia do fogo. A bagagem abandonada
começava a encher de água o chão vermelho escuro. Charlie gania e saltitava em redor do dono,
tremendo,
erguendo para ele os seus olhos vermelhos num gesto de súplica
e quase adoração. Depois, correu pela sala, farejando desconfiado.
Jerome olhava à sua volta com aberta satisfação.
- Está tudo na mesma. Nada mudou. Deus do céu, estou contente de estar aqui, depois de tudo!
Ergueu os olhos para o retrato de uma mulher jovem e bonita que parecia sorrir para eles da parede,
por cima da lareira. O rosto alterou-se-lhe um pouco.
- É a minha mãe, Jim!
Jim olhou respeitosamente para o retrato.
"Que coisinha frágil e adorável que ela era! Nem um pouco parecida com Master Jerome!", pensou.
Uma porta do lado direito abriu-se e Jerome, de sorriso quente e afável, aquele seu sorriso tão
encantador, voltou-se
para ela, julgando ir ver aparecer o pai. Mas em vez dele, entrou na sala uma mulher muito jovem
que, ao ver os dois homens, estacou surpreendida, soltando uma exclamação
abafada, com a mão ainda no puxador da porta.
O sorriso desapareceu do rosto de Jerome, que ficou em silêncio, olhando fixamente a jovem.
- Sim? - murmurou ela. Depois, o rosto alterou-se-lhe.
- Oh! - exclamou. - Você deve ser Jerome. Não os esperávamos senão amanhã. Houve algum
engano? Mister Lindsey sabe que está aqui?
Jerome não gostou dos seus modos, demasiado altivos e orgulhosos, talvez um pouco reprimidos,
mas não afectuosos ou agradáveis. Não lhe respondeu. Charlie correu
para ela, ladrando ameaçadoramente. A mulher ergueu uma prega do seu pesado vestido e afastou-o
com um gesto brusco e desdenhoso.
Jim observou-a, de soslaio, e um relâmpago súbito pareceu iluminar os seus olhos de macaco.
"Deve ser esta a dama de que Mr. Lindsey me falou!", pensou. "Um belo exemplar, sem dúvida,
bem orgulhosa e autoritária!"
Charlie, indignado e assustado, correu a refugiar-se junto aos pés de Jerome, rosnando depois, do
seu refúgio seguro, para a jovem.
Ela avançou então, atravessando a sala, na direcção da lareira. com uma certa impaciência na voz,
repetiu:
- Mister Lindsey sabe que está aqui? Se não sabe, irei à sua procura imediatamente. Ele hoje desceu
para jantar.
Jim reparou, com agrado, que a voz dela era profunda e quente, com grandes potencialidades.
A mulher deteve-se junto da lareira e olhou para Jerome com um ar interrogativo, como se fosse já
dona dona e senhora daquela enorme mansão, e ele apenas um intruso
indesejável.
Jerome permaneceu remetido a um silêncio obstinado e insolente. Por fim, ela sorriu e os seus
dentes brancos cintilaram à luz
suave.
- Oh, desculpe! Sou Amalie Maxwell!
Jerome inclinou-se, numa vénia irónica. Depois, ergueu a cabeça e ficou a olhar para ela
directamente, num quase desafio. As sobrancelhas juntaram-se-lhe ainda mais,
num gesto de análise aberta e ousada. Ela já não sorria, mas correspondeu àquele olhar erguendo
por sua vez a cabeça, de maneira nenhuma acobardada, mas, bem pelo
contrário, desafiadora.
O fogo na lareira lançava a luz dançante das suas chamas sobre o par, e ouviu-se o ronco surdo do
vento na chaminé. A luz
revelava Amalie Maxwell completamente, e Jerome permanecia imóvel à sua frente. Mas... a sua
atitude de desprezo começou a desvanecer-se, e a pouco e pouco foi sendo
substituída por uma admiração fascinada.
"Meu Deus! Que rosto...! Que figura...! E tudo isto para aquele idiota aperaltado e enfatuado do
Alfred... aquele pedregulho enrugado e murcho!"
Amalie era alta; tão alta, na verdade, que os seus olhos ficavam quase ao nível dos de Jerome. Tinha
uma figura soberba, esguia, e no entanto cheia e arredondada,
habilidosamente envolta num vestido drapeado e tufado de veludo cinzento, iluminado aqui e ali, na
garganta e nos punhos, por um coral brilhante. Os pequenos botões
que desciam, numa fila apertada, do pescoço até à cintura, eram também de coral. O corpete basco,
justo e muito liso, subia e descia sobre um busto de formas maravilhosas
e delicadas, apertava-se depois amorosamente em redor de uma cintura perfeita, para a seguir
desaparecer nas pregas e dobras da saia. Os ombros eram suavemente arredondados,
sem uma angulosidade sequer; o seu porte, sem nada que se lhe apontasse, era digno de uma rainha,
e no entanto... tinha algo de flexível... de dócil...
Profundo conhecedor de figuras femininas, Jerome estava mergulhado em profundo espanto e
admiração. Muito lentamente, foi erguendo os olhos até encontrar os dela.
Amalie sorria, num sorriso sombrio e consciente.
"Queolhos!", pensou, admirado.
Eram muito grandes e de um tom de púrpura muito profundo, vivos e reluzentes, extravasando
paixão e inteligência, e nem por um pouco suaves e carinhosos, como deviam
ser os olhos de uma mulher. E depois, estavam rodeados de pestanas espessas, muito pretas e
pesadas. Acima dos olhos, uma testa branca e um par de sobrancelhas finas,
de um negro acetinado. O nariz era pequeno e direito, com narinas nervosas e trementes, e a boca
era grande e cheia, de um vermelho húmido. Apesar disso, era, no
entanto, uma boca um tanto ou quanto dura, demasiado dura, demasiado resoluta e decidida para
uma mulher.
Estudando-a como se ela fosse uma obra de arte e não um ser humano, Jerome observava-lhe as
linhas do rosto com ar crítico: ângulos fortemente marcados, direitos,
pele bastante pálida, embora translúcida.
Havia ali uma força demasiado dura, pensou; demasiado objectiva, demasiado consciente da vida.
Era, com toda a sua extraordinária beleza, o rosto de uma lutadora,
talvez até um pouco repelente pela sua rontalidade.
Decidiu que, embora ela fosse admirável, espantosamente
bela e quase inesquecível, não gostava daquela mulher. De facto, odiou-a à primeira vista. Ah, sim,
conhecia tudo sobre prostitutas! Mulheres moldadas pela dureza
da própria vida, desprotegidas, obrigadas a lutar por si próprias, não esperando nem oferecendo nem
uma quarta parte do que possuíam. Tinha-as visto em Londres,
Nova Iorque e Paris, prostitutas duras que sabiam o que queriam e se apoderavam do que quer que
fosse, cruel e friamente. Nunca as tinha admirado, embora se tivesse
utilizado delas com freqüência, e apreciasse a sua habilidade e sagacidade naturais e a total ausência
de ilusões. Um homem nunca se aborreceria com elas, e um homem
inteligente podia sempre conquistá-las. Eram excitantes. Eram infinitamente divertidas e
estimulantes. Mas... um homem do mundo nunca casaria com elas.
No silêncio que permanecia inquebrável, excepto o ruído rouco que o vento fazia na chaminé e o
latido enfraquecido e esporádico de Charlie, a voz dela ouviu-se rude
e áspera:
- Espero que goste do que vê, Jerome...
Jerome ficou a olhar para ela, fixamente. Mas Jim soltou uma risada abafada e escarninha. Ela nem
sequer condescendeu em notar a sua existência. Estendeu a mão,
rígida e firme, como um homem, e Jerome segurou-lha, depois de alguns momentos de hesitação
deliberada e evidente. A mão dela era grande e branca, mas inesperadamente
macia, e os dedos tinham um contorno suave. No dedo anelar da sua mão esquerda cintilava uma
esmeralda excepcionalmente bela.
"O anel da minha mãe!", pensou Jerome, sentindo que algo ardia dentro dele, como uma raiva
furiosa e surda.
Depois, ela sorriu de novo, e as linhas duras do seu rosto revestiram-se de uma espantosa doçura.
Abanou a cabeça levemente, num breve gesto de negativa. O seu cabelo,
espesso, negro e brilhante como o vidro, estava delicadamente puxado para trás em ondas largas,
apanhado depois num chignon que parecia repousar na raíz do seu pescoço
longo e branco, e a luz das chamas volteava sobre ele numa dança louca.
Jerome perguntava a si próprio onde é que vira aquele rosto, aquele cabelo, aquele busto, antes. Este
pensamento surpreendeu-o de novo e irritou-o, e também ele
abanou a cabeça, numa negativa muda. Estava enfeitiçado pela carta de seu pai. Era evidente que
não havia qualquer semelhança entre esta jovem e o retrato da sua
bisavó que estava pendurado na biblioteca! Tudo aquilo era um logro!
Numa voz insolente e lânguida, Jerome perguntou:
- Alguma vez esteve em Nova Iorque? Parece que me recordo...
Ela retirou a mão que, totalmente inconsciente, ele retivera durante todo aquele tempo. Depois,
disse:
- Não, nunca estive em Nova Iorque.
A porta trabalhada, à esquerda, abriu-se de súbito e Alfred apareceu. Avançou de mão estendida e
exclamou:
- Jerome! Valha-nos Deus! O teu telegrama dizia terça-feira. Houve algum erro? Oh, estes correios!
Deus do céu! Como é que conseguiste chegar aqui com este temporal?
Estás encharcado até aos ossos! Como estás, Jerome, meu rapaz?
Jerome voltou-se para ele, sorrindo facilmente. O velho Alfred, sempre o mesmo, cuidadosamente
efusivo na ocasião própria, franco e simples! Tinham decorrido três
anos desde a última vez que Jerome o vira, e isso fora por ocasião daquele lamentável caso da
exigente dama de Siracusa. Mas Alfred tinha mudado pouco.
Era um pouco mais alto do que Jerome, mas parecia mais baixo porque o seu corpo, embora direito
e firme, era bastante mais largo. O colarinho engomado, de linho
branco, e a gravata preta e larga pareciam um pouco apertados de mais para o seu pescoço forte.
Vestia um fato preto e discreto, de corte perfeito e hábil, mas demasiado
severo. Tinha um rosto largo, mas anguloso, desprovido de qualquer cor, embora firme, resoluto e
aberto. Um observador atento verificaria que era também um rosto
quase inexpressivo.
Muitos chamavam-lhe um "bom rosto cristão que revela as suas virtudes", mas Jerome achava-o
excessivamente estúpido e sem brilho. Os pálidos olhos cinzentos, entre
pestanas ralas, não tinham uma centelha de fulgor. Jerome achava que eles se pareciam com os
berlindes de ágata com que costumava brincar na sua juventude, pois
eram igualmente raiados de laivos de um castanho amarelado. Revelavam um espírito sem
subterfúgios nem compromissos, e também muito pouca imaginação. O nariz tinha
uma forma normal, curto e largo, com narinas grossas e sem sensibilidade. A boca, fina e grande,
traía, para além de uma integridade absoluta, uma tendência para
o fanatismo e a obstinação. Jerome chamava-lhe freqüentes vezes "puritano ascético e infernal", e
aquela descrição, apesar de malévola, assentava-lhe perfeitamente.
Havia naquele homem uma dignidade fria e uma resistência inabalável.
Quanto ao resto, Alfred tinha o cabelo fino, de um castanho dourado, que usava muito curto acima
das têmporas largas, sobre uma cabeça redonda e grande. Detestava
adornos pessoais de qualquer espécie, e a sua única jóia era um excelente alfinete de gravata, com
uma pérola magnífica, os botões de pérola que
usava nos punhos da camisa e uma elaborada corrente de ouro, para o relógio, estendida sobre o
colete de cetim preto.
Sentia um prazer real, embora reservado, por ver o seu irmão adoptivo e primo. Pegou com
entusiasmo na mão deliberadamente flácida de Jerome, depois de vencer uma
visível hesitação. Sentia-se sempre estúpido e pouco à vontade na presença de Jerome, e tentava a
todo o custo compensar isso com uma afabilidade correcta mas pouco
habitual nele.
- Deixa-me olhar para ti! - disse ele. - Tens um ar estupendo, depois daquela horrível viagem no
meio do temporal. Como é que conseguiste chegar até aqui?
- Numa carroça aberta! - respondeu Jerome, com ar quase indiferente.
Verificando que Alfred murmurava palavras de consternação, disse ainda:
- Não interessa, agora. Já aqui estamos e isso é o mais importante.
Imediatamente Alfred se remeteu a uma atitude de reserva, ainda que polida.
- Este é o teu criado, suponho, de quem nos falavas no teu telegrama. Os vossos quartos estão
prontos...
Interrompeu-se e ficou estático. Só então reparava no cão, que recomeçara a ladrar e a rosnar.
- Um cão? - disse, com uma certa insegurança na voz. Espero...
- Oh, não te preocupes! Ele está habituado a estar em casa e não faz indiscrições... de nenhuma
espécie - retorquiu Jerome.
Miss Maxwell riu, suavemente.
Lembrando-se dela, no meio da sua confusão, Alfred voltou-se e disse:
- Amalie, meu amor, este é o meu... o meu primo, Jerome Lindsey.
Ela inclinou a cabeça, sardonicamente.
- Já nos apresentámos, Alfred!
- Miss Maxwell, a minha noiva! -juntou Alfred, de modo frouxo e confuso.
Um rubor súbito encheu-lhe o rosto pálido. Como sempre, Jerome continuava a fazer com que ele
se seritisse um rústico imbecil. O primo fez uma ligeira vénia na direcção
da jovem.
Num tom formal, Alfred voltou-se para a noiva e disse:
- Amalie, queres fazer o favor de chamar um criado para que leve as malas e o criado de Jerome
para os quartos que lhes estão destinados?
Amalie caminhou na direcção da porta, à direita, e Jerome
observou-a com uma admiração furtiva. Que porte que tinha, nobre e composto, e no entanto jovem
e cheio de uma vivacidade grácil e rápida! Depois, ficou aborrecido
consigo mesmo. Aqueles dois estavam já a assumir os papéis de dono e dona da velha mansão dos
Lindsey.
"bom, depressa alteraremos este estado de coisas!", pensou, sombrio e carrancudo.
- Queres subir também, para mudar de roupa? - perguntou Alfred.
Jerome olhou para as suas botas encharcadas e para as bainhas ensopadas das suas calças. Depois,
retorquiu:
- Não. Quero ver o meu pai, primeiro.
Atirou o chapéu, o casaco e a bengala na direcção de Jim, que os apanhou no ar com uma destreza
segura. Depois, pegou em Charlie, colocou-o debaixo do braço e caminhou
na direcção da porta que dava para a biblioteca.
- Vais levar o cão contigo? - perguntou Alfred, com um ar de desaprovação, pois detestava animais,
fossem eles quais fossem.
- Porque não? É evidente que levo! - retorquiu Jerome, sem interromper o seu caminho.
O rubor aumentou ainda mais nas faces de Alfred, mas deixou que Jerome abrisse a porta e entrasse
à sua frente na biblioteca.
Capítulo quarto
A imensa sala estava quente e confortavelmente obscurecida; aqui e ali, a penumbra era
interrompida pelo clarão suave de um candeeiro, reflectindo-se no carvalho
escuro e antigo. As paredes altas estavam totalmente cobertas de livros. Os pés de Jerome
afundaram-se na espessa carpete. Diante da enorme lareira de mármore preto
estava estendido um imenso tapete de pele de urso branco, e sobre ele agrupavam-se várias
poltronas de couro vermelho e preto, com banquetas para os pés, a condizer.
As janelas, altas e largas, estavam, agora, completamente tapadas com pesados cortinados de
damasco carmesim. Sobre a lareira encontrava-se pendurado o famoso retrato
da bisavó de Jerome. Era uma sala austera mas acolhedora ao mesmo tempo, cheia de paz e de
dignidade, e a sua atmosfera era acentuada pelo clarão de um enorme tronco
que ardia na lareira.
Diante do fogo estavam sentadas duas pessoas, num silêncio sociável, com os rostos virados para a
porta. Uma delas era um
cavalheiro de elevada estatura, muito magro e bastante idoso; uma bengala repousava-lhe nos
joelhos frágeis. A outra era tão pequena que mais parecia uma criança
muito jovem ainda; mas quando se levantou, arrastando-se penosamente da poltrona onde se
encontrava, percebia-se que era corcunda, e que devia ter aproximadamente
catorze anos de idade.
O homem mais velho vibrava visivelmente de uma excitação ansiosa. Numa voz calma, mas
surpreendentemente forte, exclamou:
- Jerome! Jerome! Meu rapaz!
Estendeu ao jovem uma longa mão branca, de forma delicada.
Jerome dirigiu-se-lhe rapidamente e agarrou na mão estendida. com naturalidade e sem qualquer
espécie de afectação, inclinou-se para o pai e beijou-o na face magra
e encovada.
- Papá! - exclamou.
Não conseguiu pronunciar qualquer palavra mais, e os dois ficaram a olhar um para o outro,
fixamente, sorrindo, de mãos ainda apertadas.
Ao fim de alguns instantes, Mr. Lindsey disse, com voz suave:
- Meu querido rapaz! Como me sinto contente por te ver outra vez! Senta-te a meu lado, por favor.
Quero olhar para ti.
Jerome olhou à sua volta, em busca de uma cadeira, e deparou então com os olhos graves e escuros
do jovem Philip Lindsey, o filho de Alfred. Parou, por momentos,
e disse-lhe:
- Estás mais crescido, Phil.
Tentou dar à sua voz um tom mais afável. Não sentia qualquer antagonismo para com o rapaz, mas
apenas uma piedade desconfortável e uma aversão que não conseguia
dissimular. Uma vez, alguém dissera que Philip se parecia com ele, e sentira nessa altura uma fúria
raivosa. Onde é que estava a semelhança? Naquele pequeno rosto
branco, tão encovado, onde pairava uma expressão de quietude quase espiritual? Talvez os olhos
fossem parecidos e, egoistamente, Jerome concedia-lhes esse favor,
pois eram grandes e pretos, brilhantes de inteligência, quase apagando com o seu brilho intenso as
linhas delicadas do rosto. A testa era invulgarmente alta, também,
de uma extrema brancura deixando adivinhar um espírito pertinaz. Por outro lado, o cabelo de
Philip era espesso, negro e encaracolado como o de Jerome. Mas... para
além disso, não havia, de certo, qualquer traço de semelhança entre ambos! Quem é que seria capaz
de olhar para aquele corpo deformado, envolto num fato cinzento,
sem sentir um estremecimento de repugnância?
Jerome procurava sempre desviar os olhos daquela disforme
corcunda nas costas do rapaz e, como que numa desculpa descuidada, assumia sempre uma jucunda
afabilidade quando
falava com Philip.
- Obrigado... tio Jerome! - respondeu-lhe Philip com dificuldade, recordando-se que apenas a
formalidade da lei fazia de Jerome seu tio mas que, na realidade, eles
eram apenas segundos primos.
Ao responder, um ligeiro rubor cobriu a pele branca das suas faces, e as mãos, frágeis e pequenas,
apertaram-se com força, num súbito nervosismo.
Jerome puxou uma cadeira para junto do pai, e sentou-se, esquecendo-se imediatamente do rapaz.
Philip afastou-se, vacilante, para se sentar depois num canto mais
afastado e escuro.
Mr. Lindsey estudou o rosto do filho e soltou um suspiro profundo ao reparar na má cor das suas
faces e nas manchas e sinais de dissipação que trazia bem marcados
debaixo dos olhos duros.
Depois, disse numa voz suave:
- Estás com bom aspecto, Jerome. Diz-me... sentes-te realmente bem?
- Oh, eu estou sempre bem! - respondeu Jerome, despreocupadamente. - E o papá?
Mr. Lindsey baixou os olhos para as suas mãos deformadas pela artrite e para as pernas frágeis e
sem forças. Depois, disse:
- Isto já não me incomoda muito. Mas... tenho, por vezes, dificuldade em movimentar-me. No
entanto, não me queixo!
E sorriu para Jerome.
Não havia qualquer semelhança entre os dois. Mr. Lindsey tinha o rosto suavemente pálido dos
naturais da Nova Inglaterra e, na verdade, a sua mãe nascera em Boston.
A sua era a face magra e austera da Nova Inglaterra, intelectual e reservada, nobremente digna, com
grandes olhos de um azul claro, cheios de uma nobreza astuta.
O cabelo branco caía-lhe liso do crâneo ossudo, acima de umas têmporas angulosas e largas e de
umas orelhas de forma regular. Outrora, tinha sido totalmente louro.
O nariz era estreito e de contorno romano, e a boca, grande e direita, exprimia suavidade, timidez e
humor. Tinha sido a sua avó paterna que dera, tanto a Jerome
como a Philip, o aspecto moreno, quase latino. Não fora dessa dama que Mr. Lindsey herdara
aquela calma e beatitude, a sua coragem suave e o seu temperamento objectivo.
Mantinha ainda entre os seus dedos secos e finos a mão nervosa e cheia de jóias do filho, parecendo
pouco inclinado a libertá-la.
- Estou contente por te ver de novo em casa, Jerome! disse, com voz suave.
Em casa! Jerome olhou para o fogo. Como ele sempre odiara a calma paz e tranqüilidade daquele
enorme casarão, tão isolado e longe de tudo, a ordem imutável e permanente
que ali prevalecia, a atmosfera contemplativa que parecia encher todos os cantos daquela biblioteca!
Aquilo sufocara-o.
Agora, deixava o olhar passear à sua volta, vagueante. Naquele preciso momento, sentia-se
confortável e seguro, e a casa surgia-lhe acolhedora como um abrigo, um
refúgio. O rosto endureceu-se-lhe. Aquela era a sua casa, e estava, agora, cheia de intrusos. Ela
seria, mais tarde, a herança de um homem detestável e sem imaginação,
de uma prostituta e de um miserável aleijado! Não, não poderia nunca suportar aquilo! Tinha de pôr
ponto final naquela situação, o mais rapidamente possível.
Desejava ele viver ali, entre aqueles pinheiros, naquela imensa e solitária colina, tendo por
companhia apenas o vento e o lume da lareira? Pretendia ele enterrar-se
ali, tendo apenas uma maldita vilória como divertimento, ficando a olhar eternamente para aqueles
livros, caminhando todos os dias pelos campos desoladoramente vazios,
olhando através das janelas do solário e comendo naquela infindável sala-de-estar, toda forrada a
painéis de madeira e reluzente de pratas antigas? Quereria ele
aquela paz eterna, onde o tempo não passava, aquela pesada austeridade e aquela rotina insípida que
lhe pesava nos ombros?
Algo pareceu contrair-se dentro dele, com uma depressão e uma repulsa que lhe eram familiares.
E contudo... aqueles três seres repelentes e estranhos não poderiam continuar a viver ali, depois da
morte de seu pai! Isso, nunca!
Sentiu que um ódio antigo lhe subia até à boca... como um vómito.
Ergueu os olhos. O pai olhava-o fixamente, com ar estranho, como se estivesse a ler os seus
pensamentos. O velho parecia possuir o dom desconcertante de adivinhar
as emoções das outras pessoas. Os calmos olhos azuis de Mr. Lindsey tornaram-se mais escuros,
como se uma infinita tristeza os tivesse invadido.
Perguntou:
- E a tua pintura, Jerome, como vai? Jerome sorriu, com esforço.
- Vai bem! - respondeu. - Não vendo nada, como sabe. Mas também não quero vender os meus
quadros. Dou-os aos meus amigos, como sempre. A propósito, trouxe dois comigo:
um para si e outro para... para Alfred, como presente de casamento.
O seu sorriso tornou-se desagradável.
- Trouxe também a miniatura da minha mãe, de onde fiz o retrato. Verá tudo mais tarde.
Depois, com ar ausente, disse ainda:
- Nunca gostei daquele retrato da minha mãe... aquele que está na sala de entrada.
A porta abriu-se e Alfred entrou, acompanhado de Amalie. Alfred deteve-se à entrada, e olhou longa
e perscrutadoramente para o tio e para o primo, sentados muito
próximos um do outro, junto da lareira. Depois, como que afastando um pensamento desconfortável
e pouco digno de si, ergueu a cabeça e seguiu Miss Maxwell, que se
aproximava já dos dois homens. Jerome ergueu-se, com deliberada hesitação, e ofereceu-lhe uma
cadeira. Ela sentou-se, com graciosidade, agradecendo-lhe o gesto de
delicadeza com uma ligeira e irónica inclinação de cabeça. Mas nem sequer olhou para ele.
Começou a olhar para as chamas, com um ar de satisfação espelhado no rosto,
como se estivesse sozinha, deixando Jerome de pé, a seu lado, quase espumando de cólera.
Alfred, aproximando-se, disse:
- O teu criado, Johnson, disse-me agora mesmo que tu não jantaste, Jerome. Por isso, mandei que te
trouxessem uma refeição ligeira, aqui, para a biblioteca. Está-se
mais confortável, junto do lume!
- Foi muito amável da tua parte! - retorquiu Jerome, polidamente. - Mas prefiro tomar apenas um
uísque com soda!
Alfred pareceu ignorar as suas palavras e perguntou:
- Tens a certeza de que não queres mudar de roupa antes de jantar?
- Tenho assim um ar tão desgraçadamente sujo? - perguntou Jerome por sua vez.
Alfred contraiu os lábios pálidos, apertando-os com força um contra o outro.
- Não, não, certamente que não! - retorquiu.
Jerome voltou a sentar-se ao lado do pai. Alfred, a quem um ligeiro rubor invadira de súbito as
faces, remexeu no lume. Amalie continuava a olhar para as chamas
com agradável abstracção. Mr. Lindsey, apercebendo-se do constrangimento que se estava a abater
sobre eles, tirou o relógio do bolso e lançou-lhe uma olhadela.
- São quase nove horas! - disse, depois. Sem mexer a cabeça, Amalie disse lentamente:
- Philip, não achas que são horas de ires para a cama? Todos se tinham esquecido de Philip, que se
encolhera longe
do grupo, na semi-obscuridade de um canto da sala. Mas à voz e à
pergunta de Amalie, ele ergueu-se e aproximou-se respeitosamente do lume. Inclinou-se diante de
Mr. Lindsey e de Jerome, e depois diante do pai e de Amalie.
- Boa noite... avô. Boa noite... tio Jerome. Boa noite, papá. Boa noite, Miss Maxwell.
Jerome esboçou um sorriso irreprimível ao ouvir a ordem pela qual Philip enumerara os nomes, e
olhou para ele com mais interesse. Então, aquele pobre corcunda acusava
também com desagrado a presença daquela mulher? Mas, para sua grande surpresa, Philip olhava
naquele momento para Amalie com uma expressão curiosa... uma expressão
suavizada e ansiosa. Ela ergueu a mão e tocou-lhe o braço magro; como que por puro instinto, ele
aproximou-se mais dela. Mesmo sentada como estava, os seus olhos
cor de púrpura ficavam à altura dos do rapaz, e o brilho que neles surgiu era estranhamente gentil e
compreensivo.
- Boa noite, querido Philip - disse ela, com doçura. Puxou-o para si com uma afeição natural e
beijou-lhe a face
transparente. Ele apoiou-se ao ombro dela, por um breve momento de timidez; depois, inclinou-se
de novo diante de todos e saiu silenciosamente da sala. Amalie ficou
a olhar para ele, com uma expressão pensativa, indecifrável. Por seu lado, Alfred fitava atentamente
Amalie, e de súbito os seus olhos pálidos de âmbar pareceram
relampejar por instantes numa paixão terrível e reprimida.
Reparando naquele olhar, Jerome disse para si próprio:
"bom, bom, então é por isso!"
De súbito, pareceu lembrar-se de mais alguém e perguntou:
- Onde é que está a minha irmã, Dorothea? Foi Mr. Lindsey quem lhe respondeu:
- Dorothea está retirada, no leito, com febre e gripe, lamento dizê-lo. Ontem insistiu em descer até à
cidade, e o tempo estava muito mau. Mas, apesar de doente,
não tenho dúvida nenhuma de que está ansiosa por te ver.
- Eu já mandei dizer a Dorothea que chegaste, Jerome disse Alfred.
Depois, voltando-se para o velho Mr. Lindsey, continuou:
- Tem razão, senhor. Ela pediu para ver Jerome, depois dele jantar.
com aquela nova acuidade por tudo o que se relacionava com a sua família, Jerome reparou que o
olhar que Alfred dirigia a Mr. Lindsey não continha qualquer espécie
de hipocrisia, mas antes uma afeição grave e reverente, e que os seus modos afáveis para com o
velho eram provocados por uma consideração genuína e solícita, e pelo
mais profundo respeito. Mas Jerome não
ficou impressionado com isso. Anos antes, ele quase apreciara aquela ternura de Alfred por seu pai,
e até se tinha sentido aliviado por isso, já que tal atitude
o libertava de qualquer responsabilidade, permitindo-lhe seguir o seu próprio caminho, certo de que
o pai estava entregue a mãos adequadas e protectoras. Mas agora
sentia dentro de si uma raiva secreta e escondida. Algo como o ciúme parecia queimar-lhe as
entranhas numa fúria de ódio quase insano. Toda a sua vida se sentira
orgulhoso por ser "completamente objectivo" na sua atitude para com os outros, mas, como quase
todos aqueles que disso se orgulham, ele era, invariavelmente, vítima
das suas próprias emoções vergonhosas.
No seu íntimo, ria-se com desdém e sarcasmo de Alfred, que ajeitava, naquele momento, as
almofadas atrás de Mr. Lindsey. Um homem a observar outro homem com a vigilância
e a astúcia de um cão. Como que pressentindo as reacções do seu dono, Charlie, que se encontrava
nos joelhos de Jerome, recomeçou a rosnar. Mr. Lindsey estendeu
a mão e afagou a sedosa cabeça do animal, falando-lhe com voz calma e sussurrante. Depois, o
velho deixou-se cair para trás, dirigindo ao sobrinho uma palavra de
agradecimento. Em seguida, ficou a olhar para ambos com franca afeição, deixando que os olhos
vagueassem de um rosto para o outro, como se sentisse segurança e continuidade
à sua volta. Só quando o seu olhar caiu sobre Amalie, pareceu estreitar-se por momentos; mas
quando ela lhe sorriu, ele retribuiu-lhe o sorriso.
Uma criada entrou com um enorme tabuleiro de prata, sobre o qual se encontravam um bule de chá,
também em prata, açúcar e creme, e um magnífico pedaço de empadão
de carne. Jerome estendeu um guardanapo branco sobre os joelhos e começou a comer com cândido
apetite, rindo e falando ao mesmo tempo com o pai, com ar despreocupado
e quase feliz.
- Já deve saber que cheguei na pior tempestade de neve desta época! - disse ele. - Diabos levem essa
gente dos correios... Fazerem um erro destes!
- Eles raramente cometem erros! - afirmou Alfred, com dignidade. - Não sou capaz de compreender
o que aconteceu. Hei-de ver o que se passou dentro de alguns dias.
Jerome encolheu os ombros, e retorquiu:
- Dá-lhes os meus cumprimentos, e já agora aproveita para lhes dares a reprimenda que merecem!
Reparou então que Amalie estava a olhar para ele, estudando-o, com um sorriso frio. Era como se
ela compreendesse tudo quanto se passava dentro dele, o seu egoísmo,
o seu brutal desrespeito pelos outros, a sua indiferença, todas as suas
loucuras, leviandades e crueldades. Parou de comer e ficou a olhar para ela, malevolamente.
Ela não se acobardou com aquele olhar. Lânguida, ergueu a mão e tocou o camafeu de coral que
trazia preso à garganta, com os seus dedos longos e brancos.
"Somos os dois da mesma espécie!", parecia ela dizer-lhe, com os olhos cintilando entre as pestanas
semicerradas. "compreendemo-nos bem um ao outro."
Ele voltou ao empadão de carne, odiando-a com raiva renovada.
"Ah, minha bela prostituta!", disse para si próprio. "Veremos. veremos! com que então, gozas com a
perspectiva de te tornares dona da casa de meu pai... da minha
casa, não é verdade? Queres criar o teu império sobre os criados, e dirigir e governar e dar ordens,
não? Veremos...! Veremos...! E bem cedo! Prometo-te!"
Amalie sorriu ligeiramente, e voltou o seu belo rosto par a o lume.
Satisfeito por fim, Jerome ordenou que lhe retirassem o tabuleiro. Pediu uísque, e Alfred, sem fazer
qualquer comentário, deu ordens para que lho trouxessem. Jerome
encheu um pequeno copo e deitou um pouco de soda dentro do líqüido âmbar. Depois, deteve-se por
instantes, como hesitando. Por fim, perguntou:
- Ninguém me quer fazer companhia?
Para a sua enorme, incrédula surpresa, Amalie disse tranqüilamente:
- Eu quero... obrigado! E estendeu a mão.
Jerome afastou dela os olhos e fixou-os em Alfred, com um esgar irónico e desagradável. O primo
estava boquiaberto e a sua pele ganhara, de súbito, um tom sulfuroso.
Mr. Lindsey pegou em Charlie, colocou-o sobre os seus joelhos e começou a afagá-lo. Era como se
não tivesse ouvido nada do que ali fora dito.
- Comprazer! - disse Jerome.
Encheu outro copo, esperando que Amalie protestasse com a quantidade; mas ela não disse uma
palavra até o copo estar quase tão cheio como o dele.-Nessa altura, murmurou
qualquer coisa de forma quase inaudível. Ele acabou, então de encher o copo com soda. com um
agradecimento delicado, ainda que frio, ela recebeu o copo das suas
mãos, levou-o aos lábios e sorveu um pouco do líqüido, com um agrado visível.
Jerome lançou a Alfred um olhar acompanhado de um sorriso virulento. Mas Alfred, imóvel na sua
cadeira, não fez um
único gesto, nem proferiu uma só palavra que fosse. O rosto mantinha-se-lhe impenetravelmente
fechado. Jerome recostou-se, numa atitude de evidente prazer.
- Excelente uísque! - comentou. - Não sabes o que perdes, Alfred, com a tua mania do chá.
- Perco, também, muitas outras coisas! - replicou Alfred, rígido, e numa voz abafada.
- E todas elas agradáveis! -disse Jerome. Calou-se por momentos, e depois perguntou, incisivo:
- Não é da mesma opinião, Miss Maxwell? Ela olhou-o directamente e respondeu:
- Sim, na verdade!
"Será que ela não possui um mínimo de discrição?", perguntou Jerome a si próprio. "Será que nunca
ninguém lhe disse que as senhoras que se prezam não bebem uísque,
ou quaisquer outras bebidas espirituosas, nem sequer sozinhas, e muito menos na presença de
cavalheiros?"
Ela não era nenhuma louca; mas não poderia, pelo menos, fingir um pouco de decoro, um pouco de
dignidade e nobreza, quanto mais não fosse para seu próprio bem, isto
é, para bem das suas intenções e perspectivas? Estaria ela a tentar, deliberadamente, desiludir o
enfatuado Alfred? Pretenderia ela aliená-lo e desgostá-lo? Ou...
saberia ela que os tentáculos que lançara sobre ele eram demasiado fortes para que algo os pudesse
abalar, e que podia, portanto, com impunidade, lançar a sua desvergonha
sobre o seu rosto puritano? Que espécie de criatura era aquela, totalmente destituída de qualquer
refinamento e decência? Era ainda pior do que uma verdadeira prostituta,
conhecida por todos, pois essas, pelo menos, fingiam algumas maneiras e um comportamento mais
de acordo com as circunstâncias, quando viam que isso era o melhor
para elas. Aliás, pelo ar dela, e pelo evidente prazer com que saboreava a bebida, o uísque não lhe
era estranho. Bebia-o, apreciando-o como um homem, ousadamente,
diante dos olhos do velho Mr. Lindsey.
- Acha que o uísque é um digestivo, Miss Amalie? - perguntou Jerome, com uma delicadeza
forçada.
Sentiu, mais do que viu, o súbito movimento de surpresa de Alfred.
- Sim, e bastante eficaz! - retorquiu-lhe ela.
- Torna a vida suportável - disse Jerome.
- Quase possível de ser vivida - retorquiu-lhe Amalie, no mesmo tom de voz.
- Mas deve ser tomado com regularidade, para que surta mais efeito - continuou Jerome, malévolo.
Ela afastou o copo dos lábios e volveu o brilho purpúreo dos
seus olhos para ele. Neles, Jerome leu um desafio aberto e consciente.
- Isso não sei! - disse Amalie, muito calma. - Mas sem dúvida que o senhor me poderia falar sobre
tais qualidades com mais conhecimento.
Mr. Lindsey ergueu a cabeça e olhou lentamente primeiro para o filho e depois para a jovem. As
suas finas sobrancelhas cinzentas franziram-se por breves instantes.
Jerome disse ainda:
- Nesse caso, não sente necessidade de escapar às exigências da vida, com muita freqüência, não é
verdade, Miss Amalie?
Ela olhou-o em silêncio e os lábios curvaram-se-lhe.
- Não sou cobarde! - retorquiu. - Mas... outros há que precisam de fugir delas constantemente. Não
é verdade, Mister Lindsey?
Jerome não respondeu. Rolou, devagar, o copo entre os dedos, e olhou para Alfred. Encontrando-lhe
o olhar perturbado, abriu a boca num sorriso aberto, mas silencioso.
Alfred retesou-se na sua cadeira; os olhos, fixos em Jerome, semicerraram-se, deixando perceber
que também ele se poderia tornar friamente violento e rude quando
isso fosse necessário. Todo o seu intenso desprezo, todo o ódio involuntário e reprimido que sentia
pelo primo, cintilaram por momentos no seu rosto, como um relâmpago.
"Diabos te levem!", pensou Jerome, não receando aquele olhar, mas antes devolvendo-o com
virulento desdém. "Não estou a insultar a tua amada, de graça. Estou só
a tentar revelar à tua estupidez toda a extensão do seu despudor."
Numa voz calma, Mr. Linsey disse:
- Nunca apoiei essa tola e absurda convicção de que as mulheres são diferentes da outra metade da
humanidade. A mulher, gerada a partir do homem, partilha das suas
tendências. E depois, o homem nasce da mulher. Se Miss Amalie deseja, de vez em quando, um
copo de uísque ou de outra bebida qualquer, isso é absolutamente com ela,
e desejo-lhe que obtenha todo o prazer que puder. Mudei de opinião, Jerome! Acho que me juntarei
a ti e a Miss Amalie, num brinde ao casamento que em breve se realizará.
Os seus modos eram firmes, frios e imperativos. Olhou fixamente para Jerome, e em seguida
pousou os seus olhos azuis em Alfred, e naquele olhar lia-se uma certa
censura aristocrata. Jerome, de súbito silencioso, encheu um copo para o paie estendeu-lho com
uma vénia respeitosa. A sua respiração tornou-se um pouco mais rápida.
Num gesto lento, ergueu o copo.
- Ao meu querido filho, Alfred, e a uma senhora encantadora e compreensiva! - disse, inclinando a
cabeça na direcção de Amalie, cujo rosto se transformara, ficando
de súbito triste e fatigado.
- A um casamento muito feliz! - disse Jerome, galante e sorrindo abertamente para a jovem, e em
seguida para o pai.
Ele e seu pai beberam, então, ouísque. Numa voz forçadamente calma, Alfred disse:
- Pai... sabe muito bem que o médico lhe proibiu bebidas alcoólicas...
Serenamente, Mr. Lindsey retorquiu:
- Há alturas em que um homem deve beber pela sua alma e por outras coisas de igual modo
importantes.
Jerome levantou-se e curvou-se numa vénia profunda diante de todos, dizendo:
- Agora, se me desculpam, acho que devo ir ver a minha irmã. Temos muitas coisas a discutir.
Fez um silêncio intencional, e depois continuou:
- Afinal de contas, já não nos vemos há muito tempo! Amalie aproximou de novo o copo dos lábios.
Os seus olhos
estavam quase negros, à luz fraca do candeeiro.
- Dê-lhe os meus cumprimentos, por favor - disse. - E diga-lhe, peço-lhe, que lhe desejo as
melhoras... e um prazer muito grande nas discussões que tiver consigo!
Capítulo quinto
Jerome subiu a grande escadaria de carvalho, assobiando baixinho e de modo abstracto, afagando a
cabeça do cão, que levava enfiado debaixo do seu braço direito.
Sempre desprezara a severidade daquelas salas sombrias e o aspecto soturno e maciço daquela
escadaria; mas, com a nova consciência que dele se apoderara, começou
a admirar a atmosfera elisabetana que se desprendia de tudo aquilo, a sua grave dignidade e força. O
seu gosto sempre preferira coisas mais delicadas e airosas,
ultra-refinadas e de certo modo excêntricas, e sempre achara a solidez da velha casa, que os seus
bisavós tinham construído, algo de opressivo e demasiado pesado.
Mas agora a casa dava-lhe uma sensação de segurança apesar da sua soturnidade, revelava-se-lhe
agradável apesar da sua escuridão e do seu aspecto maciço. Era-lhe,
assim, perversamente querida, e o novo sentimento de ciúme e de raiva que nele crescia fazia-o
olhar à sua volta de sobrolho carregado e nariz franzido.
Não! Nenhum estranho haveria de viver dentro daquelas salas, nenhum estranho haveria de reinar
sobre aquela mansão que lhe pertencia! Pensou em Alfred, empedernido
e enfatuado, e na sua "prostituta", e a sua face tornou-se quase horrorosa à luz difusa do candeeiro.
Eram ambos estranhos, ambos intrusos. Então, eles queriam encher
a velha casa de seu pai com fedelhos bastardos, não era? Não, não haveriam de o conseguir
enquanto ele, Jerome Lindsey, o pudesse impedir, enquanto ele, Jerome Lindsey,
tivesse uma palavra a dizer.
Estaca, de súbito, no segundo patamar. Seria que ele tinha, realmente, ainda uma palavra a dizer?
De certo que sim! O pai conhecia-o bem, conhecia a sua natureza
volúvel demasiado bem para o ter levado a sério quando declarara que não queria nada daquela
casa, e que nada o convenceria a viver ali! Na verdade, ele próprio
desprezava os caprichos do seu temperamento e ficava sempre obscuramente aborrecido quando
alguém o tomava à letra, em especial quando, passado pouco tempo, se tornava
demasiado inconveniente ou quando mudava de opinião.
No entanto, não poderia dirigir-se a seu pai e dizer-lhe timidamente:
- Espero que não me tenha levado demasiado a sério! Afinal de contas, eu falei sem pensar, quando
era jovem e estúpido.
Não, não poderia fazer isso! Era estupidamente embaraçoso. E, mesmo agora, não sabia com
exactidão aquilo que queria. Sabia apenas que, em vez de desprezar Alfred
e de o ignorar com uma certa indulgência, agora odiava-o com todas as forças e sentia dentro de si
uma poderosa repulsa para com o primo. Embora gostasse de analisar
os outros e fosse bastante subtil e astuto quando se tratava de avaliar e dissecar as suas naturezas,
nunca tinha, em boa verdade, conhecido nada a respeito de si
próprio.
Encontrava-se agora no cimo da escada e, encostado contra o forte corrimão de carvalho, olhou para
baixo, para a enorme sala de entrada francamente iluminada. Era
muito estranho, mas recordava-se naquele exacto momento de um texto dos seus tempos de escola:
"Aquele que não tem qualquer espécie de poder sobre o seu próprio espírito é como uma cidade
arruinada e sem muros."
Era estranho, absurdamente estranho, que aquela frase, que não tivera qualquer significado durante
a sua juventude, se abatesse agora sobre ele de modo violento
e quase malévolo, cheio de sentido.
"A cidade sem muros."
Sim, ele era como uma cidade volúvel, arruinada, sem sentimentos,
aberta a qualquer ataque, com todas as suas largas e coloridas avenidas vulneráveis ao avanço de
um inimigo inexorável.
Sempre que se encontrava perturbado, confuso ou atormentado nos seus pensamentos, apoderava-se
dele uma melancolia irritante e uma espécie de impotência. Era isso
que ele sentia, exactamente naquele momento. Desprezava os sentimentalismos e, no entanto,
achou-se de súbito a pensar para si próprio:
"Tenho sido como Esaías. E aqueles dois, lá em baixo, vão conseguir banquetear-se com o festim...
a menos que eu os impeça."
Depois, lembrou-se da irmã, Dorothea, e sorriu. Não era divertido que ele pensasse em Dorothea,
naquele preciso momento, como uma aliada. Na verdade, Dorothea nem
uma única vez fora sua aliada; pelo contrário, ela fora sempre a sua crítica mais acerba, a sua
inimiga mais indómita. Mas os inimigos, quando têm um rival comum,
juntam-se freqüentemente num esforço mútuo.
Começou a assobiar de novo. Caminhou ao longo do vasto corredor todo forrado a madeira de
carvalho, sobre um chão totalmente coberto por uma espessa passadeira de
vermelho escuro, e chegou, por fim, diante da porta do quarto da irmã. Parou durante alguns
minutos, antes de bater, para melhor arranjar no rosto um sorriso amável
e afectuoso. Não era coisa difícil de fazer, pois achava muito fácil simular, por vezes até para se
convencer a si próprio, quaisquer emoções que desejasse.
Depois, o seu sorriso desmaiou. Disse, então, para si próprio:
"Pára com isso, actor idiota. Isto é demasiado sério. Porque hei-de colocar-me sempre em cima de
um palco e depois retirar-me como que para segundo plano, admirando
enfatuadamente as minhas próprias velharias, como se elas fossem demasiado deliciosas para
quaisquer palavras? Não passas de um presumido e de um idiota! Um dia
ainda serás o pior crítico de ti próprio!"
Bateu abruptamente nos painéis trabalhados da porta do quarto de Dorothea. Logo a seguir, ouviu a
voz dela, calma, forte, mas um pouco áspera e roufenha, dizendo-lhe
que entrasse. Abriu a porta e penetrou.
O grande quarto estava aquecido e quase às escuras, e apenas o brilho vermelho da lareira e um
candeeiro de luz fraca tornavam visíveis os objectos que nele se encontravam.
Um cheiro a vinagre, mostarda e lã aquecida enchiam o ar abafado. Peças de mobília de mogno
escuro e maciço e de castanho preto trabalhado estavam pesadamente dispostos
sobre uma carpete
verde-escura, pesados reposteiros de veludo também verde cobriam completamente as quatro
janelas que davam para os jardins da frente da casa. Formavam, assim, uma
parede ricamente verde, fechada contra aquela noite tempestuosa de Inverno. Fazendo um ângulo
recto com elas estava a enorme secretária de castanho preto de Dorothea,
cuidadosamente arrumada, cheia de papéis que pertenciam aos assuntos da casa, uma vez que ela
era, sem dúvida nenhuma, uma excelente governanta. No meio do quarto
encontrava-se a enorme cama com canapé, num todo composto de vermelhos escuros e linhos de
um branco puro, as cortinas carmesins repuxadas para trás, mostrando Dorothea
sentada de encontro às almofadas. Esta tinha sido a cama da sua bisavó, e ela agarrava-se àquele
leito com uma avidez desesperada, na sua quase doentia preferência
pelo passado em vez do presente, que odiava com todas as suas forças.
- Olá, Jerome - disse ela, numa voz dominadora. Que familiar lhe era aquela voz, mesmo com
aquela entoação quase automaticamente hostil, trazendo com ela um mundo
de suspeitas e de desconfianças! - Entra e fecha a porta. Está uma corrente de ar enorme.
Começou a tossir dolorosa e roucamente, levando um lenço branco aos lábios. Depois, continuou:
- E não te sentes muito perto de mim. É um disparate, bem sei, mas o doutor Hawley insiste que as
gripes acompanhadas de febre são contagiosas, e embora eu discorde,
devo obedecer às suas ordens. Senta-te ali, entre a minha cama e a lareira, por favor, para que te
possa ver sem esforço.
Irmão e irmã não se tinham visto um ao outro durante cinco anos, mas os modos e a voz de
Dorothea jamais o dariam a entender. Parecia que ambos se tinham encontrado
naquela manhã. Jerome sentou-se e colocou o cão sobre os seus joelhos. com um ressentimento
incrédulo, quase de acusação, Dorothea exclamou:
- Um cão!? Impossível! Tu sabes muito bem que nunca permiti cães aqui dentro, Jerome. Foi uma
atitude muito pouco ajuizada da tua parte e ele terá de ir para os
estábulos imediatamente. Espero que ele não morda! Tem um rosnar
francamente desagradável.
com um tom de amabilidade na voz, Jerome respondeu: - Oh! Não! Ele não vai para os estábulos,
querida Dorothea. O animalzinho não morde, e apenas está a rosnar
por causa dessa touca hedionda que vê na tua cabeça. É, na realidade, uma criaturinha
extremamente agradável. Posso pô-lo no chão, para ele fazer as suas explorações?
- É claro que não! Os cães são todos imundos. Volta a pô-lo nos teus joelhos, se fazes favor, embora
ele te vá encher de pêlos.
Jerome levantou de novo Charlie para os seus joelhos e bateu-lhe afectuosamente na cabeça.
Depois, disse:
- Para te falar verdade, não tenho interesse especial por cães, mas estão muito em moda em Nova
Iorque. Detesto esta pequena criatura, mas ele parece não dar por
isso. Não é assim, Charlie?
O cão lambeu-lhe a face e depois enrolou-se-lhe no colo, continuando, no entanto, a fitar Dorothea
com um ar astuto e hostil, tendo nos olhos um brilho quase selvagem.
A mulher que se encontrava na cama tinha um aspecto quase formidável. Era evidente que era alta,
e bastante imponente apesar de magra. Vestia um roupão de lã vermelha
sobre uma camisa de noite com folhos de linho, cuja gola estava fortemente apertada junto da
garganta. Um espesso xaile de lã cinzenta caía-lhe, às pregas, dos ombros.
Sobre massas de cabelo escuro, aqui e ali salpicado de cinzento, usava uma touca alta, aos folhos,
que apertava debaixo do queixo com fitas imaculadamente brancas.
Mais parecia uma rígida coroa, e não era muito diferente das toucas que invariavelmente usava
quando deambulava pela casa nos seus deveres duplos de dona e governanta.
A pele, como a de Jerome, era morena e os olhos eram escuros também, mas um pouco mais
pequenos, embora possuidores de uma expressão dura e intimidadora. O nariz
era comprido e fino, bastante aquilino, com narinas arrogantes. A boca, intolerante e sem o mais
leve toque de doçura feminina, tinha um aspecto rigoroso e os lábios
pareciam permanentemente frisados, numa ruga única e severa. Tudo nela era odioso e repelente, e
no entanto, tinha um ar de elevada dignidade, provocando sempre
um misto de medo e respeito.
Quando se olhava para ela sabia-se de imediato que se encontrava ali uma mulher de princípios e de
integridade, sem rasgos de doçura ou gentileza, e muito menos
compaixão. Não era que ela não tivesse, até, uma certa beleza de linhas, mas elas ficavam sempre
apagadas pela força do seu carácter austero e excessivamente rígido.
Jerome sempre a considerara muito divertida e era o único que alguma vez ousara rir-se na sua
própria cara. Mesmo o seu pai, a quem era tão devotada, vivia em permanente
respeito e um certo temor por ela, e, embora não lhe fosse possível desagradá-la (porque a amava
extremosamente), procurava nunca a contrariar mas, pelo contrário,
acatava sempre os seus desejos como ordens. Achava, lamentavelmente, que Dorothea tinha quase
sempre razão.
Ela era daquele tipo que nunca perdoava nem esquecia, e as
suas opiniões, uma vez formadas, eram incapazes de mudar. Se alguém lhe apresentava, de modo
inexorável, uma idéia ou opinião contrária à sua, sentia-se pessoalmente
afrontada e permanecia firme no seu julgamento, convencida de que a estavam a enganar
deliberadamente. Se Dorothea alguma vez mentira, nem ela nem os outros tinham
consciência disso, pois considerava a mentira uma falsidade pouco melhor do que um assassínio.
No entanto, como muitas pessoas da sua espécie, podia ser ingénua
e era muito susceptível à lisonja. Todavia, apenas Jerome sabia isso, e, sem consciência,
aproveitava-se dessa fraqueza com certa freqüência. Uma vez, quando tinha
precisado de algum dinheiro para uma vergonhosa dívida que contraíra, dissera-lhe que ela era uma
"aristocrata" e como, muito no seu íntimo, Dorothea acreditava
que o era, retirara do seu próprio bolso uma soma considerável e entregara-a a seu irmão.
Acreditava firmemente que a sua maneira de ser e o seu comportamento eram os melhores de todos,
e não tinha dúvidas nenhumas em se impor desse modo, para o "bem"
dos outros. Como, de uma maneira quase absoluta, tinha sempre razão, não se
tornava querida das suas vítimas. Religiosa, estalando de probidade, não podia suportar um carácter
fácil e despreocupado e um julgamento benigno. Acreditava que
estas coisas eram sinais de fraqueza. Não era difícil de imaginar, por isso, que o pastor
da igreja episcopal da cidade a considerasse um verdadeiro pilar de força, de apoio e frontalidade
cristã.
Jerome tinha sido sempre a sua maldição e a sua cruz. Desde a sua mais tenra infância que ele se lhe
tinha oposto, se tinha rido dela, com desafio e impudicícia.
Os castigos severos que ela lhe impunha pareciam não surtir qualquer efeito nele. Escapava-se ao
seu controle, às suas mãos fortes, como uma enguia escorregadia.
Dorothea nunca o tinha compreendido, e como nunca tinha sido capaz de o dominar ou intimidar, o
seu despeito tinha atingido as raias de um ódio secreto e nunca revelado.
Ficaram a olhar um para o outro através do reduzido espaço que os separava, iluminado apenas pelo
brilho vermelho e incerto das chamas, recordando ambos o mundo
que constituía o seu passado mútuo. Os olhos severos de Dorothea estavam raiados de um vermelho
róseo, e Jerome pensou, de si para si, que qualquer coisa mais para
além do "resfriado" lhes tinha dado aquela cor enganadora. Dorothea sofria. Ela reparou no sorriso
fraco mas perscrutador do irmão, e ergueu a cabeça num gesto de
orgulho. Depois, disse:
- Pareces estar bem, Jerome.
Calou-se durante alguns instantes e depois afirmou:
- Estou contente por te ver de novo em casa. com um tom de voz amável, ele retorquiu-lhe:
- E eu estou contente por estar em casa.
Dorothea estreitou os olhos e fixou-o, duvidando das suas palavras. Um relâmpago de surpresa
iluminou-lhe o rosto, quando reparou que ele não estava a mentir. Procurou
de novo o lenço e assoou-se com grande ruído e sem afectações. Em seguida deixou cair as mãos e
ficou a olhar para elas fixamente. Parecia de súbito indefesa, como
se estivesse sozinha e pudesse mostrar-se tal qual era.
Ao fim de alguns momentos disse, como se tentasse recuperar o controle perdido:
- Devias ter vindo mais cedo para casa. Eu... eu precisei de ti.
Jerome olhou-a num silêncio intencional e, sentindo-o, ela ergueu os olhos rapidamente. Ele, então,
retorquiu-lhe:
- Sim. Sim, eu sei. Tens razão, Dotty.
O rosto dela estremeceu involuntariamente ao ouvir aquele diminutivo odiado; mas depois,
curiosamente, deve ter-se apercebido da afeição que nele residia, as suas
implicações de solidariedade familiar, pois pestanejou em movimentos rápidos, uma vez e outra, e
murmurou:
- Estou contente. Obrigada, Jerome.
Jerome levantou-se e espevitou o lume da lareira. A irmã observava-o, de lábios trementes, como se
estivesse a lutar contra si própria para não chorar. Os seus dedos
longos retorciam-se convulsivamente.
Jerome voltou a sentar-se. Dominando-se, Dorothea conseguiu recuperar um pouco da sua calma
habitual.
- Jantaste, Jerome? Os teus antigos quartos continuam confortáveis?
- Sim, sim. Obrigado, Dotty - respondeu-lhe num tom que continuava subtil e amável.
Puxou a cadeira, aproximando-se mais da irmã. Olharam-se de novo, num longo silêncio. Por fim,
Dorothea sussurrou com voz rouca:
- Apesar de tudo, tu és meu irmão, e eu sou tua irmã. Quem mais poderá existir, especialmente
quando os problemas surgem?
Jerome não respondeu. Do bolso retirou a sua fina caixa de charutos, de prata. Dorothea observou-
o; depois, quase se obrigou a dizer:
- Podes fumar, Jerome, se isso te agrada, mas, por favor, sopra o fumo para a lareira.
Suspirou. Ele acendeu o charuto com um lucifer, e recostou-se na cadeira fumando com prazer.
"Pobre rapariga", pensou, com uma compreensão e uma piedade que eram muito pouco vulgares
nele.
Surpreendia-o que pudesse sentir compaixão por Dorothea. "Mas", reflectiu ele, perversamente, "é
curioso como se pode sentir tanta simpatia e emoção humana por um
velho inimigo que está prestes a tornar-se um aliado. Que diabo, nessas alturas um inimigo
transforma-se em carne e osso, como nós próprios, chegando quase a ser
um companheiro! Não há nada como uma ameaça comum, um ódio comum, para estimular belos
sentimentos de amor fraternal entre velhos rivais". Mas sabia, com a sua extraordinária
agudeza de espírito, que ela não era inimiga de Alfred; pelo menos, por enquanto. A total
inconsciência de Alfred pela paixão que sua prima nutria por ele, e também
pela sua total devoção, ainda não a tinha enraivecido ou humilhado, ou mesmo inspirado nela uma
fome voraz de vingança. Alfred considerara sempre o seu amor e a
sua dedicação como uma coisa natural, e tinha-lhe retribuído esses sentimentos com uma afeição
forte, ainda que puramente fraterna. Embora fossem quase da mesma
idade, Alfred considerava-a muito mais velha, e muitas vezes sentia por ela um respeito e uma
ligação quase filiais. A sua pouca percepção sempre divertira Jerome,
mas entristecera Mr. Lindsey. Ambos sabiam que Dorothea tinha firmemente acreditado que Alfred
um dia se apaixonaria por ela e ambos sabiam também que ela sempre
vivera na esperança que esse dia chegasse. Que, primeiro, tivesse aparecido a pequena e tímida
Martha, e agora aquela mulher nova e terrível, isso não era culpa
de Alfred. Ele tinha apenas sido vítima de mulheres vorazes e sabedoras, e tinha caído, indefeso, nas
suas "garras". Continuava, pois, a sentir por ele um carinho
apaixonado.
"Portanto", pensou Jerome, olhando para a irmã com deliberada amizade e simpatia, "não podemos,
por enquanto, atacar aquele maldito Alfred".
Perguntou a si próprio, com um certo divertimento, porque razão é que Alfred nunca tinha pensado
que Dorothea seria a esposa perfeita para ele. Aqueles dois formavam
um verdadeiro par. Todavia, Alfred tinha "deslizado" atrás da inocente Martha, de Saratoga. Podia-
se perceber isso, de certa maneira. Martha era uma herdeira rica
e Alfred amava o dinheiro, à sua maneira religiosa e reverente. Teria ele amado aquela criatura
pequena e frágil? Sim, era muito possível. Certamente que ele se
tinha recolhido durante muitos anos após a sua morte e tinha-lhe perdoado o filho aleijado que ela
lhe dera. Mas porquê aquela
terrível e intempestuosa paixão por uma vagabunda, uma prostituta sem um tostão, de passado
duvidoso e sem uma reputação segura? Não era possível compreender.
Mas Jerome tinha vivido o suficiente para saber que nada na vida é normal e que os impulsos que
arrastam os homens são inexplicáveis. A paixão, o devaneio e o desejo
insano tinham chegado tarde a Alfred Lindsey e, tal como as Primaveras tardias que libertam os rios
durante longo tempo gelados, esses sentimentos tinham-lhe chegado
tumultuosos e com uma força devastadora. O rio gelado que era a natureza de Alfred transformara-
se em caudal imenso e destruidor. Jerome tinha reparado nisso, havia
menos de uma hora. A razão de Alfred tinha sido arrancada das suas margens relutantemente
empedernidas e frias e a sua autocontenção e o seu cuidado antigo enovelavam-se
na espuma da sua furiosa enfatuação. Desejava aquela mulher, e aquele seu desejo, cru, raivoso e
louco, estava a dilacerar a sua carne viva. Nada podia detê-lo,
agora.
Jerome afagava a cabeça do cão, enquanto esperava que Dorothea voltasse a falar. E, de repente,
apoderou-se dele uma desolação súbita e indescritível, uma dor insuportável
como uma fome não apaziguada.
Aquilo surpreendeu-o. O movimento da sua mão tornou-se mais lento, e ficou de olhar fixo à sua
frente, completamente esquecido da irmã. Que se passava com ele? Sentia
dentro de si uma dor aguda, como se um espinho demoníaco se lhe tivesse espetado no peito. Era
uma coisa totalmente nova na sua experiência. Sempre tinha vivido
de modo alegre e descuidado, e aquele vazio deprimente era para ele uma sensação desconhecida,
quase doentia.
"Que se passa comigo?", perguntou a si próprio. "Já estou cansado deste lugar?"
Mexeu-se, como se quisesse levantar-se, tão impressionante era aquela estranha emoção.
Dorothea estava a falar:
- Viste aquela... aquela mulher, Jerome?
A sua voz era calma, e no entanto soava dolorosa, como um queixume.
Ele respondeu:
- Sim!
Ela inclinou-se para ele, rapidamente, e perguntou ansiosa:
- Não tenho razão, Jerome? Achas que fui injusta para com ela?
Ele pensou:
"Estarei eu doente com qualquer coisa? Terá sido aquela maldita viagem na carroça demasiado para
mim?"
Levantou-se abrupto, e ficou de pé, de costas viradas para a lareira e a cabeça inclinada.
- Tens razão, Dotty - respondeu. - Não foste injusta, não. Lamento dizê-lo.
Olhou com ar ausente para os elos da corrente do relógio e depois para as formas difusas da carpete.
Uma nova sensação apoderara-se dele, uma espécie de raiva selvagem
e de ódio. Continuando a olhar para o chão, disse:
- Temos de impedir aquilo.
Ela reclinou-se contra as almofadas; chorava agora, abertamente, sem sequer pretender disfarçar
que o fazia, e esfregava os olhos com o lenço.
- Mas como, Jerome? Como poderemos fazê-lo? Numa voz irritada, ele respondeu:
- Não sei! Porque é que tu e o papá não fizeram nada antes que isso acontecesse? Vocês devem ter-
se apercebido que isso acabaria por acontecer. Não caiu dos céus,
assim, sem mais aquelas, pois não?
Puxou de novo a cadeira para mais perto da irmã, com gestos bruscos, e sentou-se.
- Quero saber tudo o que se passou. Como é que que posso fazer alguma coisa, ou dar alguma
sugestão, se não sei nada? Como é que ele a encontrou? Escreveste-me qualquer
coisa sobre o facto de ela lhe ter aparecido a pedir dinheiro...
Dorothea nunca tinha visto o irmão tão preocupado e tão visivelmente agitado; embora isso a
ajudasse, de certa maneira, também a fazia sentir-se um pouco tímida
e receosa. Como que a pedir-lhe desculpa, disse então:
- Jerome, não deves censurar-me muito. Talvez eu tenha sido um pouco obtusa; mas... como é que
eu podia sonhar, sequer, com uma coisa destas? Quem é que poderia
imaginar que o pobre Alfred se perderia desta maneira? De certo que o papá não,e eu tão pouco.
Calou-se, mas continuou logo de seguida:
- Foi tudo tão repentino! Tu sabes que Alfred pertence à direcção da escola. Ele deve ter encontrado
aquela mulher haja algum tempo; mas nunca a mencionou nem lhe
fez qualquer referência, aqui em casa.
- bom, então ele não passa de um demónio esperto, afinal de contas! - interrompeu-a Jerome,
sombrio e carrancudo.
- Oh, não, não! Peço-te Jerome... nãoo condenes. Estás a ser injusto para com Alfred. A princípio,
ela não deve ter exercido qualquer atracção sobre ele.
Jerome observou-a e ficou surpreendido ao reparar que a
irmã ficara de súbito ruborizada e afastara o olhar do dele. Por fim, Dorothea disse, num queixume:
- Talvez eu esteja a ser um pouco injusta. E devo ser justa... mesmo quando se trata de uma mulher
como ela. É que... sabes... na realidade, não foi para si própria
que ela lhe pediu dinheiro!
A voz pareceu apagar-se-lhe, tornando-se mais rouca. Tossiu, como que para a aclarar, e continuou:
- Parece que ela estava a viver em casa de uns aldeões. Chamam-se Hobson, ou qualquer outra coisa
igualmente odiosa. Pessoas sem dinheiro e sem valor, sem dúvida,
pois não conseguiram fazer os pagamentos da hipoteca que está na posse do nosso Banco. Hobson
já tinha feito antes um apelo ao pobre Alfred. Lamentava-se de que
tinha muitos filhos, como se essas crianças tivessem surgido por culpa de Alfred.
Nesta altura, Jerome não conseguiu reprimir um sorriso. Fremente de indignação, Dorothea
continuou:
- Alfred tentou ser justo. Mas, que podia ele fazer? Os pagamentos estavam atrasados... Alfred tinha
um dever para com os seus depositantes e conhecia bem esse dever.
Disse, então, ao camponês que lamentava muito mas que o Banco tinha de tomar medidas. Mas foi
muito generoso, sabes? Disse-lhe que o Banco esperaria até à próxima
colheita...
- Meu Deus! - exclamou Jerome, interrompendo-a. Então, "o Banco esperaria até à próxima
colheita"! Que extraordinária generosidade de Alfred!
O rosto duro de Dorothea corou violentamente. Muito empertigada, retorquiu:
- Não compreendo o teu tom, Jerome. Afinal de contas, como te disse, Alfred tinha um dever para
com os seus depositantes, e as colheitas pareciam muito prometedoras.
Entretanto, evidentemente, o camponês tinha um tecto para si e para a sua família, e era justo deixar
que aquele homem abominável fizesse a colheita e pagasse alguma
coisa da sua dívida. Ele devia ao Banco para cima de trezentos dólares!
Esperou que Jerome fizesse algum comentário, mas o sorriso dele manteve-se sombrio e
desagradável. com voz acalorada, ela continuou:
- O homem teve, até, o atrevimento de sugerir a Alfred que o deixassem ficar na quinta, como
arrendatário, e a trabalhar na base de uma percentagem. Mas Alfred tinha
já um comprador para a propriedade. Sabia muito bem os deveres que tinha a cumprir.
Jerome fincou os olhos no charuto e ficou a observar o anel de fumo acinzentado que dele se
desprendia.
- Estou a ver! - disse, com voz muito calma. - E foi então que Miss Amalie foi ter com ele e lhe
pediu... benevolência.
- Como é que soubeste? - perguntou Dorothea, com engenhosa e pretensa surpresa.
Jerome gargalhou, baixinho.
- Oh, sou muito astuto! Sempre fui um demónio muito subtil. bom, então foi assim que as coisas se
passaram. Mas, o que me interessa é o seguinte: o Alfred acabou
por "amaciar" e conceder a mercê pedida?
O rosto de Dorothea alterou-se, deixando transparecer um ódio feroz.
- Sim! Foi isso que aconteceu! Já podes ver como ela o domina. E é isso que é tão terrível, tão
difícil de compreender. Desafiando o seu sentido de justiça e de
dever, Alfred acabou por permitir que o homem ficasse lá... deixando-se levar pelas falinhas mansas
daquela mulher. E mais... não espero, até, que me acredites,
Jerome... mas não só prorrogou o prazo da hipoteca, como também deu dinheiro a esse tal Hobson,
dizendo que era para a mulher doente e para os filhos; comprou-lhes
um carregamento de roupas, encheu-lhes a despensa de comida, e ainda por cima lhes mandou um
médico... nada mais, nada menos do que o nosso próprio médico, o doutor
Hawley! Não te parece incrível, tudo isto?
- Sim! - disse Jerome, muito calmo, e após um longo silêncio. - Parece-me, na verdade, incrível.
Dorothea estava cada vez mais agitada.
- E não foi só isso, Jerome! Mas parece que aquela mulher foi muito, muito esperta. Disse a Alfred
que ela própria estava doente e que tinha passado muitas noites
a tratar daquela horrorosa família. O que achas que ele fez, então? Rezar? Não! Eu digo-te. Como
presidente da direcção da escola, deu ordens para que aquela criatura
ficasse na quinta, a descansar, e obrigou a direcção a continuar a pagar-lhe o salário!
- E... ela estava realmente doente?
Dorothea ficou a olhar para ele, francamente surpreendida com aquela pergunta.
Por fim, respondeu-lhe, num tom gelado:
- Isso foi o que ela disse a Alfred. Mas, quanto a mim, acho que o que ela é, é preguiçosa. Ora! Ela
não passa de uma criatura robusta, cheia de uma saúde tal que
chega a ser uma verdadeira afronta para as outras pessoas.
Calou-se por instantes, mas logo prosseguiu:
- Alfred bem tentou fazer com que eu me interessasse por aquela família e, só para lhe ser
agradável, eu até cheguei a visitá-los.
Tossiu, e disse ainda:
- Encontrámos Amalie na cama. Devia ter tido uma constipação ligeira... devo ser justa. Parecia, na
realidade, doente, mas tenho a certeza de que a gravidade que
aparentava não passava de afectação da sua parte. A família parecia-lhe devotada, mas tu bem sabes
como aquela gente é simulada e fingida. Estavam a tratar dela,
o que me pareceu suficiente, e, por isso, não sou capaz de compreender por que é que Alfred ainda
mandou enfermeiras para a sua cabeceira.
- Durante quanto tempo esteve ela doente?
- Desde o Natal até à Primavera. Nunca mais voltou à escola, excepto no último mês. Apareceu,
então, muito magra e frágil, como parece estar na moda agora, pois
quando a vi pela primeira vez, há um ano, na igreja, ela era muito robusta e tinha um aspecto muito
forte.
Jerome ergueu-se e começou a andar lentamente de um lado para o outro no quarto.
- Esqueceu-se, depois disso, da sua tão devotada família Hobson, suponho, não?
Dorothea ficou de novo excitada e retorquiu-lhe:
- De maneira nenhuma... e isso é mais outra prova que demonstra bem os seus baixos instintos! Vai
visitá-los pelo menos uma vez por semana, e vai sempre carregada
com cestos. Chegou mesmo a tentar convencer-me a empregar a rapariga mais velha aqui em casa,
como criada! Creio que não preciso de te dizer qual foi a minha resposta.
Ao pronunciar estas últimas palavras, Dorothea ergueu a cabeça num gesto de triunfo e de desafio.
- Quer dizer, então, que ela e Alfred se transformaram nos anjos-da-guarda dos Hobson?! -
perguntou Jerome, divertido, mas ao mesmo tempo curiosamente pensativo.
- Sim! Não achas isso uma coisa intolerável? Já deves ter reparado como ele se tornou enfatuado.
Não parece nada o velho Alfred que sempre conhecemos.
- Porque é que ele faz isso?
- Diz que jamais poderá pagar aos Hobson aquilo que eles fizeram pela sua querida Amalie. E diz
também que, afinal, se não fossem eles, talvez nunca a tivesse conhecido.
E Dorothea irrompeu num choro convulsivo.
Jerome recomeçou o seu lento passeio de um lado para o outro, no quarto. Dorothea observou-o,
revolteando o lenço molhado entre os dedos nervosos, num gesto de desespero.
Ao fim de alguns minutos daquele passeio silencioso, Jerome começou a falar, com ar meditativo:
- Temos de analisar as coisas calmamente.
Expeliu uma baforada de fumo, e continuou:
- Não conseguiremos resolver o problema mandando a Miss Amalie embora. Isso não conduziria a
lado nenhum. Alfred quer casar. Tem pressa de o fazer. Duvido muito
que o consigamos desenvencilhar daquela mulher. Mas... se fôssemos capazes de encontrar uma
solução... arranjar qualquer outra coisa...
- Sim! - murmurou Dorothea, com as faces coradas de novo.
Jerome deteve-se e olhou-a.
- Talvez tu pudesses, não, Dotty? Especialmente se te insinuasses! Porque é que nunca o fizeste?
Dorothea corou ainda mais e retorquiu friamente:
- As verdadeiras senhoras nunca se... "insinuam"... como tu dizes, Jerome.
- Não? Acho até que o fazem de uma maneira excelente! Podias tentar Dotty! Ou... talvez eu possa!
Estou surpreendido com o papá. É capaz de compreender todas as
situações, e no entanto não fez nada para influenciar Alfred. Podia muito bem ter dito: "Olha aqui,
meu rapaz, Dorothea será, naturalmente, minha herdeira. Gostaria
que o dinheiro continuasse na família." Alfred pode ser insensível a muitas coisas mas não é, de
certeza, insensível ao dinheiro! Pois é, estou surpreendido com
à atitude do papá!
- Não tens delicadeza nenhuma, Jerome! - exclamou Dorothea, remexendo-se, nervosa, contra as
almofadas.
- Ora! Quem é que já alguma vez foi delicado quando se trata de questões de dinheiro? Só os
hipócritas, ou então aqueles que têm mais do que o suficiente. E mesmo
esses se deixam envolver em actividades lucrativas, quando anda dinheiro no caso.
- Não serias tão presunçoso que... fosses capaz de interferir!
As palavras de Dorothea revelavam indignação e revolta, mas Jerome adivinhou nelas também uma
súplica ténue, uma esperança fugaz.
Gargalhou.
- Talvez! Talvez, sim! Afinal de contas, és minha irmã!
- Oh, Jerome!
Mas de novo aquela exclamação de protesto trazia consigo uma súplica velada.
- Realmente, Dotty, Alfred é um doido, dói do varrido e abominável. Como é que ele não é capaz de
ver que tu serias a única e a melhor esposa possível para ele?
Quem mais poderia ser como tu?
Dorothea soluçou.
- É tão amável da tua parte, Jerome! Mas... estás a deixar-te influenciar por mim!
Galantemente, ele retorquiu:
- Talvez! É possível que esteja a pôr-me do teu lado, contra Alfred. Mas também te digo que ele não
é suficientemente bom para ti, Dotty. Não consigo compreender
como é que tu gostas tanto dele.
Num gesto involuntário, ela estendeu-lhe a mão. Jerome dirigiu-se para junto da cama e agarrou-
lha. Estava quente e humedecida, e de novo ele sentiu dentro de si
aquele sentimento de compaixão que lhe era tão pouco familiar. Dorothea ergueu para o irmão uns
olhos alagados em lágrimas, e exclamou:
- Serás tu, Jerome, serás tu realmente quem me dirige essas palavras? Mal posso acreditar no que
ouço.
A voz saía-lhe embargada, num tom de súplica penitente que o tocou fundo. Apertando-lhe a mão,
Jerome retorquiu-lhe:
- Dotty, receio bem que sempre me tenhas subestimado. Na verdade, eu tenho sido sempre muito
teu amigo... à minha maneira, bem sei, mas... sou realmente teu amigo.
Deixou-lhe cair a mão, e continuou:
- Mas, voltemos ao assunto. Temos de analisar tudo isto com calma. Vamos começar primeiro com
Alfred, dissecá-lo até à última fibra, para ver se descobrimos o que
é que anda a germinar naquele espírito dele.
Calou-se, como se estivesse a pensar profundamente, e por fim, afirmou:
- Voltemos atrás, até à altura em que éramos novos. Lembras-te do pai de Alfred, o nosso tio
Thomas?
- Decerto que me lembro! Eu já tinha dezoito anos quando ele faleceu.
Jerome sentou-se ao lado da irmã e continuou a falar.
- E eu tinha catorze. Alfred tinha mais ou menos a tua idade. Vejamos, agora, o tio Thomas, o irmão
do papá. Lembro-me muito bem que ele era um homem apagado, sem
iniciativa, muito crente e piedoso. Um falhado, sem qualquer centelha de espírito e sem qualquer
sagacidade. Adorava o papá, mas também o invejava. O papá, mais
velho do que ele, era, evidentemente, o presidente do Banco. O tio Thomas era o vice-presidente.
Mas era demasiado estúpido, demasiado rígido, com demasiada falta
de imaginação para conseguir manter fosse que posição fosse dentro de qualquer outra firma. O seu
salário não passava, na realidade, de uma espécie de gratificação
que lhe era concedida pelo papá. Estamos a ser honestos agora, e portanto temos de admitir todas
estas coisas com frieza.
"O papá levou o Alfred para o Banco. Isso foi quando eu estava no colégio. Alfred parece-se, em
muitos aspectos, com o pai. Mas tem qualquer coisa mais, também,
e isso temos igualmente de o admitir. Era obstinado e pertinaz, e a sua devoção para com o papá era
total... com boas razões, aliás. O papá era poderoso e cheio
de força e isso influenciou Alfred. Um temperamento puritano adora a força, a potência, a coragem.
Adora também o dinheiro, porque o dinheiro, como julga, é a "recompensa
de Deus" por uma vida de probidade, piedade e consagração total ao dever. Assim, o papá, de
acordo com o pensamento de Alfred, tinha à sua volta um halo abençoado
pelos céus. No entanto, para ser justo, Alfred dedicou ao papá o amor e os serviços de um
verdadeiro filho.
"Alfred depressa demonstrou outras qualidades que atraíram o papá, que, apesar da sua delicadeza e
dos seus modos de patriarca, não deixa de ser um cabeça-dura.
O amor de Alfred tê-lo-ia aborrecido, ter-se-ia, até, tornado odioso, se Alfred não tivesse, para além
disso, um espírito muito sagaz e arguto, uma propensão natural
para tudo quanto se relacione com as finanças, e ainda uma capacidade de discernimento impecável
e rigorosa. Alfred, em resumo, era o banqueiro perfeito e o papá
estava a ficar, talvez, desesperado. Não havia outro banqueiro perfeito na família. Alfred podia ser
um pouco curto de vistas, digamos, como prova, de resto, aquele
caso do caminho-de-ferro; mas correspondia, em tudo o mais, ao lema do banqueiro: justiça sem
piedade nem má vontade. Ou antes, emprestar dinheiro ou recuperar dinheiro
sem ter em atenção os valores humanos. Para um banqueiro, a humanidade funciona dentro de uma
esfera muito própria, e nunca se aproxima demais da linha que constitui
a órbita dentro da qual os seus negócios bancários circulam. Quanto a mim, confesso que a divisão
entre as duas coisas me deixa perplexo. Mas também devo dizer que
nunca considerei o dinheiro como qualquer coisa mais do que pura e simplesmente um meio de
troca."
Dorothea escutava o irmão com profunda atenção, mas às suas últimas palavras o rosto endureceu-
se-lhe. Num gesto quase inconsciente abriu a boca para o censurar,
mas voltou a fechá-la logo de seguida, sem proferir palavra, e afastou os olhos.
- O dinheiro - continuou Jerome, totalmente absorvido pelo assunto que ele próprio abordara - não
pode nunca existir separadamente da humanidade. É a humanidade
que dá significado ao dinheiro. Nada é valioso, a menos que os homens lhe confiram valor. Para um
banqueiro, suponho, tais sentimentos são quase uma blasfémia. Para
ele, o dinheiro é uma coisa própria, um valor em si mesmo. Que idéia divertida! Mas é isso!
Alfred é o verdadeiro banqueiro, dos pés à cabeça. E o papá também.
Interrompeu-se, mas logo continuou:
- O papá teve sempre um forte sentido da família. Mas esse sentido de família precisa de
descendência para se alimentar. O papá e o tio Thomas eram os únicos filhos
de seus pais. A linha, ao que parece, não é muito prolífera. Aí estás tu, Dotty, ainda virgem... ainda
solteira. E aqui estou eu, solteiro e determinado a continuar
solteiro, com a graça de Deus. O papá observou tudo isto com muita clareza. Os seus dois únicos
filhos não ofereciam muitas garantias de virem a dar continuidade
à família. É natural que olhasse, então, para Alfred, de quem é muito amigo e que era um filho de
coração. Alfred era seu sobrinho; portanto, quase tão chegado a
ele como um filho. Seguiu-se, numa conseqüência lógica, a adopção, após a morte do tio Thomas.
Calou-se de novo, e ficou a olhar à sua frente, com ar abstracto. Depois, disse ainda:
- E assim, Alfred tem direito a uma parte da herança, igual à nossa.
Interrompeu-se outra vez, mas agora a sua pausa foi significativa e intencional.
- Quem sabe? Talvez ele venha a ter, até, a parte maior. É muito provável que, quando Alfred voltar
a casar, ele venha viver nesta casa; e vai, estou certo, enchê-la
de fedelhos. Tu continuarás a fazer o teu papel de governanta, uma espécie de criada superior
respeitada, mas sempre debaixo das ordens da nova senhora!
Dorothea soltou um grito de raiva e de desespero, e as lágrimas inundaram-lhe de novo os olhos.
- Não posso suportar isso, Jerome! Não conseguirei jamais suportar uma coisa dessas! Se isso
acontecer, vou-me embora. Esconder-me-ei numa aldeolazita qualquer,
longe da minha velha casa, e acabarei os meus dias mergulhada em sofrimento e solidão. Oh,
Jerome, ter de obedecer, subserviente, àquela horrível criatura, ser escrava
dos seus desejos, dos seus caprichos, da sua rudeza, da sua baixa educação, dos seus instintos...
Cobriu o rosto com as mãos, e soluçou:
- Como pode o papá ser tão distraído e não ver o que tudo isto significa para os seus próprios
filhos... para mim, sua filha!?
Jerome humedeceu os lábios. Esperou até Dorothea ficar de novo calma, chorando em silêncio.
Depois, com uma voz muito suave, perguntou:
- Sabes alguma coisa acerca do testamento do papá?
Em momentos de maior recato, Dorothea ter-se-ia retraído, indignada, e teria repelido a curiosidade
do irmão, por ela significar
pouca lealdade para com o pai. Mas agora tinha perdido todo o controle de si própria, todas as suas
defesas estavam por terra. Falando com o rosto ainda
escondido por detrás das mãos trémulas, respondeu-lhe:
- Apenas um pouco. Ele teve a gentileza de discutir comigo... certos pormenores. Mas não sei tudo.
No entanto, o papá sempre foi justo. Alfred deverá ficar com esta
casa, toda esta propriedade, e com tudo o que se encontra dentro dela, incluindo as coisas preciosas
que pertenceram à mamã, à avó e à bisavó... Tudo, tudo isto
será dele! Quanto a mim, terei um terço do rendimento do Banco, enquanto for viva. Se eu casar, o
meu marido herdará essa renda após a minha morte... ou os meus
filhos, se os tiver. Se eu morrer solteira, e sem filhos, então esse meu rendimento reverte para a
propriedade total, e portanto para Alfred. Quanto a este, deverá
tornar-se presidente do Banco. Está muito envolvido...
- E eu, querida Dotty? - perguntou Jerome, com voz melíflua.
Dorothea limpou os olhos e respondeu: - O papá sabe que é inútil tentar fazer com que tu te
interesses pelo Banco, Jerome. Deste-lhe a tua inqualificável recusa...
tu sabes muito bem! Oh, quando ele mo explicou, achei que era justo. Porque é que já não o
considero assim? Fitou Jerome com olhos quase enlouquecidos, estranhamente
vagos, e de novo lhe estendeu a mão tremente. Ele pegou nela, segurando-lha com firmeza, -
Querida Dotty! Diz-mo, por favor. com a voz entrecortada, tremendo
histericamente,
eladisse: - Jerome, o papá falou do dinheiro que a avó te deixou, a ti apenas. O papá não achou que
isso fosse uma atitude justa, eu sei. Eu não fiquei com nada,
excepto as pérolas que lhe pertenceram. Tu eras o seu favorito. O papá era de opinião que ela o fez
por influência tua. Mas... agora não acredito nisso. O papá
disse que se tu tivesses tido um pouco de cabeça, esse dinheiro poderia ter chegado para toda a tua
vida, permitindo-te, até, viver com razoável conforto. E o papá
disse-me que tu gastaste tudo... há muito tempo!
Jerome bateu ao de leve na mão da irmã com o polegar. Era um gesto quase hipnótico que
influenciava aquela mulher desesperada, aquela mulher sem amor, cujo coração
ardera em solidão e fome durante trinta e oito longos anos. -Sim, querida Dotty?
- Tu, Jerome, deverás receber três mil dólares por ano, enquanto fores vivo. E é tudo, Jerome. Após
a tua morte, esse rendimento reverterá, também, a favor de Alfred.
Jerome levantou-se abruptamente. Olhou para a irmã com uns olhos que pareciam chispar fogo.
- Três mil dólares por ano! - repetiu ele. - Até agora já gastei cinco vezes mais do que isso.
O seu rosto escuro tornou-se ainda mais sombrio e carrancudo.
- Quer então dizer que receberei um pedaço de pão e um jarro com vinho barato, e um ou dois
quartos mal cheirosos numa rua dos subúrbios. E é tudo!
Algo nos seus modos assustou a irmã. Pegou-lhe na mão e sentiu-a gelada entre os seus dedos
febris.
- Jerome! Não me olhes assim! Oh, que disse eu? Que foi que eu fiz? Oh, céus, perdoai-me! Eu não
devia ter-te dito.
A voz erguera-se-lhe num grito e Jerome, apreensivo, relanceou um olhar para a porta. Sentou-se de
novo, tentando acalmar a irmã.
- Pronto, Dorothea, tem calma! Podes ter a certeza de que não contarei a ninguém uma palavra
sequer do que me disseste. Por favor! Toma, tens aqui o meu lenço. Limpa
os olhos e a cara. Devemos ser sensatos, Dotty. Temos de guardar os nossos segredos só para nós, se
é que queremos fazer qualquer coisa!
"Meu Deus!", pensou de si para si. "Se ela não acaba com esta idiota choradeira, teremos a casa
toda em cima de nós, a escutar às portas!"
Sentia-se tremer por dentro. Sentia que um ódio violento se apoderara dele, como um furacão.
Queria matar. Mas apertou com força as mãos da irmã, e a voz saiu-lhe
calma e apaziguadora, enquanto lhe murmurava palavras de consolação.
- Ainda não estamos perdidos, Dotty. Ainda há coisas que podemos fazer juntos. O papá ainda não
morreu.
Calou-se. Pela primeira vez na sua vida odiou o pai; via-o como um demónio mau e perigoso
arruinando os próprios filhos.
- Ainda temos tempo, Dotty. Podemos fazer muitas coisas. E o primeiro passo a dar é tentar impedir
que Alfred case com essa megera.
- Oh, Jerome! Será que isso é possível?
- Faremos o que pudermos, Dotty. Tenho de pensar muito bem nisso. Para quando é que está
marcado o casamento?
- Para vinte e oito de Dezembro.
Os olhos inchados de Dorothea estavam fixos no irmão, como se vissem nele a imagem do
Salvador.
- Há-de haver uma maneira de impedir que ele se realize. Pensarei nisso mais tarde. Mas temos de
nos lembrar que Alfred poderá procurar de novo outra mulher para
casar. Nessa altura, dirigiremos a atenção dele para ti. Quanto a mim...
Ficouaolhar, sombrio, à sua frente. Por fim, disse:
- Tenho de ter uma conversa com o papá. Ainda hoje. Ergueu-se e obrigou-se a si próprio a sorrir.
- Acho que vou ter essa conversa agora mesmo, Dotty. Inclinou-se para a irmã e beijou-lhe a testa
húmida e
enrugada. Depois, afagou-lhe a cabeça levemente com a mão.
- Querida Dotty. Confia em mim. Deixa tudo comigo. Promete-me que o fazes.
Capítulo sexto
Jerome dirigiu-se, primeiro, para os seus próprios aposentos, levando consigo o cão e assobiando
quase em surdina. Eram os seus velhos aposentos, os mesmos que tinha
ocupado quando se encontrava em casa, desde que fora autorizado a deixar os quartos de criança, no
terceiro andar. (Aqueles quartos de bebê, preparados para receber
doze crianças... e que tinham sido ocupados apenas por duas! De certo modo, era bem um castigo
para o velho diabo!)
Esses aposentos consistiam numa sala de estar confortavelmente aquecida, talvez um pouco
pequena e dando acesso a um quarto maior donde se abrangiam os relvados
que se estendiam em frente da casa. Ao lado, havia uma pequena casa de banho, construída ali após
muita insistência da sua parte, dez anos atrás.
Fora ele quem escolhera a mobília, por entre o espólio deixado pela avó, revelando nessa escolha
um gosto requintado, mas algo excêntrico. Agradara-lhe a lareira
delicadamente trabalhada em mármore branco, incluindo o próprio chão. Ali, ele colocara os
utensílios que a avó costumava utilizar para atiçar o fogo, feitos de
um aço pálido, trabalhado à mão e polido até ficar com a cor da prata velha. As paredes eram
forradas com painéis de madeira clara, um facto que aborrecera extremamente
Dorothea, levando-a a dissertar em retórica profunda sobre a "imaginação leve" e o
"pretenciosismo".
Cobria o chão um enorme tapete de Aubusson, elaboradamente requintado, de cores desmaiadas e
suaves. Jerome não gostava do mobiliário pesado e escuro das outras
salas e quartos; preferia ter peças mais leves e delicadas, cobertas com damasco rosa, verde pálido
ou dourado, tudo retirado do que pertencera a sua avó. Os candeeiros
eram de cristal e ouro, brilhando, quando acesos, como jóias autênticas. Contra uma parede,
encontrava-se uma estante de madeira clara, cheia de volumes maravilhosamente
encadernados em couro trabalhado, de tons carmesim e azul escuro.
Alfred chamara a tudo aquilo "aposentos de mulher" e dera a entender a Jerome que aquele seu
gosto "esquisito" revelava falta de virilidade.
- Não sou dos que preferem um rinoceronte a um cisne, só por causa da força de um e da elegância
do outro! - retorquira-lhe Jerome, afagando as pequenas caixas de
cristal e esmalte que se encontravam sobre mesas delicadas e olhando as figurinhas de Dresden, de
valor inestimável, e as peças de marfim que enchiam o delicado
e precioso armário de embutidos.
O quarto de cama era semelhante à sala de estar, no que dizia respeito ao mobiliário. Mesmo os
cortinados que pendiam junto das enormes janelas eram claros e leves,
de cores pálidas e desenhos suaves, esbatidos, maravilhosamente delicados. Tinha poucos quadros,
e embora Alfred os achasse decadentes e de mau gosto, Jerome sabia
que eles eram encantadores, perfeitos e muito valiosos.
Um fogo calmo e quente ardia na lareira. Jim estava a dormir, placidamente recostado numa cadeira
Luís XV diante do lume, a boca aberta, ressonando deleitado e feliz.
Fora aceso um único candeeiro, que se encontrava sobre uma pequena mesa junto das janelas.
Jerome deitou uma olhadela para dentro do quarto. Os brancos lençóis acetinados
tinham sido afastados para trás e a sua camisa de seda estava pronta, à sua espera.
Charlie ladrou para Jim e o criado mexeu-se, resmungou qualquer coisa e endireitou-se na cadeira.
Jerome deixou cair o cão, que correu para Jim e lhe saltou para
o colo.
- Bem, parece que estamos muito confortáveis! - disse Jerome. - Espero que tenhas gostado da
soneca.
Jim ergueu-se e respondeu:
- Foi isso mesmo, senhor! Passei pelas brasas enquanto esperava. Vai deitar-se, senhor?
- Não, ainda não. Onde é que tu dormes, Jim?
- No terceiro andar - respondeu o criado, franzindo ainda mais o rosto enrugado, numa expressão
maliciosa. - É um belo quarto... ao lado de uma esplêndida rapariga...
com as suas desculpas, senhor!
Jerome soltou uma gargalhada e retorquiu-lhe:
- Não te esqueças de que nesta casa somos muito virtuosos, Jim. Nada de folias! Podes ir deitar-te,
agora. E leva o Charlie contigo.
- Não vai precisar de mim, Mister Lindsey? Fiz o que pude... arrumei tudo...
- Não, não preciso. Podes ir para a cama. E obrigado. Jim pegou no cão e saiu do quarto fechando a
porta atrás de si, sem um ruído.
Jerome olhou à sua volta. Nos últimos tempos em que ali vivera, acabara por odiar os seus próprios
aposentos, tanto como odiava o resto da casa. Eles tinham sido
como uma prisão para ele, uma prisão de decoro, de calma, de dignidade, onde se levava uma vida
demasiado austera. Aquilo tudo acabara por quase o asfixiar. A
longa e precisa rotina de todos os dias tinha-o tornado quase frenético. Nem mesmo os seus
preciosos e amados livros tinham conseguido mitigar a sua impaciência,
acalmar-lhe os desejos de liberdade ou dar-lhe qualquer espécie de satisfação. Satisfação! Ele nunca
se tinha sentido satisfeito! Bem pelo contrário, sempre fora
um autêntico braseiro de carvão incandescente. Por fim, arrastara esse braseiro para fora daquela
casa sombria, e nunca tinha sentido desejos de regressar, Mas agora,
curiosamente, tudo lhe parecia adorável e acolhedor. Arrastado por uma espécie de fervor quase
febril, caminhou pela sala e pelo quarto. Possivelmente,
aqueles seus aposentos viriam a ser ocupados por aquela prostituta vagabunda. Seria ela quem se
deitaria na delicada cama em forma de cisne; faria reflectir o
seu rosto impudico de intrusa naquele enorne espelho entre as janelas; tocaria, com as suas mãos
imundas de pecado, os seus preciosos livros, e sentar-se-ia naquela
maravilhosa cadeira dourada ao lado da cama. Os seus vestidos, quase obscenos, iriam encher o seu
guarda-roupa; afastaria
aqueles reposteiros leves e brilhantes
das janelas e passearia o seu olhar de dona e senhora pelos relvados imensos e pelas copas dos
pinheiros que tinham sido tão queridos a ele, Jerome! Pousou devagar
a mão sobre as almofadas brancas da cama e quase afagou, num gesto suave, o linho sedoso. Era ali
que a sua cabeça repousaria. O seu cabelo negro espalhar-se-ia,
revolto, sobre aquela brancura imaculada; os seus longos braços descansariam sobre aquela colcha
macia e azul. As suas pestanas negras repousariam sobre as faces
pálidas, translúcidas, que a lua beijaria, fazendo-as parecer como mármore. A sua boca seria uma
ameixa escura no rosto adormecido... Como que enfeitiçado, Jerome
ficou junto da cama, olhando-a fixamente. Nem um músculo parecia mexer no seu corpo, e
aquela dor estranha e devoradora apoderou-se dele de novo... Umador amarga,
inexplicável... Falando consigo próprio, murmurou: - Não serei capaz de o suportar! Não o
suportarei! Mas as palavras saíram-lhe mecanicamente dos lábios. A Hdor
tornou-se mais forte. Parecia-lhe ver a mulher adormecida
naquela cama; conseguia ver, sob a seda fina e quase transparente, o movimento suavemente
ritmado daquele maravilhoso busto.
Reteve a respiração. Inclinou-se mais sobre a cama. O coração batia-lhe num compasso louco e
selvagem, e a dor despedaçava-lhe a carne com dentes de ferro. Pousou
a mão trémula sobre o peito do fantasma, e tão grande era o seu encantamento que sentiu, debaixo
dela, a carne redonda e macia e quente...
Ficou imóvel, naquela posição, durante muito tempo. Estava hirto e gelado, naquela espécie de
feitiço que dele se apoderara. Só o seu coração vivia... batendo numa
fúria animal e devoradora. Depois, como se quisesse arrancar-se àquele feitiço demoníaco que o
dominava, afastou-se de súbito da cama, num gesto brusco. Puxou do
lenço e limpou as palmas das mãos húmidas. Voltou à sala de estar e ficou de pé, junto da lareira,
olhando sem ver as brasas incandescentes. Levou a mão à cabeça
e alisou os cabelos lentamente, deixando-os deslizar entre os dedos. Um estremecimento gelado
percorreu-lhe o corpo.
com voz alta, quase gritando, exclamou:
- Não! Não!
Sentia-se doente, enojado, vacilante. A dor violenta fora substituída por um latejar menos agudo,
mas ainda dilacerante, e uma vez mais perguntou a si próprio:
"Que se passa comigo?"
Uma resposta hedionda começou a ganhar forma dentro do seu pensamento. Abanou a cabeça
violentamente, como se a quisesse arrancar de dentro de si, e voltou-se. Abriu
a porta e, rápido, sem olhar para trás, desceu as escadas, numa correria louca, desvairada, na
direcção da biblioteca.
Capítulo sétimo
O relógio na sala de entrada soltou uma longa e sonora série de notas, enquanto Jerome descia as
escadas. Dez horas. A enorme casa parecia mergulhada num silêncio
total, morno e sombrio; o lume na lareira da sala ficara reduzido a brasas adormecidas que
palpitavam um pouco, de vez em quando. Algures, na escuridão, a tempestade
rugia ainda, para lá das paredes de pedra, aumentando assim a atmosfera de segurança e de calor
que se respirava ali dentro. A chaminé da lareira pareceu soltar
um resmungo fraco; as brasas incendiaram-se num fulgor mais vivo, para logo desmaiarem de novo.
William Lindsey estava sozinho na biblioteca, a cabeça inclinada
sobre um livro, os pés torturados estendidos na direcção do lume.
Jerome deteve-se no limiar da porta, observando o pai. E pensou:
"É um estranho!"
Estranho era, na verdade, que ele nunca tivesse sentido antes que, sob aquela camada superficial de
delicadeza e tolerância, existisse no velho aquela força formidável
de que agora se apercebia, aquele aço frio e cortante, aquela calma cheia de vigor que não se
deixava dobrar. Olhou o frágil perfil do pai recortado contra o brilho
do lume e já não lhe parecia tão cheio de sábia compostura, de nobreza aristocrática e de
compreensão profunda. Pelo contrário, aquele perfil surgia-lhe sem piedade,
cheio de uma rudeza e de uma austeridade romanas. Havia um cinismo triste em redor da sua boca
grande e reservada, e a sua própria serenidade impedia qualquer tipo
de emocionalismo.
Jerome sempre se tinha orgulhado da sua habilidade para dissecar até mesmo os mais subtis traços
do temperamento mais escondido. Agora, sentia-se singularmente perturbado,
indefeso, e até mesmo um pouco receoso. Recordou-se da sua infância, da sua juventude e da sua
maturidade precoce, naquela casa, e perguntou a si mesmo, com irada
perplexidade, como é que o pai conseguira enganá-lo tão completamente. Afinal William Lindsey
sempre lhe mostrara, apenas, a mais tolerante compreensão para com
os filhos, e uma profunda e serena afeição.
Ele sempre dissera:
- A vossa vida só a vocês pertence. Devem fazer sempre os vossos próprios juízos. Fosse o que
fosse que eu pudesse aconselhar, pareceria sempre aos vossos olhos
fora de moda, antiquado, obsoleto e enfadonho. Rochefoucauld disse, uma vez: "Os velhos gostam
de dar conselhos para se consolarem a si próprios por não estarem
já em situação de darem um mau exemplo!" Além disso, aquilo que para mim é válido e positivo,
pode muito bem ser um grave erro pelo vosso lado. Devem comportar-se
sempre de acordo com a vossa própria interpretação da vida, e de acordo com aquilo que as vossas
próprias consciências vos ditarem!
Sempre que Jerome agia de modo invulgarmente estúpido ou frontal, de novo William Lindsey lhe
dizia, invocando também Rochefoucauld:
- É muito raro o homem ser suficientemente esperto para saber todo o mal que faz.
E costumava dizer ainda:
- Jerome, não acredito que tu sejas tão indomável e
absurdo como dizem que és. "A virtude ou o vício não iriam tão longe se a vaidade lhes não fizesse
companhia." E, meu rapaz, eu considero a vaidade o mais estúpido
dos vícios. Uma vez dissera-lhe, sorrindo:
- Se te pareço demasiado rígido, lembro-te que "aquele que vive sem loucura não é tão sábio como
aquele que julga que o é".
Jerome recordava-se que seu pai nunca tinha sido inexorável nos seus preceitos. Nunca o tinha
ouvido afirmar, peremptório, que o preto era preto e o branco era branco.
Pelo contrário, sempre o achara flexível nos juízos que fazia. Utilizava argumentos para ambos os
lados e admitia, com ar pesaroso, que na realidade ninguém sabia
qual o lado que estava errado e qual o que estava certo.
- O compromisso - declarara ele certo dia - é a palavra mágica do homem inteligente. Nada na vida
pode ser claramente definido e imutável.
"Fizeste mal!", pensou Jerome, com uma raiva surda e confusa: "Isso não é maneira de educar
crianças. Elas não são homens adultos e inteligentes. Precisam da sua
própria confiança, de serem guiados por regras duras e exactas. Elas não possuem qualquer
experiência que as ajude a julgar aquilo que é sabedoria ou rematada loucura.
Lançar as crianças para o mundo dizendo-lhes que talvez a sua loucura ignorante esteja certa, afinal,
e que o velho professor está errado, é adicionar selvajaria
à sua inexperiência, e retirar dos seus horizontes quaisquer marcas firmes que as guiariam e
conduziriam a uma vida segura e dentro da razão. Os jovens precisam
de um pulso de ferro, e não de uma filosofia cheia de bonomia e cepticismo."
Não lhe passava sequer pela cabeça que era a primeira vez na sua vida que assim pensava. Sempre
tinha considerado o pai como o mais justo e o mais sábio dos homens.
Agora, a desconfiança viera juntar-se ao seu ressentimento furioso. Começou a perguntar a si
próprio se não era a indiferença, e não o amor, que levava um homem
a agir de modo moderado e compreensivo para com seus próprios filhos.
O pai tinha-se tornado num enigma assustador, mas, pelo que Dorothea lhe contara, era também um
enigma real. Os filhos nunca o tinham conhecido verdadeiramente.
O mistério que o rodeava tinha permanecido indecifrado até àquele momento.
Se o seu testamento parecia incrível para os seus filhos e de modo nenhum de acordo com aquilo
que eles julgavam ser o seu carácter, eram eles que se tinham enganado
a si próprios, e não ele que os enganara. Se ele tencionava humilhar a sua filha, se a sua intenção era
afastar os filhos com uma esmola afrontosa, a
culpa era deles porque tinham acreditado, egoistamente, que compreendiam profundamente o pai
que tinham, e que ele não seria capaz de fazer nada que os pudesse surpreender
ou embaraçar.
William Lindsey não tinha mudado nada! Tinha permanecido sempre exactamente igual àquilo que
fora. Os seus filhos, esses, é que se tinham iludido a si próprios!
Jerome sentiu-se de súbito assustado, enquanto observava o pai. Sentia-se impotente, e isso irritava-
o. Fechou os punhos com força. Chegava até ele o tique-taque
incessante do relógio da sala, aumentado pelo silêncio; um pedaço de madeira caiu na lareira; o
vento uivou na chaminé.
Lentamente, Mr. Lindsey voltou uma página do livro que tinha sobre os joelhos. Depois, ergueu os
olhos e viu o filho parado no umbral da porta. Sorriu.
- Jerome! - disse. - Meu rapaz, entra! Esperava que pudéssemos ter uma conversa os dois, e foi por
isso que fiquei aqui à tua espera.
Era a sua velha voz de sempre, tranqüila, afectuosa e calma; um estremecimento, talvez de
nostalgia, percorreu o corpo de Jerome. Era um estranho que falava na voz
de alguém que nunca tinha realmente existido senão no espírito de Jerome. Caminhou até à lareira,
em silêncio, e ficou a olhar para o fogo. O pai observava-o pensativo
e sorridente.
- Viste aDorothea?
Jerome fez um ligeiro movimento e respondeu, sem afastar os olhos das chamas: -
Sim.pai!
E Não usava já aquele infantil "papá"; a palavra "pai" saiu-lhe mais involuntária do que
deliberadamente da boca; parecia até não ter consciência de que a tinha
pronunciado. Mas Mr. Lind sey ouviu-a, e os seus olhos azuis pestanejaram rápidos e pahreceram
ficar cobertos de uma névoa escura. Afastou o livro e disse com voz
muito calma: -Senta-te, Jerome.
Jerome sentou-se. Mr. Lindsey olhou perscrutadoramente o filho, como que a analisá-lo. Jerome
tinha uma expressão que E lhe não era familiar, talvez um pouco confusa
e carrancuda. Mr. Lindsey não se lembrava de lhe ter visto aquele olhar antes, e as suas
sobrancelhas esbranquiçadas franziram-se por breves instantes.
No entanto, perguntou: -Dorothea sente-se melhor, hoje? Jerome encolheu ligeiramente os ombros.
-Parece que sim - respondeu.
Calou-se. Pegou no atiçador e remexeu as brasas. Depois, disse ainda:
- Está naturalmente indisposta com este... casamento.
- Ah! - murmurou Mr. Lindsey.
Recostou-se na sua cadeira; o seu tronco comprido e elegante mal aflorava as almofadas.
- Sim! - continuou, depois. - Está inconsolável a pobre rapariga. Sempre acreditou que Alfred se
casaria com ela.
Jerome levou muito tempo a acender o charuto. Cortou-lhe a ponta, estudou-o atentamente,
levantou-se, retirou uma vela do candelabro que se encontrava sobre a lareira,
acendeu-a, aproximou-a depois do charuto e soprou algumas fumaças como que a experimentá-lo.
Por fim, voltou a sentar-se. Era evidente que não tinha qualquer desejo
de encontrar os olhos do pai. E Mr. Lindsey observava-o, pensando:
"Não é habitual o Jerome debater-se entre os arbustos e esconder-se, receoso. Está mais na natureza
dele enfrentar as coisas, explodir com violência, em vez de usar
toda esta afectação, demasiado reverente para ser verdadeira. Alguma coisa o perturba... alguma
coisa abalou a sua habitual indiferença."
- Mas enfim! - suspirou Mr. Lindsey, quando viu que Jerome não se decidia a falar. - O homem põe
e a sua paixão dispõe! No entanto... não devemos condenar Alfred.
- Não! - repetiu Jerome, falando agora de novo com a sua voz dura e cínica. - Devemo-nos sempre
lembrar que Alfred é um idiota e um doido, apesar de toda a sua capa
exterior de granito.
Apontando para o livro que repousava junto do pai, continuou:
- Outra vez Rochefoucauld? Bem, também sou capaz de lhe repetir as palavras, já que são
pertinentes, e desta vez para Alfred: "Algumas pessoas de grande mérito são
simplesmente revoltantes."
- Achas Alfred revoltante? - perguntou, calmamente, Mr. Lindsey.
- Sim. Aliás sempre achei. Mas... isso não é nenhuma novidade para si, pai, pois não? No entanto,
confesso que até mesmo eu me sinto surpreendido com esta nova loucura
dele. Nunca acreditei que ele fosse um néscio. Sempre julguei, aliás, que ele possuía grande
capacidade para se proteger e defender a si próprio, e um olho especial
para o que fosse prudente e seguro para ele.
Mr. Lindsey remexeu-se na cadeira.
- Queres dar-me um pouco de xerês, Jerome, por favor?
Jerome ergueu-se, aproximou-se de uma mesa e arranjou um copo de xerês para o pai. Mr. Lindsey
recebeu-o com um inaudível murmúrio de agradecimento, e levou-o aos
lábios. Depois, olhando para o lume, perguntou:
- Não consideras a Miss Amalie uma escolha prudente e sensata de Alfred? Como é que podes saber
se é ou não? Mal a viste!
Jerome riu um pouco, num som gutural e rouco.
- Pai, eu já não sou uma criança. Já vi centenas de mulheres da espécie dela. Paris, Londres, Roma,
Nova Iorque estão cheias dessas mulheres. Reconheço-as, logo
que as vejo.
Mr. Lindsey pôs de lado o copo de xerês e disse:
- Jerome, olha para mim. Tens estado a evitar os meus olhos desde que entraste nesta sala.
Relutante, Jerome voltou os olhos para o pai, e o rosto cobriu-se-lhe de um rubor escuro. Os seus
olhos pretos eram muito estranhos a Mr. Lindsey: inseguros, cheios
de um ressentimento profundo e de desconfiança.
- Ah! - murmurou o velho, passando os dedos brancos e magros sobre os lábios.
Endireitou-se na cadeira e disse:
- Jerome, é possível que estejas enganado, sabes? - a sua voz era suave. - Tive oportunidade de
estudar Miss Amalie durante as últimas três semanas, desde que ela
veio viver connosco, a meu próprio convite. Afinal -juntou -, era importante para mim saber quem
ia entrar para a família.
- Sim! - retorquiu Jerome sorrindo de modo odioso. E... ficou satisfeito com o estudo? Aprova o
casamento?
Como Mr. Lindsey não respondesse imediatamente, Jerome exclamou:
- Será que vai ser... "tolerante" outra vez? Vai de novo admitir um "compromisso"? Vai "reservar o
julgamento final", como sempre fez?
Interrompeu-se por momentos e depois continuou:
- Suponho que nunca imaginou que uma atitude dessas
significa hesitação, uma evasiva, uma tentativa de evitar tomar
medidas drásticas e realistas?
Mr. Lindsey esteve quase para lhe perguntar: "Que se passa
contigo, Jerome? Isso não parece teu!" Mas reteve as palavras.
"Afinal", pensou, "que conhecemos nós um do outro? Se Jerome parece estranho hoje, é talvez
porque nunca o compreendi realmente".
Aquilo entristeceu-o, e observou Jerome com uma seriedade e um fervor calmo. Depois, perguntou-
lhe:
- Preferias que eu fizesse julgamentos precipitados, rápidos, mesmo que fossem errados?
- Não! - retorquiu Jerome, dando um pontapé no tapete da lareira. - Isso não estaria de acordo com o
seu carácter, pai.
O seu sorriso tornou-se mais desagradável e venenoso do que nunca.
- No entanto - continuou ele -, não sou capaz de ver como é que vai estabelecer um "compromisso"
no que respeita àquela mulher. Ou... talvez pense que uma prostituta
possa vir a alegrar esta atmosfera refinada e nobre!
A voz de Mr. Lindsey soou mais clara e mais alta, quando disse:
- É pouco cavalheiresco e é cruel utilizar essa palavra abominável. Tu não sabes nada dessa jovem.
As tuas conclusões indecentes, sem dúvida tiradas da tua própria
experiência, podem não se aplicar a ela. A aparência da virtude não pressupõe, forçosamente, a
existência dessa virtude, nem a aparência de... ligeireza... pressupõe
falta de virtude. Sempre acreditei que tinha incutido em ti, pelo menos, algum respeito por qualquer
mulher.
- Pelas prostitutas, não! - retorquiu Jerome insolente, olhando agora o pai directamente.
Era um olhar zombeteiro, estranho, deliberadamente sarcástico.
- Eu não gosto de pensar que uma prostituta vai viver nesta casa, governando-a e dirigindo-a por
cima da minha irmã, enchendo estas velhas salas com os seus fedelhos
duvidosos.
A voz pareceu apagar-se-lhe outra vez ao proferir as últimas palavras, pois de novo o seu coração
começara a bater naquele ritmo louco e desenfreado, inexplicavelmente
doloroso.
- Jerome! - exclamou Mr. Lindsey, num tom autoritário e solene. - Proíbo-te que apliques de novo
essa palavra a Miss Amalie, nesta casa, e aos meus ouvidos!
Ficou à espera. Mas Jerome não falou. Estava a respirar com dificuldade, como se isso lhe
provocasse uma dor imensa, mas o seu sorriso fixo e mau não lhe desapareceu
dos lábios enquanto fitava o pai. Por fim, disse com voz melíflua:
- Não a aplicarei outra vez. Desculpe-me. Mas isso não altera a opinião que tenho dela.
Ergueu-se e perguntou:
- Acredita, realmente, que isto é um casamento de amor, pela parte que se refere a ela?
Para sua surpresa, o pai respondeu-lhe directo e incisivo:
- Não, não acredito. Falei, a sós, com Miss Amalie. Ela disse-me francamente, que sente apenas
uma simples amizade
por Alfred, mas que o respeita muito. Também me disse que ia casar com ele por aquilo que ele
representava: segurança, casa, dinheiro, posição, roupas boas, uma
carruagem e jóias. Confessou, com uma total ausência de hipocrisias ou reticências, que se Alfred
fosse um homem pobre, sem futuro, ela não olharia para ele duas
vezes. Também me disse, e eu acredito, que tinha utilizado da mesma franqueza para com Alfred.
Jerome não o interrompeu, pois reparou que o pai não tinha acabado. Mr. Lindsey levou o copo de
xerês aos lábios, e bebeu serenamente. Depois, continuou:
- A partir daquele momento, eu soube que Miss Amalie era uma mulher honesta e sem medo, sem
hipocrisias, incapaz de mentir ou enganar seja quem for. Foi nessa altura
que a aceitei e consenti no casamento.
Jerome disse:
- Não acha essas declarações que ela lhe fez repugnantes e repelentes, sem qualquer decência e
honra?
Mr. Lindsey riu suavemente.
- Pelo contrário, acho-as refrescantes e tranqüilizadoras. Milhares de jovens requintadas e
respeitáveis fazem casamentos destes todos os dias, mas são menos honestas
nas razões que confessam. Tenho a certeza, também, de que Miss Amalie será, para Alfred, uma
esposa honesta.
Riu-se de novo e continuou:
- Jerome, estás a ser sentimental e isso surpreende-me. Achas que todos os casamentos deviam ser,
ou são, resultado de amor? Valha-me Deus, receio bem que te tenhas
tornado num romântico, e isso surpreende-me de mais e... desilude-me um pouco.
Jerome cerrou os dentes, com força. Mas... não tinha nada a dizer. Mr. Lindsey continuou, como se
estivesse agradavelmente divertido:
- Decerto que sabes que os casamentos mais duradouros e respeitáveis entre os franceses são os
casamentos chamados "de conveniência", nos quais o sentimento não
entra! Descobri que os casamentos como esses são, quase invariavelmente, muito sólidos, e como
têm por base um realismo muito cru, raras vezes se tornam frustrantes.
Este casamento foi "arranjado" entre Alfred e Miss Amalie. Alfred deseja a rapariga e ela aceita-o
por aquilo que ele lhe pode oferecer. Prevejo um casamento muito
bem sucedido e sólido, sem desilusões ou grandes tumultos.
- Apesar dos seus antecedentes, baixo nascimento, falta de educação e refinamento?
Mr. Lindsey fez rodar o copo entre os dedos esquálidos. O rosto alterou-se-lhe. Numa voz que
traduzia uma reflexão profunda, retorquiu:
- Também tomei esse aspecto em consideração. Tal como te disse na carta que te escrevi, se fosse eu
a escolher, teria feito uma escolha diferente da que Alfred fez.
Acredito firmemente que as duas partes num casamento devem trazer qualidades e dons iguais. Se
queres saber, Jerome, não condescendo com as bases familiares de Miss
Amalie.
- Ah! - exclamou Jerome. - Estamos a chegar agora a algum sítio, finalmente. Dotty pôs-me ao
corrente da história passada da senhora. bom, então isso também o revolta!
Não possui um espírito democrático. Não acha, portanto, que a filha de um bêbedo e de uma
lavadeira seja o par ideal para o seu filho adoptivo.
Interrompeu-se por instantes, e depois perguntou:
- E... posso saber o que pensam os nossos amigos deste assunto?
Ignorando o tom irónico com que Jerome lhe fizera aquela pergunta, Mr. Lindsey respondeu-lhe
serenamente:
-.Os nossos amigos estão espantados, para não dizer pior. É evidente que as suas opiniões são
reforçadas pelo facto de que quase todos eles têm filhas que seriam
esposas aceitáveis, ou mesmo perfeitas, para Alfred. Que ele tenha escolhido uma estranha, uma
jovem obscura que tem de ganhar a vida por si própria, que tem vivido
de uma maneira demasiado livre para uma mulher, que não possui nem família, nem dinheiro, nem
amigos, nem posição... é, naturalmente, uma afronta para eles. Segundo
ouvi dizer, muitos juraram, até, não a aceitar. No entanto, duvido que este antagonismo dure muito
tempo.
Apesar das suas últimas palavras, franziu um pouco o sobrolho, num gesto que revelava
preocupação e dúvida.
- Eles tornaram-se hostis para com Alfred, em resultado disso? - perguntou Jerome, com um sorriso
prazenteiro.
- Não! Pelo contrário! - respondeu Mr. Lindsey, enquanto um leve sorriso cínico lhe brincava nos
lábios. - Parecem partilhar da convicção de Dorothea de que ele
foi seduzido pelo rosto e pelas "artimanhas" de Miss Amalie. O que, confesso, é provavelmente
verdade. Bem, devo admitir que existe mais pena por Alfred, e por nós,
do que propriamente reprovação. Mas espero que essa atitude não dure muito tempo. Não que Miss
Amalie se sinta destruída, ou que isso a afecte. Esta história toda
diverte-a. E isso faz-me lembrar que existe nela um forte sentido de humor. E também um espírito
muito inteligente, bem como um gosto surpreendentemente espantoso.
- E acha que isso chega para contrabalançar tudo o resto? Mr. Lindsey mexeu-se na cadeira. Levou
as mãos aos lábios e
olhou para o fogo. Depois, disse, como se tivesse mergulhado de súbito num encantamento:
- É estranho confessá-lo, mas acho que é isso mesmo que acontece. Perguntei muitas vezes a mim
próprio porque motivo eu não me opus mais, ou não agi de modo mais
desaprovador. Agora, eu sei. Miss Amalie não é como certas jovens que conheci na minha
juventude, ou que conheço mesmo hoje. Existe dentro dela força, coragem, uma
total ausência de medo e uma honestidade bem vincada. Ela não diz as coisas com rodeios, nem
utiliza sorrisos melífluos. O seu espírito possui uma clareza e uma
rectidão que é como um vento aberto. Nunca ouvi, da sua boca, uma única palavra deliberadamente
hipócrita nem lhe vi nunca uma atitude de crueldade gratuita ou de
mesquinhez.
Ficou silencioso por breves instantes e depois disse, com voz muito suave:
- Se eu fosse jovem, não conseguiria resistir-lhe. Ela é... uma verdadeira mulher.
Ergueu os olhos, deu a impressão de que ia continuar a falar, mas ficou em silêncio quando viu
aparecer no rosto de Jerome uma expressão estranha, um olhar indescritível
que sugeria dor, perturbação, pouco à-vontade.
Jerome levantou-se e encostou-se contra a lareira, como se lhe tivessem faltado as forças e
precisasse de alguma coisa a que se apoiar. Ficou meio virado para o
pai, e disse numa voz estranha:
- Pensei que ficaria satisfeito se eu fizesse tudo o que estivesse ao meu alcance para impedir este
casamento.
Mr. Lindsey ficou tão perplexo com a expressão que viu no rosto do filho que não lhe respondeu de
imediato. Depois, a sua voz fez-se ouvir, obscuramente perturbada
e impaciente:
- Que podes tu fazer, Jerome? Não há nada que possas fazer. Há coisas que têm de ser aceites.
Jerome não se voltou, e retorquiu-lhe:
- Se o pai proibisse o casamento, Alfred obedecer-lhe-ia. O pai tem nas suas mãos os meios para o
levar à obediência.
Mr. Lindsey ficou silencioso. Os dedos apertaram-se-lhe uns contra os outros, lentamente, uma vez
e outra. Falando consigo próprio, disse:
"Há medo nesta sala, e perigo também. O que é? O que aconteceu? Sim, sinto violência, também.
Será que ela vem de Jerome? Porque é que ele se importa tanto com o
casamento de Alfred? O que é que isso pode significar para ele? Há, no meio de tudo isto, qualquer
coisa mais que não consigo compreender. Será o dinheiro? Sim,
talvez; deve ser o dinheiro."
Depois, em voz alta, disse:
- Não o forçarei a obedecer-me. Alfred já não é nenhum jovem. E, além disso, trata-se da sua
própria vida. Concede-lhe, pelo menos, essa dignidade. Jerome, queres
fazer o favor de te sentares?
Jerome deixou-se cair de novo na sua cadeira. Olhou para o lume. O seu perfil recortava-se contra
as chamas, escuro, obstinado e... imperscrutável. Sentindo o olhar
do pai pousado sobre si, ergueu a mão, num gesto de puro instinto, e escondeu o rosto.
Mr. Lindsey disse:
- Espero que fiques connosco durante mais algum tempo, depois do casamento! Estiveste tanto
tempo fora de casa, meu rapaz!
Jerome não se moveu, mas a sua voz fez-se ouvir por detrás do refúgio da mão que continuava a
tapar-lhe o rosto:
- Importar-se-ia se eu ficasse... indefinidamente? Mr. Lindsey endireitou-se na cadeira.
- Se eu me importo? Jerome, estás a falar a sério? Jerome deixou cair a mão. Parecia muito calmo.
- Sim, estou a falar a a sério. Hesitou um pouco, e depois continuou:
- Acho que estou a ficar cansado da vida que tenho tido até agora...
Mr. Lindsey sorriu, e o sorriso era radiante, enchendo-lhe o rosto de uma alegria quase esfusiante.
Estendeu a mão e tocou no braço de Jerome. Mas Jerome não fez
um único gesto. Apenas os olhos se fixaram no rosto do pai, com uma expressão dura.
- Jerome! Se eu pudesse acreditar no que tu dizes! Foi o que sempre esperei... mas, nos últimos
anos, desde a guerra, a esperança foi desaparecendo aos poucos...
Jerome observou o pai.
- Tenho andado a pensar pedir-lhe que me arranje um lugar no Banco - disse.
Mr. Lindsey ficou a olhar para o filho, com o espanto espelhado no rosto. A pouco e pouco, porém,
o rosto escureceu-se-lhe. Recostou-se na cadeira, e perguntou:
- Jerome, o que é que está por detrás disso tudo?
- Penso que fui muito claro, pai. Estou cansado da vida... libertina que levei até agora. Acho que
poderia vir a gostar do Banco, se tentasse. Vai dar-me essa oportunidade,
pai?
- Não achas que essa tua atitude é um pouco estranha e súbita?
Jerome sorriu.
- Talvez, para si. Mas no caminho para cá pensei muito. Talvez até inconscientemente eu tenha
andado a pensar nisso
nos últimos tempos. Depois, desde que estou aqui em casa, sinto um certo contentamento e bem-
estar. É muito provável que eu tivesse saudades de casa e não me tivesse
apercebido disso com muita clareza.
Os olhos tinham um brilho cândido, mas Mr. Lindsey viu, ou julgou ver, que qualquer coisa de
obscuro latejava por debaixo daquela capa de candura. - Tu não estás
a ser franco comigo, Jerome. - Que diabo, pai! Claro que estou a ser franco! É assim tão estranho
que um filho pródigo deseje regressar a casa? - Mas... tu não andaste
exactamente a comer cascas ou restos e a dormir nos chiqueiros com os porcos e os bois... para
continuar a parábola. O sorriso de Jerome tornou-se maior.
- Como é que sabe, pai? Meu Deus, acho que me estou a tornar literato à medida que os anos
passam! Mas Mr. Lindsey não lhe devolveu o sorriso. Em vez disso, mostrou-se
frio e pensativo, não afastando o olhar fixo e penetrante de Jerome.
Retorquiu-lhe, então:
- As tuas decisões sempre foram muito volúveis, Jerome. E dirigir um Banco não é uma profissão
que se deva abraçar com leviandade, para se abandonar logo a seguir,
também sem pensar. Ela exige disciplina, estudo, um raciocínio claro e lúcido, aplicação e uma
capacidade de pensar pertinaz. Desculpar-me-ás se te disser que,
até agora, não demonstraste nenhuma destas qualidades que, embora pareçam maçadoras e
aborrecidas, por vezes, e não ofereçam qualquer espécie de divertimento,
são necessárias a um banqueiro. - Porque não me experimenta? Mr. Lindsey retorquiu-lhe:
- Que sabes tu de um Banco e das suas actividades?
- Para lhe falar com franqueza, nada. Mas posso aprender, com os excelentes ensinamentos que
Alfred me quiser proporcionar. Afinal de contas, eu não sou nenhum
imbecil, e gabo-me de ter um espírito rápido.
- Demasiado rápido, Jerome! - replicou Mr. Lindsey, num tom abstracto.
- Nunca me tinha dito isso antes... especialmente assim, em jeito de acusação...
Mr. Lindsey mexeu-se na cadeira, como se tivesse, de súbito, sido atacado de dores violentas.
Depois, disse:
- Jerome, nunca te recriminei fosse o que fosse. Talvez tenha agido, por isso mesmo, de modo
errado; talvez eu tenha decidido, recordando-me da rigidez dos meus
pais, que nenhum
filho meu haveria de sofrer quaisquer restrições ou seria obrigado a adaptar-se ou a obedecer a
quaisquer padrões preconcebidos pelo meu próprio espírito. Talvez
eu tenha feito mal, deixando-vos seguir sempre o caminho que vocês mesmos escolhiam. Tal
atitude, afinal, parece que não surtiu um efeito muito positivo. Tu não
tens respeito nenhum pelo dinheiro, e nem sequer estou a falar de montantes bastante volumosos.
Não tens respeito por ele como símbolo do tempo e do esforço de um
homem, do seu suor, da sua capacidade de trabalho e da sua própria vida. Para ti, ele representa
apenas um meio de troca, que utilizas para comprares os prazeres
e loucuras que te apetecem e para satisfazeres desejos fáceis.
A sua voz era suave, mas os olhos estavam cheios de uma rigidez azul e fria, e a boca adquirira um
ricto de tristeza amarga.
- Tem uma opinião muito baixa a meu respeito, pai.
- Tu tens uma opinião melhor, Jerome?
Jerome ficou silencioso. Quase compassivo, Mr. Lindsey continuou:
- Jerome, é preciso que te lembres do que fizeste ao dinheiro que te deixou a tua avó. bom, devo
dizer-te que não tenho nada contra o prazer e a alegria, as viagens
ou os divertimentos. Eu tive muito pouco disso na minha juventude... talvez demasiado pouco. Eu
queria que tu conhecesses o Mundo e te divertisses. Mas... confesso
que nunca julguei que perderias toda a tua fortuna nas mais estúpidas e inconseqüentes conquistas e
prazeres sensuais e mundanos. Julguei que, pelo menos, tu tivesses
o mínimo sentido das proporções. E, no entanto, talvez eu tenha errado. Talvez assim, quando
chegares à velhice, tu tenhas qualquer coisa mais alegre de que te recordares,
do que simplesmente talões e depósitos bancários. Talvez essa seja a melhor parte.
"Oh, maldito seja o teu "compromisso", a tua "tolerância"!", pensou Jerome.
No entanto, em voz alta, disse:
- Começo a duvidar que ela seja, realmente, a melhor parte, pai!
- Mas... gostaste, não?
- Sim. Seria um sentimentalão doido se o negasse. E seria ainda pior se dissesse que os prazeres que
tive foram ocos e vazios. Não foram. Deram-me, pelo contrário,
uma satisfação considerável. No entanto, mesmo o champanhe, o caviar e os bailes podem tornar-se
enfandonhos e cansativos. Gostaria de tentar ser um cidadão normal,
com uma vida sólida... para variar.
- Revoltar-te-ias.
- Não tenho assim tanta certeza disso, pai. Pelo menos, deixe-me tentar.
- A tua única incursão no reino dos negócios bancários, Jerome, foi quando tu me convenceste, aliás
sensatamente, devo dizê-lo, a trazer o caminho-de-ferro até Riversend.
Devo confessar que fiquei surpreendido e agradado, até, da tua visão.
- Oh, experimente-me com outras visões! - exclamou Jerome, num tom ligeiro e brincalhão.
- Jerome, um banco não pode ser considerado e tratado como uma brincadeira. Há demasiadas
coisas em jogo, demasiadas vidas humanas dependem dele. Não se trata, aqui
do baccarat ou da roleta. Não se trata de jogar, ainda que de certo modo o seja, mas de um modo
mais perigoso e conservador, com base em propriedades reais, valores...
- E no carácter humano e também certos imponderáveis! Mr. Lindsey sorriu.
- Vejo que te lembras das minhas próprias palavras, Jerome. Bem! Mas precisamos de ter algum
conhecimento do carácter humano e dos imponderáveis com que lidamos.
Nada é certo e seguro e fixo neste mundo. Fazem-se muitos erros nesta profissão. Mas não são
permitidos erros em demasia. Demasiados erros significam vidas arruinadas,
desespero, morte e
miséria. Não podemos correr esse risco.
- Alffred compreende esse tipo de coisas? - perguntou
Jerome, fixando o pai com o seu olhar duro e penetrante.
Mr. Lindsey hesitou.
- Nem sempre! - admitiu ele. - Alfred tem reverência e
respeito pelo dinheiro, como coisa própria que é. Mas essa é uma qualidade positiva, afinal, uma
salvaguarda, uma protecção
mesmo para aqueles que dependem de nós. Num banqueiro, a
falta de imaginação é melhor do que imaginação em demasia.
-Eeu... tenho-a em demasia, não é?
Mr. Lindsey olhou para ele, firmemente, e respondeu:
- Sim, talvez. E também demasiada irresponsabilidade.
Querias que eu fosse franco, não é verdade?
Jerome dirigiu-se até à bandeja de prata onde ainda continuavam a garrafa e os copos de uísque.
Serviu-se de uma quantidade bastante pródiga, e engoliu-a de um trago.
Voltou, depois, para junto da lareira.
- Sim! - disse ele. -Adoro a franqueza. Não é mais mortal que a guilhotina.
Mr. Lindsey sorriu, involuntariamente.
- Receio bem estar a ofender-te, meu rapaz. Mas é preciso
considerar tudo.
Jerome retorquiu-lhe:
- Suponhamos que o pai "reserva o julgamento final" no que diz respeito à minha pessoa!
Suponhamos que o pai me dava uma oportunidade! Afinal de contas, como neófito
dos negócios bancários, eu não poderia causar demasiados prejuízos. Provavelmente, Alfred guarda
as chaves numa corrente que usa à volta do pescoço.
Mr. Lindsey voltou a recostar-se na cadeira e fechou os olhos. Parecia dormitar, ou ter caído num
dos seus habituais momentos de fraqueza. O lume estalou, lançando
chamas mais vivas em redor. O temporal já não assobiava junto das janelas, nem fazia abanar as
portas. A casa estava mergulhada em silêncio e o relógio fez soar
a sua voz melódica, ao bater as onze horas, uma pancada lenta e poderosa atrás da outra.
Por fim, Mr. Lindsey falou, sem fazer um único movimento nem abrir os olhos:
- Tu e Alfred nunca foram muito amigos. E a culpa é tua, Jerome. No entanto, a amizade não é uma
necessidade absoluta nos negócios. Não é que isso me aborreça, nem
que me leve a duvidar das tuas qualidades. Pelo menos, não me preocupa tanto como as outras
coisas.
- Por exemplo, pai?
Mr. Lindsey continuou a falar, como se estivesse mergulhado no mais profundo sono:
- Não sei bem que outras coisas são essas nem o que é que está por detrás dessa tua decisão. Não
acredito totalmente que ela resulte apenas das tuas saudades de
casa ou do cansaço que dizes ter pela vida demasiado sensual e impensada que tens levado, embora
talvez isso tenha tido um certo peso na tua tomada de decisão.
Abriu os olhos. Eram enornes agora, brilhantes e muito azuis.
- O que é, Jerome?
Tinham sido muito raras as ocasiões em que o pai o olhara daquela maneira, e de todas as vezes que
isso acontecera Jerome sentira-se intimidado. Aquele olhar fazia
com que o coração dele se encolhesse, atemorizado; havia nele qualquer coisa que o obrigava a
recuar, qualquer coisa que parecia penetrar em cada canto da sua carne
e do seu espírito. Sentia o mesmo agora, e um rubor forte e estúpido cobriu-lhe as faces.
- Sim! - disse Mr. Lindsey, muito sereno. - Eu tinha razão! Há mais qualquer coisa. O que é,
Jerome? Tenho medo. Acho que sempre utilizei a minha razão e o meu discernimento
na vida. No entanto, há alturas em que a razão não é suficiente. O instinto é mais forte, então, e de
mais confiança. O meu instinto está perturbado e confuso, Jerome,
porque não acredito
que essa coisa poderosa que te impele a esta estranha decisão seja, também, uma coisa boa. Penso
que é algo de violento, de perigoso e de terrível. Além disso, penso
também que nem tu próprio tens perfeita consciência do que é. Tenho medo, Jerome. Jerome não
conseguia falar. A sua mão batia, em ritmo sincopado e lento, na lareira,
pois, às palavras do pai, ele pusera-se inconscientemente de pé. Não conseguia afastar o seu próprio
olhar dos olhos azuis, inexoravelmente brilhantes, do pai.
- Pensas usurpar o lugar de Alfred? - perguntou Mr. Lindsey, quase piedosamente.
Jerome continuava sem conseguir responder, embora se apercebesse de que era necessário que o
fizesse.
- Então, com toda a honestidade, Jerome, deixa-me dizer-te que a posição de Alfred é indestrutível e
inexpugnável. Já tratei desse assunto e nada me levará a alterar
o meu... pensamento. Não podes fazer nada a Alfred. Mas... que estou eu a dizer? Porque quererias
tu fazer-lhe alguma coisa? Não acredito que sintas qualquer espécie
de ódio para com Alfred. Aliás, apenas houve escárnio e desprezo... coisas sem a importância que
normalmente se lhes atribui. Não interessa! Não podes ferir Alfred,
Jerome. Pensa bem nisso.
com voz abafada, Jerome retorquiu:
- Acho que não o quero ferir. Porque havia eu de querer uma coisa dessas? Que ele receba e tenha
aquilo que o pai, na sua caridade, pensou dar-lhe.
As sobrancelhas de Mr. Lindsey enrugaram-se.
- Estou a ver. Acredito em ti, Jerome. Nesse caso... o que é?
As mãos de Jerome, subitamente frias e trémulas, agarraram-se, desesperadas, ao rebordo da lareira.
- Não sei! - respondeu, como se falasse contra a sua própria vontade. - Não sei! Só sei que quero
ficar, que quero ter uma parte no Banco.
- Não te interessava ficar aqui... sem um lugar no Banco?
- Não! Preciso de ter uma ocupação qualquer. Mr. Lindsey fechou os olhos de novo.
- O meu instinto, apesar de todo o meu raciocínio e de toda a minha afeição por ti, leva-me a pedir-
te que te vás embora, Jerome.
Jerome ficou de novo em silêncio. Os dedos estavam rígidos e doíam-lhe quando os afastou do
mármore da lareira. Flectiu-os e dobrou-os com força, como que a dar-lhes
vida. Olhou as marcas húmidas que eles tinham deixado na pedra. Sentia os joelhos trémulos,
enfraquecidos. A velha ferida começou a arrepanhar-lhe a perna, como
se tivesse recomeçado a sangrar.
com voz rouca, disse:
- Se o pai quer que eu me vá embora, irei. Mas... nunca mais voltarei. Nunca mais! Juro-o! Depois
de eu partir, nunca mais me voltará a ver.
- Porque não? Ofendi-te assim tanto, Jerome? - perguntou Mr. Lindsey, com uma profunda tristeza
na voz.
Jerome respondeu-lhe:
- Não sei porque é que nunca mais voltarei aqui. Só sei que não voltarei. Não seria capaz de o
suportar.
Um longo silêncio caiu sobre a sala. Por fim, Jerome murmurou:
- Não me mande embora, pai!
Mr. Lindsey mexeu-se na cadeira, e disse:
- Dá-me a minha bengala, Jerome. Obrigado. O teu braço, por favor. Já não sou aquilo que fui!
Ficaram de pé, um em frente do outro, olhando-se mutuamente.
- Fica, Jerome! - disse Mr. Lindsey. - Fica. Há um lugar para ti no Banco.
Jerome obrigou-se a sorrir.
- Obrigado, pai. Não se há-de arrepender.
- Arrepender! - repetiu Mr. Lindsey, com um sorriso indecifrável.
Levou a frágil mão à testa, e disse ainda:
- Estou a começar a imaginar coisas, talvez, mas algo me diz que farei muito mais do que
arrepender-me. Não, por favor, não venhas comigo. Ainda sou capaz de caminhar
sozinho. Boa noite, Jerome.
Jerome ficou só. O lume estava a perder intensidade, começando a apagar-se aos poucos. Olhou
para a cadeira vazia do pai, e exclamou em voz alta:
- Oh, meu Deus!
Capítulo oitavo
Era muito tarde, mas Jerome Lindsey não se sentia capaz de ir para a cama. O silêncio profundo que
se instalara depois da tempestade parecia aumentar, em vez de
diminuir, a sua impaciência e o seu nervosismo violento e febril. E, no entanto, esse nervosismo não
tomava a forma de movimento constante. Parecia, pelo contrário,
imobilizá-lo, como um homem fica imobilizado e inerte sob o estrangulamento de uma dor
prolongada e intensa. Ficou de pé, junto da janela, olhando sem ver lá
para fora, a mão crispada nos reposteiros. Centrava o pensamento no seu sofrimento interior,
resoluto, pertinaz, sentindo, no entanto, um medo terrível de o analisar,
de o compreender.
Voltou a cabeça lentamente para um dos lados, e inclinou-a de modo a poder a ver as luzes pálidas e
amareladas lá em baixo no vale, frágeis estrelas douradas aqui
e ali que tremeluziam, imprecisas, na distância. Enquanto as observava, elas foram-se apagando,
devagar, uma após outra. Por fim, a escuridão inundou tudo. Ouviu
o som abafado dos pedaços de madeira carbonizada a caírem no chão da lareira, o som musical do
relógio lá em baixo e o constante e soturno estalar da velha casa.
Por fim, muito lentamente, a sua consciência movimentou-se para fora de si próprio e alargou-se à
paisagem que se estendia para lá das janelas. Estas debruçavam-se
sobre um mundo brilhante de negros e brancos, por debaixo de uma Lua gelada, atirada a grande
velocidade, como uma enorme moeda de prata, através do negrume do céu.
Não havia nada de estático naquela paisagem, apesar do silêncio nocturno e da ausência de
colorido. Era tudo um fogo preto e branco, refulgindo num brilho radioso.
As estrelas pareciam acompanhar aquele movimento diabólico e esfusiante com o seu pestanejar
permanente; os flocos de nuvens que corriam velozes acima e abaixo da
Lua eram iluminados por uma luz de prata cintilante. Os montes prateados pareciam deslizar pelas
vertentes suaves até à cúpula sombria dos pinheiros cá em baixo.
Um enorme ulmeiro parecia erguer-se a meio do caminho; a sua sombra subia como uma rede negra
e imensa sobre a neve macia, num rendilhado intrincado e minucioso.
Por todo o lado surgiam arbustos, como que abandonados aqui e ali, carregando cada um deles um
peso de alabastro, desenhando cada um deles o reflexo vivo de si próprio
na neve, como mancha de tinta profundamente negra. A própria neve brilhava e cintilava nos seus
requebros arredondados, nas suas imensas vastidões de mármore.
Toda a noite refulgia, cintilante, demasiado perturbadora para ser real. Não era uma noite para
dormir. O esplendor era demasiado violento, com uma espécie de palpitação
coruscante; o silêncio era demasiado intenso, demasiado selvagem na sua solidão gelada. Contudo,
não havia vento nem movimento de qualquer espécie. E era isso que
infligia uma espécie de terror em Jerome, apesar do subjugante fascínio daquele espectáculo... uma
espécie de desorientação nervosa, de inquietude. Era como se ele
fosse surdo e estivesse a assistir a uma primordial cena da mais violenta selvajaria, e não
conseguisse ouvir nenhum som. Era como se tivesse sido transportado para
a Lua e estivesse a ver uma paisagem de aterrorizadora beleza, tempestuosa e no entanto
fria como a morte, nunca antes observada pelos olhos do homem.
Pensou:
"Gostaria de pintar isto! Mas... que pintura poderia possuir esta vida de preto e branco, esta
violência?"
Os pensamentos pareciam correr sobre a sua depressão interior, como pequenos riachos sobre
pedras em amontoado caótico. Num esforço medonho, obrigou-se a ser mais
objectivo. Mas a sua inquietação aumentou. Sentiu uma espécie de pânico. Tinha de haver
movimento, ali. Tinha de haver qualquer coisa que se mexesse, que se movimentasse,
que desse mostras de vida. Havia terror naquela total ausência de movimento. O quente coração
humano repudiava-o.
Ele, ele próprio, mexeu-se.
Via uma sombra, longa e esguia, passar sobre a neve, por debaixo da sua janela. Incrédulo,
comprimiu o rosto contra a vidraça fria. A sombra alongou-se e tornou-se
mais clara. Alguém caminhava lá em baixo, sem um ruído. E... aquilo que projectava a sombra,
surgiu...
Era Amalie Maxwell.
Vestia um casaco curto, de pele, e tinha as mãos enfiadas num regalo. Mas a cabeça estava
descoberta. Tornou-se parte daquele todo brilhante de preto e branco do
mundo à sua volta. Jerome podia ver claramente a sombra negra do cabelo dela caindo-lhe abaixo
dos ombros. O rosto surgia-lhe puro e iluminado pela luz pálida da
Lua, e os olhos eram cavernas de escuridão. Ela deteve-se debaixo dajanela, o perfil virado para ele,
de rosto erguido na direcção da Lua. Agora, também ela estava
imóvel e inerte como tudo o mais à sua volta.
Jerome olhou-a, e os seus dedos retesaram-se em redor do puxador dos reposteiros. A Lua tornara-
se -ainda mais radiosa. Conseguia distinguir a boca dela, e mesmo
a sua expressão de tristeza. Depois, ela começou a mover-se de novo. Tinha-se voltado e caminhava
agora devagar ao longo da suave vertente, na direcção dos pinheiros.
Deteve-se junto à sua sombra escura, onde a sua figura quase desapareceu, mal se podendo
descortinar.
Sem pensar, Jerome correu para o seu guarda roupa, tirou de lá o casaco forrado com pele e
arremessou-o para cima dos ombros. Correu depois para a porta e abriu-a
rápida mas silenciosamente. Desceu, sem ruído, a pesada escadaria. Passou pela porta da biblioteca.
Não viu nada senão as ténues brasas avermelhadas no chão da lareira.
A corrente da porta tinha sido retirada, e ele abriu-a sem um único estalido. Saiu e puxou-a atrás de
si.
O ar puro e estéril da noite invernosa pareceu girar à sua volta.
Estava muito frio, mas ainda assim era uma noite agradável. Sentia dentro de si o bater do coração.
Algures, durante a pressa, torcera a sua perna ferida ligeiramente.
Doía-lhe. E, no entanto, até aquela própria dor o excitava. Estava, pensou, em perfeito delírio.
Encontrava-se no meio de um mundo selvagem, sem realidade.
A neve estalou sob os seus passos cautelosos, quando se afastou da porta e caminhou ao longo da
frontaria da casa. Conseguia ver as pegadas de Amalie, pequenas,
firmes, afastadas umas das outras. Revelavam, por si sós, um passo determinado e não furtivo. Atrás
delas viam-se umas marcas confusas que ele sabia terem sido feitas
pelas suas saias.
"Então, ela nem ergueu as roupas!", pensou Jerome, sorrindo.
Chegara, agora, à esquina da casa. Passou por debaixo das janelas do quarto do pai e deteve-se,
olhando para elas. Os cortinados estavam corridos, completamente
fechados. Passou, em seguida, pelas janelas do quarto da irmã, e viu que o luar se reflectia nas
pregas do espesso veludo carmesim. Por último, passou por onde Amalie
se detivera e erguera o rosto para a Lua.
Caminhara, até ali, junto à casa, mas sabia que, apesar de toda a cautela dos seus passos e do seu
cuidado em permanecer quase colado à parede, estava agora claramente
visível para Amalie, escondida algures por entre as sombras dos pinheiros. Sabia que ela ainda ali se
encontrava, olhando-o sem fazer um movimento. O luar incidia
sobre ele, em cheio; a sua luz radiosa não escondia nada do seu corpo. Sentia-se singularmente
exposto e, no entanto, excitado. Olhou lá para baixo, para o vulto
dos pinheiros, e soube, de imediato, que através do espaço branco e cintilante que os separava,
Amalie o estava a observar, embora ele não a pudesse ver.
Era curioso e electrizante saber isso, sentir a longa e fixa pressão dos olhos dela sobre ele. Saberia
Amalie que ele sabia que ela se encontrava ali? Ou pensaria
ela que ele saíra de casa arrastado por um impulso, exactamente como ela tinha feito? Quase que era
capaz de escutar os seus pensamentos. Amalie não faria um único
movimento nem revelaria a sua presença. Ela... ficaria à espera.
Era absurdo da parte dela esconder-se ali nas sombras, julgando, talvez, que não seria descoberta.
Jerome pensou:
"Deve estar a sorrir, mordaz e irónica, observando-me exposto a este luar, como uma borboleta
presa por um alfinete, enquanto que ela própria se esconde dos meus
olhos."
E, de súbito, soube que ela não estava a sorrir. Observava-o,
tão alerta como qualquer animal selvagem quando descoberto inesperadamente. Teve a certeza de
que ela não faria um só movimento sequer, até que ele se fosse embora.
O silêncio gelado e pesado daquela noite permanecia inquebrável. Nem um ramo estalava, nem uma
árvore gemia. A luminosidade ia-se tornando maior. Frágeis plumas
de fumo saindo das chaminés transformavam-se num rendilhado de prata flutuando sobre a casa e
lançavam sombras fantasmagóricas sobre a neve. O tempo parecia ter
parado naquele mundo da lua.
Através da neve, os olhos do homem e da mulher encontraram-se numa imobilidade absoluta.
"Agora", pensou Jerome, "ela sabe que eu sei que está ali. Porque é que não se mexe, quanto mais
não seja para me dar a conhecer a sua indiferença?".
Era absurdamente obstinada aquela sua atitude, e era ridículo esconder-se. Teria ela medo? E... de
quê?
Por fim, recomeçou a caminhar, seguindo as pegadas dela pela vertente. Caminhava devagar, como
se estivesse a dar um passeio. Sim, a passada dela era larga.
Procurava pousar os seus próprios pés sobre as pegadas de Amalie. O pulsar na perna tornou-se
mais forte, e parecia comunicar-se-lhe ao peito.
De repente, deteve-se. Talvez estivesse enganado. Talvez acabasse por verificar que ela se tinha ido
embora, quando chegasse junto dos pinheiros. Talvez Amalie se
tivesse ido encontrar com alguém naquelas sombras, e não se tivesse apercebido sequer da sua
presença, ali. Talvez aquilo fosse um... rendez-vous à meia-noite...
Pela primeira vez teve consciência do frio cortante, do vazio e da esterilidade cintilante da noite!
Recomeçou a caminhar com menos precaução do que anteriormente, e também mais depressa. Os
pinheiros pareciam correr na sua direcção, como uma parede negra e ameaçadora.
Deteve-se de novo. Podia ver agora o brilho do rosto de Amalie debaixo das árvores. Olhava-o
abertamente. As árvores não estavam mais imóveis do que ela.
Amalie... estava sozinha.
Jerome começou a sorrir e diminuiu a passada. Olhou para trás, na direcção da casa. Ali estava ela,
forte e cinzenta contra o céu iluminado, todas as janelas fechadas
como olhos adormecidos; apenas o prateado que subia das chaminés testemunhava que, no seu
âmago, pulsava vida. Ninguém o ou vira, nem a Amalie. Toda a gente dormia.
Apenas ela e ele estavam acordados. No vale, lá em baixo, nem uma luz brilhava.
Avançou mais alguns passos. Agora, o rosto de Amalie era uma pequena moldura de prata recortada
na escuridão dos pinheiros.
Em voz muito baixa, Jerome perguntou:
- É você que está aí?
As palavras saíram-lhe tão devagar e tão abafadas que não provocaram qualquer eco.
Durante um longo momento, não houve qualquer resposta. Iria ela permanecer obstinadamente em
silêncio? Estaria ela a pretender jogar um jogo absurdo?
Por fim, a voz de Amalie chegou até ele, suave mas fria:
- Sim. Estou aqui.
Avançou na sua direcção, até ficar, também ele, envolvido pela sombra dos pinheiros. Se alguém
espreitasse pelas janelas da casa, não conseguiria ver nada. A lua
batia nas vidraças com um brilho branco. O tecto coberto de neve parecia cintilar.
Jerome estava muito próximo de Amalie, quase à distância de um braço estendido. A figura dela
recortava-se, direita e esguia, na escuridão, o rosto brilhando. Viu-lhe
as difusas cavernas escuras que eram os seus olhos, e os contornos moldados dos lábios.
- Que diabo está você a fazer aqui? - perguntou ele, mantendo a voz baixa, quase sussurrante.
Ela retorquiu-lhe:
- Porque é que me seguiu?
- Segui-la? - ripostou-lhe ele, tentando dar à voz um tom ligeiro de incredulidade.
Mas ela, rápida e desafiadora, disse-lhe:
- Seguiu, não foi? Como é que você podia saber que eu estava aqui, se não me tivesse visto das
janelas do seu quarto?
Jerome respondeu-lhe:
- Talvez eu quisesse respirar também um pouco de ar fresco. Talvez eu tivesse visto as suas pegadas
na neve, só quando saí de casa.
- Talvez...! - retorquiu ela.
De súbito, Amalie soltou uma gargalhada desdenhosa.
Jerome respondeu-lhe:
- O que é que a faz pensar que eu pretendia segui-la?
A voz saíra-lhe rouca, gutural, tornada espessa e dura pela
raiva salgada que ameaçava explodir dentro dele.
Sentiu, mais do que viu, que ela encolhia os ombros.
- Isso é o que eu pergunto a mim própria, também - disse
ela. - Aliás, talvez você me possa explicar. Sou muito curiosa.
Agora, Jerome via o brilho cintilante da brancura do rosto
dela, e soube que os seus olhos troçavam dele, repelindo-o,
irónicos. Um sem número de respostas cruzaram-lhe o cérebro, e todas elas eram absurdas. A ira
que sentia estava a perturbar-lhe a razão, o seu savoir faire. Sabia
que só conseguiria escapar àquela situação ridícula dizendo:
"Não tinha a certeza se era você. Perguntei a mim próprio quem é que poderia andar por aqui, a esta
hora da noite. E agora, se me dá licença, deixá-la-ei entregue
ao prazer imperturbável da noite."
Depois dessas palavras, apenas teria de se ir embora.
Mas... não podia dizer aquilo. Não podia voltar as costas e deixá-la. Apenas foi capaz de
permanecer em silêncio, olhando para ela, tentando encontrar-lhe o brilho
dos olhos.
De um modo quase simples para o imprevisível e duvidoso Jerome, disse:
- Sim, admito que a vi. E... vim atrás de si.
- Porquê?
Esta única palavra que ela proferiu soou clara e indiferente.
- Talvez quisesse falar consigo.
- Porquê?
Jerome sentiu que o rosto lhe ardia.
- É assim tão estranho que eu pretendesse falar consigo? Ela mexeu-se. Estava a afastar-se dele.
Movimentava-se
através da densa espessura dos pinheiros, até ao outro lado do pequeno bosque. Ele observou-a. A
sua ira estava rapidamente a transformar-se numa raiva violenta.
Pensou que a única coisa que tinha a fazer era voltar para casa. Mas, em vez disso, seguiu-a. Ouviu
o sussurrar dos pinheiros enquanto ela avançava por entre eles.
Por fim, emergiram do outro lado, e à frente deles surgiu apenas a continuação da vertente, agora
mais a pique, caindo até ao vale. Ficaram ainda na sombra dos pinheiros,
lado alado.
Amalie alongou o olhar pelo vale e perguntou serenamente:
- Bem, então o que é que tem para me dizer?
Farrapos de neve desprendidos dos ramos dos pinheiros tinham caído, como estrelas de prata, sobre
a sua cabeça nua e brilhavam, agora, sobre os ombros. Estava muito
direita e hirta ao lado de Jerome, e o seu perfil, calmo e iluminado pela luz da Lua, voltara-se para
ele.
- Você não está a ser delicada! - disse Jerome, sabendo que as suas palavras soavam idiotas. -
Afinal, você vai ser da minha família, e é natural que eu gostasse
de a conhecer melhor.
Amalie voltou-se para ele, muito rápida, mas sem qualquer traço de agitação.
- Você nunca quis conhecer ninguém "melhor", pois não? Só quis conhecer os outros "pior".
Jerome sentiu que o sangue lhe inundava violentamente o rosto.
- Continuo a dizer que não está a ser delicada! Onde é que aprendeu esses modos, Miss Amalie?
- Numa escola bem mais dura do que a sua - respondeu-lhe ela, mordaz.
- Sem dúvida! - retorquiu ele, num insulto mascarado de suavidade. - Não ponho isso em dúvida,
nem por um momento sequer!
Amalie soltou um suspiro profundo, claramente audível aos seus ouvidos, e retorquiu-lhe:
- Pelo meu lado, não tenho nada a dizer-lhe, Mister Lindsey. Saí de casa porque gosto de noites
como esta. Far-me-ia um grande favor e demonstraria as suas nobres
maneiras sem mácula se se fosse embora.
"Ordinária vagabunda!", exclamou Jerome para si próprio, remordendo lentamente as palavras uma
a uma no seu espírito. Davam-lhe confiança e mitigavam-lhe um pouco
a fúria que sentia.
Depois, em voz alta, disse:
- Modos cuidados e educação são pré-requisitos daqueles que nasceram "de boas famílias". Não
estou a censurá-la, Miss Amalie. Estou simplesmente a aceitar um facto.
Além disso, existe uma obrigação que é imposta aos membros de uma família como a nossa.
Muito calma, ela perguntou:
- E qual é essa obrigação, senhor?
- Verificar se qualquer outro membro não é, consciente ou inconscientemente, culpado de destruir o
seu prestígio e a sua posição.
Amalie olhou para ele com firmeza. E de súbito começou a sorrir. Os dentes brancos reluziram à luz
da Lua.
- Continue, caro Mister Lindsey. Acho a sua conversa muito divertida, mesmo apesar de estar a
perturbar o prazer que sinto com o meu passeio.
Jerome sentiu que começava de novo a perder o controle de si próprio. Tacteou os bolsos à procura
de um charuto e da sua caixa de luciferes. Acendeu um, com gestos
deliberadamente calmos. Os movimentos ajudaram-no. Amalie observava-o com um interesse
propositadamente exagerado. Jerome encostou-se contra o tronco de um pinheiro
alto e colocou o charuto firmemente entre os dentes. Olhou o céu, com ar contemplativo, dobrando
a perna para a aliviar.
- Lamento perturbar o seu prazer! - disse ele com acentuada ironia. - Na realidade, está uma noite
maravilhosa. Estamos
sozinhos. Que melhor oportunidade poderíamos ter para conversar?
- Sou toda ouvidos, Mister Lindsey. O facto de os meus pés e os meus joelhos estarem a ficar, a
pouco e pouco, enregelados, não o incomodará nem por um momento,
eu sei.
- As senhoras têm joelhos, Miss Amalie? - perguntou ele num tom zombeteiro e mordaz. - Não acho
que os joelhos de uma senhora sirvam de tema, ou fossem alguma vez
mencionados durante uma conversa entre... senhoras e cavalheiros.
De novo os dentes dela brilharam num sorriso.
- Mas você não é um cavalheiro, Mister Lindsey, e eu não sou uma senhora.
Interrompeu-se, e depois continuou no mesmo tom:
- Tenho joelhos bem reais e autênticos, senhor. E neste preciso momento, eles estão a ficar
completamente gelados. Por isso,
peço-lhe que seja breve e vá direito ao assunto.
- Decerto, decerto! - disse Jerome, muito sério. - Posso fazer-lhe uma pergunta directa,
especialmente agora que está em definitivo assente que nenhum de nós prima
pela educação e pelas boas maneiras?
- Faça o favor! - retorquiu Amalie numa voz tão séria quanto a dele.
- Porque é que você vai casar com o meu primo, Alfred Lindsey?
Amalie ficou em silêncio, olhando-o muito serenamente. Depois, respondeu:
- Eu podia evadir essa pergunta. Podia dizer-lhe que você não passa de um maçador. Podia voltar-
lhe as costas e ir-me embora, sem sequer me dignar a responder-lhe
ou a dizer-lhe o que quer que fosse. Isso demonstrar-lhe-ia que eu tenho alguns conhecimentos do
que é ter um comportamento de acordo com as circunstâncias, e levá-lo-ia
a formar, da minha pessoa, uma opinião melhor do que a que tem. Mas... não estou interessada na
sua opinião. Não me interessa, nem um pouco, aquilo que o senhor
pensa ou deixa de pensar. E por isso, vou responder à sua pergunta. vou casar com o seu primo por
aquilo que ele me pode oferecer.
Jerome ergueu a mão, como que num protesto.
- Oh, Miss Amalie! Que crueza! Eu julgava que já tivesse adquirido pelo menos alguma polidez de
maneiras, sob a tutela e a orientação da minha irmã. Pelos vistos,
parece que estou enganado. O provérbio é, então, verdadeiro! Não...
- Não se pode fazer uma bolsa de seda com um pedaço de esteira dura! - concluiu ela,
tranqüilamente.
Ele curvou-se.
- Obrigado, MissAmalie.
Ela começou a rir, num riso claro e sinceramente divertido.
- Que ridículo que você é! Acha-se realmente encantador e irresistível, não é verdade? Mas para
mim, não! Acho-o absurdo. Não sei porque é que me seguiu, mas decerto
não foi para me pregar um sermão sobre os motivos que me levam a casar com Mister Alfred
Lindsey. Portanto, estou de novo com curiosidade. E continuo à espera de
uma explicação.
Os dedos frios de Jerome doeram-lhe de súbito.
Dar-lhe-ia um prazer enorme esbofetear aquele rosto irónico e zombeteiro que o enfrentava. Ao
pensar nisso, o coração sobressaltou-se-lhe. Aproximou-se mais dela.
O sorriso de Amalie esmoreceu: Jerome reparou que a sua expressão se transformara de repente,
tornando-se dura, alerta, em guarda.
com voz rouca, perguntou-lhe:
- Quanto é que quer para se ir- embora daqui e não voltar nunca mais?
Viu que os olhos dela se abriam desmesuradamente, permitindo-lhe observar o seu brilho purpúreo
e vivo à luz do luar. Viu-lhe as pupilas palpitantes, e a sombra
das pestanas sobre as faces muito pálidas. A boca era escura e cheia, mas sem um único tremor. com
voz pausada e suave, ela respondeu-lhe:
- Não possui o suficiente, Mister Lindsey, para conseguir subornar-me.
A luz brilhante da Lua começou a dançar à sua volta em largos rodopios. Havia um rumorejar
estranho em seu redor.
Pensou, confuso:
"O vento está a levantar-se outra vez!".
A claridade começou a diminuir, e o rosto dela tornou-se difuso, impreciso.
Ele murmurou:
- Talvez eu conseguisse arranjar o suficiente.
Soube que ela o estava a observar. Amalie recuou um passo. Ele seguiu-a. A luminosidade que até
ali tudo enchera, ia diminuindo aos poucos, deixando em seu lugar
uma escuridão baça. Ela continuou a recuar. Depois, parou abruptamente, impedida de se mover
pelo tronco de um pinheiro. Jerome ouviu-lhe a respiração rápida, perturbada.
com voz trémula, ela gritou:
- Vá-se embora! Por favor, deixe-me sozinha!
Ergueu o regalo e apertou-o contra o peito, como se fosse um escudo. Comprimiu-se contra o tronco
da árvore. Ele sabia que ela estava a tremer. Estendeu a mão e
agarrou-lhe no braço. Os dedos apertaram-se em redor da manga de pele, e Jerome sentiu, por
debaixo, a sua carne rija, palpitante, trémula.
A Lua desaparecera de súbito e as nuvens enchiam o céu, como castelos assombrados. Os pinheiros
inclinaram-se um pouco, gemendo, estalando. De repente, sem qualquer
aviso, o temporal abatia-se de novo contra a terra. A neve, até então calma, começou a fumegar,
enchendo o ar de pequenas partículas aguçadas e dolorosas. Mas ali,
entre os pinheiros, havia ainda um pouco de calma.
O homem e a mulher não se mexeram. Ela não tentou desprender o braço da mão dele, forte como
uma garra. Sentiu que ele se aproximava mais. Como que a tentar proteger-se,
Amalie ergueu ainda mais o regalo. A respiração dos dois misturou-se, levantando um vapor pálido
entre ambos.
Agora, Jerome podia sentir o pulsar do sangue dela na carne debaixo dos seus dedos. A pele do
casaco era fina, barata. Apertou os dedos com mais força, arrastado
por uma espécie de fervor louco, quase de êxtase. Puxou-a abruptamente para si, e o rosto dela ficou
apenas a alguns centímetros do seu.
Olhou-a nos olhos e disse, mascando as palavras, numa raiva selvagem:
- Vai-te embora, Amalie!
Ela tremia violentamente. Ergueu ainda mais o regalo, escondendo por detrás dele a parte inferior
do rosto. Ele viu-lhe o movimento. Então, com a mão que tinha livre,
afastou-lho, e meteu os dedos hirtos por entre a massa frondosa do seu cabelo negro. Sentiu que era
quente, suavemente quente. Apertou com força, num gesto de feroz
tortura, e empurrou-lhe o rosto contra odele.
- Amalie! -murmurou.
Ela não lutou. Parecia inerte, sem vontade própria. Mesmo quando ele apertou a sua boca contra a
dela, a mão ainda enrodilhada nos seus cabelos, não fez um único
movimento. Os seus lábios eram frios e suaves sob a pressão dos dele.
Jerome beijou-lhe a boca uma e outra vez, e outra, e outra ainda, numa deliberação lenta e delirante.
A boca dela continuava fria. Não se importou. Manteve-a apertada
contra si, e sentiu o calor morno do seu corpo alto e magro, a pressão dos seios debaixo da pele
barata. Os olhos dela estavam fechados.
Depois, um longo estremecimento percorreu-a. com uma força espantosa, afastou-o. O cabelo
deslizou por entre os dedos dele, quando ela atirou com a cabeça para trás,
libertando-se. Apanhado de surpresa, Jerome viu-se obrigado a recuar um ou dois passos. Ela olhou-
o. A Lua espreitou por entre as nuvens, e Jerome conseguiu ver
o súbito brilho dos seus olhos, o cintilar dos seus dentes. Depois, Amalie levantou um pouco as
saias, agarrou no regalo que caíra para o chão, virou-se e afastou-se,
correndo. Jerome ouviu o estalar da neve debaixo dos seus pés, e o rumorejar dos pinheiros quando
passava, apressada, por entre eles.
Seguiu-a, afastando da sua frente os ramos vergados sob o peso da neve. Chegou ao outro lado do
pequeno bosque ainda a tempo de ver a sua figura esvoaçante aproximar-se
da casa, correr ao longo da parede e depois desaparecer.
Jerome ficou sozinho, no meio da tempestade que ameaçava abater-se de novo com violência sobre
a terra.
Uma cortina de neve começou a cair abruptamente. O vento tornou-se mais forte, fustigando-lhe o
rosto. Sentia no peito o pulsar tresloucado do seu coração. Cambaleou
e estendeu a mão para se apoiar a um tronco. A perna estava em fogo. A escuridão aumentou.
Sentia-se exausto. Caminhou, muito lentamente, na direcção da casa. A
neve começava a cobrir as
pegadas deixadas por Amalie, e Jerome pensou:
"Amanhã não haverá nem um só vestígio de que passámos por aqui."
A pouco e pouco, foi tomando consciência de uma sensação de enjoo, uma fraqueza súbita que se
apoderava dele, como se estivesse doente, uma desolação e um vazio
imensos, como se alguém lhe tivesse arrancado as entranhas.
O seu quarto estava quente e mergulhado na escuridão, apenas quebrada pelas chamas
empalidecidas e desmaiadas da lareira. Ficou a olhar para as brasas moribundas
durante longo tempo. A desolação que o inundara tornava-se maior, e também aquela agonia
profunda. Era como que um fulminante agravamento de uma doença sem cura.
Sentiu que qualquer coisa se lhe enroscava aos dedos. Estupidamente, examinou-os sem
compreender. Enrolados à volta da mão um emaranhado de cabelos negros de Amalie,
uma teia fina como a seda.
Ficou a olhar para eles, longamente, até que o lume se apagou e morreu na lareira.
Capítulo nono
Acordou ao som de uma gargalhada abafada por baixo da sua janela, e do latido estridente do cão,
Charlie. O sol penetrava a custo por entre os cortinados. Longos
dedos de luz pareciam brincar sobre o tapete que cobria o chão. Enquanto dormia, alguém acendera
de novo o lume na lareira. O estalar da madeira er acolhedor.
A porta abriu-se, e o rosto amacacado de Jim apareceu.
- Ah, senhor, já está acordado! - disse o criado. Entrou, trazendo nas mãos uma bandeja de prata.
Fez uma
ligeira vénia e comentou:
- Café, senhor, e pãezinhos quentes, e bons ovos e bacon, como nunca vi iguais na cidade!
Pousou a bandeja, dirigiu-se rápido para asjanelas e afastou os reposteiros. As vidraças estavam
brancas de gelo, formando imagens de vales, florestas e lagos gelados.
Charlie ladrava agora quase histericamente. O riso chegou até ele mais sonoro e aberto. Jim sorriu,
agradado, e disse:
- O cão está farto de brincar na neve, senhor. Eu vim lá de fora agora mesmo. Não há nada como o
campo.
Jerome puxou uma almofada para cima dos olhos.
- Fecha esses malditos cortinados ao menos um pouco! gritou. - E não quero pequeno-almoço.
Quero antes uma bebida.
Contrafeito, Jim correu os cortinados, mas apenas o suficiente para reduzir a intensidade da luz que
entrava a jorros pelo quarto.
- Não há nada como o ar e a luz do campo para refrescar o espírito de um homem! - disse. - Faz-nos
sentir vivos!
Aproximou-se da cama, com ar ansioso, e ficou a olhar para o amo, enrolado debaixo dos finos
lençóis.
- Mister Jerome, o senhor não vai querer nenhuma bebida!
- disse ele com voz pausada. - Ordens do médico... já sabe! Julguei que isso já lhe tinha passado.
Olhe só para aquele café, a fumegar. Cheira que é um regalo! E
os ovos...
- Raios, já te disse que quero uma bebida! - disse Jerome. Afastou a almofada, e o seu rosto surgiu
lívido e espasmódico aos olhos do fiel criado.
- Anda, despacha-te com isso! De que estarás tu à espera? A ansiedade de Jim aumentou. Atirou
para
o lado as roupas da cama e sentou-se, furioso.
- Eu disse uma bebida, diabos te levem! Será que terei eu próprio de a ir buscar?
Desesperado, Jim disse:
- Faz-lhe mal, senhor. É mau para a sua saúde. Não gostava que o velho senhor seu pai lhe notasse o
cheiro, logo pela manhã, pois não? E as senhoras?
Jerome ficou a olhar para o criado, furioso com a desobediência dele. Mas, antes que pudesse dizer
fosse o que fosse, Jim continuou, apressadamente:
- Não está nada com bom aspecto, senhor! Nem parece o meu amo! E a bebida ainda lhe fará pior.
Experimente, ao menos, o café, mesmo que não coma nada. Não quer,
com certeza, voltar a estar doente, como da outra vez, pois não? Pensei que tudo isto o pudesse
ajudar um pouco a recompor-se.
Jerome abriu a boca para praguejar. Mas depois começou a sorrir:
- Está bem! Beberei o café!
Em redor da boca, as finas rugas pareciam tremer.
- Mas depois quero essa bebida, seja o que for que tu me digas com esse teu maldito atrevimento.
Pestanejou. Sentia os olhos arder, doridos. Semicerrou-os, tentando protegê-los da luz, agora fraca,
que ainda entrava no quarto, por entre os cortinados.
Jim estava deliciado. Apressou-se a trazer uma bacia de prata e uma toalha para junto da cama.
Impaciente, Jerome lavou as mãos num gesto apressado. Olhou, depois,
com repugnância, para a bandeja que Jim lhe colocara sobre os joelhos.
Tagarelando feliz sobre o ar do campo e o brilho do sol, Jim ajeitou as almofadas por detrás das
costas magras do amo. Deitou, em seguida, o café para uma chávena
de formas delicadas e, com gestos precisos e sabedores, juntou-lhe creme e açúcar.
- Olhe-me só para este creme, senhor! Parece veludo. E os ovos? Reluzentes como se fossem
pequenos sóis! E estão quentes... que eu bem me certifiquei.
Falava como se o estivesse a fazer para uma criança doente e mal humorada, enquanto retirava de
cima dos pratos as tampas abauladas de prata. Olhou à sua volta,
procurando um sítio para as colocar, e reparou no casaco de Jerome, atirado descuidadamente para
cima de uma cadeira. Franziu a testa, numa muda interrogação.
"Mas, eu pendurei-o! "disse para si próprio.
com ar absorto, pegou no casaco.
Jerome, que sorvia o café em pequenos golos, disse-lhe:
- Saí ontem à noite... para dar um passeio. Apeteceu-me caminhar na neve.
- Ah, sim! Certamente, senhor! - retorquiu Jim. Voltou a pendurar o casaco no guarda-roupa, e
dirigiu-se
depois para a lareira para espevitar o lume. Depois de pousar o atiçador, endireitou-se. O relógio
que se encontrava sobre a lareira retiniu, soltando uma nota suave.
Jim sorriu, feliz. Sim, não havia nada como o campo. Ali respirava-se, havia paz e silêncio. De
súbito, os olhos caíram-lhe sobre uma fina teia de seda preta, colocada
sobre o mármore branco. Curioso, pegou nela. Afinal, não era seda nenhuma, mas um longo
emaranhado de cabelos de mulher, que se lhe enrolou em redor dos dedos como
se estivesse vivo. Mesmo com aquela luz difusa, parecia resplandecer suavemente.
Jim soube de imediato a quem pertenciam aqueles cabelos. Tinha-os visto, em massas volumosas,
naquela manhã, e tinha-se admirado muito, quando os vira brilhar à
luz forte do sol.
Atrás dele, Jerome resmungou, irritado:
- Está muito bem! vou comer os teus malditos ovos com bacon. Não tarda nada que não me tenhas
engordado como um porco... velha bruxa!
Jim agarrou de novo no atiçador e remexeu no lume com violência. Subrrepticiamente, atirou com a
madeixa de cabelos para dentro do braseiro em chamas. Os fios sedosos
enrolaram-se, pegaram fogo e desapareceram.
Voltou para junto da cama.
- Assim é que está bem, senhor! - disse Jim, com ar jovial.
- Em breve teremos de novo rosas nessas faces. Longos passeios na neve, respirar o bom ar que
Deus nos oferece e comer com vontade... é disso que o senhor precisa!
Mas os seus pequenos olhos estavam assustados. Depois, pensou:
"Talvez este fosse o quarto daquela cadela antes dele vir. Não se pode confiar nas criadas. Se calhar,
ela deixou-os para ali. Porca!"
Estava de pé, junto do leito do amo, e observou-o. Se as "rosas nas faces" dependiam de um apetite
excelente, então elas tardariam muito a aparecer no rosto de Jerome.
Ele mal tinha tocado na comida; mas estava a beber uma segunda chávena de café.
Embora uma voz dentro de si o avisasse Jim não pôde deixar de dizer, com elaborado cuidado:
- Encontrei um bocado de cabelo em cima do mármore da lareira, senhor. Já não se pode confiar nas
criadas, hoje em dia. Andam para aí a cirandar com o espanador
e não prestam atenção às coisas. Possivelmente, a jovem senhora ocupou este quarto antes de nós
virmos.
Jerome pousou a chávena muito devagar, e depois ergueu os olhos para o seu
valet, dizendo:
- Cabelo!? Que horror! Que fizeste com ele, Jim?
- Atirei-o para o lume. A rapariga precisa que se lhe dê uma palavrinha. Hei-de falar com ela, daqui
a pouco, para ver se passa a tomar mais cuidado com as limpezas
que faz.
- Deixa lá! Afinal de contas, não somos mais do que simples hóspedes, aqui - disse Jerome,
recostando-se contra as almofadas.
Fez um gesto na direcção da caixa de charutos, e Jim precipitou-se, pressuroso, para a mesa onde
ela se encontrava. Sem o fitar, Jerome perguntou:
- Jim, gostas do campo?
- Ah, senhor, eu adoro o campo! Todo este ar, toda esta neve! Nada daquela sujidade e daquele ar
pesado das cidades. Nunca tinha visto neve como esta.
- É melhor no Verão - disse Jerome, olhando o fogo. Gostarias de viver aqui, Jim?
Jim ficou espantado.
- Aqui, senhor? Para sempre? Não voltar para lá... para a cidade? Que faria o senhor aqui? E todos
os seus amigos em Nova Iorque?
Jerome expeliu uma baforada de fumo, muito lentamente e disse:
- Amigos? Francamente, Jim, que amigos é que eu tenho? Nem um único, para falar a verdade. Seja
como for, estou cansado da cidade. Sim... estou a pensar em ficar
aqui para sempre. Estou até a pensar em ir trabalhar para o Banco do meu pai. Achas que podias
agüentar... viver aqui?
Jim ficou em silêncio. O seu rosto tinha, mais do que nunca, uma expressão de macaco astuto. Os
olhos remexiam-se nas órbitas, agudos, perspicazes. Sentia-se um
pouco tonto. Quase inconscientemente, afastou os olhos do amo e fixou-os nas chamas.
- Isso não parece seu, senhor! - disse, de modo abstracto e vago.
Depois, a voz tornou-se-lhe mais viva quando disse, abanando a cabeça:
- Não está a falar a sério, Mister Jerome. O senhor não ia agüentar viver aqui! Ao fim de pouco
tempo, estaria farto! Afinal, há muitas coisas boas em Nova Iorque.
com um entusiasmo que não sentia, continuou:
- Há o teatro, a ópera, os espectáculos musicais... as damas! Toda aquela excitação, todo aquele
divertimento! Haveria de sentir a falta de tudo isso, senhor. Não
iria agüentar estar longe durante muito tempo.
Jerome retorquiu:
- Acho que sim. Pelo menos, vou tentar. Jim, se achas que não agüentarias, peço-te que sejas franco
e me digas a verdade. Sentirei a tua falta, claro, mas não te
obrigarei a ficar aqui, para morreres de aborrecimento. A vida aqui é muito calma. E... as criadas
não são do género que tu aprecias.
Sorriu, e ficou a aguardar a resposta do criado, com mais ansiedade do que julgaria ser possível
sentir.
Jim continuava sem conseguir acreditar no que ouvia. Os dois ficaram a olhar um para o outro,
estudando-se e analisando-se mutuamente, tentando um adivinhar o que
ia no pensamento do outro.
"Isto vai ser mau!", pensou o criado de si para si. "Não vai sair nada de bom de tudo isto, não! Ele
voltou aos seus velhos truques. Julguei que não se ia meter
nesta embrulhada... com aquela dama..."
Jerome voltou a falar:
- Tenta, Jim. Por favor, tenta. Podemos ir embora em qualquer altura, quando nos sentirmos
cansados de toda esta quietude. Afinal, não estavas tu para aí, ainda
agora, a cantar rapisódias sobre o ar que aqui se respira, sobre o sol límpido e claro e sobre as rosas
nas minhas faces? Lembra-te que eu não tenho andado muito
bem nos últimos tempos. Talvez isto me faça bem, quem sabe? Sabes, Jim, estou quase a suplicar-te
que fiques aqui comigo.
Tirou a perna magoada para fora dos lençóis e começou a esfregá-la com uma ternura quase
ostensiva. Ao mesmo tempo que o fazia, disse:
- Bem, Jim, qual é a tua resposta?
Jim respirou muito fundo, devagar, sentindo que o seu alar me aumentava. No entanto, respondeu:
- Não o deixarei sozinho, senhor. Como é que eu o podia fazer, depois do que fez por mim? Temos
estado sempre juntos, desde os tempos da guerra. Mas... embora eu
não seja um homem que goste de fazer apostas, acho que não ficaremos aqui muito tempo.
Jerome sorriu e retorquiu-lhe:
- Não me admiraria que tivesses razão, Jim. Mas mesmo apenas algumas semanas podem pôr-me de
novo tão bom como dantes. E agora diz-me como estão as coisas todas.
Já viste o meu pai, Mister Lindsey, esta manhã?
- Não, senhor. Ele não se tinha ainda levantado. Tomou o pequeno-almoço no quarto. E Miss
Lindsey também continua na cama, com gripe e febre, pelo que dizem. Nem
mesmo vi Mister Alfred. Acho que saiu cedo, para o Banco.
O tom da sua voz tornou-se mais lento quando disse:
- Mas... Master Philip e Miss Maxwell... já se levantaram e andam por aí, a brincar com o cão. O
Charlie parece que perdeu de todo a cabeça com esta neve.
Jerome tirou o relógio de cima da mesa e, ao olhá-lo, exclamou:
- Onze horas! Ora aí está o que faz o ar do campo, Jim. Dormir como uma pedra. Vá, anda, dá-me
as minhas roupas depressa, se fazes favor.
Jim tagarelou acerca disto e daquilo, de tudo e de nada, enquanto ajudava o amo a vestir-se.
Barbeou Jerome com extremo cuidado, esfregou-lhe o cabelo com tónico
e escovou-o depois vigorosamente.
- Não voltaram a aparecer cabelos brancos, senhor, graças a Deus! Quer a gravata preta, ou uma das
suas novas gravatas francesas? Talvez estas sejam mais suaves
para usar de manhã.
Estendendo a Jerome uma fina gravata de rico desenho de Paisley, perguntou:
- Que tal esta, aqui? Fica bem com o fato castanho. É mesmo o indicado para esta manhã radiosa.
Jerome estudou com ar crítico a gravata que o criado lhe estendia. Depois, encolheu os ombros e
disse:
- O teu gosto é melhor do que o meu, Jim. No campo não se liga muito ao vestuário.
- Ouvi falar da festa da véspera de Natal. Vai haver cânticos e tudo. Como no meu velho país!
Soltou um longo suspiro e continuou:
- Tudo isto me faz lembrar a minha pátria. As coisas aqui são sólidas e sãs como na minha velha
terra. Em Nova Iorque não ha nada disto. Todo aquele barulho, todos
aqueles fumos e porcarias... parece que ninguém cria raízes ali. vou com os cocheiros e os rapazes
dos estábulos procurar viscos e uma árvore, na floresta.
Jerome riu-se e disse:
- Não consigo imaginar-te à procura de árvores de Natal, Jim. bom, deixa lá. Torna-te rústico, se
quiseres. Trepa por aí, se te apetecer, como bom macaco que és.
Faz-te bem.
Prendeu a corrente do relógio no colete de seda castanha e olhou-se ao espelho, esfregando as faces
com as palmas das mãos. Jim deitou um pouco de água de colónia
no lenço de linho e enfiou-o depois, habilmente, no bolso do casaco do amo. Em seguida,
segurando-o, ajudou Jerome a vesti-lo, e alisou-o cuidadosamente sobre os
ombros, depois de Jerome ter enfiado os braços nas mangas.
- Está muito elegante, senhor! - exclamou. - Fresco como a própria manhã. Vai dar um passeio?
- Sim, daqui a pouco. Primeiro, quero visitar o meu pai, Mister Lindsey.
Olhava-se ainda, com ar crítico, ao espelho; mas deteve-se de súbito, quando reparou no rosto
franzido e preocupado de Jim. Voltou as costas ao espelho e ficou virado
de frente para o criado.
- O que é que se passa, Jim? Há qualquer coisa que não está bem. Vá, anda, desembucha. Nunca me
escondeste nada até hoje. O que é que te preocupa assim tanto?
Jim estava de novo com medo, e respondeu apressadamente:
- Nada, senhor. Desculpe-me.
Vendo que Jerome franzia o sobrolho, num gesto evidente de quem não acreditava nele, continuou a
falar, de modo quase incoerente:
- É apenas um pressentimento, senhor. Acho... acho que se ficarmos aqui... o resultado não será boa
coisa. Quer dizer... Se ficarmos muito tempo!
Jerome olhou para o lume que ardia na lareira. Os fios de cabelo tinham desaparecido, mas parecia-
lhe vê-los ainda ali. Depois sorriu, zombeteiro, e disse, colocando
a mão sobre o ombro de Jim:
- Que disparate! Não andavas tu sempre a insistir comigo para que eu assentasse e fizesse qualquer
coisa de útil? Ora vejamos, Jim, retomarei a minha pintura, mesmo
a sério, desta vez. Depois das horas que vou passar no Banco, e durante os fins de semana, dedicar-
me-ei aos meus pincéis e às minhas telas. Transformar-me-ei num
verdadeiro senhor rural, e nem tu próprio me reconhecerás.
Jim deixou escapar um suspiro.
- Sim, senhor! - disse, com voz apagada. Assobiando baixo, Jerome saiu para o corredor aquecido e
encaminhou-se na direcção do quarto do pai.
Foi encontrar Mr. Lindsey envolto num roupão escarlate; um xaile cinzento cobria-lhe os ombros e
na cabeça tinha um gorro de lã. Estava sentado diante da lareira
e inspeccionava atentamente o conteúdo de um tabuleiro de prata colocado sobre uma pequena
mesa redonda de mogno, a seu lado. Parecia enfraquecido e cansado à luz
fraca do lume que, também ele, parecia pálido e fugidio.
O quarto assemelhava-se-lhe. Era austero, a cor dos reposteiros era grave e sóbria, o chão não tinha
qualquer cobertura e estava extraordinariamente polido. Apenas
aqui e ali a sua quase total nudez era interrompida por tapetes orientais. As paredes estavam
cobertas com os seus livros preferidos, como se a biblioteca existente
no andar de baixo não fosse suficiente. A
sua cama imponente, de dossel, estava primorosamente feita. Jerome tinha reparado muitas vezes
que o quarto do pai tinha qualquer coisa que lembrava a Nova Inglaterra
e que perpassava por ele um odor frio e repressivo, de uma frescura quase gélida.
- Ah! Ah! - exclamou Jerome, entrando bruscamente no quarto. - Um dorminhoco, pelo que vejo.
Ainda agora vai começar o pequeno-almoço!
Mr. Lindsey voltou a pousar a tampa de prata que retirara de um dos pratos.
- É muito possível que isto seja antes o almoço, sabes? comentou, pensativo.
Levantou de novo a tampa e disse, simplesmente:
- De facto, é o almoço.
Olhou para o filho, sorriu, e o rosto muito pálido, enrugado e seco como pergaminho, pareceu
iluminar-se.
- bom dia, meu querido filho.
Jerome pousou por breves instantes a mão sobre o ombro do pai, e ao fim de alguns minutos Mr.
Lindsey tocou aquela mão com os seus dedos frios. Jerome sentou-se.
Apesar do seu ar de jovial afeição, sentiu aquele novo constrangimento na presença do pai, aquela
estranha insegurança e instabilidade. Mas, se Mr. Lindsey se apercebera
do constrangimento do filho, não o deu a perceber, e olhou para Jerome afectuosamente.
- bom, se isso é o almoço, então mereço a sua censura! disse Jerome. - Por favor, não se atrase...
pai. A comida tem um cheiro muito apetitoso.
Mas Mr. Lindsey preferiu recostar-se na sua cadeira, dizendo:
- O almoço pode esperar. De qualquer modo, nunca gostei de peixe. Mas Dorothea insiste, dizendo
que faz muito bem ao cérebro. Ela deve pensar que eu estou a ficar
senil.
Riram ambos e durante alguns segundos o constrangimento desapareceu por completo; olharam-se
os dois com uma velha amizade e compreensão, completa, íntima.
Ainda sorrindo, Mr. Lindsey disse:
- Às oito da manhã tive uma conversa com Alfred. Contei-lhe... a tua decisão. Ele mostrou muito
interesse. Ficou à espera de poder discutir o assunto contigo. Esperou
até às nove horas.
- Ora, será que ele esperava encontrar-me a pé, a essa hora? - perguntou Jerome, com uma ironia
subtil.
Mr. Lindsey esfregou devagar os lábios, pensativo, com o dedo indicador.
- Os bancos ainda não alteraram os seus hábitos. Segundo julgo, continuam a abrir às oito e meia.
Ou... julgavas tu que podias entrar ao meio-dia?
- bom, então agora parece que tenho de me levantar de madrugada, com as galinhas.
- Não propriamente, mas receio bem que tenhas de enfrentar os factos de uma maneira mais a sério.
Mr. Lindsey interrompeu-se, enquanto Jerome fingia considerar, com um certo pesar, aquela idéia
pouco atractiva. Depois, continuou:
- Repito, meu rapaz, que Alfred ficou muito interessado. E satisfeito, também.
- Oh, decerto, decerto. Sem dúvida que ele exprimiu esse agrado. Especialmente se o pai lhe deu a
entender que estava de acordo com a minha entrada para o Banco
e a minha permanência aqui.
- Estás a ser injusto para com Alfred. Achas que ele não passa de um hipócrita?
Jerome respondeu, com uma expressão desagradável no olhar:
- Não! Não tem imaginação suficiente para isso. Não, não franza a testa. Acho até que ele, depois de
uma reflexão judiciosa e consciente, decidiu que a justiça e
a lealdade lhe exigiam que ficasse satisfeito. E assim... ficou satisfeito. Alfred fabrica as suas
reacções com base naquilo que considera mais digno.
- Isso é muito encorajador. Leva-me, até, a ter esperança de que a humanidade, após a devida
consideração, possa ser capaz de fabricar sentimentos elevados, conforme
quiser, seja qual for o sentimento inicial. Não serás tu um pouco optimista de mais, Jerome?
- Oh, eu tenho a mais profunda fé na natureza humana, pai! - retorquiu.
Olhou para o lume, e depois remexeu-o vigorosamente, para o atear.
- Eu acredito em toda a gente! - continuou. - Estou cheio de amor fraterno. A doçura e a luz foram
criadas em mim. Mas, por amor de Deus, acreditaria Alfred realmente
que eu iria levantar de madrugada, logo na primeira noite que passava em casa?
- É possível que ele acreditasse que um verdadeiro cavalheiro, de súbito inspirado por uma ambição
auspiciosa, não seria capaz de dormir de excitação e vontade de
começar, e por isso se levantaria cedo.
- Estive muito ocupado em pôr rosas nas minhas faces, entre as almofadas - disse Jerome, com ar
jocoso. - Estou a repetir as palavras de Jim, o meu criado.
Mr. Lindsey esfregou de novo os lábios.
- Isso faz com que me lembre de outra coisa. Não achas que
será um pouco pretencioso da tua parte manteres um valet aqui, no campo?
- Não, não acho. Estou habituado a ser servido. Além disso, Jim pode fazer um sem número de
outras coisas. Ele é, para além do mais, um cozinheiro excelente. Mas
não da cozinha inglesa, claro. É capaz de preparar óptimos pratos franceses, com todo o requinte.
Tem uma imaginação espantosa. Depois, é maravilhoso com os cavalos.
Quando era mais novo, era jockey. E também sabe coser e remendar. É cheio de virtudes e
qualidades. Até o senhor em breve o considerará indispensável. Executa todo
o serviço primorosamente. Na realidade, o pai podia despedir metade do pessoal que se encontra
nesta casa, que nunca chegaria a dar por falta dele. Não é que lhe
esteja a recomendar ou a sugerir que o faça! Jim está inclinado em se tornar num verdadeiro rural,
agora, e portanto é muito provável que passe a maior parte do
tempo nas cavalariças, a tratar dos cavalos. Também sabe atirar, entre muitas outras coisas. Aliás, eu
próprio espero voltar a caçar, de vez em quando.
- Notável! - exclamou Mr. Lindsey. - Onde é que esse homem espantoso aprendeu tudo isso?
- bom, alguns dos talentos foram adquiridos na prisão.
- Na prisão!?- exclamou Mr. Lindsey.
- Sim! Esquecia-me de lhe dizer. Ele tem um talento especial para... carteirista. Ora, não é preciso
fazer essa cara de desconsolo. Agora já está reformado. Como
eu. Já não rouba carteiras. Sublimou esse génio com uma habilidade incrível para a magia, ou, se
preferir, para o ilusionismo. Vai ver que ele vai conseguir manter
os outros criados imensamente divertidos e satisfeitos.
- Isso já é alguma coisa! - disse Mr. Lindsey, com uma ironia velada. - Temos de manter a toca do
coelho bem cheia, então.
Mas não estava insatisfeito. Sentia-se, até, bastante revigorado. Jerome sempr e tivera aquele
efeito sobre ele. Os seus olhos estavam brilhantes, como já
não brilhavam havia muitos meses, mesmo anos.
- com o teu árduo trabalho no Banco, e a caça, estarás muito ocupado, meu rapaz. Tencionas desistir
de pintar?
- Não, de maneira nenhuma. Espero ter tempo para tudo. Não imagina como me sinto cheio de
energias, e como consigo ser activo quando quero. Só tenho um defeito:
não suporto sentir-me aborrecido. O trabalho no Banco é... excitante, activo?
- Imagino que serás tu quem irá tornar tudo excitante, e acho que é isso que aborrece um pouco
Alfred. Ele acredita que a actividade bancária é sacrossanta, e que
qualquer leviandade em
relação a ela é uma blasfémia. Mas... falando seriamente, não deves esperar descobrir um circo
dentro dos limites daquela augusta instituição. Existem ali muitas
coisas terríveis, e até uma certa secura. Além disso, tu nunca foste do género de gostar de
demasiado pormenor e exactidão. Receio que te vás sentir aborrecido,
por vezes.
Olharam um para o outro, em silêncio. Os olhos de Jerome estreitaram-se, embora o sorriso
continuasse a aflorar-lhe os lábios.
- A minha decisão mantém-se inalterada - disse ele por fim.
Mr. Lindsey suspirou.
- Eu sei - disse. - Espero apenas que não o venhas a lamentar. Sempre receei o modo como tu gostas
de juntar experiências ao teu jardim de aventuras. Espero que
não consideres isto apenas como mais uma experiência, uma coisa para coleccionar para futuro
divertimento. Foi sempre assim a tua maneira de ser, não foi, Jerome?
- Gosto de viver - respondeu Jerome com um tom de voz duro.
Mr. Lindsey ergueu-se da cadeira. Já não sorria.
- Sob a capa dessa tua frase, fizeste um número incrível de loucuras - disse ele. - Desculpa-me se
pareço que me estou a lamentar. Estou só a avisar-te. Consideraste-te
único e incomparável quando adoptaste esse lema como teu: "Gosto de viver!" Como se alguém
detestasse viver e substituísse de boa vontade a alegria pelo dever, só
por pura perversidade! Não, meu rapaz, há muitos homens felizes que conhecem o dever e o
cumprem com prazer, e que continuam a amar a vida. Só o homem louco, tagarelando
acerca do seu amor pela vida, acredita que apenas o vício dá prazer.
Afastou o tabuleiro de prata, e pegou num livro. Jerome fechou os olhos.
- O seu favorito, não, pai! Outra vez, não! Mr. Lindsey não conseguiu reprimir um sorriso.
- Não. É outro. Desta vez, trata-se de Joseph Addison... "o vício, a ignorância, a imperfeição...
deviam lutar e tentar, tanto quanto possível, tornar-se objecto
de admiração".
Jerome corou.
- Não estou a lutar para conseguir elogios, nem pretendo tornar-me objecto de admiração, quando
digo que quero entrar para o Banco. A única coisa que conta para
mim é a minha própria opinião acerca de mim mesmo.
Apontou para o livro, e disse ainda:
- O ensaio de Addison "Os sábios e os loucos"? bom, também
o conheço. "O homem sábio é feliz quando consegue a sua própria aprovação para os seus actos;
aquele que é louco é feliz quando se recomenda a si próprio para
o aplauso dos outros."
Parou, por instantes, e depois continuou num tom muito calmo:
- Alfred adora o seu aplauso, pai. E sem dúvida que o pai tem sido muito mãos largas em lho
conceder.
Mr. Lindsey fechou o livro, muito devagar, e voltou a colocá-lo sobre a mesa. Olhou depois para o
filho, bem de frente, e disse:
- Tu sempre detestaste Alfred, mas nunca te insurgiste contra ele, como agora. Por acaso terás tu
ciúmes dele, agora?
Jerome encolheu os ombros.
- Ciúmes? - repetiu ele. - Nunca tive ciúmes de ninguém. Talvez porque sou demasiado egoísta.
Mas, para falar honestamente, sempre achei Alfred um maçador. Aborrece-me
até à morte. Não sabe ter uma conversa com interesse. Pode negá-lo, pai, mas eu sei que ele também
o aborrece. De que é que ele sabe falar, para além de coisas do
Banco? Durante estas longas noites de Inverno, com que tipo de conversas foi ele capaz de o
distrair? Filosofia, política, religião? Se, por acaso, ele tem algumas
idéias sobre qualquer destes assuntos, devem ser terrivelmente enfadonhas, sejam lá elas quais
forem. Acho que as foi buscar aos talões bancários. Que belas noites
divertidas devem ter passado juntos!
Mr. Lindsey comprimiu os lábios, tentando impedir um sorriso involuntário que sentia ser injusto e
pouco amável.
- Pelo contrário! Alfred e eu temos tido muitas conversas interessantes.
- Oh, o pai é um perfeito cavalheiro! Que tolerância! Sobre que assunto podem os dois, o pai e
Alfred, estar de acordo, ou mesmo discordar? O pai não consegue utilizar
um raciocínio intelectual com Alfred. Deve admiti-lo. E, já agora, sempre lhe faço uma pequena
citação de um autor meu preferido, Samuel Taylor Coleridge. Lembra-se
de Coleridge? Ele fala de homens atacados de cegueira interior, e eu aplico isso a Alfred, sem
quaisquer reservas. com homens assim, diz ele, "nada é possível senão
uma dissociação nua, que implica uma espécie de contemporização
associal: ou, no que um homem de disposição amável é muito capaz de cair, uma aquiescência
tácita,
sem coração, que chega a atingir as raias da duplicidade". Não o posso acusar, pai, de ter
contemporizado com qualquer homem. Só posso acusá-lo da sua "amável disposição".
- E de duplicidade! -juntou Mr. Lindsey, sem conseguir reprimir o sorriso, desta vez.
Jerome fez um gesto de desprezo, e disse:
- Como pode um cavalheiro com inteligência e raciocínio falar durante cinco minutos com Alfred e
não ser culpado de duplicidade, de violação das suas mais profundas
convicções, especialmente se for um homem honesto e digno?
- Pode ser que tenha um espírito caridoso! - disse Mr. Lindsey. - Pode ser que seja tolerante e
também um pouco dissimulado. Os homens como tu muitas vezes transformam
o mundo num sangrento campo de batalha. Eu prefiro a paz. Especialmente na minha própria casa.
O tom da sua voz era tranqüilo. Mas Jerome sorriu para ele, sardónico e mordaz.
- Está a avisar-me, outra vez! - disse pensativo.
Mr. Lindsey ergueu as tampas de prata que cobriam os pratos. Começou a comer, com um apetite
real e novo.
- Seja como for - disse -, nunca te acusei de seres obtuso, Jerome.
Jerome levantou-se, enfiou as mãos nos bolsos das calças e começou a caminhar, impaciente, de um
lado para o outro do quarto, de olhos pregados no chão.
- Acho que fui bem claro ao afirmar que a minha natureza é inclinada à doçura e à luz. Lançarei os
meus raios sobre Alfred. E serei culpado de duplicidade. Nem um
só tom da minha voz perturbará a sagrada e plácida atmosfera desta casa. Mesmo que corra o risco
de morrer asfixiado.
Mr. Lindsey começou a rir.
- Realmente, quase adivinho os meses felizes que vamos viver aqui! - exclamou.
Jerome interrompeu o seu deambular pelo quarto, para servir o chá a seu pai. Fê-lo com um ar de
verdadeira afeição e cuidado. Juntou-lhe depois três quadradinhos
de açúcar e creme. Mr. Lindsey olhava-o com franca amizade.
- Obrigado, meu rapaz. Ainda não te esqueceste da quantidade de açúcar que eu gosto. Dorothea
acha que me faz mal. Às vezes, sinto-me com remorsos por lhe desobedecer.
- As pessoas muito cumpridoras do seu dever têm esse efeito sobre as pessoas civilizadas! -
observou Jerome.
Mr. Lindsey sorveu o chá, em pequenos golos e suspirou, satisfeito.
- Tenho a estranha sensação de que esta nossa conversa é muito pouco caridosa. Direi mesmo, um
pouco desleal e traiçoeira. A minha mãe costumava dizer que nenhuma
conversa é digna de um verdadeiro cavalheiro se não puder ser escutada, sem reprovação ou
embaraço, por qualquer pessoa que a esteja a ouvir, mesmo às escondidas.
Olharam um para o outro, e depois romperam às gargalhadas. Jerome juntou uma observação
obscena e o riso tornou-se incontrolávelpara ambos.
Mr. Lindsey sentia-se tão feliz que sugeriu, ele próprio, que Jerome adiasse a sua entrada para o
Banco até depois das férias de Natal. As objecções levantadas por
Jerome foram fracas.
Separaram-se, mais tarde, sentindo-se ambos satisfeitos e agradados.
Jerome foi, em seguida, visitar a irmã, que se encontrava ainda de cama, com o resfriado.
Os reposteiros das janelas estavam ligeiramente afastados, e à luz difusa que entrava no quarto,
Dorothea lia, sentada na cama, o último número da Gospel Trumpet,
um órgão publicado por uma sociedade missionária pela qual ela tinha muita estima. O cheiro a
cânfora, lavanda e vinagre era ainda mais forte do que no dia anterior,
e as narinas de Jerome contraíram-se. Já não se sentia satisfeito nem agradado, mas cumprimentou a
irmã, fazendo-lhe uma pergunta amável sobre a sua saúde. Dorothea
pôs o jornal de lado e olhou para ele com uma austeridade impaciente, onde se misturava uma
esperança ansiosa.
- Então? - perguntou Dorothea, ignorando a pergunta que o irmão lhe fizera sobre a sua saúde. - Já
falaste com o papá acerca da... daquela mulher? Que foi que tu
fizeste, Jerome? Deixa de olhar para o lume, por favor.
Ao reparar que Jerome fazia um gesto na direcção do lume, como quem vai atiçar as brasas, deteve-
o dizendo:
- Deixa estar como está! Já está aqui calor suficiente. Senta-te, Jerome. Estou impaciente.
Jerome sentou-se e olhou para a irmã sombriamente.
- Desculpa, minha querida. Não há qualquer esperança. Discuti com o pai durante horas.
Enfiou os dedos entre a corrente do relógio e continuou:
- Até ofereci à dama em questão uma... uma recompensa, se ela acaso desistisse dos seus planos
vorazes e pouco límpidos. Mas... não há nada a fazer. Teremos de aceitar
o inevitável.
O rosto fechado de Dorothea tornou-se de imediato desesperado e atormentado. As mãos tremeram-
lhe quando apertou o lenço. Tentou falar, mas as palavras morreram-lhe,
asfixiadas, na garganta. Os lábios estremeciam-lhe.
Jerome observou-a com uma piedade pouco habitual nele, apesar do seu primeiro sentimento de
prazer mesquinho por ver o seu desapontamento e a sua dor. Viu como ela
pestanejava,
numa tentativa infrutífera para reter as lágrimas, como abafava os soluços convulsivos que
ameaçavam saltar-lhe pela garganta. Sentiu uma súbita admiração pela irmã,
quando Dorothea ergueu a cabeça já um pouco grisalha com tamanha resolução que a sua touca
arredondada se agitou com violência.
- Mas tu não falaste com Alfred! - disse ela com voz muito calma e firme.
- Minha querida! Isso é pedir demasiado. Experimenta obrigar um cão a desistir de um pedaço de
carne.
E deu um ligeiro estalido com a língua, como se estivesse a saborear um verdadeiro acepipe.
Dorothea corou violentamente ao escutar as palavras do irmão e o som que a elas se seguiu.
- Jerome! Que falta de compostura e de vergonha a tua! Dá-me os meus sais, se fazes favor.
Ele estendeu-lhos e ela segurou o frasco firmente junto do nariz, fungando com insistência. Quando
o afastou, os olhos estavam cheios de água, que rapidamente se
transformou em lágrimas que lhe rolaram pelas faces.
- Estes sais são, na verdade, demasiado fortes! - murmurou Dorothea. - Mas tudo se tem vindo a
deteriorar, depois da guerra.
Voltou a colocar o frasco sobre a mesa. As lágrimas não pararam. Era, de súbito, uma mulher
abatida, ainda que indómita, sobre as almofadas.
- Só tenho um último recurso: tornar as coisas tão desagradáveis para aquela vagabunda, que ela
chegará ao ponto de querer ir-se -embora por sua própria e livre
vontade - disse Jerome. - É evidente que isso não fará com que Alfred goste mais de mim do que já
gosta. Ou então posso ver-me obrigado a revelá-la aos olhos dele,
tal como ela é. Até já fiz um bom começo nesse sentido, acho eu. Mas julgo que não deves esperar
grande coisa disso. Um homem que está determinado a... a casar com
uma certa mulher, está fechado a todas as pressões ou lógicas. Ela hipnotizou-o. Aquela mulher bem
viu os esforços que fiz contra ela, e sorriu como um gato convencido
e completamente satisfeito, de barriga bem cheia. Não, não posso prometer-te grande coisa nesse
sentido.
- Ele está enfeitiçado! - exclamou Dorothea, com voz rouca.
Limpou os olhos de novo e disse:
- Oh, céus, aqueles sais!
com arpensativo, Jerome observou:
- É evidente que ele acabará por descobrir, depois do casamento.
- Mas nessa altura será demasiado tarde.
Sem se deter com as palavras da irmã, Jerome continuou, segundo a linha de pensamento que
iniciara:
- Por vezes acontece que um frasco de compota acaba por se revelar como sendo, apenas, um frasco
de creme azedo. Mas isso só se sabe depois de se experimentar. E
Alfred está determinado a experimentar.
- Jerome!
- Quanto ao pai, parece que ele a acha refrescante! - continuou Jerome, sorrindo irónico. - Estou
satisfeito de que o papá tenha a sua artrite, ou ainda acabaríamos
por nos encontrar com uma madrasta consideravelmente mais nova do que nós próprios e
igualmente voraz.
Dorothea estava fora de si.
- Jerome, como podes tu ser tão... desagradável, tão... tão sem vergonha!
Jerome encolheu os ombros.
- bom, o querido papá é ainda um homem, e sempre o foi. Ou tu acreditas que nós fomos gerados
enquanto ele segurava, elegante, a mão da mamã entre as suas, e conversava
sobre assuntos edificantes? Não, minha querida Dotty; podemos pensar, com um certo alívio, que as
coisas podiam, até, ser piores do que aquilo que são. Muitos homens
houve que esqueceram os seus próprios filhos enquanto se divertiam por detrás de cortinas da cama,
com uma prostituta qualquer.
O rubor de Dorothea tornou-se num tom de carmesim escuro.
- Tu não és apenas odioso. És verdadeiramente repugnante!
Estremeceu violentamente e continuou:
- Como é possível que tu consigas falar assim do papá! Mas tu nunca tiveste qualquer espécie de
respeito por ele, nem qualquer sombra de decência!
Jerome levantou-se, feliz por poder escapar.
- bom, nesse caso, retirarei a minha odiosa e repugnante figura do teu quarto, se a achas assim tão
insuportável.
Dorothea ergueu a mão e gritou:
- Espera! Estás tu a pretender confessar agora que não és capaz de achar qualquer solução, tu que
parecias tão seguro de ti ontem à noite?
O rubor carmesim cobria-lhe ainda o rosto, e não conseguia olhar para o irmão sem sentir vergonha,
mas a ansiedade que a avassalava fê-la esquecer, por momentos,
as suas emoções.
- Como te disse, a situação parece-me desesperada, mas ainda não desisti completamente. Estou só
a avisar-te de que não
deves esperar demasiado, e isso é razoável, acho eu. Há outra coisa, ainda: suponho que vamos ter
uma festa de Natal. Talvez que, quando Alfred a vir entre os seus
amigos respeitáveis e aperaltados, com os seus modos educados, elegantes e finos, aquela mulher
surja a seus olhos impossível para ele, como de facto é. Sem dúvida,
também, que aqueles amigos lhe farão sentir a desaprovação que sentem por esse casamento, o
choque e o insulto que esse acto significa para eles, e Alfred, que é
sempre tão sensível às opiniões dos outros, ficará impressionado.
Dorothea estava silenciosa, repesando as palavras do irmão. A sombra que lhe caíra no rosto ia
desaparecendo aos poucos.
- Sim! - murmurou ela, por fim. - Há alguma esperança nisso. Sim, sinto-me inclinada a pensar que
há uma certa esperança.
Mergulhou em pensamentos. Via, à sua frente, em desfile, as figuras elegantes das senhoras, ainda
jovens, dos seus conhecimentos, as suas irrepreensíveis mamãs e
os seus sólidos papás. E via-os observar, arrogantemente, Amalie Maxwell, escutando a sua
conversação chocante.
- Quanto ao dinheiro - disse Jerome -, temos razão para esperar muitas coisas. Eu vou salvaguardar
os nossos interesses. vou entrar para o Banco.
- Interessante! - murmurou Dorothea, abstractamente, continuando imersa nos seus próprios
pensamentos.
Jerome caminhou na direcção da porta. No entanto o impacte do que ele dissera pareceu ter chegado
de repente até ela.
- O quê? - exclamou Dorothea, galvanizada. - Que foi que tu disseste acerca do Banco, Jerome?
Será que eu ouvi bem? Tu vais entrar para o Banco?
- Foi o que eu disse! - retorquiu ele.
Ela ficou a olhar para o irmão, varada de espanto e incredulidade. Pestanejou repetidas vezes e a
boca abriu-se-lhe. Quando conseguiu falar, gaguejou:
- Eu... eu não sou capaz de acreditar! Porque irias tu para o Banco, Jerome? Tu?
- E eu não sou capaz de compreender por que é que isso te espanta tanto - disse Jerome,
desagradavelmente. - O nosso dinheiro está ali, não está? E onde o rato se
esconde, é lá que o gato o procura.
- Mas tu... tu serás impossível no Banco! Nem sequer consigo imaginar uma coisa dessas.
- Obrigado pelo cumprimento feito com tanta elegância, tão cheio de tacto e deferência.
- Mas tu não podes entrar para o Banco! O papá e Alfred não permitirão que tu faças isso!
Dorothea estava fora de si, chocada perante aquela idéia absurda.
- O papá não só permitirá como até já concordou com isso. O Alfred está "agradado".
Ela continuava a olhar para ele, como se o irmão fosse uma criatura incrível e horrorosa, caída de
uma outra esfera.
- Mas tu serias absolutamente... impossível... num Banco! O nosso Banco! Não consigo imaginar-te
no Banco!
- Hás-de conseguir! - assegurou-lhe Jerome, já com a mão na porta. - Verás o meu belo semblante
curvado sobre livros e fichas, e as minhas pernas graciosas enroscadas
a um banco, diante de uma secretária. Será uma imagem edificante, que irá alegrar a fibra mais
íntima do teu coração. Ficarei mesmo ao lado dos cofres.
Aquela idéia chocava-a cada vez mais. Se Jerome tivesse expressado a sua determinação em ocupar
o púlpito do seu pastor favorito, ela não teria ficado mais horrorizada
e descrente. Até mesmo o seu sofrimento e a sua dor pareceram diluir-se na estupefacção que a
inundava.
- Se estás a pensar que, muito provavelmente, a minha idéia é desaparecer com os sacos do
dinheiro, tira isso da cabeça, minha cara! - disse Jerome. - Porque, embora
à superfície essa idéia pareça ter uns certos atractivos, não tenho dúvida de que Alfred, se eu o
fizesse, me perseguiria até ao fim do mundo e não descansaria até
atirar comigo para a prisão. Tudo num espírito de justiça imparcial e de integridade desinteressada,
claro!
- Mas... que farias tu no Banco? - perguntou Dorothea, deixando-se cair nas almofadas,
enfraquecida com o Choque.
- Já te disse! Guardar o dinheiro! vou transformar-me num banqueiro infernalmente bom; tão bom
que o papá ficará impressionado e passará em revista o seu testamento
e outras coisas. Sou um tipo reformado, Dotty. Sinto um formigueiro nos dedos só de pensar nos
livros e registos. Sinto zumbidos nos ouvidos só de pensar no tilintar
das moedas. Contemplarei o dinheiro como uma virgem vestal é contemplada pela chama sagrada.
Deporei Alfred do seu trono. Verás.
- Só a idéia é bizarra! Falarei com o papá...
- Obrigado pela lisonja com que me envolves. E, já agora, fala com o papá. Ele está encantado com
a minha resolução. Baba-se de prazer só de pensar nisso. Se acaso
ele tem ainda quaisquer desconfianças a meu respeito, as tuas objecções só servirão para as anular
por completo. Raios, cheguei a pensar que tu ficarias satisfeita.
- Não praguejes! - exclamou Dorothea, num tom desmaiado e quase mecânico.
Recostou-se nas almofadas e deixou que os pensamentos girassem em torno daquela idéia
impossível e absurda de Jerome no Banco. No entanto, os argumentos que ele
utilizara tinham-na impressionado. Mas continuou a abanar a cabeça, teimando numa dúvida
constante.
- Tu, no Banco! - murmurou. - Ninguém se sentiria seguro... se tu lá estivesses.
Jerome voltou a cabeça e soltou uma gargalhada. Ela içou, de súbito, alarmada.
- Tu arruinarás o Banco! Destruirás o seu prestígio, a confiança das pessoas nele! Toda a gente
retirará de lá o seu dinheiro! Oh! tu estás a fazer isso para esmagares
Alfred, para o deitares para a sargeta! Tu, tu, homem diabólico e maldito! É só para o esmigalhares
a teus pés, para o cobrires de vergonha e de ruína!
Ele abriu a boca num esgar mordaz.
- Muito bem! Nesse caso, retirarei a minha oferta. Voltarei para Nova Iorque. Então, a prostituta terá
tudo, e tu concordarás, servilmente, em te tornares na sua
criada principal, e depois o papá morrerá um dia, e tu e eu ficaremos sem um cêntimo. Será que isso
te atrai mais, minha doçura?
Dorothea ficou estarrecida, completamente aturdida. Jerome observou o espírito da irmã debater-se,
tentar digerir as suas últimas palavras. Ficou à espera. Viu a
luta que se desenrolava dentro da irmã, uma luta entre a sua voracidade íntima, a sua avareza e o
seu amor por Alfred, o seu profundo e amargo desgosto e desapontamento
e o seu terror por aquilo que Jerome poderia fazer no Banco.
Abanou a cabeça, num gesto que revelava a sua completa satisfação. Depois, certo do resultado
daquela luta infernal, inclinou-se, irónico, e deixou o quarto.
Satisfeito consigo próprio, pensou:
"Para puro divertimento dos espectadores, não há nada como ter consciência e ser uma mulher
escorraçada."
Imensamente divertido, voltou para o seu quarto, pegou no casaco e atirou-o para cima dos ombros.
Os risos e as vozes lá fora continuavam a fazer-se ouvir, alegres e estridentes.
Capítulo décimo
O ar parecia cintilar, reluzente, com a luz do sol. O fumo da chaminé saía enrolado, parecendo
dançar num céu brilhante como um diamante azul. A enorme e velha casa
quadrada, construída
em pedra cinzenta maciça, estava coberta de gelo cintilante. Erguia-se no cimo da colina
sobranceando o vale lá em baixo, com uma dignidade e um orgulho imponentes,
parecendo impor-se às vertentes cobertas de neve com uma serenidade cheia de nobreza. Os
pinheiros e os arbustos à sua volta faziam pender ainda dos seus ramos negros
pedaços esfarrapados de neve gelada.
Estava um dia magnífico, engalanado de uma festividade alegre, de conforto e de segurança. Os
empregados dos estábulos tinham estado durante toda a manhã a trabalhar,
libertando os caminhos da neve, e, assim, pedaços de terracota vermelha apareciam a intervalos
mais ou menos regulares por entre o vasto lençol de brancura. O muro
de tijolo vermelho que rodeava o jardim nas traseiras da casa parecia almofadado de uma pureza
suave, e os ramos das árvores de fruto pareciam vivos com os bandos
de pardais que chilreavam saltitando de um lado para o outro.
As marcas do trenó que tinha conduzido Alfred até à vila, lá em baixo, tinham ficado
profundamente gravadas na virgindade brilhante do declive; os rapazes trabalhavam
agora ali, com as suas pás, fazendo ouvir as suas vozes claras, quase estridentes, no silêncio
reluzente. Para lá dos jardins e dos outros relvados da casa, as florestas
escuras recortavam-se, quais gigantes, contra o céu, e os seus ramos emaranhados pendiam sob o
peso da neve. Do estábulo ouvia-se o relinchar dos cavalos, e lá mais
para trás o cacarejar das galinhas. A estufa de Mr. Lindsey, junto à casa, reluzia com as suas paredes
e tecto de vidro. Todos os sons pareciam ecoar como música,
espalhando-se sobre a vertente da colina como o repenicar de campainhas.
O ar estava tão incandescente, tão límpido, que a cidade lá em baixo surgia em todos os
pormenores, e as suas vielas e ruas pareciam veias escuras e irregulares
deslizando por entre as casas e outros edifícios. Podiam ver-se, até, as chaminés fumegantes e os
miniaturais trenós, carroças e carruagens. Jerome estava de pé
mesmo à entrada da casa, do lado de fora, e respirava, de cabeça erguida para o céu, o ar puro, ao
mesmo tempo fresco, amargo e estéril. A sua infância e a sua adolescência
surgiram-lhe em catadupas na memória, tão vivamente que as cenas pareciam desenrolar-se diante
dos seus olhos. Perguntou a si próprio se os seus trenós e os seus
sapatos de neve estariam ainda pendurados num dos celeiros, e de súbito apoderou-se dele um
desejo quase irresistível de deslizar pela suave encosta até à planura
lá em baixo. Estaria o lago do jardim coberto por uma cintilante camada de gelo azul, excelente
para patinar? Os seus patins deviam estar enferrujados.
E a corrente que descia perto da casa, vinda de uma fonte qualquer lá mais em cima? Estaria ela
agora escura e gelada, imóvel entre as rochas musgosas?
Jerome queria ver todas estas coisas.
Ouviu uma gargalhada fresca romper o silêncio do ar gelado e caminhou lentamente para o outro
lado da casa. Miss Maxwell e Philip continuavam a brincar com Charlie,
que parecia ter perdido por completo a cabeça com toda aquela nova liberdade que lhe era oferecida
e aquela estranha massa branca, tão macia e ao mesmo tempo tão
resistente e tão fria. Uma vez e outra fazia enterrar o seu corpo cor de tabaco dentro dos montes de
neve, numa frenética e subterrânea exploração, para voltar a
aparecer depois com um olhar de esgazeado espanto, o focinho com uma cómica coroa de neve.
Ladrava quase selvaticamente, atirava-se para cima da neve, dando voltas
e reviravoltas, para depois saltar para o colo e os braços dos seus novos e fascinados amigos, que o
recebiam com gargalhadas calorosas e divertidas.
Foi o primeiro a dar pela presença de Jerome. Ladrando de excitação, correu por entre a neve e os
marcos do caminho e atirou-se sobre o dono, como se lhe quisesse
chamar a atenção para toda aquela inexplicável maravilha. Jerome agarrou-o. pequeno cão estava a
tremer de alegria.
Os outros dois voltaram-se para ele, sorridentes.
- Tio Jerome! - exclamou Philip, timidamente.
Philip era um rapazinho encolhido e estropiado, uma espécie de gnomo metido dentro de um longo
casaco castanho e de um chapéu alto. Mas a sua face pálida tinha adquirido
um pouco de cor, e os olhos, como os de Jerome, estavam brilhantes de satisfação, parecendo
dançar nas órbitas.
O sorriso espontâneo que surgira no rosto de Amalie transformou-se. Endureceu, tornou-se gelado.
Ficou imóvel, em silêncio, olhando para o seu inimigo com uma fixidez
intensa. Tinha colocado um xaile sobre a cabeça encobrindo quase todo o seu belo cabelo preto,
excepto uma suave madeixa que lhe caía sobre a testa branca. Estava
mais bela envolta naquela luz brilhante e incisiva do que na noite anterior, e uma imensa vitalidade,
uma vibração ulterior, pareciam jorrar para fora dela. O frio
despertara nas suas faces botões de rosa, e os lábios, brilhantes e febris, palpitavam de cor.
- bom dia! - disse Jerome, afável, acariciando o cão e avançando na direcção de Philip e Amalie. -
Está uma manhã magnífica, direi mesmo gloriosa. Acho que Charlie
está completamente embriagado por ela.
com um ar tímido, Philip disse:
- É um cão tão simpático, tão amigo!
- Achas que sim? Ele ainda não te mordeu? Olha que ele tem mau temperamento - retorquiu Jerome,
sorrindo para o pobre rapaz.
Não era capaz de dominar a repugnância que sentia pela deformidade de Philip, mas como sentia
também uma espécie de piedade indiferente pelo filho de Alfred, não
tinha dificuldades em ser amável para com ele.
Puxando pelas orelhas de Charlie, disse:
- Charlie, como o dono, é famoso pela sua fealdade temperamental.
O rosto de Amalie alterou-se. Cobriu-o uma ironia imensa e ela mordeu os lábios como se
procurasse evitar romper às gargalhadas. Jerome, que tinha estado a olhar
para ela de frente, reparou naquele gesto e franziu o sobrolho. Mas Philip não achava Jerome
absurdo. Olhou para aquele homem com a gravidade que tanto o distinguia,
e disse:
- Oh, não, tio Jerome. Não há nada de feio em si, nem em Charlie.
Falara como que movido por um impulso, e agora corava fortemente, embaraçado e tímido. Virou-
se para Amalie, e perguntou:
- Temos estado a passar o tempo de uma maneira muito agradável, não é verdade, Miss Amalie?
- Sim, é verdade! - respondeu ela, agarrando as saias.
A apurada sensibilidade de Philip apercebeu-se de que algo estava errado ali. Olhou timidamente de
Jerome para Miss Amalie e depois de novo para Jerome.
- Vai já entrar, Miss Amalie? - perguntou, com um tom implorativo na voz. - Lembra-se? Prometeu
ir comigo até aos pinheiros e dar milho aos pássaros!
Meteu a mão no bolso e retirou de lá um saco, ficando a olhar para ele hesitante.
- Vamos, então? - perguntou Amalie, levantando um pouco mais as saias.
De novo Philip olhou de um para o outro, repetidas vezes.
- Quer vir connosco, tio Jerome?
Jerome hesitou. Depois, começou a sorrir, sombrio, e disse:
- vou, sim, obrigado.
Amalie ficou rígida e a cor pareceu desaparecer das suas faces. No entanto, sorriu para Philip, e
disse:
- Meu querido, lembrei-me agora mesmo. Tenho umas coisas a fazer e não posso acompanhar-te.
Mas sei que me desculpas. Agora tens a companhia do teu tio Jerome.
Interrompeu-se quando reparou que o prazer desaparecia dos enormes olhos escuros do rapaz.
Depois, soltando um suspiro,
disse, com um tom de súplica na sua voz um pouco trémula:
- Diz-me que não te importas, Philip querido!
- Oh, não! - respondeu ele rapidamente, sempre ansioso por não ofender nem magoar ninguém. - Só
tenho pena por mim. Mas já passou tantas horas comigo que eu não
posso ser egoísta.
Fazendo um esforço para sorrir, aproximou-se dela, como que atraído por um impulso irresistível, e,
timidamente, tocou-lhe no braço. Ela inclinou-se e beijou-o nas
faces; depois, sem voltar a olhar para Jerome, afastou-se com passos rígidos e firmes para a esquina
da casa, e desapareceu.
Jerome curvara-se numa ligeira vénia à sua passagem, mas ela nem reparou naquele gesto. Depois,
Jerome e o rapaz caminharam lentamente vertente abaixo, na direcção
dos pinheiros. Philip começou a espalhar o milho, em silêncio. Charlie lutava para se libertar dos
braços de Jerome e este colocou-o no chão. O cão correu na frente
deles, com uma excitação renovada, talvez perguntando a si próprio que novo jogo iriam jogar.
Alcançaram os pinheiros e avançaram um pouco por entre eles. As árvores à sua volta eram altas e
escuras, cobertas de neve, e lançavam as suas sombras claras sobre
a brancura do solo. Philip alisou o chão com o pé, pisou-o, e depositou depois o trigo sobre o
pequeno leito que preparara. Charlie baixou o focinho e farejou; depois
ladrou e afastou-se, desapontado.
O homem e o rapaz ficaram lado a lado, olhando lá para baixo, para o vale que se estendia, imenso,
numa curva suave. Ouviram o latido fraco e longínquo de um cão.
Charlie espetou as orelhas e começou a ladrar furiosamente, correndo de um lado para o outro numa
excitação que nada conseguia parar, desafiando o distante e invisível
intruso a combater, convidando-o a aproximar-se e a partilhar com ele aquela experiência
maravilhosa. Jerome olhou para ele e riu-se.
- Charlie está a tornar-se num verdadeiro louco - comentou. - Está absolutamente delirante,
descobrindo que há outros seres como ele no Mundo.
- Penso que todos nós ficamos delirantes quando descobrimos isso! - disse Philip, numa voz
abafada.
- O quê? - perguntou Jerome.
Olhou para Philip com maior interesse. Que coisa estranha para ser dita por um rapaz de catorze
anos. Estava incrédulo e ao mesmo tempo agradado.
- Quem te falou nisso, Philip?
- Bem, Miss Amalie e eu temos conversado muito - retorquiu o rapaz.
Um ligeiro colorido cobriu o rosto sensível de Philip, marcado por uma introspecção profunda e por
um sofrimento paciente e conformado. No entanto, os olhos pareceram
cintilar quando mencionou o nome de Amalie.
- Temos tido tantas conversas! E ela também me ajuda na minha música, quatro horas de cada vez.
- Na verdade? Então, ela também é uma extraordinária intérprete, não é?
Philip meteu o pé na neve.
- Ela disse-me que não sabe ler uma nota de música. Mas toca maravilhosamente e tem um ouvido
excelente. Além disso, as críticas que me faz são bastante melhores
que as de Mister Baxter. Mister Baxter é o meu professor, sabe? Ele vem de dois em dois meses e
fica connosco durante uma semana. É de Filadélfia. O avô é muito
bom. Adora música, e diz que está determinado a fazer de mim um músico perfeito, para seu
próprio prazer.
- Então, tu aprovas Miss Amalie para tua madrasta, não? Philip voltou-se para ele rapidamente e de
novo os seus olhos
brilharam de felicidade.
- Oh, tanto, tio Jerome! Sinto-me tão feliz. Por vezes, à noite, sonho que ela se foi embora e me
deixou para sempre, e no dia seguinte sinto-me doente. Creio que
não conseguiria suportar que ela me deixasse alguma vez.
Philip falara num tom caloroso, com uma simplicidade profunda e tocante.
"Aquela vagabunda esperta! com que então, não teve o mínimo pejo em conquistar o pobre rapaz,
puxando-o para o seu lado, como um autêntico aliado contra todos os
outros!", pensou Jerome, olhando para o filho do seu primo e enrugando a testa, pensativo. Mas não
pronunciou palavra.
- Ela ajuda-me em tudo - continuou Philip. - É professora, sabe? Quando o meu tutor se foi embora,
Miss Amalie ofereceu-se para ocupar o seu lugar. Muito tempo antes
de vir morar connosco, ela costumava vir até aqui, a pé pela colina acima, todas as tardes, até que o
papá começou a mandar a carruagem buscá-la. É tão boa! Tão
maravilhosamente boa! Eu... eu... adoro-a!
O rosto tornou-se-lhe escarlate, mas os olhos não se afastaram dos de Jerome. Olhava para o tio
orgulhosamente, num quase desafio.
"Boa!", pensou Jerome de si para si.
Ao que parecia, aquela pobre criatura deformada tinha muito pouca experiência sobre pessoas
verdadeiramente boas. Alfred devia ser escrupulosamente justo e atencioso
para com o
filho, claro. Dorothea devia considerar como seu "dever" cuidar de Philip. Mr. Lindsey, que tinha
confessado muitas vezes abertamente não gostar do jovem, devia
ser languidamente amável e caridoso para com o rapaz, desde que Philip não se intrometesse
demasiadas vezes nas suas meditações. Mas... ternura...? Carinho?... Isso
seria pedir demasiado a cada um deles.
"Sim, aquela prostituta é bem esperta!", pensou Jerome, sentindo uma súbita admiração subir-lhe no
peito. "Ela encontrou a brecha na armadura dos seus potenciais
inimigos. Mas... não abriu ainda nenhuma brecha na armadura de Jerome e de Dorothea!"
Philip soltara um suspiro profundo.
- Dentro de pouco tempo terei de ir para o colégio. Será em Setembro... já em Setembro. Odeio só
ter de pensar nisso. Eu não queria ir-me embora. Mas Miss Amalie
convenceu-me de que será melhor para mim se eu for. E ela prometeu-me que virei a casa nos
períodos de férias, e também que me irá lá visitar muitas vezes. É o colégio
de Mister Van Goort, em Filadélfia, e Filadélfia não é assim tão longe.
- Evidentemente que não! - disse Jerome com ar ausente.
- Será realmente agradável para ti, Philip.
Olhou atentamente para o rapaz, sentindo como que um espinho muito fino espetar-se-lhe no
coração. O pobre diabo! Via o perfil de Philip, sensível e delicado, cheio
de uma expressão de pureza, paciência e até uma certa nobreza. No entanto, havia também ali uma
certa força apesar das marcas profundas de uma meditação prolongada.
E havia algo mais do que um simples sinal de paixão nas narinas trémulas e nas linhas em redor da
sua boca firme. Jerome sentiu-se de súbito atraído para ele, e
isso deixou-o surpreendido.
- Fala-me mais acerca de Miss Amalie - disse ele. Sabes, sei tão pouco acerca dela e ninguém me
diz nada.
Philip passeou o olhar pelo vale, e em voz baixa disse:
- Ela era muito pobre, sabe? Tinha de trabalhar muito. Miss Amalie é uma mulher cheia de coragem.
Ri muito, e quando lhe perguntei porquê, disse-me que uma pessoa
só tem duas hipóteses: rir ou morrer. Disse-me então que prefere rir. Acho que eu costumava ser
muito... metido comigo próprio, e ela ensinou-me a rir.
Deu um suspiro muito profundo e continuou:
- Miss Amalie é a coisa mais maravilhosa que me podia ter acontecido. Por vezes, eu nem acredito.
Jogamos juntos, fazemos longos passeios, andamos a cavalo e ela
conta-me as mais estranhas histórias acerca de pessoas que conheceu e também acerca do seu
trabalho. Mas não odeia ninguém, e isso é tão estranho!
Acho que, se eu estivesse no seu lugar, teria odiado muita gente.
Aquela vagabunda esperta! Quase que a podia ver agora, divertindo-se e jogando com a simpatia
daquele pobre rapaz, ingénuo e puro, metido dentro do seu claustro,
exibindo com ele uma coragem e uma frontalidade que o deixava extasiado, conquistando-o
irremediavelmente! Ele, Jerome, tinha-a
subestimado. Ela era formidável. Sentiu o sangue correr-lhe rápido nas veias e a respiração tornou-
se-lhe um pouco mais
apressada.
- Miss Amalie esteve em Filadélfia - estava Philip a dizer.
- Assistiu a óperas e a peças de teatro. Ficava sempre, evidentemente, sentada na última fila, mas
isso não interessava. Ela costuma dizer que aqueles que habitualmente
se sentam nas últimas filas do balcão são os únicos que apreciam realmente as óperas e as peças
teatrais. Não se importam de estar desconfortáveis, e até com frio,
pois o importante é poderem ir.
- É, na verdade, uma mulher espantosa! - exclamou Jerome, rindo.
Mas Philip não o tinha ouvido. A boca estava tensa de paixão, e os olhos brilhavam-lhe de
excitação.
- Ela também costuma ler para mim. Criámos uma história para nós próprios, e por vezes ela conta-
me um capítulo e na noite seguinte eu invento outro. É muito divertido
e excitante. Ontem à noite ela foi para o meu quarto, e criámos um novo capítulo. Era acerca de um
novo herói que fez o seu aparecimento na história. É um homem
muito blasé e mundano, considerando-se, a si próprio, encantador e muito esperto, não conseguindo,
no entanto, ser mais do que extremamente cómico. Rimo-nos muito
com isso. É muito pretencioso e considera-se muito dotado.
Tinha começado a rir, e todo o seu rosto, magro e pequeno, parecia refulgir de ironia. Estava tão
imerso nas suas próprias palavras que nem reparou que Jerome emudecera,
tornando-se sombrio.
- Oh, foi tão divertido, tio Jerome! Inventámos tantas particularidades acerca dele, e cada uma delas
era sempre mais divertida do que a anterior. Todo o meu corpo
me doía de tanto rir, quando finalmente ela se retirou. Fiquei durante muito tempo acordado, sem
conseguir adormecer, e tive, até, de tapar a cara com a almofada
para que ninguém pudesse ouvir as minhas gargalhadas.
Jerome assobiou a Charlie e o pequeno cão aproximou-se dele, relutante, rosnando ainda
ferozmente para o inimigo distante. Jerome agarrou-o.
- bom, temos então em casa uma pessoa com espírito disse ele.
- Falar com Miss Amalie é melhor do que assistir a uma peça - retorquiu Philip, sem afectações, os
olhos brilhando de admiração e sinceridade.
Agora que os dois se tinham afastado, os pardais aproximaram-se das sementes que haviam sido
colocadas no chão por Philip. Atiraram-se a elas aos bandos, chilreando,
esvoaçando nervosos, lutando alegremente uns com os outros num frenesim de excitação. O homem
e
o rapaz observaram-nos. Philip estava deliciado, mas Jerome não via os pássaros. Sentia que as
têmporas lhe palpitavam num tremor de fúria e ódio.
- Receio bem - disse ele, indulgentemente - que Miss Amalie seja um pobre juiz de carácter.
Philip ficou perplexo. Jerome voltou-se e começou a subir a colina. Philip seguiu-o, mas em
silêncio. Sentia de novo que havia ali qualquer coisa de errado. Admirava
profundamente Jerome, mas sentia um certo receio dele. Jerome era, por vezes, demasiado
"amável", e o pobre rapaz pensou de si para si, perturbado, que esperava
não o ter ofendido.
Quando chegaram a casa, Philip, num tom tímido e receoso, explicou que tinha de ir fazer a sua
sesta. Miss Amalie insistia com ele de que devia fazer um pequeno
repouso durante a tarde, e a verdade é que isso lhe fazia muito bem. Jerome despediu-se dele com
modos agradáveis e sem fazer quaisquer comentários. Ficou sozinho
na vasta entrada da casa aquecida pelo sol, afagando o cão num gesto quase automático. Depois
ergueu a cabeça surpreendido.
As portas da sala de música estavam fechadas, mas por detrás delas chegava até ele um som forte e
apaixonado, abafado e ao mesmo tempo intenso. O seu ouvido treinado
apercebeu-se imediatamente de todas as falhas, de todos os erros de técnica com que a música era
tocada. Todavia as mãos que a tocavam tinham uma força e uma vitalidade
espantosas e o que faltava em técnica era mais do que compensado por essa vitalidade e por um
realismo e beleza dificilmente igualáveis.
Em silêncio, abriu as portas, e a música rodeou-o como uma forte rajada de vento arrastada por uma
ilimitada veemência e emoção. A pianista não sabia nada de medidas
nem de fluências, isso era verdade. Mas não importava. Jerome sentiu-se subjugado pela grandeza e
pela intensidade dos sons que se abatiam
sobre ele.
A sala de música era austera e fria, apesar do lume que ardia na lareira de mármore preto. O chão
escuro era brilhante e polido, totalmente nu, aumentando, assim,
toda a sua extensão que cintilava à luz que jorrava através das janelas altas e estreitas, orladas por
brocados de um azul escuro, apanhados de lado por pesados
cordões dourados. Algumas cadeiras de mogno trabalhado, estofadas em brocado azul e rosa,
lançavam o seu reflexo no chão, e de encontro às paredes enfileiravam-se
outras cadeiras, pequenas e trabalhadas, como que prontas para um concerto de música que Mr.
Lindsey pretendesse oferecer aos seus amigos.
Junto às janelas as paredes estavam cobertas com pequenas palmeiras e fetos e ainda árvores da
borracha em grandes vasos de louça, que enchiam o ar fresco de um
cheiro agradável. A harpa de Dorothea, toda em mármore e talha dourada, ficava à esquerda de
Jerome, perto das janelas. No canto mais distante, afastado da parede,
encontrava-se o grande piano com a sua imensa cobertura francesa de franjas prateadas. Havia
também um estrado, vazio, onde costumavam tocar os músicos contratados
especialmente em Filadélfia ou mesmo em Nova Iorque. Mr. Lindsey gostava de música, e Jerome
recordava-se de muitos concertos que ali se tinham realizado durante
a sua infância e adolescência. Recordava-se também dos bailes que Mr. Lindsey costumava dar,
quando Jerome estava em casa, e viu-se de súbito transportado para aqueles
serões alegres e festivos, em que ele e os seus jovens amigos tinham valsado e rodopiado ao
compasso de graves e imensas orquestras. Parecia-lhe ouvir, de novo,
os risos jovens e as vozes alegres, e diante dos seus olhos pareciam passar grupos alegres de
raparigas, de rostos brilhantes e felizes, seguidas pelos rapazes locais
que as namoravam e pretendiam.
A sala de música estava vazia agora; apenas a jovem mulher se encontrava ali, sentada ao piano. O
seu longo vestido, castanho e simples, envolvia-lhe o corpo dando-lhe
um ar de inocência maravilhosa. A luz da tarde parecia brincar com o seu cabelo negro e brilhante,
que caía em massa ondulada sobre os seus ombros. As costas, direitas,
numa posição natural e perfeita, pendiam lentamente para um e outro lado, acompanhando os
movimentos das suas mãos brancas. Via-lhe o perfil, arrebatado e em êxtase,
os lábios afastados, os olhos erguidos lançando chispas de tons violáceos. Dos dedos jorrava-lhe,
em catadupas violentas, um caudal de sons encantados e mágicos.
Estava feliz. Estava sozinha. Deixava-se arrastar pela música que ela própria criava.
Jerome sentou-se numa das cadeiras de brocado. Acalmou o inquieto e desassossegado Charlie com
uma leve pressão dos seus
dedos. Recostou-se na cadeira e cruzou as pernas, ficando a olhar intensamente para Amalie, que
não se apercebera da sua presença. Então, era aquilo que ela era!
Toda a sua "coragem" e toda a sua "valentia" eram apenas coisas fingidas, na realidade. Tudo aquilo
significava um espírito vicioso e mesquinho que passava pelos
outros com ligeireza e indiferença! Ali estava ela, revelada em toda a sua turbulência e discordância
interior, num todo de paixão enfurecida, numa força sem controle
e num desafio indómito com que enfrentava tudo e todos que ousassem fazer face à sua vontade. A
música era ao mesmo tempo serena e poderosa, num crescendo de intensidade
inexorável. Era bela, sim, mas primitiva e mesmo selvagem.
Jerome sorriu e acariciou, indolente, uma das sedosas orelhas de Charlie. Apercebeu-se da melodia,
escutou-a repetida, entendeu-lhe o tema. Tinha uma intensidade
e uma insistência primordiais. Já não sorria. A pulsação, contra sua vontade, parecia acompanhar
aquele ritmo diabólico, ressoando dentro dele como tambores tocados
com uma força insana, arrastados a um clímax de crescente violência.
Havia algo de revolta naquela música, algo de imparável, de violento, de indomável naqueles tons
quase heróicos. A mão ficou-lhe estática, imóvel, sobre a cabeça
do cão, e viu, por momentos de vívida clarividência, o pico de uma montanha recortado na luz, e
ouviu, das suas cavernas e gargantas, o eco retumbante de um trovão,
o desafio gritante que reboava por entre os seus penhascos.
Depois, toda aquela revolta gótica terminou de súbito num enorme crescendo, como um grito, e o
silêncio que se lhe seguiu pareceu vibrar continuadamente no mesmo
tom.
Amalie continuou sentada ao piano, na posição de tocar, mas as suas mãos moviam-se sobre as
teclas, lentamente, sem no entanto levantarem um único som. O corpo tremeu-lhe
descontroladamente quando Jerome começou a bater palmas, muito alto, mas muito lentamente.
Ela voltou-se no banco e olhou para ele. Nos seus olhos Jerome leu-lhe toda a afronta e toda a raiva
que a possuíam.
- Na realidade, isso foi uma coisa notável, mesmo singular!
- disse ele. - Vejo-me obrigado a cumprimentá-la, e aos professores que teve, Miss Amalie.
Ela não respondeu. Continuou de olhos fixos nele e só ao fim de muito tempo se levantou, rápida, e
num gesto irritado fechou o piano.
- Não podia tocar qualquer coisa de Wagner, talvez, ou Beethoven? - sugeriu Jerome, recomeçando
a acariciar a cabeça do cão num gesto indolente.
Ela voltou-se para ele e disse, muito calma:
- Porque é que não me deixa em paz? Ele sorriu-lhe, pensativo.
- bom, essa é uma pergunta que eu tenho andado a fazer a mim próprio - respondeu, com um ar de
grande candura. Será o seu espírito, talvez? Ou o seu encanto? Ou
os seus extraordinários dons? Ou a sua conversa verdadeiramente deliciosa? Ou serão antes os seus
modos requintados que tanto me fascinam? Sem dúvida, são os seus
modos. Eles são tão... tão extraordinários.
O rosto de Amalie ficou de súbito inundado por um escarlate violento que traduziu toda a emoção
de que fora assaltada.
- Porque é que não me deixa em paz? - repetiu ela, com voz rouca e muito baixa. - Que foi que eu
lhe fiz? Que inimizade lhe terei eu demonstrado? Que mal é que eu
lhe infligi?
- Você não pode fazer, e não fez nada, minha cara senhora!
- disse ele, olhando-a ironicamente. - Mas, já que somos tão francos, deixe-me dizer-lhe que talvez
eu desaprove a sua presença aqui. Não a posso ver aí, sentada
ao piano. Não suporto a sua presença à mesa. Acho insuportável a idéia de que você ocupe, ou
venha a ocupar, o lugar dela à mesa. Perdoar-me-á, eu sei, estes sentimentos
ridículos.
Enquanto ele falava, o rosto de Amalie foi-se tornando imensamente pálido, branco como a cal.
Depois, começou a sorrir, mas o seu sorriso era mais um esgar mordaz
e frio.
- Na minha opinião - disse ela -, acho que devia dizer todas essas coisas a Alfred.
Ele arqueou uma sobrancelha.
- Oh, não, claro que não! Não se consegue convencer um cão a desistir do osso delicioso que tem
entre as patas. Alguma vez tentou tirar um osso a um cão? Fica-se
com os dedos num estado lastimoso.
Muito lentamente, Amalie passou a mão sobre o piano fechado.
- Permita-me que lhe faça um aviso, caro Mister Lindsey. É possível que você fique realmente com
os dedos num estado lastimoso se continuar como até aqui. Mas...
digo-lhe mais uma vez que, na minha opinião, deveria discutir esses interessantes assuntos com
Alfred Ou... será que já o tentou?
Mas ele não respondeu, continuando a acariciar o cão, e sorrindo para ela de um modo deliberada e
conscientemente insultuoso.
A voz dela, e a sua respiração, tornaram-se apressadas.
- Você diz que não gosta da minha presença aqui. Porquê? Sejamos francos. Será porque eu sou
pobre? Ou porque não sou
de nascimento nobre? Porque tive de trabalhar para viver? Porque não tenho antepassados ricos?
Porque tudo quanto possuo o consegui apenas com as minhas mãos? Porque
nunca pedi, a ninguém, nem piedade nem qualquer mercê? Nesse caso, Mister Lindsey, deve odiar a
grande maioria dos Americanos. Deve detestar a presença de quase
todos eles.
Ele ergueu a mão elegante num gesto lânguido.
- Minha querida Miss Amalie! - protestou. - Está a acusar-me dos mais antidemocráticos
sentimentos, e isso não é justo! Não tem a democracia sido o mais edificante
tipo de vida, desde o nobre Mister Lincoln? Quem sou eu para discordar do que ele disse? Não,
você está completamente enganada. Não a desprezo por causa da sua pobreza,
nem por causa da sua falta de linhagem, nem da árdua luta pela vida que tem tido até aqui, nem
sequer pelos seus antecedentes pouco menos que ambíguos. Não, não,
mil vezes não! Digamos que a detesto por aquilo que você é, ou melhor, por aquilo que eu sei que
você é.
Ela olhou-o em silêncio, e ele adivinhou-lhe, mais do que viu, o brilho amargo dos seus olhos
violetas. Depois, muito serena, ela perguntou:
- E... o que é que eu sou?
Ele encolheu os ombros. Endireitou-se na cadeira, assumiu um ar solene, e respondeu:
- Miss Amalie. Você não está a falar com um simplório ingénuo como Alfred. Não está a falar com
um velho senhor rural, fechado no seu castelo, como o meu pai. Não
está a falar com um rapazinho confiante e inocente, como Philip. Pelo contrário, está a falar com um
homem que pode dizer, em consciência, que conhece alguma coisa
do mundo, e também alguma coisa dos homens e das mulheres que o habitam.
Ela não falou, mas o seu sorriso tornou-se ainda menos atraente.
- Ora bem! -disse ele. -Eu sempre fui um admirador da história da Gata Borralheira. Acho-a
verdadeiramente encantadora. Mas... ponho-me a olhar para os seus pés,
Miss Amalie, e, sinceramente, não vejo nenhum sapatinho de inocente e puro cristal. Vejo, pelo
contrário, um sapato de...
- De quê? - perguntou Amalie, quando ele se interrompeu.
Jerome voltou a encolher os ombros, e retorquiu:
- Ora, não queira obrigar-me a ser desagradável, porque nunca o conseguirá. Estou só a avisá-la.
Num gesto deliberado, ela ergueu as saias, deixando ver uns tornozelos maravilhosamente
torneados e uns pés finos e pequenos.
- Os meus tornozelos - disse - não estão gastos por andar a bater com eles no pescoço dos
desesperados e
indefesos. E os meus pés não estão inchados por andarem
a por tapear aqueles que não podem devolver os pontapés que lhes dão.
Jerome inclinou-se para a frente e disse:
- Muito bonitos, realmente muito bonitos. Garanto-lhe que nunca vi tornozelos mais bonitos, nem
sequer nos palcos de Nova Iorque. Agradeço-lhe o encantador espectáculo
que me proporciona.
Amalie deixou cair as saias, lentamente, ficando muito direita diante dele.
- Mister Lindsey - disse ela -, não vou perder mais nenhum do meu tempo a discutir consigo. Não
vou, sequer, tentar argumentar. Você não é digno de qualquer esforço
que eu faça nesse sentido. Podia dizer-lhe que você não passa de um homem vulgar, de um
maçador, de um presunçoso e de um louco. Mas você não acreditaria nas minhas
palavras. Portanto, pela última vez, aviso-o. Deixe-me em paz. Fique fora do meu caminho. Não me
dirija a palavra, a não ser quando absolutamente necessário e só
na presença de outras pessoas. Porque, meu caro Mister Lindsey, se continua a aborrecer-me, ver-
me-ei obrigada a recorrer a Alfred. Dir-lhe-ei que você não faz outra
coisa senão perseguir-me e aborrecer-me. Dir-lhe-ei que na noite passada você foi atrás de mim até
aos pinheiros, obrigando-me a aceitar os seus instintos repulsivos.
Fez-se silêncio de novo. Por fim, Jerome sorriu e disse:
- Você não se atreveria.
- Atreveria sim, Mister Lindsey! De facto, apenas um sentimento de caridade que nasceu comigo e
ainda o respeito que tenho para com o seu pai e o seu primo me impediram
de contar tudo isto a Alfred esta manhã. Eu sou uma mulher de paz, Mister Lindsey! E prefiro
continuar a viver em paz. Você perturba a minha determinação, prejudicando-se
a sipróprio.
Ele ergueu-se da cadeira e deixou cair o pequeno cão, que correu ansioso na direcção da rapariga.
Jerome e Amalie ficaram frente a frente. Ele deu um passo, aproximando-se
dela. Amalie não recuou. Jerome podia ver a palpitação ritmada que lhe agitava a branca garganta,
mas ela não afastou os olhos dos dele.
- Isso são palavras de uma aventureira! - disse ele.
O rosto dela alterou-se, e um sorriso involuntário aflorou-lhe os lábios.
- Talvez, Mister Lindsey.
- Não posso permitir que uma aventureira ocupe o lugar da minha mãe.
com imensa cortesia, ela retorquiu-lhe:
- Não vejo como é que vai impedi-lo, meu caro senhor. Ficou por momentos em silêncio, e depois
juntou ainda:
- Mas não se esqueça do que eu lhe disse. Pode ter a certeza de que não encontrará pela frente um
inimigo fraco.
Ele apoiou-se à cadeira, num gesto negligente, e olhou-a com insolência.
- Admiro-a, Miss Amalie. Admiro a sua coragem. Admiro o seu espírito lutador. Devia ter nascido
homem. Acho que, se o fosse, gostaria de si.
Ela abriu a boca, como se fosse falar, mas fechou-a logo de seguida. Agora, a sua expressão era
grave e perscrutadora.
- Sim! - disse ele, como se pesasse as palavras. - Acho que gostaria de si. Poderia, até, ser seu
amigo, pois eu admiro criaturas desumanas e impiedosas.
- Eu sou desumana porque me vi obrigada a sê-lo - retorquiu Amalie, com ar pensativo. - Não fui eu
que escolhi os meus pais, nem a minha pobreza, nem a minha vida.
Mas consegui ultrapassar e sobrepor-me a tudo isso. E pode ter a certeza que não largarei das
minhas mãos aquilo que consegui. Nem serei obrigada a fazê-lo.
Deu um passo para o lado e preparou-se para passar por Jerome. Num movimento súbito e brusco,
ele segurou-lhe num braço. Esperou que ela lutasse, mas ela não o fez,
limitando-se a olhar para ele, num desafio.
- Maldita seja você! - disse ele em voz muito baixa. Não posso deixá-la em paz. Porquê? Não sei.
Odeio-a e desprezo-a. mas há em si qualquer coisa...
Ela sorriu e perguntou:
- Mister Lindsey, ficaria satisfeito se nunca mais me voltasse a ver? Se eu me fosse embora,
deixaria de me perseguir?
Muito lentamente Jerome retirou a mão do braço dela, e ficou a olhá-la sem responder.
- Não! - murmurou por fim. - Não. Penso que não.
- Obrigada! -retorquiu ela simplesmente.
- Não sei porquê, mas você fascina-me. Você é uma mulher magnífica. Há qualquer coisa em si que
me atrai. Noutras circunstâncias, minha cara, creio bem que enlouqueceria
por si parou de falar, e uma mancha escura ensombrou-lhe o rosto.
- Acho que poderia fazer-lhe uma oferta interessante, Miss Amalie.
O rosto dela ficou extremamente pálido. Depois, como Charlie se enroscasse, insistente, a seus pés,
baixou-se e pegou nele, num movimento cheio de graciosidade.
Segurou o pequeno cão entre os braços e Jerome aconchegou-lhe a cabeça mesmo por baixo do
queixo dela.
- Mister Lindsey! - disse ela, após um prolongado momento de silêncio. - Tudo isto é muito
interessante, devo confessá-lo. Mas...
peço-lhe que se lembre do meu aviso.
Estendeu o cão na direcção de Jefbme e ele pegou-lhe. Ficaram depois a olhar um para o outro
intensamente.
- Jamais a deixarei em paz - disse ele, com voz rouca. Não sei se a odeio, ou se... Mas hei-de
descobrir, pode ter a certeza. Porque, sabe, eu não me vou embora
desta casa.
- Mas... você não pode ficar aqui! - exclamou ela, assustada.
- E porque não? Esta é a minha casa, se é que já se esqueceu!
Amalie soltou um suspiro profundo, e um desespero enorme inundou-lhe o rosto.
- Você não pode ficar aqui - repetiu. - É impossível!
- Porquê? - perguntou ele, aproximando-se mais dela. Ela atirou a cabeça para trás e os dois ficaram
a olhar um
para o outro, intensamente, estudando-se, analisando-se, perscrutando-se mutuamente.
Jerome estendeu a mão e colocou-lha na nuca. Começou a puxá-la de encontro a si, mas,
recuperando o domínio de si própria, ela empurrou-o, afastou-se dele soltando
um grito abafado e, apanhando as saias correu veloz na direcção da porta.
Quando a ia a ultrapassar, parou abruptamente. Jerome tinha-se esquecido de fechar as portas atrás
dele quando entrara na sala, e Dorothea, como um fantasma, encontrava-se
ali, envolta no seu roupão preto, num silêncio rígido e acusador.
Amalie recuou um passo e Jerome, que se voltara para a seguir, deteve-se também. Olhou para a
irmã e ela devolveu-lhe o olhar, duro como pedras.
Entretanto, Amalie recuperara o domínio de si própria; deu um passo para o lado e passou por
Dorothea sem dizer palavra. Ambos ouviram os seus passos correndo, ligeiros,
pela escada acima.
- Boa tarde, Dorothea - disse Jerome.
- Ouvi tudo - disse ela como resposta. - Tudo.
- bom! - disse ele, indiferente. - Já podes ver que faço o que posso.
Dorothea avançou na sua direcção e disse, irritada:
- Tu... velhaco, tu... não passas do mais abominável dos homens.
- Ora, ora, isso não é generoso da tua parte! Estás a tirar conclusões precipitadas.
Sorriu para ela, sardonicamente, e continuou:
- Pensei que tudo isto estava combinado entre nós.
Como se não o tivesse escutado, ela soltou um suspiro de desespero e disse-lhe:
- Então, ela também te conquistou. Já o devia suspeitar. As suas feições tornaram-se convulsas.
Ergueu a mão e
apontou para ele um dedo esquálido.
- Afasta-te daquela mulher. Se não o fizeres, contarei tudo a Alfrede ao pai.
Depois voltou-se, como uma figura de granito preto, e deixou-o.
Mas Jerome seguiu-a indolentemente até à biblioteca e fechou a porta atrás de si. Ouvindo os seus
passos, ela virou-se, rígida, num movimento súbito, fazendo com
que o roupão de seda preta ressoasse num restolhar estridente, e voltou para ele um rosto lívido
onde se lia todo um repúdio e um desprezo imensos pelo irmão.
- Não sejas tola, Dotty - disse Jerome, com voz calma, embora no íntimo se sentisse alarmado. -
Sejamos razoáveis. Queres que eu desista da tarefa a que meti ombros?
Queres que eu deixe de tentar convencer aquela mulher a ir-se embora para sempre?
Encostou-se negligentemente contra a porta e acariciou o cão. Ela estremeceu e ele apercebeu-se de
que a não a conseguia enganar. Encolheu os ombros num gesto de
desdém.
- És um homem odioso! - disse ela, quase num sussurro.
- Um homem sem escrúpulos e sem honra. És um mentiroso, uma víbora.
Ergueu a mão e apertou-a contra o peito como se o coração lhe doesse, e uma sombra cinzenta
inundou-lhe o rosto.
- Vejo agora o que é que tu estás a tentar fazer. Não só arruinarias Alfred no Banco, destruindo a
posição que ele ocupa, como também destruirias aquilo que ele
julga ser a sua felicidade.
Calou-se, para logo continuar com firme determinação:
- Agora, compreendo tudo. Já sei o que devo fazer. Se Alfred quer casar com... com ela... não serei
eu quem se oporá. Além disso, tentarei defendê-lo. Observar-te-ei
constantemente. Jamais o prejudicarás outra vez, nem sequer te permitirei que o tentes fazer.
- Ameaças! - murmurou ele, abstractamente. - Parece-me que não ouvi nada senão ameaças desde
que voltei para esta casa.
- Então, vai-te embora! Deixa-nos em paz. Algo me diz que te impeça de ficar...
Jerome soltou uma gargalhada e os seus dentes brancos reluziram na semiobscuridade da biblioteca.
- Definitivamente, esta casa parece uma casa de doidos! Tenho a impressão que vou ter de andar à
procura de fantasmas ou a tentar ouvir o som das suas correntes.
É muito estranho! Sinto-me perplexo. Devo ser, sem dúvida, uma pessoa bem indesejável, e no
entanto não desejo mal a ninguém. Só pretendo ser recebido no peito de
toda a gente.
Depois, a sua expressão alterou-se e olhou para a irmã num desafio insolente.
- És uma louca, Dotty - disse ele. - Não acredites que me podes assustar. Tenciono ficar aqui. Serei
muito circunspecto. Mas... ficarei.
Era ela quem estava assustada, agora. Afastou-se dele, recuando uns passos.
Quando Jerome se voltou e saiu da biblioteca, Dorothea ficou a olhar para a sua figura e disse para
si própria, pensativamente:
"É o Diabo em pessoa. É o próprio Demónio. Algo de muito terrível existe dentro dele, apesar de
todos os seus sorrisos!"
Capítulo décimo primeiro
Jerome desceu para jantar, assobiando com ar distraído e trazendo debaixo do braço duas pequenas
telas. Encontrou o pai diante da lareira da biblioteca com Alfred,
Amalie e Dorothea. Antes de entrar na sala, Jerome parou no limiar da porta.
A voz baixa e monótona de Alfred, tão calma e persistente como um riacho sereno, fazia-se ouvir
numa dissertação sobre os negócios feitos durante o dia. Mr. Lindsey
escutava-o com uma atenção cortês, mas deixava-se afundar na sua cadeira, dando mostras de uma
evidente abstracção, e os olhos começavam a vaguear lentamente pela
sala.
Dorothea, muito rígida e direita na sua cadeira, bordava com rápida determinação, como aliás fazia
tudo, fosse qual fosse a sua importância. Envolta num longo vestido
de seda cor de violeta escura, totalmente fora de moda, e com uma touca de folhos a cobrir-lhe
quase por completo os cabelos já grisalhos, ela mantinha um ar de
inabalável compostura.
Amalie estava com ar ausente, não prestando atenção a ninguém. O seu rosto estava muito pálido,
mas sereno; passava constantemente a mão sobre a pele macia da cadeira
e tinha as pernas estendidas e os pés cruzados um sobre o outro. Parecia mergulhada em profunda
apatia e o ritmo da sua respiração mal perturbava a lã verde escura
do corpete do seu vestido.
Penteara o cabelo sobriamente, afastando-o das têmporas e apanhando-o num novelo apertado sobre
a nuca.
Todos olharam para Jerome quando ele entrou na sala e soltou um alegre "boa noite". O rosto
cansado de Mr. Lindsey alegrou-se visivelmente, e o corpo endireitou-se-lhe
na cadeira. Dorothea olhou-o de relance, mas afastou de imediato os olhos, sem uma palavra,
assoando-se a um lenço que retirou da manga do vestido. Amalie observou-o
por breves instantes, para logo regressar à sua contemplação do lume da lareira, enquanto que a sua
mão continuava como que a acariciar o braço da cadeira onde estava
sentada. Mas Alfred ergueu-se, extravasando um prazer reprimido e uma amizade aberta.
- bom! - disse ele. - Ouvi extraordinárias notícias ateu respeito, Jerome.
Jerome olhou para ele, e os olhos pareceram estreitar-se-lhe, embora um sorriso lhe brincasse nos
lábios. Sim, Alfred estava "satisfeito", isso era evidente. Jerome
sentiu-se vagamente perturbado e confuso, apesar da sua prévia análise de Alfred, naquela tarde.
Não havia qualquer vestígio de hipocrisia na satisfação de Alfred.
Estava a fazer o seu maldito dever, como sempre, repudiando qualquer tipo de apreensão ou
cuidado, natural e humano, que um homem menos virtuoso poderia sentir.
- É muito amável da tua parte, Alfred - disse Jerome, polidamente.
- Amável da minha parte? - repetiu Alfred, um pouco perplexo. - Que queres tu dizer com isso,
Jerome?
Os olhos cansados de Mr. Lindsey brilharam por breves instantes. Colocou a mão sobre o braço de
Alfred e disse-lhe:
- Jerome está simplesmente a felicitar-te, meu rapaz, por demonstrares tanta força cristã.
Amalie voltou a cabeça muito lentamente e a sombra de um sorriso aflorou-lhe os lábios. Dorothea
continuou a bordar com redobrada energia. Mas Alfred estava agora
completamente confundido.
- Como? - perguntou ele, lançando a seu tio um olhar de franca admiração. - Que força? Acha que
eu vou precisar de força?
- Sem dúvida! Oh, sem dúvida! - disse Mr. Lindsey.
- Acho que não! - afirmou Alfred, com ar resoluto.
No entanto, continuava perplexo. Não vendo nada melhor que fazer, voltou a sentar-se. Jerome
aproximou-se da cadeira do pai e encostou-se contra ela. Alfred olhou-o
e perguntou:
- Porque é que eu vou precisar de força?
- Pode ser que me aches um aluno exasperante - retorquiu Jerome.
Tentou encontrar o olhar de Mr. Lindsey para trocar com ele um relance de mútua e secreta
compreensão, mas Mr. Lindsey não lhe fez a vontade.
- bom, admito que as actividades de um banco não são coisas que se aprendam num dia - confessou
Alfred, assumindo um ar um pouco pomposo. - No entanto, qualquer
homem inteligente, e com desejo de aprender, pode em pouco tempo penetrar nos seus mistérios.
- Então, parece que há qualquer coisa de exótico nessa profissão, não é verdade? - observou Jerome,
voltando
indolemente a cabeça para o primo.
- Exótico? - repetiu Alfred franzindo ligeiramente a testa, como se repensasse no assunto. Depois,
rindo com ar estúpido, disse: - Exótico não é exactamente a
palavra mais adequada para definir as actividades de um banco. Receio bem que não.
Jerome ofereceu-lhe um sorriso inocente, de querubim, e retorquiu-lhe:
- Mas tu falaste de "mistérios", meu caro Alfred. Talvez, então, a palavra "esotérico" descreva
melhor o teu trabalho!
Alfred sentia-se cada vez mais perplexo e confuso.
- Tu falaste em "mistérios"! - repetiu Jerome, pacientemente.
Mr. Lindsey pigarreou, como que a aclarar a garganta. Alfred olhou para Jerome, e um leve rubor
inundou-lhe o rosto habitualmente pálido.
Jerome juntou os lábios, franzindo-os como se fosse assobiar e olhou para cima.
- Fazes então esse teu trabalho por meio de adivinhação?
- perguntou.
Alfred não respondeu, mas a sua mão direita apertou, involuntariamente convulsa, o joelho onde
estava apoiada. A expressão de Jerome tornou-se alegre.
- bom! - exclamou ele. - Afinal de contas, parece que não me vou aborrecer, de maneira nenhuma.
Torna-se-me evidente que o elemento psíquico entra nas coisas de
um banco! Mas que excitante! Abre-se um documento, entra-se em transe e experimentam-se toda a
espécie de emoções excitantes. Acho que, afinal, negligenciei as
actividades bancárias durante demasiado tempo.
Alfred endireitou-se, muito rígido, nacadeira.
- Não compreendo - disse ele, com voz levemente enroquecida. - Uma actividade bancária é uma
ciência exacta. É tão exacta e tão prosaica como qualquer operação em
matemática.
A voz ergueu-se-lhe um pouco, e saiu-lhe um pouco trémula, como se vibrasse de raiva e pânico.
- Ali não se fazem adivinhações, como tu dizes, Jerome. É uma profissão altamente desprovida de
quaisquer emoções. Não consigo pensar noutra profissão que seja tão
vazia do elemento humano, tão despida de paixões, tão intelectualmente absorvente!
Jerome murmurou:
- Senhores, estais falando da dama que eu amo!
Mr. Lindsey mordeu os lábios e olhou teimosamente para a biqueira da bota. A agulha de Dorothea
faiscou, e a sua boca repuxada franziu-se ainda mais. Amalie virou
o rosto abruptamente.
- Que foi que tu disseste, Jerome? - perguntou Alfred. Jerome endireitou-se.
- Nada, nada! - retorquiu ele, num tom de blandícia suave, e dirigindo a Alfred um sorriso brilhante.
- Espero que não me aches demasiado obtuso, Alfred.
Alfred pareceu recobrar o seu sangue frio.
- Tenho a certeza que não - disse. - Tu és um homem muito inteligente, Jerome. Sempre disse ao tio
William que tu desperdiçavas os teus talentos. Tenho a certeza
de que não vais achar as coisas do Banco demasiado difíceis de compreender. Por outro lado, não é
de maneira nenhuma uma coisa perigosa.
Pronunciou as últimas palavras como se tentasse dizer uma piada.
- Realmente? - perguntou Jerome.
Pareceu meditar nas palavras do primo, e depois disse:
- Francamente, sempre considerei a profissão de banqueiro como uma irmã gémea de Medusa.
- Medusa? - repetiu Alfred completamente perplexo, agora.
- Jerome imagina-se um Perseu, talvez! - não pôde Mr. Lindsei impedir-se de dizer.
Jerome envolveu-o num olhar reprovador.
- Estamos a ser injustos, papá. Alfred não está, talvez, muito familiarizado com a terminologia
clássica. Ele nunca perdeu o seu tempo com os Gregos.
Alfred sentiu que tudo aquilo o ultrapassava.
- Tive dois anos de Grego! - disse ele. - Uma perda de tempo, para um homem profissional.
Mergulhou nos seus próprios pensamentos, tentando decifrar o significado das palavras de Jerome.
Ao fim de longos momentos, uma cor insalubre apareceu-lhe nas faces
lisas e lançou a Jerome um olhar que tinha qualquer coisa de brutal.
- Medusa? - repetiu ele, em voz baixa. - Sim, Medusa. Estou a compreender, agora, a tua alusão.
Mr. Linsey apercebeu-se de que a situação estava a tornar-se um pouco difícil e que tudo aquilo
poderia conduzir a algo de muito desagradável. Apressou-se, então,
a dizer.
- São essas as tuas pinturas, Jerome?
- Sim. O retrato da mamã, como lhe disse, e o presente de casamento para o nosso Alfred.
Enquanto falava, colocou as pequenas telas sobre os joelhos do pai.
- Então - teimou Alfred -, tu achas que o Banco te pode transformar em pedra!
Jerome ergueu a cabeça assumindo a atitude exagerada de um actor que representa uma cena
heróica.
- Não deixarei que isso aconteça, senhor, não deixarei que isso aconteça! Hei-de insuflar vida
naquela mal... naquela ciência apoloniana, e ela abraçar-me-á como
Galateia abraçou Pigmaleão!
Mr. Lindsey ergueu uma das telas e disse num tom de voz ligeiramente alto de mais:
- A tua mãe, Jerome! Da miniatura que ela te deixou... Ficou em silêncio, olhando para o retrato que
lhe sorria com
uma ternura secreta e envolvente.
- Adorável, adorável! - murmurou ele. Depois, falando consigo próprio, disse:
- Minha querida!
Dorothea bordava com gestos mais rápidos do que nunca. Amalie voltou o rosto para Mr. Lindsey.
Reparou que as mãos dele tremiam e inclinou-se um pouco para a frente
para melhor olhar o retrato.
Um rosto jovem e uns olhos doces fixaram-se nela. Amalie ficou perplexa. A execução do trabalho
surpreendeu-a e as suas linhas gerais revelavam um génio autêntico.
Não conseguiu evitar olhar de relance para Jerome, e uma expressão involuntária de sofrimento
escureceu-lhe os olhos.
Mas Alfred nem sequer se levantou para examinar o retrato de sua tia. Sentia-se furioso. Não sabia
para quem olhar, e os seus olhos, pálidos e vagueantes, encontraram
os de Dorothea. Muito lentamente, as mãos dela, fortes e seguras, foram perdendo o ritmo até
ficarem completamente imóveis. Olhou o primo com uma ansiedade amarga,
e os lábios dele, sem cor, arquearam-se. Depois, afastou os olhos.
Mr. Lindsey estendeu o retrato na direcção da filha.
- A tua mãe, minha querida! - disse ele com voz rouca. Dorothea fitou o retrato.
- Muito parecida - murmurou. - Mas tem uma expressão demasiado frívola e a querida mamã nunca
foi frívola.
- Ela amava todas as coisas - disse Mr. Lindsey, não a escutando. - Era alegre, alegre como uma
borboleta, alegre como uma pequena nuvem da Primavera. Havia nela
qualquer coisa de demasiado belo, demasiado delicado, demasiado delicioso. Quando ela morreu,
toda a cor desapareceu dos céus e desta casa para nunca mais voltar.
Segurava na tela como quem segura algo de muito precioso e intensamente amado. Voltando-se para
o filho, exclamou, emocionado:
- Meu rapaz! Meu querido rapaz! Obrigado! Tossicou, tentando aclarar a garganta, e disse ainda:
- Mas tu eras tão novo! Como é que te podes lembrar tão bem dela? Como conseguiste tu captar
aquilo que ela era?
- Ele não conseguiu nada! - disse Dorothea, quase num grito. - Ele imaginou tudo isso. E continuo a
achar que essa fotografia está demasiado frívola, direi mesmo
insultuosa.
Mr. Lindsey franziu o sobrolho e as linhas do seu rosto endureceram. No entanto, com um
espantoso controle sobre si próprio, disse, obrigando-se a
falar calmamente:
- Minha querida, tu e a tua mãe nunca foram muito ligadas.
- Eu adorava-a! -exclamou Dorothea.
Qualquer coisa de indefinido, há muito sepultado na sua memória, pareceu despertar nela.
- Mas ela nunca me compreendeu! E eu tentei tanto! Obedecia-lhe e fazia todos os meus deveres,
mais do que qualquer outra pessoa. Nunca discuti uma ordem que ela
me dava. Mas a mamã nunca mo agradeceu, nem nunca revelou satisfação por aquilo que eu fazia.
Apenas se ria. E eu amava-a tanto...!
O coração de Mr. Lindsey pareceu contrair-se com pena.
- Ela também te amava, minha querida. Quando ela... quando ela estava a morrer, foi para ti que se
voltou, para a tua força e para a tua bondade.
Dorothea agarrou no lenço e afundou nele o seu rosto, abruptamente.
Mr. Lindsey suspirou. Depois, com um gesto hesitante, estendeu a mão e bateu ternamente no braço
da filha.
- Vamos, vamos, minha querida, todos conhecemos o teu valor, e todos te estamos agradecidos.
- Claro que estamos! - disse Jerome, prontamente. Estava a começar a ficar aborrecido, e sentiu-se
alarmado.
Deus do céu, se ia ficar assim constantemente aborrecido, tudo
aquilo seria insuportável. Retirou a outra tela dos joelhos do pai, olhou-a, e depois mostrou-a num
gesto largo, para que todos a vissem.
- O presente de casamento! - disse, com um olhar aberto e sorridente.
Mr. Lindsey ficou, a princípio, demasiado chocado para se aperceber, com clareza, do tema da
pintura, e quando o fez, soltou uma exclamação breve e abafada.
O tema era um pouco esteriotipado, mas a execução era, pelo menos, original. Tratava-se da
Expulsão do Paraíso e, embora em miniatura, todos os pormenores estavam
vivamente trabalhados, com uma deliberação sardónica e mesmo licenciosa. O jardim, ao fundo,
parecia mergulhado numa luz demasiado lânguida e banal, as árvores distantes
eram demasiado perfeitas, demasiado convencionais, demasiado pesadas. As figuras de Adão e Eva
eram tão brancas como porcelana cintilante, requintadamente belas
e graciosas, destacando-se da penumbra emaranhada que as rodeava, como puro marfim. Adão
caminhava, rígido, à frente, o rosto assustado mas um pouco curioso, a mão
segurando a da sua esposa, que o seguia, atrás, num passo mais lento, com qualquer coisa de
relutante. Ele parecia bastante apressado; como um homem impulsionado
por algo que lhe ocupa o pensamento. Cobria-o uma série de folhas de figueira, habilmente
dispostas. Parecia dizer:
"bom, finalmente todo aquele disparate acabou; portanto, vamos voltar imediatamente ao senso
comum!"
A mão dele apertava-se com força, intencional e poderosa, em redor da pequena mão de Eva.
Percebia-se que o problema que o obcecava naquele momento era encontrar
um abrigo e estabelecer a sua casa e um negócio o mais depressa possível.
Mas a relutante Eva arrastava-se atrás dele, apesar do gesto firme com que o esposo a puxava.
Estava delicadamente pintada, em tons de prata salpicados de um rosa
desmaiado, e tinha um ar extremamente jovem. No entanto, era uma juventude consciente,
determinada, libidinosa e coquete. O cabelo dourado flutuava à sua volta,
mas de tal maneira disposto que não escondia uma única curva dos seios, um único arredondado das
ancas, nem uma única linha das suas coxas sedutoras. Via-se-lhe
o perfil sorridente, o lábio inferior vermelho, convidativamente distendido. O rosto estava atirado
para trás, num gesto magnífico, olhando, sedutor, para um belo
anjo que se quedara encostado ao portão. Não tinha quaisquer folhas de figueira nem quaisquer
outras que a cobrissem, e no sítio onde elas deveriam ter sido decorosamente
dispostas, encontrava-se a mão, pousada num gesto audacioso e lascivo.
O anjo, em vez de se manter direito numa posição de desprezo frontal, de espada bem erguida acima
da cabeça e expressão rígida e autoritária, revelava-se abertamente
atraído por Eva. A espada, que devia chispar, feroz, no ar, estava caída, apontando para o chão, e o
anjo encostava-se a ela, com ar de abandono. Estava a sorrir
e quase se adivinhava o seu gesto acenando uma despedida. Tinha uma expressão muito mais bela
do que Adão. Era mais alto, mais moreno, muito mais musculoso, e tinha
espelhada no rosto a expressão voluntariosa de um guerreiro. O cabelo ondulado e preto
emoldurava-lhe um rosto excessivamente masculino e vivo e a boca sorridente
era carnuda e cheia, revelando uma sensualidade bem marcada. As asas não eram gráceis e puras,
mas, pelo contrário, apenas brilhantes contornos de luz. As mãos que
repousavam no colo da espada eram fortes e duras. As vestes que o cobriam não tinham nada de
diáfano e, embora brilhantes, eram mais as vestes de um guerreiro vibrante
e caloroso.
Todo o quadro parecia levantar a dúvida se teria sido, talvez, o anjo que teria tido aquela conversa
interessante debaixo da árvore das maçãs com Eva, e não a serpente,
pois havia, na realidade, no anjo, um olhar prometedor como se estivesse a murmurar:
"Encontrar-nos-emos de novo, minha querida, quando não estiver de serviço, e quando tu te
conseguires ver livre dele."
Havia algo na atitude de Mr. Lindsey, demasiado silenciosa, demasiado prolongada e absorta, que
provocou a curiosidade de Dorothea e de Alfred. Inclinaram-se um
pouco mais para melhor observarem a pintura, e Amalie debruçou-se também sobre o braço da
cadeira onde estava sentada. Jerome, com o ar tímido e envergonhado de
um rapazinho que mostra aos outros a sua primeira "obra-prima", encontrava-se no meio deles,
sorrindo ansioso e ávido por escutar os aplausos.
De súbito, o rosto seco e enrugado de Mr. Lindsey ficou coberto de centenas de rugazinhas
maliciosas e a boca ameaçou abrir-se-lhe para deixar escapar uma gargalhada
sonora.
- Deus do céu - exclamou, esfregando o nariz.
Olhou para Amalie Maxwell. A boca dela estava comprimida, mas um sem número de linhas
minúsculas tinha aparecido de súbito à sua volta, e os olhos pareciam dançar
como luzes violetas. Mordia com força o lábio inferior e o peito parecia estremecer convulsamente
abalado por um intenso tremor.
Alfred olhava obstinadamente para o belo e cativante quadro e, ao fim de algum tempo, disse com
voz muito fria:
- Muito bem. O Jardim do Paraíso. Não sabia que te tinhas dedicado a temas bíblicos, Jerome.
Depois corou, embaraçado, espreitando a nudez pouco casta de Eva, incapaz de afastar os olhos.
Pigarreou como que a aclarar a voz, e disse ainda:
- Não se pode dizer que seja, na verdade, um quadro próprio para senhoras! É demasiado...
demasiado...
Dorothea recuou de novo na cadeira, com o rosto coberto de um escarlate muito vivo.
com ar extremamente sério, Jerome olhou para o primo e perguntou, inocente:
- Achas?
O tom da sua pergunta revelava ansiedade.
- Pensei que tudo quanto existe na Bíblia era próprio para senhoras!
Mr. Lindsey não conseguiu controlar-se por mais tempo e rompeu numa gargalhada vibrante, quase
estrondosa, verdadeiramente deliciada. Quase sem respiração deixou-se
cair para trás, de encontro ao espaldar da cadeira, de olhos húmidos e brilhantes. Tentou dominar-se,
mas de cada vez que olhava para Alfred era acometido de novas
e violentas convulsões. E as gargalhadas pareceram redobrar de intensidade quando Alfred começou
a olhar para ele, num espanto consternado. Alfred tinha agora o
quadro sobre os seus joelhos e tinha o ar de quem não sabia o que fazer com ele.
Depois, com ar estúpido e confundido, Alfred disse:
- Obrigado, Jerome. É... é muito edificante. Nunca liguei muito às coisas religiosas, e repito que
acho surpreendente tu teres pintado um quadro com um tema destes.
com um ar muito sério, Jerome inclinou a cabeça e disse:
- Espero que tenhas gostado.
A voz saíra-lhe humilde, como a de alguém inferior agradecido pelo elogio feito por uma pessoa de
categoria francamente superior.
- Podias pendurá-lo na parede do teu quarto!
Mr. Lindsey estava ainda a rir, mas agora num riso abafado, como se estivesse cansado do esforço
que fizera. Ao ouvir as palavras de Jerome, tapou os olhos com as
mãos e exclamou:
- Deus misericordioso!
Alfred pareceu meditar profundamente no que Jerome dissera e depois observou, por fim:
- Bem... não me parece que seja propriamente uma coisa para...
- Oh, pelo contrário! É, até, o mais apropriado! - disse Jerome entusiasticamente.
Alfred vagueou os olhos, penosamente, pelas paredes da biblioteca.
- Talvez aqui... - disse, inseguro.
- Sim... se tu quiseres... - retorquiu Mr. Lindsey, de voz entrecortada pelo cansaço.
Jerome retirou o quadro dos joelhos de Alfred e foi colocá-lo em cima da mesa. Só depois olhou,
pela primeira vez para Amalie.
Ela enfrentou-lhe o olhar, e devolveu-lho, dura e serena. Depois, virou a cabeça mas não antes que
ele se apercebesse do riso íntimo e intenso que lhe enchia o peito,
e do enorme, ainda que involuntário, prazer que a invadira.
Capítulo décimo segundo
Mesmo a normal e aparentemente estruturada consciência da vida perdeu a olhos vistos a sua
firmeza e consistência durante os últimos dias antes do Natal. A princípio,
Jerome julgou que isso aconteceria porque Hilltop tinha retomado a sua tranqüila rotina. Mas
depois, e não muito depois, na verdade, começou a suspeitar que tudo
aquilo não passava de um jogo. De uma maneira muito subtil, estavam a mostrar-lhe o que era, em
essência, a vida em Hilltop, e a lição estava bem dada.
No início, pensou:
"Como é que é possível eu ter-me esquecido de como tudo isto era insuportável e fastidioso?"
Passados três dias, pensava já:
"bom, eles estão a demonstrar-me como isto é monótono e aborrecido, e observam-me a todo o
instante, para ver como corresponderei a esta rígida beatitude, a esta
ausência de tempo, a esta paz premeditada e deliberada."
Sentia-se divertido, maliciosamente divertido, mas não sentia nem raiva, nem revolta, nem ira.
Reparou que dormia melhor, sem sentir necessidade de quaisquer sedativos
que o seu médico em Nova Iorque lhe tinha receitado. Por outro lado, encontrava maior prazer na
bebida, sem que ela tivesse sobre ele aquele efeito pernicioso que
tão estoicamente tinha começado a aceitar como o preço que devia pagar pelo breve encantamento
de inconsciência que ela lhe dava.
Explorou os campos em redor, a pé ou de charrete, sentindo uma vaga mas agradável nostalgia
quando recordava a sua meninice e adolescência. Não era grande apreciador
de cavalos, mas como Jim se encontrava muitas vezes nos estábulos discutindo acaloradamente com
os empregados, ou concordando com eles, acerca da maneira como se
deviam tratar os animais,
Jerome juntava-se-lhe ali, para escutar as conversas e adiantar uma ou outra opinião asinina, de sua
própria autoria. O resultado dessas opiniões era invariavelmente
o mesmo: Jim e os rapazes das cavalariças ficavam a olhar para ele com um ar de pena e
comiseração.
Jerome redescobriu a biblioteca de seu pai, e passava muitas horas de prazer lendo junto à lareira.
Tinha passado muito tempo desde que fora capaz de se sentar,
calmamente, durante mais do que meia hora, e durante meses e meses tinha-lhe sido impossível
concentrar a atenção num livro. Ficou deleitado ao descobrir que Mr.
Lindsey se tinha mantido a par de toda a literatura actual, e que os volumes, mesmo os mais antigos,
não estavam cobertos de bolor, como tinha suspeitado.
Encontravam-se ali a Origem das Espécies de Charles Darwin, e os ensaios de Thomas Huxley,
ambos exemplos usados da nova massa que começara a fermentar entre a sociedade
científica e delicadamente religiosa da época. Jerome tinha ouvido falar muito acerca das teorias
sacrílegas de Mr. Darwin, e sabia que Mr. Huxley estava a ser muito
popular entre os alunos mais intelectuais, mas não se tinha incomodado muito em esclarecer as suas
próprias idéias sobre aqueles assuntos. Quando o tentara, por
uma ou duas vezes, o seu espírito exausto e febril conjurara-o com pensamentos mais ligeiros mas
também mais doentios, ou tinha lançado sobre ele os seus dedos gelados
em completa imobilidade, recusando-se a penetrar naquele mundo de teorias algo complexas.
Agora, Jerome decidira-se a ler o que aqueles dois cavalheiros blasfemos lhe ofereciam, e embora
os achasse extremamente difíceis a princípio, depressa se viu arrebatado
de excitação pelos problemas que eles lhe comunicavam, e pelas portas que eles lhe abriam para um
mundo até então desconhecido.
Mr. Lindsey, com o seu cuidadoso hábito de compromisso e a sua cansativa mania de "ouvir as
opiniões dos dois lados", tinha adquirido um relatório sobre a controvérsia
entre Mr. Huxley e o bispo Wilberforce na British Association of Oxford, em 1860. Ao longo de
todo o último volume, que incluía as opiniões de muitos outros cavalheiros
com o mesmo estofo e pensamento do bispo, Mr. Lindsey fizera os seus comentários, claros e
pormenorizados, em tinta preta, os quais terminavam invariavelmente com
a indicação da página da outra obra, para consulta, como por exemplo:
"Nota: Página47, Origem."
Jerome divertia-se saltitando de um lado para o outro entre o bispo Wilberforce e Darwin,
terminando com o argumento final de Huxley. Fosse como fosse, no entanto
(e sentia-se, por isso,
bastante irritado com o pai), parecia-lhe chegar à conclusão de que nenhum deles tinha razão, ou
que muita coisa poderia ser dita a favor de ambos os lados. Malditos
compromissos aqueles! Eles retiravam toda a vida de uma tese, de modo que o observador ficava
absolutamente convencido de que ninguém podia fazer nada acerca de
coisa nenhuma, excepto reclinar-se numa inércia mole e saborear vinho do Porto. Mr. Lindsey não
reprovava nem criticava. Limitava-se simplesmente a presidir à questão,
como um árbitro aristocrata, e deixava que os rapazes discutissem e argumentassem, mantendo a
sua posição imparcial, quase desesperante e inteiramente sem tomar
partido.
"Compromisso!", pensou Jerome. "É a senilidade do espírito, a arteriosclerose da alma. O
compromisso é a artrite espiritual que eventualmente aflige aqueles que
assassinaram toda a opinião particular. Os juizes ficam, inevitavelmente, fossilizados e de
articulações rígidas. Só os queixosos e os réus permanecem jovens e vigorosos.
Eu prefiro estar errado, mas permanecer na luta, do que sentar-me e dizer: "Há sempre dois lados da
questão, sabem?""
Quando ficava demasiado irritado, ia ter com o pai para discutir com ele um ou outro ponto,
escolhendo sempre uma secção particularmente provocatória de Mr. Darwin
ou Mr. Huxley.
Era então que despertava nele a sensação de que qualquer coisa de muito peculiar estava a
acontecer. Raramente conseguia encontrar o pai. Mr. Lindsey "saíra para
um pequeno passeio", ou "Mr. Lindsey está a descansar, por ordens do médico", ou simplesmente
Mr. Lindsey estava incomunicável.
Jerome aceitou este estado de coisas com naturalidade durante os primeiros dois dias, mas depois
começou a ter suspeitas de que nada daquilo era assim tão natural.
O pai estava a evitá-lo. Estava a demonstrar, de maneira muito subtil, a seu filho, que este não devia
depender dele para encontrar companhia e divertimento, que
a época das conversas longas e estimulantes (que tinham ocupado grande parte do tempo quando
das raras visitas de Jerome a casa) tinha passado, e que o prazer e
a companhia normalmente oferecidas a um visitante não podiam continuar a ser infinitamente
concedidas a um residente permanente.
Mesmo ao quinto dia, Jerome sentia-se ainda divertido; mas a pouco e pouco começou a ficar
exasperado e a sentir-se insultado. Via o pai agora só ao fim da tarde,
na companhia dos outros. Nessas alturas, Mr. Lindsey cumprimentava o filho com uma afeição
terna mas mole, que Jerome achava pouco menos que enfurecedora.
O jovem Philip, com os seus intensos olhos negros, não se encontrava disponível, mesmo que
Jerome se visse resumido e quase obrigado a procurar a sua companhia.
Philip estava concentrado num estudo profundo, preparando-se para entrar num colégio, no Outono
próximo. Por vezes, Jerome ouvia-o tocar no salão de música, e
uma vez ou duas tinha escutado a voz clara e profunda de Amalie elogiando ou criticando uma ou
outra passagem; todavia, a porta do salão encontrava-se sempre firmemente
fechada, com um ar de recusa tão declarada e evidente que Jerome não se atrevia a abri-la.
Quanto a Dorothea, Jerome só de vez em quando a via, fugazmente, andando de um lado para o
outro, ocupada com os assuntos da casa, as chaves tilintando na cintura;
muitas vezes encontrava-a na companhia de Amalie, a quem ensinava os deveres de uma dona de
casa. Jerome escutava-lhes o ruído das saias ao longo dos corredores,
ouvia-as discutir as coisas que se encontravam na sala das roupas e dentro dos armários dos
cobertores, escutava-lhes os passos apressados e absortos nas escadas
das traseiras.
Dorothea, que tinha, ao que parecia, aceitado o inevitável, instruía Amalie com uma energia intensa
e quase feroz. Uma vez, ao passar pelos aposentos de Dorothea,
Jerome descobriu que a porta estava aberta, e espreitou: viu as duas mulheres, de cabeças juntas,
debruçadas sobre as folhas e contas de Dorothea. Achou aquele
espectáculo ameaçador e terrível. Por diversas vezes tentou sair ao caminho de Amalie, mas desistiu
quando chegou à conclusão de que uma criada, ou Dorothea, ou
Philip estavam habitualmente apenas alguns passos atrás dela. Concluiu, portanto, que nunca a
conseguiria apanhar sozinha. Quando Amalie passava por ele, naquelas
excursões de trabalho, ele levava a mão à testa, numa saudação irónica, mas Amalie seguia o seu
caminho, num passo apressado, lançando-lhe apenas um olhar
breve ou dirigindo-lhe a mais fria palavra de saudação.
E No entanto, aqueles breves instantes em que a via de relance aumentavam dentro dele a sua
impaciência e desassossego. Vê-la tornou-se, para ele, uma necessidade;
passou a espiar salas e escadas; procurava ouvir o ruído das suas saias, o som dos seus passos. E
raramente os ouvia. Disse para si próprio: "Maldita vagabunda!"
E projectou a derrota dela.
Mas, quando foi descobrindo, a pouco e pouco, que demasiados dos seus pensamentos ao acordar e
mesmo dos seus sonhos se ocupavam com ela, a sua fúria tornou-se um
ódio
definido e torturante. Amalie dissera-lhe que ele não a conseguiria magoar, que não lhe permitiria
que a magoasse, que tinha planeado aquilo que queria e que ele
era impotente perante ela. Julgou mesmo ver um brilho de desafio e de triunfo nos seus olhos nas
poucas ocasiões em que passavam um pelo outro nos corredores e...
Amalie vinha sempre acompanhada por um "guarda-costas".
Sim, ele era impotente. Nada podia fazer. Pela primeira vez via-se confrontado com alguém tão
implacável quanto ele próprio, e ela tinha vencido. Porém, consolava-se,
malevolamente, pensando que embora a primeira fase da batalha tivesse corrido a favor dela, havia
ainda muitos outros combates a disputar, ao longo de todos os anos
vindouros, e então... o seu dia haveria de chegar. Passava horas imaginando ataques, arquitectando
estratégias... e encontrava nelas um pouco de conforto.
O seu único prazer eram os fins dos dias quando, um pouco antes do jantar e pouco mais ou menos
uma hora depois, podia espicaçar Alfred. Mas Alfred, ou particularmente
obtuso, ou porque no seu íntimo empedernido resolvera assumir uma espécie de compromisso para
com Jerome, parecia não morder a isca. Afastava as mais ferozes investidas
de Jerome com uma firmeza suave, ou mudava simplesmente de assunto. Nessas ocasiões, Jerome
não se sentia nada divertido ao ver que Mr. Lindsey esboçava um sorriso
fugidio, ou que Amalie se divertia abertamente, ou ainda que Dorothea o olhava com ironia. O pior
de tudo era quando Alfred tentava, informalmente, dar instMAN
Agora, ele tornara-se num membro da casa, da propriedade, e tinha o seu lugar. Não podia perturbá-
la, a não ser que resolvesse partir ou transformar-se num louco
idiota aos olhos dos outros.
Mas... ele não pretendia fazer nem uma coisa, nem outra.
Numa autodefesa pura e desesperada, recomeçou a pintar, mas depressa verificou que a sua
inspiração parecia vaguear, adormecida, e que a sua mão não tinha criatividade.
A soturnidade da casa, a sua tranqüilidade, o seu calor morno e silencioso, os problemas
individuais, a sua ordem rotineira e agradável, aborreciam-no de morte.
"Não sou mais do que um maldito pedaço de pedra que entrou na concha da ostra!", pensou. "E
agora toda esta casa do inferno
se abate sobre mim, cobrindo-me de baba que não tarda em solidificar. Tenho de sair daqui, se
puder, ou então consinto em transformar-me numa das suas pérolas,
com camada após camada de opalescência brilhante endurecendo à minha volta." Achou aquela
perspectiva horrorosa, e sentiu-se enraivecido. Mas a sua própria razão
segredava-lhe, sarcasticamente, que fora ele quem fizera a escolha, e por isso só tinha duas
hipóteses: ou se conformava ou se ia embora.
Ele representava a minoria revoltosa, e as minorias que tentam levantar perturbações e que desafiam
a complacência das maiorias estabelecidas acabam por sofrer os
resultados dessa revolta.
"É assim que eu sou!", murmurava-lhe a casa, com os seus ocupantes, com sorrisos suaves. "E tu...
ou me aceitas ou vais-te embora. Seja como for, estou demasiado
ocupada para me preocupar contigo!"
Estava habituado a tomar as suas refeições quando muito bem lhe apetecesse. Todavia, naquela
casa, se não aparecesse impreterivelmente às oito horas da manhã para
o pequeno-almoço, a refeição era-lhe levada num tabuleiro, por Jim, que se tornara uma parte da
criadagem e que se sentia muito entusiasmado com isso (Jerome achava
aquele entusiasmo verdadeiramente irritante, mas também nada podia fazer).
Jerome recebia o seu tabuleiro e a casa acomodava-se à sua volta, imersa nos seus próprios afazeres,
auto-suficiente, impessoal, fria, e ele... ele não tinha nada
para fazer. O pior de tudo era que os seus pequenos-almoços e almoços tardios deixavam-lhe pouco
apetite para o jantar, isso para não falar do facto de que não conseguia,
de maneira nenhuma, acompanhar o chá.
Como Mr. Lindsey tinha um cozinheiro excelente e os jantares eram, na realidade, notáveis, Jerome
viu-se a braços com a perspectiva desagradável de desistir do almoço,
chegando assim demasiado fraco à mesa para poder apreciar o jantar, ou então tinha de passar a
comer as suas refeições às horas marcadas. Viu-se obrigado a escolher
a última hipótese. Isso tornou-lhe os dias mais longos e mais vazios do que nunca, e a luz da manhã
não era agradável para os seus olhos. A sua saúde, no entanto,
melhorou consideravelmente com aquela nova rotina, mas o aborrecimento do seu espírito era como
uma droga, e começou a sentir-se indolente. Lia, tocava piano,
pensava, vagueava lentamente pela casa quente e calma, tentava pintar. E bocejava constantemente.
"Sou como um maldito fantasma deambulando por aqui", pensava, movendo-se
vagamente de sala para sala. "Se calhar, nem sequer estou presente."
Sentiu-se por momentos animado com os preparativos para a festa da véspera de Natal e para o
casamento, que devia realizar-se no dia 28 de Dezembro. Ficava encostado
às portas dos dois enormes salões que não eram utilizados pela família senão nas festas e quando
havia visitas em grande número. Via os criados varrer, limpar o
pó, polir, dar brilho ao chão e à mobília. Observava a maneira como eles enfeitavam as lareiras,
colocavam toros de lenha novos, prendiam visco e azevinho nas portas
e espalhavam ramos um pouco por todo o lado.
A árvore de Natal encontrava-se já junto às janelas, do lado nascente, verde e escura e fria, ainda
completamente despida de ornamentos, enchendo o ar com um aroma
doce de pinheiro e de uma nostalgia selvagem de solidão. Jerome ofereceu-se para a enfeitar, mas
os criados voltaram para ele uns olhos chocados, de muda reprovação
e desdém. Ao que parecia, ele não podia fazer nada. Ninguém lhe permitia fazer nada. E assim,
ficava-se pelas soleiras das portas, bocejando, observando, beberricando
de um copo alto uísque com soda, o que os criados pareciam condenar que ele fizesse em pleno dia.
grandes caixas e malas foram retiradas do sótão e levadas para os quartos de Alfred e Amalie.
À sua volta tudo fervilhava em intensa actividade, que se ia tornando cada vez mais intensa à
medida que os dias passavam, enquanto que ele se sentia cada vez mais
remetido ao seu nicho dourado, atingindo um estado que mais se assemelhava
a um pairar sonâmbulo acima de toda aquela actividade efervescente.
"Estou a ficar bolorento!", pensou. "Não tarda muito que não estejam a nascer fungos e musgos em
cima do meu corpo!"
Começou a beber cada vez mais, para evitar adormecer em pleno dia, e, por fim, movia-se pela casa
como que envolto numa espécie de névoa, numa indolência de abandono.
A pouco e pouco, foi tomando consciência de que as próprias paredes, os criados, os retratos, os
móveis, os espessos tapetes Aubusson do chão, os livros na biblioteca,
a própria luz do sol lá fora, condenavam a sua presença ali, numa desaprovação cortês, ligeiramente
magoada, como a atitude de um familiar que não gostasse das conversas
de um rapazinho inútil e mal-educado. A casa dizia-lhe que não suportava cavalheiros inúteis, sem
qualquer razão para viver; segredava-lhe que "havia trabalho a
fazer", e que se ele tivesse algum juízo estaria lá fora, a fazê-lo, e não se meteria dentro das suas
paredes, vagueando absorto, inútil, sonâmbulo. Durante o dia,
a casa não era lugar próprio para criaturas que se diziam pertencer ao sexo masculino. Jerome, em
irritada autodefesa, mantinha longas discussões silenciosas com
aquela fortaleza de pedra.
"Raios! Os Europeus não são de opinião de que a única finalidade da criatura masculina é passar a
vida debruçada sobre contas intermináveis de entradas e saídas,
aos balcões das lojas ou nos escritórios. Pelo contrário, a Europa defende abertamente o lazer fácil e
estimulante, o prazer das artes, a conversa alegre, o gosto
pela vida! Defende, feliz, as companhias alegres em almoços prolongados, em volta de garrafas de
brande ou de bom vinho!"
Que se passava, então com os Americanos?
"Mas isto não é a Europa!", retorquira-lhe a casa, com uma frieza inexorável. "Isto é a América, e
nós temos trabalho a fazer."
"Que trabalho?", perguntava Jerome, desafiadoramente.
"Trabalho!", respondia a casa, simplesmente. "Que mais pode uma criatura fazer?"
"Trabalho!", praguejava Jerome, com repugnância.
Nunca antes tinha considerado o trabalho como seu inimigo. Era, simplesmente, qualquer coisa de
desagradável, que o verdadeiro aristocrata repudiava. Mas agora,
o trabalho tinha-se transformado num inimigo activo: tudo à sua volta parecia transmitir-lhe o seu
odor e sentia-se atraído pela sua presença.
Na América, não havia lugar para os homens letrados, cultos e intelectuais, e isso era muito triste.
Algo de muito valioso se estava a perder naquele frenesim de
actividade. Imaginou o seu país como um imenso formigueiro, onde as formigas, sem sexo e
completamente absorvidas pelo trabalho, não paravam de procurar e transportar
mais e mais comida para mais e mais formigas que todos os dias nasciam, aos milhares, e
rapidamente se transformavam, por sua vez, em adultos e começavam também
a procurar e a transportar comida para outras gerações de insectos automatizados, e assim por
diante, numa correria louca, numa repetição incessante, até à náusea.
E... qual era o resultado final de toda aquela actividade formigueira? O florescer de mais e mais
formigas, que nunca se apercebiam do nascer do sol ou da lua, nem
do cheiro que se desprendia da terra, nem do mistério da noite, que nunca conheciam Deus e
acabavam por se desfazer em pedaços quando as
forças lhes faltavam.
Aparentemente, a casa achava estes argumentos demasiado subtis para o seu sólido realismo, e
suavemente, mas com deliberação, ia abandonando Jerome, deixando de
discutir com ele, aos poucos...
Começou a discutir no vácuo... A enorme casa desamparara-o, voltando-se para os seus
intermináveis afazeres, desdenhosa e indiferente.
Por vezes, não conseguia suportar aquela situação. Começava, então, a fazer as malas, enquanto que
o constantemente ausente Jim passava todo o tempo nas cavalariças,
ou lá em baixo, na cozinha, aborrecendo as raparigas. Mas logo se recordava. e, cerrando os dentes,
voltava a desfazer tudo.
De vez em quando saía para a esterilidade dos dias de Inverno, sozinho, tendo por único
companheiro o cão, que mostrava uma teimosa tendência para os estábulos e
que só ficava com ele por puro sentido do dever. Por fim, acabou por mandar o cão embora, e ficou
a ver o pequeno animal saracotear-se, apressado, na direcção dos
estábulos.
Habituou-se a escutar o silêncio à sua volta, e voltou ao seu deambular pela casa, à sua leitura, às
suas tentativas de pintar. Passeava muito, enterrando-se por
vezes na neve até aos joelhos. As suas faces foram ganhando cor, mas o aborrecimento que dele se
apoderara tornou-se insuportável.
Tinha de fugir daquela casa amaldiçoada, ou então morreria num derradeiro bocejo.
E foi assim que uma noite, ao jantar, anunciou a Alfred que "pensava poder ir-se familiarizando um
pouco com o Banco, mesmo antes das férias", e antes que Alfred
partisse para Saratoga em viagem de núpcias.
Capítulo décimo terceiro
Jerome olhoupara trás, para Hilltop.
- Nunca tinha reparado antes - observou para Alfred -, mas a casa tem um ar verdadeiramente
afectado e convencido, como se tivesse acabado de ganhar uma batalha,
ou simplesmente uma aposta!
Alfred seguiu o olhar do primo e retorquiu-lhe:
- Ar afectado? Acho, até, que tem um ar muito sereno, um ar de segurança e força que não se
encontra nas outras casas das redondezas. Aliás, nunca me preocupei com
o aspecto bizarro ou rococó da sua arquitectura.
Jerome sorriu e não voltou a fazer mais comentários. Sentiu que um arrepio de frio lhe atravessava
o corpo e puxou o casaco de peles mais de encontro ao queixo e
ao peito. O reflexo da luz do Sol na neve fazia-lhe arder os olhos, e sentiu que uma dor vaga mas
persistente lhe perpassava as
têmporas. Decididamente, levantar-se
logo pela manhã, assim tão cedo, não se coadunava bem com a sua constituição. Mas, fosse como
fosse, teria de se submeter àquelas violências.
A charrete, puxada por um cavalo e habilmente conduzida pelo forte e competente Alfred, rasgava a
neve brilhante como a lâmina de uma faca afiada, enquanto descia
suavemente pela colina na direcção do vale. O cavalo, jovem e negro como o carvão, tinha o pêlo
sedoso e húmido, e o seu bafo quente ficava a pairar-lhe no dorso
como uma nuvem de vapor. Enquanto avançava, erguia a cabeça elegante, quase pavoneando-se de
prazer no ar puro e estimulante, aparentemente gozando o tilintar musical
das campainhas que tinha presas aos arreios. Uma espuma branca desprendia-se dos cascos e das
rodas da charrete, para depois ser atirada para trás obrigando Jerome
a franzir o rosto quando, aguçada e cortante, lhe ia embater nas faces. A estas sentia-as dormentes e
rígidas pelo fustigar do vento fino e gelado, e apesar da roupa
quente que trazia e da capa que o cobria totalmente, sentia que os dedos dos pés lhe começavam a
ficar desagradavelmente inertes e doridos.
"Estou, decerto, a transformar-me num fraco!", pensou, olhando de relance para Alfred.
Ficou muito aborrecido com o que viu. Alfred vestia um grosso casacão cinzento com gola de pele.
Dorothea tinha-lhe feito um imenso cachecol, azul-escuro, muito
sóbrio, que, enrolado à volta do pescoço, era, sem dúvida, muito confortável, embora não juntasse
uma nota moderna e elegante ao seu fato. Alfred tinha, também,
um gorro de pele prateada, com umas abas que lhe cobriam as orelhas, e as mãos metidas numas
grossas luvas da mesma pele. Era demasiado evidente que Alfred estava
a apreciar com toda a intensidade o ar cortante e o sol que parecia queimar; os seus ombros eram
duros e firmes como uma rocha. O jovem cavalo parecia querer empinar-se
e cabriolar, mas Alfred sabia controlá-lo com perícia e com tão evidente satisfação que Jerome
olhou-o, irritado, e pensou:
"Ora esta! Ele gosta de controlar, de impor a sua vontade! Isso dá-lhe uma sensação de força pueril,
o idiota! Então, nem tudo nele é "dever" e correcção! Existe
também algo mais obsceno e perigoso."
Jerome compreendia e sabia aperceber-se da avidez pelo poder que existe nos homens, e adivinhou,
com extraordinária sagacidade, que a sua própria languidez elegante
e a sua pretensa indiferença civilizada eram resultado da sua convicção de que não conseguia
salientar-se nem sobrepor-se aos outros, de modo espectacular, em nenhum
campo especial, e adquirir, dessa maneira, um poder dominador realmente seu. Mas sentia apenas,
por outro lado, uma imensa
repugnância por aqueles que eram tão
malformados de alma que experimentavam um prazer sádico em imporem a sua vontade tão
cruamente sobre
uma criatura inferior como um cão ou um cavalo, bem como sobre personalidades mais potentes e
humanas.
"Subestimei-o, é verdade, mas também lhe dei importância de mais!", pensou Jerome, olhando de
soslaio para o primo. "É sinistro. Sim, há nele qualquer coisa de revoltante,
de terrível e ameaçador. Mas não há-de subjugar-me, não agora, que o compreendo em absoluto!"
Para um observador menos cuidadoso e menos atento, Alfred não parecia nem terrível, nem
ameaçador naquela manhã. Era verdade que o seu perfil tinha qualquer coisa
de empedernido, como uma rocha, de contorno brusco e rígido, e que o seu queixo pálido e os olhos
desmaiados lhe davam um aspecto brutal, de falta de calor e de
sensibilidade humanas. Mas para esse observador menos atento, esses eram apenas os sinais de um
homem forte e saudável, ainda no princípio da maturidade, e que não
podia ser acusado de quaisquer excessos ou desregramentos. Todo ele era juventude e virilidade,
todo ele eram ângulos masculinos fortemente marcados. No entanto,
a nova e redesperta sensibilidade de Jerome via algo de implacável por debaixo daquela capa, algo
ameaçadoramente escondido, mas alerta, qualquer coisa de malevolamente
egoísta.
E de novo Jerome repetiu para si próprio:
"Ele é perigoso!"
A este pensamento, sentiu dentro de si um retinir desconhecido, uma excitação aparentemente sem
razão de ser. Olhou para Alfred com furtiva curiosidade e espanto
intencional.
A estrada do vale, cheia de sulcos de gelo escuro, polvilhada de neve, descia na direcção de
Riversend. A cidade crescia, parecendo vir ao encontro deles. Passaram
por um grupo de cabanas dispersas de trabalhadores, afrontosamente feias na luz pura e radiante da
manhã. Eram construídas de tábuas cinzentas, de ângulos distorcidos,
janelas cansadas e sujas, os beirais partidos, deixando escapar ondas esfarrapadas de fumo. A neve à
sua volta estava manchada e espezinhada.
Jerome viu um grupo de mulheres mal vestidas, envoltas em grandes xailes, sujos e sem graça,
aguardando pacientemente junto da bomba comum, enquanto que outras duas
mulheres tentavam fazer trabalhar o mecanismo gelado. Crianças lívidas e esfarrapadas rodeavam
as mulheres; estavam sossegadas e em silêncio, sem quaisquer sinais
daquela robusta e barulhenta vitalidade que marca as crianças felizes, bem alimentadas e vivendo
em casas aquecidas. Estas eram as famílias dos homens sujos e semiesfomeados
que trabalhavam no caminho-de-ferro e na destilaria locais.
As mulheres não tagarelavam nem riam. Estavam quase estáticas, como animais exaustos e
perdidos na neve, os corpos esqueléticos vergastados pelo vento. Jerome viu-lhes
as caras pálidas, os olhos de fome e sem esperança, quando se voltaram para verem passar a
charrete.
Jerome fechou os seus próprios olhos por instantes.
- Meu Deus, ainda ninguém fez nada por esta pobre gente?
- perguntou. - Ainda ninguém aumentou os seus salários, ou mandou concertar as suas casas?
Alfred olhou para trás, para os casebres, mulheres e crianças, e o seu rosto ríspido cobriu-se de uma
onda de repulsa e nojo.
- Eles nunca são capazes de poupar um centavo que seja!
- disse.
Passados alguns momentos, disse ainda, com um encolher de ombros:
- Além disso, as casas ficam rodeadas de campos de flores silvestres no Verão.
É muito bonito, nessa altura.
Jerome pareceu ficar sarcasticamente deliciado, e soltou uma gargalhada. Alfred lançou-lhe uma
olhadela rápida, e depois encolheu de novo os ombros, de modo quase
imperceptível.
Jerome teve aquilo que considerou uma idéia muito brilhante e revolucionária. Chegou mesmo a
afastar a capa um pouco para o lado.
- Espera! Pode-se fazer qualquer coisa! Por exemplo, se o caminho-de-ferro pagasse decentemente
ao seu pessoal, e as outras indústrias locais, os donos de grandes
propriedades, e sei lá quem mais, fizessem o mesmo, esta gente podia comprar casas! O Banco
podia ajudá-los, emprestando-lhes dinheiro com pagamentos a longo prazo!
Podiam contratar-se arquitectos que preparariam os planos para casas pequenas mas acolhedoras,
dando-lhes, até, um certo ar de originalidade. Qualquer coisa de atraente
e agradável à vista, confortáveis como as casas das aldeias inglesas, mas com telhados mais
resistentes, e também mais janelas. Podiam, até, criar-se pequenos quintais.
Isto seria dar aos pobres-diabos algum amor próprio, um pouco de orgulho na sua comunidade, uma
certa esperança no futuro...
Alfred puxou as rédeas do cavalo com um esticão tão forte que o animal, assustado e ferido, recuou,
e prosseguiu depois num passo mais lento. Jerome limpou do rosto
os farrapos brancos que o tinham atingido, num gesto quase automático, e voltou-se para o primo
com um raio de esperança nos olhos. Alfred estava a olhar para ele,
com uma expressão sombria de vivo repúdio.
- Jerome, isso é uma idéia louca e fazes o favor de não fazeres eco dela entre os nossos amigos e
depositantes. Isso é capaz de os aborrecer e mesmo alarmar. Nem
me atrevo
a profetizar as conseqüências de um acto tão tresloucado como esse.
Calou-se, por momentos, para logo afirmar:
- Mas é evidente que estavas a brincar!
Jerome ficou em silêncio. Voltou a cabeça sobre o ombro para poder olhar de novo para os casebres
imundos, que mais pareciam uma chapa purulenta na longa mancha
branca no sopé da colina. Os olhos estreitaram-se-lhe no rosto moreno.
- Sim! - retorquiu, lentamente. - Estava só a brincar!
Alfred ficou visivelmente aliviado, mas via-se que continuava ainda como que afrontado, como se
tivesse ouvido um insulto que lhe tivesse sido dirigido. Irritado,
desferiu uma chicotada seca e violenta nos flancos do cavalo.
- Receio bem que não compreendas esta gente. Os idealistas costumam falar dos bairros pobres
como se eles fossem um acto de Deus. Mas não são. Os bairros pobres
não fazem a miséria desta gente; são as próprias pessoas que dão origem a esses bairros e criam à
sua volta uma atmosfera horrorosa e repelente. Se tivessem qualquer
espécie de espírito ou de vontade, ou um mínimo de decência, concertariam as suas casas,
limpariam os quintais imundos e infestados de vermes e melhorariam, de um
modo geral, o seu próprio aspecto.
com uma suavidade fictícia na voz, Jerome retorquiu:
- No entanto, se um homem tem permanentemente consciência da sua barriga vazia, do frio que
sente, da vida sem réstea de esperança que vive, da sua pobreza e do
seu desespero, não pode forçar-se a plantar rosas e vinhedos e pôr vasinhos de flores nos parapeitos.
É preciso, primeiro, dar aos pobres um salário adequado.
- Isso é uma idéia perigosa! - exclamou Alfred.
A voz explodira-lhe agora com uma violência fria, e os traços do seu rosto estavam congestionados
de raiva.
- Uma idéia niilista! Dá-se mais dinheiro a esses miseráveis e logo as tabernas ficam mais cheias e
prósperas! É a pura verdade; eles gastam a maior parte do que
ganham na bebida. Além disso, se os pobres recebessem um "pagamento adequado", como tu dizes,
ficariam uns presumidos e imensamente arrogantes, e não haveria qualquer
hipótese de os controlar. Tentariam imediatamente ultrapassar as barreiras que os separam de nós, e
a sociedade tornar-se-ia caótica e desorganizada. Perderiam todo
o respeito pelos seus superiores, que de resto lhes é recomendado pela própria Bíblia, e a devoção
que agora possuem, e começariam a exigir participações cada vez
maiores nos negócios
do governo, tornando precária a posição daqueles que nasceram para os governar e guiar.
Jerome olhou para o dorso do cavalo, pensativamente.
- Deus me valha! E eu que sempre pensei que a América era uma república. Parece que estava
enganado. E Mister Lincoln também, pelos vistos. Se bem me recordo, ele
fez qualquer referência à democracia...
- Também ele era um revolucionário, e dos mais perigosos
- retorquiu prontamente Alfred, e a voz dele tinha um quê de raiva contida. - Só os céus sabem o
que poderia ter acontecido à América, se ele tivesse sobrevivido.
Não encontrarás nada sobre democracia na Constituição, Jerome!
A expressão de Jerome tornou-se sonhadora.
- E dizemos essas verdades como se fossem coisas evidentes... - murmurou.
Depois, em voz mais alta, disse ainda:
- Parece que a procura da felicidade é prerrogativa daqueles que a podem pagar.
- Ou antes, daqueles que dela são merecedores! - disse Alfred, vigorosamente.
Chicoteou de novo o cavalo. O rosto endurecera-se-lhe.
- Jerome, o que tu dizes é altamente pernicioso e poderia vir a causar danos incalculáveis. Repito-te
que acho bem melhor que guardes essas idéias só para ti. Além
disso, acho que tu não sentes realmente aquilo que dizes. Não me queiras convencer que "as
condições" em que os pobres vivem calam fundo no teu coração. Conheço-te
demasiado bem. Isso é o tipo de brincadeira de mau gosto que tu aprecias.
Falara friamente, até mesmo com uma certa malevolência intencional, e o olhar que lançou ao
primo levava com ele muito de aviso e de aberto desdém.
Jerome sentiu de novo aquela sensação estranha que lhe era familiar, um tilintar de campainha
dentro de si, um frémito involuntário a percorrer-lhe a carne. E pensou:
"Fui um louco. Alfred não é afinal, nenhum estúpido! Pelo contrário, é venenoso e extremamente
perigoso. Odeia-me, embora nunca o admitisse, nem sequer a si próprio!"
Jerome estava agora perfeitamente desperto e alerta; toda a sua indiferença, a sua habitual
languidez, a sua inércia tinham desaparecido. O sangue corria-lhe, agitado,
nas veias. Sentia-se vivo, como se todos os músculos se retesassem e se distendessem numa
vitalidade louca.
- Sinto, no ar, que existe qualquer coisa de novo na América! - disse, pensativo. - Senti o mesmo,
também, na Europa, só que de maneira mais pesada, mais intensa.
Acho que
estamos, inevitavelmente, a ultrapassar a era da "lei do superior", dos "desígnios apontados por
Deus". Acho que o sonho dos filósofos gregos está a fermentar, debaixo
da miséria e do desespero que existem pelo mundo. Sócrates caminha pela terra como um fantasma,
trazendo consigo a sua mensagem, despertando as pessoas para a realidade
que elas teimam em não ver. O Parténon está cheio de vozes fortes e espectrais. E não há nada,
nada, que tu consigas fazer para o evitar, meu caro Alfred. O teu
tipo de idéias é que é pernicioso.
Alfred sorriu sombriamente, num esgar feio que lhe arrepanhou o rosto.
- Realmente, tu chegas a surpreender-me, Jerome. És capaz de me dizer o que andaste a fazer todos
estes anos por Nova Iorque e pela Europa? Que movimento heróico
é que fundaste? A que causa doaste todos os teus esforços e todo o teu dinheiro? Parece que, afinal,
te subestimei!
Jerome desatou às gargalhadas, mas não se dignou responder.
O sorriso de Alfred tornou-se ainda mais sombrio e irónico, quando disse:
- Gosto de te imaginar a andar atrás do fantasma de Sócrates, talvez transportando um abanador. O
pensamento é edificante.
Jerome riu-se, apenas, sem proferir palavra.
- Continuo a acreditar, Jerome, que tu estás apenas afazer aquilo de que tanto gostas: uma
brincadeira desagradável. Tu adoras ser provocador, por puro gozo pessoal.
Sinto-me alarmado e ao mesmo tempo calmo. E por isso, só te posso avisar de novo: não fales de
coisas nas quais tu próprio não acreditas realmente àqueles que poderiam
interpretar-te mal.
Depois, num tom de voz mais baixo, mas marcadamente ameaçador, continuou:
- Determinei a mim próprio guardar aquilo que o teu pai, meu tio, construiu com sabedoria e
prudência.
- Sem dúvida! - retorquiu Jerome, simplesmente.
Estavam a aproximar-se dos portões de um edifício imponente. Uma mansão de tijolo rosado
erguia-se, orgulhosa e nobre, na neve. As suas enormes chaminés recortavam-se
contra o cintilante céu azul. Abetos e pinheiros, vergados sob o peso da neve, espalhavam-se aqui e
ali. O muro à sua volta era baixo, construído em tijolo e estava
coberto de neve.
Um homem alto e magro, com mais de um metro e oitenta, encontrava-se do lado de fora dos
portões de ferro, trazendo presos às rédeas uns cães formidáveis, que começaram
a ladrar raivosamente à aproximação da charrete.
- Ora! Aquele não é o velho general Tayntor? -perguntou Jerome, com visível prazer. - Já não via o
pobre-diabo desde a guerra.
- Julgo que é o brigadeiro-general Tayntor, sim! - disse Alfred com firmeza, enquanto puxava as
rédeas do cavalo, para o fazer parar. - Disse-lhe, há uns dias atrás,
que tu estavas cá e que tencionavas entrar para o Banco. Devo dizer-te que ele ficou muito
interessado e satisfeito.
Mas Jerome sorria já abertamente à vista do seu velho amigo. Os dentes cintilaram-lhe à luz
brilhante do sol. Começou a acenar, de braços estendidos, enquanto a
charrete encostava junto aos portões do edifício.
- Devia ter visitado aquele velho bastardo mais cedo! disse Jerome, esquecendo-se de que no campo
as pessoas não tinham por costume visitar-se com regularidade,
mas apenas mediante um convite feito formalmente.
- Atenção à tua linguagem! - disse Alfred, irritado.
Levou a mão ao gorro quando o idoso cavalheiro, reconhecendo-os, se aproximou a passos rápidos
da charrete, acenando, tentando abrir caminho por entre os cães, que
continuavam a saltar e a ladrar furiosamente.
O brigadeiro-general Wainwright Tayntor era um velho soldado muito ágil e seguro, cujos
movimentos negavam em absoluto os seus sessenta e cinco anos. Era tão alto,
flexível e magro, como um rebento vigoroso. A capa preta, forrada com peles, que envergava,
esvoaçava à sua volta em linhas jovens, revelando a mão enluvada e o
forte braço direito que segurava com firmeza as rédeas que prendiam os cães, e a manga vazia do
seu braço esquerdo. Avançava em passos firmes, largos e definidos.
O chapéu alto que usava estava colocado um pouco ousadamente sobre o seu cabelo branco,
ligeiramente ondulado. Sorria largamente, com evidente prazer.
- Bem! Bem! - exclamou, quando chegou junto da charrete. - Jerome! Meu rapaz! Meu caro rapaz!
É delicioso ver-te outra vez. Malditos cães! Não posso apertar-te a
mão, rapaz, nestas condições. Deixa-me olhar para ti. Raios, rapaz! É realmente um prazer ver-te
outra vez! Oh! Oh! - exclamou o general.
- Também sinto um prazer muito grande em vê-lo, senhor!
- disse Jerome, debruçando-se da charrete e estendendo o braço para apertar com força o ombro do
seu velho amigo.
Afastou os cobertores e saiu do carro, mantendo ainda a mão no ombro do velho general.
Jerome era alto mas o general ultrapassava-o nuns bons centímetros. Abraçaram-se os dois,
comovidos.
- bom dia, general! - disse Alfred, formalmente. Ao som da sua voz, o general sobressaltou-se.
- Hem? Oh, sim Alfred. Como estás, Alfred? Está hoje uma bela manhã, não? Mas fria como o
inferno.
Esquecendo-se logo de imediato de Alfred, voltou-se de novo paraJerome.
- O que é isso que eu ouvi dizer de ti, meu velhaco? Entrar para o Banco? Tu... no Banco? Oh! Oh!
Oh!
E o general gargalhou, com vontade. O rosto cobriu-se-lhe de vermelho e foi sacudido por
espasmos de gargalhadas quase obscenas.
O brigadeiro-general Wainwright Tayntor tinha um rosto marcadamente vincado e quase satânico,
descarnado, rude e em mobilidade constante, todo ele pontas aguçadas,
ângulos marcados e rugas licenciosas. As suas sobrancelhas brancas enrolavam-se para cima, como
se ele estivesse permanentemente cheio de um constante e sinistro
divertimento, o que era muito possível. Tinha olhos azuis muito pequenos e brilhantes, conscientes
e sabedores, sem o mínimo vislumbre de inocência e extremamente
perspicazes e subtis. Possuía, também, um nariz longo e fino, que mergulhava sobre uma boca
grande e igualmente fina, que mais parecia um bico sardónico quando sorria,
mordaz. Tinha habitualmente uma cor acentuada, pois era grande apreciador de uísque, que
consumia em quantidades abundantes, e a sua expressão era a de um homem
permanentemente alerta.
Mas o uísque não era o seu único vício duvidoso e repreensível; tinha também o vício das mulheres,
e quanto mais novas elas fossem, melhor. Não fosse ele um homem
rico e poderoso dentro da comunidade e teria sido, decerto, votado ao ostracismo por toda a
sociedade, que se orgulhava tanto da sua própria decência.
Alfred Lindsey tinha medo do general e este detestava-o. Mas o general era poderoso e creditado
pela comunidade, e era, além disso, um valioso depositante do Banco.
Era ele o proprietário do caminho-de-ferro local, da terra onde ficavam os casebres dos
trabalhadores, e tinha ainda muitas hipotecas, secretas e bem rendosas, entre
os nobres locais. E assim, Alfred desceu da sua charrete, encostando-se depois contra ela, pouco à
vontade, enquanto Jerome e o velho soldado davam efusivas palmadas
nos ombros e nas costas um do outro, trocando observações obscenas e impróprias de dois
autênticos cavalheiros.
- Entra! Entra! Vem ver as raparigas! - exclamou o general. - Elas estão ansiosas por te verem,
malandro! Especialmente a Sally. Quanto a Josephine, passa os dias
sentada à
janela, e definha lentamente, embora seja modesta e tímida de mais para confessar seja o que for.
Jerome ficou indeciso com a proposta que lhe era feita. Mas já Alfred tossicava, aclarando a
garganta, chamando polidamente a atenção.
- Nós já estamos atrasados, senhor! Creio, no entanto, que as senhoras, e o senhor também, claro,
estarão presentes na recepção que vamos dar na véspera de Natal.
Encontrar-nos-emos todos de novo, nessa altura.
O general olhou para ele com ar carrancudo.
- Sim, sim, claro!
Depois gargalhou de novo e bateu no braço de Jerome com tanta força que este vacilou.
- Oh! Oh! Tu, no Banco! É delicioso! Incrível! Ficaste, então, reduzido a isso, não?
Lançou um olhar a Alfred, e disse:
- Guarda bem os cofres, Alfred! Guarda bem os cofres! Eu conheço esta raposa matrera melhor do
que tu!
Alfred sorriu com esforço. Pôs a mão de novo sobre a charrete e fitou em Jerome um olhar
intencional.
- Tenho em vistas uns certos investimentos! - disse o general, dirigindo-se de novo a Jerome. -
Quero saber a tua opinião. Oh! Isto é verdadeiramente magnífico!
Investimentos em Nova Iorque. Conheces bem os Vanderbilts, os... Eles têm andado atrás de mim.
Talvez eu faça um negócio com eles, com o caminho-de-ferro. Havemos
de pensar nisso. E há ainda o carvão, na Pensilvânia. É preciso que haja vida nova aqui, alguém
com visão e ousadia...
Pronunciou as últimas palavras lançando a Alfred um sorriso escarninho e mordaz.
- A segurança... - começou Alfred.
Mas o general tinha-o esquecido de novo, e estava a abanar o seu jovem amigo pelo ombro
esquerdo.
- Raios! - exclamou o general. - Enches os meus olhos como um sol. Como está a tua perna?
- Não me dá muito trabalho!
Curvaram-se um para o outro e abraçaram-se de novo. Alfred começou a achar tudo aquilo
cansativo e maçador. Não conseguia entender a inclinação do general por Jerome,
embora suspeitasse que eles tinham muitas características comuns. Imediatamente se repreendeu a
si próprio, consciente da sua própria imprudência e impropriedade.
Irritado, obrigou-se a recordar a posição ocupada pelo general.
De súbito, o general teve um pensamento inspirador e agradável, e lembrou-se de Alfred.
- Como é que está a nossa maravilhosa Miss Maxwell? perguntou, com uma piscadela de olho, e
fazendo depois rolar os olhos nas órbitas, numa expressão de êxtase.
- Que encanto! Que graça! Que... - deteve-se, olhou para Jerome, sorriu irónico e pestanejou de
novo.
- Miss Maxwell está de excelente saúde, senhor! - respondeu Alfred, com o rosto ligeiramente
ruborizado, enquanto a mão se fechava com força em redor do cabo do
chicote.
- Adoro aquela dama! - exclamou o general, com entusiasmo.
Esticou um dedo na direcção de Alfred e disse:
- Ah, Alfred! Se eu a tivesse visto primeiro...!
Puxou o chapéu alto mais para trás, tocou os lábios com os dedos juntos e atirou um beijo para o ar.
- És um diabo cheio de sorte! - disse, soltando um suspiro romântico. - E então, se o que está dentro
da embalagem corresponder ao rótulo... Ah! que tratamento te
está reservado...!
O rubor do rosto de Alfred acentuou-se ainda mais, com fúria reprimida. Mas Jerome soltou uma
gargalhada estrondosa, olhando divertido ora para o seu velho amigo
ora para o primo.
- Há alturas - disse o general - em que me torno um verdadeiro fanático pela história da Gata
Borralheira.
Lembrou-se de qualquer coisa que lhe agradou e disse para Jerome:
- Já alguma vez te falei, meu rapaz, acerca do meu bisavô que viveu na Virgínia?
Alfred adivinhou que aquela história seria muito ousada e atrevida e que de algum modo ela
incluiria um remoque indirecto sobre Amalie, e assim, apesar do seu respeito
pelo general, saltou para a charrete e agarrou nas rédeas. Tremia de inexplicável irritação. Incapaz
de se controlar, gritou:
- Jerome, são quase nove horas. Se fazes favor... Jerome separou-se, relutante, do seu velho amigo,
e Alfred
desfechou sobre o animal uma chicotada desnecessariamente violenta e selvagem. A charrete
arrancou, e Jerome, ainda meio fora do veículo, foi atirado para o seu
lugar com o impulso. Recuperando, acenou o chapéu para o general, que observava aquela fuga
com um esgar de escárnio.
O general beijou a própria mão; os cães ladraram; a charrete avançou rápida levantando a neve em
espuma.
Capítulo décimo quarto
Riversend, freguesia e sede do condado, erguia-se nítida e clara acima da neve. Mas, é preciso dizê-
lo, ela mantinha-se sempre primorosamente imaculada graças aos
esforços das suas "melhores famílias", que conseguiam, invariavelmente, arranjar mão-de-obra
barata para cuidar das ruas.
A neve tinha sido retirada e as ruas avermelhadas brilhavam, húmidas, à luz do Sol. A norte,
ficavam as casas habitadas pelos poderosos detentores das maiores riquezas:
os três médicos e cirurgiões, algumas viúvas rechonchudas e ainda frescas, o xerife do condado (um
homenzinho pequeno e gordo que se chamava a si próprio de "independente"),
Mr. Burt Shrewsbury, proprietário da destilaria local, Mr. Seth Brogan, proprietário da bem
equipada e florescente oficina de arreios, barcos e selas, Mr. Ezekiel
Sewell, dono das quatro tabernas locais e criador de cavalos de corrida que se destinavam
principalmente aos acontecimentos mais importantes de Saratoga, o reverendo
Adam Gordon, pastor da igreja episcopal de Riversend, Mr. Horville Danton, dono das enormes
serrações situadas na cidade vizinha de Milton, e Mr. Endicott Spinell,
da firma de advogados Spinell, Bertram Sinclair, Inc. Havia também várias outras famílias, muito
nobres, que não tinham quaisquer relações com os negócios e eram,
por isso, muito emuladas, admiradas e respeitadas.
Esta zona da cidade era composta por cinco ou seis ruas e ficava o mais longe possível das linhas do
caminho-de-ferro. Erguiam-se e desapareciam por entre as frondosas
arcadas das árvores. As casas eram todas de pedra cinzenta ou tijolo vermelho e tinham relvados
vastos e imponentes e enormes jardins nas traseiras. Nem uma só casa
comercial violava a calma e a dignidade que rigorosamente ali prevalecia e nem um só carro de
transporte de qualquer produto ou mercadoria poluía o ar delicado.
Mal se ouvia um ruído, mesmo no Verão, pois as imensas varandas e terraços estavam imersos em
vinhedos e cortinas de juncos, e sombreados por árvores espessas e
frondosas.
Ao fim da West North Street ficava a igreja episcopal, com ar pomposo e decorosamente
imponente, dignificada pela proximidade das famílias nobres. As outras igrejas,
menos importantes, é claro, ficavam timidamente espalhadas pelas outras ruas e eram freqüentadas
pela barulhenta e muito refinada pequena classe média, que naturalmente
era muito mais exclusiva do que os seus superiores, e muito mais prepotente e opressiva para com
os seus empregados. Ignorada e subordinada
pela aristocracia local, receada e odiada pelos que lhe eram inferiores, vivia numa crónica
consciência da sua respeitabilidade.
A zona da classe média, mais próxima da rua principal de Riversend do que a zona dos ricos,
quebrava-se abruptamente no fim da East River Street. Começava ali o
bairro dos pobres, dos que trabalhavam na destilaria, na tanoaria, nas serrações, nas tabernas e nos
estábulos de Mr. Sewell. Era dali que saíam também grandes números
de criados e criadas do condado, as lavadeiras e os trabalhadores do caminho-de-ferro, embora a
grande maioria destes últimos vivesse na encosta da colina. As suas
pequenas casas e casebres eram execráveis, mas, admoestados pelos seus patrões, os desgraçados
eram obrigados a manter as suas ruas com o mínimo aspecto de limpeza.
No entanto, a sujidade resultante das lojas e casas comerciais nem sempre se conseguia evitar, e por
isso a neve, ali, estava lamacenta, pisada e suja.
Os limites da cidade eram marcadamente definidos. As últimas casas ficavam à beira dos campos e
dos prados ou das vertentes das brancas colinas que rodeavam a cidade.
O Banco de Riversend (o único banco do condado), construído em granito cinzento, macio e
brilhante, ficava, com toda a sua própria dignidade impecável, na East River
Street, no cimo de uma pequena elevação do terreno, rodeado por neve virgem no Inverno e suaves
relvados extremamente verdes no Verão. Muito desnecessariamente,
mas também dando-lhe um ar verdadeiramente impressionante, degraus de pedra conduziam até ele
a partir da rua, e, embora a subida fosse quase imperceptível, os degraus
estavam tão engenhosamente colocados que era possível passar por eles a partir do passeio e
alcançar a porta, sem um único passo em falso. Esta escadaria em pedra
cinzenta estava muito limpa e resplandecia contra a neve, como diamantes cinzentos à luz matutina
do sol.
O Banco repudiava quaisquer traços evidentes de comércio ou negócio: lojas e tabernas, mercados
ou ferreiros. Erguia-se sozinho na sua austeridade e severidade polida,
com as suas imensas janelas reluzindo. Nem um só grão de pó ou mancha de sujidade quebrava
aquela limpeza imaculada, manchando o templo do comércio florescente,
o depositário dos fundos do condado. Negava, na sua dignidade imponente, que financiava
hipotecas sobre quintas menos abastadas, que emprestava dinheiro sobre futuras
colheitas ou que tinha qualquer coisa a ver com algo tão baixo como galinhas, mercadorias,
tractores ou qualquer outro tipo de negócio. E no entanto, era ali que
reinava o cérebro de todos os negócios.
A enorme porta de bronze (alegria e orgulho de Alfred) ficava
entre dois painéis de vidro. No fundo do painel da direita estavam inscritas, em letras de ouro vivo,
as palavras: "William Cherville Lindsey, Presidente. Alfred
D. Lindsey, Vice-Presidente". Depois, em letras mais pequenas, mas talvez por isso mesmo mais
pretenciosas, lia-se: "Associada: House of Reagan, Wall Street, New
York". com uma certa malícia, Jerome suspeitou que a última frase estava mais sedutoramente
polida do que as outras, em toda a sua deliberada modéstia.
O interior do Banco condizia com o seu exterior. O chão era de granito cinzento polido e quadrados
de granito preto, enquanto que enormes pilares, sólidos e entroncados,
também de granito preto, apoiavam um tecto impecavelmente branco. Aluz que entrava pelas
janelas reflectia-se no chão e nos pilares com uma intensidade quase religiosa
e veneradora. Lá atrás ficavam os compartimentos dos três empregados da caixa, todos rodeados de
impressionantes barras de cobre brilhante. Aproximar-se deles era
quase como rastejar na direcção de um altar, e os rostos de cera dos homens, ainda jovens, sentados
por detrás das grades, não faziam mais do que acentuar aquela
atmosfera pesada e reverentemente soturna.
Dois guardas, de uniformes azuis escuros e armas letais conspicuamente reveladas aos olhos de
todos, caminhavam devagar de um lado para o outro, em vagarosa passada
marcial, não se dignando sequer a olhar um para o outro quando se cruzavam naquele passeio de
quase parada militar.
"Só lhes falta mosquetes sobre o ombro!", dissera, uma vez, Jerome. Porém, as suas palavras tinham
sido arrogantemente ignoradas por Alfred.
À esquerda, quando se entrava no solene recolhimento da nave, havia duas portas de madeira
trabalhada, com placas de bronze que diziam "Presidente" e "Vice-Presidente".
Alfred ocupava agora o primeiro gabinete, por especial deferência e cortesia de Mr. Lindsey,
enquanto que o seu próprio gabinete era ocupado pelo seu assistente,
um tal Mr. Frederick Jamison.
Para lá dos compartimentos dos caixas, ficavam os escritórios, escuros, soturnos e frios, onde três
guarda-livros e dois empregados trabalhavam em altas secretárias,
e eram obrigados a conservar os gorros e os sobretudos vestidos no Inverno.
Jerome sorria sempre quando entrava no Banco e invariavelmente estremecia também, mas estas
manifestações de irreverência eram sempre ignoradas por Alfred. No entanto,
naquele dia, Jerome olhou à sua volta com mais interesse e, apesar do seu divertimento, o coração
pareceu saltar-lhe no peito. Como é que era possível que um homem
passasse os seus dias naquele ambiente e não morresse de frio e de aborrecimento?
Alfred, subitamente cerimonioso e revestido de uma majestade quase ridícula, respondeu às
saudações tiritantes dos seus empregados e conduziu Jerome para o seu próprio
gabinete. Ali um lume ardia na lareira escura, facto que Jerome notou apreciadoramente. Alfred
tinha colocado um tapete vermelho sobre o chão de pedra polida e dependurara
alguns quadros excelentes nas paredes forradas com painéis de madeira. A mobília era toda de
carvalho antigo e maciço, reluzindo numa patina cuidada. A secretária,
como o próprio Alfred, era imaculada, com um tinteiro de prata, canetas e lápis dispostos numa fila
impecável. Havia uma estante contendo volumes sobre assuntos
bancários, tanto nacionais como estrangeiros.
Por cima da lareira estava dependurado um retrato de um cavalheiro de ar altivo e imponente bigode
cinzento, primorosamente executado. Os pequenos olhos pálidos
pareciam cintilar debaixo de enormes sobrancelhas grisalhas que acentuavam a imensa testa que se
prolongava acima delas. O cavalheiro era o nome mais sonante da
profissão de banqueiro: Mr. Jay Reagan, de Nova Iorque, amigo pessoal de Mr. William Lindsey.
- Está muito parecido com ele - disse Jerome, com certo agrado.
O retrato de Mr. Reagan não se encontrava naquele gabinete quando da última visita de Jerome, e
este juntou ainda:
- Conheço aquele bandido. Quando é que ele te deu aquela tela sagrada?
Aproximou-se do retrato e observou-o com ar crítico.
- Ah, sim Thompson. Um artista muito bom. E este quadro é verdadeiramente excelente. Foi
Reagan que to deu, ou tiveste que pagar por ele?
Alfred estava diante da porta do seu roupeiro e retirava o sobretudo, o chapéu e as luvas. Lançou a
Jerome um olhar frio, que em nada afectou o seu primo, pois este
estava voltado de costas.
- Que disparate! - disse Alfred, num tom desaprovador.
- Mister Reagan mandou-o ao tio William, no seu último aniversário. "Pagar por ele"... realmente...!
- Bem, eu só estava a perguntar. Conheço Reagan. Por isso me surpreende que ele seja capaz de dar
seja o que for, até mesmo um sapato velho. É um bastardo velho,
mas bom apesar de tudo.
Alfred ficou em silêncio, por momentos, e depois perguntou:
- Tu conheces Mister Reagan? Não sabia disso.
Jerome notou qualquer coisa de provocador e de pouco à vontade no tom que Alfred falara, e
lançou-lhe uma olhadela curiosa.
- Bem, é verdade, conheço-o. Queria que eu o pintasse, a ele e à filha, Alice. Sem me pagar, é claro.
Tudo em nome da amizade. Mas eu não estava interessado, quer
fosse de graça ou de qualquer outro modo.
- Teria sido uma grande honra! - disse Alfred, com um leve tom de censura na voz, e até um pouco
chocado.
Jerome curvou-se numa ligeira vénia e retorquiu:
- Sim, eu sei. Mas não lhe quis dar essa honra.
Alfred abriu a sua fina boca sem cor e voltou a fechá-la logo de seguida, com firmeza. Fechou a
porta do armário, aproximou-se da lareira e começou a esfregar as
mãos. Sem olhar para oprimo disse, com dignidade:
- Ainda não tive a honra de encontrar Mister Reagan. Fez uma pausa e depois continuou:
- Ele é, então, impressionante como o retrato o mostra? Achaste-o inspirador?
Jerome tirou do bolso a sua cigarreira de prata, retirou um charuto que acendeu com uma vela.
- Inspirador? Não sei se é essa a palavra exacta. Ele é um patrono das artes, muito sólido, em Nova
Iorque. Talvez o maior patrono que eu conheço. Tem um camarote
na ópera. É o santo patrono dos artistas de valor. Um freqüentador de cabarés... Sim, posso dizer
que era um freqüentador de cabarés. Ouviste falar de Miss Mary
DeVere, a actriz? Bem, ele foi excepcionalmente generoso para com ela. Mas toda a gente sabe que
ela é uma prostituta muito exclusiva e tem metade dos cavalheiros
mais dignos de Nova Iorque atrás dela.
Alfred ficou chocado e perplexo com aquele sacrilégio. Olhou, com ar condenador, para o perfil
moreno de Jerome, ligeiramente erguido para o retrato. Depois, muito
lentamente, um rubor violento começou a inundar-lhe as faces.
Jerome inclinou a cabeça, com pretensa modéstia.
- Ela parecia preferir-me a mim, embora eu não seja homem para lançar mão da propriedade dos
outros, ainda que essa propriedade seja temporária. Coitado do velho
Reagan. Emprestou-me uma vez cinco mil dólares.
- Cinco mil dólares! - exclamou Alfred terrivelmente agitado. - Tu deves cinco mil dólares a Mister
Reagan?
- Meu caro primo! - disse Jerome suavemente. - Tu enganaste-te nos tempos dos verbos. Devias ter
dito "devias" e não "deves". Eu paguei-lhe. E ele apenas me cobrou
dois por cento de juros. E olha que foi uma verdadeira luta para ele. Eu bem vi que não me queria
cobrar quaisquer juros, mas um banqueiro é sempre um banqueiro.
Ofereceu-me uma festa enorme quando a última nota foi paga, e posso imaginar que lhe deve ter
custado os cinco mil dólares que lhe devolvi.
Sorriu com a recordação, e juntou ainda com ar sonhador:
- Miss DeVere representou primorosamente naquela noite.
Ouviu-se um bater tímido na porta que separava os dois gabinetes e, com uma voz
desnecessariamente alta e enfurecida, Alfred ordenou à pessoa que entrasse. Era Mr.
Jamison, o assistente de Alfred, um homenzinho pequeno e magro com enormes bigodes e olhos
tímidos. Reconhecendo Jerome, fez uma vénia reverente.
- Jamison! - exclamou Jerome, avançando uns passos e estendendo a mão com à-vontade. - Pensei
que te tivesses retirado há muito tempo!
Mr. Jamison olhou para a mão coberta de anéis de Jerome durante um longo momento antes de
estender a sua, lançando ao mesmo tempo a Alfred um olhar que parecia implorar
perdão. Depois murmurou, quase sem fôlego:
- Estou encantado por tornar a vê-lo, Mister Jerome. Sim, estou encantado. Não, ainda não me
reformei.
Os olhos do velho fixavam-se em Jerome com uma expressão de dedicação quase canina.
- Bem,.está bem, estou muito contente. - disse Jerome.
- Como está a Mistress Jamison? E o rapaz?
O homenzinho corou de orgulho.
- Brewster está em Siracusa, na escola de Direito, e vai indo muito bem. É capaz de se estabelecer
ali mesmo.
Soltou um suspiro, e continuou:
- Mistress Jamison não está muito bem. Mas não é nada de grave.
Alfred pigarreou e disse:
- Jamison, lembra-se que eu lhe disse ontem que Mister Lindsey viria trabalhar connosco? Acha que
vai ter tempo esta manhã para o começar a instruir nos processos
habituais do Banco?
Jerome franziu o sobrolho, mas Mr. Jamison estremeceu com evidente prazer.
- Decerto, decerto, Mister Lindsey! Tenho o maior prazer nisso!
As mãos tremiam-lhe quando estendeu a Alfred um monte de folhas, dizendo:
- É o relatório da Quinta de Hobson. Estão a ir muito bem este ano. Têm boa colheita. O senhor
ficará muito satisfeito.
Jerome apurou os ouvidos. Hobson? Hobson? Onde é que ele ja tinha ouvido aquele nome? Mas
Alfred já se tinha sentado à secretária dando a entender que estava determinado
a
iniciar de imediato o seu trabalho. Jerome seguiu, portanto, Mr. Jamison para o outro gabinete.
A sala era mais pequena e mais escura do que a de Alfred e havia ali um minúsculo e quase apagado
lume na lareira. Jerome estremeceu deliberadamente, remexeu o carvão
e atirou com uma pazada bem cheia para dentro da lareira. Mr. Jamison ficou alarmado e emitiu um
tímido som de protesto.
- Se ele acha que eu vou morrer aqui congelado, engana-se - disse Jerome. - Vai ver se alguém traz
mais carvão para este mausoléu, Jamison. Não estou nada interessado
em apanhar uma gripe.
Olhou à sua volta e sentiu-se deprimido. Não havia nenhum tapete sobre o chão de granito. Duas
secretárias de castanho muito escuro estavam lado a lado. Nas janelas
não havia também quaisquer reposteiros vermelhos, como os do gabinete de Alfred. Nem um só
quadro pendia das paredes forradas a madeira.
Como se falasse consigo mesmo, disse Jerome:
- vou mandar vir para aqui um tapete, e algumas das minhas telas mais alegres. Pode ser que elas
venham juntar um pouco mais de vida a este túmulo. E também um relógio
para pôr ali, em cima da lareira, uma coisa alegre e rococó. E... deixa-me ver... não, acho que não
quero reposteiros vermelhos. Acho que prefiro qualquer coisa
com um toque dourado, talvez.
Mr. Jamison ouviu aquela heresia e ficou aterrorizado. Quase a medo, murmurou:
- Mister Alfred Lindsey é capaz de não... Não vai gostar de certeza, Mister Jerome.
- Para o diabo com Mister Alfred! - exclamou Jerome com uma voz jovial. - Sou eu que tenho de
suportar este danado lugar, e não ele. Quem diabo pensa ele que é?
Não passa do sobrinho e filho adoptivo do meu pai. Eu é que tenho sangue real. Jamison, acho que
vamos poder fazer qualquer coisa desta sala,
Mr. Jamison olhou-o com adoração. Estava de pé junto à lareira, ao lado de Jerome, e esfregava as
mãos descarnadas e geladas. Jerome olhou-o afectuosamente.
- Meu velho Jamison! Havemos de ser felizes juntos, e havemos de nos confortar um ao outro
debaixo das "pirâmides".
Pendurou o casacão e o chapéu no armário, e do bolso do casaco retirou uma pequena garrafa de
prata, elegantemente trabalhada.
- Dois copos, Jamison - ordenou, fazendo um gesto grandioso. - Vamos beber à minha iniciação
entre os mortos.
- Oh, Mister Jerome! Desculpe-me. Eu não posso. Eu... O que diria...
- Copos, Jamison - disse Jerome com voz suave, mas inexorável.
Mr. Jamison, branco como açaí, foi buscar os copos. Jerome deitou neles uma generosa quantidade
de líqüido dourado e juntou-lhe um golo de água do jarro trabalhado
que se encontrava em cima da secretária de Mr. Jamison. Este segurou no seu copo como se ele
contivesse um líqüido sagrado. A mão tremia-lhe.
- Descanse que isso não o vai envenenar, Jamison - disse Jerome, sorrindo. - Abaixo com ele. É
umaordem.
Beberam. Um ligeiro colorido inundou as faces ossudas e magras de Mr. Jamison. Soltou uma
risadinha trémula e limpou a boca com o lenço.
- Oh, Mister Jerome! -murmurou, lançando um olhar na direcção da porta que dava para o gabinete
de Alfred.
Sentaram-se depois, cada um em sua secretária, lado a lado, e Jerome começou a receber as
instruções que lhe eram dadas, quase a medo, pelo velho Jamison. Obrigava-se
a escutar com atenção, mas a pouco e pouco o rosto foi-se-lhe tornando sombrio e carregado, e lia-
se nele um evidente esforço para evitar os bocejos reprimidos.
Mr. Jamison mostrou-lhe algumas folhas e talões de depósitos, e Jerome procurava separá-los. Filas
e filas de números, sem a mínima ponta de vitalidade. Jerome olhou
para o relógio. Devia ser meio-dia! Mas não, eram apenas dez horas. Serviu-se de outra bebida.
- As actividades de um banco são na verdade muito interessantes, senhor - disse Mr. Jamison num
tom desesperado.
- Pode ser, meu caro, pode ser. Mas não aqui. Do que esta comunidade precisa é de um pouco de
actividade e empreendimento. Investimentos que precisem de longas viagens
de negócios a Nova Iorque. As minas, embora um pouco precárias, são excitantes. Indústrias a
financiar com exploradores arrojados. Visitas às secções mineiras, às
secções fabris, em carruagens privadas de caminho-de-ferro, com uma bateria de jovens e
entusiásticos investigadores. Finanças. Este negócio aqui não tem nada a
ver com finanças. Trigo, galinhas, cabras, gado, aveias, vegetais... Meu Deus!
- Esta é uma secção agrícola, senhor!
- Sim, eu sei. Mas será preciso limitar-se a actividade do Banco apenas às fazendas e quintas?
Às onze e meia, Jerome vestiu o casaco, pôs o chapéu e informou que tencionava dar uma volta
pelas lojas, para ver se encontrava tapetes e reposteiros que lhe agradassem.
Ordenou a Jamison que trouxesse mais carvão. Bebeu outro uísque. Mas,
ao sair, teve o cuidado de abandonar o gabinete por uma porta lateral. Uma vez lá fora, ao ar puro
da rua, sentiu-se renovado e feliz.
Não voltou senão já muito perto da uma hora, e só teve tempo de voltar a colocar o chapéu e o
casaco dentro do armário, antes de Alfred entrar no gabinete.
- Boa tarde! - exclamou Jerome, voltando rapidamente para a sua secretária.
- Ainda não é uma hora! - disse Alfred, com ar severo. Olhou para as duas secretárias e perguntou:
- Como vão as lições?
- Oh, excelentes, excelentes. Jamison é um estupendo professor - retorquiu Jerome, curvando-se
diante do primo.
- Almoças comigo na Riversend House? - perguntou Alfred, muito frio. - Há alguns assuntos que
poderíamos discutir, sobre aquilo que aprendeste esta manhã.
- E a cozinha melhorou ali? - perguntou Jerome, voltando a retirar o casaco e o chapéu de dentro do
armário, e inspeccionando-os furtivamente em busca de quaisquer
sinais de neve ou humidade. - Ou continuam a ter a mesma carne assada a saber a água, ou galinha
que morreu de velha?
Alfred não respondeu. Saíram os dois para o almoço.
Capítulo décimo quinto
Hilltop reluzia. Cada janela parecia lançar reflexos dourados na neve misturados com as luzes que
se desprendiam das lareiras. Os enormes salões estavam abertos;
a árvore de Natal cintilava com dezenas de velas cuidadosamente vigiadas por um criado que tinha
a seu lado um balde com água, pronto para qualquer eventualidade.
Em todas as lareiras da casa havia grandes toros de lenha, e todos os candeeiros estavam acesos. Os
candelabros de cristal, que apenas se acendiam em ocasiões muito
especiais, pareciam estalactites de radioso fulgor. O chão polido reflectia a luz e as cores.
Os músicos estavam já a tocar no salão de música que mais tarde seria utilizado para o baile. Os
vasos de plantas tinham sido estrategicamente agrupados, formando
grutas em miniatura. A criadagem, em número aumentado pela "ajuda" de outros serviçais vindos de
Riversend, dava os últimos toques na sala de jantar, onde galinhas,
perus, carnes variadas e muitos outros acepipes se encontravam já prontos sobre os aparadores.
Os quarenta convidados estavam a começar a chegar; o extenso parque em frente da casa
regorgitava de gente e ressoava alegremente com o tilintar das campainhas e
guizos dos arreios dos trenós e das charretes, os gritos dos rapazes dos estábulos, os risos das
mulheres e as vozes alegres dos homens. Alguns entoavam cânticos;
as campainhas tocavam; uma noite de estrelas brilhantes parecia engolir a Lua vagueante.
Os criados, de pé, junto à porta, iam recebendo dos convidados casacos e capas, bengalas e chapéus,
luvas e peles, e a imensa sala de entrada estava salpicada dos
vestidos ricos das senhoras e dos seus rostos brilhantes e festivos.
Dorothea, Jerome e Alfred recebiam os seus convidados, enquanto Mr. Lindsey se encontrava no
primeiro salão, com a bengala a seu lado, cumprimentando aqueles que
se iam acercando dele. O jovem Philip, pálido de excitação e timidez, estava de pé a seu lado. Mas
Miss Amalie Maxwell ainda não tinha aparecido e, do local onde
se encontrava, Alfred olhava constantemente por cima do ombro para a escadaria, o rosto
ensombrado de embaraço. Num pequeno intervalo, conseguiu murmurar a Dorothea:
- Amalie não terá compreendido que devia estar aqui connosco, a receber os convidados?
Dorotea, que envergava um sombrio e severo vestido de cetim preto, de corpete excessivamente
subido, ripostou-lhe, também num murmúrio:
- Tenho a certeza que sim. Eu própria lho disse esta tarde. Talvez se tenha enganado nas horas.
- É impossível que ela não oiça o que se passa cá em baixo
- disse Alfred desesperado, sentindo-se mais humilhado a cada instante que passava.
Nenhum dos convidados se referira ainda à ausente, mas esse tacto por eles revelado, em face da
ausência, não o aliviava.
Dorothea abanou a cabeça, fazendo retinir ao mesmo tempo as suas correntes e pulseiras de ouro.
Mais convidados chegaram e os três receberam-nos.
Uma mulher já velha e incrivelmente feia estava a chegar, toda ela veludo roxo e pérolas, de cauda
longa arrastando atrás dela. Era muito baixa, muito gorda e o
rosto assemelhava-se ao de um enorme e mal humorado bulldog. O cabelo, uma massa de bandós
negros, caracóis e chignon, era obviamente falso. Tinha o rosto vermelho
e as papadas de um carmesim brilhante. O nariz era pequeno e grosso e os olhos negros eram
pequenos também, mas viciosos e impudicos. A boca, pesada e sensual, era
arrogante e ao mesmo tempo irónica. Grossos cachos de anéis cintilavam-lhe nas mãos, que mais
pareciam as de uma lavadeira
do que as de uma poderosa aristocrata. Um forte odor a almíscar rodeava-a como uma aura
invisível.
Esta era a viúva Kingsley, ou Mehitabel, como era conhecida pelos mais íntimos. Tal como o seu
grande amigo, o general Tayntor, ela era extremamente "inconvencional"
e "mesmo um carácter".
Casada por três vezes, três vezes viúva, tinha acabado por ficar com uma fortuna muito
considerável em resultado dos seus casamentos sabiamente escolhidos, e o seu
rendimento era pouco inferior ao do general. Era famosa pelo seu vozeirão medonho e rouco, a sua
linguagem indecente, a sua malícia, os seus insultos deliberados
e a sua avidez gananciosa, para não
- mencionar os seus extraordinários vestidos, a sua mansão espaventosa e luxuosa, o seu estábulo
cheio de excelentes cavalos, os seus inúmeros gatos e o seu insaciável
apetite por boa comida e bebidas.
Os seus inimigos formavam autênticas legiões, especialmente entre as mulheres, e os que eram seus
amigos eram-lhe devotados. Não receava ninguém e a sua língua viperina
poupava poucos.
Entrou acompanhada pelas suas próprias imprecações proferidas aos gritos. Caminhava rebolando-
se e apoiava-se numa bengala de ébano com punho de ouro. Estava exuberante.
Dorothea, acenando, avançou com gestos afectados, seguida de Alfred e Jerome. Os olhos da viúva
pousaram neles. Parou e a sua expressão tornou-se deliberadamente
insultuosa, embora apenas exclamasse:
- Aqueles vossos rapazes são impossíveis, Alfred! Eu...
Os seus olhos caíram sobre Jerome, que espreitava, sorrateiro, por detrás do primo. O rosto da viúva
alterou-se e uma expressão deliciada inundou-lhe os olhos.
- Jerome! - berrou ela. - Tu... cão! Anda cá imediatamente e dá-me um beijo!
Acto contínuo, lançou-lhe os braços e apertou-o contra si num abraço violento. Jerome abraçou-a
afectuosamente e bateu-lhe ao de leve nas costas.
- Metty! - disse ele. -Fiz todo o caminho de Nova Iorque até aqui só para te ver outra vez, querida
chacal.
- Mentiroso! - gritou a viúva, com um esgar sardónico, libertando-o dos seus braços. - Aposto que
sei por que é que vieste.
Fez um gesto largo e agarrou-lhe no braço com força. Resfolegou obscenamente e disse:
- Deixa lá! Já me chega ver-te. Meu Deus! Estás maravilhoso, Jerome. Dá-me outro beijo.
Outro pensamento pareceu atravessar-lhe o espírito; puxou-o de novo para si e disse-lhe:
- Já gostas mais de animais, não? Ainda consegues distinguir a cabeça do rabo, ou não? Ouvi dizer
que estiveste em Saratoga no ano passado, a fazer apostas; portanto
já deves saber qualquer coisa.
- Tenho um cão, um spaniel - respondeu-lhe Jerome. O esgar da viúva acentuou-se.
- Um cão? Mas tu nunca gostaste de cães! Francês... como Luís XIV. Spaniels! Queres tu dizer-me
que agora gostas de cães? - perguntou, violenta.
- Não muito! - admitiu ele. - De certo modo, herdei o Charlie. A dona foi para o estrangeiro.
A viúva gargalhou convulsivamente e bateu-lhe no braço com a mão livre.
- Oh!... nesse caso!
Uivava literalmente agora, tal era o som das suas gargalhadas.
- E... o que é essa história de tu ires para o Banco? Não acreditei nem uma só palavra. Tens de me
dizer que não é verdade.
- É, sim, é verdade! - respondeu Jerome, sorrindo. vou transformar-me num bom homem de
negócios, agora. Estou... a ficar sedentário, e a começar a criar raízes e
musgo.
Alfred avançara para junto deles e pigarreava, como que para aclarar a garganta.
- Boa noite. Feliz Natal, Mistress Kingsley - disse ele, lançando um olhar frio a Jerome.
A viúva voltou-se para ele, enrugando o sobrolho.
- O quê? Ah, sim, obrigada, Alfred. Mas... o que é que há assim de tão alegre na noite de hoje, és
capaz de me dizer? Toda esta maldita neve, e o meu reumatismo...
E olhou-o com repulsa e ultraje, como se ele fosse pessoalmente responsável pelo tempo que fazia.
Depois, voltou a pegar no braço de Jerome, e disse:
- Leva-me junto do teu pai, imediatamente. Voltaram-se os dois. Mas ela deteve-se de súbito e
olhou, por
cima do ombro, para o irritado Alfred e a chocada Dorothea.
- A propósito, Alfred, onde é que está a tua rapariga? A costureira... ou lá o que é?
- Miss Maxwell ainda não desceu - retorquiu Alfred.
Os seus olhos pálidos dardejavam ameaçadores, como se se tivesse esquecido, por momentos, do
poder da viúva.
- Ela vai descer dentro de pouco tempo! - disse ainda. E, voltando-se para Dorothea, disse:
- Minha querida, queres fazer o favor...
- vou lá acima imediatamente - disse Dorothea, voltando-se com um imponente restolhar das suas
saias, e começando a subir as escadas.
A viúva sorriu, mordaz, e gargalhou grosseiramente, enquanto dizia:
- Esperemos uns instantes, Jerome. Tenho um desejo enorme de ver a rapariga. Ouvi dizer que tem
um rosto maravilhoso.
As fontes de Alfred começaram a latejar violentamente, mas conseguiu controlar-se. Mais alguns
convidados chegavam, provocando uma agradável confusão.
Uma figura começou a descer as escadas, muito devagar e altivamente. Os convidados, incluindo a
viúva olharam para cima com sorrisos polidos no rosto. Mas depressa
os sorrisos desapareceram, e os rostos transformaram-se em máscaras esculpidas em mármore. Um
silêncio sepulcral abateu-se sobre tudo e todos.
Recortada contra a sombra escura da escadaria, Amalie descia com uma pose indiferente e de
cabeça erguida. O brilho dos lustres atingia-a em cheio. Trazia um longo
vestido de um escarlate muito vivo, excepcionalmente audacioso. Os seus ombros brancos estavam
completamente desnudados e cintilavam como neve sob o brilho da lua.
O corpete justíssimo moldava-lhe os seios ousados e ponteagudos e a cintura fina, donde caía
depois, em pregas cor de rubi cintilante, apanhadas atrás numa cascata.
Rubis brilhavam-lhe nas massas do seu cabelo negro, cuidadosamente penteado num chignon sobre
a nuca e nas pequenas orelhas. O rosto maravilhoso estava luminosamente
branco, os olhos profundos cor de púrpura, a boca tão escarlate como o próprio vestido. A mão
comprida e delicada deslizava pelo corrimão, cintilando, também, de
jóias preciosas.
"As jóias da minha mãe!", pensou Jerome, por entre o estranho zumbido dos seus ouvidos e o
incrível palpitar do seu coração.
Agora, a figura dela ficou completamente banhada pela luz, quando já se encontrava quase no
último degrau das escadas. Deteve-se. Todos os ângulos bem marcados do
seu rosto surgiam agora, totalmente revelados, o nariz firme, a boca voluntariosa, o traço duro do
seu queixo.
O silêncio de pedra pareceu aumentar ainda mais, envolvendo tudo.
- Meu Deus! - exclamou a viúva, estupefacta.
Todos os presentes pareciam ter ficado perplexos, estupefactos também. Algumas das senhoras
ergueram os leques,
cobrindo com eles a parte inferior dos seus rostos. Os homens olhavam extasiados para Amalie,
completamente fascinados. Por detrás de Amalie surgiu a figura espectral
de Dorothea, mais pálida do que um fantasma e quase totalmente entorpecida e hirta.
Jerome olhou para aquela palpitante visão no último degrau da escada e ficou especado, como que
pregado ao chão, os braços esquecidos pendendo-lhe de cada lado do
corpo.
Alfred, recuperando da estupefacção em que mergulhara, estremeceu. A sua cor era fantasmagórica,
mas ergueu a cabeça e avançou com passos firmes na direcção da escada.
Estendeu a mão a Amalie e ela segurou-lha. Depois, ajudou-a a descer e avançou com ela, dizendo,
em voz calma e clara:
- Amalie, meu amor, os nossos convidados! E começou a apresentá-la.
As senhoras tentaram retribuir os cumprimentos de apresentação, mas apenas conseguiram soltar
inaudíveis murmúrios, enquanto os olhos se lhes escancaravam nos rostos
perplexos e chocados. Amalie agia com toda a compostura. Fazia os cumprimentos com polidez fria
e calma. Olhava aberta e firmemente para os cavalheiros que se curvavam
à sua frente, em ligeiras vénias e que balbuciavam o seu nome com voz abafada e gaguejante.
Chegou, por fim, diante da viúva Kingsley, sorriu um pouco, e fez diante daquela mulher de idade
uma vénia cortês e breve, testemunho do respeito das mais novas
quando apresentadas às pessoas mais velhas. Todos os olhares se voltavam para ela, como que
enfeitiçados, esquadrinhando todas as pregas do seu vestido escarlate,
os reflexos cintilantes que se desprendiam dos seus ombros nus, da sua garganta palpitante e dos
seus seios meio desnudados.
- Bem! - exclamou Mrs. Kingsley, observando atentamente a jovem através do seu lorgnette. - com
que então, é esta a famosa beldade, não é verdade? Meu Deus! Alfred,
agora é que tu arranjaste algo de que te podes sentir orgulhoso. Uma bela rapariga, não há dúvida! E
olha que já vi algumas bem bonitas! E... esta não deve ser nada
fácil de tratar, aposto!
Fixou os olhos perscrutadoramente no rosto de Amalie; esta sorriu. A viúva começou a sorrir
também, num sorriso irónico, espetando o seu grosso lábio inferior.
- Gosto de ti, minha querida! - disse ela. - Mesmo que sejas umacostureirinha, ou seja láo que for...
Fez uma pausa breve, e continuou:
- Podes dar-me um beijo, se quiseres.
Amalie curvou a cabeça e beijou a idosa mulher que lhe
bateu suavemente no rosto, em pancadinhas leves, durante o beijo. A viúva suspirou, e disse:
- E pensar que esta coisinha vivia aqui, em Riversend, e eu não sabia. Diz-me lá, minha querida,
foste tu mesma que desenhaste esse teu vestido?
- Sim! - respondeu Amalie, com um sorriso mais largo a inundar-lhe o rosto. - Mas não sou
costureira... sou professora, madame.
- É isso que interessa? - retorquiu-lhe a viúva, fazendo um gesto de indiferença.
Estudou Amalie de novo, e de novo sorriu:
- Gosto de ti, criança! - repetiu, segurando-lhe na mão. Depois, riu-se em silêncio, e perguntou:
- Mas... diz-me uma coisa. Porque é que tu vais casar com Alfred, quando podias muito bem casar
com o meu belo Jerome? Seriam dois belos chacais juntos. Porque tu
és também um espantoso chacal, não és, minha linda? Sim, nunca na minha vida me enganei... e
agora de certeza que também não estou enganada. Porque é que te vais
casar com Alfred? - perguntou ela com voz estridente. - É por causa do dinheiro dele,
evidentemente!
Calou-se, por momentos, enquanto lançava ao infeliz Alfred um olhar feroz.
- Nunca gostei de pedantes! - disse, depois, ameaçadoramente.
Os convidados olharam uns para os outros, e de novo as damas cobriram os rostos com os seus
leques, enquanto os olhos lhes dançavam nas órbitas, maliciosamente divertidos.
Os cavalheiros sorriram, mas afastaram deliberadamente o olhar de Alfred, num gesto de
comiseração.
A viúva lançou um olhar de forte repreensão e censura a Jerome.
- Bem! - disse ela. - Fala! Diz alguma coisa! Ou não podes? Porque é que não casas tu com esta
criatura deliciosa? Ainda não é demasiado tarde, sabes?
Jerome curvou-se numa vénia irónica e ripostou:
- Ora essa, minha senhora, a senhora em questão não mo
pediu!
E, voltando-se para Amalie, perguntou:
É - ou pediu?
Amalie olhou-o friamente e respondeu:
- Acho que não. Foi, sem dúvida, uma falta imperdoável
da minha parte, mas espero que me perdoará.
A viúva soltou uma sonora gargalhada. Agarrou nos braços
de ambos puxando-os para si, de modo a ficarem um de cada
lado dela.
- Vamos ter com o papá! - disse. - Podemos deixar o Alfred encarregue destas estúpidas honras.
E arrastou-os consigo na direcção dos salões.
Lentamente, um após outro, os convidados afastaram a sua presença embaraçosa de Alfred e
Dorothea, e conversando mais alto do que seria necessário, seguiram aquele
trio espantoso.
Dorothea e Alfred ficaram sozinhos no ainda palpitante silêncio da sala de entrada. Alfred tremia
visivelmente. Retirou o lenço do bolso e limpou a testa. Tinha
o rosto lívido e rígido. As têmporas batiam-lhe com violência e as veias estavam de tal maneira
inchadas que pareciam ir rebentar de um instante para o outro. Dorothea
olhou para ele, com amarga compaixão.
Sem olhar para ela, Alfred disse-lhe:
- Por favor, Dorothea. Não digas nada. Eu não acredito...E...
A voz quebrou-se-lhe e ele virou-se de costas para a prima.
As mãos de Dorothea ergueram-se num gesto inconsciente, mas depois juntaram-se de novo,
engalfinhando-se com força. Muito calma, disse-lhe:
- Acho que já chegaram todos os convidados, Alfred. Vamos ter com os outros?
Pegou-lhe no braço.
"Pelo menos", pensou, "não sofreu o ultraje de ver os rostos dos outros que já se encontram nos
salões! Oh, aquela criatura horrível! Oh, Alfred, Alfred!"
Capítulo décimo sexto
Amalie foi uma verdadeira sensação, para não dizer mais. Mas, se ela tinha consciência disso, não o
revelava, nem ao de leve. com uma compostura perfeita, graciosa
e afável, rodopiava no salão de música nos braços de cavalheiros fascinados, enquanto que outros
aguardavam a sua vez dando mostras de uma impaciência pouco digna.
A sua figura, num escarlate flamejante, revolteava e deslizava entre tons cinzentos, negros,
castanhos e violetas, como uma língua de chamas entre rochas de lava
deslizante. Mesmo as donzelas muito jovens que envergavam vestidos vaporosos, brancos e cor-de-
rosa, com perfumes de lavanda, pareciam ficar desprovidas de cor e
graça nas suas proximidades, e depois que ela passava parecia que não as conseguiam recuperar,
ficando como fantasmas de si próprias. Era evidente que isso não a
tornava
querida aos olhos das outras senhoras, que a observavam com sentimentos muito pouco cristãos nos
corações.
- Os homens estão a fazer perfeitas figuras de loucos contigo, minha querida! - disse a viúva
Kingsley, com um sorriso deliciado.
Como se tivessem ficado contagiados por aquela presença resplandecente, os músicos começaram a
tocar num ritmo quase frenético, de tal maneira que aqueles que se
consideravam mais decorosos se acharam a rodopiar num passo tempestuoso, sem respiração e com
forte rubor inundando-lhe os rostos.
Mr. Lindsey observava tudo da sua cadeira, e o jovem Philip, que suplicara que o deixassem ficar
mais meia hora, observava também, de olhos cintilantes de prazer
enquanto seguia cada movimento de Amalie.
Duas jovens, ofegantes e abanando-se vigorosamente com os leques, foram depositadas junto de
Mrs. Kingsley por alguns momentos de descanso.
- Acho que o fato dela é verdadeiramente indecente... direi mesmo afrontoso! - exclamou arfando
uma delas, cuja voz habitualmente suave soava estridente.
- Aqueles ombros nus... realmente... quase nus! - continuou a mesma jovem, corando com violência.
- Sem dúvida que os cavalheiros se sentem terrivelmente embaraçados.
- Sem dúvida! - disse Mehitabel, sardónica. - Estão tão embaraçados que a única coisa que querem é
verem-se livres de vocês o mais depressa possível, para se embaraçarem
um pouco mais!
A verdade é que os pares das duas jovens, depois de proferirem uma ou duas breves palavras de
gentileza, estavam de novo de olhos fixos em Amalie, aproximando-se
dos pares que continuavam a dançar, com uma intenção deliberada e uma impaciência quase
delirante.
Mas não eram eles os únicos. Muitos outros aguardavam o momento propício para cortejarem
Amalie. Durante os intervalos, eles cercavam-na totalmente, tentando olhar
para o seu programa de dança, insistindo em que devia haver ali qualquer engano e que a próxima
dança era a sua. A voz de Amalie, baixa, clara e divertida fazia-se
ouvir sobre o elegante murmúrio das senhoras.
- Ela só dançou uma única vez com Mister Alfred Lindsey!
- disse a outra das duas jovens que se encontravam ao lado de Mrs. Kingsley. - E foi a dança de
abertura. Acho isso extremamente... irregular. Mas, ao que dizem,
não se pode esperar muito das boas maneiras de uma rapariga daquelas.
- com um rosto e um corpo como os que ela tem, nenhuma
mulher precisa de ter boas maneiras! - disse a viúva. - Do que ela precisa é de uma guarda pessoal.
- Lá vai ela outra vez, com Mister Jerome! - disse a mais baixa e a mais morena das duas jovens.
Depois, com ar relutante, disse ainda:
- Que par espantoso que fazem! Mas... valha-me Deus... como ela levanta as saias! Quase que se lhe
podem ver os tornozelos!
- É por isso que todos os homens estão tão extasiados a olhar para o chão? perguntou Mehitabel. -
Estava precisamente a perguntar a mim própria o que seria que estava
a provocar tantos olhos baixos!
Sorriu abertamente, e abanou-se com o seu enorme leque de negras plumas de avestruz. Estava
sentada numa pequena cadeira de talha dourada, rodeada por folhas de
palmeira. As duas raparigas estavam sentadas junto dela, uma de cada lado. Conheciam muito bem
Mrs. Kingsley e tratavam-na como a "uma mãe", pois a viúva era muito
terna para com elas, à sua maneira muito particular, claro, e elas não tinham nenhum parente vivo
por parte da mãe.
Mrs. Kingsley gostava das duas raparigas à sua maneira rude e esperava secretamente que as más
línguas locais ainda lhes não tivessem dito que ela e o pai delas,
o general Tayntor, tinham sido amantes, entre os vários maridos de Mehitabel. Evidentemente que
aquilo já tinha acabado, havia muitos anos.
- Chega uma altura na vida de uma mulher em que ela está arrumada para tudo isso! - costumava
dizer a viúva. - E quase sempre ela murmura um "graças a Deus", nessa
altura. Embora, parece, ninguém a acredite.
A mais velha das raparigas, Sally, era baixa, morena e graciosa, com um rosto rosado escuro,
iluminado por uma inteligência perspicaz. Tinha os seios altos e cheios,
embora pequenos, uma cintura finíssima, e um porte bastante aceitável.
A viúva Kingsley costumava dizer a propósito dela:
- com um empurrãozinho e uma opinião acertada, Sally era capaz de se tornar numa mulher
bastante interessante. Mas... quem é que pode fazer isso, aqui em Riversend?
Miss Sally tinha uns olhos negros imensos e vivos, cabelos também negros e encaracolados, e uma
boca que mais parecia um fresco botão de rosa, para além de possuir
uma figura bonita. Envergava um vestido de seda fina cor-de-rosa e rendas cremes, requintadamente
armado em dobras, pregas e folhos elegantes. Era de temperamento
naturalmente malicioso e alegre, e gostava de se sentir admirada. Não lhe agradava nada, portanto,
ver-se abandonada por aqueles cavalheiros cujos
nomes estavam inscritos no seu carnet para as danças seguintes. Fez um gesto de amuo irritado.
A irmã, Josephine (a quem nunca ninguém chamara "Josie", por razões óbvias), era mais alta e mais
graciosa do que a delicada Sally. Era também de tez muito mais
clara. Tinha a pele pálida e delicada, apenas ligeiramente rosada nas faces, e os olhos eram de um
azul suave e acariciante. O cabelo, sem sombra de caracóis ou
ondas, era de textura muito frágil e quase louro. No entanto, o seu tom castanho pálido era ainda
muito atraente, e estava apanhado num enorme chignon na base da
nuca beijando o seu longo pescoço branco. Muitos havia que a consideravam mais bonita do que a
sua irmã.
Miss Josephine tinha sempre uma expressão reservada, modesta e doce. Se lhe faltava a alegria de
Sally, possuía, no entanto, uma pureza de tez, um nariz direito
e fino, uma ternura na boca calma e rosada que lhe davam um ar de beleza clássica. Todos os seus
movimentos, o mínimo gesto de cabeça, o mais leve aceno estavam
imbuídos de uma aristocracia serena, e a sua voz era doce e musical. Envergava um vestido simples,
mas rico, de cetim azul, muito elegante e sóbrio, com leves apanhados
presos com pequenos botões cor-de-rosa.
Mrs. Kingsley achava a rapariga um pouco apagada, obtusa mesmo, talvez, embora gostasse mais
dela do que da mais consciente e mais sabida Sally, que tinha uma língua
afiada de vez em quando e sabia como a utilizar malevolamente nas ocasiões certas.
Mehitabel costumava dizer:
- Para conversar, dêem-me Sally. Nunca me aborrece. Mas para descansar, prefiro a Josephine. Ela
repousa-me, e acho a sua presença a cura perfeita para as insónias.
Josephine tinha apenas dezanove anos, sendo, portanto, mais nova dois anos do que Sally. Nenhuma
delas estava ainda noiva. Sally não conseguia encontrar em Riversend
ninguém que lhe agradasse, o que a deixava desesperada. Quanto a Josephine, sentira já secretas
esperanças, mas... Amalie viera destroçá-las. A pobre rapariga tinha-se
resignado perante a perspectiva de ficar solteira para sempre, devotando-se ao trabalho na igreja, às
visitas aos pobres e a sevir de amparo e conforto ao pai. Deste
último e quase execrável desígnio, estava o general ignorante. Ele costumava lamentar-se junto das
filhas, exortando-as a arranjarem marido rapidamente, muitas vezes
utilizando a sua habitual linguagem baixa e vulgar. Não queria ter, como costumava dizer, mulheres
velhas e solteironas à sua volta, puxando-lhe os cabelos e arreliando-o
com os seus beijos lambuzados.
Ninguém conhecia a secreta paixão de Josephine por Alfred
e a quase fanática devoção que ela lhe dedicava. Era quase vinte anos mais nova do que ele, mas
desde a sua meninice que se tinha agarrado à esperança, silenciosa
mas tenaz, de que ele um dia pudesse vir a dar pela sua presença. Pelo seu lado, Alfred tinha sido
sempre muito amável para com ela, achando que a sua companhia
era um alívio e uma paz absoluta em comparação com Sally. Costumava visitar o general com
bastante freqüência, por questões de negócios, já que o general se recusava
sistematicamente e de modo peremptório a deslocar-se ao Banco.
Sally não gostava dele, e quando era obrigada à sua presença costumava atormentá-lo e aborrecê-lo
com observações pouco agradáveis. Por seu lado, Josephine era como
um frágil ramo de minúsculas e delicadas rosas expostas a um vento demasiado agreste para as suas
pétalas finíssimas. Contentava-se em ficar sentada, a bordar, a
seu lado, os tornozelos finos cruzados sobre um banquinho baixo, enquanto que o pai e Alfred
conversavam sobre finanças e hipotecas, colheitas e investimentos. De
vez em quando erguia a cabeça adorável e fixava os seus olhos azuis e suaves no visitante, enquanto
um ligeiro rubor lhe cobria as faces.
No que dizia respeito a Amalie, sentia por ela um ódio desesperado que não ousava confessar nem a
si própria, e o seu jovem e inexperiente coração ficava dilacerado
de dor. Aquela odiosa criatura não era suficientemente boa para o querido Alfred; não tinha
qualquer refinamento, não era ninguém, não tinha famílias de bem nem
educação nenhuma. Ela faria com que Alfred se sentisse miserável e arruinaria toda a sua vida, com
aqueles modos provocantes e abomináveis. Tinha uma boca untuosa
e os olhos duros, e Josephine fazia a si própria a pergunta antiga tão habitual nas mulheres
apaixonadas e repudiadas:
"Que verá ele nela?"
Amalie era demasiado alta para uma mulher, era atrevida e dura e não tinha a mínima sombra de
nobreza. Uma mulher que tinha que ganhar a vida pelos seus próprios
meios! Isso era uma vergonha, um autêntico ultraje! Quem, no seu juízo perfeito, suportaria uma
criatura daquelas? Alfred não estava no seu juízo perfeito. Amalie
não era sequer filha de um desses horrorosos novos ricos que tinham feito fortuna a explorar um Sul
depauperado depois da guerra. Não tinha dinheiro, nem distinção,
nem antepassados nobres, nem tradição com que pudesse honrar Alfred.
Josephine tinha a vaga consciência de que os seus sentimentos tinham muito pouco de cristãos, mas,
entre lágrimas e súplicas de perdão, e de que Deus lhe desse coragem
e resignação, odiava Amalie com todas as suas forças, com uma fúria tão
intensa e devastadora que, a ser revelada, surpreenderia decerto todos quantos a conheciam.
Além disso pensava, do alto dos seus dezanove anos inocentes:
"Ela é tão velha! Tem já quase vinte e três anos, segundo dizem! É uma solteirona!"
Os seus próprios pensamentos secretos estavam naquele momento a ser veementemente proferidos
em voz alta por grande parte das senhoras presentes, abandonadas, como
ela, pelos cantos e paredes dos salões, enquanto os seus cavalheiros continuavam em perseguição
tenaz a Amalie, completamente esquecidos do facto de que os seus
nomes estavam inscritos nos carnets das outras senhoras. Um murmúrio de vozes revoltadas ecoava
junto às paredes, acompanhado pelo abanar nervoso dos leques e por
olhares virulentos.
Se Amalie tinha consciência de todo aquele frenesim que a rodeava (e era impossível que não se
apercebesse dele), não parecia importar-se minimamente. Detestava
aquelas mulheres idiotas na sua dignidade petulante, que não pensavam em mais nada senão
educação, boas maneiras e boas famílias, que não faziam mais nada senão
lamentarem-se "dignamente" à mesa do pequeno-almoço e dirigirem as suas enormes mansões.
Estava a divertir-se. Pelo menos, tinha-se sentido divertida até ao momento em que Jerome se
aproximara dela e se transformara em seu par.Não podia recusar-se a
dançar com ele, uma vez que Jerome lhe dirigira o pedido na presença dos outros. Ter negado teria
originado uma cena, pois sabia bem que ele era capaz de
fazer cenas, sem a mínima repulsa, se assim o desejasse.
A música soava cadenciada e quente. Jerome arrastou Amalie numa valsa estonteante. Ela dançava
maravilhosamente, mas estava hirta nos braços de Jerome. Tinha o rosto
muito branco e sério, olhando fixamente para lá do ombro dele, como se estivesse esquecida da sua
presença e do braço que a dirigia. Jerome tentou puxá-la mais de
encontro ao seu corpo, mas ela resistiu, deixando-o de novo surpreendido com a sua força. Os pares
esvoaçavam à volta deles, olhando-os... os olhos das mulheres
malevolamente, os dos homens enciumados e invejosos. A luz jorrava dos enormes lustres que
pendiam do tecto abandonado. Tudo era belo, alegre, delicioso.
- Preciso de falar contigo! - murmurou Jerome.
Amalie esboçou um sorriso desmaiado, mas não respondeu, e lançou aos músicos um olhar de muda
súplica. A valsa estava quase no fim.
Jerome olhou para os seus belos ombros brancos e o leve arredondado dos seus seios. Depois, disse
suavemente:
- Anda comigo. Esta noite. Iremos para Nova Iorque.
Ela voltou para ele os seus olhos belíssimos, pela primeira vez, e o sorriso tornou-se maior.
- Mister Lindsey... senhor... isso é uma proposta de casamento?
Ele riu. Puxou-a para ele, apanhando-a desprevenida, ficando os dois a dançar numa proximidade
pouco decorosa.
- De certo modo! - murmurou ele.
- De maneira pouco convencional, suponho! - disse ela.
- E sem livro, não é?!
- Sem livro! - concordou ele. - Mas... quem é que se interessa por livros?
Amalie já não sorria. Mas olhou para Jerome longa e desafiadoramente.
- E posso perguntar de que viveríamos nós em Nova Iorque?
Ele franziu a testa ligeiramente.
- Viver? Viveríamos como sempre tenho vivido, suponho!
- com o dinheiro do seu pai? - perguntou ela. - Mas... duvido sinceramente que o seu pai
continuasse a ser a sua fonte de rendimentos, mediante a sua nova alteração
das circunstâncias. Teria de trabalhar, Mister Lindsey, e... duvido muito que a sua constituição
suportasse isso.
- Está a falar de contingências altamente desagradáveis disse ele, num tom de voz pretensamente
ligeiro, embora fosse evidente que estava a pensar nas palavras que
ela proferira. Raios! Sou um artista excelente. Pintaria retratos, ou qualquer outra coisa. Além disso,
ao fim de apenas cinco dias, sou capaz de entender os negócios
do Banco espantosamente bem!
- Em resumo: praticamente não tem dinheiro! - disse ela. Afastou-se do peito dele, e continuou:
- E... dinheiro, senhor, é aquilo que eu quero. Evidentemente, há que contar com os seus encantos
irresistíveis...! Mas, duvido muito que eles conseguissem ser um
substituto substancial daquilo que já me ofereceram.
O tom dela tinha sido ligeiro, frio, um pouco irónico durante toda a conversa. Mas, o seu corpo
estremecia, e a boca estava rígida.
- Não passas de uma mercenária! - sibilou ele.
Mas, de súbito, o rosto alterou-se-lhe. Inclinou a cabeça, e sussurrou, tresloucado:
- Amalie, Amalie! Eu amo-te, Amalie!
Ela atirou a cabeça para trás e lançou-lhe um olhar perfurante. Ele estava a sorrir. Mas ela viu-lhe os
olhos e o tremor do corpo tornou-se-lhe quase violento. Naquele
momento, a música
parou com um floreado selvagem e exuberante, e os pares detiveram-se também, batendo palmas
retraidamente. Alguns homens, de olhos faiscantes, começaram a aproximar-se
de Amalie, tentando distanciar-se uns dos outros, sem correrem abertamente.
- Oh! Vá-se embora! Vá-se embora! - murmurou Amalie.
- Por amor de Deus, deixe-me em paz!
Jerome não via nada senão aquela mulher. Um forte rubor inundara-lhe o rosto e a respiração
tornara-se-lhe ofegante. Continuara a segurar-lhe na mão. Vários pares
que se preparavam para abandonar o centro do salão começaram a olhar para eles com curiosidade.
Amalie tentou libertar a mão, mas Jerome segurou-lha com mais força.
- Tu não podes casar com ele! - disse Jerome, de modo quase inaudível. - Eu quero-te, Amalie.
Pertencemos um ao outro! Hei-de arranjar maneira, seja como for, para
nós dois...
Viu lágrimas nos olhos dela, pela primeira vez; lágrimas espessas que lhe bailavam nas pestanas e
que transformavam o tom violeta das suas pupilas ainda mais vivo
e brilhante. A boca dela tornara-se mais intensa e mais suave.
No entanto, Amalie murmurou apenas:
- Por favor! Por favor! E afastou-se dele.
Jerome teve de lhe largar a mão, porque viu que, à frente dos homens que se dirigiam para Amalie,
vinha Alfred, com um certo avanço sobre os outros, e um olhar ameaçador.
Lançou ao primo um olhar mau e inclinou-se diante de Amalie, dizendo-lhe:
- Meu amor, creio que a próxima valsa me pertence.
Jerome retirou-se vagarosamente para junto da parede. Passou por Dorothea, que dançava, muito
hirta nos braços do cavalheiro de idade e barba branca. Dorothea olhou-o,
sombria, mas ele nem a viu. Chegou junto da viúva Kingsley que continuava sentada mas tendo a
seu lado apenas Sally.
Mehitabel atirou-lhe um olhar longo e penetrante.
- Então? - perguntou ela, em voz alta, afastando o leque. Ele sorriu.
- Então... nada! - disse ele, em tom pretensamente jocoso.
Ela estudou-o.
- Parece que é difícil dançar! - observou. - Tens acara vermelha e afogueada. Limpa-a.
Calou-se por momentos e depois disse ainda:
- És um doido, Jerome! Mas já ele se voltava para Sally.
- Miss Sally, dá-me a honra?
Ela remexeu-se, feliz, e voltou para ele os seus belos olhos negros.
- Claro, senhor, é um prazer! - disse vivamente. Recusei todos os outros, à sua
espera!
Jerome arrastou Sally num turbilhão para o meio dos pares que volteavam ao som da valsa. Ela era
uma dançarina maravilhosa. Exalava um perfume a lilases doces. O
seu peito pequeno balouçava decorosamente. Atirou a cabeça para trás para rir para ele, zombeteira.
Para sua grande surpresa, Jerome achou-a deliciosa. Aquela sensação
de angústia e enjoo latejava ainda dentro dele, como algo que lhe abrasava a carne, ameaçando
devorá-lo, algo que o deixava estonteado e vacilante. Tentou ainda
descortinar o vestido escarlate de Amalie entre os pares que dançavam, mas Sally interessou-o
apesar de tudo, pois era sempre vulnerável a mulheres bonitas.
Como dançavam e cintilavam os seus olhos negros! Como reluziam aqueles pequenos dentinhos
brancos! Toda ela era calor e volúpia. Involuntariamente, o braço apertou-se-lhe
à volta da cintura dela, e Sally não ofereceu qualquer resistência. Na verdade, ela acedeu de bom
grado àquele abraço. Jerome achou isso delicioso.
- Cresceu muito desde a última vez que a vi, Miss Sally! disse ele.
- E... o efeito é assim tão desagradável? - perguntou ela, coquete, mas de respiração mais acelerada.
- Pelo contrário! É perturbante! - retorquiu Jerome, sentindo de facto o que estava a dizer. - Estou
encantado!
Os seios dela, firmes e redondos, afloraram mais intimamente o peito dele.
- É muito amável da sua parte - sussurrou Sally. Abanou a cabeça num gesto suave, fazendo com
que os
caracóis do seu cabelo tocassem os lábios dele. Sally era uma coquete natural, era a própria Sally,
mas agora o seu coração batia-lhe descompassado dentro do peito
como nunca lhe havia acontecido, e o sangue parecia fervilhar-lhe nas veias.
- Ouvi dizer que não nos ia deixar de novo - disse ela, lançando-lhe um olhar intencional e
subitamente sério.
- Não! Nunca mais!
Hesitou, e procurou Amalie com o olhar. Depois, murmurou como se falasse consigo mesmo:
- Como é que eu podia?
Dançou mais duas vezes com Sally, e de cada vez que o fez, achou-a mais agradável. Foi-lhe
impossível voltar a dançar com Amalie. Alfred estava constantemente a
seu lado, como um cão de guarda, feroz, atento.
Às onze horas sentiu que a sua velha ferida na perna começara a doer-lhe, obrigando-o a coxear e
impedindo-o de continuar a dançar. Como um relâmpago, uma impaciência
horrível e uma depressão profunda inundou-o. Olhou à sua volta. Todos pareciam animados e
felizes no salão de música. Toda a gente dançava. Amalie e Alfred tinham
desaparecido sem que ele se tivesse apercebido. Mr. Lindsey havia muito que se retirara.
Deixou o salão, sem se despedir de ninguém, e também ninguém pareceu dar pela sua saída,
excepto Sally Tayntor, que imediatamente se abandonou nos braços de um novo
par.
Caminhou ao longo da sala de entrada, aquecida e silenciosa, onde o fogo da lareira quase se tinha
apagado e as luzes estavam apenas semiacesas. O relógio bateu
uma longa e sonora série de notas. Os sons e a música chegavam ali abafados, como que vindos de
nenhures, de uma festa de fadas encantadas.
Jerome passou por uma porta, atravessou uma passagem escura e desceu. Abriu outra porta e
encontrou-se na pequena mas completa estufa de seu pai. Estava muito escuro
ali, e o silêncio pesado cheirava a terra fresca e plantas novas. Fechou a porta atrás de si. O ar
estava fresco e húmido dentro da estufa, e havia algo na atmosfera
que anunciava a presença de musgos e heras. A luz da Lua atravessava o telhado de vidro, surgindo
dupla e enorme, como a Lua de um pesadelo.
Chegou até Jerome o cheiro das rosas, gerânios e lírios, mas ele apenas conseguia distinguir o vulto
das estacas, dos vasos e floreiras, e dos canteiros; o chão
de madeira estalava debaixo dos seus pés.
Encostou-se contra um canteiro e, muito lentamente, com gestos abstractos, começou a desfolhar
uma rosa.
Capítulo décimo sétimo
As "asas da morte", como Jerome ironicamente costumava dizer, tinham pousado sobre Hilltop. A
longa paz de um domingo de Inverno no campo parecia ter envolvido não
só Hilltop, mas toda a comunidade, naquela atmosfera de morte em plena vida. Até os cavalos, as
aves de capoeira e os pardais pareciam compreender que aquele dia
era o Sabbath, e não perturbavam aquela paz vazia.
Outra tempestade tinha-se levantado no dia anterior, mas compreendendo, com uma inteligência
dada pelos céus, que aquele dia era domingo, tinha-se recolhido precisamente
à meia-noite. O único som que se ouvia era o dos sinos das igrejas
no vale, que chegava às alturas límpidas e rarefeitas de Hilltop como tons estremecentes de música
etérea; mas apenas despertavam um "eco complacente" e uma ressonância
vaga, branca e religiosa.
Logo pela manhã, Dorothea e as criadas desceram até ao vale, para irem assistir aos serviços
dominicais. Mr. Lindsey não o poderia fazer. Para Jerome, isso era incrível,
e por isso ninguém lho sugeriu. Jerome ouvira o som das campainhas dos trenós a afastarem-se e
ouvira depois, mais tarde, o seu regresso. Pouco depois o almoço fora
anunciado e servido. Mr. Lindsey retirara-se para o seu quarto para descansar, Dorothea fizera o
mesmo, e os criados pareciam ter desaparecido. Tudo morrera. Jerome
sentou-se diante da lareira da biblioteca, com um livro por ler sobre os joelhos, de olhar perdido no
carvão em chama.
Jim devia estar nas cavalariças, como habitualmente, com Charlie e Philip. Jerome ouviu o
tiquetaque monótono do relógio na sala de entrada. O silêncio tornou-se
mais pesado. Tentou dormitar, mas todos os seus músculos começaram a tremer, e a carne parecia
arrepanhar-se-lhe. Aquele era o retrato fiel de todos os domingos
da sua juventude, e perguntou a si próprio, pela centésima vez, como é que tinha sido capaz de
suportar aquilo, e como é que o iria conseguir suportar no futuro.
Sabia que, no vale, as pessoas se visitavam, mas a tempestade da noite anterior tinha arrefecido o
entusiasmo, até mesmo daqueles que se considerassem mais fortes
e corajosos e pretendessem visitar Hilltop. Ouviu o relógio bater as três horas. Ao menos, podiam
vir algumas visitas para acabar com aquele tédio, aquele silêncio
sem nada que o quebrasse, sem um único movimento que o perturbasse.
Lembrou-se do chá, que seria servido às seis horas. Mas... ainda faltavam três horas! Fechou os
olhos, e imediatamente se se sentiu assaltado pela sua doença terrível,
por aquele mal que se lhe apoderara do espírito, pela miséria insuportável que o deixava abatido.
Amalie e Alfred tinham partido, havia quatro dias, para a sua lua-de-mel, e todos os vestígios do
casamento íntimo tinham já sido removidos da casa: as flores, as
plantas, as grinaldas, as fitas brancas, as mesas carregadas. Nada ficara para Jerome, excepto a
recordação, cada vez mais dolorosa, do rosto de Amalie debaixo do
véu e da minúscula grinalda de flores de laranjeira frescas.
Quase que a podia ver ali, à sua frente: pálida, imóvel, sem expressão, os lábios movendo-se
automaticamente quando proferira as respostas às perguntas que lhe eram
feitas. Via o brilho marmóreo da sua mão quando emergiu do véu e se estendeu
para receber a aliança de ouro. Tinha sido o movimento de uma estátua, tornada viva apenas por
breves momentos. Depois, vira Alfred curvar a cabeça e beijar
Amalie nos lábios. Quando Jerome lhe vira o rosto de novo, mantinha-se inalterável. O beijo
aflorara a neve.
Remexeu-se na cadeira, como se tivesse sido atingido por uma dor súbita e violenta. Soergueu-se
um pouco, comprimiu as mãos de encontro aos olhos e ao rosto e voltou
a deixá-las cair sobre os joelhos. Por fim, acendeu um charuto e apercebeu-se de que um dos seus
abomináveis estados de espírito se estava a apoderar dele de novo
e que não havia maneira de fugir. Agora, o sofrimento fazia parte da sua vida... um sofrimento
penoso, para o qual já não havia remédio nem esperança nenhuma.
Falando consigo próprio, disse:
- Ela voltará. Dentro de duas ou três semanas, estará de novo nesta casa. E isso não é o fim. Para
mim será, de certo modo, apenas o princípio. Estarei aqui. Não
é o fim.
E depois imaginou Alfred e Amalie nos seus aposentos, e sentiu-se doente outra vez, mesmo mais
doente do que jamais se sentira.
E pensou:
"Devia ter parado com aquilo! Devia ter encontrado uma hipótese, uma maneira qualquer, uma
solução!"
Sentia-se desesperado.
Que lhe tinha acontecido a ela, que era tão realista, tão espantosamente consciente e determinada?
Que lhe tinha feito a vida, a ela que não tinha sentimentalidade,
nem doçura, nem feminismo? Outra mulher teria preferido a paixão à segurança. Mas... Amalie
Maxwell, não! Amalie que conhecia tanto da vida e da sua fúria assassina
contra aqueles que não tinham um palácio dourado onde viver.
Ela comprara dinheiro e segurança, abertamente, sem dissimulações. Alfred não fora enganado;
sabia muito bem que ela não o amava, pois fora Amalie que lho dissera.
Tinha sido honesta. E, no entanto, quando Jerome se lembrou disso, odiou-a, odiou-a com tanta
força que o seu rosto se tornou húmido e a garganta se lhe secou de
dor.
Levantou-se e começou a andar de um lado para o outro. Se ao menos tivesse qualquer coisa para
fazer! Algo que o distraísse ou lhe interessasse! Qualquer coisa que
o ajudasse a esquecer. Dirigiu-se para o fundo sombrio da sala de jantar onde as pratas nos
aparadores reflectiam um brilho desmaiado, e os rectângulos vagos das
janelas mais pareciam pálidos quadros de neve, onde os taludes desciam em curvas suaves.
Encontrou uma garrafa de uísque e um copo, e voltou com eles para a biblioteca.
Serviu-se de uma porção generosa do líqüido âmbar e começou a beberricá-lo aos poucos, de pé,
junto da lareira.
Longas línguas rosadas e trementes desprendiam-se do carvão e da lenha, e as chamas reflectiam-se
no copo e nos anéis que ornamentavam os dedos de Jerome. Pensou
na astuta frase de Aristóteles:
"Anaxágoras diz que o homem é o mais sábio dos animais, porque tem mãos."
Desatou às gargalhadas e sentou-se de novo.
O mais sábio dos animais! Quem ia pensar que o velho tinha sentido de humor? Jerome quase que
via Aristóteles muito divertido, sentado numa cadeira de marfim, um
autêntico monólito branco vivo, com a sua majestosa barba branca. Via-lhe o sorriso estranho e
ouvia-lhe a voz:
"... porque tem mãos!"
Como os sentimentalistas solenes e os cientistas sem humor se tinham perdido em longas e sábias
discussões sobre aquele comentário! Mas nunca ninguém tinha reparado
no sorriso de Aristóteles. Tinham apenas os ossos sem carne das suas palavras para fincarem os seus
dentes barulhentos.
Jerome fez rodar lentamente o copo nas mãos. Não gostava de pensar. Sempre evitara a pesada e
amarga disciplina de pensar. Era tão maçador, tão incómodo! Não dava
a ninguém qualquer prazer real, a menos que uma pessoa se confinasse ao abstracto, e isso era como
jogar ao infantil jogo do pau e do volante, mantendo um monte
de penas no ar, inutilmente, com pequenas e ritmadas pancadas num pedaço de madeira oval.
Mesmo então, o estúpido monte de penas caía inevitavelmente no chão. com
o pensamento, voltava-se sempre aos aspectos fundamentais, e estes tinham sido sempre
diligentemente evitados por Jerome. Tinha a idéia, bem enraízada, aliás, de
que eles não só seriam desagradáveis, mas também fúteis, bem como dolorosos. Era cansativo
pensar em todos aqueles homens que tinham batalhado com o pensamento,
como pigmeus lutando contra Titãs que ficavam sempre mais fortes de cada vez que tocavam no
chão. Abstractos, os pensamentos tornavam-se invariavelmente pertinentes,
com uma tendência desagradável para voltarem ao particular.
E pensou, indiferente:
"Que fiz eu da minha vida? Já não sou jovem, e não fiz nada!"
Sorriu para sipróprio, ironicamente, e continuou:
"Passei belos momentos... Diverti-me... Sempre preferi os hedonistas, que me parecem uns tipos
bem espertos. Que mais pode um homem pedir senão que o deixem apreciar
a boa comida, ouvir a melhor música, admirar as mais belas pinturas,
amar as mulheres mais maravilhosas, dormir nas camas mais macias... e tudo sem muito esforço da
sua parte? Que diabo existe num homem que o obriga a "realizar qualquer
coisa"?
"Deus sabe que nunca fui assim tão egoísta, nem um maçador colossal. Nunca pretendi realizar
fosse o que fosse, porque... O que é que qualquer homem pode realizar
que não o venha depois a encher de tédio? Será que esse homem deseja a realização para satisfação
do seu próprio ego? Ou será que ele acredita que está a mudar a
face do mundo, que, possivelmente, preferia não ser mudada? De qualquer modo, está a afirmar a
sua fé numa imortalidade pessoal, e isso é de uma vergonhosa alta
de decoro."
De súbito, recordou-se dos seus anos na guerra. O que o teria levado a alistar-se? Poderia ter
facilmente comprado um outro qualquer que fosse na sua vez. As ruas
de Nova Iorque estavam pejadas de homens ansiosos por arriscarem as suas vidas por um punhado
de dólares. Mas não! Não comprara ninguém que o substituísse. E tornara-se
num oficial.
Bocejou profundamente. Era cansativo, pensar. Que tinha ele pensado que podia "realizar"? Nunca
tinha desejado, de maneira especial, "salvar a União". Se os do Sul
queriam a secessão, isso era previlégio deles, estavam no seu direito! Achara, até, muito estúpido
que homens brancos morressem para dar aos negros a sua liberdade.
De qualquer modo, e sem qualquer derramamento de sangue, os negros teriam sido libertados, fosse
como fosse! Talvez demorasse mais alguns anos, mas isso acabaria
por acontecer, sem deixar quaisquer resíduos de ódio e de terror e de raiva como agora afligiam a
nação, e continuariam a afligir durante mais algumas gerações.
Afinal de contas, até mesmo o Sul tinha chegado à conclusão de que a escravatura era ridícula.
Nesse caso, tinha ele desejado a aventura? Se esse tinha sido o motivo, fora uma estranha aventura.
Decisivamente, ele não era feito da mesma massa dos verdadeiros
soldados. Não tinha propensão nenhuma para o sangue e para a lama, para a morte e para o
sofrimento, para o assassínio. Franziu o sobrolho, intrigado; nesse caso,
porque é que se tinha alistado, quando podia muito bem ter-se deixado ficar confortavelmente em
Nova Iorque, falando com ironia acerca da guerra?
Insatisfeito e inquieto, levantou-se, dirigiu-se até às janelas e olhou para a branca e imóvel
paisagem que se estendia a perder de vista. E pensou:
"Eu não fui patriótico. De certa maneira, nunca fui americano. Não gosto dos Americanos. Mas...
nesse caso, não gosto de ninguém, realmente."
Tamborilou com os dedos de uma das mãos contra a vidraça, enquanto que com a outra levava de
vez em quando o copo aos lábios. Aquele pensamento era, na verdade,
cansativo, e sensato fora ele em o ter sempre evitado no passado. Mas... porque não conseguia
evitá-lo agora?
Parecia-lhe que um homem tinha de "fazer qualquer coisa", mesmo que essa "qualquer coisa" fosse
um absurdo. Não lhe bastava simplesmente ganhar o suficiente para
se abrigar ou arranjar alimento para o estômago. Tinha de "fazer qualquer coisa", quer isso
significasse a conversão forçada do obstinado ao seu tipo particular
de teologia, ou amontoar uma fortuna inútil, ou escrever livros que ficariam por ali, esquecidos, a
ganhar pó, durante anos e anos, ou pintar quadros que penderiam
em galerias vazias, ou inventar uma nova filosofia.
E sempre, sempre tinha de falar. Tinha de falar, sem fim, acerca do que tinha feito ou do que
tencionava fazer. Não podia evitá-lo, pobre-diabo! Estava preso a uma
inércia impotente e terrível e não podia evitar o tédio que ela provocava dentro dele.
"Vaidade! Vaidade!"
Mas uma pessoa não podia deixar de amar a sua vaidade e de a servir até cair de morto, exausto de
cansaço.
Havia uma lei imutável por detrás do fenómeno da inércia. O mais simples dos matemáticos
entendia isso. Mas que diabo de lei imutável era essa? Qual era o seu objectivo?
Quais eram os seus desígnios? E não podia ela produzir nada com maior grandeza do que o fútil
rodopiar de um ser humano que era a degradação última daquilo a que
se chamava "dignidade humana"?
Talvez tivesse um objectivo inescrutável. Mas era melhor deixar esse campo para os metafísicos.
Ele, Jerome, não era nenhum místico. Limpou com um dedo a fina camada
de gelo que se formara na janela. Que bela e exacta era a criação! Minuciosa e amorosamente
estabelecida por outra lei imutável, destinada apenas a ser obliterada
por um dedo quente e ocioso! Que objectivo magnificente tinha estado por detrás daquele destino?
Dar a um homem alguns momentos da mais desconfortável procura de
si próprio e da mais desesperante miséria?
"Parece", pensou, "que podemos criar teorias antropomórficas que incidam até sobre o tema da
destruição do cristal de gelo. Um pouco mais, e eu próprio me transformarei
num estúpido e obtuso egoísta!"
Sentia-se quase divertido pela longa corrente dos seus pensamentos, mas apegava-se àquela loucura
como um homem suplica as drogas que lhe aliviem as suas dores,
que ele não ousa sequer enfrentar. Viu o vale lá em baixo, imerso em neve e
silêncio. A corrente dos seus pensamentos mudou de rumo. A população do vale não aumentava, e
aqueles que por ali se iam deixando ficar eram uns miseráveis, vegetando
estagnados. Por quê?
Porque alguns homens, como Alfred, preferiam o status
quo, o estabelecido de há muito, mesmo que isso significasse a
miséria e a degradação eternas de muitos.
Não, não! Era impossível deixar implantar fábricas ali! Isso arruinaria para sempre a velha, a
querida, rica, mas velha Riversend. Além disso essas fábricas dariam
aos homens demasiado dinheiro que depois eles gastariam perdulariamente, em bebidas e jogo, ou,
o que era ainda pior, em melhores casas e melhor comida. Isso torná-los-ia
arrogantes, e a vida, por conseqüência, seria muito menos confortável para aqueles que lhes eram
superiores, por desígnio divino.
Não! Não se podia deixar entrar ali o comércio e a vida. Era impossível expandir a
cidadezinha tão bonita e tão querida! Estavam todos satisfeitos, não estavam?
Se um "lírico" se lamentava de que o povo se estava a afundar na lama do desespero, ou que as
outras cidades em redor se estavam a expandir, ou que a juventude e
a fogosidade da nova geração estava a abandonar o local aos bandos, e que os agricultores lutavam
desesperadamente para manter as suas terras e as suas casas...
ora! Tudo isso não passava da imaginação aborrecida de um homem que gostava de aborrecer os
outros com as suas brincadeiras de mau gosto!
Era inútil apontar aos loucos que assim pensavam que a expansão significava a própria vida da
América. Para isso eles tinham uma resposta:
A América tinha deixado de crescer. Estava agora no processo de amadurecimento e de
conservação.
E então os territórios selvagens a Oeste? Oh! Esses ficariam para sempre a ser o "parque infantil"
dos índios, e os pioneiros eram simplesmente homens sem descanso
que tinham falhado nas suas terras e nas suas casas. O sonho da América? Esse tornara-se realidade,
e o dever dos responsáveis era preservarem essa realidade sob
a forma de bancos e hipotecas e juros agradáveis.
O dedo que lentamente limpara os cristais de gelo do vidro da janela estava agora imóvel. O
objectivo imutável por detrás da inércia. Era esse objectivo o crescimento
e a expansão e a vida apaixonada da América? Se era assim, então porquê? O objectivo imutável
permaneceu silencioso. Mas Jerome, estranhamente, quase que o sentia
expandir-se, inchar por detrás dele, como um poder que se aproximasse, como uma insistência
terrível e sonora.
"Não!", pensou. "Sou um louco. O que é que isso me interessa, afinal?"
Mas aquela força inchava cada vez mais por detrás dele, e ele sentiu-a, apesar do gozo com que se
estudava a si próprio.
Afastou-se, impaciente e nervoso, da janela e voltou a sentar-se Mas continuava a sentir a vibração
daquela força.
Pensou que fomentar tudo aquilo seria um ataque a Alfred, e Alfred era um homem perigoso. Não
via, naquele momento, como é que isso poderia ser feito, mas de certeza
que podia.
Bem, parecia que se um homem não estava disposto a morrer de puro aborrecimento, devia "realizar
qualquer coisa". E isso era motivo mais do que suficiente para ele.
Só não queria pensar demasiado.
Recordou-se de uma conversa que tinha tido uma vez com Mr. Jay Reagan. Tinha tecido largas
considerações sobre o vasto império financeiro de Mr. Reagan, e perguntara,
por fim:
- Mas porquê? Para que serve tudo isso? Para que é que o quer?
E Mr. Reagan respondera-lhe: - Por que o quero.
A resposta não lhe parecia agora assim tão estúpida, embora Jerome tivesse rido a bom rir naquela
altura. Se um homem queria uma coisa e não perdia tempo a especular
sobre os motivos porque o queria, conseguia realizar maravilhas. O único senão era o "porquê".
Mas isso também se podia evitar com facilidade. A maior parte da sabedoria
residia no facto de não se ser demasiado sábio. Um homem podia pensar em demasia até ficar
petrificado, o que era um estado altamente indesejável.
"É preciso ser-se um diabo mais primitivo!", dizia Jerome de si para si, sardónico. "Nem só os
loucos vivem à superfície."
Para seu espanto, imenso e divertido, deu por si a desejar que fosse já segunda-feira e que ele
estivesse naquele momento a caminho do Banco. O Banco era um potencial
apesar dos tentáculos que continuamente cresciam sobre ele, obliterando-o. Podia fazer-se ali
qualquer coisa, qualquer coisa de vital e excitante, dura e exuberante.
O segredo estava fechado dentro dos seus cofres de grades e nas pequenas gavetas bem
aferrolhadas.
"Hei-de falar sobre isso com Jay!", pensou.
O relógio bateu as quatro horas, sincopadas, fatídicas, inexoráveis. Jerome ficou surpreendido.
Durante uma hora não pensara em Amalie e a dor, o ódio e a raiva
tinham-se reduzido a um sofrimento quase suportável.
Foi então que ouviu o tilintar musical de campainhas de trenós e o som de vozes. Alguém bateu à
porta com força, e Jerome escutou os passos sonolentos de uma criada
na escada
das traseiras, depois o abrir de portas, e a aproximação das vozes.
Levantou-se, surpreendido e satisfeito. Se não se enganava, eram asvozes do general e das suas
belas filhas.
Dirigiu-se à sala de entrada para os cumprimentar.
- Olá! - exclamou o general, enquanto se libertava do casaco. - Ora aí estás tu! Pensei que vocês
tivessem ficado todos soterrados na neve, e viemos salvá-los,
em boa caridade cristã. Não é verdade, queridas?
Dirigiu a última pergunta a Josephine e Sally, que alisavam os folhos das mangas, sacudiam as saias
e discretamente ajeitavam os seios.
- Estou imensamente satisfeito por o ver! - disse Jerome, com um prazer jenuíno.
Ele e o general apertaram-se as mãos com firmeza e sorriram um para o outro. Jerome curvou-se
depois diante das senhoras.
Sally fez tilintar as pulseiras que lhe ornamentavam os pulsos, rolou os olhos nas órbitas, corou, e
depois baixou os olhos fixando-os obstinadamente nas pontas
das botas. Josephine sorriu ligeiramente, e o espírito perspicaz e observador de Jerome disse-lhe que
aquele sorriso tinha sido forçado. Como habitualmente, a rapariga
ficou silenciosa, grave e reservada, mas o seu rosto delicado e clássico estava muito pálido e sem
vida.
O general reparou no olhar de Jerome, e disse:
- Pensei que alegraria as raparigas trazê-las para a tua brilhante companhia, velhaco! Especialmente
Josephine. Anda com os vapores, não é verdade, querida?
Pôs o braço em redor dos ombros da rapariga, mas quando olhou para a filha havia ansiedade no seu
olhar.
Josephine libertou-se do braço do pai, mas lançou-lhe um rápido olhar onde se lia uma afeição
profunda.
- É o Inverno, papá! - murmurou. - Eu não gosto do Inverno.
- Oh, ela foi sempre uma flor de estufa! - exclamou o general, arrastando as raparigas com ele na
direcção da biblioteca. - Mas aqui a minha pequena Sally é uma
jovem robusta. Adora patinar no gelo e passear por aí em sapatos de neve. E desliza nos trenós
quase indecorosamente.
Detendo-se junto à lareira, ainda com as filhas apertadas contra si, perguntou:
- Porque é que que não casas com ela, Jerome? Vão, com a encomenda, cem mil dólares... "pagos
na altura da entrega!".
Sally corou violentamente, mas os olhos cintilaram-lhe por debaixo das pestanas. Jerome gargalhou,
e olhou para Sally com
interesse. Ela era uma visão encantadora, envolta no seu vestido de veludo e lã vermelha, de corpete
justo. Viu-lhe as faces rosadas e brilhantes, firmes como uma
maçã.
- É possível que Miss Sally tenha os seus próprios planos!
- disse ele. - Afinal de contas, ela é muito jovem, e eu já sou quase um velho.
- Que disparate! - disse o general, vigorosamente. Treze... catorze anos de diferença. O que é isso?
Eu era dezoito anos mais velho do que a minha Jerusha... e na
realidade ela é que era muito mais velha do que eu. Ah! Ah! Ah!
Ajudou as filhas a sentarem-se, com uma cortesia fora de moda. Josephine, suspirando levemente,
recostou-se na sua cadeira, como que desmaiando, e olhou o fogo da
lareira. Mas nem aquela luz rosada conseguia alegrar-lhe as faces, nem emprestar um raio mais
luminoso aos seus olhos tristes e apagados, embora fizesse cintilar
como ouro velho o seu cabelo castanho-claro.
O general continuou de pé, com Jerome, junto à lareira, mantendo firmemente afastadas as suas
longas pernas de soldado.
Fazendo um gesto na direcção de Sally, continuou:
- Sim, cem mil dólares contra a entrega. E metad da minha propriedade, quando eu bater as botas.
Que belo pedaço para qualquer homem, para já não falar da...
Jerome interrompeu-o, rápido e subtil, para evitar que o rubor aumentasse ainda mais no rosto de
Sally, embora, para falar verdade, a jovem não mostrasse indícios
que a conversa lhe estava a desagradar.
- Miss Sally e eu temos muitas coisas em comum, e tenho esperanças de poder aprofundar o nosso
conhecimento mútuo num futuro próximo. Se conseguir obter o seu consentimento,
claro...!
E inclinou-se de novo diante da rapariga. Ela olhou-o do fundo da cadeira onde estava sentada,
como uma gatinha amimada mas atrevida, corou e tossicou ao de leve.
Jerome observou-lhe o rosto inteligente, mesmo muito bonito e... cem mil dólares assim de pé para
a mão não era coisa que se desprezasse. Além disso, se é que ele
entendia qualquer coisa de mulheres, havia promessas de excitante prazer naquele corpo franzino e
palpitante. Sally não era nenhuma ameixa seca, não. Tinha vida,
juventude, alegria e... desejos de dare receber em troca.
Sentou-se junto dela, facto que não pareceu aborrecê-la de maneira nenhuma. O general deixou-se
ficar junto à lareira. Aceitou um dos charutos de Jerome e olhou,
com prazer não dissimulado, para a garrafa de uísque. Serviu-se de uma quantidade
mais do que generosa e bebeu o líqüido com uma voracidade prodigiosa.
- Onde é que está o William? - perguntou, lambendo os lábios. - Um bom uísque, este. Onde é que
está o William, hem?
- O meu pai está a descansar no quarto. Devo chamá-lo? E a minha irmã também? Decerto ficará
contente por ver as jovens senhoras!
- Deixa lá. Assim podemos ter uns momentos só para nós. Nunca te consigo ver sozinho! - disse o
general, num tom de lamento. - E olha que já não vou àquele lugar
infernal há dez anos! Oh! Oh! Oh!
As gargalhadas saíram-lhe guturais, em catadupas.
- "Dou-lhe um dia... três dias no máximo", disse eu às raparigas, "e ele estará a correr de regresso a
Nova Iorque, com o rabo entre as pernas!" Mas, em vez disso,
aí continuas tu, pelos vistos bem apegado à tua idéia fixa. Qual foi a atracção, hem?
E os seus olhos perspicazes fixaram-se, jocosos e mordazes, em Jerome. Este sorriu, e respondeu:
- Um certo número de coisas, todas muito maçadoras, suponho. Além disso, não tenho mais nenhum
lugar para onde ir.
Ergueu-se, dirigiu-se à sala de jantar e trouxe uma artística garrafa de cristal, com xerês, e dois
pequenos copos para as jovens. Josephine recusou o seu, com um
sorriso quase inexistente, mas Sally aceitou avidamente o copo que Jerome lhe estendeu. Os dois
homens voltaram a encher os seus copos e fizeram brinde às duas senhoras.
Sally ergueu o braço bem alto, e os folhos que o cobriam deslizaram para trás revelando o seu
contorno suave, tão delicado como uma peça de porcelana de Dresden.
Jerome notou-lhe as covinhas do cotovelo, e sentiu-se assaltado por uma vontade irresistível de as
beijar. Sally pareceu ter-lhe adivinhado os pensamentos, pois
manteve-se de braço erguido durante longo tempo, enquanto lhe lançava o olhar faiscante.
- O que é que tens andado a fazer enquanto toda a gente dorme nesta casa? - perguntou o general,
sentindo o quente e silencioso peso de todas as salas fechando-se,
mole, em seu redor. - Bonita vida esta, para um patifório tão activo como tu.
- Tenho estado a pensar! - retorquiu Jerome, centrando a sua atenção no general e sentindo como
que um súbito assomo de excitação. - Gostaria de lhe dizer em que
é que eu estive apensar mas... talvez mais tarde!
- E porque não agora? - perguntou o general, vigorosamente. - É melhor conversarmos agora, antes
que os outros
venham aos atropelos pelas escadas abaixo para nos oferecerem o chá! Já te disse que ficávamos
para o chá? Pois ficamos.
Jerome baixou os olhos para o copo que segurava entre as mãos e sorriu.
- Posso dizer-lhe, general, que também eu tenho andado com... os vapores. Tenho andado a pensar...
Interrompeu-se bruscamente.
- Mau negócio esse do pensar - ripostou o general. - Já desisti de o fazer há muitos anos. É horrível
para a digestão. Dá volta aos intestinos. Se começamos a pensar
demasiado, acabamos por cortar a garganta ou por nos transformarmos em pessoas intratáveis. É
bem melhor evitar tudo isso. Bem... mas em que é que tu estiveste a
pensar? - perguntou, áspero.
Ergueu as longas abas cinzentas do seu casaco, sentou-se, cruzou as pernas e ergueu as sobrancelhas
brancas, num gesto de muda interrogação.
Jerome hesitou.
- Parece tudo muito nebuloso, agora, quando penso nisso em retrospectiva, mas era tudo muito vivo
e pertinente ainda há pouco. Como um sonho. Mas... há uns certos
resíduos.
Inclinou-se para o general, que o observava, interessado.
- Comecei por pensar na guerra. Evidentemente, nunca acreditei no bravo mundo novo que nos
tinha sido prometido. Ora, o meu mundo, o meu mundozinho particular, era
bem corajoso e vivo e novo, e preferia não o alterar. No entanto, milhões de pessoas acreditaram.
Liberdade, novas oportunidades para todos os homens, um novo nascimento
da vida e da esperança! A geração mais nova, dizia-se, haveria de revolucionar o mundo. Tinha
coragem, força e determinação. Os mais velhos tinham errado, na sua
estupidez medieval e senil. Mas os jovens... esses haveriam de trazer com eles a regeneração.
Calou-se e sorriu, embaraçado.
- E agora, que temos nós? Temos os demónios da reconstrução. Temos o pânico, o terror, a pobreza
e o desespero. O bravo mundo novo nem chegou a aparecer. E o pior
é que o velho está a desfazer-se em pedaços.
Fez-se um silêncio profundo. O general acariciou o seu longo nariz, pensativamente, e olhou para a
lareira. Por fim, começou a falar, com voz pausada e pensativa:
- Quando eu era novo, houve uma guerra. Havia sempre uma guerra nesse tempo, aqui ou ali, ou
contra os ingleses ou contra os índios. E de cada vez nos prometiam
que as coisas seriam melhores depois da guerra, mais felizes e gloriosas. Quem é que nos fazia
semelhantes promessas? Não creio que fosse o nosso governo ou os nossos
chefes. Acho, até, que
éramos nós próprios. Mas clamávamos sempre contra o governo, acusávamos os chefes, depois,
quando o mundo se afundava exactamente no mesmo estado de coisas, como
antes da guerra.
Bebeu de novo, e começou a sorrir, num esgar irónico.
- Lembro-me de ter dito uma vez a meu pai: "Vocês, os velhos, fizeram um mundo estragado. Nós,
os jovens, haveremos de o mudar. Colocaremos as coisas no seu devido
lugar e não admitiremos interferências. Somos jovens e fortes, temos coragem, e há um sonho a
concretizar!"
Voltou a acariciar o nariz e sorriu, sardónico.
- Diabos me levem se aquele sonho não me parecia real. Mas esqueci-me do que era!
Após alguns momentos de pausa, em que parecia tentar lembrar-se, continuou:
- No entanto, lembro-me com bastante clareza de ter dito aquelas coisas ridículas a meu pai, que era
um cavalheiro muito digno e raramente sorria. Mas, nessa altura,
curiosamente, ele sorriu. Sorriu, e disse-me: "É bom, ter um sonho. Eu também os tive, quando era
novo. E lembro-me muito particularmente de ter dito ao meu pai
essas
coisas que me estás a dizer agora. E sem dúvida que ele disse também o mesmo ao pai dele. Os
jovens acusam sempre os mais velhos, que, por sua vez, acusaram tambem
os outros mais velhos, que, por sua vez, acusaram também os outros mais velhos. Ninguém aceita a
responsabilidade por si próprio. Ninguém parece compreender
que as revoluções nos homens não ocorrem com uma simples guerra ou uma simples convulsão ou
simplesmente commem. É impossível. Mas, apesar de tudo, não nos conseguimos
libertar da nossa estúpida tendência para esperarmos milagres.
O general soltou uma risadinha; mas o seu rosto vigoroso estava invulgarmente compenetrado e
pensativo. Esfregou o queixo, num gesto quase automático, e continuou:
E - O pior de tudo é que não me consigo lembrar do que é que tratava o sonho... o sonho que eu
tinha. Mas digo-te que era um bom sonho. Deve ter sido, pelo menos,
pois agüentava-me no combate. Sim, o meu pai referiu-se ao sonho dele, também. Ele esteve em
Washington em Walley Forge. Perdeu um braço. Mas não me lembro de ele
ter alguma vez dito que a nova nação era, nos seus aspectos essenciais, muito diferente do que era
sob as ordens do velho George. Continuaram os mesmos velhos abusos
do poder, a mesma antiga opressão dos não conformistas, as mesmas velhas intrigas.
Os olhos tornaram-se-lhe mais vivos. Endireitou-se na cadeira e disse ainda:
- Diabos me levem! É uma coisa estranha. Parece até que, aos olhos de um verme, o homem nunca
mudou, e os seus sonhos também não. Os seus sonhos de liberdade, fortuna
e paz. Não, diz o verme, o homem continua na mesma. E os seus sonhos também. Uma coisa muito,
muito estranha. Quem foi que deu ao homem os seus sonhos? Como é que
eles foram concebidos, no seu estado de pecado original, a sua avidez, a sua voracidade, a sua
crueldade e a sua loucura? Diabos me levem, estou a tornar-me num
místico, num idealista! Não tarda muito que não esteja para aí a cantar hinos!
Deixou que Jerome lhe enchesse de novo o copo e bebeu o líqüido de um golo só. Sally brincava
com os folhos. Josephine continuava de olhos fixos no lume, no seu
transe de tristeza muda. Era evidente que Sally estava impaciente com aquela conversa
extremamente invulgar. Mas Jerome inclinava-se de novo para o general, completamente
absorto.
E o general, profundamente inspirado, continuava:
- O nosso ponto de vista é o ponto de vista de um verme. Esperamos que a paisagem mude da noite
para o dia. Isso nunca acontece e por isso o verme-homem acaba por
se convencer de que ela permanecerá eternamente na mesma. Porém... isso não é bem assim. Num
período de cem, duzentos anos, o padrão alterou-se. O nível da miséria
e desespero humanos subiu um centímetro ou dois. Vemos isso em retrospectiva. Vemos isso nos
séculos que já passaram. Mas a base em que agora nos encontramos parece
fixa para sempre, incapaz de qualquer mudança. Os nossos filhos rir-se-ão de nós. Os nossos netos
dir-nos-ão, com verdade: "Avançámos muito, desde o século dezanove!"
E os netos dos nossos netos dirão: "Nós mudamos o mundo a partir do século vinte!"
"É só o verme que continua a afirmar, convencido, de que nada se transfigura, nada se altera, nada
se torna melhor. Mas também o verme tem uma vida tão curta, e
o seu ponto no tempo e no espaço é tão infinitesimal! As mudanças levam tempo, e as correntes não
podem ser empurradas, por mais que o verme reze e se queixe, e
denuncie e acuse os pais de lentidão, cegueira e estupidez."
Recostou-se na cadeira e sorriu maliciosamente para Jerome.
- com que então, tu tens estado a lamentar-te, tu... homem-verme!?
Jerome riu-se.
- De certa maneira, sim. Mas o meu lamento é de que nada vale a pena, quer haja mudanças quer
não. Tenho estado a persuadir-me a mim próprio a não pensar nisso.
Tenho estado a
tentar acreditar que tenho de viver à superfície das coisas e não meditar em demasia.
- Um pensamento excelente. Se começamos a olhar para trás e a reflectir que tudo é estúpido e
vazio, transformamo-nos em sal. Por exemplo, tens estado a pensar...
ou não tens?... como é que tu, pessoalmente, poderias ajudar a mudar as coisas?
Jerome ergueu os olhos, surpreendido. O general gargalhou.
- Bem me queria parecer. bom, então nesse caso, faz qualquer coisa para que tudo isto mude. Há
uma certa satisfação em flectir os músculos, quer eles sejam do cérebro
ou do corpo. Só tens de evitar um pensamento fatal: "Quem se importa" e "porquê".
Completamente perplexo, mas apaixonadamente interessado, Jerome perguntou:
- Quer dizer que devíamos ter uma visão antropomórfica de tudo?
- E porque não? - perguntou por sua vez o general, vigorosamente. - Esse é um padrão. Sem dúvida
que o pássaro tem a sua visão de pássaro, e o gado nos estábulos
está convencido de que a Criação foi concebida para seu benefício pessoal. Talvez todos tenham
razão. Existem milhares de mundos dentro de um mundo, rodas dentro
de outras rodas. E cada uma delas é essencial.
Depois, abruptamente perguntou:
- O que é que tu querias mudar?
Sally estava a bocejar, remexendo descontente nos folhos. Josephine continuava mergulhada na sua
tristeza dolorosa; uma lágrima deslizou-lhe silenciosamente pela
face. Mas... os dois homens não viam nada, não se apercebiam de nada, nem sequer se lembravam
da presença das duas jovens.
Cautelosamente, disse Jerome, fixando o general:
- Há alturas em que um homem é impelido a instingar a mudança para não morrer de
aborrecimento.
O general pareceu meditar nas palavras que ouvira. Depois, começou a sorrir. Levou um dedo a
uma das asas do nariz e olhou fixamente para Jerome.
- Eu - disse ele, por fim - achei que certas coisas eram entediantes durante muito tempo. Elas não
me traziam interesse suficiente.
Ouviram-se passos na escada. Dorothea entrou, envolta no seu vestido de bombazina preta. Os
homens ergueram-se, quase de um salto. Ela ignorou Jerome, mas concedeu
ao general um sorriso cerimonioso e aceitou os beijos das jovens. Galantemente, o general
conduziu-a a uma cadeira.
- Minha querida Dorothea! - exclamou ele. - Espero que não a tivéssemos incomodado com a nossa
conversa!
- De maneira nenhuma, general! Não ouvi nada senão quando desci.
Soltou um suspiro, deitou às jovens um olhar pensativo e disse:
- Como se devem sentir mal com este tempo, minhas queridas.
Mas o general apressou-se a responder:
- Sally está a passar um tempo esplêndido. Adora esvoaçar por aí, como os pássaros. Patina como o
vento. Mas tem umas pernas excelentes, e gosta de excitar os cavalheiros
mais jovens.
- Papá! - exclamou Sally, corando, mas na verdade indecorosamente agradada.
Josephine sorriu, lânguida, e levou o lenço aos lábios. Aboca repuxada de Dorothea fechou-se ainda
mais. Voltou-se, majestosa, para Josephine, e disse:
- Estás muito pálida, meu amor!
- Josephine achou as festas do casamento um pouco cansativas de mais - explicou o general. - Ela
tem uma constituição delicada. Tenciono, até, levá-la para Saratoga,
para as águas.
- Não! - exclamou Josephine, com uma veemência involuntária, quase erguendo-se na cadeira.
Depois, voltou a recostar-se, e disse ainda, em jeito de desculpa:
- Não quero sair de casa, papá. Já lhe disse isso ontem à noite.
O general observou-a, pensativo.
- A rapariga parece estar doente de amor, não parece? Quem é que, entre os nossos amigos, merece
os favores da sua afeição?
Josephine corou, febrilmente. Os olhos ficaram-lhe inundados de lágrimas. Soergueu-se da cadeira,
e depois deixou-se cair para trás.
- Não pode ser Jerome, pois não? - perguntou o general, interessado. - Se for, é um disparate.
Tenciono reservá-lo para a Sally. Além disso, Sally é a mais velha,
e deve casar primeiro do que a irmã.
- Papá! - exclamou Sally.
Josephine retemera-se de novo ao silêncio, parecendo nada ouvir, nem ver.
Dorothea olhou atentamente para Sally, e pela primeira vez uma expressão de esperançoso alívio
lhe quebrou as faces rígidas. O seu olhar furtivo passou depois para
Jerome. Este sorria
para Sally, inclinando a cabeça na sua direcção. Tinha começado a murmurar umas palavras
inaudíveis, e Sally escutava-o com os olhos baixos e as faces brilhantes
de prazer.
Num tom de voz quase festivo, tão pouco habitual nela, Dorothea disse:
- O papá vai descer dentro de pouco tempo. Ficará para o chá, general?
- Tenciono ficar! - respondeu ele.
Dorothea virou-se depois para Jerome e disse-lhe, quase com um acento amável na voz:
- Jerome, queres fazer o favor de tocar a campainha? Eu vou imediatamente dizer ao papá que o
nosso querido general está aqui, com as suas jovens filhas.
Mr. Lindsey desceu, passado pouco tempo, acompanhado de Philip, que lhe segurava
carinhosamente no braço. Na confusão efusiva de cumprimentos e amabilidades, o general
sussurrou ainda a Jerome.
- A propósito dessa tua mudança: não há nada que seja impossível, se não for demasiado ilegítimo, e
se a multa for mais ou menos respeitada.
Depois, em voz alta, anunciou:
- William, estou muito satisfeito com o teu filho! Sabias que ele vai casar com a minha filha Sally?
Capítulo décimo oitavo
Jerome recordou-se de uma frase de Carlyle, que dissera: "A pólvora tornou os homens da mesma
altura." Mas Jerome juntou, com base nas suas experiências recentes:
"No entanto, a uniformidade reduz os homens a pigmeus." Como desconfiava de si próprio quase
tanto como desconfiava dos outros, e encarava sempre com cepticismo
os seus próprios epigramas e conclusões impulsivas, foi com certo cuidado que se permitiu acreditar
que a uniformidade se estava a estender a toda a América. Foi
só quando começou a juntar um belo grupo de nódoas negras na sua mente que se apercebeu de que
parecia haver um esforço sombrio e colectivo para reduzir a vida dos
Americanos a uma uniformidade cinzenta e obscura, não só na maneira de pensar, mas também na
economia, na indústria e na vida social, bem como ainda na política
e nos costumes. Os homens não eram todos da mesma altura, mas a sua estatura estava a reduzir-se
substancialmente.
Ele, que raramente permitia que as suas emoções se envolvessem no que quer que fosse, e que
amava o trivial com uma espécie de autodefesa, viu-se de repente emocionado
e furiosamente revoltado.
Detinha-se por vezes, cinicamente, o tempo suficiente para reflectir que aquela era a sua única e
efervescente experiência, e de modo nenhum desagradável. Parecia-lhe
que havia uma conjura universal contra a primitiva diversidade e variedade da vida americana. Era
como uma corrente de lava cinzenta, abominável e ininterrupta,
que se espraiava sobre os vinhedos férteis e verdejantes e as cidadezinhas coloridas do mundo
americano. O tumulto e a cor, a grandeza incomparável e a vitalidade
ofuscante, o carácter imprevisível, tempestuoso e exuberante do povo americano, estava a ser
sistematicamente apagado, amordaçado, como o sol é por vezes obliterado
por um nevoeiro impenetrável. E o pior de tudo é que aquilo parecia deliberado e premeditado.
Mas porquê tudo aquilo? O que tinha acontecido aos felizes amantes de brigas, aos aventureiros,
aos rostos vivos e tisnados pelo sol, aos homens risonhos que tinham
movido montanhas com as suas próprias mãos, a sua coragem e a sua força, que tinham explorado
fronteiras e coroado um mundo novo com o seu esplendor vigoroso? Como
guerreiros, eles tinham usado os seus elmos chamejantes de sol, tinham espetado as suas lanças e os
seus escudos na crista das montanhas selvagens e tinham lançado
os seus gritos de vitória no ar fresco das manhãs sem névoas.
Mas agora, os nevoeiros hirsutos tinham inundado essas mesmas cristas e o guerreiro não era mais
do que um fantasma nebuloso, movendo-se numa soturnidade crepuscular.
Embora incrédulo a princípio, Jerome chegou à conclusão de que tudo aquilo tinha sido, na verdade,
deliberadamente planeado. E começou a ver por quem e porquê.
Um exército conquistara e abrira o novo território. Mas, inevitavelmente, parecia que esse exército
fora seguido por fileiras intermináveis de formigas, formigas
que tomavam as mais diversas formas: exploradores, aqueles que amavam o estabelecido, a ordem,
o status quo, homens-insectos que detestavam, por puro instinto, a
vitalidade e o barulho, a aventura e a excitação. Havia alguns, entre eles, que se chamavam a si
próprios de "construtores". Sim, em certa medida eram, na verdade,
construtores. Mas à grande maioria deles faltava imaginação. E a intenção de todos, pré-
determinada, deliberada, era reduzir a vida a simples mecanismos.
Devia haver ordem, diziam eles. Devia haver ordem e estabilidade,
para defesa e proveito dos homens-formigas. A civilização exigia uma sociedade regular,
administrada não pela alegria, pela esperança e pelo entusiasmo,
mas por leis rígidas. As cidades deviam ser rodeadas de muros. Os jardins selvagens deviam ser
substituídos por montes de feno. As pessoas não deviam ser governadas
pelo sol, mas pelo relógio. O riso e o prazer, a paixão e a aventura eram coisas imorais, porque
contribuíam
pouco para as fábricas, para os bancos, para a construção
de cidades de pedra sem luz, e para os lucros que daí resultavam.
Porque eram eles tão potentes? Como podiam eles reduzir, tão facilmente, o alegre e livre animal
humano a um escravo cego que arrastava atrás de si, quase de bom
grado, as suas grilhetas? Seria porque eram tão piedosos e tão persistentes? Seria porque a sua ânsia
era fazerem dinheiro, criarem dinheiro a partir do caos de
homens vivos, e o dinheiro era tão poderoso? Seria porque tinham conseguido transformar esse
dinheiro numa potência e, calmamente, com instintos assassinos, tinham
criado uma sociedade escondida nos recônditos da Lua, onde apenas o obscuro homem com fortuna
era capaz de sobreviver... às costas de homens que eram mais sábios
mas menos aventureiros, e que se expunham ao sol?
Jerome apercebeu-se de que uma batalha infindável existia sempre entre o homem cinzento que
ansiava apenas por uma vida de poder, ainda que sem vida, e o homem cujo
único desejo era essa própria vida. Tinha, no entanto, a clareza suficiente para entender que os
homens cinzentos tinham o seu lugar necessário na sociedade. Mas
não eram eles os únicos que contavam.
Tal como o caos selvagem e clamoroso era a atmosfera inevitável do aventureiro, também a morte
na vida e a miséria e
exploração opressivas eram a atmosfera inevitável do "cons-
trutor". Cada um deles tinha o seu lugar no mundo. Mas era necessário que nenhum deles usurpasse
completamente o lugar do outro. Era necessário o equilíbrio. Era
imperativo um meio-caminho, ou então o homem tornava-se ou uma besta animal ou um demónio
sombrio acocorado por detrás das portas dos
bancos.
"Estou a ficar encantado com a moderação!", pensou ele para si próprio, divertido.
Mas era sem divertimento algum que ele odiava o homem-formiga, que tinha um vale bancário em
vez do cérebro, e vivia sem alegria, sem piedade e sem paixão.
Se o homem-formiga tinha qualquer paixão, era a paixão pela uniformidade. Se ele conseguisse
impor a uniformidade, e a irmã desta, a docilidade, aos outros homens,
a sua própria
posição ficaria segura, e, em paz e tranqüilidade, poderia continuar a encher as suas celulazinhas de
lucros. Sabia que não tinha capacidade para entrar em competições
de beleza e glória, e por isso tentava destruí-las sistematicamente. Na presença delas, sentia-se
impotente e revelava toda a sua fealdade e a sua gélida mediocridade.
Jerome tinha consciência de que a América chegara à idade das máquinas.
Não chegara a esta conclusão quase psíquica por si próprio, porque nunca se apercebera da intrusão
da máquina, quer na sua própria vida quer na vida dos seus amigos.
Os seus companheiros sociais estavam singularmente inconscientes de qualquer suspeita de que o
maravilhoso mundo que os rodeava estava ameaçado pela contínua aglomeração
de mecânicos. Se qualquer nova máquina aparecia, em grandes títulos, na imprensa, dizendo-se
acerca dela que só por si faria o trabalho de cem homens, precisando
apenas de ser dirigida por um único homem, eles limitavam-se a murmurar:
- Que absurdo!
No entanto, um dos amigos de Jerome, abençoado ou amaldiçoado com uma imaginação mais fértil
do que os outros, tinha observado, com preocupação:
- Se as máquinas conseguem fazer muitas coisas num reduzido espaço de tempo, então em breve
elas as farão também mais baratas; nessa altura, nem no guarda-roupa
ou nos costumes, nos livros ou nas mobílias será possível distinguir entre o verdadeiro cavalheiro e
o plebeu.
Aquela idéia chocara Jerome, embora sem razão aparente. Permanecera dentro dele, e chegou
mesmo a discuti-la durante um agradável serão que passara com o seu amigo,
Mr. Jay Reagan. Jerome tinha ridicularizado aquela idéia, mas reparara que os olhos inteligentes de
Mr. Reagan tinham começado a reluzir de excitação. Dissera ele,
nessa altura:
- A completa industrialização da América já começou. Foi a guerra que lhe deu o impulso inicial.
Há qualquer coisa de misterioso neste movimento. Se a América tem
de crescer e de se expandir pelos seus vastos territórios, então a mão-de-obra tem de ser
acompanhada e completada pela máquina. É uma questão de vida ou de morte
para a América. A máquina é o seu Messias particular; sem ela, a América continuará a ser um
pequeno ponto de civilização no meio de uma imensidão selvagem e inóspita.
A necessidade foi sempre a mãe da invenção, e a máquina é a necessidade da América, e os
mecânicos tornar-se-ão, ou melhor, deverão tornar-se a própria vida deste
país.
Jerome respondera, então, sardonicamente àquela observação do amigo:
- Que absurdo!
- Não, não é absurdo! - exclamara Mr. Reagan. - Pelo contrário, é, até, extremamente excitante!
Pense só na enorme produção dos mais variados produtos, no crescimento
dos mercados mundiais, na expansão, na riqueza! Passaremos de uma posição quase indefesa e
ridícula, dentro da família das nações, para um lugar bastante mais poderoso,
de chefe de políticas. E tudo isso através da máquina.
Jerome ficara, apesar de tudo, interessado. Tivera, até, uma inspiração.
- Mas a mecânica imposta à vida matará a importância do indivíduo. Ele passará a ser regulado pelo
relógio, e eu sempre tive uma singular aversão por relógios.
Mr. Regan parecera reflectir naquela observação, com um forte relampejar dos seus olhos
hipnóticos. Depois dissera, lentamente:
- Sim, compreendo. Subordinados à máquina, os Americanos poderão tornar-se inertes e mecânicos,
servos e não donos dessas mesmas máquinas. Mas isso deverá ser combatido
por aqueles que possuam uma certa visão das realidades. A humanidade tende para o absurdo e para
a inércia, porque ela é mais fácil do que a actividade. A inércia
é o estado natural de todas as coisas e só é perturbada, e então violentamente, pelas convulsões
externas e internas. Será aconselhável que as gerações futuras nãos
transformem a máquina num ídolo dourado, mas que a controlem. Será necessário declarar guerra a
qualquer sistema de vida que subordine o indivíduo ao serviço de
qualquer coisa ou de qualquer idéia, por mais sedutora e fácil que ela possa parecer. A uniformidade
é sempre sinónimo de morte seja no que for. Não há nada tão
uniforme como um cemitério.
O velho Jay tinha razão. A humanidade tendia cada vez mais para a uniformidade. Salvava-se o
esforço e o ardor individuais. Os patrões aproveitavam-se desta tendência
natural da natureza humana, e os homens, de uma maneira geral, preferiam obedecer a mandar. Por
exemplo, a velha religião dos "peregrinos" do serviço a Deus tinha
sido suplantada pelo serviço ao dinheiro, e serviam este último com igual, senão maior, dedicação.
A expansão da moral e da dignidade dos homens, tão ardentemente
amada pelos Pais Fundadores, tinha sido reduzida à expansão do poder individual e à degradação de
vastas massas da humanidade perante o serviço daquele poder.
Jerome sentiu que um ódio violento o invadia. Via à sua frente o rosto de Alfred. Não era que ele se
preocupasse muito
com a degradação dos seus semelhantes ao serviço da luxúria de alguns. Mas sentia a sua própria
dignidade e potencialidade, como indivíduo, ameaçadas por essa luxúria.
Sentia-se, ele próprio, atirado para a voragem, martelado por ferramentas de ferro e transformado
numa massa informe que servia aos outros e não a ele próprio.
Maravilhava-se perante o antigo paradoxo de que se um homem se quer salvar a si mesmo, deve
primeiro salvar os outros. Se ele queria proteger-se a si próprio, deveria
construir uma armadura suficientemente forte para os seus concidadãos.
No microcosmos, então, o que estava a acontecerem Riversend, estava a acontecer em toda a
América. Jerome gozava aquele seu ódio apaixonadamente, porque o objecto
do seu ódio tinha sido sempre odiado: uniformidade, indiferença, desespero, e a estúpida marcha
dos dias uns atrás dos outros. Sempre o evitara, fazendo a sua fuga
individual, e acreditando que a sua atitude poderia afastar de si todo aquele horror. Mas agora via
que esse mesmo horror se estava a espalhar, como nevoeiro cinzento,
por toda a América, e que não conseguia escapar dele. Ele estava em todo o lado.
As três ou quatro semanas durante as quais Alfred esteve fora tornaram-se para Jerome um período
de febril actividade. Chegava ao Banco às oito horas da manhã. Exigia
que lhe mostrassem todos os livros. Lia registos atrás de registos, relatórios atrás de relatórios,
processos de correspondência. Via agora, com toda a clareza,
que Alfred e muitos dos seus amigos tinham recusado que um fabricante de utensílios agrícolas
comprasse um pedaço de terreno, sobre o qual o Banco detinha hipotecas,
perto dos arredores de Riversend, onde ele desejava construir uma fábrica.
Após a primeira recusa de Alfred, o fabricante dirigira-lhe pedidos eloqüentes. Toda a comunidade
enriqueceria, dizia ele, não compreendendo de maneira nenhuma os
motivos que levavam Alfred Lindsey àquela recusa absurda mas peremptória. A matéria bruta
necessária encontrava-se nas proximidades de Riversend ou na Pensilvânia.
O fabricante descrevera os seus planos segundo os quais novos trabalhadores se iriam juntar à
população da cidade; construiria uma comunidade de pequenas casas perto
da fábrica que dariam aos carpinteiros locais e outros um trabalho considerável. No entanto Jerome
visualizava essas casas no seu espírito: uma massa disforme de
horrorosas cabanas que se espalhariam pelas vertentes das colinas. Tinha
ouvido algures dizer que a expansão resultava inevitavelmente em cicatrizes desse género. Todavia,
perguntava a si próprio se isso seria forçosamente verdade.
Contudo, Alfred permitira-se fechar uma pequena quinta onde o caminho-de-ferro local se propunha
construir as suas oficinas. E isso sem contar com o facto de que
a viúva Kingsley, o general Tayntor e alguns outros tivessem comprado partes consideráveis de
terreno ao longo da parcela desejada pelo fabricante. Jerome leu as
perguntas feitas por Alfred aos seus amigos e as respostas evasivas que eles lhes tinham dado. Leu
igualmente um relatório feito por Alfred, evasivo também e obscuro,
dirigido a todos eles (redigido em frases profundament ambíguas) e segundo o qual ele próprio,
pessoalmente, possuía a terra onde o caminho-de-ferro poderia construir
um armazém numa altura qualquer. As senhoras e os cavalheiros a quem aquele relatório tinha sido
enviado tinham-lhe respondido em frases que traduziam uma perplexidade
inocente. Porque é que eles se deviam interessar por um armazém do caminho-de-ferro?
Jerome andava tão embrenhado no estudo de tudo aquilo que raramente chegava a casa a horas para
o jantar. E mesmo nessa altura levava para o seu quarto livros e
registos que lia, incansavelmente, até muito tarde. Mr. Jamison andava aterrorizado, sem saber o
que é que Mr. Jerome "andava a preparar". Mas suspeitava bem que
todo aquele frenesim não traria muita paz e conforto para o Banco.
Dorothea, observando aquela incrível manifestação de energia por parte do seu irmão, pensava para
si própria com amarga e apaixonada indignação:
"Ele está a tentar destruir Alfred. Está a tentar armar-se em importante, para criar nome. Está a
tentar influenciar o papá, hipocritamente, porque na realidade
ele não tem o mínimo interesse pelas coisas do Banco."
Não podia adivinhar que, como era habitual, o interesse de Jerome era apenas por si próprio.
Mr. Lindsey, apesar de toda a sua doença e de fazer uma vida retirada, sabia no entanto que
qualquer coisa estava para acontecer, sem se atrever, contudo, a falar
disso ao filho. Tinha-se retirado, havia muito tempo, de uma participação activa nas actividades do
Banco, e declarava muitas vezes que já não se interessava por
elas; mas não podia deixar de sentir as radiações daquela intensa energia que emanavam de Jerome,
e embora se sentisse agradado e ao mesmo tempo divertido, sentia-se
também pouco à vontade. Desejava que Jerome lhe contasse o que lhe passava pelo espírito. Mas
sentia um certo receio de lho pedir e adivinhava que Jerome se tornara
pouco comunicativo e não
satisfaria aquele seu desejo. Apesar de tudo, uma idéia começava a ganhar forma no seu espírito, e
uma pergunta constante começara a martelar-lhe o cérebro:
"Será realmente possível que Jerome se esteja a interessar pelo Banco? Estará ele a ganhar gosto
por tudo aquilo? Se assim for, eu devia consultar..."
O homem que ele queria consultar não era Alfred.
Sabia perfeitamente quais os livros e registos que Jerome trazia todos os dias debaixo do braço e os
motivos que mantinham o filho fora de casa todo o dia.
Jim, o criado de Jerome, andava perplexo com a mudança tão radical que observava no amo. Muitas
vezes, quando lhe trazia a bandeja com o pequeno-almoço, já Jerome
se tinha ido embora. Na verdade, Jerome saía de casa antes que qualquer actividade ali começasse.
O amo estava a tornar-se descuidado com o que vestia. Bebia mais
do que nunca e comia enormidades como ele nunca tinha visto. Via-o, à noite, andar de um lado
para o outro nos caminhos cobertos de neve em redor de Hilltop, de
cabeça inclinada, magicando, sem prestar atenção a coisa nenhuma, nem mesmo aos ganidos do
pequeno Charlie que saltitava diante dos seus pés. O rosto de Jerome adquiria
a pouco e pouco uma cor extremamente saudável, apesar de toda aquela actividade esfusiante, e
parecia menos magro. Além disso, havia nele uma atitude, uma energia
física, uma força completamente diferentes daquela languidez elegante e daquela indiferença cínica
que toda a vida tinham sido seu apanágio.
Quando, uma vez ou outra, Jerome encontrava o pai à hora do jantar, a sua conversa era sempre
intensa mas superficial e, como era hábito, Mr. Lindsey sentia-se deliciado
e ao mesmo tempo divertido. Ele tinha um pessimismo natural e cínico muito próprio, que ecoava
nas conversas de Jerome. Mas agora Mr. Lindsey via que todo aquele
fulgor se tornava em faúlhas fogazes em água profunda e preferia, por agora, não explorar essas
águas.
Uma noite, quando estavam os dois sentados junto da lareira da biblioteca, beberricando um cálice
de vinho do Porto, Jerome disse a seu pai:
- Conheceu um sujeito chamado King Munsey que queria construir uma fábrica em Riversend, para
fabricar utensílios agrícolas?
Mr. Lindsey endireitou-se um pouco, franziu ligeiramente a testa e murmurou:
- Alfred não... concordou?
- Não, não concordou. Creio, a julgar pela correspondência, que considerou que a proposta de
Mister Munsey se compunha
de violação e de desprezo pela crença de Alfred de que os pobres foram mandados por Deus para
morrerem de fome, placidamente, e julgou também que o fabricante
trazia dentro dele o desejo sinistro de manchar as ricas fachadas das mansões dos grandes senhores,
com casebres imundos. Havia muito de poesia na prosa lírica que
Alfred dirigiu ao infeliz industrial. Riversend haveria de permanecer "limpa e sem entulhos", um
"lugar tranqüilo no meio de um estado turbulento" ou então Alfred
morreria galantemente na defesa dos seus ideais. Em toda a sua nobre excitação, cometeu alguns
erros crassos de gramática, e eu até detectei um ou dois infinitos
erradamente utilizados. Isso revela o seu estado de espírito.
Mr. Lindsey comprimiu os lábios para não deixar escapar um sorriso, mas olhou para o filho
atentamente.
- Como é que tu descobriste tudo isso, meu rapaz?
- A curiosidade, tal como o amor, ri-se das fechaduras. Mr. Lindsey pareceu ficar chocado.
- Tu não devias ter feito isso a Alfred, Jerome! Devias ter-lhe pedido...
- Como é que eu podia? Eu não fazia idéia nenhuma do que é que andava à procura!
Mas Mr. Lindsey estava realmente perturbado. A sua consciência revoltava-se. Que pouco
escrupuloso tinha sido Jerome! E que coisa imperdoável tinha ele feito! No
entanto, perguntou, interessado:
- Bem, que mais descobriste enquanto te andavas a rir das fechaduras?
Capítulo décimo nono
Inconsciente de tudo quanto se estava a passar durante a sua ausência, Alfred prolongou,
despreocupadamente, a sua lua-de-mel de três para quatro semanas, e embora
tivesse uma fé rígida na santidade do Sabbath, foi inevitavelmente compelido a violar o dia sagrado
e a chegar a casa no último dia de Janeiro.
O degelo de Janeiro começara a instalar-se, e toda a região parecia aguada de lama e granizo,
uivando de ventos violentos, e o garrido das cores parecia ter desaparecido
sob os céus de cinza.
Dorothea estava "indisposta", o jovem Philip estava de cama com gripe, e quanto a Mr. Lindsey,
era-lhe impossível acompanhar a carruagem até à estação para esperar
os noivos. Alfred julgou que pelo menos Jerome ali estivesse para os receber e lhes dar as boas-
vindas pelo regresso a casa. Mas... Jerome não
estava
ali. Como lhe era habitual, ignorara, deliberadamente, todas as cortesias que de algum modo lhe
pudessem causar qualquer inconveniente.
Além disso (e essa era uma coisa que Alfred totalmente ignorava), Jerome estava a trabalhar
freneticamente, numa verdadeira corrida contra o tempo. Queria acabar
as suas impertinentes investigações nos assuntos de Alfred. Fechou e escondeu os últimos livros
precisamente quando a carruagem, quase totalmente coberta de lama,
trepou os últimos metros do tortuoso caminho que conduzia à enorme porta da casa. Espreitou pela
janela do seu quarto, passou as mãos pelo cabelo emaranhado e, remordendo
qualquer coisa entre dentes, desceu até à sala de entrada.
Havia ali uma certa azáfama barulhenta. Jim, que se nomeara a si próprio supervisor dos criados,
ajudava a descarregar a bagagem, que ia ficando amontoada na passagem,
deixando cair no chão grossos pingos de chuva. Alfred e Amalie estavam já junto da lareira,
descalçando as luvas, enquanto uma criada lhes retirava as capas. Alfred
murmurou qualquer coisa-para a sua mulher, e ela voltou-se para ele, sorrindo delicadamente. Foi o
rosto de Amalie que Jerome viu primeiro, iluminado pela luz suave
que se desprendia das chamas.
Reparou que estava muito pálida calma e abstracta, no seu vestido de viagem, cinzento escuro, com
gola preta de pele, um chapéu também cinzento escuro com véu do
mesmo tom, e um regalo igualmente de pele. Estava muito direita e quase imóvel.
Antes de se mostrar, Jerome pensou de si para si:
"Então, pelos vistos, o dinheiro não tem sido o suficiente."
Foi ela quem o descobriu primeiro, quando volveu os olhos para as escadas por onde ele descia.
Amalie não fez um único movimento nem esboçou sequer um sorriso. Mas
Jerome adivinhou-lhe o seu estranho alerta, o seu ligeiro recuo.
Jerome cumprimentou-a, afável, apertou a mão de Alfred calorosamente, e depois voltou-se para
Amalie, perguntando:
- Parecerá bem, se eu beijar a noiva regressada ? Ela pareceu ficar aborrecida.
- Não, não parecerá bem - respondeu-lhe Amalie friamente, olhando indiferente para o lume da
lareira.
Alfred pareceu ficar feliz e satisfeito. Pousou a mão sobre o braço de Amalie, num gesto possessivo,
e perguntou a Jerome pela família. Ficou francamente preocupado
com o relato sobre a doença do tio, que se ia agravando aos poucos, a indisposição de Dorothea e a
gripe de Philip. Ao ouvir falar de Philip, Amalie ergueu os olhos,
alarmada, e dirigiu-se directamente a Jerome para lhe perguntar, com ansiedade na voz:
- Ele está doente? Tenho de ir vê-lo imediatamente. Alfred ficou satisfeito, mas observou:
- Meu amor, eu acho que a gripe é uma doença contagiosa. E, pelo relato de Jerome, o rapaz está a
ser muito bem tratado.
Amalie fez um gesto de impaciência, e retorquiu:
- Como ele se deve sentir só! Não, eu tenho mesmo de o ir ver. Além disso, trouxe-lhe uma coisa
pela qual ele sempre mostrou muito interesse.
Alfred ficou ainda mais satisfeito do que nunca por aquela prova de pura afeição de Amalie pelo seu
pobre filho. E respondeu-lhe:
- Iremos, então, os dois lá acima, minha querida, depois do chá.
Mas Amalie insistiu:
- Se me desculpas, Alfred, eu vou agora. Não esperes por mim para o chá, se achares inconveniente.
Virou-se rápida e correu ligeira pelas escadas na direcção do piso superior. Alfred ficou a olhar para
ela, sorrindo bastante orgulhosamente, na opinião de Jerome.
Por sua vez, este observava o primo com cinismo.
- Vamos tomar chá no quarto do meu pai, Alfred - disse.
- Foi ele próprio quem sugeriu que o fizéssemos. Dorothea juntar-se-á a nós depois.
Amalie reparou que a sua respiração se tornara entrecortada, e que o coração lhe batia no peito
como um louco, quando chegou ao patamar de cima. Sentia-se também
extremamente fraca, e viu-se obrigada a parar por momentos na penumbra quente que envolvia o
corredor. Ouviu as vozes do marido e de Jerome lá em baixo, dando as
últimas ordens a respeito da bagagem. O longo corredor à sua frente estava mergulhado no habitual
silêncio sombrio dos domingos. Mordeu os lábios com força e fechou
as mãos uma contra a outra.
"Não!"pensou. "Não posso pensar. Nunca!"
Avançou pelo corredor na direcção do quarto de Philip, bateu devagarinho e entrou.
Philip estava encostado às almofadas, tossindo debilmente. Um livro repousava perto da sua mão,
abandonado, e o rosto estava virado de modo a evitar a luz do candeeiro.
Pensou que fosse alguma criada a trazer-lhe o chá, e ergueu um pouco a cabeça, mole e indiferente.
Mas quando viu que era Amalie, ergueu-se de súbito das almofadas,
os olhos brilhando de prazer, e estendeu as mãos soltando uma exclamação de alegria.
Amalie dirigiu-se imediatamente para ele, sorrindo, e
agarrou-lhe nas duas mãos. Sentiu-as tremer, convulsas. Apalpou-lhe o rosto febril, suspirou, sorriu
de novo, e beijou-o com ternura. Depois, sentou-se a seu lado,
mantendo ainda apertadas nas suas as mãos do rapaz. Os dedos de Philip engalfinharam-se nos dela
quase em desespero.
- Oh! Miss Amalie! - exclamou o rapaz. - Senti tanto a sua falta! Tanto, que julguei não poder
suportar.
- Eu também senti muito a tua falta, meu querido - disse Amalie, com a sua voz cheia, quente,
macia. - Recebeste as minhas cartas?
- Sim! Guardei-as todas - respondeu o rapaz, incapaz de afastar os olhos do rosto dela.
Riu um pouco, fracamente, e disse ainda:
- Eram tão divertidas! Especialmente aquelas histórias sobre as velhotas gordas que costumavam
sentar-se no hall do hotel e passavam a vida a cochichar. Elas diziam
mesmo todas aquelas coisas?
- Oh, sim! E muitas mais.
Sorriram um para o outro. Ao fim de alguns momentos, Amalie ajeitou-lhe cuidadosamente as
almofadas, trouxe-lhe um copo com água fresca e afastou um pouco mais o
candeeiro. Philip submeteu-se aos seus cuidados com um suspiro de satisfação.
- Tome chá aqui comigo, Miss Amalie! -suplicou.
- Se tu quiseres, querido - respondeu-lhe ela, voltando a sentar-se ao seu lado.
Sorriu enquanto os olhos do jovem, perspicazes e penetrantes, a estudavam.
- O que é, Philip? - perguntou Amalie, após um longo momento, quando reparou que o pequeno
rosto do rapaz se ensombrara com uma nuvem de tristeza.
- Mudou, Miss Amalie! - murmurou Philip, enquanto que o rubor se lhe acentuava no rosto. - Parece
tão cansada e pálida!
Ela esfregou-lhe as mãos com força e esboçou um sorriso forçado.
- Bem! Foi uma viagem terrível, sabes? E as nossas quatro semanas foram muito cheias de festas e
recepções. No fundo, não passo realmente de uma mulher do campo.
Num impulso estranho, Philip disse uma coisa desconcertante.
- Miss Amalie, espero sinceramente que o papá a saiba compreender.
Ela ficou a olhar para o rapaz, fixamente e em silêncio. Depois, começou a rir e disse:
- É curioso que digas isso, Philip! O teu papá é muito bom para mim, e é o melhor marido possível.
Mas Philip, com uma teimosia estranha, murmurou:
- Miss Amalie! Diga-me que é feliz! Ela voltou a rir, e respondeu:
- Philip, não sabes que a felicidade significa obter-se aquilo que se deseja? Eu tenho, agora, aquilo
que sempre desejei. Portanto, tenho de ser feliz.
Calou-se, por momentos, para dizer logo de seguida:
- Excepto numa coisa, querido. Podes chamar-me, agora, de mamã?
Philip voltou para ela uns olhos cheios de um amor tão profundo que ela teve de o beijar de novo, e
deitou a cabeça nas almofadas ao lado da dele. As mãos dos dois
apertaram-se mais. O rapaz aconchegou-se-lhe como quem se aproxima de alguém que traz alívio
para um sofrimento penoso e pode oferecer uma paz infinita.
Por fim, Amalie ergueu a cabeça. Os olhos estavam húmidos de lágrimas, mas, com um gesto
determinado, abriu a mala e tirou de lá uma pequena caixa coberta de veludo
cor de ouro. Estendeu-a a Philip e exclamou:
- Tu não fazes idéia nenhuma do que isto é! Mas tens de tentar adivinhar. Dou-te... três tentativas,
apenas.
Os olhos de Philip cintilaram de ansiedade e prazer antecipado.
- Um anel! Um par de botões de punho! Oh! Oh.... mamã! Eu não sei! Por favor, deixe-me ver.
Amalie depositou-lhe a caixa nas mãos, e imediatamente ele se ergueu das almofadas. Os dedos
tremiam-lhe ao abrir a pequena caixa, enquanto ela o observava, sorrindo.
Depois, Philip soltou um grito de espanto e satisfação. Pousado sobre o veludo branco encontrava-
se um belo relógio de ouro, de repetição. Além disso, o mostrador
indicava também as fases da Lua, os dias da semana, os meses do ano. Quando lhe pegou,
maravilhado e perplexo, a minúscula campainha de ouro fez soar o quarto de
hora numa série de notas maravilhosamente suaves. O pobre rapaz ficou sem fala. Apenas
conseguiu erguer os olhos para Amalie, lentamente, numa expressão de profundo
êxtase.
- Olha para as costas do relógio, Philip! - murmurou Amalie.
Philip voltou-o, com gestos atabalhoados, tão imensa era a sua alegria e a sua perplexidade. Havia
ali uma elegante gravação no ouro, que dizia:
"Para o Philip, da sua mãe querida, 29 de Janeiro de 1869."
O rapaz leu a inscrição; depois, com uma simplicidade tocante, colou a ela os seus lábios trémulos e
descorados. Estremeceu, e as lágrimas correram-lhe pelas faces.
Amalie sentiu uma pontada dolorosa no coração. Enlaçou Philip, apertou-o contra o peito e
comprimiu o seu rosto contra a cabeça dele.
- Meu querido, meu amor! - murmurou.
Quando a criada trouxe o chá de Philip, informou Amalie de que os cavalheiros estavam à espera
dela. Porém, Amalie, pedindo-lhe que lhes transmitisse as suas desculpas,
ordenou-lhe que lhe trouxesse o chá para ali mesmo.
Amalie prendeu cuidadosamente os brincos de esmeraldas nas suas orelhas delicadas e olhou-se ao
espelho. Viu o rosto muito pálido, emoldurado pelas cascatas onduladas
do seu cabelo negro, o pescoço longo e branco emergindo da gola de renda do seu vestido de veludo
verde. Remexeu o fundo de uma gaveta, retirou de lá um pedaço de
flanela vermelha, humedeceu-o com os lábios e esfregou-o rapidamente e com força contra as faces
descoradas. Os seus esforços foram recompensados por um ligeiro
brilho que, no entanto, mais não fez do que aumentar o vazio sombrio dos seus olhos cor de violeta.
Esfregou em seguida os lábios e voltou a guardar o pedaço de flanela na gaveta. Afastou-se do
espelho, iluminado pelos candelabros, e estudou minuciosamente o corpo
magro e firme. O vestido, com pesados drapeados e pregas, era sóbrio e elegante, mas ela
emprestava-lhe, misteriosamente, um laivo de drama e excitação.
O quarto sombrio, iluminado apenas pelo fogo da lareira e pelos candelabros junto ao espelho,
estava quente e silencioso. Alfred estava a acabar de se vestir para
o jantar no pequeno quarto ao lado. Amalie voltou as costas ao espelho e lançou um olhar longo e
lento pelo quarto. Era grande e pertencera, até ali, apenas a Alfred.
A enorme cama, de quatro imensas colunas, repousava sob a sua cobertura de seda branca. A
carpete vermelha era espessa e escura. As grandes cadeiras de mogno, almofadadas
com pelúcia ou damasco azul escuro ou vermelho, reflectiam tremulamente as chamas rosadas da
lareira. Entre as janelas, emolduradas por cortinados de veludo vermelho
com pesadas franjas douradas, encontrava-se uma secretária de madeira rosa. Duas poltronas,
cobertas com uma tapeçaria desmaiada e guarnecidas com pequenos banquinhos
para os pés, encontravam-se uma de cada lado da lareira de mármore.
O guarda-roupa, espelhado, reflectia a luz das chamas e dos candelabros em correntes suaves. O
toucador de Amalie, que pertencera à mãe de Jerome, refulgia em espelho
lapidado e ouro. O perfume de Amalie misturava-se com o cheiro fresco e suave do quarto, numa
amálgama de cera, sabão e lume. Havia um ramo de rosas sobre uma mesa
perto de uma das poltronas junto da lareira, e elas juntavam a sua fragância amorosa e langorosa aos
outros odores.
Alfred estava a resmungar qualquer coisa de imperceptível para lá da porta fechada do quarto de
vestir. O granizo desaparecera para dar lugar a uma chuva pesada
e fustigante. Amalie dirigiu-se às janelas e afastou os reposteiros. Não conseguia ver nada, nem
mesmo uma única luz sequer a cintilar lá em baixo, no vale. Viu
apenas o reflexo do seu próprio rosto, ainda cansado, no vidro escuro.
Deu um passo atrás, rápida, e depois sorriu do seu nervosismo. Escutara um leve tamborilar na
janela, mas apercebeu-se de que se tratava simplesmente dos ramos nus
de uma árvore que crescia junto à parede da casa. Deixou-se ficar imóvel, escutando aquele
constante tamborilar nos vidros das janelas, o vento incansável e a chuva
que continuava a cair incessante. Não ouvia mais nada senão aqueles sons repetidos e desiguais, e o
murmurar abafado de Alfred. A casa remetera-se aos preparativos
para o jantar que seria servido dentro de pouco tempo.
Era assim que seria sempre... aquelas noites calmas, os serões repousados sem grandes abalos nem
emoções, os longos dias vazios e imutáveis. Mas... ela já os conhecera
antes, durante semanas. No entanto, isso tinha sido antes do casamento, e nessa altura uma certa
excitação inundara, de certo modo, a casa. Agora, ela fazia parte
de tudo aquilo, da maciça solidez da velha mansão, da sua inexorável rotina, da sua vida parada,
sempre igual, sempre majestosamente igual. Haveria de assistir à
sucessão das estações, uma após outra, mas ela, ela própria, não mudaria. Apenas iria ficando mais
velha, mais calma, mais fechada, como os outros.
Sim...! Ela fazia parte daquela casa. Fazia parte de... Alfred.
As mãos engalfinharam-se-lhe nos reposteiros, e uma sensação enjoativa de calor percorreu-lhe a
carne. Recordações das últimas quatro semanas passaram vivas diante
dos seus olhos.
Ela tinha sido tudo o que Alfred tinha desejado; fora muito admirada no elegante hotel onde haviam
passado a lua-de-mel. Pensou nas noites que suportara. Suportara,
sim. Não conseguia libertar-se daquele pensamento, e disse para si própria:
"Que louca fui, em pensar que a sua calma sólida e a sua compostura se estendiam a... todas as
coisas!"
Sim, que ingénua e confiante fora; ela que se tinha congratulado por não possuir quaisquer ilusões,
que se tinha vangloriado de ser imune a qualquer choque, desgosto,
medo ou terror. Dissera a si própria, na sua fátua ignorância, que era uma mulher do mundo que
tinha realizado uma espécie de negócio, e que a paixão era a menos
importante de todas as coisas que teria de suportar, para conseguir obter aquilo que era tão
imensamente mais importante.
"Eu sabia tudo... e não sabia nada!", pensou, com profundo sentido do ridículo de si mesma.
Olhou para si própria nos tempos antes do casamento e gargalhou amargamente perante o
espectáculo da rapariga sem ilusões e de olhos bem abertos que julgava ter
sido. Que ingénua e odiosa imbecil fora naquele "negócio"! Ela daria isto e aquilo em troca disto e
daquilo... tudo extremamente simples, tudo muito evidente, tudo
muito terra-a-terra... e sem ilusões!
Mas... não sabia nada acerca de Alfred. Não sabia nada do que era paixão. com toda a sua ousadia e
as suas conversas cínicas, fora tão inexperiente e inocente, como
qualquer uma das enfatuadas jovens que tanto desprezara. Olhara abertamente para os homens, rira
e moquejara com eles, tinha namoriscado provocadoramente com eles,
sem quaisquer reticências... e não soubera nem aprendera fosse o que fosse acerca deles.
O seu terror e o seu nojo aumentaram. Porém, voluntariosa e deliberada, obrigou os seus
pensamentos a fixarem-se nas virtudes de Alfred, no amor sincero e profundo
que ele lhe dedicava, no conforto e na segurança que ele lhe oferecera com o seu nome. E aquele
nome, obrigou-se a recordar, era um bom nome, cheio de honra e de
dignidade. Alfred dera-lhe um santuário e paz, as fortes paredes daquela casa, uma posição superior
e invejada.
Olhou as esmeraldas da pulseira que lhe rodeava o pulso, o flamejante diamante que lhe brilhava no
dedo.
Era, agora, uma esposa, protegida e longe de qualquer ameaça. Para ela, nunca mais haveria o terror
da fome, a constante ameaça dos dias miseráveis e feios, a existência
hedionda dos pobres e indefesos.
Para ela jamais voltaria a existir a vida precária da mulher desprotegida, a solidão dos anos, os
quartos frios dos desprovidos de dinheiro, a sujidade dos desesperados.
A ameaça afastara-se dela para sempre, e também toda a fealdade, todo o sofrimento e toda a
incerteza. O destino dera-lhe aquele rosto, aquele corpo, e com eles
comprara todas as coisas invejáveis com que tinha sonhado e que com tanta ansiedade tinha
desejado,
enquanto dormira debaixo de cobertores esfarrapados ou comera as miseráveis refeições dos pobres.
E pensou:
"Não devia ser assim para as mulheres, que são também seres humanos num mundo de humanidade.
Não devíamos ser tão indefesas, tão desprotegidas. Não devíamos ter
de nos perguntar a nós próprias se os nossos rostos e os nossos corpos são suficientemente
agradáveis para atrair segurança, alimento e refúgio, na forma de um homem.
"Isto é a negação da nossa dignidade como parte da humanidade, uma degradação dos nossos
instintos mais profundos, uma negação do nosso direito de viver. Não temos
nós corações que batem, e sangue que corre, e emoções que são sujeitas às mesmas leis e às mesmas
correntes e instintos que governam os homens? As mulheres são as
filhas dos homens; elas partilham idênticas paixões, ânsias, e esperanças que fazem parte dos seus
pais. No entanto, somos remetidas a simples objectos, relegadas
para as fileiras dos sub-humanos, dependentes das vontades e dos desejos dos senhores, negadas do
direito de dispormos das nossas próprias vidas, e de treparmos
a quaisquer alturas que desejemos, viver e rir numa segurança e dignidade que seja criada por nós
mesmas.
"Devemos agradar... ou então não comemos, ou, se comemos, trincamos o pão da caridade ou do
trabalho mesquinho e indesejado. Não podemos escolher os homens com quem
devemos deitar-nos e a quem nos devemos submeter, quer com indiferença, quer com nojo ou
terror."
Uma súbita raiva apoderou-se dela. Fechou a mão em redor da pulseira, como se a quisesse
arrancar. E depois, disse para si própria, em voz alta:
- Ele é bom, é amável, é quase gentil, excepto... Não lhe posso reprovar nada. Sou eu que sou louca.
Mas... para as mulheres não existe outra hipótese de escolha
senão a loucura.
Olhou-se de novo ao espelho e afagou o veludo do seu vestido. Começou a sorrir.
"Estou a ser dramática", pensou, no meio do seu tumultuoso desespero. "Fiz um negócio excelente.
Eu até... gosto dele. Ganhei mais do que aquilo que ele tem e devo,
portanto, fazer a maior concessão. Por aquilo que ele me deu, só tenho que lhe agradar."
Porém, o seu sorriso tornou-se amargo.
Ouviu uns passos suaves no corredor deslizando diante da porta do seu quarto. E então, sem
qualquer aviso, o coração apertou-se-lhe no peito, e todo o corpo lhe
estremeceu numa dor violenta. Ficou muito hirta, enquanto os passos se afastavam.
Mesmo depois deles se terem afastado por completo, Amalie permaneceu naquela posição, uma das
mãos comprimida contra o toucador, o rosto voltado para a porta.
Foi assim que Alfred a encontrou, quando saiu do quarto de vestir. Julgou perceber, pela atitude da
mulher, que ela estava a escutar qualquer coisa. Deteve-se e
pôs-se também à escuta. Mas não ouviu nada. Observou a figura de Amalie, vestida de verde,
encostada ao toucador, o seu perfil branco e maravilhoso. Sorriu, satisfeito.
Depois, franziu um pouco o sobrolho.
- Meu amor! - disse ele. - Esse vestido não será um pouco... ousado de mais?
Ela ficou rígida, e depois voltou-se lentamente para ele, obrigando-se a sorrir.
- Ousado? - perguntou lançando um olhar fugidio ao espelho. - Penso que não. Tem um pescoço tão
alto, e mangas compridas...
As suas próprias palavras deixaram-na exausta. Tivera que as repetir tantas vezes durante as últimas
semanas...!
Alfred estudou-a minuciosamente. O vestido era, na verdade, bastante respeitável, com o seu
corpete ornamentado com botões de cristal, a saia caindo muito sóbria
em linhas direitas, a gola e os punhos de renda delicada, branca. Ficou confundido, como sempre
lhe acontecia. Um vestido daqueles em Dorothea teria parecido apagado,
com requinte, talvez, mas discreto. No entanto, Amalie dava-lhe um ar completamente diferente,
quase teatral. Era pena, mas... Alfred não sabia reconhecer nem admirar
a beleza quando a via.
E... achou o vestido "sem requinte".
Estudou-lhe depois o rosto e o cabelo. Um estremecimento imperceptível percorreu-lhe o corpo mas
obrigou o seu espírito a deter-se rigidamente na apreciação que
estava a fazer.
O cabelo dela não estava enrolado em caracóis elegantes e ousados. As suas ondas brilhantes e
negras estavam, até, presas com suavidade e talvez mesmo um pouco repuxadas
de mais, e o carrapito na nuca estava bem apertado. E, no entanto, aquele cabelo não era sóbrio,
nem recatado, nem do tipo que as verdadeiras senhoras apresentavam.
E o rosto dela era demasiado arrojado, talvez, demasiado instável, demasiado cheio de vida. Mas...
Alfred não pensou nesses termos; pelo contrário, achou-o apenas
com falta de recato e de decoro.
- Estás encantadora, meu amor! - disse Alfred, por fim. Puxou-a para si e beijou-lhe a face com a
dignidade própria
de um marido. Depois, disse-lhe:
- Mas esses brincos de esmeralda... Confesso que te dão um ar bastante ousado. Queres fazer o
favor de os tirar?
Amalie afastou-se dos seus braços, tentando controlar a sua rigidez. Sem proferir uma única
palavra, retirou asjóias. Alfred observou-a, satisfeito.
- Pronto, assim ficas muito melhor. Sabes, temos de manter um certo decoro, aqui em Riversend.
- Vamos ter convidados esta noite? - perguntou ela, indiferente, voltando a guardar asjóias na caixa
almofadada.
- Não, penso que não. Seremos só nós e o tio William. O tempo está demasiado inclemente para os
visitantes de domingo.
Observou a sua figura alta e forte nos espelhos do guarda-fato e disse:
- Acho que Jerome não estará presente. Foi jantar com o general Tayntor, esta noite.
Sorriu, e continuou:
- Dorothea deu-me uma achega, que é quase uma certeza. Parece que anda combinação para ali.
com Miss Sally.
Não reparou que as mãos de Amalie se tinham de súbito imobilizado sobre a caixinha das jóias. Não
reparou na palidez mortal que lhe invadiu as faces, nem no repentino
baixar de cabeça. Apenas lhe ouviu a voz abafada:
- Miss Sally? Não é aquela rapariguinha com uns grandes olhos negros?
- Sim! É uma jovem amorosa e muito viva. Talvez mesmo um pouco viva de mais. Mas possui uma
fortuna considerável. Se isso for verdade, e espero bem que o seja, Jerome
arranjou-se bem.
Amalie fechou a gaveta, e numa voz estranhamente rouca, perguntou:
- Eles virão também viver para aqui, depois?
Alfred ajustou melhor a gravata. Tinha o rosto muito sério quando respondeu:
- Sim. Acho que virão. A casa é suficientemente grande. Além disso, tenho sempre presente que ele
é, afinal, o filho do tio William, e tem, portanto, prioridade
seja no que for, em relação à minha pessoa.
Interrompeu-se, por momentos, para logo dizer:
- Todavia, foi-me dado a entender que esta casa ficará, eventualmente, para mim. Mas, mesmo
nessas condições, os desejos de Jerome terão de ser tomados em consideração.
Numa voz que mal se ouvia, Amalie perguntou:
- Alfred, nós não podemos ir embora daqui? Não podíamos ter uma casa nossa, só nossa? Só tu, eu e
o Philip? Não me importava que não fosse tão grande. Só assim é
que poderíamos estar sozinhos.
Alfred ficou surpreendido, mas extremamente agradado, ao
mesmo tempo. Aproximou-se da sua jovem esposa, tomou-a de novo nos braços, e beijou-a na boca
com súbita paixão. Depois afastou-a um pouco e olhou-a com prazer.
Os lábios dela estavam pálidos e gelados, quase sem vida. Alfred perguntou-lhe:
- Gostarias realmente disso, minha querida?
- Sim! - respondeu ela, debilmente.
Alfred agarrou-lhe a cabeça e encostou-a ao seu ombro forte. Depois disse, quase em sussurro:
- Isso agradar-me-ia mais do que qualquer outra coisa, minha querida. Mas temos de dominar os
nossos desejos. Há que ter em conta o tio William.
Ela deixou-se ficar muito quieta no círculo dos seus braços, e tentou dominar e apagar a violência
da repulsa que sentia ao som dos seus "sentimentos conscienciosamente
dignos ejustos".
com que ironia ela os escutara tantas vezes antes, e com que cinismo! Tinha-os detestado porque
não passavam de hipocrisia, da exacta dissimulação do completo egoísmo.
E então, por entre a ironia e o escárnio, apercebeu-se com apaixonado espanto, auto-desespero e
humildade que tinha errado.
Alfred tinha falado honestamente, em parte arrastado por um estreito mas profundo sentido de
honra, em parte por rígida justiça. Se via que a injustiça podia estar
a fechar-se sobre ele, lembrava-se a si próprio que já recebera muito e que não tinha o direito de
pedir mais. Se a sua amargura naturalmente humana o invadia, dizia-se
a si próprio que era justo que o verdadeiro filho de Mr. Lindsey estivesse em primeiro lugar. Alfred
era realista, mesmo contra si próprio, e aceitava o inevitável,
se não sem um certo pesar no coração, pelo menos com compreensão. Se lhe faltava uma
imaginação fulgurante e subtileza, e vivia inexoravelmente no pequeno e estreito
círculo da sua natureza, esse círculo era limpo e cheio de integridade.
Amalie estava entre os seus braços e odiava-se a si própria, e sentia-se desprezível, mesquinha e
sórdida para lá do que podia suportar a sua vaidade. Ergueu a cabeça
e disse, com involuntária veemência:
- Não é justo! Ninguém te considera! Tu és tão bom, Alfred, tão bom! E no entanto a tua bondade
não significa nada, agora que um homem dissoluto e sem honra voltou
para a casa que tu ganhaste, e se aproveita do trabalho que tu fizeste!
Ele olhou para ela, mudo de estupefacção, e viu o brilho purpúreo dos seus olhos enfurecidos. Por
um instante, e apenas um instante, Amalie viu, por sua vez, o avelã
pálido dos olhos dele cintilarem com um fugaz lampejo de raiva incontrolável e de
revolta humana. Sentiu que o marido apertava mais os braços em redor do seu corpo, como se em
raivosa gratidão e desesperado reconhecimento pela simpatia que ela
demonstrava. Depois, afastando-a devagar, disse-lhe, muito calmo:
- Amalie, minha querida, tu não compreendes. Tudo o que eu fiz foi em pagamento daquilo que o
tio William tem feito por mim. Recebeu-me quando já não havia qualquer
esperança para
mim, adoptou-me por filho e abriu-me as portas que eu jamais conseguiria atravessar por mim
próprio. O meu pai não gostava de mim, mas o tio William deu-me afeição
e respeito, e um lar. jamais poderei pagar o que ele fez por mim. Não vejo que um homem razoável
possa exigir mais, quando tanto já lhe foi dado. Calou-se por
momentos. Fixou os olhos firmemente nos dela, com grave penetração, e disse:
- Não sou nenhum hipócrita e por isso não poderei dizer que o regresso de Jerome e o seu desejo
expresso de entrar para o Banco não foram um choque para mim. Durante
vários dias andei consideravelmente... atormentado. Durante vários dias esperei que tudo não
passasse de mais uma das suas loucuras, ou de uma brincadeira de
mau gosto. Quando vi que não era, odiei-o.
Agora, Alfred sorria; mas era um sorriso triste e curiosamente
indefeso, e Amalie soube, por puro instinto, que o marido lhe estava a dizer coisas que nunca
dissera a outra pessoa, e que o fazia como se se quisesse
libertar e também por gratidão para com ela.
- Sabes, eu não sou assim tão bom. Na realidade, não sou
mesmo nada bom. Odeio Jerome. Odeio-o, apesar de saber que o
tio William não podia realmente fazer mais nada senão aquilo
que está a fazer. Penso, de todo o meu coração, que sempre odiei
Jerome, porque é muito mais inteligente do que eu e inspira
muito mais admiração e afeição. Há nele qualquer coisa que
atrai os outros para ele. Sabes, minha querida, eu fui sempre
tão só!
Pegou-lhe na mão, e ela olhou-o por entre um véu de lágrimas. Ele conduziu-a até à cama, ajudou-a
a sentar-se e sentou-se a seu lado, continuando a segurar-lhe na
mão. Mas não olhava para ela. Olhava para o espaço à sua frente, e a sua expressão era muito triste
e pesada de amargura.
- Dizem que os homens como Jerome são "encantadores" ou "fascinantes", e dizem que a admiração
e a estima são apenas
os prémios a que têm justo direito. Perversamente, julgam que homens como eu não desejam
atenção, nem sentem a sua falta. Somos "remotos" ou "sem interesse" para
os nossos amigos, se é que os temos, ou repelentes para os nossos inimigos. Eles não
sabem como somos solitários, e como desejamos, com paixão real, gentileza, amor e compreensão.
Olhou para Amalie, e sorriu como que a sossegá-la.
- Receio que esteja a falar com detestável autopiedade e sentimentalismo, e eu sei que tu desprezas
estas coisas.
As lágrimas dela tornaram-se mais espessas, e Amalie olhou-o com espanto mudo e a mais profunda
humildade. Afinal, ele não era assim tão falho de imaginação, nem
tão insensível como tinha pensado, e odiou-se de novo por isso. Afinal, ele compreendia tantas
coisas com silenciosa percepção, como por exemplo a vida que palpita
sem ser vista e insuspeitada na terra profunda. A mão dela apertou a dele.
- Não tenhas quaisquer ilusões a meu respeito, Amalie disse ele, com extrema calma. - Não sou um
homem resignado por natureza, nem um homem bom. Os meus pensamentos
são bem pouco caritativos e sou ambicioso. E não há um provérbio que diz que os homens
ambiciosos são perigosos? Sim. Sou perigoso. E odeio Jerome. Sempre o odiei.
Talvez sinta ciúmes, embora não veja nada de atractivo na vida que ele tem levado ou naquilo que
ele é. Talvez o meu ciúme e a minha inveja resultem da minha própria
consciência de que não há nada em mim que inspire a admiração e o amor que o seguem a ele
naturalmente. Mas... não julgues que sou humilde. Eu sei que sou o melhor
homem, e tenciono fazer com que os outros o reconheçam. Sabes, agora, que não sou amável nem
perdoo, embora tente compreender e tente ser justo.
Riu abruptamente, e continuou:
- É difícil reconciliar o instinto com a razão. Amalie pensou para si própria:
"Ele está a falar comigo como nunca falou com mais ninguém, porque confia em mim e me ama.
Talvez até nunca tenha falado assim com ele mesmo."
E de novo se sentiu apaixonadamente humilde, profundamente cheia de raiva e compaixão pelo
marido. Tão fortes eram os sentimentos que a inundavam naquele momento,
que sentia que o amava, e a sua lealdade, agora despertada, saltou em cheia e vigorosa ardência.
A sua voz tremia quando disse:
- Nunca te conheci realmente, Alfred.
Ele levou-lhe a mão aos lábios; ela olhou para a sua cabeça forte e redonda, e sorriu por entre
lágrimas.
E pensou:
"Farei tudo o que puder. Farei de mim aquilo que ele quer. Ser-lhe-ei devotada. Ele jamais deverá
saber aquilo que eu pensei nestas últimas semanas. Como é que foi
possível que eu fosse
tão cega e tão estúpida? Como é que alguma vez poderia redimir-me?"
Sentiu os lábios dele na sua mão e sentiu também que eles não faziam com que a sua carne ficasse
rígida, como anteriormente acontecia. A sua compaixão e ternura
eram como fogo no seu coração. A estreiteza de pensamentos de Alfred, a sua falta de imaginação, a
sua inflexibilidade, o seu espírito obtuso, pareciam agora as
marcas admiráveis de um homem de extrema integridade e força.
A campainha soou suavemente através do calor silencioso da casa, e eles ergueram-se e desceram as
escadas, de mãos dadas, como nunca o tinham feito antes.
Capítulo vigésimo
- O senhor é um cão! - exclamou Mehitabel Kingsley soltando uma gargalhada sonora e quase
chocante, depois da observação algo atrevida de Jerome.
Tinham estado os dois a conversar, com um à-vontade condenável, de Alfred e de Amalie.
Mehitabel tinha expressado a sua opinião acerca da total falta de habilidade
de um cavalheiro tão fascinante como Jerome, para seduzir a mulher de seu primo. A viúva
pertencia a uma geração mais livre e mais alegre, durante a qual a influência
da rainha Vitória ainda não se tinha feito sentir com tanta intensidade em Inglaterra e na América, e
o seu tipo de conversa tinha um tom de libertinagem que divertia
Jerome, e não o aborrecia nem um pouco.
Na realidade, e um pouco parodoxalmente, entendia que tanto os homens como as mulheres
libertinas têm um quê de puritanismo latente dentro de si e que, ao contrário
do que se pensava, são muito menos tolerantes às infracções do código moral do que aqueles cujas
botas nunca ficavam sujas de lama. Assim, sabia bem que Mehitabel
estava a falar daquele modo chocante para o seu próprio divertimento e diversão dele. Um homem
seduzir uma virgem era uma coisa, mas seduzir uma senhora era outra
coisa totalmente diferente, em especial se se tratava de uma senhora da sua própria casa.
Talvez houvesse um sentimento pervertido de honra dentro deles, ou uma saúde robusta. Por isso
mesmo, quando Mehitabel delineava, crua e ousadamente, uma possível
estratégia para ele seduzir Amalie, ninguém, suspeitava ele, teria sido mais desapiedado e teria
tecido mais censuras do que Mehitabel se ele, por acaso, tivesse
agido de acordo com essa estratégia.
Não se coibiu, pois, de dizer, sorrindo:
- Metty, estás a falar de cor!
Estas palavras fizeram com que ela se risse ainda mais obscenamente do que nunca, de tal modo
que a casa pareceu ressoar com as suas gargalhadas estrondosas. com
um dos seus gestos antiquados, autoritários e rudes, ordenou-lhe que deitasse mais uísque com soda
para ambos.
- Mas... falando a sério - disse ela -, estou desapontada contigo. Esperava que tu e essa rapariga
gloriosa tivessem desaparecido na própria noite do casamento.
Tinha o meu pastor preparado. Perdeste a tua magia, Jerome?
- Receio bem que sim. A senhora em causa não quis nada comigo!
Estavam sentados na sala de estar da enorme, feia e antiquada casa de Mehitabel, nos subúrbios de
Riversend. O "amor" de Mehitabel pela humanidade não se estendia
ao desejo de ter vizinhos.
- Escolherei eu própria as alturas para os amar! - dizia ela muitas vezes.
E assim, os seus seis hectares de terra estavam firmemente fechados dentro de um enorme muro de
tijolo vermelho, ornado no cimo com assassino vidro partido. Tinha
também três cães selvagens que corriam constantemente pelos terrenos, embora ela não permitisse
que se aproximassem da casa ou da sua presença, pois sentia uma verdadeira
aversão pelos animais daquela espécie. O seu amor eram os gatos, dos quais tinha um grande
número.
- São tão espantosamente maus, e odeiam toda agente! costumava ela dizer.
Mesmo no centro dos terrenos, a casa fora construída cinqüenta anos antes, quando ela tinha sido
uma noiva. Alta, ameaçadora, sombria, era feita de tijolo vermelho,
com varandas profundas e janelas estreitas, muito altas, ornamentadas com pesados reposteiros.
Não ligara nenhuma à vasta expansão da arquitectura georgiana.
- É demasiado exposta! - dissera ela.
E assim a casa fora construída como uma fortaleza, com torreões redondos como os de um castelo,
por detrás dos quais era fácil imaginar sentinelas sempre alerta.
Além disso, tinha-a rodeado de enormes árvores sombrias, pelo que um brilho verde e aguado
invadia todas as salas e quartos da casa, mesmo nos dias mais luminosos.
Mas possuía imensas lareiras, cheias de enormes troncos. Não gostava de candeeiros; preferia a luz
das velas, e assim podiam-se ver em cima de todas as mesas pesados
candelabros
de bronze e prata, e havia quadros nas paredes forradas a painéis de madeira. Todo o chão, mesmo o
das salas, era de tijoleira, parcialmente coberto com tapetes
Aubusson, e a mobília, herdada dos seus antepassados, era de belas proporções e com acabamentos
brilhantes. A sua cama, dizia ela, tinha sido ocupada uma vez por
George Washington.
- Sozinho! -juntava ela, maliciosa.
Pagava bem aos que a serviam, pois de outro modo, dados os seus "humores", ninguém a quereria
servir. No entanto, embora perfeitamente consciente desse facto, ela
denunciava muitas vezes aqueles que pagavam muito menos aos seus criados.
- Não admira que os pobres diabos roubem! - dizia ela, vigorosamente, mas aferrolhando a sete
chaves os seus próprios valores.
Naquele dia, escutava, avidamente, o relato de Jerome em relação à aparente devoção que Amalie
demonstrava por Alfred. Estava incrédula.
- Como é que ela pode? Aquele homem é um doido, um idiota! -exclamou Mehitabel.
Jerome sorriu.
Beberricando o seu uísque, disse depois, com ar indiferente.
- Quando os filhos começarem a aparecer talvez sej a altura para eu deixar o meu pai.
Especialmente se eu próprio desejar casar. Pensei comprar alguma terra para
lá da estrada oriental.
Observava-a atentamente, embora sem parecer fazê-lo. Viu furtiva surpresa, espanto, incredulidade,
no seu rosto feio e malicioso. Viu confiança, reflectida nas suas
mandíbulas de buldogue, e soube que os seus pequenos olhos negros estavam fixos nele,
perscrutadoramente. Viu a luta entre a sua própria voracidade e a amizade que
sentia por ele.
Hipocritamente pensativa, disse:
- Não sei, esse não é o melhor dos terrenos.
Calou-se, olhando fixamente para Jerome. No entanto, a sua amizade por ele pareceu vencer, e
afirmou:
- Eu também pensei em comprar algumas terras para mim nesse sítio.
Interrompeu-se. Ele olhou-a carinhosamente, voltando para ela o seu mais forte sentido de carinho e
encanto filial. Aquilo tocou-a, e sobrepôs-se à sua individualidade.
Inclinou-se para a frente e de novo bateu ao de leve no rosto dele, com o seu leque de renda preta,
assumindo uma expressão misteriosa:
- Só mais uma coisa, amor! Compra essa terra, mas compra-a depressa! Não te demores.
- Não? - perguntou Jerome. - Porque não? Um tom feio espalhou-se no rosto da viúva.
- Confia em mim, Jerome. Compra essa terra. Amanhã mesmo, se te for possível. Eu cá tenho as
minhas razões, que não te posso dizer. Queres dinheiro? Quem não o quer?
Portanto, compra essa terra. Deixa-a depois ficar abandonada e vazia por uns tempos.
Agora que a sua gula tinha sido rechaçada para o seu inconsciente, suplantada pela amizade que lhe
dedicava, era toda animação.
- Tenho muito pouco dinheiro! - disse ele, pesaroso. Dois mil dólares ao todo. Evidentemente, vou
pedir um empréstimo. . No entanto, como tu disseste, aquela não
é a melhor zona para construir.
Mas a determinação dela excitava-a.
- O demónio da construção! Segue o meu conselho. compra aquela terra. Dois mil dólares?
Mordeu o seu grosso lábio inferior, enrugou o sobrolho, e de novo lutou consigo mesma.
- É suficiente para um empréstimo. Por seis meses. Abanou com a cabeça em gesto afirmativo e
disse:
- Quem sabe o que pode acontecer no espaço de seis meses? Soltou um suspiro e continuou:
- Se eles não aceitarem, vem ter comigo. Adiantar-te-ei o dinheiro, semjuros.
De súbito, olhou-o ironicamente e. disse ainda:
- Talvez até nem precises dele. Quando é que casas com SallyTayntor?
Jerome pousou o copo com cuidado e retorquiu:
- Não achas que é um pouco cedo de mais?
- Tretas! A rapariga está a morrer por dormir contigo! Mas casa primeiro. O general está encantado
e não quer outra coisa. Foi ele mesmo que mo disse. De facto,
ele está convencido de que tu já a pediste. É isso que tu ganhas por seres tão encantadoramente
evasivo e amável. Se não pedes a rapariga, o general não vai gostar
de ti nunca mais.
- Eu não sou um caçador de fortunas! - disse Jerome, com ar muito sério. - Quando tiver dinheiro
meu, então será essa a altura para se falar em casamento.
- Oh... - exclamou a viúva. -Não tentes vir para cima de mim com as tuas mentiras, Jerome Lindsey!
A rapariga e o pai dela aceitar-te-iam num instante, e tu sabes
isso muito bem. Além disso, tu não és nenhum cavalheiro de honra, e nem precisas de fingir que o
és. Cem mil dólares como dote não te fazem recuar por delicadeza.
Há mais alguma coisa nisso. Não será, por acaso, a mulher do teu primo? Não?
Pronunciara as últimas palavras com uma frieza inesperada.
"bom!", pensou Jerome. "A velha cadela pode ser, também, muito perigosa!"
Fitou-a com olhos que pareciam dançar deliberadamente. Mas ela não estava a brincar, nem sequer
parecia divertida.
- Tudo isso é um rematado disparate! - exclamou ela, furiosa. - Não tens nada que andar a perseguir
uma raposa que já foi apanhada. Não conseguirás obter nenhum
lucro com isso. Aliás, uma atitude dessas é nojenta e o nojo nunca contribuiu para o bom nome de
um homem. E tu não queres... o teu bom nome e... a tua fortuna?
Olhou-o, belicosa. Jerome fez um gesto afirmativo com a cabeça e Mehitabel recostou-se na
cadeira, o vestido negro esticado sobre a sua enorme barriga cintilando
à luz das velas.
- bom! Então já é tempo de começares a concertar as tuas vedações. Não vale a pena continuares a
usar tinta preta nos cabelos brancos que já tens. As pessoas acabam
sempre por saber. Vai ter com Sally, e contenta-te com o que tens.
- No entanto, tu estavas agora mesmo a aconselhar-me a melhor maneira de seduzir Amalie a dormir
comigo! - retorquiu Jerome, rindo.
- Ora, isso não era mais do que um exercício de libertinagem! Se tu fosses rico, seria diferente. Mas
a maldade é o campo de acção daqueles que são economicamente
independentes. Não há qualquer hipótese de divertimento para um homem inseguro e sem fortuna.
Jerome concordou com as palavras da viúva, num mudo aceno de cabeça, e o alarme dela pareceu
diminuir. Obrigou-o a prometer-lhe que faria uma hipoteca sobre o terreno
e exortou-o de novo a vir ter com ela se precisasse de dinheiro.
- Sem juros! - repetiu Mehitabel, com um tom de tristeza na voz.
Mostrou-se, depois, interessada no Banco, e ficou satisfeita quando reparou no entusiasmo com que
ele falava.
- Afinal, não é hipocrisia tua! - observou ela, maliciosa.
- Tu gostas mesmo daquele maldito lugar. Não foi só um esquema que arquitectaste para
convenceres o teu pai a voltar-se para ti, pois não? Não, penso que não! Precisamos
de sangue novo aqui, em Riversend.
A viúva abanou-se vigorosamente com o leque, e continuou:
- Lembra-te! Não te esqueças da hipoteca. Amanhã. E faz isso o mais possível em segredo. Não
fales a ninguém nesse assunto, nem mesmo ao general. Mantém essa boca
bem calada e não deixes que ninguém adivinhe o que andas a fazer. Podes fazer isso, eu sei!
Depois de uma pausa breve, Mehitabel disse ainda:
- E deixa aquela rapariga em paz. Tu próprio disseste que ela é toda devoção para com Alfred.
Deixa-os sossegados. Todas as mulheres são iguais no escuro. E, por
aquilo que eu vi ultimamente, ela perdeu muito do seu estilo antigo. Só veste roupas sem graça,
arrasta-se pelos cantos como uma sombra... Ela é Mistress Alfred
Lindsey, agora, e é suficientemente esperta para não o esquecer. Volta os teus olhos para Sally; ali
está uma rapariga com vivacidade e distinção. E devotada a ti,
também. Cem mil dólares! Se soubesses o que eu sei, haverias de perceber que aquele dinheiro está
mesmo à mão de semear.
Hesitou um pouco, e depois disse com um sorriso sardónico:
- Dar-te-ei como prenda a minha cama de George Washington. Já é tempo de se dormir nela... a
dois!

SEGUNDA PARTE
Capítulo vigésimo primeiro
Em Fevereiro, Mr. Lindsey sofreu um ataque cardíaco que quase pôs termo à sua vida. Conseguiu
sobreviver, mas com tanto sofrimento e com um cansaço tão grande que
os que o amavam não podiam deixar de considerar que aquela fuga à morte era quase um milagre.
Dorothea e Amalie, ajudadas por uma criada inteligente e solícita, trataram dele. Durante vários dias
depois do ataque, o filho e o sobrinho não foram sequer ao
Banco, nem mesmo por uma hora ou duas, pois o médico tinha-os avisado de que o doente poderia
morrer de um momento para o outro. O médico dissera
ainda que se ele sobrevivesse à primeira semana, as suas
hipóteses de vencer aquela luta com a morte aumentariam enormemente.
Uma calma desesperada e dolorosa instalou-se então em Hilltop. Jim, com medo que Charlie, o cão,
pudesse perturbar aquele silêncio com os seus latidos, mantinha
o pequeno animal com ele no terceiro andar, ou nos estábulos. Philip interrompeu as suas aulas de
piano e vagueava pela casa como um pequeno fantasma deformado,
com o rosto pálido e sofredor. Até Amalie parecia ter-se esquecido do rapaz. Ele compreendia, mas
a perda dos seus dois amigos, Mr. Lindsey e a sua jovem madrasta,
enchia-o de desgosto e de uma enorme solidão.
Vagueava pelos estábulos, onde Jim e os outros homens eram amáveis para com ele, mas acabava
sempre por achar a conversa deles pouco divertida e sem qualquer interesse.
Não se interessava por cavalos, e a maior parte das conversas centrava-se à volta desses animais.
Jim tinha a certeza de que uma das éguas tinha "estofo" para as
corridas e passava o tempo a discutir com os rapazes dos estábulos fazendo-lhes apreciar os artelhos
finos e nervosos, a cabeça erguida e orgulhosa.
A presença de Philip punha-os pouco à-vontade, embora tentassem ser sempre deferentes e amáveis
para com ele. Todavia, Philip, cuja vida tinha sido passada entre
livros e música, para além da sua inalterável solidão, acabou por achar Jim e os outros
simplesmente insuportáveis.
O pai fora sempre afectuoso para com ele, mas a sua sensibilidade extraordinariamente aguçada
cedo lhe tinha feito compreender que o seu nascimento, ou melhor, a
sua deformidade, fora uma desilusão profunda para Alfred; no entanto, não censurava o pai por isso,
nem um pouco. De facto, sentia até
pena por Alfred, uma pena dolorosa e sofredora. Sabia que o pai se interessava pouco por livros,
apesar dos seus elaborados esforços para parecer inteligente, quando
qualquer desses assuntos era timidamente abordado por Philip.
Mr. Lindsey fora sempre muito seu amigo, de uma maneira gentil e afectuosa, mas Philip soubera,
logo a partir da sua tenra infância, que Mr. Lindsey não se interessava
particularmente por ele, e achava a sua presença maçadora, apesar da delicadeza e do ar atencioso
com que o tratava.
Só em Amalie Philip descobrira uma amiga sincera, verdadeira e interessada, mas ela estava, agora,
temporariamente perdida para ele. Quanto a Jerome, aquele cavalheiro
tornara-se tão duro com a doença do pai, que parecia não ter consciência da existência de mais
ninguém. Passava por Philip nas salas e nos corredores como se o rapaz
fosse feito de ar e não tivesse formas concretas e palpáveis. O mesmo acontecia com Alfred.
Toda a casa parecia ter perdido a sua rotina, a sua calma silenciosa e soturna. Dorothea, que por
dever e alguma amizade sempre procurara o conforto de Philip, estava
agora açambarcada pelos tratamentos e cuidados que devia ministrar a seu pai.
Para que os criados não tivessem tanto trabalho naqueles dias, poucos membros da família
apareciam às refeições, e por fim foi decidido que levar tabuleiros aos
respectivos quartos seria um trabalho menos árduo do que o elaborado preparar da enorme mesa na
sala de jantar. E assim, Philip comia as suas solitárias refeições
no quarto, tendo por única companhia os seus livros, os seus pensamentos, a sua imensa solidão. O
professor chegava de manhã; iam os dois para a biblioteca, e quando
ele se ia embora seguia-se o dia longo e vazio.
O rapaz tentava animar um pouco a sua vida triste e vazia dando longos passeios, mas o mês
decorria com tantos granizes e ventos que ele não ousava expor a sua delicada
saúde às intempéries depois da gripe que tinha tido. Sentava-se então sozinho e em silêncio,
escutando o bater abafado do relógio na sala de entrada, ouvindo os
sussurros dos criados, apercebendo-se de um ou outro mudo passo entrar e sair do quarto do doente.
Dorothea adquiriu um respeito relutante pela cunhada naqueles dias tristes, pois vira-se obrigada a
reconhecer que Amalie se devotara, quase com fanatismo, a cuidar
de Mr. Lindsey. Nunca nada era demasiado difícil, nem demasiado duro, nem demasiado
desagradável ou trabalhoso, desde que se tratasse do bem estar do idoso senhor.
Era ela quem erguia nos braços o seu corpo atormentado, enquanto Dorothea ou uma criada lhe
arranjavam a cama. Era ela quem parecia não estar
nunca cansada e insistia em fazer a vigília da noite. A luz difusa da janela era como uma Lua de um
amarelo desmaiado ao longo das horas da noite, expirando apenas
quando o Sol vermelho e irado espreitava por momentos entre as nuvens roliças. Jerome, incapaz de
dormir, passeava muitas vezes pelo jardim. Deixava-se ficar durante
longo tempo debaixo das janelas do quarto do pai, e observava a sombra silenciosa de Amalie
movendo-se entre ele e o candeeiro.
Esperava aquela sombra, observava-lhe o contorno impreciso dos seus seios firmes, via-lhe o rosto
pálido espreitar, por breves instantes, pela janela e olhar o
céu, antes de correr completamente os pesados reposteiros. Amalie nunca olhava para baixo; ficava
ali, encostada aos vidros, por alguns momentos, a luz vermelha
do sol nascente batendo-lhe nas olheiras cansadas. Mesmo depois dela desaparecer, Jerome ficava
de olhos fixos nas janelas, embrulhado no seu enorme casaco, totalmente
esquecido das horas, do frio...
Depois das dez horas, Jerome e Alfred tinham autorização para entrar no quarto do doente e
acercarem-se, durante uns breves e silenciosos momentos, do leito de Mr.
Lindsey. Àquela hora era sempre Dorothea quem se encontrava ali, silenciosa e mais carrancuda do
que nunca, balançando-se na cadeira junto do lume, com o seu tricô,
ou cirandando pelo quarto sem um ruído.
Mr. Lindsey, adormecido ou apenas semiconsciente, estava normalmente encostado às almofadas,
respirando com dificuldade, soltando sons abafados e penosos.
Não dava sinais de que tinha consciência da presença dos dois homens, de pé junto da sua cama.
Amalie retirara-se para o seu quarto, para dormir até ao anoitecer.
Alfred entrava muitas vezes, quase subrepticiamente, no quarto que partilhava com a mulher,
procurando caminhar sem fazer ruído. Deixava-se ficar depois junto da
cama, olhando para o rosto exausto e dolorido de Amalie, perdida no sono; bailava-lhe então nos
olhos cansados toda a paixão e todo o amor que sentia, reverente
e agradecido por aquela que era agora sua mulher. Por vezes, Amalie murmurava qualquer coisa e
ele inclinava-se rapidamente para ela, na esperança de que ela pudesse
estar a pronunciar o seu nome. Mas o som era confuso, imperceptível.
Quando Amalie acordava, já ao anoitecer, com a entrada da criada que lhe trazia o tabuleiro com a
refeição para ela e Alfred, verificava que o marido enchera com
rosas frescas uma jarra que tinha na mesa de cabeceira. Ficava tão comovida que não podia evitar
que as lágrimas lhe enchessem os olhos, e quando Alfred
entrava de novo no quarto, estendia-lhe os braços sem uma palavra, e suspirava quando ele a
apertava com força contra si, como se procurasse nele as próprias forças
que lhe faltavam.
Aquele breve espaço de tempo, uma hora ou duas, em que ficavam sozinhos, era infinitamente doce
para ambos, embora não conseguissem falar de outra coisa que não
fosse o estado do doente. Depois, Amalie tinha de se vestir e retomar os seus deveres e Alfred não
conseguiria voltar a falar-lhe senão na noite seguinte.
Anos mais tarde, ainda ele não tinha conseguido arrancar do seu pensamento e da sua memória
aquelas horas, não seria capaz de evitar o bater descompassado do seu
coração quando se recordava desses doces momentos que passara com a mulher. Nessas alturas, um
sofrimento indescritível apoderava-se dele.
Mr. Lindsey conseguiu sobreviver àquela semana crucial. Ao décimo dia sorriu para Amalie durante
a noite e murmurou uma débil palavra de gratidão. Ao décimo primeiro
dia Alfred e Jerome voltaram para o Banco. Pela primeira e última vez em muitos anos sentiram
amizade um pelo outro, nascida da sua mútua ansiedade e do medo que
ambos sentiram. Falavam os dois com mais facilidade e compreensão um com o outro e, ainda que
por breves momentos, houve entendimento e concordância entre eles.
Ao fim de duas semanas foram autorizadas as visitas a Hilltop. Era-lhes, então, servido o chá
enquanto faziam perguntas sobre a saúde de Mr. Lindsey. Passadas três
semanas, o general e Mrs. Kingsley tiveram autorização para ver o doente, sorrir para ele e dirigir-
lhe uma palavra ou duas. Porém, não foi senão ao fim de seis
semanas que Amalie sentiu que já não era preciso passar a noite junto do doente, e ela e Dorothea
dividiram entre si as horas do dia em que deviam cuidar dele.
Só então Dorothea, Jerome, Philip, Amalie e Alfred passaram a encontrar-se à hora do jantar; mas a
sua conversa era insípida, forçada e freqüentemente interrompida
por longos e penosos silêncios. A pouco e pouco, Alfred foi começando a perguntar ao filho o que
ele tinha feito durante todos aqueles dias, e Philip respondia-lhe
com voz tímida e retraída. Por sua vez, Amalie voltou a olhar para o rapaz com a sua antiga ternura
e preocupação, e lamentava que ele tivesse sido obrigado a abandonar
os seus estudos de música.
Dorothea fazia-lhe perguntas incisivas sobre as suas refeições, os seus passeios e os seus estudos.
Philip sabia que todos tentavam ser muito amáveis para com ele,
mas que na realidade ele estava muito longe dos seus verdadeiros pensamentos. Até mesmo Jerome
andava abstracto, comendo sempre mergulhado
nas suas próprias preocupações. Ninguém, nem mesmo Dorothea, via os seus olhos quando
furtivamente os dirigia a Amalie, e ninguém reparava nas linhas profundas
que surgiam em redor da sua boca descolorida quando os seus olhos pousavam nela.
Mr. Lindsey foi ficando mais forte à medida que o mês de Março se ia aproximando, com o seu
tradicional barulho e movimento. Mas... uma apatia sombria parecia ter-se
abatido sobre a sua família, como que o despertar penoso e difícil de uma noite de terror, de
pesadelo, de devoção e trabalho. Tornou-se muito alegre, brincando
com freqüência acerca da sua indestrutibilidade, mas a alegria com que lhe respondiam era forçada.
Sentia que qualquer coisa de instável e de depressivo inundara
a casa, mas convenceu-se de que aquilo não passava de coisas inventadas pela sua própria
imaginação.
Dorothea começou a ler para ele, mas depressa Mr. Lindsey pôs um fim àquilo. A voz dura e
monótona da filha cansava-o. Mas a voz de Amalie, profunda, clara, flexível,
cheia de entoações, deixava-o encantado. Era capaz, então, de ficar horas a escutá-la. Nessas
alturas, observava-a com profunda amizade, analisando-lhe as linhas
do rosto, docemente recortadas contra a luz do fogo que ardia na lareira.
Um dia, ele disse-lhe:
- Minha querida, chega aqui ao pé de mim, por um momento!
Ela pousou o livro e, sorrindo, aproximou-se da cama. Ele olhou-a, em silêncio. Depois disse-lhe:
- Estás muito magra e pálida, meu amor! Foi demasiado pesado para ti! Lamento muito.
- Não, tio William. O senhor nunca será demasiado pesado para ninguém - respondeu ela, gentil.
Viu-lhe a mão estender-se para a sua e pegou-lhe. Os dedos dela eram quentes e fortes.
- Diz-me uma coisa - disse-lhe ele. - Diz-me se és feliz, minha querida.
Ela sorriu, e respondeu:
- Claro que sou, agora que o senhor está melhor!
Porém, ele suspirou e soltou-lhe a mão. Ainda de olhos fixos nela, disse-lhe ainda:
- Tens de me prometer passear muito ao ar livre agora, e também andar a cavalo. Caso contrário,
acusar-me-ei a mim próprio, e sentir-me-ei culpado dessa tua palidez
e magreza. Tens um ar completamente exausto, minha pobre criança.
- Prometo! - disse ela, como que a querer confortá-lo.
Era a tarde de um domingo, e, por insistência de Mr. Lindsey, ela deixou-o por uma hora ou duas.
Não queria falar com ninguém, pois sentia-se invadida por uma profunda
melancolia. Vestiu um casaco de pele que Alfred lhe tinha comprado em Saratoga, um pesado
vestido de lã castanha, e pôs um gorro forrado de pele. Enfiou as mãos
num regalo e desceu as escadas sem um ruído, evitando que alguém a encontrasse.
Passou pela biblioteca. Alfred, esgotado, tinha adormecido numa cadeira diante do lume. Philip
estava a fazer os seus deveres, silenciosamente. Dorothea estava a
dormir no seu quarto. Jerome... não estava à vista. Amalie, não querendo
falar com ninguém, saiu furtivamente de casa, fechando atrás de si a porta, sem fazer
ruído.
Eram cinco horas. A neve era agora apenas uma linha branca junto das paredes do jardim e jazia
ainda em manchas reduzidas e sujas na encosta. As árvores continuavam
nuas, empilhadas num emaranhado de troncos em redor da casa. Mas o céu tinha um azul puro,
profundo e escuro, e a estrela da tarde erguia-se como uma minúscula chama
de prata.
Amalie caminhou lentamente pela vertente suave até ao grupo de pinheiros onde estivera com
Jerome naquela noite de Dezembro antes do seu casamento. Diante dos seus
olhos estendia-se o vale e as pequenas colinas que o rodeavam. Lá ao longe, uma corrente azul
escura serpenteava pela colina de um monte distante. Acima dos montes
ardia uma bola de um vermelho escuro, raiada de laivos dourados. A terra estava profundamente
silenciosa e calma, e uma estranha mas forte promessa parecia desprender-se
dela, como um sopro profundo e imenso.
Escutou, pela primeira vez, o chilrear dos pássaros que saltitavam, irrequietos, de um ramo
desnudado para outro. Nada parecia revelar a promessa, mas Amalie sentia-o
como uma onda crescente erguendo-se da terra húmida e lamacenta, ainda despida de cor e
movimento. A terra murmurava no seu coração. Amalie viu o enorme rendilhado
de um choupo distante recortado de encontro à claridade ofuscante daquele céu azul e deteve-se, por
momentos, a olhá-lo com lágrimas nos olhos.
Chegou ao grupo de pinheiros. Pingavam humidade. As pontas dos seus ramos estavam a ficar
revestidas de um verde mais brilhante. Passou por entre eles; segredavam-lhe
murmúrios à sua passagem, e ela sentiu a água nas suas faces, como chuva. Soltavam perfume
agora, pungente e fresco. Os pés enterravam-se-lhe na terra mole, misturada
com agulhas macias.
Chegou ao outro lado e deteve-se abruptamente.
Ali, fumando e olhando para o céu, estava Jerome.
Capítulo vigéssimo segundo
Amalie não se mexeu, mas Jerome disse, muito suavemente, sem se virar para ela, e sem um
movimento sequer de cabeça:
- Boa tarde!
Instintivamente, ela fez um movimento para se voltar, mas deteve-se, sentindo-se ridícula e
compreendendo que, por um breve momento, a recordação da outra noite
naquele mesmo lugar se tinha sobreposto à sua razão, lançando-a num absurdo irracional. Tinha
comido muitas refeições juntamente com Jerome durante as últimas semanas,
tinha discutido com ele o estado de saúde de seu pai, tinha-lhe pedido o seu conselho sobre
problemas domésticos, tinha até sorrido para ele, de vez em quando, tinha
conversado com ele acerca de Philip. As relações entre ambos tinham sido friamente amistosas e
acidentais, e raras vezes se tinham encontrado a sós.
No entanto, o seu primeiro instinto, agora, fora correr, afastar-se dali rapidamente, e desprezar-se a
si própria por aquele impulso.
Saiu completamente dos pinheiros, e disse, com ar indiferente:
- Boa tarde. O ar está muito agradável, depois do Inverno, não acha?
Ele voltou-se para ela e sorriu delicado:
- Deve, realmente, achá-lo agradável! Nem tem tido, nestes últimos dias, muita oportunidade para o
apreciar.
Ela riu suavemente.
- Toda a gente parece empenhada em fazer de mim uma mártir. Mas, na verdade, eu não sou.
Ele continuava a sorrir-lhe. No ar translúcido do entardecer, Amalie via-o claramente. Emagrecera,
o seu rosto tinha uma palidez cinzenta e baça e os olhos estavam
cansados. Apercebeu-se, então, de que não tinha, de facto, olhado directamente para ele durante
muito tempo, que ele não se tinha imposto à sua consciência, mas
fora apenas uma figura sombria naquela casa de terror, sofrimento e ansiedade.
No entanto, parecia impor-se agora, demasiado perto, demasiado presente, sozinho com ela como
estava na imensa solidão daquela colina, e na claridade pálida do entardecer.
A solidão profunda e sofrida rodeava-os; os pinheiros sussurravam debilmente, mas com uma
avidez de nova vida. De lá de baixo, do vale, chegou até eles o latir longínquo
de um vão.
De súbito, quando o viu a seu lado, com aquele sorriso polido e delicado, e com aqueles olhos
diferentes, tomou consciência de que o seu coração batia a um ritmo
perigosamente forte
e doloroso, que a respiração lhe saía como se estivesse a sufocar, como se o ar se lhe enrolasse na
garganta apertada, e que sentia nos ouvidos um zumbido ameaçador
e no peito a mais tremente e insuportável angústia.
E, pior do que tudo o resto, havia nela uma curiosa consciência de si própria, da sua carne, dos
contornos do seu rosto, do espasmódico tremer das mãos dentro do
regalo. E aquela consciência estende-se até ele, tornando-o momentaneamente mais presente, mais
intenso na sua consciência, até que a única realidade no silêncio
transparente e ressoante era... aquele homem.
A voz de Jerome chegou até Amalie, profunda e grave:
- Ainda não tive oportunidade para lhe agradecer os cuidados que teve para com meu pai. Mas... não
posso agradecer-lhe totalmente. Seria impossível.
Ela respondeu-lhe aos soluços, como se a voz lhe ficasse presa na garganta:
- Não foi nada. Eu gosto muito dele. Ele é muito bom.
- E gosta também muito de si! - disse Jerome. Jamais ela lhe escutara uma voz tão gentil e tão
suave. Olhou para o vale e não respondeu. Mas não viu nada das
luzes delicadas que tinham começado a cintilar lá em baixo. A terra parecia mover-se em
ondulações loucas debaixo dos seus pés; o céu, agora em cores de ametista,
parecia alargar-se, estender-se em horizontes sem limites. Os lábios dela estavam rígidos e cerrados
com força um contra o outro, e o seu coração batia agora num
compasso tremendamente lento, como se fosse parar, e a angústia dolorosa que a enchia tornava-se
numa coisa física, devastadora.
Jerome olhou-lhe o perfil, que não revelava nada senão uma expressão indefinida em redor dos seus
lábios pálidos. Um vento leve e gelado fez remexer os pinheiros
e um anel do seu cabelo negro brincava-lhe no rosto. Ela continuava imóvel, as mãos metidas no
regalo, os olhos fixos novamente lá em baixo.
- Ele vai viver agora! - disse Jerome.
- Sim.
- E você terá o seu bem merecido descanso.
Amalie ergueu os olhos e observou-o, directamente, e Jerome reparou como aqueles olhos estavam
dilatados, cheios de uma emoção estranha e involuntária, como terror
ou tormento. Mas ela apenas via que Jerome sorria para ela, com um olhar fraterno e um interesse
de amigo.
Humedeceu os lábios e murmurou:
- Não estou cansada!
A angústia aumentava nela até se sentir vacilante, exausta,
dominada por uma dor misteriosa e surda, tão forte agora que sentiu um terror imenso de se deixar
cair, desmaiada.
Ele afastou os olhos dela, e o rosto tornou-se-lhe mais cinzento na penumbra que começava a
envolver tudo.
- É quase Primavera, e podemos esquecer tudo o que aconteceu - disse Jerome.
"Podemos esquecer", repetiu Amalie para si própria. Ele continuou:
- Tempos houve em que receei que o próprio tempo tivesse parado, e nós tivéssemos ficado para
sempre prisioneiros do Inverno, sem que jamais pudéssemos escapar.
Quando vim para aqui hoje, foi com a sensação de que me tinha libertado e estava livre de novo.
Fiquei bastante surpreendido por verificar que a Primavera já aqui
se encontrava e que eu vivo.
- Sim! - disse ela quase num sussurro. Jerome continuou:
- Em breve o vale estará escondido por entre as árvores, e a relva ficará verde nos montes, e o sol
será quente. Haja alguns anos que não vejo o nosso jardim no
Verão, e espero com ansiedade que chegue esse momento. Nunca imaginei que um jardim pudesse
ser tão agradável. Mas quando se deixou a dor e o sofrimento para trás,
tornamo-nos conscientes de quão real é a vida, e quão bela é.
"Mas nunca mais para mim!" pensou Amalie, "Nunca, nunca mais!"
Tinha agora a sensação de ter estado enterrada por debaixo de enormes pedras, para sempre fechada
da luz do novo sol, e do som e das vozes da nova terra.
- É agradável pensar que podemos agora falar de outras coisas, e não apenas da doença de meu pai.
E podemos fazer planos! - estava ele a dizer.
Amalie sabia que ele estava a sorrir, mas apenas perguntava a si própria se a escuridão que se abatia
lentamente à sua volta era real ou apenas imaginária.
E Jerome dizia ainda:
- Está já assente que o meu casamento com Sally se realizará em Setembro.
Ela abriu a boca, mas o nó que lhe apertava a garganta engoliu-lhe a voz. E pensou:
"Tenho de voltar para casa. Se o não fizer, gritarei, ou morrerei aqui mesmo."
Inspirou fundo como se um peso lhe tivesse sido parcialmente retirado dos lábios, e verificou que
podia falar de novo.
- Isso agradará muito a seu pai, eu sei.
A sua própria voz soava-lhe aos ouvidos como se proviesse de uma enorme distância e saísse de
uma outra garganta que não a sua.
- Agradará a todos, e a mim especialmente - disse ele a sorrir. - Sally é uma rapariga muito adorável.
Espetou com a ponta da bengala uma folha negra e húmida na terra molhada. Amalie não conseguiu
despregar os olhos dela. Era como se aquela folha fosse uma parte
de si própria.
Jerome olhou para trás, para a casa. Via-lhe apenas o telhado vermelho recortado contra um céu que
adquirira agora um tom azul, muito escuro, quebrado aqui e ali
pelo prateado das estrelas.
- A casa ficará cheia de novo! - disse ele, num tom de voz agradável, quase divertido. - Você e
Alfred, eu e Sally. Suspeito bem que tem estado demasiado sossegada
durante demasiado tempo.
- Sim.
Ele olhou-lhe a cabeça inclinada e o perfil branco, cintilando agora na penumbra escura. A boca
dele abriu-se um pouco, depois pareceu arrepanhar-se sobre os dentes
num esgar espasmódico de dor, e os músculos contraíram-se-lhe nas faces. Ficaram em silêncio,
sem se mexerem, embora o ar à sua volta estivesse prenhe e carregado,
cheio de amargo sofrimento e desespero.
Então, Jerome deu um passo na direcção dela. Amalie sentiu-o aproximar-se, mais do que viu, e
afastou-se, assustada. Ergueu os olhos de novo e Jerome viu-lhe aquela
angústia demolidora, o seu desespero imenso.
- Desculpe, Amalie! - disse ele, suavemente. - Espero que já tenha perdoado a minha insolência para
consigo.
Ela não respondeu. Olhava apenas para ele, no seu sofrimento mudo, e ele soube, adivinhou que ela
não conseguia falar.
- Foi mau e imperdoável da minha parte. - disse ele. - Só posso dizer, em recriminação que faço a
mim mesmo, que fui um louco. Gostaria de saber se não pensa muito
mal de mim.
- Não! - murmurou ela. - Oh, não! Não!
- É muito boa! - Continuou ele, muito sério. - Nunca soube como era amável e como é boa. Mas
agora sei. Perdoou-me, então?
Os lábios dela moveram-se, mas Jerome ouviu apenas um murmúrio imperceptível. Estendeu-lhe a
mão. Amalie ficou a olhar para ela, confusa e indecisa, e depois retirou
a sua de dentro do regalo e ofereceu-lha. Estava fria e rígida como o gelo.
- Voltamos para casa, agora? - perguntou ele, gentil. Acho que ouvi a sineta tocar para o jantar.
Caminharam por entre os pinheiros e as gotas de água caíam-lhe espessas sobre os rostos. As luzes
brilhavam já através das janelas da casa. O fumo misturava-se com
o negrume da noite. Subiram juntos a pequena encosta. Entraram no hall aquecido, e Amalie subiu
as escadas sozinha. Jerome ficou a vê-la afastar-se, e o seu rosto
moreno estava sombrio e imperscrutável.
Alguém tinha acendido o candeeiro do seu quarto, e a luz espraiava-se suavemente pelo chão, pelo
tapete e pelos móveis. Na lareira, o lume ardia, acolhedor.
Amalie sentou-se na cama. Todo o seu corpo tremia, como se fosse açoitado por violentas
vergastadas. Olhou fixamente para o lume e a luz vermelha pareceu brilhar-lhe
nas olheiras profundas. Depois, virou-se e deixou-se cair sobre acama. - êh, meu Deus! - disse ela
em voz alta, quase num grito. - Oh, meu Deus, meu Deus!
Capítulo vigésimo terceiro
Foi no dia 2 de Abril que o brigadeiro-general Waincoright Tayntor celebrou os noivados de sua
filha, Miss Sally Atchison Tayntor, com Mr. Jerome Lindsey, devendo
o casamento realizar-se a 15 de Setembro de 1869.
O pai de Miss Sally estava exuberante de satisfação; a própria Miss Sally estava um esplendor de
prazer e alegria. Riversend... surpreendida. O general e as filhas
tinham ido a Nova Iorque, para verem as últimas modas de Paris, tanto para a celebração do
noivado, como para o enxoval de Miss Sally. O dia da grande festividade
estava particularmente bonito. Tinha havido uma pesada queda de neve um ou dois dias antes, mas
logo desapareceu rapidamente. O céu cinzento pálido da manhã, pelas
cinco horas, dera lugar a um azul extremamente delicado e o campo ficou cheio de vida com o
verde novo que o cobria, o ar fresco e fragrante que o parecia beijar.
As seis horas e meia, a mansão do general foi iluminada de baixo para cima. Parentes de Boston,
Filadélfia e Nova Iorque estavam já alojados nos quartos dos hóspedes,
e as estufas locais tinham sido esvaziadas para serem cheias de móveis, tapetes e candeeiros, mais
ficando a parecer pequenas casas de Verão. Foram contratados
criados extras; um dos enormes salões tinha sido transformado em sala de jantar auxiliar, e embora
os convidados não jantassem senão às oito horas, as cinco enormes
mesas estavam já
cobertas de pratas, cristais bordejados a ouro e candelabros, e de imensas travessas cheias de
presunto, carnes frias e aves.
Todos concordavam que tanto em luxo, comida e música como no esplendor dos vestidos das
senhoras, a hilaridade, os vinhos, a alegria e a beleza, a recepção era
inultrapassável em toda a história de Riversend.
Quanto à noiva, no seu vestido Worth, de um azul-pálido, apanhado aqui e ali com pequenos
botões-de-rosa de veludo, a sua beleza era espantosa e esfuziante. Parecia
rodeada de uma aura radiosa, a sua natural e um pouco impudica jovialidade agora algo retraída
debaixo do impacte delirante da felicidade. O noivo estava, segundo
as senhoras, devastador. Mas havia algumas más línguas que diziam que todo aquele esbanjamento
e luxúria eram "pouco refinados" e de modo nenhum "elegantes", pois
faltava ali muito do recato sóbrio que devia ser apanágio das boas famílias. Mas... tudo isso não
passava, provavelmente, de inveja.
Nunca, diziam as senhoras, soltando suspiros abafados, tinha havido um cavalheiro tão devotado
como Mr. Lindsey. Ardente, apaixonado, parecia devorar os passos de
Miss Sally. E que belo que ele era!
Não houve uma única nota discordante toda a noite. Até mesmo Miss Dorothea Lindsey, condenada
e esquecida pelo seu comportamento rígido e modos secos no passado,
a sua silenciosa desaprovação por tudo, parecia quase contente. Na verdade, ela emergira dos seus
constantes cinzentos e pretos e envergava um vestido púrpura, animado
com botões dourados no corpete, muito rodado e quase vaporoso. Muitas senhoras exclamaram, por
detrás dos seus leques, que nunca tinham imaginado que ela fosse uma
criatura tão apresentável. Evidentemente, diziam elas, era impensável que Miss Dorothea pudesse
ter recorrido à vergonhosa arte de dar cor artificial à sua pele
habitualmente pálida, mas a verdade é que a cor das suas faces era realmente notável! Era verdade
também que era já um pouco idosa, quase com quarenta anos, de facto,
mas havia nela, naquele dia, um ar tão jovial que, para quem não soubesse a sua verdadeira idade,
parecia muito mais nova. O seu cabelo negro, apenas ligeiramente
salpicado de um ou outro cabelo grisalho, tinha sido sabiamente penteado, enrolado em bandós
dispostos em redor da sua testa austera. Vários solteiros se mostraram
interessados por ela. Afinal, Dorothea revelava-se uma criatura bonita, e, para além disso, havia
uma considerável fortuna por detrás dela.
Poucos tinham sido aqueles que alguma vez tinham ouvido Dorothea rir, e quando ela o fez, um
pouco relutante e forçada,
muitos dos que a tinham conhecido durante toda a vida voltaram as cabeças para verem quem era a
estranha que se encontrava entre eles. E ficaram perfeitamente perplexos
e boquiabertos quando descobriram que toda aquela alegria emanava de Miss Dorothea.
Mr. Lindsey tinha insistido em estar presente. Embora emagrecido, fraco e exausto como estava,
encontrava-se sentado ao lado do seu velho amigo, o general, sorrindo
e conversando com ele, e beijava Miss Sally sempre que esta se detinha a seu lado. As suas faces
empalidecidas brilhavam, animadas; era como se a pressão e o medo
se tivessem afastado dele. Quando ficava sozinho com o general, segredava ao seu amigo
informações que faziam com que o velho soldado impasse de prazer e satisfação.
Todos tinham aguardado, com uma expectativa maliciosa, o aparecimento ofuscante de Mrs. Alfred
Lindsey, mas ficaram todos desapontados, e até com uma leve sombra
de frustração. Remordendo a sua expectativa frustrada, todos chegaram à conclusão que, por fim, e
sensatamente, aliás, ela se tinha decidido a remeter-se ao seu
papel de senhora casada, séria e responsável.
O seu vestido de veludo rosa-escuro e rendas sóbrias tinha um corte delicado mas muito recatado, e
não tinha a ornamentá-lo quaisquer jóias. Os seus gestos eram
abstractos, mesmo ausentes, parados. Sem dúvida que o forte tom vermelho que outrora lhe tingira
os lábios resultara de puro artifício, pois agora estavam quase
roxos, e até o tom purpúreo dos seus olhos parecia desmaiado. Ninguém a ouvia rir, e não dançou,
permanecendo sempre ao lado do seu marido, que não gostava daquele
exercício. Foi igualmente notado que tinha emagrecido muito, e que parecia absorta e distraída.
Seria possível, murmuravam entre si as senhoras presentes, que a
jovem Miss Lindsey estivesse já... ? Perscrutaram-lhe minuciosamente a figura em busca de
qualquer indício, qualquer traço que pudesse confirmar as suas suspeitas.
Era verdade que só quatro meses haviam decorrido desde o casamento e a cintura continuava muito
fina. No entanto, isso seria excelente para Alfred, o pobre cavalheiro
que apenas possuía aquele infeliz aleijado como resto do seu primeiro casamento.
Notaram que Alfred parecia um pouco preocupado e cansado. Talvez estivesse em cuidados com "o
estado interessante" da sua jovem esposa. Quando, por qualquer motivo,
alguém o afastava do lado de Amalie, fazia-o com uma espécie de impaciência marcada, e logo se
apressava a voltar para junto dela.
"Quanta devoção!", suspiravam as senhoras.
A viúva Kingsley decidiu investigar. Foi encontrar Amalie sozinha, encostada contra a parede, e
quase escondida por um emaranhado de plantas.
Beijou a jovem, afectuosamente, e depois de uma breve troca de amáveis e cortezes cumprimentos,
a viúva perguntou, directa e quase abrupta:
- Minha querida, estás à espera de bebê? Toda a gente está curiosa. Pareces tão lânguida!
Amalie não corou nem fez qualquer movimento de surpresa.
- Não! - respondeu, muito calma. - Não! pelo menos, porenquanto.
A viúva perscrutou o rosto da outra mulher, por sobre o seu leque.
- Não há nada tão reconfortante para uma esposa como ter filhos, meu amor. Acho que dão muita
satisfação num casamento.
Gargalhou, escarninha, e continuou:
- Pelo menos, os preliminares. Devias ter meia dúzia, pelo menos.
Amalie esboçou um leve sorriso, e disse:
- Hei-de lembrar-me do seu conselho, querida Mistress Kingsley. É muito amável da sua parte.
- Eu nunca tive nenhum! - confiou-lhe a viúva. - Também nunca gostei de crianças. Mas, claro, isso
é uma coisa muito pouco natural. Aliás, eu sou uma mulher muito
pouco normal. Prefiro os gatos. Mas num mundo sempre tãopretenciosamente natural, é muito
agradável ser-se "anormal".
O sorriso de Amalie foi um pouco menos forçado quando retorquiu:
- Creio que são as pessoas... "anormais" que fazem a história. Além disso, têm um efeito quase
hipnótico sobre aqueles que são... "naturais".
A outra mulher soltou uma gargalhada.
- Suspeito bem que tenhas razão, minha jóia. Consegui hipnotizar três homens e convencê-los a
casar comigo. E todos cavalheiros... de substância. Olha bem para mim:
não sou, nem um pouco, atraente nem encantadora. E, no entanto, os três cavalheiros, com fortuna,
casaram comigo, e adoraram-me. Isso é... hipnotismo. Censura-los?
- perguntou, com um sorriso mordaz.
Amalie olhou-a com atenção, pela primeira vez.
- Não! - respondeu ela, lentamente, como se meditasse nas palavras que ia proferir. - Não os
censuro. Eles devem-na ter achado excitante, depois das suas ligações
com tantas mulheres insípidas.
A viúva, agradada, bateu afavelmente com o leque no braço da jovem.
- Gosto de ti, criança. Nem sequer uma vez disseste: "A senhora deve ter sido bonita, ou
encantadora". Tu tens... um olho apurado. Eu sempre fui feia, mas soube
ser sempre boa conversadora e anfitriã. Um homem pode cansar-se de um rosto bonito e de um
corpo elegante (que ele imediatamente se dispõe a destruir, claro), mas
nunca se cansa de uma mulher que o diverte. Eu aconselho sempre uma noiva a ser divertida.
Diabos! O que eu digo é que quanto mais malícia, melhor. Se não a possuem
com naturalidade, inventem-na! Usem a imaginação! Leiam muito, mas em privado, e recordem-se
depois das piadas brejeiras e dos acidentes excitantes que leram. Não
julguem que já sabem tudo. Os cavalheiros não admiram os comentários, cheios de sensatez, das
suas mulheres. Façam os diabos rirem. Eles dir-lhes-ão que não aprovam
o escândalo, como um que gato se lambe todo com o creme que lhe oferecem. Nunca conheci uma
esposa com talento para o escândalo que tivesse perdido o marido a favor
de outra mulher. Uma história chocante acerca de um amigo ou conhecido vale bem qualquer
quantidade de dever e virtude de uma esposa, e ultrapassa, mas de longe,
o que se consegue com a lingerie francesa.
Pela primeira vez naquela noite, e mesmo durante semanas, Amalie riu. A viúva sentiu-se
recompensada. Não gostara nada da cor cinzenta do rosto de Amalie, nem do
desespero sombrio e perdido que lia nos seus olhos.
E disse:
- Se for possível juntar uma perna bem feita, metida numa meia de seda, e uma coxa agradável, a
uma história picante, consegue-se dominar os velhacos, como escravos,
durante uma vida inteira. E, no entanto, eu não tinha pernas bem feitas e consegui prendê-los. E isso
porque tenho imaginação!
A viúva abanou a cabeça e continuou:
- Os homens são umas criaturas irresponsáveis e inconstantes. Impuseram, sobre nós, as mais
enfadonhas virtudes e chamaram a essas virtudes "naturais". Mas, na realidade,
não passamos de criaturas insatisfeitas e violentas, debaixo da nossa capa de boas maneiras e
palavras comedidas. E, por mais estranho que pareça dizê-lo, é esta
qualidade que existe dentro de nós que, quando usada com gosto e malícia no casamento, mantém
os maridos ao nosso lado. Mas, se tomamos os homens demasiado à letra
e tentamos viver de acordo com o molho de virtudes que eles nos apontam, depressa eles se cansam
e desaparecem para correrem atrás do primeiro par de tornozelos
bem torneados que lhes apareça pela frente.
Mas Amalie já não a escutava. Jerome tinha acabado de dançar com Miss Sally, ao ritmo de uma
valsa perturbadoramente excitante. Os caracóis de Sally tinham-se aproximado
indecorosamente dos lábios de Jerome, e o rosto dela fora o de uma jovem adormecida, arrancada
de súbito dos braços de um sonho intoxicante. Jerome sorrira-lhe ternamente
durante toda a valsa, e o braço apertara-se em redor da sua fina cintura. Os olhos de Amalie
fecharam-se espasmodicamente.
A viúva Kingsley, com a sua astúcia e a sua perspicácia, apercebeu-se de tudo. Ergueu-se, aguardou
uns momentos, e depois deu uma pancada seca e brusca no braço
de Amalie. Esta virou-se para ela, com ar ausente e perdido. A viúva falou baixo, mas o seu olhar
era penetrante.
- Já alguma vez jogaste ao "mercado", minha querida? Não? Há um ditado
que diz que se deve, de vez em quando, avaliar os prejuízos. É isso que deves fazer. Segue
o meu conselho, pois sou uma mulher velha, e aprendi a conhecer o senso comum.
Amalie fixou nela os olhos muito abertos. Mrs. Kingsley abanou ao de leve a cabeça e sorriu
sombriamente.
- Sim, minha querida. É triste quando uma mulher é menos sensata do que um homem!
E afastou-se, chamando em voz alta e estridente por um desconhecido.

Amalie olhou-se ao espelho do seu toucador. Falando consigo mesma, disse:


- Não sou sensata! Nunca fui sensata!
Não fazia um movimento sequer. Estava assim, sentada, imóvel, havia mais de quinze minutos,
sentindo-se incapaz de fazer qualquer esforço para se despir, as mãos
inertes, mortas, pousadas entre frascos de cristal e ouro que cobriam o rendilhado do toucador.
Como era possível saber se era sensata ou não? As exigências do momento obrigavam a uma
decisão, e as pessoas acabavam por se convencer de que a decisão tomada era
inevitável ou acertada.
Pensou na sua infância e na sua adolescência e sentiu abater-se sobre ela toda a sordidez, a fome, o
medo que tinham preenchido todos aqueles anos da sua vida. Via
à sua frente o casebre miserável onde vivera com a mãe moribunda e o pai bêbedo. Via o rosto de
sua mãe, exausto depois de intermináveis horas de trabalhos nas cozinhas
dos outros, ouvia a voz do pai,
roufenha e embargada, soltando pragas e obscenidades, aspirava-lhe o bafo nojento da sua
respiração. Via o seu próprio rosto, jovem e bonito, reflectido no pedaço
de espelho quebrado que pendia de uma das paredes miseráveis da cozinha, e ouvia a sua própria
voz dizer:
- Nunca! Nunca! Há, para mim, mais qualquer coisa do que isto. Hei-de encontrá-la! Hei-de
encontrá-la!
Viu a neve que parecia infindável em redor do casebre esburacado e sentiu na carne o vento gélido,
quando se dirigia, rota e descalça, à bomba da água. Nessa altura,
olhava para as estrelas e repetia, uma vez e outra, e outra ainda:
- Nunca! Nunca!
Sentira força no seu cérebro e na sua vontade, e na beleza do seu rosto. Tinha, então, apenas catorze
anos, mas aquela força permanecera com ela, sempre, como uma
arma.
Sim, a sua vontade e a sua beleza tinham sido sempre as suas armas. E muito cedo compreendeu
que não eram fracas, essas armas que possuía. Nunca pedira ajuda, nem
piedade, nem compaixão. O que tinha feito, fizera-o sozinha. Um breve sopro de orgulho sacudiu-
lhe por instantes o corpo abatido por um sofrimento dilacerante e
febril.
Via a cama reflectida no espelho. Estava segura. Estava livre. Tinha de... "avaliar os prejuízos". O
que é que tinha perdido?
- Nada! - disse ela em voz alta.
O que é que era aquela coisa estúpida que a torturava, comparada com aquilo a que conseguira
escapar e que durante tantos anos suportara? Se tinha tido tanta força
no passado, precisava agora apenas de um pouco menos de força, e viveria, então, em paz.
Cobriu os olhos com uma das mãos e tentou recompor-se, apelando para aquela sua antiga força.
Não ouviu a porta que dava para o quarto de vestir abrir-se e voltar a fechar-se. Foi por isso que se
sobressaltou violentamente, quando ouviu a voz de Alfred, amável
mas com um ligeiro tom de reprovação:
- Minha querida, ainda não estás despida! Sabes que já passa da meia-noite?
Deixou cair a mão e olhou, através do espelho, para o marido. Depois, disse, com um tom de voz
quase mecânico:
- Desculpa! Estou tão cansada! Estava agora a tentar descansar um pouco, Alfred.
Ergueu-se. Ele ficou junto dela, envergando um roupão vermelho. Hesitava e bailava-lhe nos lábios
um sorriso confundido e embaraçado. Mas havia um pesado rubor no
seu rosto. Envolveu-a
nos braços e beijou-lhe os lábios com avidez. Depois, sussurrou-lhe:
- Querida, sabes que há já mais de dois meses que não...? Sentiu-a endurecer como pedra entre os
seus braços, mas não
ouviu o súbito pensamento selvagem e aterrorizado que lhe cruzou o espírito:
"Mas isso seria adultério!"
Soltou-a, docemente, e olhou-a surpreendido.
Exclamou:
- O que é que se passa, Amalie? Sentes-te doente?
Mas ela estava dominada pelo terror daquele pensamento involuntário, aquele pensamento
monstruoso e cortante. Assustado, Alfred pegou-lhe na mão e quase gritou:
- Amalie, estás doente?
Apertou-lhe os dedos gelados entre as palmas das mãos. Quase frenético, olhou para o toucador.
Encontrou um frasco de sais, desrolhou-o e aproximou-o do nariz dela,
murmurando palavras incoerentes e desconexas. Ajudou-a, depois, a sentar-se na cadeira. A cabeça
dela descaiu-lhe para a frente. Ele ajoelhou-se à sua frente abanando-a
apavorado.
- O que é que tens, Amalie, minha querida? Pousou-lhe a mão sobre a testa, ergueu-lhe o rosto, e o
que
viu deixou-o ainda mais assustado. Levantou-se agitado, relanceou um olhar quase selvagem para a
porta, como se hesitasse em pedir ajuda a alguém.
Amalie comprimia, agora, as mãos contra o rosto, e gemia baixinho. Alfred puxou do lenço,
embebeu-o profundamente em água de colónia, e esfregou, depois, com ele
as faces e a testa de Amalie.
- Meu Deus! O que é que se passa, Amalie? Diz-me. Não consigo suportar o teu silêncio. Estás
doente?
O cheiro forte e penetrante da água-de-colónia ajudou-a a recuperar um pouco o seu controle
perdido. Apoiou-se contra o marido, soltando suspiros profundos. Mas
não olhou para ele quando murmurou, respirando ofegante entre as palavras:
- Estou apenas cansada. Foi... Uma noite muito longa. Calou-se, e depois continuou a falar num
murmúrio mais
baixo ainda, mas mais firme:
- Sim, estou cansada. Foi o tratamento do teu tio .. Estou tão cansada que me sinto morrer. Tu... tu ..
tens de me dar um pouco mais de tempo.
Ergueu a cabeça e tentou encontrar-lhe os olhos.
- Tu... compreendes?
- Certamente! -exclamou ele.
Mas não compreendia. Para ele era suficiente verificar que ela se recompusera um pouco. Porque
não, então...? O coração pareceu reduzir o ritmo quase louco com que
batera até ali.
Pensou:
"Não há mulheres compreensivas. É verdade que ela me disse que não me amava, que gostava
apenas um pouco de mim e que tentaria ser para mim uma boa esposa. Eu sabia
tudo isso antes. Mas ela não se retraiu de mim, quando a tomei por mulher; foi gentil e até amorosa.
Eu não esperava mais nada. Compreendi que as mulheres educadas,
ou as mulheres com um mínimo de pretensões a nobreza, não tinham... instintos dentro delas. Isso é
mais próprio das prostitutas e das mulheres anormais."
Inspirou profundamente, como que a recobrar a segurança em si próprio.
"É preciso lembrar:me que elas são criaturas delicadas, e bastante inexplicáveis. É preciso ser-se
paciente!"
Depois passou-lhe pelo espírito um pensamento electrizante, poderoso e excitante. Ajoelhou-se ao
lado de Amalie e puxou-a contra si. Ela deixou cair a cabeça sobre
o ombro dele, como se estivesse desfalecida, exausta de cansaço.
Por fim Alfred murmurou, quase num sussurro:
- É possível, Amalie que... que...
Ela ficou em silêncio nos seus braços. Para Amalie a duplicidade e a traição eram coisas que lhe
eram desconhecidas. Nunca desferira uma bofetada em alguém que nela
confiasse, nem mesmo em nenhum dos seus inimigos. Mas agora, no extremo das suas forças,
murmurou:
- Eu... não sei... ainda.
Ele riu alto, mas suavemente, num acesso de deleite e satisfação.
- Deves ir imediatamente ao doutor Hawley, Amalie! Amanhã mesmo! Minha querida, se isso fosse
verdade!
Se aquela coisa maravilhosa, gloriosa, fosse verdade, então tudo estava explicado, o afastamento
dela, aquele evitar que o deixava atormentado. Aquilo explicaria,
completamente, mesmo mais do que o seu "cansaço" e a sua reacção da tensão que sofrera durante
as longas semanas em que tratara de seu tio. Ficou contente. Exultante,
prometeu a si próprio que compreenderia. Sim, haveria de compreender a atitude dela.
Pensou no jovem Philip, a quem amava, apesar do desapontamento que sofrera com ele. Para Philip,
seria excelente ter um irmão. Então, Philip não precisaria de ir
em Setembro para o colégio que tanto receava, para se preparar para a sua vida de filho de um
banqueiro. Philip, pobre rapaz, poderia permanecer
em casa. Haveria, em vez dele, um outro rapaz, mais forte, mais capaz de
agüentar o pesado fardo que o esperava.
Ajudou Amalie a pôr-se de pé. Ela estava pálida, mole nos seus braços. Muito ternamente ajudou-a
a despir-se. Enquanto o fazia, falava-lhe com ternura, muito devagar,
soltando de vez em quando gargalhadas suaves.
Capítulo vigésimo quarto
Mr. Lindsey, Philip e Amalie estavam sentados ao sol quente dos primeiros dias de Maio.
Para Mr. Lindsey, pelo menos, os montes nunca tinham estado tão verdes, tão suavemente cobertos
de relva macia. Nunca tinha havido um céu tão límpido, tão apaixonante
azul e cheio de vida. Nunca ele tinha sentido aquela tão grande ansiedade de viver, a tranqüilidade e
a alegria de existir, o ardente êxtase de ter retomado a consciência.
Nunca tinha sido um homem religioso; era um céptico, que tinha construído a sua casa com
raciocínio e lógica. Mas agora estava velho e chegava a suspeitar de todo
o seu raciocínio.
"A lógica", pensou, "é o apanágio do grande conservador, do intolerante. É o procrastinador cego".
Se, através dos anos, o homem tivesse dado ouvidos à lógica, o pouco progresso que tinha feito
nunca tinha chegado a existir. Mas o homem, felizmente, escutara o
seu instinto, esse poderoso inimigo do raciocínio.
E pensou ainda:
"Nunca conseguiremos resolver o problema do homem aplicando instrumentos científicos.
Conhecer-nos-emos apenas através dos nossos instintos. No escuro deserto desses
instintos está Deus, um arbusto ardente, iluminando toda a paisagem caótica."
Tinha acreditado sempre que apenas os jovens eram instintivos, conscientes dos misteriosos poderes
do universo. Mas agora sabia que os velhos, sentados ao calor
do sol, acabados para tantas coisas, sentiam também a força poderosa do instinto. Os velhos
chegavam a uma altura em que suspeitavam do raciocínio e da lógica, porque
tinham emergido da escura e dura prisão da luta pela existência, ou dos sombrios claustros da
filosofia.
"É significativo", pensou, "que a lógica tenha sido sempre tão admirada pelos dialécticos retirados,
e por eles tenha sido desenvolvida até ao mais alto grau do
absurdo. A lógica é o servo
de qualquer homem. Ele consegue erguer-se até aos seus universos grotescos e privados, pela
escada segura de um silogismo perfeitamente válido e lógico. Pelo raciocínio
sinceramente lógico, ele pode persuadir-se a cometer enormidades, e até mesmo o suicídio".
Mr. Lindsey suspeitava que a maior parte dos homens
cometiam o suicídio. Alguém dissera uma vez acerca de um E certo homem:
"Morto aos quinze anos; sepultado aos setenta e cinco."
Quando é que ele tinha morrido? Isso era, para ele, mais
importante agora do que a pergunta de quando é que seria sepultado. Mas não, isso já não
importava, afinal, porque estava
vivo de novo, completamente vivo, e mesmo à beira do seu túmulo.
Era triste, era mesmo terrível que um homem só conhecesse
o valor, a ternura e a grandeza da vida quando estava prestes a partir, como uma pessoa que deixa
para sempre a sua velha e familiar casa de súbito se torna consciente
de quanto ela lhe é querida e de quanto ela significa para ele. Vê todas as árvores com toda a
clareza, como nunca as tinha visto antes. Vê a luz nas janelas dos
quartos em que jamais voltará a entrar; vê o marfim suave das pedras, o reflorir dos velhos jardins,
os passeios que lhe são familiares, e as paredes aquecidas pelo
sol.
Vê a sua casa, não como uma simples construção, um simples local de habitação, um mero abrigo
para o seu corpo e uma protecção contra os terrores da noite, mas como
uma parte de si próprio, uma parte de toda a dor que suportou, uma parte de todas as coisas que
amou e as paixões que experimentou. Quando finalmente se afasta da
porta depois de rodar a chave na fechadura, parte para o exílio cheio de dor.
"Aprendemos a viver e a compreender quando já é demasiado tarde", pensou.
O tempo não era nada. Talvez as poucas horas oferecidas a um velho, antes da partida, quando pode
olhar para trás com toda a consciência, clara e nítida, fossem
as únicas horas realmente significativas na vida de um homem. Olhou para o céu e sentiu que, de
súbito, um êxtase calmo
o invadia, uma espécie de realização plena. Não era fé. Era algo de mais profundo, mais suave,
muito mais íntimo. "É o bastante", pensou. "É o bastante para compensar
uma
vida inteira de sofrimento, de tristeza e de luta, ter-se um momento ou dois de êxtase que
acompanha o conhecimento da existência de Deus, do significado do homem,
da paz que vem com essa consciência, a luz que "nunca pairou sobre o mar, nem sobre a terra"."
Estava sentado ao sol, com a manta de caxemira a cobrir-lhe os joelhos trémulos, a cabeça branca
descoberta ao vento suave. Amalie e Philip estavam a seu lado, sentados
em cadeiras que tinham trazido para junto dele. Amalie, a seu pedido e de Philip, tinham estado a
ler-lhes o Fedo, de Platão. Mas Mr. Lindsey tocou-lhe no ombro,
suavemente, e disse-lhe:
- Por favor, querida, já chega! Até mesmo Platão pode tornar-se cansativo. Ele é sempre tão lógico!
Amalie ergueu os olhos para ele, surpreendida. Depois, viu o rosto de Mr. Lindsey, e ficou em
silêncio. Fechou o livro.
Mr. Lindsey olhou pensativamente para Philip, e perguntou:
- Que pensas tu de Platão, meu rapaz?
Philip corou. Baixou os olhos, fixando-os nas suas bonitas mãos brancas, tão magras e apertadas
uma contra a outra, agora. Foi num quase sussurro que respondeu:
- Eu... eu acho que quase todos os filósofos tornam... as coisas... tão... realistas...
Mr. Lindsey não pronunciou palavra, mas ficou intensamente comovido. Sim, o seu instinto tinha
razão. Apenas os muito jovens e os velhos compreendiam. Estendeu o
braço e pousou a mão sobre o ombro de Philip.
Por fim, quase murmurando, disse Mr. Lindsey:
- E os nossos cientistas, e os nossos novos cientistas, intoxicados agora com Darwin e Huxley, e
tantos outros, emergirão um dia do materialismo que lhes é tão querido,
da adoração que sentem pelas leis naturais, e redescobrirão Deus. Talvez no tubo de ensaios ou no
átomo, nas estrelas ou nos estratos geológicos, ou até nos produtos
químicos. Que tremendo choque que será para eles.
Amalie olhou para Philip e depois para Mr. Lindsey, e de novo para Philip.
"Que parecidos são!", pensou ela. "Apesar do pálido puritanismo de um, tão próprio dos da Nova
Inglaterra, e da cor morena, quase latina de Philip... são parecidos!"
Havia qualquer coisa de muito vivo neles, apesar do seu silêncio. Havia neles uma vitalidade frágil,
mas ao mesmo tempo forte como o aço. Amalie soltou um suspiro,
descansou as mãos sobre o livro fechado e olhou lá para baixo, para o vale.
Mr. Lindsey ouviu aquele suspiro. Olhou para Amalie com uma concentração súbita.
Como é que não se tinha apercebido da intensa palidez que inundava o rosto da jovem? Como é que
lhe tinham passado despercebidos os seus longos silêncios, o seu
ar abstracto e ausente daqueles últimos dias? Perplexo, sentiu que se apoderava dele
uma ansiedade intensa, uma angústia receosa. Para onde tinha ido o antigo esplendor, a força
natural de Amalie? Sempre a imaginara como uma égua selvagem, no topo
dos montes, vigilante mas apaixonada, fremente perante a sensação de deliciosas aventuras,
confiante, temerária, enfrentando os perigos com uma coragem indomável.
Lembrava-se agora de que nunca a tinha ouvido rir, e que Amalie se transformara num fantasma
dentro daquela casa, falando sempre em voz baixa e vazia de entoações.
Lembrava-se vagamente de Dorothea ter elogiado, embora com ar relutante, a devoção de Amalie
pelos deveres caseiros, o novo "senso comum" que parecia tê-la invadido.
E (Dorothea descobrira que Amalie não tentava substituí-la, nem ocupar o seu lugar, e que se
satisfazia em ser uma "inferior", a quem se dão lições, e isso agradava-lhe
imenso. Ela, Dorothea, tinha-se dignado, até, lamentar a vinda de Miss Sally Tayntor, Sally que,
provavelmente, não seria tão dócil nem tão "sensata" como Amalie
se mostrava.)
Mr. Lindsey sabia que Amalie não era nem um pouco popular entre as senhoras de Riversend, mas
também não conseguia fazer despertar nelas o antagonismo e o desprezo
que tão vigorosamente elas tinham esperado vir a sentir. Tinham-se armado
de unhas e dentes contra ela, para depois descobrirem que Amalie não utilizava quaisquer armas
nem fazia gestos hostis. Começavam a aceitá-la no deslizar
dos seus dias calmos e até a protegê-la com uma certa amabilidade.
Todo o seu temperamento vibrante, as suas gargalhadas que soavam como um desafio, os seus
comentários cortantes, tinham desaparecido. Ela estava a "assentar", e
isso era muito bom. E Dentro de pouco tempo, -diziam as senhoras, tornar-se-ia bastante aceitável,
porque estava, provavelmente, a tomar cons ciência, agora, da
boa sorte que a bafejara, apesar da sua falta de princípios, de educação e de família.
Recordando tudo isto como uma espécie de alarme irritado, Mr. Lindsey perguntou a si próprio:
"Que foi que aconteceu a Amalie? Terá ela descoberto que o negócio que fez foi demasiado duro?"
Mas não. Amalie não era nem fictícia nem engenhosa, e disso tinha ele a certeza. Ele sabia bem a
extensão do compromisso que assumira. Quando estava com Alfred,
toda ela era gentileza e amabilidade, e os seus poucos sorrisos eram sempre dirigidos ao marido. Se
Alfred estava por perto, ela procurava sempre ficar a seu lado,
descansando as mãos nas dele, como que apedir protecção. Era evidente que ela não sentia repulsa
pelo marido, mas antes uma espécie de ternura. Todavia, Mr. Lindsey
surpreendera
por várias vezes a sua expressão quando olhava para o marido, e vira nela um quase receio,
humildade demasiada, ou um vago desespero. Porém, todas essas
coisas tinha-as ele observado inconscientemente. Apenas agora elas lhe assaltavam o seu espírito, o
seu consciente.
Estaria Amalie aborrecida com a vida calma que levava naquele refúgio? Não, havia mais do que
isso. Acharia ela que a existência não tinha nem validade nem excitação?
Nela sempre existira uma vitalidade dominada, um ardor abafado, como se estivesse demasiado
cheia de consciência perante a vida. Mas... aquela melancolia terrível
abatera-se sobre ela como uma pedra tumular, pesada e demolidora, e Amalie movia-se ténue e com
esforço debaixo dela, num desespero cego e mecânico.
Conhecia Amalie demasiado bem para se deixar enganar. A amargura que adivinhava em Amalie
não resultava do facto de ela desejar não ter assumido aquele compromisso,
ou voltar à existência perigosa e miserável que tinha sido a sua antes de ter casado com Alfred. Era
qualquer coisa mais o que lhe roubara do rosto a luz e o brilho,
que lhe tinha roubado a cor dos olhos e lhe transformara os lábios brancos e exangues, o passo lento
e pesado, a voz quase inaudível.
Durante um momento, um pensamento cruzou-lhe o espírito. Mas não, mulheres no... "estado
interessante" pareciam florescer, tornavam-se mais rosadas e redondas. Era
alguma doença de alma que atingira Amalie, algum sofrimento escondido, mas assassino.
O seu alarme aumentou. Algo acontecera àquela rapariga, a quem ele amava mais do que alguma
vez amara a sua própria filha. Algo lhe roubara a vida, substituindo-a
por uma morte silenciosa e que avançava pé ante pé. Talvez lhe tivesse morrido algum familiar a
quem amasse muito! Mas não, ela não tinha ninguém, isso sabia ele.
Que lhe poderia ter acontecido naquela casa sossegada e calma, onde até mesmo Dorothea se
tornara sua amiga, ainda que dura e resistente, onde Jerome a tratava com
a amizade de um familiar? O que é que lhe teria acontecido? Quem lhe teria feito mal?
E disse:
- Amalie. O que é que se passa? Não pareces bem. Que estúpido fui eu em não ter reparado nisso
antes!
com a sua perspicácia apurada, reparou que ela erguia a cabeça, lentamente e com esforço, e que o
espesso cabelo negro que costumava emoldurar-lhe o rosto perdera
todo o seu brilho. Ela sorria-lhe, agora, mas o cansado coração de Mr. Lindsey bateu mais apressado
ao reparar que nos olhos de Amalie só havia sofrimento e dor.
- Por favor, não se alarme, querido tio William! - disse ela, suavemente. - É apenas que... que o
tempo de Primavera, tão quente, me cansa.
- Tu não tens estado bem, desde que eu estive doente! . exclamou Mr. Lindsey, com um tom de
remorso na voz. - Foi demasiado, para ti!
Mas... não acreditava nas próprias palavras que proferira. - Estava muito preocupada consigo!-disse
Amalie.
O rápido ouvido de Mr. Lindsey apercebeu-se do tom evasivo com que ela lhe respondera.
Recostou-se na cadeira e ficou em silêncio. Philip, por sua vez, olhou para a madrasta, preocupado.
A mão estendeu-se involuntariamente na direcção dela; Amalie
pegou-lha e apertou-a, sorrindo-lhe como que a querer dizer-lhe que estava tudo bem.
Mr. Lindsey disse:
- Nunca acontece nada aqui. Tu precisas de gente nova, de senhoras jovens, Amalie. Será bom para
ti quando Jerome casar com Sally e a trouxer para aqui. Vocês são
quase da mesma idade.
Sorriu, esquecendo por momentos a sua ansiedade por ela. Depois, continuou:
- Será agradável ouvir crianças a correr de um lado para o outro. Estas salas têm estado demasiado
silenciosas.
Os finos dedos de Amalie apertaram-se em redor do livro, e as rugas em volta da boca pareceram
ficar mais profundas. Mr. Lindsey voltou de novo a atenção para ela.
- Não seria possível que tu me acompanhasses, e a Philip, a Saratoga, Amalie? Evidentemente que
não sofres de artrite, como nós, os velhos.
Sorriu, gentil, para Philip, e continuou:
- Mas as águas talvez te fizessem bem!
- Não, não seria justo deixar Dorothea... com todo o trabalho! - disse Amalie, com um tom de voz
abstracto.
Depois, sorriu para si própria, e disse ainda:
- Além disso, eu já o sugeri a Alfred. Disse-lhe que, como depois de o deixar a si e a Philip em
Saratoga, ele vai em negócios a Nova Iorque, eu gostaria de ir com
ele. Mas ele é de opinião de que devo ficar aqui, e tem razão.
Um rubor sombrio inundou-lhe o rosto, subiu-lhe à testa, e ela pensou para si própria:
"Quando Alfred voltar, vou pôr ponto final em toda esta farsa. Quando ele regressar, terei
recuperado um pouco a minha força e a minha razão. Fazei com que eu consiga,
meu Deus. Terei tempo para pensar..."
Mr. Lindsey, viu-lhe o rubor no rosto, e pensou que ele resultasse de um ressentimento natural,
contra o marido dominador. Mas não disse nada, limitando-se a olhar
para Amalie com crescente preocupação.
O sol radioso deslizava na direcção das colinas ocidentais, e uma luz mais suave, desmaiada,
inundou o vale lá em baixo.
Os três que se encontravam no terraço ouviram os jardineiros regando os jardins e os relvados.
Sentiram o cheiro dos lilases, das flores de cerejeira e das macieiras,
o aroma da terra coberta de um verde que como As janelas do andar superior da casa começavam a
transformar-se, lentamente, em fogo.
Ouviram rodas de carruagem sobre o caminho de pedras, e o som das vozes de Alfred e de Jerome.
Logo de seguida, os dois cavalheiros deram a volta à casa e vieram
cumprimentá-los.
- Um dia magnífico! - disse Alfred, tirando o chapéu e erguendo a cabeça contra a brisa que
começava a soprar mais forte.
- Vinha justamente a dizer a Alfred que é um crime trabalhar quando o tempo está assim tão bom! -
disse Jerome, lançando um olhar sorridente e afável para os três
que se encontravam no terraço.
Alfred, sem humor, tornou-se de súbito reprovador.
- Um homem tem de trabalhar para viver - disse ele, como se ditasse uma sentença.
Franziu o sobrolho. Ele e Jerome tinham chegado a um acordo desde a doença de Mr. Lindsey, e
sinceramente esperava que o primo não estivesse a descair de novo para
a sua leviandade e para as suas imprevisíveis heresias.
Jerome gargalhou:
- Mas se um homem trabalhar constantemente para viver, então a vida não vale a pena.
Sentou-se na relva, e olhou com agrado para o céu.
- Precisamos de uma nova educação na América. Os Americanos deviam aprender que nem só de
pão vive o homem. Deviam aprender que o trabalho é para ser feito no menor
número de horas possível, e que o mundo está cheio de maravilhas e alegrias que se podem saborear
apenas em longos períodos de lazer, que o universo do espírito
não pode ser invadido por um homem exausto que perdeu a substância da sua vida debruçado sobre
uma máquina ou uma secretária.
Olhou para os outros, com o seu sorriso sombrio e mordaz. O seu olhar aflorou, por momentos,
Amalie, para logo se afastar; Mr. Lindsey sorriu também e retorquiu:
- Quase que concordo contigo, Jerome.
Mas, muito rígido e sério, Alfred apressou-se a dizer:
- O homem foi feito para o trabalho. As civilizações são o resultado do trabalho. Sugeres, então, que
devíamos voltar para o barbarismo, Jerome?
Não se sentara, mantendo-se muito hirto, de pé, ao lado da mulher.
Pensativo, Jerome disse:
- Os Espartanos, que tão devotados eram ao trabalho, e que labutavam desde o nascer do sol até ao
sol-pôr, nunca criaram uma estátua nobre, nem escreveram um poema,
nem fundaram uma religião de amor, beleza e alegria. Apenas produziram soldados. Foram os
Atenienses que se juntaram durante horas à sombra das colunas e dos pórticos
dos templos, que fundaram filosofias da vida, que escreveram poemas e peças imortais e que
construíram um altar ao Deus Desconhecido.
Olhou para o pai que lhe devolveu um olhar grave e ansioso. Jerome tocou ao de leve na manta que
cobria os joelhos do pai.
- Tudo disparates! - disse Alfred, carrancudo. - Não sei nada acerca do passado, mas sei que se a
América quiser erguer-se à posição que deve ocupar como chefe entre
todas as nações, todos nós devemos trabalhar, e trabalhar muito. Afinal, o trabalho é a salvação do
homem.
- Esparta! - disse Jerome, suavemente. - Está esquecida, e os seus soldados também. Mas Atenas
continua a viver.
Ergueu-se ligeiro, e sem esforço. Já quase não coxeava, e havia nele, naqueles últimos dias, uma
espécie de bonomia febril. Mr. Lindsey deu por si a estudar o filho
com toda a
agudeza e perspicácia que o caracterizava.
Estaria ele também a imaginar coisas acerca de Jerome?
Seria realmente verdade que Jerome tinha envelhecido muito, e
E se tornara nervoso e febril?
Perguntou ao filho:
- Estás cansado, Jerome?
E - Oh! Acho que já nasci cansado! - retorquiu Jerome a rir.
- Sinto-me especialmente mal, quando perco o meu tempo a
trabalhar. Não que eu não compreenda a importância do trabalho!
E olhou maliciosamente para Alfred.
- Como vai o Banco? - perguntou Mr. Lindsey.
- Esplêndido!
Foi Alfred quem respondeu, e o seu rosto habitualmente
pálido pareceu iluminar-se.
Hesitou um pouco, e depois continuou:
- Jerome está a ir espantosamente bem. Acho que vou
deixar o Banco em boas mãos quando partir amanhã para Nova
Iorque.
A voz tornou-se-lhe mais quente, e dirigiu ao primo um sorriso reservado, ao qual Jerome
correspondeu com uma vénia.
- Já fizemos as malas, papá - disse Philip timidamente. Alfred voltou a sua atenção para o filho.
- Já, Philip? - perguntou num tom amável, e lançando ao filho o seu habitual olhar sombrio, mas
afectuoso. - Espero que tu e o teu... o teu avô aproveitem bem as
águas. Irei buscá-los dentro de duas semanas e espero ir encontrá-los bem corados e gordos.
Estendeu a mão para a mulher e ela pegou-lhe. Amalie deixou-se ficar a seu lado por momentos,
enquanto ele lhe rodeava os ombros com o braço, mas a cabeça... mantinha-a
inclinada. Atrás deles, Jerome estudou-os intencionalmente, mas o seu rosto manteve-se impassível.
Capítulo vigésimo quinto
Tinha estado muito calor durante a manhã. Ao meio-dia, o sol tornara-se estranhamente abrasador,
mas com um brilho baço. Um pouco mais tarde, o céu tornara-se cor
de açafrão, e uma luz amarelada, um silêncio estranho e opressivo, abatera-se sobre as colinas e o
vale.
Aquele silêncio parecera ter engolido, num vórtex amarelo, até o mais ínfimo som. Era domingo,
mas o som dos sinos da igreja do vale não chegava a Hilltop. Tudo
parecia abafado, emudecido, amordaçado.
Às duas horas, a última criada saíra, já que Dorothea lhes permitira, num gesto
magnânimo, um dia de folga extra (que esperava fosse devotado às acções piedosas
nas igrejas do vale e nas escolas dominicais), dada a ausência de três membros da família. Um
pouco depois das duas, e na falta de criados, foi ela própria buscar
a carruagem da família. A sua melhor amiga, a esposa de um dos advogados locais, tinha ficado
gravemente doente e, Dorothea tencionava passar o resto do dia, e possivelmente
uma parte da noite, com ela. Quando se preparava para sair, perscrutou ansiosamente o céu de
açafrão e lamentou a falta de consideração revelada por Jerome. Na verdade,
o irmão podia muito bem ter esperado por ela na pequena carruagem, dando assim a possibilidade a
Joe, o cocheiro, de iniciar mais cedo aquela folga inesperada. Mas
não, ele tinha teimado em sair mais cedo para ir ver aquela jovem corça, Sally Tayntor, e ela,
Dorothea, via-se obrigada a descer ao vale naquele veículo pesado
e imponente. E, além disso, Joe teria de ficar à sua espêra,
não se podendo afastar muito, a menos que Jerome se convencesse a trazer a irmã quando ela
desejasse.
- Vou-lhe mandar um recado! - disse ela ameaçadoramente para Amalie. - Gostava que viesses
comigo, minha querida, seria uma mudança para ti.
- Não, por favor! - retorquiu Amalie. - Eu... eu tenho uma terrível dor de cabeça. Deve ser do tempo.
Só de pensar em sair, sentiu-se inundada por uma profunda apatia, e uma inércia imensa deixou-a
exausta.
- Tenciono dormir um pouco esta tarde! - continuou ela, cansada. - Voltarás a tempo para a ceia?
- Receio bem que não! - respondeu-lhe Dorothea, ajustando, com gestos bruscos e irritados, o
chapéu. - Mas acho que te deixaram preparada uma refeição fria.
Calou-se por momentos, para logo afirmar ainda: - Não gosto nada que fiques aqui completamente
sozinha, sem um único criado... a não ser que queiras chamar o velho
Hiram, dos estábulos, para vir aqui, para te proteger e fazer companhia!
- Eu não preciso de protecção! - disse Amalie, sorrindo debilmente. - Por favor, não te preocupes
comigo, Dorothea. Estarei a dormir dentro de meia hora.
Dorothea pareceu pensar, olhando fixamente para a jovem. Na realidade, ela parecia enfraquecida.
O arreigado sentido do dever de Dorothea fê-la sentir-se pouco à
vontade. Se ao menos Jerome estivesse ali, já seria um pouco de protecção. Dorothea vivia num
mundo onde toda a gente precisa de "protecção", de uma forma ou de
outra, contra os vagos terrores que pareciam invadir a vida de modo incessante. Lamentou ter
dispensado os criados. Talvez fosse possível encontrar um deles, ou
delas, lá em baixo, e mandá-lo para cima imediatamente. "Isso vai ser muito difícil!", pensou
Dorothea. Os criados tinham um jeito especial para desaparecer, e ela
suspeitava bem que esses desaparecimentos não auguravam nada de bom. Voltou a olhar para o céu.
Tinha um aspecto realmente muito estranho.
- Vai haver uma tempestade! - disse ela, hesitante. Acho, até, que não deveria ir!
Mas naquele momento o sol saiu detrás da névoa amarela, e lançou uma catarata de luz forte e
dourada sobre toda a paisagem. Aquilo fez com que Dorothea se decidisse.
- Tentarei regressar o mais depressa possível! - afirmou.
- Descansa, se puderes. Não estás com bom aspecto.
Hesitou de novo. Depois, beijou o rosto de Amalie com os seus lábios secos. com o seu habitual
bom senso, Dorothea
reconciliara-se com a idéia de ver Amalie como mulher de Alfred e deixara de perder tempo com
débeis repulsas ou tristezas. O facto consumado exigia que o pensamento
dos outros se adaptasse às novas circunstâncias, e ela obrigara o seu a adaptar-se. Via apenas que
Alfred era feliz, que Amalie era agradável e não levantava qualquer
problema, que tinha "assente", ajustando-se ao padrão da senhora casada cumpridora dos seus
deveres, que ela era estimada, profundamente estimada por Mr. Lindsey
e por Philip, e que retirara dos seus ombros uma parte considerável do fardo de dirigir e orientar
uma casa como aquela. Era muito mais do que ela própria esperara
e sabia estar reconhecida por isso.
Afastou-se na carruagem. O tejadilho estava rebaixado, mas Dorothea abrira o seu guarda-sol,
protegendo com ele a cabeça. Amalie ficou a vê-la afastar-se.
Caminhou um pouco e foi depois sentar-se no terraço, perto da porta da frente. Reparou na luz
sinistra que brilhava dourada banhando as colinas, onde o verde deslumbrante
de Maio parecia ter escurecido de súbito, ficando pálido e desmaiado. Olhou o contorno do Sol, de
um cobre esfumado, através das nuvens cor de limão. O vale parecia
flutuar numa névoa ocre. A relva a seus pés tinha um tom de ferrugem, as sombras debaixo dos
arbustos, dos pinheiros e dos ulmeiros eram fechadas e assustadoras.
As enormes paredes de pedra cinzenta reflectiam tons de âmbar, bem como as janelas.
Aquele estranho espectáculo atemorizou Amalie, aumentado, como era, pelo silêncio esmagador e a
total ausência da mais ligeira brisa ou sopro.
As árvores e os arbustos permaneciam imóveis, inertes, numa passividade mole mas opressiva. Nem
um só som saía dos estábulos, ou das capoeiras. Era como se todos
os indícios de vida tivessem desaparecido, fugindo de qualquer coisa de terrível que estivesse para
acontecer.
Amalie sentiu pesar-lhe na carne o calor do ar opressivo. Deu uns passos, vagarosos, lentos,
cansados, e deteve-se. Os seus instintos pareciam ameaçadoramente despertos.
Lembrou-se de que dentro de casa talvez estivesse mais fresco. Entrou, fechou a pesada porta de
castanho atrás dela, e ficou por longos momentos parada na sala de
entrada. Pelo menos ali não havia aquele horrível tom amarelado que parecia ter inundado tudo lá
fora. Dirigiu-se lentamente para o salão de música e, ao entrar
na enorme sala, sentiu um arrepio percorrer-lhe o corpo. As janelas mais pareciam quadros
retratando uma terrível desolação ocre, quadros que pendiam de paredes
sombrias e ameaçadoras.
"Que horrível!", pensou, vagamente. "Vamos ter tempestade O tempo está tão estranho!"
A velha e familiar lassidão estava de novo a apoderar-se dela, aquele terrível peso que lhe sufocava
o coração parecia ainda mais forte, mais poderoso. Mal conseguia
mover-se sobre o soalho polido do salão de música; era como se transportasse sobre os ombros e
nos braços um fardo imenso, esmagador; o cabelo caía-lhe demasiado
pesado sobre a nuca dolorida. Os pés pareciam tropeçar a cada passo tímido e vacilante que dava.
Afastou um anel de cabelo que lhe
pendia sobre a testa, e disse:
- Estou tão cansada!
Parou junto do piano e olhou para as teclas que brilhavam baças, num marfim pálido, na penunbra
cada vez maior da solitária sala. Sentou-se e pousou as mãos sobre
as teclas, num gesto automático. Mas... nem um som se ouviu. Ficou imóvel, inerte, olhando
fixamente para a frente.
"Não consigo suportar isto!", pensou. "Tenho de me ir embora daqui. Para sempre. Oh, Alfred,
Alfred! Que foi que eu te fiz? Tu não merecias isto. Para onde irei
eu? Que farei? Onde poderei esconder-me? Ah, se ao menos eu pudesse morrer! Sou uma cobarde,
não passo de uma cobarde, porque... porque não sou capaz de esquecer.
Está sempre, sempre dentro de mim!"
Tapou de súbito os olhos com as mãos. Ouviu o som do seu próprio choro, desolado, abandonado,
profundamente triste. Encostou a cabeça ao piano e as lágrimas rolaram
sobre a madeira escura. Sentiu que o silêncio e a imensidade da casa se fechavam à sua volta, e no
seu choro convulsivo havia o som de um terror desamparado, o som
de um pesadelo.
Passados alguns instantes acalmou-se, embora as lágrimas continuassem a saltar-lhe dos olhos,
agora no silêncio de uma dor imensa e indescritível. Sabia que não
havia fuga possível para ela; não podia abandonar Alfred, que tanto amor lhe dedicava; nem o tio,
nem o filho de Alfred, que nela tanto confiavam e amavam também.
Não tinha lugar algum para onde pudesse fugir; não havia ninguém que lhe desse abrigo. Não tinha
dinheiro, excepto aquilo que Alfred lhe dava. Todo o seu corpo tremia
de ânsia de fuga, mas... não havia lugar nenhum no Mundo onde pudesse viver em paz ou esconder-
se.
Pensou na longa vida que tinha à sua frente, e soube que não havia esperança alguma. Não, não era
possível que aquela agonia imensa pudesse alguma vez vir a diminuir
ao longo dos anos.
Como seria ela capaz de o suportar, vê-lo todos os dias, vê-lo com Sally, ouvir a sua voz, observar-
lhe o olhar desinteressado, escutar o seu riso e o som dos seus
passos que jamais se dirigiam
para ela, jamais viriam ao seu encontro? Como poderia ela continuar a ser a esposa de Alfred
Lindsey, de Alfred, a quem não se podia apontar nada, quaisquer falhas,
quaisquer erros, quaisquer loucuras, excepto o erro e a loucura de a ter querido e desejado para si?
Tentou, como já tantas vezes tentara, recordar a ternura dos
olhos dele, a sua amabilidade, a sua solicitude para com ela. E... apenas um estremecimento louco a
percorreu, e a garganta soltou um gemido abafado, como se o maior
tormento do Mundo a devorasse.
Só muito tempo depois é que se apercebeu de que a sala estava completamente escura. Ergueu os
olhos inchados e doridos, olhou para as janelas. Pareciam rectângulos
de cinzas.
De súbito, a sombra foi rasgada por um. relâmpago em chamas que inundou todos os cantos da sala,
como uma explosão violenta. E exactamente como se aquele brilho
fulgurante tivesse sido o disparar de uma carga explosiva, seguiu-se-lhe um ribombar tremendo,
esmagador, que fez despertar ecos retumbantes em toda a casa, como
se a imensa mansão se estivesse a desmoronar. O chão tremeu sob os pés de Amalie; a mobília
estalou e rangeu; um ronco abafado mas terrível pareceu invadir a sala
depois de desaparecido o último eco das montanhas.
Completamente aterrorizada, Amalie ergueu-se e encostou-se ao piano. Não conseguia ver nada à
sua volta, mas apenas as formas vagas, difusas e medonhas da mobília.
E depois... foi o grito súbito da tempestade despertada, o rasgar e estilhaçar das janelas, o gemido
convulso das árvores, o rumorejar atormentado da relva. Poucos
instantes depois, a chuva começou a cair, como uma parede imensa de água, iluminada a intervalos
curtos por novas explosões de luz, acompanhadas pelos estrondos
medonhos e ensurdecedores dos trovões. O mundo parecia ter sido engolido, devorado por fogo e
fúria. A velha casa, tão forte e tão imponente, estremecia violentamente
a cada ribombar dos trovões, a cada sopro demolidor do temporal. Uma árvore ali perto foi
derrubada, como que por mãos gigantescas.
Amalie ficou dominada por um terror primitivo e imenso. Estava sozinha em casa. Se ela ruísse e se
abatesse, nada nem ninguém a poderia ajudar. Deixou-se cair sobre
o banco do piano, e enroscou-se sobre si própria, tapando os ouvidos com as mãos, fechando os
olhos com força. Depois, num momento de relativa calma, quebrada apenas
pelo vento e pela chuva, ouviu um som, mesmo através das mãos que lhe tapavam os ouvidos.
Era como que o som de uma porta a abrir-se e fechar-se rapidamente. Endireitou-se e a voz saiu-lhe
da garganta num grito selvagem de esperança. Mas ninguém respondeu.
"foi apenas o bater de alguma janela", pensou.
De novo o fogo, a violência, o inferno se apoderou de tudo, com intensidade renovada, imensa,
medonha, ameaçadora. Não podia ficar ali, sozinha, naquele salão enorme
e desprotegido. Lá em cima, no seu próprio quarto, na sua cama, encontraria, pelo menos, um pouco
de protecção, ainda que fictícia e irrisória. Ali, ao menos, poderia
correr os reposteiros das janelas, fechar a porta, tapar os ouvidos e a cabeça com as
almofadas...
Correu para a porta, vacilando e cambaleando a cada relâmpago e a cada trovão, o coração a saltar-
lhe do peito, num ritmo louco de autêntico terror, o vestido a
enrolar-se-lhe nos pés, as mãos atiradas para a frente, como se fosse cega e buscasse no escuro um
apoio, uma ajuda...
Foi apenas quando chegou à porta que viu Jerome, que se encontrava ali a observá-la.
Deteve-se abruptamente no meio daquela fuga tresloucada; balanceou os braços, num gesto
instintivo, como que a procurar equilíbrio e o rosto apavorado pareceu iluminar-se
na quase escuridão que envolvia a sala. Por fim, ficou imóvel, a respiração ressoando rápida e aos
soluços no silêncio de tudo, durante uma pausa momentânea da tempestade.
Ele estendeu-lhe os braços, lentamente, e aproximou-se dela. Amalie viu-o aproximar-se, aos
poucos, passo após passo. Sentia os próprios braços hirtos ao longo do
corpo. Esperou... sonâmbula. Jerome alcançou-a, rodeou-lhe o corpo com os braços e apertou-a
contra ele, suavemente, carinhosamente.
E depois... depois foi a loucura. Amalie apertou o corpo convulso contra o dele, soluçando
desesperadamente, engalfinhando as mãos nas mangas molhadas do casaco
de Jerome, encostando com força o rosto contra o pescoço dele, gritando frases incoerentes,
palavras desconexas, que lhe saíam de rajada do coração, do peito, do
corpo abalado por um tremor sem fim, como se todo o controle e domínio de si própria se tivesse
subitamente desvanecido. Sentiu os lábios dele nos seus, a sua terna
e reconfortante força, a pressão dos seus braços e, por fim, uma alegria imensa, terrível e
esmagadora que parecia fazer parte dos relâmpagos e da tempestade.
Capítulo vigésimo sexto
A tempestade rugiu quase ininterruptamente até ao pôr-do-sol. Nessa altura, o último trovão ressoou
nas encostas das colinas, como um derradeiro soluço, os relâmpagos
afastaram-se
para oriente, onde de vez em quando refulgiam, num fogo pálido, iluminando um ou outro maciço
escuro de um monte. Mas a chuva continuou a cair em vastos lençóis
de aço cintilante, mesmo depois do vento ter amainado um pouco.
Ao cair da noite, a chuva começou a diminuir de intensidade, e às oito horas parou. Uma luz pálida
e hesitante desceu então sobre o vale e as colinas; um fugidio
ponto róseo brilhou por entre os troncos dos pinheiros na encosta. As árvores pingavam
pesadamente no silêncio exausto. A terra soltava uma fragrância forte e doce,
como que de erva esmagada, flores pisadas e pinheiros abatidos. Por fim, os pássaros fizeram erguer
o seu chilrear aturdido e cansado, numa revolta contra a tempestade
para logo se calarem e adormecerem sob o céu escurecido.
As rodas passavam quase em silêncio sobre o chão molhado. Dorothea, sentada na carruagem,
fixava com ansiedade a casa sem luz. Tentava acalmar-se dizendo de si para
si que Amalie era uma mulher forte e corajosa, mas recordou-se, com algumas dúvidas, ainda que
ténues, das observações de seu pai acerca da jovem, e da sua evidente
falta de saúde. Nessa altura, Dorothea exclamara:
- Que disparate!
Mas lembrava-se agora, com muita clareza, que Amalie parecera "decair", dia após dia, desde a
doença de Mr. Lindsey, e a sua consciência pareceu despertar com uma
sensação de culpa.
A tempestade tinha sido, na verdade, suficientemente forte e devastadora para assustar qualquer
pessoa. A caminho de casa, Dorothea tinha visto um grande número
de árvores que o temporal arrancara ou partira, e um celeiro ficara completamente destruído. Não
era pessoa que se assustasse facilmente com as trovoadas, mas aquela
tinha-a deixado pouco menos que aterrorizada.
A janela do quarto de Amalie estava às escuras, e esse facto aumentou a ansiedade de Dorothea,
Mas no momento preciso em que a carruagem passava por debaixo da janela
do quarto de Jerome, viu o brilho dourado de uma luz acabada de acender. Jerome não tinha corrido
os reposteiros. Dorothea soltou um suspiro de alívio. Talvez, então,
Amalie não tivesse estado sozinha durante a tempestade.
Dorothea desceu da carruagem e o cocheiro afastou-se para a recolher nos estábulos. Olhou de novo
para a janela de Jerome. E, de súbito, ficou rígida. O chapéu caiu-lhe
das mãos e estatelou-se a seus pés. O rosto, iluminado vagamente pela luz difusa da noite, ficou
pálido, numa cor térrea.
Viu, distintamente, que Jerome não se encontrava sozinho, e
viu que quem estava com ele era Amalie. Conseguia ver pouco deles, apenas os ombros e as
cabeças, mas... estas estavam juntas num amplexo apertado que mesmo a própria
Dorothea classificou, por instinto, de apaixonado. Depois, viu-lhes os rostos... viu o reflexo suave
dos braços de Amalie em redor do pescoço de Jerome.
Dorothea não se recordou de ter dado um único passo; quando recuperou a consciência estava já
encostada à parede da casa por debaixo da janela, espalmando o corpo
completamente contra a pedra fria, como se quisesse buscar nela refúgio e protecção. Ouviu um
som rouco e impreciso na noite calma e alguns momentos confusos e perplexos
decorreram até se aperceber de que aquele ruído era a sua própria
respiração entrecortada.
Miríades de pontos luminosos dançavam-lhe diante dos olhos dilatados de horror; o corpo tremia-
lhe em convulsões violentas que lhe açoitavam os ossos e os músculos,
de tal maneira que se viu obrigada a estender os braços contra a parede de ambos os lados do corpo,
para não cair. Parecia ter perdido a consciência de tudo; apenas
sabia que se sentia horrivelmente doente, e que poderia cair desmaiada, fulminada por um colapso,
sobre a terra molhada.
Desejou febrilmente, com uma avidez jamais sentida, estar no seu quarto, estendida na sua cama.
Em voz entramelada e balbuciante, murmurou para si própria:
- Está a ficar frio. Tenho de entrar!
E de súbito começou a soluçar. Tapou a boca com as mãos, mas mesmo assim os soluços
continuavam a fazer-se ouvir, abafados, mas terrivelmente constantes e persistentes.
Não soube quanto tempo ali esteve; quando conseguiu recuperar de novo um pouco do seu domínio
e consciência, apercebeu-se de que a noite tinha já caído completamente,
que uma Lua delicada pendia do céu purpúreo, e que todo o seu corpo estava enregelado, tolhido e
rígido. Não ouvira passos, mas quando, num esforço tremendo, se
obrigou a afastar-se da parede da casa, reparou que o terceiro andar estava iluminado, uma sala após
outra. Os criados tinham regressado.
A porta da frente estava aberta. Subiu as escadas, quase rastejando, aos tropeções, sem se atrever a
acender qualquer luz. Alguém acendera o lume na sala de entrada
e o brilho que dele se desprendia era como que um coração ensanguentado pulsando na penumbra
que tudo envolvia. Chegou por fim ao seu quarto, depois de ter percorrido
o corredor vagarosamente, com um passo penoso, como se tivesse envelhecido dezenas de anos no
curto espaço de uma hora.
Uma vez por detrás da porta fechada, deixou cair em cima de uma cadeira o regalo, o chapéu e o
xaile, e dirigiu-se para a cama. Recordava-se muito vagamente que
tinha descortinado uma réstea de luz escoando-se por debaixo da porta do quarto de Amalie, mas só
a visão daquela ténue claridade tinha-a deixado enojada, obrigando-a
a desviar o olhar e a voltar a cabeça.
Deixou-se ficar recostada nas almofadas, os braços inertes de cada lado do corpo, o rosto duro mais
parecendo ter sido talhado em pedra. Tinha uma sensação estranha
na zona do coração; o mais pequeno movimento do seu corpo fazia-lhe estremecer todas as fibras.
Manteve-se quieta, tentando não pensar, pois bastava-lhe um simples
pensamento para se sentir atirada com violência para o centro de um tumultuoso remoinho que lhe
tirava todo o equilíbrio.
Talvez tivesse adormecido, ou então caíra apenas numa espécie de torpor inconsciente, pois apenas
se apercebeu que, a dada altura, uma luz trémula lhe embatia no
rosto. Uma criada entrava no quarto trazendo na mão um candeeiro. A rapariga hesitou ao avistar a
figura sombria de Dorothea estendida sobre a cama branca.
- Oh, Miss Dorothea! - exclamou a criada. - Não sabia que estava aqui! Mister Jerome disse que
provavelmente a senhora ficava esta noite na cidade, mas mesmo assim
eu pensei que talvez fosse melhor vir abrir a cama, para o caso de..
Dorothea ergueu-se muito devagar, apoiando-se no cotovelo; tinha a sensação de que qualquer
movimento que fizesse lhe tirava todas as poucas forças que lhe restavam.
Puxou o cabelo para trás, num gesto cansado, e ouviu a sua própria voz dizer, num tom calmo e
neutro.
- Cheguei agora mesmo, Nancy. Sinto-me muito cansada. A rapariga pousou o pequeno candeeiro
que trazia, abanou
a cabeça num gesto de comiseração, e acendeu o candeeiro que se encontrava em cima da mesa,
perto da janela.
- Foi uma tempestade muito má, não foi, Miss? Chegámos a pensar que não conseguiríamos
percorrer o caminho até cá acima!
Dorothea sentou-se na cama. Tentou dominar o tremor que lhe sacudia o corpo, tossicou, e disse,
soltando um suspiro profundo:
- Podes trazer-me uma chávena de chá e um pouco daquele bolo de frutas, Nancy? Aqui para o meu
quarto?
Tinha de se ver livre da rapariga rapidamente, antes que ela se apercebesse...
- Oh, sim, minha senhora! Imediatamente!
A criada lançou-lhe um olhar curioso, e depois saiu do quarto, apressada.
Dorothea pôs-se de pé, e, em voz alta, disse para si própria:
- Tenho de me controlar. Tenho de pensar com calma. Não posso deixar que os outros adivinhem...
Mas naquele momento recusava-se a pensar fosse o que fosse. Arrumou o guarda-sol, o véu, o
chapéu e o xaile. Lavou as mãos e banhou repetidas vezes o rosto com água
fria. Alisou o cabelo em seguida, com gestos muito lentos. Os músculos estavam mais calmos,
embora de vez em quando tremessem ainda com violência, mas apenas por
poucos instantes.
Sentou-se diante da lareira apagada e estremeceu. Sabia que aquele estremecimento era o resultado
do choque que sofrera, pois a temperatura estava amena.
Nancy foi encontrá-la ali sentada, muito calma, as Tnãos repousando-lhe no colo de seda preta.
Dorothea agradeceu-lhe, olhando com náusea reprimida para o bolo e
o chá fumegante que a criada lhe trouxera.
Mas, ao fim de algum tempo, obrigou-se a beber uma chávena daquele líqüido quente e revigorante,
e a comer um pouco de bolo. Era preciso não dar a entender coisa
nenhuma. Só os loucos o fariam, pois uma atitude dessas só conduziria ao caos. O pensamento e o
espírito deviam manter-se lúcidos e calmos, pois caso contrário cometiam-se
erros irreparáveis que conduziam inevitavelmente a desastres terríveis.
Bebeu uma segunda chávena de chá. Quando Nancy voltou para levar o tabuleiro, encontrou a
patroa muito sossegada e recomposta. Dorothea pediu-lhe que acendesse um
pouco a lareira. A rapariga correu os reposteiros, ajoelhou-se diante da lareira e pouco tempo depois
um fogo trémulo e hesitante ergueu-se dos toros. Dorothea observava-a
atentamente, como que a querer adivinhar se ela sabia de alguma coisa. Por fim, conseguiu
perguntar-lhe se tinha passado um dia agradável na cidade. Escutou o relato
de Nancy com um ar de amável mas distante interesse. Falaram, em seguida, um pouco da
tempestade que assolara a região, e depois a rapariga despediu-se com um alegre:
- Boa noite, minha senhora!
Mas, precisamente na altura em que a rapariga ia a chegar à porta do quarto e se preparava para a
abrir, Dorothea deteve-a com uma pergunta:
- Os outros também estão em casa, Nancy?
- Oh, estão sim, minha senhora! Levei há cerca de uma hora um tabuleiro a Mister Jerome e outro a
Miss Amalie, nos seus respectivos quartos. Mister Jerome tinha
chegado pouco antes de nós.
- Está bem, Nancy, obrigada!
A voz fria de Dorothea soou quase desagradável. Então, ninguém sabia ou suspeitava, a não ser ela.
Mandou a rapariga de novo embora e ficou sozinha.
Agora podia pensar, pensar calmamente, sem fúria nem terror, mas apenas com um ódio profundo e
intenso, tão frio como a neve de Inverno e igualmente tão demolidor.
Podia pensar com uma parte do seu espírito, quase completamente despida de emoções, e separada
daquela outra onde ardiam a revolta e o nojo, a violência e a repulsa.
Que devia fazer?
Fazia a si mesma aquela pergunta, sem histerias nem a mais pequena ponta de dor. Deveria ir ter
com Jerome e dizer-lhe "Eu sei o que se está a passar nesta casa!"...
?
Deveria ir ter com Amalie e desmascará-la? Deveria informar Alfred quando ele regressasse da sua
viagem?
Conhecia, ou julgava conhecer Jerome. Era falso, arrogante e mau, sem consciência nem
escrúpulos. Era muito possível que ele se lhe risse na cara, a desafiasse e
lhe mentisse descaradamente. Era, até, muito possível que ele lhe dissesse:
"bom, nesse caso a minha posição aqui é insustentável. Partirei imediatamente desta casa!"
Se ele se fosse embora (e à simples idéia de que Jerome o pudesse fazer, Dorothea soltou um
profundo suspiro de alívio, como alguém que vê uma porta, sombria e inexoravelmente
fechada, abrir-se de súbito para a paz), que aconteceria depois da sua partida? Será que isso
rectificaria o mal cometido contra um homem bom, justo e íntegro? O
crime perpretado contra ele ficaria, desse modo, sarado com o afastamento do seu autor? Não! Não
ficaria, de maneira nenhuma!
Além disso, era mesmo possível que Jerome, ao saber que tinha sido descoberto, se decidisse a
falar, ele próprio, com Alfred e lhe contasse toda a verdade, ou fugisse
com Amalie, embora Dorothea tivesse algumas dúvidas quanto a esta última hipótese. Jerome era
um homem sem escrúpulos, realmente, mas não era um cobarde, e ela,
sua irmã, sabia isso muito bem.
E a honra da família? O que aconteceria a Mr. Lindsey, que tanto gostava daquela desavergonhada?
Conseguiria ele sobreviver àquele rude golpe desferido contra a
sua honra e a sua vergonha, ele, que tinha uma saúde tão débil e tão precária?
Dorothea estremeceu de novo, involuntariamente, e foi-lhe preciso recorrer a todo o rígido
autodomínio do seu espírito para recuperar o controle de si mesma.
Jerome (sabia-o e reconhecia-o com uma amargura que lhe queimava as entranhas) era, afinal, o
menino querido do pai.
Dorothea redescobrira esse facto doloroso durante aqueles últimos meses.
Não, não poderia dizer a Jerome que sabia do seu hediondo crime.
E Poderia denunciar Amalie? E se Amalie fosse de imediato ter com Jerome e o informasse dessa
denúncia? Os resultados seriam os mesmos, quer ela falasse com Jerome
quer denunciasse o outro lado daquele adultério.
Durante alguns momentos, Dorothea quase que perdeu de novo o controle sobre si própria, e todas
as suas emoções, todo o seu ódio, náusea e repulsa martelavam como
punhos fechados na porta da sua razão. Oh, aquelas criaturas hediondas e sem vergonha, os
criminosos, os traidores! Como é que eles tinham podido fazer uma coisa
daquelas, aquela baixeza para com uma pessoa como Alfred, que adorava e confiava na sua mulher,
e não era capaz de albergar o mais ínfimo pensamento mesquinho contra
quem quer que fosse? Como é que eles podiam ter feito aquilo a um homem de tão nobre
integridade, decência e bondade? Ele oferecera àquela vagabunda todo o seu coração
e toda a sua vida, e ela espezinhara tudo aquilo sem se importar com o sofrimento que lhe causava.
Por outro lado Alfred criara uma verdadeira amizade para com o primo, e recebera, em troca, um
sofrimento mortal. "Tinham escolhido uma bela oportunidade para cometerem
aquela baixeza, para desonrarem aquela casa e enganarem um marido gentil e dedicado. Dorothea
tinha a certeza de que compreendia, agora, tudo claramente: a ocasião
tinha sido forjada e planeada com todo o cuidado. Jerome saíra para a cidade, deliberadamente
sozinho, para que pudesse regressar também sozinho. Amalie recusara-se
a acompanhar Dorothea e ficara a aguardar o regresso do seu amante. Como se deviam ter rido os
dois, na sua vilania.
Pela primeira vez na sua vida austera, Dorothea sentiu uma vontade incontrolável de matar, destruir,
espezinhar, e aquele desejo foi tão violento que chegou a pôr-se
de pé, num salto, mãos cerradas com força, olhos chispando de fúria. O pensamento corria-lhe
como um novelo de rastilho ateado pelo fogo que a consomia e atingia
aqueles dois, escondidos nos quartos, confiantes que a sua falsidade e baixeza permaneceria
encoberta aos olhos dos outros.
Correu para a porta, pensando apenas em enfrentá-los, em gritar-lhes tudo o que sabia, em voz bem
alta, para que toda a casa, todo o mundo ficasse a saber da sua
perfídia, do crime nojento que ambos tinham cometido. No seu ímpeto, saiu para o corredor, a
respiração extravasando-se-lhe
do peito às catadupas e só quando já ali se encontrava caiu em si e recuperou um pouco a
consciência. Quando o fez, um tremor convulso apoderou-se
dela com tamanha violência que foi aos tropeções que conseguiu regressar à sua cadeira, onde se
deixou cair, sem forças, o rosto escondido nas mãos, balançando-se
para a frente e para trás, totalmente mergulhada numa angústia sem fim.
Deus do céu! Que tinha ela quase estado para fazer? Estivera prestes a destruir Alfred, e quase de
certeza aquela sua atitude tresloucada destruiria também o pai.
Estivera à beira de provocar uma calamidade ainda maior naquela casa, na casa onde tinha nascido.
A vergonha conhecida apenas por uma pessoa, e escondida e silenciada
apenas no coração dessa pessoa, não provocava males desnecessários, não expunha inocentes à
piedade afrontosa ou às gargalhadas odiosas de um mundo hostil.
Conhecia bem Alfred, e sabia que nele não haveria perdão para os que o tinham traído. Até os
poderia matar; de certeza que expulsaria de casa aquela mulher, e Jerome
também. Mas o sofrimento que lhe seria infligido seria mortal; jamais ele conseguiria recuperar o
seu prestígio entre os amigos e associados. Transformar-se-ia numa
coisa morta, cuja mulher o atraiçoara pelas costas, trocando-o por um homem inferior. O seu
orgulho jamais suportaria isso. Ficaria destruído para sempre. E o pai,
ele também, sofreria enormemente. Até era possível que morresse por causa daquele punhal
espetado contra a sua integridade e a sua honra.
Deixou de balancear o corpo na cadeira e ficou de olhos fixos à sua frente, imensamente abertos,
quase a saltarem-lhe das órbitas. E então os culpados? Iriam eles
ficar livres, imunes, sem castigo, sempre em busca de nova oportunidade para voltarem a repetir
aquele crime hediondo? Assim parecia. Não havia solução. Não havia
outra solução para além do silêncio. Os culpados escapavam, a fim de que as suas vítimas pudessem
ser salvas.
Mas, como é que ela podia, ela, Dorothea, suportar os dias infindáveis do futuro, tendo que os ver a
toda a hora, sendo obrigada a observar-lhes os rostos falsos?
Não adivinhariam eles, só de olhar para ela, que ela sabia de tudo? Se se escusasse a falar com eles,
ou não conseguisse disfarçar a repulsa dos seus olhos, eles
saberiam. E depois, a calamidade abater-se-ia sobre aquela casa. Isso não era coisa que eles
ousassem partilhar com ela. Precipitar-se-iam a cometer outras enormidades
ainda mais graves.
Nesse caso, tinha de se transformar numa actriz. Tinha de
continuar a falar com Amalie e com Jerome como o fizera até ali. Tinha de evitar qualquer entoação
suspeita na sua voz. Tinha de disfarçar o mínimo fulgor dos seus
olhos. Tinha de fazer o papel de cega, de louca, da velha irmã apalermada que nunca suspeitaria de
coisa nenhuma. Devia evitar qualquer estremecimento. Tinha de
fazer aquela coisa terrível e revoltante para salvar o pai e Alfred. Como é que era possível a carne
humana exercer sobre si própria tamanho controle, tamanho autodomínio?
Nem sequer lhe passou pela cabeça que talvez Jerome e Amalie tivessem os seus próprios planos.
Estava absolutamente convencida de que tencionavam ambos manter o
status quo das suas vidas, procurando apenas novas oportunidades para cometerem outras traições
contra Alfred. Amalie nunca desistiria daquilo que tinha conseguido
conquistar, e o mesmo aconteceria com Jerome. Nem por momentos ocorreu a Dorothea que talvez
houvesse algo mais do que uma simples traição para com Alfred, qualquer
coisa mais do que uma simples paixão fugaz e passageira entre Amalie e Jerome. com uma voz
rouca e estranha, disse, falando consigo própria:
- A única coisa que tenho a fazer é observá-los, guardá-los, impedi-los de repetirem aquilo outra
vez. Hei-de observá-los, a ela e a ele, durante o dia inteiro.
Quando Alfred regressar, tomará conta dela durante a noite, mas até lá, que hei-de eu fazer com as
noites?
Dorothea ergueu-se, dirigiu-se ao espelho e estudou atentamente o rosto. Sim, parecia
extremamente doente. Traria Amalie para a sua própria cama, alegando fraquezas
e pesadelos nocturnos. Implorar-lhe-ia que dormisse com ela, afirmando que se sentia incapaz de
dormir sozinha. Amalie não podia recusar.
Mas... à simples idéia de partilhar a sua cama virgem com aquela vil criatura, Dorothea sentiu-se
violentamente doente e enojada. Aquilo seria o pior de tudo.
No entanto Dorothea não tinha ferro na alma para nada. Bastaram apenas cinco minutos de luta
desesperada consigo própria para dominar a sua repulsa. Num desespero
frio e determinado, dizia e repetia para si mesma que fazia tudo para o bem de Alfred, para o bem
do pai. Alfred estaria de novo em casa dentro de duas semanas.
Mas duas semanas de horror seriam bem pouca coisa, quando se tratava de salvar a paz daquela
casa.
Uma vez decidida, afastou, como era seu hábito, todas as dúvidas e queixumes. Conseguiu mesmo
despir-se sem que as mãos lhe tremessem, nem ao de leve, e deitou-se
calmamente.
Depois, tocou a campainha para chamar a criada e pediu-lhe que chamasse Amalie imediatamente.
Dado o primeiro passo, fixou calmamente os olhos na porta e esperou pela outra mulher,
serenamente, com o coração gelado e duro como uma rocha.
Capítulo vigésimo sétimo
Durante aquelas duas semanas, Dorothea foi obrigada a recorrer a todas as suas reservas de fé,
coragem, resistência e determinação. Não podia nunca deixar Amalie
"sem guarda". Mas também não o podia fazer de uma maneira demasiado evidente. A sua
constituição era naturalmente robusta e, portanto, tinha de fingir estar doente
ou indisposta o suficiente para exigir a presença de Amalie a seu lado durante a noite, mas não
podia exagerar mantendo-se no leito também durante o dia. E assim,
passava os dias mudando-se de uma cadeira para outra, de sala para sala, dirigindo Amalie nas
coisas da casa, pedindo-lhe várias chávenas de chá e os seus sais para
cheirar. Era impiedosa nos seus constantes e inúmeros pedidos e exigências. Tanto lhe fazia que
Amalie se fosse tornando cada vez mais calada, mais ausente, mais
fantasma à medida que os dias iam decorrendo.
(Seria possível que aquela desavergonhada tivesse consciência? Mas não! Era evidente que ela
estava pura e simplesmente na expectativa e que a única coisa que queria
era sair dali para fora, libertando-se da sua presença.)
Era mais fácil enganar Amalie do que Jerome, e isso sabia Dorothea demasiado bem. Assim,
arranjou quase de imediato uma violenta e histérica discussão com Jerome
por causa de uma simples banalidade sem qualquer importância, relacionada com o cão, e fingiu a
partir dessa altura uma hostilidade tão aberta e tão elaborada (devida
ao "estado de nervos" em que se encontrava), que não foi difícil afectar uma atitude petulante e
rancorosa que impedia qualquer troca de cumprimentos ou amabilidades
com o irmão.
Como Dorothea sempre revelara uma desaprovação total para com o pequeno Charlie, Jerome não
achou a sua atitude inconsistente, e como também pouco ligava à companhia
da irmã, passou a evitá-la e esqueceu o assunto com um simples encolher de ombros.
Era com Amalie, portanto, que Dorothea tinha de ser mais fingida e mais cuidadosa, mas também
quanto a isso o seu
precário "estado de nervos" servia de justificação para os seus maus humores, as suas
"indisposições", os seus "terrores nocturnos".
O médico da família assegurou a Amalie que Miss Dorothea padecia de certos sintomas delicados,
psíquicos e físicos, comuns às mulheres da sua idade, e Dorothea aproveitou
para tirar o máximo partido daquele diagnóstico. Desse modo, Amalie não tinha de ficar confundida
e estranhar o mutismo obstinado e agressivo de Dorothea, as suas
palavras duras, as suas críticas, os mudos olhares de ódio que lhe dirigia.
Amalie tudo suportava com históica compaixão e abstracta cortesia e solicitude. Talvez, até, que o
seu próprio sofrimento, o seu desesperado estado de espírito a
ajudassem a deixar passar despercebidos os olhares rancorosos que Dorothea lhe lançava e as
observações deliberadamente maldosas que ela lhe fazia. Movia-se, falava,
vestia-se e fazia todo o trabalho que lhe era ordenado com gestos mecânicos e ausentes que faziam
lembrar os gestos e a voz de um sonâmbulo.
Jerome não a via nunca sozinha, nem sequer por breves instantes. Mas via-lhe o pálido rosto
martirizado e ouvia-lhe a voz
neutra à mesa do jantar. Nunca Amalie voltava os olhos para ele e, por isso, Jerome não conseguia
arranjar nenhuma maneira para comunicar com ela, em silêncio ou
de outro modo qualquer, pois a presença de Dorothea
era constante.
Um peso sombrio, semelhant ao daqueles escuros dias de Fevereiro em que Mr. Lindsey estivera
doente, abateu-se de novo sobre a casa, com uma única diferença: desta
vez não havia nem ansiedade, nem o terror da morte, nem candeeiros acesos toda a noite. Porém... a
tensão estava ali, bem presente, quase palpável, sob a forma de
silêncio, de uma sensação de prisão sem grades mas inexpugnável.
- Maldita mulher! - resmungava Jerome para si próprio.
- Ela enche isto tudo de melancolia e de um ar fúnebre e tétrico com os seus humores, as suas
histerias, as suas exigências perfeitamente idiotas!
Quando saía de casa para gozar um pouco o belo tempo de Maio, luminoso e fragrante, e sentia no
rosto a brisa fresca e aromatizada e o calor suave do sol, tudo lhe
parecia incrível, e em breve começou a odiar aquelas paredes inexoráveis, as salas escurecidas que
agora já nem sequer eram iluminadas pelo lume das lareiras, as
vozes sussurrantes e abafadas da criadagem.
Apetecia-lhe chegar junto de Amalie e dizer-lhe:
- Anda comigo! Vem respirar esta brisa fresca e leve, este ar de esperança e de vida!
Mas Amalie transformara-se numa autêntica prisioneira dentro daquela casa, a casa que ele
começava a odiar porque a prendia dentro das suas paredes. Pensava nela
quase constantemente, com ternura, raiva e impaciência, e tentava transmitir-lhe tudo o que sentia
com os olhos, com uma subtil entoação da voz, mesmo debaixo do
nariz de Dorothea. Mas... ficava sempre sem saber se ela o compreendia, pois a sua cabeça
mantinha-se invariavelmente baixa e o rosto ausente.
Por fim, não agüentou mais. Escreveu uma nota para Amalie, fechou-a e entregou-a a Jim.
- É um assunto de extrema importância! - disse ele ao criado. - É necessário que Miss Dorothea não
se aperceba de nada.
O rosto amacacado de Jim ensombrou-se, apreensivo, mas Jerome afastara-se já, assobiando a
caminho do Banco. O criado virou e revirou o pequeno envelope entre as
mãos, apertou os lábios e suspirou. bom, iria entregar aquilo à jovem imediatamente.
Mas cumprir aquela missão era tarefa extremamente difícil. Não conseguia encontrar Amalie
sozinha, nem sequer por breves segundos, e começou a pensar que possivelmente
seria obrigado a devolver o papel ao seu autor naquela mesma noite. Todavia, um pouco antes do
almoço, Amalie desceu para arranjar algumas flores para a mesa, e
foi ali que Jim a encontrou, silenciosa, apática, cansada. Relanceou um olhar rápido pela sala de
jantar obscurecida, para se certificar de que Amalie se encontrava
de facto sozinha. Nesse mesmo momento ouviu a voz petulante e autoritária de Miss Dorothea que
perguntava, descendo as escadas:
- Estás aí em baixo, Amalie?
Amalie ergueu a cabeça, olhou para a porta e respondeu na afirmativa. Jim aproximou-se dela
rapidamente, o papel fechado dentro da mão e sussurrou:
- Deram-me isto para lhe entregar, minha senhora. Comprimiu o pequeno envelope contra a mão de
Amalie e,
por breves instantes, ficou surpreendido pelo gelo que se desprendia daqueles dedos quase inertes. A
expressão de Amalie permaneceu inalterada, e os lábios continuaram
pálidos e sem vida. Jim apressou-se a desaparecer, pois Dorothea encontrava-se já na sala de
entrada. A porta que dava para a cozinha ficou a balançar atrás dele.
Amalie mal teve tempo para enfiar o papel no corpete do vestido antes de Dorothea entrar
arrastando o pesado vestido de veludo, o rosto duro, o cabelo cuidadosamente
metido dentro da touca de folhos e as chaves da casa a tilintarem-lhe na cintura.
Parou no limiar da porta e ficou a olhar para Amalie com um ar de suspeita espelhado na cara.
- Estava aqui alguém? - perguntou no tom frio e desafiador que, quase inconscientemente, reservava
para Amalie.
Amalie meteu a última flor dentro da jarra. Qualquer coisa dentro dela começava, agora, a arder
dolorosamente, e a respiração tornara-se-lhe mais rápida. Também
em voz bem alta e firme, respondeu:
- Porquê! Esperavas encontrar alguém aqui?
Dorothea endireitou-se de súbito como se tivesse sido atingida por um raio, e olhou para a outra
mulher como se quisesse adivinhar o que lhe ia no espírito. Um repentino
receio apoderou-se dela. Ter-se-ia atraiçoado? Teria ela, inconscientemente, dado a entender alguma
coisa, fazendo com que aquela miserável se remetesse a uma guarda
perigosa? Mas, antes que conseguisse falar, Amalie disse, num tom mais suave:
- Desculpa-me, Dorothea. Acho que também estou um pouco nervosa.
Dorothea soltou um imperceptível suspiro de alívio, e aproximou-se lentamente da mesa. Estranhou
que Amalie estivesse a tremer. As duas mulheres sentaram-se e comeram
em silêncio. Uma criada entrava e saía da sala na ponta dos pés. Apenas o barulho da porta da
cozinha a abrir-se e a fechar-se quebrava aquele silêncio quase sepulcral.
Por fim, quase num sussurro, Amalie disse:
- Está um dia tão bonito lá fora! Não poderíamos ir um pouco até ao jardim, ou mesmo dar um
pequeno passeio a pé ou na carruagem?
Dorothea procurou os sais de cheirar que passara a trazer sempre no bolso do seu avental de alpaca
preta. Cheirou-os cuidadosa e lentamente, e depois, com uma voz
melancólica, respondeu:
- Receio bem que não tenhas compreendido o que o doutor Hawley disse, Amalie. Já te esqueceste
que ele afirmou que eu devia descansar o mais possível, não sair,
não fazer qualquer esforço e evitar... perturbações?
O fogo que de novo se ateara dentro de Amalie aumentava a cada instante e parecia queimá-la.
Olhando para Dorothea com os seus enormes olhos de cor violeta, disse:
- Não, não me esqueci. Mas parece-me que á estás bastante forte e julgo que o tempo ameno que faz
lá fora te poderia fazer bem!
Voltou a cabeça para lançar um longo olhar cheio de amargura para a brilhante paisagem que
transformava a janela da sala num verdadeiro quadro do paraíso.
- Sinto-me extremamente fraca hoje! - disse Dorothea, recostando-se na cadeira, e olhando
fixamente à sua frente. Terei de te pedir que me acompanhes ao meu quarto,
Amalie, e revejas as contas da casa enquanto eu descanso um pouco na cama.
"Tu... egoísta! Miserável sem consideração nenhuma por ninguém!", resmungou Amalie para si
própria, enquanto seguia Dorothea até ao quarto desta última.
Toda a sua calma, indiferença e apatia tinham desaparecido. Era como se a mensagem de Jerome,
que continuava apertada entre os seus seios, lhe tivesse insuflado
uma vida renovada e febril. O coração batia-lhe descontrolado; um suor fino brotava-lhe da raíz do
seu cabelo negro e corria-lhe em gotas pela testa.
Ajudou Dorothea a tirar os botins e a deitar-se na cama. Depois, disse-lhe que ia buscar o seu
trabalho de tricô ao quarto para poder trabalhar quando terminasse
as contas e Dorothea estivesse a dormir. Correu para o seu quarto, fechou a porta à chave, embora
tivesse consciência de que estava a proceder de modo absurdo e
ridículo. Depois, tirou do peito a mensagem de Jerome e leu-a.
Era extremamente curta, e dizia apenas:
"Podes escapar do carrasco hoje durante alguns minutos? À noite, talvez? Temos muitas coisas a
discutir, como sabes!"
Não trazia nem assinatura, nem quaisquer sinais amáveis de cumprimento ou saudação.
Amalie amarfanhou o pequeno papel entre as mãos. O rosto tornara-se-lhe vivo, brilhante, trémulo
de excitação. Correu para a janela, afastou os reposteiros, abriu
as vidraças de par em par e debruçou-se para fora, respirando profundamente o ar morno e suave.
Sentiu o sol acariciar-lhe a cabeça; era um sol demasiado forte para
os seus olhos sujeitos durante tanto tempo à clausura, e pestanejou, quase delirante de felicidade.
Depois, em voz alta, exclamou:
- Oh, meu Deus!
Soltou uma gargalhada curta; as lágrimas soltaram-se-lhe dos olhos e ficaram a bailar-lhe nas
espessas pestanas. Parecia arder em febre e ansiedade. Todo o seu corpo
tremia de excitação.
Afastou-se da janela, abriu uma gaveta da cómoda e escondeu o papel entre as finas roupas de seda
e cambraia. Olhou as faces afogueadas ao espelho e, com gestos
rápidos, molhou-as abundantemente com água fria, e em seguida também as mãos e os pulsos, onde
o sangue pulsava como louco. Alisou o cabelo, pegou no saco do trabalho
e voltou ao quarto de Dorothea.
O quarto estava já mergulhado numa semiobscuridade sombria, mas havia uma certa tensão de
alerta na figura reclinada de Dorothea que Amalie de imediato detectou.
Sentou-se tranqüilamente numa cadeira um pouco afastada da cama. Sentia o sol batendo nas
cortinas corridas, o calor morno do quarto, e cheiro a cera, madeira e
tapetes. Mas abstraiu-se de tudo isso e discutiu as contas da casa com Dorothea. A voz saía-lhe
suave e baixa. O calor ia-se tornando maior dentro do quarto. A casa
estava silenciosa, como sempre, e lá fora os pássaros soltavam chilreios abafados e sonolentos nas
árvores que começavam a revestir-se de folhas.
Por fim, Amalie calou-se e apenas o som das suas agulhas uma contra a outra se fazia ouvir.
Dorothea, que dormia sempre de tarde, deixou que aspálpebras baixassem,
lentamente. Sabia que encontraria Amalie ainda ali sentada quando acordasse, a tricotar, a balouçar
suavemente a cadeira de balanço, ou talvez dormitando também.
Era sempre isso que acontecia, todos os dias. Dorothea foi, a pouco e pouco, mergulhando no sono.
Ouvia as agulhas de Amalie, mas o som foi-se esbatendo, lentamente,
até que ela caiu na total inconsciência.
Amalie parou de tricotar e de se balançar na cadeira. Ergueu-se muito devagar e dirigiu-se pé ante
pé até junto da cama. Dorothea não se mexera, e o seu rosto comprido
e cinzento parecia distendido no sono. A boca estava ligeiramente aberta, e dela saíam ruídos surdos
e abafados. Amalie caminhou sem um ruído pelo quarto, saiu e
fechou a porta devagar atrás de si. Apesar de todo o cuidado, a porta rangeu e ela estremeceu, cheia
de um quase terror.
Dorothea mexeu-se na cama, murmurou qualquer coisa, e recomeçou a ressonar.
Uma vez em segurança no corredor, Amalie correu de novo para o seu quarto, atirou rapidamente
com um xaile para cima dos ombros do seu vestido azul-escuro, prendeu
na cabeça um chapéu, com dedos trémulos e nervosos. Madeixas de cabelo soltaram-se do chapéu e
caíram-lhe sobre o rosto. Pegou no véu e deslizou em silêncio pelas
escadas. Encontrou uma criada que limpava o pó na sala de jantar. Tentando reprimir o seu
nervosismo e assumir uma atitude mais composta, disse com toda a naturalidade
de que foi capaz:
- Preciso da charrete, Elsie. E, por favor, vai dar de vez em quando uma espreitadela a Miss
Dorothea. Se ela acordar, diz-lhe que fui ver o doutor Hawley, pois
não me sinto bem.
Elsie, admirada, limitou-se a olhar curiosamente para o rosto excitado e os lábios trementes de
Amalie. Depois, murmurou qualquer coisa, mas já Amalie saía, dizendo:
- Deixa lá, Elsie, não peças a charrete. Estou com pressa, e portanto vou eu mesma à cavalariça.
Passou pela porta, numa onda azul formada pelo vestido, o xaile e o chapéu; deteve-se por
momentos na cozinha para inspeccionar o assado que a cozinheira estava
a preparar para a refeição da noite, e depois saiu pela porta das traseiras. Correu para a cavalariça.
Todo o seu sangue gritava:
"Fugir! Fugir!"
A cavalariça exalava um cheiro quente e forte; a luz dourada do sol entrava a rodos pela enorme
porta e pelas pequenas janelas, e nos seus raios um véu composto
por miríades de pontos luminosos parecia entregue a uma dança louca. Os cavalos da charrete
batiam, impacientes, com os cascos no chão, e voltaram a cabeça fitando
Amalie com os seus enormes olhos redondos. Dois dos empregados aproximaram-se dela, tirando
respeitosamente os bonés.
Amalie olhou-os em silêncio. Sentia-se quase delirante, e tinha o rosto perlado de pequenas gotas de
suor. Por fim, disse:
- Gostaria que me arranjassem a carruagem pequena, por favor.
Um dos rapazes, hesitando, perguntou:
- Vai sozinha, minha senhora?
- Sim.
Afastou-se para a porta, sentindo crescer dentro de si a excitação, apertando com força as mãos uma
contra a outra, serena e sonhadora à luz quente do sol. Os reposteiros
do quarto de Dorothea continuavam corridos. A respiração de Amalie tornou-se mais rápida.
Estremeceu quando a pequena carruagem foi retirada de dentro do estábulo. Que barulho faziam as
rodas sobre o
chão! O dorso do cavalo brilhava como seda castanha.
Os bronzes dos arreios refulgiam ao sol. O rapaz ajudou Amalie a subir para a carruagem e a sentar-
se. Foi mais a palidez do seu rosto e o cintilar febril dos seus
olhos que outra coisa, que o fez dizer, em tom duvidoso:
- Acha que está bem, minha senhora? Não haverá problemas? Burney é um cavalo nervoso.
Amalie tomou as rédeas nas mãos enluvadas, e respondeu com um sorriso:
- Eu sei conduzir, tom. Acho que serei capaz de controlar Burney.
Bateu com as rédeas no lombo do cavalo, e o animal, feliz por se encontrar em liberdade, deu um
salto para a frente, atirando com Amalie contra as costas do assento.
Ela recuperou o equilíbrio, segurou nas rédeas com mais força, proferiu a
palavra de admoestação e conseguiu que o cavalo percorresse, em passo mais suave, o caminho de
pedras soltas. Estremeceu de novo perante o barulho que as rodas faziam
sobre as pedras. Soltou as rédeas e deixou que o animal acelerasse o passo apesar da inclinação do
caminho. Inclinou-se para a frente, como que em fuga, e nem uma
só vez olhou para trás.
Depois, o silêncio luminoso abateu-se sobre ela. O cavalo chegara já à estrada, e as rodas
deslizavam agora com um ruído mais abafado. A luz do sol, silenciosa e
calma, refulgia nas árvores, na terra castanha, na erva verde. Amalie passava da luz para a sombra,
da sombra para a luz. Ouvia os pássaros, o murmúrio das ervas
altas, o restolhar dos animais nos arbustos. O vale alongava-se, claro e distinto, à sua frente, lá em
baixo. Aestrada serpenteava aqui, endireitava-se acolá, abria
caminho por entre grupos de árvores, deixava para trás riachos azuis e velhos celeiros abandonados.
Chegou, por fim, à estrada que conduzia directamente à vila;
lá atrás ficava a colina suave e arredondada. Hilltop era uma casa de bonecas entre as árvores.
Tinha os sentidos extraordinariamente despertos para tudo quanto a rodeava, e a sua atenção fixava-
se na estrada e no dorso do animal. Mas... o espírito estava vazio.
Mantinha-o deliberadamente assim, e controlava rigidamente os estremecimentos violentos que lhe
percorriam o corpo. Passou pela casa do general. Josephine e Sally
estavam a trabalhar no jardim. Amalie recostou-se no assento de modo a que a cortina da charrete
lhe encobrisse o rosto. Julgou ouvir uma voz a chamar e bateu bruscamente
as rédeas no dorso do cavalo, o coração batendo num ritmo desenfreado. As rodas guincharam sobre
o pavimento; o cavalo empinou a cabeça e resfolegou.
Felizmente, as ruas estavam quase desertas naquela tarde quente. Amalie encolheu-se num canto do
assento de couro e baixou a cabeça. O Banco ergueu-se à sua frente,
rodeado pelos seus relvados verdejantes, as janelas refulgindo ao sol. Aquele edifício possuía uma
arrogância sólida que normalmente irritava Amalie, fazendo-a sorrir
de desdém, pois a sua imponência era de tal maneira que chegava a ser afrontosa. Todavia, naquele
momento, olhava para ele como para um refúgio contra os perigos
e os fantasmas das ruas.
Conduziu a pequena charrete para uma esquina e parou-a junto de uns postes. Saltou depois,
tropeçando nas saias. Atou o cavalo, inclinou a cabeça e, assumindo um
ar tão digno quanto lhe foi possível, caminhou rígida pela escadaria suave que conduzia à porta do
Banco.
Já passava das horas de abertura ao público e, mentalmente, Amalie congratulou-se com esse facto.
Assim, não iria ali encontrar
os habituais clientes que decerto a olhariam com curiosidade. Ajustou melhor o chapéu, alisou o
xaile e penetrou no interior sombrio e frio do edifício com
um ar tranqüilo. Os empregados espreitaram por detrás das grades dos seus cubículos, mas ela
fingiu não os ver. Abriu a porta que dava para o gabinete de Alfred
e entrou rapidamente fechando a porta logo atrás de si.
O gabinete estava vazio e, como um relâmpago, toda a calma controlada de Amalie desapareceu.
Deixou-se cair numa cadeira e começou a tremer. Olhou para a porta que
dava acesso ao gabinete de Jerome. Quis levantar-se e dirigir-se para ela, mas as pernas tinham
ficado de súbito demasiado fracas. Soltou as fitas que lhe apertavam
o chapéu, passou o lenço pelo rosto húmido de suor.
Que inconsciente e ousada tinha sido! Que estariam os empregados a dizer, provavelmente com
esgares irónicos nos rostos amarelecidos? Depois, murmurou para si própria,
em voz alta, como que a convencer-se:
- Estou a ser ridícula. É perfeitamente natural que eu venha ao Banco!
O gabinete estava tão silencioso como um cemitério. Ouviu o tique-taque do relógio sobre a lareira,
e quase que se obrigou a olhar para os quadros nas paredes. Tudo
lhe recordava o marido: a fila ordenada e impecável de canetas sobre a secretária, as pastas
cuidadosamente fechadas e arrumadas, a enorme cadeira de mogno, silenciosa
e vazia, a jarra verde à espera de flores, os raios de sol sobre a carpete escura e os reposteiros.
O terror e a náusea obrigaram-na a pôr-se de pé, num salto, e a correr na direcção da porta do
gabinete de Jerome. Abriu-a de rompante. Jerome estava de pé, virado
para ajanela, as mãos apertadas atrás das costas.
Ouviu-a entrar, e perguntou:
- Então, Jamison, encontraste as cartas?
Depois, voltou-se. Olharam um para o outro através da sala, em silêncio e numa expectativa quase
palpável. Lentamente, Jerome retirou o charuto da boca. Os olhos
pareceram estreitar-se-lhe. Mas... não disse nada. com uma sensação de febre e vertigem, Amalie
viu que ele relanceava um olhar para a porta que conduzia ao gabinete
de Alfred, e depois para a porta que dava acesso ao Banco propriamente dito. Afastou-se depois da
janela com passos que soavam furtivos aos ouvidos de Amalie. Os
olhos estreitaram-se-lhe ainda mais.
- Bem... - disse ele, com voz suave.
- Não havia outra hipótese... de te ver! - disse ela, num soluço abafado.
A vergonha e o cansaço pareceram abater-se sobre ela, agora, fazendo-a sentir-se realmente doente.
O sangue subiu-lhe todo ao rosto, deixando-o afogueado, escaldante.
- Foi... foi indiscreto? - perguntou.
Ele hesitou, e depois respondeu rapidamente:
- Não foi exactamente a coisa mais discreta do mundo. Hesitou de novo, mas pareceu decidir-se
logo a seguir.
Puxou uma cadeira que se encontrava junto à parede, e disse, agora com voz mais suave:
- Senta-te, Amalie.
Ela sentou-se, amarfanhando a bolsinha entre as mãos, sentindo os lábios secos e grossos na sua
crescente vergonha e ignomínia. Tão nitidamente como se estivesse
a ver-se ao espelho, teve consciência do seu vestido azul, modesto e campesino, o seu xaile, o
chapéu sem graça, o rosto pálido e sem vida, os olhos baços e sem
brilho. As mãos enluvadas, sobre os joelhos, pareceram-lhe demasiado grandes, demasiado
estúpidas. Sentiu uma vontade súbita e desesperada de se levantar e fugir
do Banco, ir para casa, esquecer. Que fútil deveria parecer aos olhos dele, que miserável e indesej
ável!
Para seu grande horror e mortificação, ouviu a sua própria voz repetir estupidamente:
- Não havia outra maneira!
- Sim - disse ele. - Eu compreendo.
Pousou o charuto num cinzeiro de metal e sentou-se por detrás da secretária. Ela olhou-o, ali
sentado, imperturbável, tão ausente e tão comedido. E de
novo o odiou.
O seu desespero deixava-lhe um sabor salgado na boca. Como é que ele era capaz de a olhar assim,
tão desapaixonadamente, tão frio, tão impassível? E de novo ele
relanceava para as portas.
As mãos apertaram-se-lhe convulsas, uma contra a outra. Por entre a dor que a destroçava, pensou:
"Mas... que outra coisa poderia eu esperar? Julgaria eu que ele me abraçasse com ardor, sujeitando-
se, e sujeitando-me também, a um espectáculo indecente, num sítio
onde as portas se podem abrir de um momento para o outro?"
Comprimiu com força os lábios sem cor e olhou para ele com uma coragem que não sentia. Não
podia imaginar quão patéticos e sofredores os seus olhos violetas brilhavam
debaixo da sombra do chapéu... e quão tristes. Mas Jerome viu. Voltou a pegar no charuto e fumou
com uma determinação quase obstinada.
- Temos de ser rápidos! - disse ele, num sussurro. Jamison, ou um dos empregados, pode entrar aqui
em qualquer momento. Temos de... decidir as coisas agora mesmo.
- Sim... - retorquiu ela, quase sem som na voz.
- Temos de partir. O mais depressa possível. Antes de Alfred voltar no sábado.
Ela não conseguiu falar. As mãos caíram-lhe, desmaiadas, inertes, sobre o colo. O rosto
empalidecido tornou-se mais sombrio.
- Ele tem de te dar o divórcio - continuou Jerome. Deixar-lhe-emos umas cartas. Hoje é quarta-feira.
Partiremos amanhã à noite, ou na sexta-feira de manhã, o mais
tardar.
Falava sem emoção. Sacudiu a cinza do charuto, enquanto olhava para ela, directamente, sem o
mínimo vislumbre de paixão.
Por fim, com uma voz que soou clara no silêncio pesado, ela respondeu-lhe:
- Não.
A mão de Jerome deteve-se abrupta, quando levava de novo o charuto aos lábios, e todas as linhas
do rosto pareceram retesar-se.
- Sim - disse Jerome.
Ela empurrou o chapéu para trás, num gesto distraído, e retorquiu:
- Não.
- Porque não? - perguntou ele.
Não havia irritação na sua voz, mas apenas um ligeiro tom de impaciência.
- Não podemos fazer uma coisa dessas - respondeu Amalie.
Humedeceu os lábios e Jerome reparou que ela tremia.
- Não podemos cometer uma cobardia assim... Não podemos fazer uma coisa tão desgraçada - disse
ela ainda.
Ele sorriu, mas o seu sorriso era feio e mau.
- E... posso perguntar-te, minha cara, o que é que tu propões como alternativa? - perguntou,
sardónico.
Amalie tentou falar, mas as palavras morreram-lhe na garganta. Engoliu pesadamente e continuou a
olhar para ele. Por fim conseguiu responder:
- Temos de esperar até Alfred regressar. Temos de esperar... um pouco. Talvez algumas semanas.
Não podemos fazer isso ao teu... pai.
A voz tremeu-lhe.
- Tens de te lembrar que ele esteve muito doente... e ainda está doente. Não podemos fugir assim,
como criminosos. Nós... nós devemos isso a todos... Devemos ser
honestos, discutir, fazer planos que tenham dignidade e decência.
Ele sorriu de novo, de modo ainda mais insolente e desagradável,
como se o que ela dissera o tivesse divertido enormemente. Reparando nisso, ela não se conteve e
gritou:
- Tens de compreender! Será que não entendes? Jerome! Ele encostou-se na cadeira. Amalie não
podia imaginar
como aquela exclamação do seu nome o deixara perturbado. com voz muito firme, ele disse-lhe:
- Por favor, Amalie. Se gritas dessa maneira, não tarda que não venha a correr para aqui o Banco em
peso. Sejamos sensatos. Se fizermos o que tu tão sentimentalmente
sugeres, será o inferno naquela casa. "Dignidade? Decência?" Deixa que a tua imaginação se
debruce um pouco sobre o assunto. Consegues imaginar Alfred e o meu pai
sentados calmamente connosco, a discutirem de maneira muito civilizada e digna o nosso...
Ela ergueu a mão num gesto de defesa, como se quisesse evitar uma bofetada desferida contra o seu
rosto. com súbita gentileza e doçura, Jerome continuou:
- Minha querida! Tu própria admites que isso é impossível.
Ela ficou em silêncio. Pela primeira vez, toda a enormidade da situação pareceu abater-se sobre ela,
como ainda não sucedera antes. Ela surgira naquela casa sobre
a colina de uma autêntica calamidade. Penetrara ali como uma coisa pestilenta, envenenando o ar,
perturbando a paz que nela se respirava, desferindo golpes mortais
contra um velho moribundo, um rapazinho adorável e aleijado, um homem honrado e sem mancha.
Ela atraíra-os a todos. De certa maneira tinha traído mesmo Jerome. Se
nenhum deles a tivesse conhecido, aquela casa teria continuado a sua vida tranqüila: Mr. Lindsey
viveria os seus últimos dias em paz, Philip continuaria a estudar
a sua música, na sua felicidade imperturbada, Alfred salvaguardaria o seu nome com orgulho e
respeito. A vida deslizaria por eles sem horrores nem vergonha. Jerome
viveria ali, aguardando placidamente o seu casamento com Sally Tayntor, fazendo planos para a sua
nova vida.
Mas agora, por sua causa, estavam todos eles à beira do precipício da vergonha e da desonra. Aquilo
mataria Mr. Lindsey, que confiava nela e tanto a amava. Deixaria
marcas eternas no desgraçado Philip. Alfred jamais seria capaz de recuperar daquela afronta,
humilhação e desespero. E a vida de Jerome ficaria arruinada.
Os olhos esbugalharam-se-lhe de sofrimento, e a sua voz saiu-lhe estranha e reprimida quando
disse:
- Acho que seria melhor para todos se eu me fosse embora. Sozinha.
Jerome martelou lentamente com os dedos no tampo da secretária.
- Queres dizer... eu iria ter contigo depois? Ela abanou a cabeça.
- Não. Eu... eu deixaria uma carta para Alfred, dizendo...
Não conseguiu continuar. Tapou a boca com o lenço e soluçou. Depois, tentando controlar-se, num
esforço quase sobre-humano, voltou a retirar o lenço da boca e continuou:
- Eu poderia dizer que tinha decidido ir-me embora... e pedia-lhe que não procurasse encontrar-me.
Isso... magoá-lo-ia imensamente, mas não tanto como se...
Jerome levantou-se, dirigiu-se para ela e pegou-lhe na mão fria e flácida. Agora ela via-lhe o rosto,
compadecido e apaixonado.
- Minha querida! - disse ele, e pela primeira vez um tremor de emoção embargou-lhe a voz. - Tu
não sabes o que estás a dizer. Achas que eu não iria atrás de ti,
até te encontrar?
Ela olhou-lhe as mãos, e o coração pareceu partir-se-lhe dentro do peito. Apertou o rosto contra elas
e as lágrimas saltaram-lhe, irreprimíveis, dos olhos. com voz
acalorada de paixão, exclamou:
- Oh, Jerome! Diz que me amas! Diz-me que não mudaste! Diz-me... diz-me ou morrerei!
Esquecendo-se de tudo o que não fosse aquela mulher desesperada, Jerome segurou-lhe no rosto e
beijou-lhe os lábios trémulos. Ela lançou-lhe os braços ao pescoço
e ele sentiu-lhe o corpo tremer descontroladamente. Olhou-lhe os olhos martirizados, tão
implorantes, tão vulneráveis na sua angústia.
De lábios apertados contra os dela, murmurou:
- Minha querida! Meu amor!
Os braços dela soltaram-se. Ele limpou-lhe as lágrimas com infinita ternura. Alisou-lhe as madeixas
do cabelo que se haviam desprendido do chapéu, e disse:
- Minha querida! Deixa que eu trate desse assunto, Amalie! Tens de compreeender que a única
maneira é saírmos os dois, o mais depressa possível. Acredita-me... é
o mais fácil e também o menos doloroso para todos. Será... será um choque, admito. Mas se não
estivermos presentes para que nos atirem à cara com reprovações, as
coisas acalmar-se-ão com mais facilidade.
Olhando-o ainda com um desespero profundo, ela murmurou:
- Mas... e a tua vida, Jerome? Ficarás arruinado, e por minha causa. O Banco... tu criaste aqui o teu
lugar, e agora... eu destruí tudo!
Ele obrigou-se a sorrir, indulgente, e retorquiu-lhe:
- Minha querida tonta. Eu só fiquei aqui por tua causa. E de bom grado partirei, também por tua
causa.
Mas os pensamentos dela pareciam queimá-la.
- O teu pai... Matá-lo-emos, Jerome!
- Acho que não! - respondeu Jerome simulando maior confiança do que na realidade sentia. - Afinal,
ele nunca... interferiu. Admito que talvez seja um choque, mas
ele é muito rijo, e tenho a certeza de que, passado pouco tempo, ficará contente por nos ver felizes.
E... nós vamos ser felizes... tu sabes!
- Mas como poderás tu ser feliz, afastado para sempre do teu pai, de relações cortadas com ele?
Nunca mais ele te quererá voltar a ver! Nós... nós tornámos isso
impossível. Como viverás tu, Jerome? Eu sei como é difícil viver!
A voz tremia-lhe de paixão e de desespero.
- Vamos, vamos! - disse Jerome, procurando acalmá-la, e olhando pouco à vontade para as portas. -
Eu não sou nenhuma criança indefesa. Sou um pintor e já podia ter
vendido dúzias de quadros meus, se o tivesse querido. Além disso, ainda tenho algum dinheiro e
podemos perfeitamente viver em França. O futuro não me assusta, nem
um pouco... se tu estiveres a meu lado.
Inclinou-se e beijou-a de novo.
Mas, desta vez, ela não correspondeu. Os lábios ficaram-lhe inertes sob os dele. Ao fim de algum
tempo, afastou-se um pouco e, segurando-lhe nas mãos, disse:
- E Alfred? Como poderemos nós fazer-lhe isto? Jerome olhou-a, carrancudo.
- Parece que já lhe fizemos muito! - disse, maldosamente. Um violento rubor inundou as faces de
Amalie. Levantou-se,
segurando-se ao encosto da cadeira. Mas Jerome ficara excitado à simples menção do nome do
homem que odiava.
- Achas que me vou preocupar com aquele pedante, aquele Cromwell pretencioso, aquele petulante
e enfatuado? Isso pagar-lhe-á a mania da rectidão e honra e toda a
presunção com que sempre viveu a vida inteira.
Amalie estava, curiosamente, muito calma.
- Estás a ser cruel! - disse-lhe ela, olhando-o sem se mexer. - Estás a ser estúpido! Mas eles também
são a mesma coisa. Apesar de todas as tuas eruditas conversas
com o teu pai, apercebi-me da tua crueldade e a tua estupidez por detrás das tuas palavras, finas e
comedidas. Pensei que isso não interessava. Mas afinal, agora
vejo que interessa muito.
Ele ficou incrédulo e boquiaberto, sem conseguir falar nem fazer um movimento, sequer.
Mas ela não o olhava, agora. Recordava-se da noite em que
Alfred lhe falara da sua própria solidão. Lembrava-se da expressão do marido, alterada, diferente,
comovedora, da sua confiança nela, no extremo inconsciente das
palavras que ele proferira, no toque das suas mãos, quase humildes de simplicidade, a compreensão
que ela própria revelara por ele jamais ter falado daquela maneira
com ninguém, a gratidão dele por ela o escutar, a felicidade que Alfred sentira ao descobrir nela a
amiga que nunca tinha tido. Tinha quase amado o marido nesse
dia, na compaixão que sentira por ele, na quase brusca consciência que tomara da sua integridade,
do desejo secreto e desafectado da afeição dos outros.
Jerome ficou alarmado com a expressão que lia no rosto de Amalie, e por momentos esqueceu toda
a raiva que as palavras dela tinham feito nascer dentro de si. Avançou
na sua direcção, mas Amalie recuou rapidamente, exclamando:
- Tu sempre odiaste Alfred. Nunca o compreendeste, nem tentaste, ao menos, compreendê-lo.
Troçavas dele, falseando e deturpando propositadamente tudo o que ele dizia.
Tentaste sempre ridicularizá-lo, fazer dele um estúpido e um louco. E, depois, quando verificaste
que o homem de palha que tinhas imaginado era um verdadeiro homem,
desprezaste-o. Mas... nunca conseguiste ludibriar os outros.
- Muito esperta! - disse Jerome, suavemente. - Então, eu sou um homem desprezível, sem honra,
nem sensibilidade nem compaixão pelos outros. Ataquei um herói, por
pura maldade. É muito nobre e edificante escutar tão belos sentimentos da tua boca. Mas,
evidentemente, esqueceste que casaste com ele, por razões puramente mercenárias,
dando-te em troca daquilo que ele te poderia oferecer. E agora tens a audácia de me chamar cruel e
estúpido. Não achas que esses mesmos epítetos se podem aplicar
a ti também?
O rosto de Amalie tornou-se cinzento como a própria morte. Mas continuou a olhá-lo sem
pestanejar.
- Sim - retorquiu - Somos os dois uns miseráveis. Será bem melhor que Alfred não volte a ver
nenhum de nós... nunca mais.
Ele apoiou-se contra a secretária e sorriu, afável.
- Isso, minha jóia, é o que tenho estado a tentar dizer-te. Olhavam um para o outro desaf
iadoramente, sem amor nem
paixão, apenas com um entendimento mútuo. Jerome sentia-se quase divertido, mas também secreta
e profundamente alarmado pela cor que via espelhada no rosto de Amalie,
pela incomensurável agonia que lia nos seus olhos.
- Fica, então, assente, que nos vamos embora, imediatamente? - perguntou.
Ela enroscava as fitas do chapéu nos dedos trémulos e nervosos.
- Não - respondeu. - Temos primeiro, de falar com Alfred. Temos de lhe dizer o que se passa. Temos
de o fazer compreender que não perderá nada e que será melhor
para ele se eu me for embora.
Jerome mordeu os lábios e fixou o olhar no vácuo. - E... tencionas dizer-lhe tudo isso assim que ele
regressar? As fitas estavam retesadas e fortemente apertadas
em redor dos dedos de Amalie.
- Se o teu pai revelar melhoras... sim. A melhor ocasião surgirá por si própria. Tenho a certeza.
Sardonicamente, Jerome sugeriu:
- Suponho que terás a bondade de me informar primeiro, quando surgir essa... "melhor ocasião",
para que eu possa estar preparado, não? Ou... será que essa deliciosa
conversa decorreirá apenas entre ti... e o teu marido... na privacidade do vosso quarto?
O rosto de Amalie pareceu apagar-se, reduzir-se, mas respondeu, muito calma:
- Dir-te-ei. Talvez sejam precisos apenas alguns dias, ou algumas semanas. Não sei.
- E entretanto, tu continuarás a manter as relações mais amistosas com a minha família e com o teu
marido? Abanou a cabeça, e continuou:
- Minha querida, não achas que isso é pedir-me demasiado? Eu sou extremamente nervoso, e não
me agrada nada a perspectiva de estar sentado em cima de um monte de
dinamite, E com o rastilho a assobiar algures no escuro. Depois, de modo virulento, disse ainda: E -
Ou talvez tu prefiras outra coisa. Talvez prefiras esquecer
o que se passou, e continuar a tua vida como dantes, na casa de meu pai! É essa a alternativa secreta
que pretendes? Uma exclamação abafada soltou-se dos lábios
de Amalie; mas Jerome, excitado, nem a escutou. Aproximou-se dela, sem se aperceber de que
Amalie recuava ainda mais, e continuou: - Pois bem, minha cara, quero
dizer-te que nem tudo está nas tuas mãos. Eu também tenho as minhas próprias idéias, sabes? E não
julgues que vais fazer de mim parvo! Voltou-se e caminhou abruptamente
para a secretária. Atirou com o charuto meio fumado para o cesto dos papéis e acendeu outro.
Reparou que as mãos lhe tremiam e isso deixou-o ainda mais furioso.
- Talvez aches, até, agradável enganares o teu nobre marido noutras... ocasiões, tendo-me a mim
como teu cúmplice
agradecido e obediente. Talvez eu tenha subestimado a tua esperteza, minha jóia!
Amalie não se mexeu. Parecia não ter escutado. Olhava simplesmente para ele, de olhos
intensamente purpúreos, escancarados de surpresa e dor.
- Ou então - continuou ele, com fria violência-, achavas que seria muito digno da minha parte que
eu me afastasse, solícito e atencioso, da tua proximidade, e nunca
mais voltasse a pôr os pés em casa de meu pai?
Ficou à espera, mas ela não respondeu. Estudou-a intencionalmente durante longos momentos, e
depois exclamou:
- Amalie! Minha querida! Desculpa-me! Sabes que nada do que tenho estado para aqui a dizer é
verdade. Mas tens de concordar.que não me consideraste nem um pouco.
Os laços do chapéu soltaram-se dos dedos exangues de Amalie, e ela cobriu o rosto com as mãos.
Jerome não sabia o que fazer. Esfregou a testa num gesto de desespero e impotência. Queria toma-la
nos seus braços, mas isso parecia-lhe impossível agora.
Subitamente animado continuou:
- Olha, tenho outro plano. Se tu estás tão determinada a seres "digna" e defender a "honra", porque
não te vais embora primeiro e ficas com pessoas minhas amigas
em Nova Iorque, ou ficas em Saratoga por alguns dias? Entretanto, eu próprio falarei com Alfred e
irei depois ter contigo. Deste modo, poupar-te-ás a todas as coisas...
desagradáveis. Asseguro-te que sou perfeitamente capaz de dominar a situação sozinho.
Ela deixou cair as mãos. As faces inundaram-se-lhe de lágrimas.
- Obrigado, Jerome - murmurou. - Oh! obrigado! Mas... eu não vou fazer isso. Não posso fugir
como uma ladra. Devo esta última coisa a Alfred.
Olhou à sua volta, quase cega pelas lágrimas, em busca da bolsa. Estava em cima da cadeira que
abandonara. Apanhou-a. Depois, voltando-se para Jerome, implorou num
sussurro:
- Por favor, por favor... Estendeu-lhe a mão numa súplica.
Jerome ficou silencioso, enquanto Amalie continuava de mão estendida. Quando viu que ele
mantinha a mesma atitude indomável, dirigiu-se lentamente para a porta e
abandonou a sala.
Capítulo vigésimo oitavo
O doutor Willie Hawley olhou para Amalie com deferente mas preocupada atenção. Recostou-se na
sua cadeira, pensativo. Afastara da sua frente uma jarra com rosas
frescas colhidas no seu próprio jardim, que enchiam o consultório confortavelmente aquecido de um
aroma doce e penetrante.
O médico era um homem já idoso, de rosto moreno e uma fina barba branca, mas tinha uns olhos
curiosamente vivos, cor de âmbar antigo. Não era apenas o médico dos
Lindsey, mas um autêntico amigo de muitos anos. Gostava especialmente de Amalie, porque era
solteiro e tinha um gosto apreciável por mulheres.
Em tom pesaroso, disse:
- Bem, ao menos agora sabemos a certeza. Depois, num tom mais alegre, disse ainda:
- Mas ainda temos muito tempo, sabe, Miss Amalie! É muito jovem, ainda. Tem apenas vinte e três,
não é? É claro que eu fui sempre de opinião de que é preferível
uma mulher ter filhos entre os dezasseis e os vinte e três anos, quando ainda está no maior vigor das
suas forças e pode gozar a suajuventude. As mulheres mais velhas
são menos... flexíveis, não só física como também mentalmente. E descobri também, ao longo dos
anos de carreira, que a flexibilidade é absolutamente necessária quando
se trata de suportar a barulhenta companhia de crianças.
Sorriu para a mulher sentada à sua frente, mas os seus olhos continuavam ansiosos.
- Mas se tiver o seu primeiro filho aos vinte e cinco anos, ainda não é demasiado tarde. A sua
família, nesse caso, será necessariamente pequena, porque os riscos
do nascimento não devem ser corridos de modo indiscriminado depois dos trinta. Há muita gente
que não concorda com este meu ponto de vista, mas, talvez infelizmente,
os factos provam que eu tenho razão. Tumores, doenças de muitas espécies que normalmente
surgem nas mulheres de trinta anos, tornam os partos mais precários e sujeitos
a riscos.
Amalie tentou sorrir, mas o olhar arguto e experimentado do médico detectou um cansaço profundo,
muito próximo da exaustão e do esgotamento. Por isso, disse, agora
com mais gravidade na voz:
- Mas... acho que deve haver algo mais sério e grave do que este desapontamento que, aliás, espero
seja temporário. Você não está bem. Nas minhas visitas a Miss
Dorothea, notei que tem estado a decair dia após dia, criança. Não se trata de anemia, nem de
qualquer perturbação orgânica. Tenho a certeza disso.
Atrevo-me mesmo a dizer que a raíz dessa aflição é a infelicidade. Mas isso, é claro, é passageiro!
Bateu com os dedos no tampo da secretária, num ritmo que pretendia ser alegre e animado, mas o
seu olhar penetrante não diminuiu de intensidade, nem se afastou nem
por breves segundos do rosto de Amalie.
Amalie obrigou-se a si própria a retorquir:
- Eu... eu não sou infeliz. Mas... sinto-me muito cansada.
- É claro! É claro! Eu sei muito bem a devoção com que tratou o velho William, e com que trata,
agora, de Miss Dorothea. Mas posso dizer-lhe, com toda a franqueza,
que Miss Dorothea não corre perigo algum. As senhoras de meia idade são, por vezes, petulantes e
exigentes, e chegam até a ficar hipocondríacas. Há alturas em que
chego mesmo a pensar que as senhoras entre os trinta e cinco e os cinqüenta se deviam retirar para
um convento e ficar ali até terem recuperado o bom senso.
Gargalhou com gosto, e continuou:
- bom, portanto não tem que se preocupar demasiado com Miss Dorothea. Sugiro-lhe, até, que a
abandone um pouco, para seu próprio bem. O ar, o sol, os passeios calmos,
a pé ou de carruagem, as visitas aos amigos, refeições simples, um bom sono retemperador, são
coisas que ajudam a recuperar a saúde. Porque - disse ainda num tom
mais sério, agora - você não está bem. Receio mesmo que acabe por ficar gravemente doente se não
cuidar de si.
- Não tenciono morrer, doutor Hawley - disse Amalie, com um sorriso que mais não fez do que
aumentar a preocupação do médico.
- Oh, decerto que não, decerto que não! A Miss Amalie tem uma constituição bastante robusta, mas
a verdade é que não se tem resguardado muito!
Ergueu-se quando Amalie se levantou, e continuou a dizer:
- Tenho aqui um tónico para si, minha criança. Mas não lhe servirá de nada se não tomar melhor
conta de si própria.
Acompanhou-a até à pequena carruagem. Ao caminhar ao lado de Amalie, reparou que os passos da
jovem eram fracos e débeis, que a cabeça lhe pendia, e que as mãos
lhe tremiam quando a ajudou a subir para o carro.
Pensou que tinha de falar urgentemente com Alfred. Aquela rapariga estava muito doente. A cor do
seu rosto era terrível e ele, doutor Hawley, não gostava nada daquelas
olheiras profundas e sombrias debaixo dos olhos. Abanou a cabeça levemente. Uma doença
qualquer, mais do espírito do que do corpo, estava a atormentar a jovem. Sim,
quase que era capaz de apostar que se tratava de qualquer coisa relacionada com o espírito.
Lembrava-se de a ver nas ruas, antes do seu casamento com Alfred Lindsey, e admirara, então,
profundamente, o seu porte ousado, a sua cabeça sempre erguida, os olhos
brilhantes e a pele exuberante de vida. Agora nada disso observava nela. Parecia outra pessoa.
Movia-se como se algo se tivesse quebrado dentro dela, como se estivesse
demasiado exausta, demasiado inerte. Tudo aquilo era muito estranho e confuso. Conhecia bem
Alfred e sempre o considerara um homem de honra, justo, com firmes noções
de fidelidade e dedicação.
Que teria acontecido àquele casamento?
Ficou a observar Amalie enquanto ela se afastava, e depois voltou para a sua casa de tijolo,
abanando a cabeça. Sim, tinha de ter uma conversa com Alfred, logo que
ele regressasse a casa. Sentia-se irritado com Dorothea. Estaria aquela pestilenta mulher a aborrecer
a pobre rapariga? Mas achava isso pouco provável, pois sabia
bem que Amalie era senhora de um carácter muito vivo, nada vulnerável a susceptibilidades.
Amalie deixou que o cavalo conduzisse o pequeno carro de regresso a casa, sem a mínima
orientação da sua parte. Sentia-se incapaz de o dirigir. Os pensamentos atropelavam-se-lhe
no cérebro em ondas de atormentada angústia. Não encontrava consolação em nada, mas apenas
uma profunda desolação e um sofrimento indescritível que a consumia. O
seu carácter naturalmente resoluto tinha sido sempre apoiado por uma espécie de coragem indómita,
pela consciência da sua própria integridade. Mas agora tanto a
coragem como a integridade tinham desaparecido. Nada mais lhe restava senão dor, desespero e
remorso.
"Não posso acusar ninguém, nem mesmo Jerome", pensou. "Sempre soube, desde a primeira noite
em que o vi, que pertencíamos um ao outro. Ele, pelo menos, foi suficientemente
honesto para aceitar esse facto. Pediu-me para fugir com ele, antes de me casar com Alfred. Eu
sabia que podia, nessa altura, fazer com que ele se casasse comigo;
uma mulher sabe sempre. Mas... ele não tinha dinheiro nem perspectivas imediatas de futuro seguro
e estável. Portanto, eu sou mais culpada do que ele. Se eu soubesse,
nessa altura, que o pai dele lhe poderia perdoar por fugir comigo, eu tê-lo-ia feito. Todavia, eu tinha
demasiado medo da pobreza, da miséria e da insegurança. Fui
uma cobarde Afinal, acabamos por pagar mais pela nossa cobardia do que pelos crimes que
cometemos.
"Não posso continuar a ser cobarde, agora. Se acaso há ainda um pouco de honra a salvar de tudo
isto, não posso continuar a ser cobarde."
Mas, apesar de toda a sua resolução, não podia deixar de olhar para o futuro senão com desespero.
E esse desespero não era simplesmente por si própria, mas em especial
por Jerome. Apesar de tudo o que ele tinha dito, sabia que o seu interesse pelo Banco não era uma
coisa fortuita ou casual, nem um simples expediente para atingir
outras coisas. Além disso, o amor que Jerome sentia pelo pai não era coisa que se pudesse
desprezar. Quando ela se fosse embora com ele, a vida ali, para Jerome,
teria terminado, e nunca mais poderia voltar a ver o pai.
"Como é que eu posso fazer-lhe uma coisa dessas?", pensou Amalie, com um sofrimento intenso a
queimar-lhe as entranhas. "Como é que eu posso levá-lo a acreditar
que mereço que ele abandone toda a sua vida e Mr. Lindsey, por mim? Virá ele, um dia a odiar-me
por isso?"
À simples idéia de que Jerome pudesse, um dia, vir a odiá-la, sentiu-se invadida por uma angústia
insuportável. Toda a luminosa paisagem de Verão pareceu dissipar-se.
Só tinha uma alternativa: fugir sozinha, deixando apenas uma pequena nota a Alfred dizendo-lhe
que tinha chegado à conclusão de que aquele tipo de vida era demasiado
rotineiro e morto para o seu gosto; pedir-lhe-ia ainda que a perdoasse e que nunca tentasse encontrá-
la. Assim, Jerome e toda a sua
família poderiam continuar as suas
vidas em paz e passado pouco tempo ela seria esquecida e o erro da sua entrada naquela casa ficaria
para sempre enterrado.
"Esquecer-me-ão todos", pensou Amalie. "Alfred ficará terrivelmente magoado a princípio, mas
também ele procurará esquecer-me o mais depressa possível. Mr. Lindsey
não compreenderá, mas acabará por me perdoar e ao fim de algum tempo também acabará por me
esquecer. E Jerome... casará com Sally, afastando-me definitivamente do
seu pensamento, como uma doida que fui e que continuo a ser. Também ele me esquecerá, e talvez
até mais depressa do que os outros!"
A agonia, o tormento, a angústia que a tinham invadido tornavam-se insuportáveis e asfixiantes.
Apesar de tudo o que dizia a si própria para se convencer, não tinha
coragem para abandonar Jerome. Pelo menos por enquanto.
"Dai-me mais uma ou duas semanas, Senhor!", suplicou Amalie, num desespero pungente que lhe
dilacerava a carne. "Apenas mais alguns dias para o ver e escutar a sua
voz. Sei que sou cobarde e fraca. Mas... preciso tanto de mais esses dias!"
O pequeno carro subia já a colina. Amalie ergueu os olhos atormentados para Hilltop, banhada pelo
sol morno do entardecer e pelas sombras das árvores que rodeavam
as suas paredes cinzentas. Que impregnável lhe parecia, e ao mesmo tempo tão acolhedora!
Não! Não podia trazer a vergonha e a dor àquela casa. Tinha de partir. Chorava baixinho agora, e as
lágrimas só pararam quando, num esforço angustiado, ergueu a
cabeça num gesto de resolução. A sua vontade tinha de ser mais forte. Era bem melhor que fosse só
um a sofrer, e não muitos. Não tinha ilusões de que Jerome falasse
depois da sua partida. Conhecia-o demasiado bem. Jerome era egoísta, demasiado interesseiro e sem
escrúpulos. Era, além de tudo o mais, realista.
Aquele pensamento, aquela reflexão amarga, foi o bastante para tornar mais firme a resolução que
tomara. Não passava, afinal, de um ser humano, e a certeza de que
Jerome a esqueceria facilmente, afastando da sua memória qualquer recordação dela, talvez mesmo
com gratidão e um certo alívio, encheu-a de uma raiva surda. Lembrou-se
da frieza com que ele a recebera quando entrara no seu gabinete, dos olhares furtivos que
constantemente lançava para as portas, do seu cuidadoso afastamento.
Não conseguia recordar-se de mais nada, mas isso bastava-lhe para se apoiar na decisão inabalável
que acabara de tomar. Deixou a pequena carruagem no estábulo, e
descobriu que uma terrível fraqueza se apoderava dela, e que cada passo que dava na direcção da
casa lhe exigia um esforço extremo. Mal teve forças para empurrar
a pesada porta de carvalho, e aquele simples esforço fez com que o coração lhe batesse
descompassadamente dentro do peito, ameaçando sufocá-la.
A sala de entrada ficou morna, escurecida e silenciosa quando fechou a porta atrás de si. Parecia que
toda a casa dormia. A porta da biblioteca estava aberta,
e Amalie viu os raios de sol brincarem nas capas vermelhas e azuis dos livros nas prateleiras,
estenderem-se como longos dedos sobre a carpete escura. Ouvia o
murmurar das árvores perto das janelas francesas e o chilrear Bdistante das aves sonolentas. Tudo o
mais parecia mergulhado num silêncio entorpecido.
Amalie deteve-se junto da imponente escadaria de carvalho. Nunca se apercebera de como acabara
por gostar daquela casa, da sua paz e segurança, da protecção que
significava para ela, cuja vida fora sempre tão cheia de sofrimento, pobreza e desespero.
Amargurada, soltou os laços do chapéu e deixou-o pender. Talvez já depois
de amanhã ela deixasse de ver aquela casa para sempre, deixasse de sentir o calor daquelas paredes,
deixasse de poder dormir na sua cama sem medos e ameaças. "Para
onde irei eu", perguntou a si própria, desesperada. "Que poderei eu fazer?"
Ergueu os olhos para a imensa escadaria que parecia aguardá-la na penumbra aquecida. Viu o
corredor iluminado lá em cima. Começou a subir, e cada degrau era mais
um espinho de
agonia a espetar-se-lhe no peito. O chapéu, preso pelas fitas, batia em solavancos contra os degraus.
A cabeça pendia-lhe para a frente. Sentia a espessura macia
da carpete debaixo dos pés. Era já uma exilada, era já uma intrusa que não tinha quaisquer direitos
naquela casa. A porta do seu quarto estava fechada. Abriu-a penosamente.
Dorothea estava ali sentada, perto da janela, os braços envoltos em seda negra cruzados sobre o
peito. Amalie viu-lhe a boca, marcada por um ricto de ódio e de fúria.
Viu os olhos de Dorothea, chispando de raiva no rosto cinzento, ensombrado ainda pela severa
touca que lhe escondia os cabelos.
Amalie, no limiar da porta, não fez um único movimento. Apenas disse, falando para si mesma:
"Ela sabe!"
Sentiu o chão fugir-lhe debaixo dos pés, a garganta apertar-se-lhe de angústia, o coração martelar-
lhe o peito, sufocando-a.
- Onde é que estiveste? - perguntou Dorothea.
Mesmo naquele quase desmaio que a invadia, a voz de Dorothea soou-lhe aos ouvidos
estranhamente calma.
Numa tentativa de autocontrole, fechou a porta, dirigiu-se para o toucador, e pousou ali o frasco que
o doutor Hawley lhe dera. Tinha ultrapassado toda a capacidade
de sentir todo o sofrimento ou terror.
com a mão ainda pousada sobre o frasco, enfrentou a outra mulher, com o rosto muito calmo e
pálido, e respondeu:
- Estive com o doutor Hawley. Deu-me este tónico.
A voz saíra-lhe sem qualquer entoação, mas cada uma das palavras fora como que um punhal a
rasgar-lhe a garganta.
Sabia que Dorothea estava fora de si e que não seria capaz de dominar por muito tempo a fúria e o
ódio que cresciam dentro dela. As duas mulheres olharam uma para
a outra num silêncio pesado e terrível.
Por fim, ainda muito calma, Dorothea perguntou:
- Tu... viste-o?
Amalie não conseguiu responder. Os dedos apertaram-se-lhe em redor do frasco. Apoiou-se contra o
toucador porque sentia que os pés lhe fugiam.
Dorothea ergueu-se lentamente, mas aquele movimento revelava o estado de fúria que a inundava,
muito mais do que qualquer gesto violento que tivesse feito.
- Tu viste-o. Tu fugiste às escondidas desta casa honrada enquanto eu dormia. Fugiste... para ires ter
com ele... Mulher sem vergonha... Mulher desprezível!
A voz não se erguera, mas tinha um tom inflexível, lento, duro, extraordinariamente assustador,
como a voz da loucura.
Dorothea levantou um braço e apontou um dedo na direcção deAmalie.
- Há já muito tempo que sei tudo acerca de vocês dois. Tentei esconder tudo isso... por causa de
Alfred.
A voz quebrara-se-lhe agora, e saía-lhe em catadupas, numa dor selvagem.
- Mantive o meu silêncio... para o bem dele... e só para o bem dele! - continuou. - E tencionava
manter esse meu silêncio para sempre, a menos que vocês o tornassem
impossível.
Calou-se por alguns instantes, para logo afirmar:
- E vocês tornaram isso impossível!
Mesmo depois de se calar, continuava com o dedo rigidamente apontado na direcção de Amalie. Era
como se não tivesse qualquer domínio sobre a mão, era como se tivesse
ficado de súbito gelada naquela atitude de denúncia e acusação, independentemente da sua vontade
ou poder.
Muito calma, Amalie retorquiu:
- Eu vou-me embora... sozinha. Amanhã mesmo. Nunca ninguém mais desta casa me voltará a ver.
Fechou os olhos com força, pois não conseguia suportar a visão daquela mão estendida par a ela,
acusadora, implacável.
E então ouviu Dorothea dizer, como se falasse de muito longe:
- E tu julgas que podes fugir assim, como vil cobarde que és, e deixar o teu cúmplice enfrentar
sozinho os resultados do seu crime?
Amalie não abriu os olhos, e disse apenas debilmente:
- Alfred... não precisa de saber de nada. A única coisa que tens a fazer é manter o teu silêncio.
Quando eu me for embora, poderão todos esquecer-me. Jerome jamais
falará.
Esperou que Dorothea falasse, mas como não ouviu um único som, disse ainda:
- Afinal, apesar de tudo, ele é teu irmão.
Ouviu um ligeiro restolhar de saias, pouco antes de conseguir abrir os olhos de novo. Quando o fez,
tentou recuar um passo, mas foi impedida pelo toucador ao qual
se apoiava. Dorothea estava agora muito junto dela, olhando-a com um ódio mortal e uma repulsa
quase animalesca.
- Não! - disse Dorothea. - Ele já não é meu irmão. com que então, julgavas que o conseguias salvar,
deixá-lo em paz, a rir-se secretamente de Alfred? Não, não, minha
cara! Ele não vai escapar ao castigo que a sua vilania merece.
Enquanto falava, abanava a cabeça violentamente de um lado para o outro, num quase divertimento
empedernido e mau. Amalie viu-lhe os olhos e pensou, com súbito terror:
"Ela está louca!"
Inclinou-se para trás, contra o toucador, até que a cabeça quase embateu no espelho, sobre os
frascos de cristal e ouro. Um pânico desesperado apoderara-se dela.
Lançou um olhar rápido para a porta, mas já Dorothéa lhe agarrava no braço e a sacudia
violentamente, sorrindo, diabólica, enquanto dizia:
- Não posso impedir-te de te ires embora. Mas... posso contar tudo a Alfred e ao meu pai. O teu
amante não terá a ousadia de ficar aqui, porque sabe muito bem que
Alfred o matará. Vai-te embora, se quiseres. Foge! Esconde-te! Mas se ele ficar, serás culpada de
muito mais do que adultério. Serás culpada de assassínio.
Os seus dedos de ferro esmagavam a carne de Amalie. As duas mulheres olharam-se fixamente,
como se se estudassem uma à outra.
- O teu pai...! - murmurou Amalie.
O rosto de Dorothéa arrepanhou-se num esgar horrível.
- O meu pai! - repetiu ela.
A garra que apertava o braço de Amalie provocava nesta uma dor lancinante.
- Achas que me interesso por mais alguém que não seja Alfred?
O seu olhar tornara-se mais selvagem do que nunca, mais desvairado, mais duro, numa demência
inumana.
- Nunca me interessei por ninguém em toda a minha vida, senão por Alfred - gritou Dorothéa. -
Quando ele se casou com aquela idiota que morreu, pensei que já não
havia mais nada no mundo por que valesse a pena viver. Quando ela desceu para o túmulo, fiquei
feliz. Até agradeci a Deus!
Havia algo de obsceno, agora, na sua voz rouca, uma gargalhada escarninha, abjecta, que lhe
retorceu o rosto.
- Tinha a certeza de que, com o tempo, ele haveria de chegar à conclusão de que sempre nos
tínhamos amado um ao outro...
Apesar de todo o horror que sentia, apesar de toda a fraqueza que a deixava quase inerte, Amalie
estava perplexa, revoltada e incrédula com o que ouvia e via. Escutou
toda aquela súbita torrente de paixão insana, aquela catadupa de palavras gritadas e sibilinas, com o
espanto marcado no rosto.
Não conseguia deixar de fixar aqueles olhos chispantes e injectados de demente. Quis tapar os
ouvidos com as mãos, mas estas estavam como que paralisadas com o choque.
Dorothéa abanou de tal forma o braço dolorido de Amalie, que esta não conseguiu evitar um
abafado grito de dor. Sentiu no rosto a respiração quente e ofegante de
Dorothéa.
- E então... - exclamou esta - então vieste tu! Tu... criatura indecente e nojenta. Tu seduziste-o até o
convenceres a casar-se contigo! Tu urdiste toda esta trama
para o arruinares e destruíres! Afastaste-o de mim, e agora julgas que o podes desgraçar para
sempre, sem que ninguém te castigue por esse crime! Mas esqueceste-te
de mim!
Abanou Amalie ainda com maior violência, e a jovem nem forças teve para lhe resistir. Parecia um
farrapo nas mãos daquela mulher enlouquecida.
- Roubaste-me a minha vida! Roubaste-me toda a esperança! Aceitaste o nome de um homem bom e
nobre, para o espezinhares a teus pés! Não te bastou tudo quanto ele
te deu! Tinhas de o apunhalar pelas costas para depois te rires dele às escondidas. Mas... cometeste
um erro! Esqueceste-te de mim!
O terror deu forças a Amalie para conseguir arrancar o braço às garras de Dorothea. Deslizou,
depois, ao longo do toucador, procurando afastar-se dela. Fitando Dorothea
com olhos esgazeados de espanto e medo, como se pretendesse detê-la com um simples olhar,
murmurou:
- Eu vou-me embora. Vou-me embora agora mesmo. Mas, por amor de Deus, não magoes Alfred
mais do que ele já está. Que importa agora Jerome? Se tu... se tu tens ainda
algum interesse e preocupação por Alfred, tem piedade dele. Não lhe
digas nada. Deixa-o esquecer-me!
Mas Dorothea não pretendia deixá-la escapar assim com tanta facilidade. Voltou a aproximar-se
dela, gargalhando.
- Não! Contar-lhe-ei tudo, para que ele se possa vingar daquele homem, mesmo se tu já não
estiveres aqui.
Amalie deteve-se, e agarrou-se à berma do toucador com ambas as mãos.
Depois, num quase sussurro, disse:
- Tu não o amas. Nunca o amaste. Odiaste-o... odiaste-o quando ele se casou pela primeira vez, e
odiaste-o ainda mais quando se casou comigo. Queres vingar-te dele
agora, porque ele preferiu outras mulheres a ti. Não és capaz de compreender isso? Não tens pena?
Não conseguirás tu sentir um pouco de piedade por ele?
Dorothea endireitou-se como se tivesse ficado de súbito hirta e gelada. Depois, ergueu a mão e
esbofeteou Amalie com uma violência inesperada.
Amalie não se mexeu, nem soltou um grito sequer. Ficou imóvel, em absoluto silêncio, enquanto
que o branco do seu rosto se tingia lentamente de vermelho com as marcas
distintas dos dedos de Dorothea. Não havia angústia nem terror nos seus olhos agora, mas apenas
uma cor violeta intensa e escura.
com voz muito clara disse:
- Chamaste-me sem vergonha e nojenta. Mas tu és ainda mais desavergonhada e nojenta do que eu.
És tu quem há-de arruinar Alfred e destruir o seu coração, e não eu.
E farás isso por pura vingança e ódio.
Dorothea voltou a erguer a mão, num gesto de fúria incontrolada, como se quisesse desferir nova
bofetada em Amalie. Mas esta limitou-se a sorrir, num franco desafio.
- Não te atrevas a tocar-me outra vez, Dorothea. Porque, se o fizeres, lamentá-lo-ás o resto da tua
vida.
A mão fechou-se-lhe em volta de um candelabro pousado no toucador, atrás dela. Falando quase por
entre os dentes, continuou:
- E agora, escuta bem o que te vou dizer. Já te disse e repeti que me vou embora. Mas ficarei aqui
até Alfred regressar, e até eu própria falar com ele. Tenho, afinal,
um pouco mais de pena dele do que tu, e juro-te que se me denunciares antes de eu falar com ele,
lhe contarei toda a cena que se passou neste quarto, e tudo o que
me disseste. Depois disso, jamais terás coragem para falar com ele outra vez. Alfred ficará a saber e
acusar-te-á de teres sido a causa da sua dor e do seu sofrimento,
porque ficará a saber que, se não tivesses sido tu, o seu sofrimento teria sido bem menor!
Parou para tentar recuperar o fôlego e olhou para Dorothea com orgulhosa repulsa.
- Conserva o teu silêncio. Quando eu me tiver ido embora e ele me esquecer, divorciar-se-á de mim
e voltar-se-á para ti, em busca de conforto.
Mesmo no meio da sua loucura febril, Dorothea ouviu. Recuou uns passos, e olhou fixamente para
Amalie. No fundo dos seus olhos começou a aparecer, muito devagar,
uma ténue luz de raciocínio, de cálculo sagaz, de reflexão.
- E agora - disse Amalie, sentindo que de novo um enorme enfraquecimento se apoderava do seu
corpo - sai, por favor, do meu quarto. Quero ficar sozinha. Eu... eu
estou doente. Quero descansar.
Continuando a olhá-la fixamente, Dorothea começou a recuar na direcção da porta. Tacteou em
busca do puxador, e abriu-a. Saiu do quarto e olhava ainda para Amalie
quando a porta se voltou a fechar.
Durante muito tempo Amalie ficou encostada ao toucador, incapaz de se mexer, com medo de cair.
Depois, num esforço supremo, endireitou-se e dirigiu-se para a sua
secretária de madeira rosa. Muito calma, escreveu:
"Tenho outros planos. Quando Alfred regressar, contar-lhe-ei,
numa altura que eu achar conveniente, que acho insuportável a minha vida com ele e que se eu ficar
aqui só farei a infelicidade dele e a minha. Dir-te-ei mais
tarde onde poderás encontrar-me, após algum tempo de espera, para que possas sair sem levantar
suspeitas. Não consigo pensar noutro plano melhor do que este, e tenho
a certeza de que se pensares um pouco, acabarás por concordar que assim é melhor para todos nós."
Dobrou o papel, colocou-o dentro de um envelope e fechou-o. Todos os seus movimentos eram
calmos e precisos. Ergueu-se depois, muito devagar, e tocou para chamar
uma criada. Quando a rapariga entrou, disse-lhe que chamasse Jim ao seu quarto. Enquanto
esperava pelo criado de Jerome, ficou de pé no centro do quarto, olhando
para nada, pensando apenas para consigo mesma:
"É bastante fácil, se nos recusarmos a pensar seja no que for!"
Jim bateu ao de leve na porta e Amalie abriu-a, sorrindo. Sem falar, estendeu-lhe o envelope. Jim
olhou primeiro para o envelope e depois para a jovem. O seu rosto
simiesco enrugou-se ainda mais, mas, também sem proferir uma só palavra, fez uma ligeira vénia e
afastou-se.
Quando ficou de novo sozinha, Amalie dirigiu-se para a cama, e deixou-se cair sobre ela, de rosto
para baixo, os olhos abertos comprimidos com força contra a almofada.
Passado muito tempo ouviu a campainha tocar para o jantar, mas quando tentou levantar-se não o
conseguiu. Toda a sua força e coragem tinham desaparecido. Deixou-se
ficar na cama, num estado de completa inércia e choque, incapaz de se mover, o peito mal se
erguendo ao ritmo da respiração.
Capítulo vigésimo nono
Quando Jerome regressou do Banco, a sua sensibilidade arguta e perspicaz segredou-lhe que havia
qualquer coisa de perigoso no ar daquela casa, habitualmente calma
e serena. Não viu nem Amalie nem a irmã. Todas as salas estavam silenciosas e vazias, inundadas
apenas pelos mornos raios do sol poente. As janelas estavam abertas
e a brisa, suave como a seda e doce como a terra em flor, enchia os corredores e atravessava todas
as portas. Da cozinha, chegava até ele o canto prodigioso dos
canários da cozinheira.
Assobiando pensativo, subiu a escada até ao seu quarto. Quando chegou ao segundo patamar, olhou
para baixo, para a
sala de entrada deserta, onde só o tiquetaque do velho relógio quebrava o silêncio. Um raio de sol
embateu no pesado e polido pêndulo, que o reflectiu numa onda
dourada e intensa.
A porta do seu quarto abriu-se lentamente quando dela se aproximou, eJerome viu que Jim estava à
sua espera, muito hirto e de rosto carregado. Algo na atitude do
velho criado impediu-o de o cumprimentar da maneira ligeira e despreocupada que sempre
utilizava. De súbito alerta, fechou a porta atrás de si, depois de ter entrado
no quarto. Sem proferir palavra Jim estendeu-lhe o envelope que Amalie lhe entregara.
Jerome ficou com ele na mão, sem o abrir, e fixou em Jim o seu olhar penetrante, como se quisesse
adivinhar o que ia no espírito do criado. Jim devolveu-lhe o olhar
sombrio, e Jerome franziu o sobrolho. Abriu então o envelope e leu a missiva rapidamente. Depois,
como reparasse que Jim o observava com atenção, Jerome rasgou a
carta, num gesto deliberado e preciso, em pedaços muito pequenos; encaminhou-se em seguida para
a lareira apagada, atirou com os pedaços de papel para cima das brasas
frias e pegou-lhes fogo com um fósforo. Endireitou-se e ficou a vê-los desaparecer até nada mais
restar deles senão cinzas dispersas.
Voltou-se para Jim com um sorriso inocente no rosto, dirigiu-se para uma cadeira, sentou-se e tirou
um charuto. Jim aproximou-se rapidamente e acendeu-lho. Jerome
puxou tranqüilamente o fumo e observou com atenção o velho criado.
- Jim! - disse, por fim. - Gostarias de voltar para Nova Iorque?
- Para uma visita, senhor? - perguntou, por sua vez, Jim num tom tão desprovido de esperança que
não enganou Jerome.
Abanou um pouco a cabeça e respondeu:
- Não, Jim. Para sempre. Ficas deliciado, claro! Jim não respondeu.
- Tinhas toda a razão, no princípio - continuou Jerome, com uma expressão de enorme candura. -
Nunca devíamos ter ficado aqui. Fiz muito mal em ter vindo, e sobretudo
em ter insistido em ficar aqui. Este lugar é monótono e estúpido, e, para te falar com franqueza, já
estou farto desta casa. Portanto, o melhor que temos a fazer
é voltarmos para Nova Iorque. Concordas?
Jim pestanejou, e disse numa voz pouco firme:
- Acho que agora já é demasiado tarde para voltarmos. Jerome ficou perplexo.
- Ora essa! - exclamou. - O que queres tu dizer com isso, raposa velha?
Jim olhou para as esparsas cinzas na lareira, e Jerome seguiu-lhe o olhar. Muito devagar, tirou o
charuto da boca, mas já o criado dizia:
- Se voltar, senhor, será depois do casamento? Jerome levantou-se e retorquiu:
- Receio bem, Jim, que já não haverá casamento nenhum. Pelo menos por enquanto.
Jim não pareceu ficar surpreendido, mas o seu rosto enrugado e seco ficou ainda mais sombrio.
- Nunca me convenci que o houvesse! - disse o criado simplesmente.
Jerome começou a andar de um lado para o outro no quarto, fumando com ar ausente e distante. Por
fim, detendo-se na frente do criado, disse:
- Jim, tu não és parvo nenhum. Que sugeres? As coisas estão um pouco embrulhadas!
Sorriu, nervoso.
Jim encolheu os ombros, e respondeu:
- Peço-lhe desculpa, senhor, mas eu acho que o senhor nunca iria seguir os meus conselhos.
Portanto, não vale a pena sugerir-lhe seja o que for.
Jerome não respondeu, e continuou à espera. O homenzinho suspirou e disse, então:
- Se fosse a outra pessoa, eu diria: "fique aqui e procure arranjar as coisas. Fique aqui e mantenha a
boca fechada. O silêncio é a palavra de ordem, e nunca nenhum
homem foi enforcado por segurar a língua. Deixe que a tempestade se afaste! Amaine as velas e siga
em frente. Há a bordo carga que tem de ser salva".
Fez uma pausa, sorriu num esgar irónico, e continuou:
- Mas... não me atrevia a dizer isto a si.
Jerome recomeçou o seu passeio inquieto e nervoso no quarto.
- Adoro as tuas metáforas, Jim! - disse, ao fim de algum tempo. - Têm um colorido muito especial.
Mas, como todas as metáforas, não são específicas.
Tentando imitar o criado, repetiu:
- "Não me atreveria a dizer-lhe isto a si!" Muito bem, Jim, ainda bem que o não fizeste. Mas sabes,
eu sou muito pragmático, Jim! Gosto de diagramas e de mapas,
devidamente anotados e com todas as indicações. Não, não gosto nada de metáforas. A imaginação
tem uma tendência incrível para se encher de metáforas, como uma mão
cheia de ervilhas dentro de uma panela. Fazem depois uma data de barulho de um lado para o outro,
sem nunca conseguirem esboçar um
desenho definido. Acho melhor que sejas mais específico, Jim. Desenrola o mapa sobre a mesa e
mostra-me a rota em palavras simples, de uma só sílaba, se possível.
Jim endireitou-se e olhou para Jerome com uma coragem onde se lia muito de esperança que lhe ia
no peito.
- Bem, senhor, então aqui vai o mapa, que é muito fácil, aliás. Se... se não forem muitos a saber,
mantenha-se calado e procure dominar a tempestade. Arranjou uma
carga muito valiosa, e há o Banco, também. O senhor gosta do Banco; é a sua vida, agora. Tem
também a bordo um óptimo passageiro, isto é, Mister Lindsey, e o senhor
jurou levá-lo a bom porto. Todos os seus tesouros, se me permite chamar-lhes assim, estão neste
navio, e se ele for ao fundo, o senhor vai ao fundo também, juntamente
com ele, e não haverá salvação possível, nem sequer para si. Isso incomoda-me, Mister Jerome. Há
muito tempo já que andamos juntos, e temos conseguido escapar a
muitas borrascas, deixando apenas um pouco de pele para trás.
Esboçou um sorriso pesaroso.
- Continua, Jim - encorajou-o Jerome, num tom de voz muito afável e convincente.
Jim pareceu recuperar a coragem, e continuou:
- As praias para onde navega, senhor... podem parecer-lhe muito atraentes, mas antevejo-as cheias
de escolhos e rochedos escondidos, lugares inóspitos, sem refúgio
nem abrigos.
Jerome sorriu para o criado com aberta admiração.
- Agora estou a gostar das tuas metáforas, Jim. A propósito, onde é que tu foste buscar esse teu
linguarejar de marinheiro?
- Fui marinheiro uma vez, senhor, durante um curto espaço de tempo.
- Queres tu dizer com isso que... foste "transportado"? Jim arreganhou os dentes num esgar
contrariado.
- Essa é uma expressão muito dura, senhor. Mas... se pensar um pouco, acho que lhe poderá chamar
assim.
Tentou sorrir, e disse ainda:
- Eu prefiro dizer que fiz uma viagem por mar, para bem da minha saúde...
Jerome estendeu o braço e pousou a mão no ombro do criado.
- Regressaste com uma boa dose de espírito e sabedoria, Jim. Estás a ajudar-me a pensar. Mas...
como nunca fui um... marinheiro... tenho de pensar antes em termos
de camponês. Ora, continua lá assim.
Encorajado, Jim afirmou mais ousadamente, agora:
- Há o seu casamento com Miss Sally. Uma jovem adorável, com um papá rico que o adora, senhor.
Ande em frente com o casamento, e receba esse dinheiro. O dinheiro
compensa uma data de outras coisas que não têm valor, e o que interessa é... o dinheiro, dinheiro
contado, apesar de tudo quanto se possa dizer.
Tornando-se cada vez mais ousado e excitado, continuou:
- bom, conheci um tipo que estava... a fazer também uma viagem por mar para bem da saúde dele,
como eu...! Era mesmo um tipo às direitas, aquele! Arrumou as... "coisas"...
com tanta limpeza que nunca deram com elas. Quando recuperou a saúde, ao fim de alguns anos
bastante lucrativos na Austrália, e pôde regressar ao seu velho país,
comprou uns bons hectares de terra e uma velha mansão, e transformou-se num autêntico senhor.
Acabou, até, por se casar com a filha do vigário. Agora, ninguém é
mais respeitado do que ele, nem mais adulado e admirado. Vai à igreja todos os domingos, e é um
verdadeiro exemplo para os seus muito rendeiros. Tem três filhos,
três jovens rapazes que fariam orgulho de qualquer coração de pai!
Jerome desatou às gargalhadas. Bateu nos ombros de Jim repetidas vezes, com calor e divertimento.
Mas o homenzinho ficara ansioso e olhava-o fixamente.
- Portanto, senhor - continuou o criado, arrastado por uma ansiedade sem limites, agora -, o meu
conselho é que se mantenha calado, e deixe que os ventos soprem
lá por cima. O que a língua cala, nunca pode magoar ninguém. As coisas passam e esquecem-se. É
perigoso manter o lume aceso numa mata. Apague o fogo, e verá que
a mata durará ainda muitos anos. Case com Miss Sally e deixe que tudo vá correndo normalmente.
Ainda ninguém se magoou, por enquanto. Não tem que viver nesta casa,
enquanto... enquanto Mister Alfred aqui estiver. A menos que o seu pai lhe deixe a casa... mas isso
só o futuro o dirá. Talvez não seja agradável a princípio, ver
que um touro devassa as pastagens que lhe deviam pertencer só a si. Mas... tudo é preferível a tentar
escorraçar o touro, e fazer sair os vizinhos com forquilhas
e enxadas.
Num tom subitamente grave, disse ainda:
- Tudo é preferível a destruir um velho e bondoso cavalheiro, quebrar o coração de Miss Sally e
fazer uma montanha de inimigos sanguinários, e ainda por cima caminhar
para tudo isso com os olhos bem abertos.
- A isso - disse Jerome com admiração - chamo eu de verdadeiro bom senso.
Mas Jim apressou-se a dizer:
- Mister Jerome, o senhor já não é um rapazinho com erva presa ao cabelo, desejoso de atirar com a
vida em pantanas, só para revolver a cama de outro homem. Não
há nenhuma mulher viva que mereça que um homem se afunde a esse ponto. É muito excitante e
divertido nos primeiros tempos, admito, mas a manhã acaba sempre por surgir,
e há sempre uma consciência que nos assalta... às vezes bem dura. Além disso, não estaria a fazer
nada de bom... à senhora em questão. As mulheres também podem ser
sensatas, senhor, às vezes até mais sensatas do que muitos homens. Entreguem-se-lhes as coisas, e
elas são sempre as que têm maior sentido prático. Portanto, deixe
que a senhora esqueça também, e ela lhe agradecerá mais tarde.
Jerome sentou-se. Cruzou as pernas e ficou a olhar para as suas botas elegantes.
- Receio bem que não sejas nada romântico, Jim.
- E o senhor também não... - disse o homenzinho, com um sorriso esperançado. - Pelo menos nunca
o foi. E isso é muito bom. E muito melhor ser-se sensato e amável
para com os outros, do que criar situações embaraçosas e perigosas.
Jerome balançou o pé devagar, voltando a cabeça de um lado para o outro, seguindo o trajecto de
um raio de sol reflectindo-se na bota polida. Mas o rosto endureceu-se-lhe,
e as sobrancelhas apertaram-se uma contra a outra. Jim observava-o com uma ansiedade quase
apaixonada.
E então Jerome disse, pensativamente:
- Não sei se o teu conselho é honroso ou não, Jim, ou se é simplesmente inteligente. Suspeito bem
que é antes este último.
De súbito, pareceu ficar completamente exausto. Levantou-se e encaminhou-se para as janelas, e
Jim notou que coxeava um pouco, como se a perna lhe doesse, e ele
estivesse extremamente cansado e doente.
"Ele está, então, seriamente atingido", pensou o criado, com uma súbita e assustada tristeza. "Não se
trata apenas de uma reboladela no feno, nem de um dançar perigoso
na corda bamba, por puro capricho. Nunca o vi assim. E a pobre senhora? Foi muito mau o dia em
que viemos para aqui!"
Observou, ansioso, Jerome, que continuava à janela, de costas viradas para o quarto. Via os dedos
do amo tamborilarem levemente contra a vidraça. Escutou aquele
débil e nervoso matraquear. Em que estaria o amo a pensar? Ele não era do género de deixar as suas
emoções aumentarem a ponto de o destruírem. Tinha a cabeça bem
fria, aquele, e bem assente nos ombros, também. Sempre o tinha conhecido frio e
quase inacessível, sopesando tudo e todos, calculando bem os prós e os contras de cada atitude e de
cada aventura. Se tamanha luta se desencadeava dentro de Jerome,
então aquele assunto devia ter atingido proporções colossais, deixando de ser coisa pequena de
paixão acalorada e casual, ou de qualquer loucura sem importância.
Amaria ele realmente aquela pobre senhora de grandes olhos cor de violeta e garganta tão
maravilhosamente torneada? Era a coisa assim tão má que os obrigasse a recorrer
a expedientes?
Jim abanou, desgostoso, a cabeça. Tinha sido, na verdade, um dia muito mau aquele que os levara
até àquela casa. Jim não acreditava muito nas coisas do "amor". Jamais
o tinha encontrado, excepto nos breves e alegres episódios na carreira de Jerome. Agora, quase que
acreditava que ele existia, e isso atemorizava-o.
Então, o amor era capaz de destruir vidas, e abalar as fundações de casas fortes e seguras como
aquela! Podia tornar os homens loucos e levá-los a fugir com as mulheres!
Aquilo ficava fora do controle de qualquer realismo, de qualquer raciocínio, de quaisquer leis ou
credos. Era mesmo qualquer coisa que ultrapassava as ligações selvagens
e frenéticas dos animais, que duravam um momento para logo serem esquecidas.
"Ele sempre esqueceu todas as mulheres que conheceu ao longo da sua vida!", pensou o criado,
desesperado. "Porque não será ele capaz de esquecer também esta, para
seu próprio bem e para o bem dela?"
A campainha tocou para o jantar, ecoando por todos os quartos e salas silenciosas, onde ainda
pairava a luz do lusco-fusco. Jerome afastou-se da janela. Jim não
lhe conseguiu ver o rosto com clareza, mas sentia o intenso desespero daquele homem, e soube que
o amo não chegara a qualquer conclusão.
Jim disse:
- As senhoras não vão descer para o jantar, segundo me disseram, senhor. Miss Dorothea está
indisposta, e Miss Amalie está com uma terrível dor de cabeça. Trago
o tabuleiro para si, ou prefere descer?
- Traz o tabuleiro, Jim, traz o tabuleiro - respondeu Jerome, com voz abstracta. - E traz também um
para ti, Jim. Comeremos os dois juntos aqui no meu quarto.
Hesitou e Jim apercebeu-se, sentiu mais do que viu, que o seu amo sorria na sombra.
- Jim, não sei o que fazer. Só sei que teremos de esperar e ver como as coisas se arranjam... se é que
se arranjam...!
Capítulo trigésimo
Mr. William Lindsey sempre fora um acérrimo defensor da teoria de Descartes: "clara et distincta
perceptio
rerum". Dizia muitas vezes a seu filho, Jerome, que só
o homem que aplicasse à sua vida este ideal era realmente civilizado. Também costumava citar, a
este respeito, o seu autor favorito, Addison, que se orgulhava de
ser um calmo espectador das paixões dos outros homens e das efervescentes idiotices e tensões que
os aniquilavam. De novo citando Descartes, Mr. Lindsey dizia ainda
que era necessário fugir dos homens, pelo menos temporariamente, para se obter uma melhor
perspectiva não só dos seus próprios problemas, como também dos problemas
do mundo em geral.
Jerome recordava-se de tudo isto, enquanto vagueava, à noite, pelos jardins de Hilltop.
Afastar-se? Como? Para onde quer que se olhasse, para o céu ou para uma simples pedra, para um
rosto ou para um problema, tudo estava colorido pelo psiquismo individual.
Em vez de Descartes ou Addison, Jerome preferia citar Decimus Magnus Ausonius:
"Que espécie de vida deverei eu seguir agora?"
Mr. Lindsey estivera sempre convencido, como Confúcio, de que as boas maneiras resolviam toda a
espécie de dificuldades e abriam um caminho claro através da floresta
das emoções humanas. com um sorriso amargo, Jerome especulou sobre o uso dos bons modos na
sua situação actual. Boas maneiras exigiam uma base de bom gosto, e Jerome
admitia para si próprio que, em matéria de bom gosto, a verdade era que ele não possuía nenhum.
Aquela revelação feita a si mesmo deixou-o chocado, porque sempre se tinha sentido orgulhoso,
egoistamente, do impecável discernimento e bom gosto que o tinham ajudado
e de tal maneira que até ali nunca se vira envolvido em complicações impossíveis e difíceis.
"Mas, raios!", exclamou para si próprio. "Se se utiliza o bom gosto sem descanso, acaba-se por se
ficar sem fôlego!"
O bom gosto evitava confusões, mas impedia também que um homem vivesse completamente a
vida que se lhe oferecia. Aquilo exigia moderação e bom senso em todos os
actos, todas as paixões, todos os desejos e todas as esperanças.
"Também se pode viver de caldos quentes!", pensou.
Estava na vertente da colina, um pouco abaixo de Hilltop, junto aos pinheiros. E com uma espécie
de exaltação
apaixonada, abateu-se sobre ele com clarividência o facto de que, no seu abandono do bom gosto,
ele tinha sabido, pela primeira vez na sua vida, o que era realmente
viver. O mau gosto levara-o a vasculhar as gavetas onde Alfred guardava os processos secretos e
pusera-o, pela primeira vez, em contacto com as vidas, as misérias
e as rustações dos outros. O mau gosto tinha-o levado a envolver-se com a mulher do seu primo, o
seu irmão adoptivo. Mas aquela ligação arrastara-o para a primeira
paixão verdadeiramente profunda da sua vida, a sua primeira realização física, mental e emocional.
Decisivamente, havia qualquer coisa de errado no exercício desmedido
do bom gosto.
Cinco meses antes teria sido capaz de se afastar sem grandes dificuldades de tudo aquilo. Podiam-se
criar sentimentalismos sobre uma mulher desconhecida, mas nessa
altura era possível partir e abandonar essa mulher apenas com uma doce sensação de melancolia.
No entanto, uma mulher intimamente conhecida, compreendida e sentida,
tornava-se parte da carne e do sangue de um homem, e este já não a podia abandonar. Mesmo que o
desejasse conscientemente, não podia, não era capaz de abandonar
Amalie. Se o fizesse, deixaria atrás de si uma grande parte de si próprio, e passaria a ser apenas
meio homem.
Também não se sentia capaz de deixar o Banco. com um espanto profundo, compreendia agora que,
por qualquer razão inexplicável, estava ligado ao Banco e aos seus
problemas. Tinha, por fim, olhado a realidade de frente, e isso excitava-o. Nunca compreendera
muito bem porque motivo se preocupava tanto com as coisas de Riversend,
e tinha a convicção secreta de que parte dessa preocupação residia no ódio que sentia por aquele
enfatuado do Alfred. No entanto, achava que o poder de controlar
e orientar os negócios dos outros, especialmente os daqueles que se encontravam à mercê de Alfred
Lindsey, era inesperadamente doce.
Também não seria capaz de deixar o pai. Nem a sua casa. Olhou para Hilltop, aquela massa sombria
contra o céu do anoitecer. Como é que alguma vez tinha sido capaz
de aceitar a idéia de que Alfred herdaria Hilltop? Como é que pudera alguma vez aceitar que Alfred
se tivesse transformado em filho de Mr. Lindsey, no seu herdeiro,
no seu sucessor? Ele, Jerome, tinha chegado àquela casa como um intruso. O que o teria levado a
sentir aquilo? Alfred? Dorothea? Ele próprio? Sim, sabia agora que
tinha sido ele próprio.
Tinha ali uma herança e estava decidido, claramente decidido, a lutar por ela, pelos seus direitos.
Tinha ali uma mulher e lutaria por ela também, com todas as suas
forças.
Na sua vida, sempre desdenhara, gargalhando com indiferença,
do simples cheiro de luta ou de qualquer coisa que lhe fosse desagradável. E por isso tinha sido
durante toda a sua vida um desenraízado, um tolo superficial
envolvido pelo martelar constante de vícios e prazeres mesquinhos. Já não era novo. De um
momento para o outro, o seu auto-retrato de sorridente epicuro, refinado
e convencido, parecia-lhe idiota e ridículo.
Surpreendia-o o facto de nada ter aprendido com a guerra. E de repente apercebeu-se de que, desde
a guerra, se tinha sentido sempre cronicamente pouco à vontade,
inquieto e insatisfeito. A guerra iniciara o seu regresso a casa. Via-o claramente, agora. Sem as
experiências da guerra, que tão profundamente o tinham tocado,
ainda que não tivesse tido consciência disso, jamais teria conseguido envolver-se nos assuntos
daquela casa e daquela comunidade onde nascera e onde tinha passado
a sua infância e a sua juventude.
Sentou-se na relva escura, ainda morna, e fumou longamente. Aquilo que tão confuso tinha sido,
apresentava-se-lhe agora com toda a nitidez diante dos seus olhos.
Jim descrevera o problema como uma escolha entre a sua nova vida e Amalie. Por sua vez, Amalie
não via outra saída senão a fuga inevitável, depois de um gesto a
favor dos princípios de honra e de honestidade. Jerome não via qualquer diferença entre Amalie e o
novo mundo dos seus desejos. Eles eram uma e a mesma coisa.
Quando a família notasse, teria de haver uma conversa aberta e franca entre todos. Certos factos
teriam de ser suprimidos por uma questão de decência e de harmonia
futura. Mas tanto Alfred como Mr. Lindsey teriam de ser postos perante o facto indesmentível da
atracção que existia entre Amalie e Jerome uma atracção que atingira
proporções demasiado grandes para poder ser abafada.
Jerome não duvidava que seria capaz de apresentar o problema com dignidade e raciocínio frio.
Decerto que haveria a princípio uma perturbação terrível, revoltas,
acusações e talvez mesmo insultos; mas ele e Amalie apenas teriam de se manter firmes, com os pés
bem assentes no terreno escorregadio, sem dúvida, que pisavam.
"Afinal de contas - pensou Jerome - eu sou o filho do meu pai. O meu pai não é um homem
impulsivo e irracional. Gosta de mim e é muito amigo de Amalie. Encostado
à parede, obrigado a fazer a sua escolha, ele irá, inevitavelmente, escolher-me a mim. Só os
primeiros dois ou três meses serão desagradáveis. Será uma nova experiência
para mim, enfrentar uma coisa desagradável, e acho que não vou gostar. Mas seria uma cobardia
tremenda fugir. Além disso, a fuga só traria uma catástrofe ainda maior."
Agora, teria que convencer Amalie de que aquele procedimento seria o melhor para todos. Pôs-se de
pé e encaminhou-se lentamente para casa. Não havia sinais da irmã
nem de Amalie. Alguém acendera um candeeiro ou dois na biblioteca, e a luz suave inundava a
relva macia. Tocou a campainha e mandou chamar o seu criado. Jim apareceu
quase de imediato, ansioso e fitando o amo com um olhar cheio de esperança. Mas algo no rosto de
Jerome assustou-o.
- Jim! - disse Jerome. - Quero que vás ao quarto de Mistress Lindsey e lhe peças que venha cá
abaixo falar comigo.
O medo de Jim aumentou. Olhou para o amo, numa súplica muda, e disse-lhe, hesitante:
- Mas... a senhora já deve estar a dormir!
- Acorda-a! - retorquiu-lhe Jerome. - Vá, despacha-te, Jim, de que é que tu estás à espera?
Jim estremeceu, mal acreditando no que ouvia. Não reconhecia o "seu amo" naquele homem pálido,
de boca rígida e olhos inflexíveis. Qualquer coisa estava ara acontecer
e Jim não tinha dúvidas nenhumas de que, o que quer que fosse, era alarmante. Era aquilo que
acontecia quando um homem se "prendia pelo beicinho" às mulheres: transformava-se
num garoto, era o que era!
Vacilando, Jim subiu as escadas para ir chamar Amalie.
Jerome começou a andar de um lado para o outro na sala, impaciente e nervoso. Sentia crescer
dentro de si uma força excitante, bastante agradável, aliás, um quase
delírio que o empurrava para a frente. Descobrira que podia ser agradável e excitante tomar
decisões difíceis, lutar por coisas que se desejavam a todo o custo,
impor a sua vontade aos outros.
A casa estava silenciosa, impregnada ainda do calor do dia, e o velho e familiar cheiro a cera, flores
e relva enchiam a biblioteca.
"O nariz - pensou Jerome - é o sentido mais próximo da memória."
embrou-se de ter caminhado assim, de um lado para o outro sobre a espessa carpete, vezes sem
conta, nos dias esquecidos da sua juventude, aguardando que seu pai
descesse e escutasse as suas próprias explicações sobre qualquer enormidade de que era acusado.
Havia o mesmo aroma reconfortante e sereno na sala nesses tempos
distantes, como havia agora, as mesmas folhas verdes lá fora iluminadas pela luz dos candeeiros, o
mesmo brilho que se escoava pelas janelas abertas.
Deteve-se por momentos. Quase que era capaz de ouvir os passos hesitantes de seu pai, descendo a
escadaria, o seu tossicar seco e abafado, e quase que sentia de
novo o seu próprio receio à
mistura com um desafio ousado de jovem obstinado e convencido.
Como é que ele se esquecera de tudo aquilo? Era realmente possível que tivesse acreditado que
aquela casa o aborrecia até à morte, e que nada o prendia ali? Relanceou
um olhar pelas estantes cheias de livros de capas vermelhas e azuis, brilhando suavemente, e
apercebeu-se de que eles lhe eram agradavelmente familiares. Aquela
era a sua casa. Lutaria por ela, e havia de ganhar essa batalha. Lutaria pelo som sussurrante do
vento entre as árvores, pela sensação de conforto que se desprendia
da carpete espessa e macia a seus pés, pela textura das poltronas de cabedal, pelo brilho dos cobres
e dos bronzes da lareira. Quando um homem ia para a guerra,
era por causa de coisas como aquelas, e não por qualquer ideal ou abstracto patriotismo.
Ouviu um som leve. Ergueu os olhos e viu Amalie no limiar da porta. Estava muito branca e calma,
envolta no seu roupão cinzento com gola e punhos de renda creme.
O cabelo negro estava enrolado num sóbrio carrapito que lhe pousava na nuca. Os olhos estavam
fortemente pisados e os lábios sem cor. Jerome olhou-a durante longos
momentos, sem proferir uma única palavra, e por fim disse, com voz suave:
- Entra, Amalie. Preciso de falar contigo.
Não se moveu na direcção dela; apenas ficou a observá-la enquanto ela entrava na sala e se sentava.
Sentou-se depois, também, a seu lado, inclinou-se para ela e
sorriu.
Parecia-lhe incrível que naquela tarde tivesse lançado olhares furtivos à sua volta, quando Amalie
entrara no seu gabinete, e que tivesse sentido tanto medo que
uma porta se abrisse de súbito.
"O medo faz dos homens uns meros objectos!", pensou. "A única coisa que há a fazer é lutar para
perder o medo. Ora! Parece que toda a minha vida tive medo! Medo
de viver, medo de acreditar que vale sempre a pena lutar, medo de desejar, medo de me deixar tocar
por uma paixão real, por emoções bem verdadeiras!"
Que ignóbil e presunçosa criatura tinha sido! Que coisa sem vida e sem sentido fora, apesar de todas
as suas atitudes elegantes e presumidas, e do seu porte orgulhoso,
do seu comportamento estudado e afectado!
Quase se esqueceu do rosto mortalmente pálido da mulher que se encontrava sentada a seu lado,
mergulhado como estava na feroz e exultante apreciação que fazia de
si próprio, e por isso não reparou que os olhos de Amalie se abriam desmesuradamente, numa
espécie de espanto exausto e maravilhado ao reparar que se operara em
Jerome uma estranha mudança
durante as últimas horas. Quando ele estendeu o braço e lhe segurou a mão, Amalie não a afastou;
pelo contrário, entregou-lha, numa quase total rendição, como se
sentisse a nova força que o possuía.
- Minha querida! - disse Jerome. - Estive a pensar muito. Foi uma estranha experiência para mim,
devo confessar-te, e cheguei à conclusão de que não nos devemos
ir embora. Esta é a minha casa. Tenciono ficar aqui, contigo!
Num gesto inconsciente, ela quis desprender a sua mão das dele, mas Jerome segurou-lha com
firmeza. Os seus lábios exangues abriram-se, mas nem um som saiu deles,
e os olhos encheram-se-lhe de lágrimas.
Jerome olhou-a fixamente, com um sorriso confiante a bailar-lhe nos lábios.
- Sabes, meu amor, esta é a minha casa. Finalmente sei isso. Esta é a casa de meu pai, e tenciono
ficar aqui ao lado dele. Tu tinhas razão: não podemos fugir como
criminosos. Enfrentaremos tudo e todos, os dois juntos. Quando Alfred e o meupai voltarem, contar-
lhes-emos o que sentimos um pelo outro e pediremos a Alfred que
te dê o divórcio. Alfred não poderá recusar. Quanto a meu pai, tenho a certeza de que me ajudará.
Será muito desagradável durante algum tempo, admito; será, talvez,
desgastante. Mas, no fim, todas as coisas se resolverão por si próprias, com dignidade, se
conseguirmos ter convicção firme e sobretudo coragem.
Amalie murmurou:
- Jerome!
Tentou sorrir, e ele achou aquele esforço quase insuportavelmente comovedor. Beijou-lhe a mão, e
depois exclamou, apaixonado:
- Minha querida! Serás capaz de compreender como eu te amo? Só agora eu próprio compreendo
quanto gosto de ti! Aquilo que a princípio era simples paixão, é agora
algo muito mais profundo e duradouro, porque sei quanta integridade tu possuis, quanta honra,
coragem e orgulho. Seremos felizes, prometo-te, e construiremos...
para nós e para os nossos filhos. Acreditas-me, Amalie, não é verdade?
- Sim!
A voz de Amalie soou apenas num murmúrio abafado, mas o seu rosto parecia resplandecente de
felicidade. Ao fim de alguns momentos, conseguiu dizer ainda:
- Tive tanto medo que já não me quisesses mais! Isso era a única coisa que eu não conseguiria
suportar!
Olhou à sua volta, para as paredes revestidas de madeira, para os livros nas estantes, a enorme
lareira, os candeeiros... e a
boca tremeu-lhe de emoção. Não conseguia continuar a falar. No entanto, Jerome acompanhara-lhe
o olhar vagueante e, com perspicácia, compreendeu o que ele significava.
Uma satisfação enorme e uma emoção que jamais imaginara poder sentir apoderaram-se dele. Sim,
entendera bem o que o olhar de Amalie pretendera dizer na sua mudez.
- Só os que não têm casa nem abrigo têm capacidade para amar realmente um lar quando o
conquistam! - disse Jerome.
Tomou-lhe o rosto entre as mãos e beijou-lhe os lábios com ternura. Amalie rodeou-lhe o pescoço
com os braços trémulos, e ambos sentiram como aquele beijo era diferente
dos que haviam trocado naquela noite de tempestade, e como a ternura doce e suave substituíra a
primeira fúria de paixão que os avassalara.
Sentaram-se mais juntos um do outro, e Jerome disse:
- Recebi hoje uma carta de meu pai. Alfred... Hesitou um pouco, mas logo continuou:
- Alfred é obrigado a ficar em Nova Iorque durante mais duas ou três semanas. O meu pai pediu-me
que fosse a Saratoga e os trouxesse de regresso a casa, a ele e
a Philip. Não te custará muito, ficares sozinha durante alguns dias, Amalie?
- Não! - respondeu ela.
Mas o rosto ensombrara-se-lhe de novo, com uma súbita tristeza.
- Philip! - murmurou. - Gosto tanto de Philip, Jerome. Como poderei eu suportar que ele se torne
num estranho para mim? Ele confia tanto em mim! Gosta de mim e tem
sido sempre tão solitário durante toda a sua vida!
Jerome sentiu-se de repente enciumado e enraivecido.
- Oh, o Philip! - exclamou, com um encolher de ombros.
- Não tens que ter medo de Philip! Ele é muito bem capaz de pensar por si próprio. Até por que o...
pai dele não poderia proibi-lo de te ver, mesmo que o quisesse.
Valha-me Deus, querida, acho que devias pensar só em nós, por agora!
Mas a tristeza dela obrigou-a a pender a cabeça, num súbito desfalecimento.
- Se ao menos fosse possível sermos felizes sem fazermos a infelicidade de... dos outros! -
exclamou. - Às vezes, penso que não terei coragem de enfrentar o olhar
de Alfred, do teu pai, de Philip... de olhar para eles e dizer-lhes...
Soltou um suspiro profundo e continuou:
- Talvez devêssemos esperar...!
- Esperar por quê? - perguntou Jerome, irritado e impaciente.
Tentou controlar-se, e disse, num tom mais sereno:
- Não vale a pena começarmos agora com recriminações e
acusações mútuas, Amalie! Isso não nos conduzirá a lado nenhum. Temos de enfrentar as coisas tal
como elas são. Devemos olhar para os factos e agir a partir deles.
Não tenho ilusões, já te disse. Tenho a certeza de que as coisas serão bastante desagradáveis durante
algum tempo, mas não temos outro remédio senão enfrentá-las.
Ou estarás a tentar dizer-me que perdeste a força e a coragem?
- Não! - apressou-se ela a responder. - Mas lamento que tenhamos de causar tanto sofrimento
àqueles que em nós confiam. Se ao menos pudesse ter a certeza de que
não nos odiarão muito!
Jerome sorriu desagradavelmente, e retorquiu:
- Essa é, também, uma possibilidade que teremos de enfrentar. E quanto mais cedo, melhor!
Amalie ergueu-se e começou a caminhar nervosamente de um lado para o outro, apertando as mãos.
Por fim, deteve-se diante de Jerome, mais pálida do que nunca.
- Há ainda outra coisa que te quero dizer, Jerome - disse Amalie. - Dorothea... sabe!
Ele olhou-a incrédulo.
- Mas como? Isso é impossível! Não havia ninguém em casa naquela noite!
Ela corou e afastou o olhar do dele.
- No entanto, ela sabe. Soube, também, que fui hoje ter contigo, e acusou-me de tudo. Não
tencionava dizer-to, mas acho, agora, que o deves saber.
- Raios! - exclamou Jerome. - Isso vem complicar as coisas!
Ficou a olhar para ela, durante alguns momentos, sem proferir palavra, como se estivesse a pensar
naquilo que ela lhe revelara. Depois, segurou-lhe na mão, carinhosamente,
e disse:
- Então, é por isso que estás tão nervosa e deprimida. Conta-me tudo o que se passou, anda!
Amalie contou-lhe, numa voz murmurada de vergonha, e Jerome escutou-a sentindo que a raiva e o
ódio pela irmã cresciam dentro dele, com uma violência desconhecida
e inusitada. Quando Amalie terminou, ele avançou rápido para a porta, mas ela deteve-o.
- Espera, Jerome! - suplicou-lhe. - Julgo que não precisamos de ter medo de Dorothea. Ela...
pretende Alfred. E sabe que não ganhará nada com prematuras acusações
contra nós. Eu... eu convenci-a de que quanto menos ela demonstrar
saber... acerca de nós... mais provável será que Alfred se volte para ela. Se ele se convencer de que
ela sabe demasiadas coisas acerca da sua humilhação, passará
a evitá-la. Dorothea compreendeu
isso mesmo, e tenho a certeza de que não dirá nada. Suplico-te que não fales com ela, nem lhe dês a
entender que eu te contei tudo o que se passou. Talvez
não devesse ter-to dito, mas julguei que isso tornasse menos confuso e estranho para ti qualquer
antagonismo que ela venha a revelar, contra ti ou contra mim.
- Então, foi por isso que ela se tem mostrado tão mesquinha e insuportável nos últimos tempos -
disse Jerome, pensativamente. - A velha bruxa! Bem, ela merece Alfred,
e Alfred merece-a a ela, também. Não podia desejar a nenhum deles melhor castigo!
- Jerome! - exclamou Amalie, num grito de dor. Mas ele estava excitado.
- Não sejas tão estupidamente bondosa, por amor de Deus! O teu Alfred não é nenhum santo, não é
nenhum poço de rectidão e de virtudes nobres! Fica sabendo que inspeccionei
todos os seus livros secretos. E sabes o que é que ele está a fazer a esta comunidade, a estes
desgraçados que habitam nesta cidadezinha? Está a estrangulá-los,
a amordaçá-los! Mantém as pessoas meias mortas de fome e sem esperança alguma no dia de
amanhã. Atira com os
rapazes e as raparigas para fora daqui, porque eles
sabem bem que jamais conseguirão levantar cabeça num sítio como este. Ele está a impedir que
Riversend se transforme numa terra próspera. Quer mantê-la numa espécie
de servidão feudal, para colheitas no seu próprio benefício e dos seus untuosos amigos! Toda a
povoação está a cair em ruínas! Oh, claro que é muito agradável para
ele receber vénias e salamaleques como um senhor feudal que é, e é agradável também para os seus
amigos! Vai apanhando quinta após quinta, fazenda após fazenda,
propriedade atrás de propriedade, recusa hipotecas, aluga depois as quintas a uns miseráveis a quem
suga as colheitas e o próprio sangue, e faz um tamanho alarde
de rectidão, honra e decência que não desejo mais nada senão enterrar-lhe um punho na cara! É este
o piedoso cavalheiro que tu queres poupar, Amalie, um velhaco
de quem nada sabes!
Amalie ficou em silêncio. Estava a pensar nas muitas histórias que ouvira contar em Riversend,
quando ainda ensinava na escola. Lembrava-se de como Alfred se opusera
a que se aumentasse a escola com mais uma sala de aulas, que se aceitassem mais alunos e que se
chamasse mais um professor ou dois. Estava a recordar-se de Hobson,
a quem ele teria tirado a casa e a quinta, se não fosse a sua intervenção. Passavam pela sua memória
rostos amargos e desesperados, rostos enrugados e crestados
dos pobres agricultores, os magros rostos dos donos das pequenas e esfomeadas lojas. E recordava-
se que era o nome
de Alfred Lindsey que era pronunciado entre dentes, com ódio, repulsa e desejos de vingança.
Mas Jerome compreendeu mal o seu silêncio.
- Já te disse e repito - vociferou ele, com sombria determinação - que farei tudo para o destruir e
frustrar as suas intenções! É melhor que o saibas desde já. Eu
sou seu inimigo. Permanecerei aqui, trabalharei como um cão se for preciso, mas hei-de conseguir
rodear-me de amigos que o odeiam, e tudo o que ele fez até aqui
será destruído!
Amalie ergueu a cabeça, e olhou-o fixamente. - Sim, podes olhar para mim, minha querida, como se
eu tivesse acabado de espetar uma faca nas costas do teu amor! Mas
tens de compreender o que tenciono fazer!
Amalie estendeu a mão e pousou-a no braço de Jerome.
- Jerome! - exclamou, com voz suave. - Tu queres realmente fazer isso? É por todas essas coisas que
ficas? Queres, na verdade, ajudar Riversend e os pobres? Não
ficas só... por causa da tua herança? Queres sinceramente fazer tudo isso que dizes?
Olharam-se bem de frente, profundamente, nos olhos um do outro. Por fim, Jerome sorriu. Colocou
a sua mão forte por cima da de Amalie e apertou-lha.
- Sim, querida! - respondeu.
Amalie começou a chorar de novo, mas Jerome sabia que aquelas lágrimas eram de perplexidade e
de extrema alegria. Tomou-a nos braços e apertou-lhe o rosto húmido
contra o seu. Ela apertou-se contra ele com uma força quase selvagem.
- Não podes imaginar como me fizeste feliz, Jerome! E há tanta coisa que te quero contar... tudo
quanto sei...
Ainda com medo de acreditar, afastou o rosto do dele, e olhou-o.
- Parece um sonho! - murmurou. - Nunca pensei que tu quisesses fazer tudo isso por Riversend.
Pensei que fosse só o ódio por Alfred que te levava a ficar aqui e
a falar dessa maneira. Julguei-te mal. Jerome, Perdoa-me!
Capítulo trigésimo primeiro
Dorothea Lindsey estava a ter um sonho muito estranho.
Era assim uma espécie de semimemória, aquele sonho. Estava sentada no quarto da mãe, ela própria
ainda rapariga, e tinha nos braços uma criança; essa criança era
Jerome, moreno, forte, vigoroso, envergando uma envolta escocesa de seda com gola de renda
branca. Ainda não usava vestuário bifurcado, e
pelos vistos revoltava-se fortemente contra esse facto, pois gritava a plenos pulmões:
- Calças! Quero calças!
Dorothea lutava com ele, ralhando-lhe, e escutava ao mesmo tempo um riso suave e doce. Ouviu
um barulho de saias a arrastar e viu de novo a mãe, jovem, frágil e
de rosto extraordinariamente bondoso.
A mãe envergava um vestido de seda branca, ornamentado com rendas da mesma cor, e trazia um
xaile cor de violeta sobre os ombros. O cabelo caía-lhe em caracóis sobre
o xaile, e alongava-se depois numa massa frondosa por cima das costas. Dorothea sentiu adoração e
tristeza quando olhou para o rosto da mãe. O quarto parecia ter
ficado subitamente escurecido, e a voz da mãe chegou até ela como que vinda de muito longe,
ecoando numa
ressonância estranha de distância, cheia de sofrimento.
- Dorothea, minha querida, tens de cuidar do teu irmão, se o Senhor me chamar! Sei que posso
confiar em ti, meu amor!
Dorothea escutou depois a sua própria voz, débil de desespero, responder:
- Sim! Oh, sim, mamã!
O quarto ficou totalmente mergulhado em escuridão, e a mãe era agora apenas uma sombra branca e
espectral, acompanhada de um ténue ruído de saias. O terror apoderou-se
de Dorothea. Jerome já não se encontrava nos seus joelhos; desaparecera, e, no entanto, ela sabia
que ele se encontrava ali perto, observando-a com olhos frios e
inimigos, cheios de ironia e ódio. A mãe de Dorothea começou a falar, com uma voz gelada e
distante, mas ao mesmo tempo cheia de desgosto e súplica:
- Tens de tomar conta do teu irmão, minha querida. Lembra-te de mim. Não o abandones nem o
magoes. Faz isso por mim!
Dorothea, aterrorizada, gritou:
- Oh, mama! Tu não conheces Jerome! Ele feriu-nos a todos tão terrivelmente! Não me deves pedir
que faça uma coisa dessas, mamã!
Mas a voz da mãe, mais rouca agora e mais dura, vinda de longe das estrelas, suplicou de novo:
- Tens de ajudar o teu irmão, Dorothea!
Dorothea acordou, gelada e doente, com um violento tremor a sacudir-lhe o corpo. O seu quarto
estava mergulhado numa escuridão absoluta. Os ramos das árvores restolhavam
contra as janelas, e o luar entrava, como longos dedos pálidos, por entre os reposteiros. Sentou-se na
cama, riscou um fósforo e acendeu o candeeiro da sua mesa
de cabeceira. Foi só então que tomou
consciência de que alguém batia à porta do quarto, insistentemente, e que fora esse bater constante
que a despertara. Olhou para o relógio em cima da pedra da lareira.
Era meia-noite.
Pegou no xaile que se encontrava aos pés da cama e atirou-o para os ombros. Depois, perguntou
com voz hesitante:
- Quem é?
- Jerome.
Dorothea ficou a olhar para a porta fechada; o coração doía-lhe e parecia martelar-lhe no peito.
Olhou à sua volta. A mãe tinha partido e, no entanto, parecia estar
ainda ali, fixando nela os seus olhos enormes e suplicantes.
Dorothea humedeceu os lábios e disse:
- Entra.
Ergueu-se mais um pouco, reclinou-se contra as almofadas e passou as mãos geladas sobre os
cabelos já um pouco grisalhos. A porta abriu-se e Jerome entrou, fechando-a
logo atrás de si.
A extraordinária realidade do sonho que tivera abatia-se sobre Dorothea de tal maneira que apenas
foi capaz de olhar para o irmão com ar confuso e ausente, em vez
de lhe demonstrar todo o seu acérrimo antagonismo. Jerome encaminhou-se para junto da cama,
puxou pela cadeira de balanço e sentou-se. Começou a balançar-se vagarosamente,
olhando a irmã com uma expressão dura, quase malévola, sem falar.
Dorothea ouviu-se dizer, confusa e hesitante:
- Estava a sonhar com a nossa mãe e connosco.
Apertou os dedos contra os olhos, como se quisesse afastar deles a visão que os enchia ainda.
Estremeceu. E foi ainda com os dedos sobre os olhos que disse:
- Tu estavas a gritar que querias umas calças. Tu... estavas sempre a gritar por qualquer coisa, Jerry.
Pela primeira vez em muitos anos, os seus lábios deixavam escapar aquele diminutivo terno e
familiar, com uma doçura inconsciente tão pouco habitual nela.
Jerome não respondeu. Num gesto deliberadamente lento acendeu um charuto, cruzou as pernas e
olhou para o tecto, Dorothea deixou cair as mãos e olhou para o irmão
abertamente. O coração continuava a bater-lhe descontrolado, e o tremor convulso sacudia-lhe ainda
o corpo. As lágrimas humedeciam-lhe as pestanas. Lembrou-se com
toda a nitidez do sonho e da voz da mãe, e exclamou:
- Jerome! A mãe pediu-me, há muitos anos, que tomasse conta de ti, e voltou a pedir-me o mesmo
esta noite.
Jerome sorriu escarninho, continuando de olhos fixos no tecto.
- E apesar disso, tu tencionas fazer um belo trabalho, não é
verdade? Tencionas magoar-me e fazer-me mal, tanto quanto possível. Foi por isso mesmo que vim
aqui, a esta hora dos espíritos!
Dorothea ficou em silêncio, mas as mãos trémulas continuavam a arrepanhar os lençóis e as
cobertas da cama, em espasmos convulsos.
- Não sejamos sentimentais agora, minha cara Dorothea!
- disse Jerome. - Vamos antes falar claramente. Tu tens sido, desde há muitos anos, a minha pior
inimiga. Por muito estranho que te possa parecer, eu nunca fui teu
inimigo, porque nunca te considerei suficientemente importante para isso, Mas... parece-me bem
que te tornaste importante, agora. E, portanto, vim até aqui para
te avisar de que será bem melhor que deixes Amalie em paz, que mantenhas a boca calada, e que me
deixes tratar dos meus assuntos pessoais à minha maneira. Se o não
fizeres... farei com que te arrependas amargamente!
Dorothea soltou um suspiro abafado. As mãos retorceram com mais força e desespero a dobra do
lençol. Não conseguia libertar-se daquele sonho. Sentia-se fraca, angustiada,
cheia de terror, um terror que a deixava paralisada.
Numa voz quase inaudível, perguntou:
- Então... ela disse-te que eu sei?
- Sim! - respondeu Jerome, levantando-se da cadeira. E também me contou como tu a atacaste e lhe
bateste. Portanto, quero lembrar-te que os meus assuntos só a mim
dizem respeito, e não a ti. Se for necessário, serei obrigado a explicar-te de uma maneira mais clara!
Dorothea murmurou:
- Ela é uma mulher maldita, e tu és um homem amaldiçoado!
Mas a sua voz soara exausta e abafada.
Jerome olhou-a com curiosidade. Havia ali qualquer coisa que ele não compreendia. Esperava que a
irmã lhe lançasse à cara as acusações, que o denunciasse com fúria
e despeito. Mas ela continuava reclinada nas almofadas, o rosto cor de cinza e os olhos encovados
nas órbitas.
Para sua grande surpresa, Dorothea ergueu as mãos, lentamente, de palmas para cima, e estendeu-as
na direcção dele. Viu-lhe lágrimas nas faces.
- Jerome - murmurou ela. - Queres escutar-me por um momento? Talvez eu tenha sido demasiado
dura para contigo no passado. Talvez eu tenha sido demasiado exigente.
Pensei que era esse o meu dever, mas talvez eu estivesse errada. Poderia ter sido um pouco mais
complacente, um pouco mais terna, também.
Fez um esforço para engolir o nó que se lhe formara na garganta, e por momentos não conseguiu
falar.
Jerome encostou-se à coluna trabalhada dos pés da cama. O rosto parecia vazio de expressão, mas
olhava a irmã atentamente.
- Tentei apenas cumprir o meu dever - continuou Dorothea, ainda com voz enrouquecida. - Talvez
eu tenha esperado demasiado, talvez eu tenha sido demasiado ríspida
e severa. Houve alturas em que me esqueci de que eras meu irmão, é verdade. Mas... tu davas-me a
entender que eras meu inimigo! Nunca nos compreendemos um ao outro!
Jerome encolheu ligeiramente os ombros, mas a sua curiosidade aumentou. Sentiu, também ele, um
pouco de compaixão e vergonha pela irmã, e isso aborreceu-o. Tinha
vindo ali pronto para travar uma luta e proferir ameaças, e a irmã estava a desarmá-lo com aquela
atitude.
- Devia ter-me lembrado sempre, em todas as alturas, que somos ambos filhos dos mesmos pais, e
que o sangue que nos corre nas veias é igual! - continuou Dorothea,
debilmente, com a cabeça inclinada para o peito. - Mas fomos sempre antagonistas, por natureza.
Todavia, eu sou a mais velha, e por isso o castigo maior deve recair
sobre mim e não sobre ti. Ergueu a cabeça, e fixou no irmão os olhos marejados de lágrimas,
suplicantes.
- Jerome, não vamos esquecer de novo que somos irmão e irmã. Nada mais importa, não é verdade?
Endireitou o corpo, excitada agora, e continuou:
- Somos todos uma só família, o pai, tu, eu, Alfred e Philip, e não podemos deixar que uma estranha
nos separe! Diz-me que compreendes... que concordas comigo! Deixa
essa... mulher... ir-se embora! Ela está tão ansiosa por partir! Foi ela mesma que mo disse. Vamos
esquecê-la, todos nós, como se esquecêssemos um sonho mau. Vamos
ficar de novo unidos, amigos sob o mesmo tecto! E juro-te, Jerome, que nem uma só palavra sobre
este horror sairá da minha boca, seja para quem for!
Jerome tamborilou com os dedos contra a coluna de madeira
da cama. O rosto dele estava fechado, duro, impiedoso.
- Obrigado, Dorothea. Posso dizer-te, também, que
não tenciono fugir. Tenciono, pelo contrário, ficar aqui, como
filho verdadeiro do meu pai que sou, e como seu legítimo
herdeiro.
Os olhos de Dorothea reluziram de alegria e alívio. Estendeu
a mão na direcção de Jerome, mas ele olhou-a friamente durante
uns instantes, e afastou depois o olhar, indiferente.
- Jerome! Nós poderemos todos esquecer, e tu ficarás aqui connosco. Viveremos todos de novo em
paz e harmonia.
A voz aguda e excitada da irmã penetrou nele fazendo-o estremecer ligeiramente. Apertou os lábios
com força e disse:
- Espero bem que consigamos esquecer... ao fim de algum tempo, Dorothea. Espero, realmente,
poder viver de novo "em paz e harmonia". É essa também a minha mais profunda
esperança.
Calou-se, numa pausa breve, e depois continuou:
- Mas Amalie não se vai embora. Iremos os dois pedir a Alfred que lhe restitua a liberdade. Mais
tarde, casar-me-ei com ela.
Dorothea ficou imóvel como uma estátua. A boca abriu-se-lhe de estupefacção e os olhos
escancararam-se quase lhe saltando das órbitas. Depois, pareceu ir-se encolhendo
aos poucos, mirrar de encontro às almofadas, envelhecer cem anos, no reduzido espaço de alguns
segundos. Os lábios mexeram-se como se quisesse falar, mas a garganta
fechou-se-lhe com um espasmo.
- A única coisa que tens a fazer é manteres-te calada! disse Jerome, sentindo-se nervoso e irritado e
parecendo imensamente absorvido pelos entalhes da coluna de
madeira da cama. - Se o fizeres, ninguém ficará desnecessariamente magoado. Quando Alfred
regressar, eu e Amalie falaremos com ele. O pai gosta muito de Amalie,
e eu sou filho dele. Espero que ele nos ajude, e tenho a certeza de que o fará. O pai é um homem
realista, e não um sentimental. As coisas poderão ser confusas e
de certo modo desagradáveis nos primeiros tempos, mas acabarão por se resolver por si próprias.
Hesitou um pouco, mas continuou:
- Se acaso te interessas um pouco por Alfred, compreenderás que ele jamais poderá ser feliz com
Amalie. Ela não o ama, e ele sabe isso. Continuar com esse casamento
absurdo só pode trazer-lhe infelicidade e insatisfação.
Voltou os olhos para a irmã, e disse ainda:
- Poderá haver também felicidade para ele, mais tarde. Acho que compreendes o que eu quero dizer
com isso, sem ser preciso estar para aqui com mais explicações!
Dorothea cobriu o rosto com as mãos e murmurou:
- Tencionas, realmente, casar com aquela mulher, mantê-la debaixo deste tecto, insultar desse modo
o teu pai e a tua irmã? Uma mulher como ela?
Duramente, Jerome retorquiu:
- Não deves falar assim de Amalie. Tenciono fazer dela minha mulher. Se não consegues esquecer o
ódio que sentes por
ela e o teu ciúme, podes, pelo menos, tentar escondê-lo. Sei que não servirá de nada eu tentar refutar
a opinião errada que tens a seu respeito, mas posso assegurar-te
que estás totalmente enganada.
Soltando um grito, Dorothea exclamou quase fora de si:
- Não! Não! Ela não pode ficar aqui! Ela não pode casar contigo! Eu não poderia suportar uma coisa
dessas!
com fria indiferença, Jerome retorquiu:
- Mas terás de suportar. Foi isso que eu vim aqui dizer-te. Estou satisfeito por teres demonstrado um
certo bom senso, e por ver que não tencionas procurar ferir-me.
Confesso-te que isso é mais do que eu próprio esperava, e por isso te agradeço. Prometo-te que de
hoje em diante procurarei demonstrar um pouco mais de consideração
por ti, como minha irmã que és. Espero que também tu sejas feliz no futuro. Se fores razoável e
justa e tiveres algum respeito por ti própria, bem como por mim e
por Alfred, tenho a certeza de que acabarás por obter aquilo que desejas há tanto tempo.
Dorothea deixou cair as mãos do rosto. Chorava desolador amente.
- Jerome, aquela mulher terrível só poderá trazer-te miséria e ruína! Acredita no que eu te digo, por
favor! Eu... eu prometi à nossa mãe que te ajudaria, e não
posso recusar cumprir a minha promessa. Ela quer que eu te proteja contra essa odiosa criatura. Eu
sei que é isso que ela pretende de mim. Ela falou comigo alguns
momentos antes de tu entrares.
A voz quebrou-se-lhe e as lágrimas correram-lhe em fio pelas faces.
Jerome franziu o sobrolho. Não conseguia continuar a falar com dureza, e irritou-se com aquela
involuntária doçura que o invadia.
- Dorothea, pode muito bem ser que a nossa mãe queira que tu me ajudes, mas à minha maneira.
Talvez ela queira o teu silêncio, e que aceites os meus planos.
Mas Dorothea abanou vigorosamente a cabeça, numa violência desesperada.
- Estás enganado, Jerome!
Jerome soltou um suspiro de impaciência. Sentou-se na beira da cama e disse:
- Escuta-me, Dotty. Tens de compreender uma coisa muito importante: Amalie e eu amamo-nos.
Amamo-nos desde o primeiro momento em que nos vimos. A princípio, não
sabíamos, mas agora sabemos a verdade, com toda a clareza. Tencionamos casar um com o outro, e
nada poderá alterar essa nossa
decisão. Tens de aceitar isso. Aceita esse facto e tudo será mais fácil e mais simples. Se não nos
ajudares, teremos de partir os dois, e Alfred ficará humilhado
para sempre, para nunca mais se recompor. Além disso, uma coisa dessas poderá, muito
provavelmente, matar o nosso pai. Está tudo nas tuas mãos. E tu, lembra-te bem,
tu própria só conseguirás remorsos e solidão, e a consciência acusar-te-á para sempre de que, se não
fosses tu, tudo seria diferente.
Dorothea olhou-o entre lágrimas.
- Odeio aquela mulher. Odeio-a tanto que a única coisa que queria era vê-la morta. Não posso
habituar-me à idéia de que terei de a ver durante toda a minha vida,
aqui, nesta casa, todos os dias.
- Mas terás de te habituar a esse facto.
- Mas... não existirá nada em ti, nenhum sentido de honra, nem decência, nem ao menos um pouco
de consideração pelo teu próprio pai e por mim... nada que possa fazer-te
mudar de idéias?
- Não! - respondeu Jerome secamente, erguendo-se da cadeira.
Dorothea reconheceu-lhe na voz uma implacável determinação. Engalfinhou as mãos uma na outra
e rompeu em soluços.
Jerome ficou à espera em silêncio. As lágrimas da irmã perturbavam-no mais do que julgava ser
possível.
- E Sally? - perguntou por fim Dorothea, soluçando ainda.
Jerome afastou o olhar e respondeu:
- Terei que falar com o general. O mais depressa possível.
- Será que não tens honra nenhuma, Jerome? Será que não te incomoda a dor que vais infligir
àquela rapariga, a mortificação que vais levar à sua vida? Já te esqueceste
de que estás noivo dela?
- Foi um erro, Dorothea; foi um dos muitos erros que cometi. Tenho pena de Sally, mas eu seria um
marido detestável se levasse esse casamento avante.
- Oh, como tudo isto é horrível! Se ao menos nenhum de nós tivesse conhecido aquela mulher!
Jerome tinha a certeza agora de que a irmã não levantaria um dedo só que fosse contra Amalie ou
contra ele próprio. Aproximou-se dela, beijou-a na testa e disse-lhe:
- Não podemos mudar as coisas, minha querida. Apenas teremos de as aceitar tal qual elas são. Sê
razoável! Eu vou a Saratoga buscar o pai e Philip. Alfred terá de
ficar em Nova Iorque durante mais algumas semanas. Tenta controlar-te até que
as coisas se resolvam. Farás a todos nós um enorme favor, incluindo a ti própria. Posso confiar em
ti, Dotty?
Ela pôs-lhe a mão no ombro. Os seus olhos escuros e inchados pareciam implorar-lhe. Porfim, o
desespero inundou-os, e ela respondeu num murmúrio:
- Sim, Jerome, podes confiar em mim. Mas... oh, Jerome... como eu desejava que tudo fosse
diferente!
Capítulo trigésimo segundo
- Nada temos a recear de Dotty - disse Jerome. - Embora ela não esteja propriamente a morrer de
amores por nenhum de nós, consegui convencê-la de que seria muito
melhor para ela, e no seu próprio interesse, que não interferisse.
Estava com Amalie no lugar favorito de ambos, do outro lado dos altos pinheiros, sobranceirando o
vale. A paz doSabbath parecia reinar à sua volta, num silêncio
radioso e perfumado, apenas interrompido pelo som fraco dos sinos lá em baixo, na povoação. Os
raios de sol, de um dourado cintilante, espraiavam-se sobre os montes
e encostas, penetravam nas copas das árvores, alongavam-se na relva macia e fresca que cobria o
chão.
Jerome apertou carinhosamente a mão de Amalie e sorriu.
- vou buscar o meu pai e Philip. Depois, quando Alfred regressar, tudo se arranjará em definitivo.
Entretanto, não te preocupes nem te atormentes, meu amor!
- Não é fácil pensar que se vão perturbar tantas vidas e permanecer calma e indiferente!
Ele afagou com ternura os cabelos negros de Amalie, e disse:
- Não, não é fácil. Mas nada na tua vida tem sido fácil, não é verdade? Há pessoas que parecem
atrair as trovoadas e as complicações, e acho que tu és uma delas.
Vamos, não faças essa cara tão triste! Lembra-te que os humildes, os medrosos e os tímidos vivem
vidas de autênticos vegetais. São apenas os valentes e os corajosos
que atraem a atenção das forças ou poderes, sejam eles quais forem.
- Já não me sinto valente nem corajosa! - retorquiu Amalie, esboçando um sorriso triste. - De facto,
parece que toda eu me tornei vulnerável. Sinto-me cheia de medos
e receios. Sim, creio que fui corajosa no passado, mas... os jovens são sempre corajosos, ou porque
lhes falta consciência ou porque sentem, na sua exuberância,
que não há nada que os possa derrotar.
- Ora, ora! Tu ainda és muito jovem, minha querida! disse Jerome, acariciando-lhe o queixo e as
faces. - E és saudável, embora ultimamente andes sempre tão pálida.
Passou-lhe um braço em redor da cintura e puxou-a de encontro ao seu corpo.
- Os estados de melancolia e de depressão que parecem apanágio de certas senhoras, jamais
conseguirão tomar conta de ti, e aviso-te que não tentes começar a desfalecer.
Não com estes ombros, este queixo, este corpo...
Ela tentou rir.
- Por muito estranho que te possa parecer, Jerome, eu sou, na realidade, muito delicada. O meu
aspecto exterior é uma enorme fraude!
Jerome segurou-lhe o rosto entre as mãos.
- Como são belos os teus olhos, meu amor! E tão suaves! Nunca me tinha apercebido dessa
extraordinária doçura e suavidade. Habitualmente, só me fixavam como se me
quisessem matar!
- Isso era porque tu te mostravas sempre particularmente odioso, meu querido Jerome. Eu acho que
também tu és uma enorme fraude!
Como ele não respondesse, Amalie continuou, com a voz embargada pela emoção:
- Sempre me julguei muito esperta e arguta, quando se tratava de analisar o carácter dos outros. Mas
contigo enganei-me redondamente!
- Oh, mas não! - exclamou Jerome. - Não te enganaste nada! Não faças de mim um herói, querida!
O que aconteceu foi que encontrei um novo interesse na vida. Dois
interesses, para ser mais exacto.
Pensou em Alfred, e a velha expressão de crueldade inundou-lhe os olhos.
- Não sejas demasiado sentimental, Amalie. Se começas a esperar coisas muito boas para mim, vais
passar uma vida de desapontamentos e frustrações nesta casa.
Quando Jerome partiu para Saratoga, uma sombra pesada pareceu abater-se sobre a casa,
instalando-se nela poderosamente. Dorothea recolhia-se ao seu quarto mal acabava
os seus afazeres domésticos. Raramente falava com Amalie, excepto quando era necessário ou a
isso era obrigada, e sempre que o fazia a sua voz, embora polida, era
fria e distante. Isto entristecia Amalie, mas não conseguia encontrar maneira de se
aproximar de Dorothea e tentar suavisar aquela antipatia, todo aquele ódio profundo e feroz, ainda
que silencioso.
Dorothea aceitara o inevitável com a sua habitual austeridade, mas a sua amargura era demasiado
evidente. Tinha o ar de quem estabelecia, também, os seus próprios
planos, e tal atitude criava em Amalie momentos de secreta ansiedade e expectativa.
Os criados apercebiam-se da tensão que reinava dentro de casa, e sabiam que ela existia sobretudo
entre as duas mulheres. Não sentiam qualquer espécie de amizade
por Amalie. Ela saíra da própria "classe" a que eles pertenciam, e por isso não viam com bons olhos
a nova situação que ela ocupava agora. Amalie era uma "nova-rica",
uma "intrusa" num meio a que não pertencia por direito próprio de nascimento, e por isso eram tão
impertinentes para com ela quanto ousavam ser.
Se Amalie era amável, era porque os estava a "enrolar"; se arvorava uma atitude distante, era porque
se estava a "dar ares de pessoa importante". Fosse como fosse,
estavam determinados a fazê-la sentir que conheciam muito bem as suas origens, e a permanente e
silenciosa hostilidade entre Dorothea e Amalie ofereceu-lhes essa
oportunidade.
Quando recolhiam aos aposentos que ocupavam na casa, falavam constantemente daquela estranha
situação, e especulavam sobre qual seria a causa que a ela conduziria.
E, curiosamente, embora não sentissem qualquer estima especial por Dorothea, a verdade era que
todos se punham a seu lado contra aquela intrusa, que tivera a ousadia
de penetrar num mundo que não era o seu. Nem mesmo a influência de Jim foi suficiente para os
tornar mais complacentes para com Amalie, e o pobre criado acabou por
desistir de falar sempre em sua defesa, com medo de acabar por levantar suspeitas. No entanto, era
sempre ele quem respondia à campainha, quando ela chamava, pois
caso contrário talvez ninguém fizesse caso dela.
Amalie depressa se apercebeu da atmosfera que se formava à sua volta, mas tentou dominar-se. Ia,
no entanto, guardando para si todos os pormenores, todas as pequenas
coisas que lhe faziam, toda a indiferença e desrespeito de que era alvo. Era um ser humano, afinal!
Ficava agradecida pela polidez e gentileza de Jim, e pela prontidão com que ele cumpria os seus
desejos, mas sentia-se também um pouco embaraçada, pois adivinhava
a causa dessa dedicação e deferência para com ela. Era por esse motivo que procurava tocar a
campainha o menos possível.
A pouco e pouco, foi tomando consciência de que Dorothea, apesar da franca hostilidade dos
criados, estava a passar para as
suas mãos responsabilidades cada vez maiores relacionadas com as tarefas e a orientação da casa.
Uma vez, quando um dos empregados das cavalariças foi demasiado impertinente para com ela e
Amalie o ameaçou de discutir aquele assunto com Dorothea, ele riu-se-lhe
escarninhamente na cara. Ao sofrimento e ansiedade que já sentia, veio juntar-se um medo
indescritível. Que estaria Dorothea a urdir, sempre fechada no seu quarto?
Jerome convencera-a de que Dorothea jamais levantaria um dedo para a destruir, ou a Jerome, mas
apesar disso Amalie tinha a certeza de que, fosse o que fosse que
Dorothea estivesse a planear, não seria decerto nada de bom quer para ela, Amalie, quer mesmo
para Jerome.
Esperava com ansiedade o regresso do resto da família a casa, embora receasse também. Sabia que
Jerome não discutiria aquele assunto tão delicado com Mr. Lindsey
antes que Alfred voltasse para casa, mas mesmo assim...
O que ainda se lhe tornava mais difícil de suportar eram as cartas apaixonadas, ainda que sóbrias,
que Alfred lhe escrevia com regularidade. Amalie respondia-lhe,
em mensagens tão breves quanto possível. Alfred dizia-lhe que estava a gostar da sua estadia em
Nova Iorque. Tinha sido recebido por Mr. Regan, um cavalheiro "muito
educado". Tinha também sido convidado várias vezes por alguns amigos de Mr. Regan.
Timidamente, e numa linguagem demasiado rebuscada, deixava perceber as "suas esperanças"
no que dizia respeito a si próprio e a Amalie. Invariavelmente, Amalie nunca aludia, nas breves
linhas que lhe escrevia, àquelas veladas insinuações, e dizia apenas
que o doutor Hawley suspeitava que a sua saúde não era tão forte como parecia, mas que ele,
Alfred, não precisava de se preocupar.
Sabia que Jerome não lhe podia escrever directamente. Mas enviava mensagens a Jim, e o criado
transmitia-lhas assim que as recebia. Mr. Lindsey, que tão bem se sentira
durante a sua estadia em Saratoga, tivera uma recaída. A sua artrite piorara, e Jerome via-se
impossibilitado de regressar nos dias mais próximos, ao contrário do
que estava previsto. Teria de aguardar, pelo menos, mais duas semanas. Todavia, Philip estava
estupendo.
Amalie, que tanto ansiava aquele regresso, começou a achar os dias insuportavelmente longos. Os
nervos esfrangalharam-se-lhe. Tinha acessos de náuseas intoleráveis.
Por vezes, ao acordar a meio da noite, descobria que toda a cama se agitava com o intenso tremor
que lhe sacudia o corpo. Por fim, acabou por mal conseguir conciliar
o sono. As náuseas aumentaram, obrigando-a, por vezes, a fugir da mesa para não vomitar.
Forçava-se a trabalhar, a dar longos passeios a pé ou na pequena carruagem, lia durante horas e
horas, costurava, bordava, visitava velhas amigas, os pobres agricultores,
e as pessoas que conhecia. Todavia, não aceitava muitos convites feitos pela viúva Kingsley, nem
pela família do general Tayntor. Uma vez, Sally veio visitar Dorothea.
Ao avistá-la da janela, Amalie fugiu pela porta das traseiras e permaneceu fora de casa durante mais
de duas horas.
A vida tomou as dimensões, o terror e a atmosfera de um pavoroso pesadelo, um pesadelo onde ela
se movia por entre sombras maléficas e sorrisos escarninhos. O Verão
avançava trazendo com ele um calor dourado e luzes resplandecentes, mas Amalie parecia nem
tomar consciência da beleza extraordinária que a natureza à sua volta
lhe oferecia. O seu permanente cansaço tornara-se numa verdadeira doença. Ficava enjoada assim
que via a comida, receava a chegada da noite, perdia as forças em
cada dia que passava e emagrecia de modo assustador.
Sentia-se profundamente só, sem amigos. Jerome partira havia três semanas, e não havia sinais de
que pudesse regressar tão cedo, com o paie Philip. Alfred escrevia
a dizer que as suas negociações com Mr. Regan estavam a prolongar-se inevitavelmente. Por fim, os
dias começaram a passar sem que uma só palavra fosse pronunciada
entre ela própria e Dorothea e os criados. A casa assumia uma estranha característica, como se se
tivesse afastado dela, e as suas paredes seguras e firmes tivessem
deixado de existir.
O seu sofrimento foi-se tornando cada vez maior, e chegou a pensar se não seria melhor ir ver o
doutor Hawley. Mas só a simples idéia de entrar na povoação fazia-a
estremecer. Não encontrava conforto em parte alguma. Vagueava como um espectro pela casa, e
afastava-se deliberadamente de todos os espelhos pois odiava a figura
macilenta e deprimida que eles lhe devolviam. A pouco e pouco, apercebia-se de misteriosos
distúrbios do seu corpo, estranhas tensões e dores.
Julho chegou, e com ele um calor sufocante. Amalie mal o conseguia suportar. Os vestidos que
passou a envergar mais pareciam finas teias tecidas de cabelos. Raramente
via Dorothea. De dia, não se atrevia a sair de casa, receando o sol abrasador que queimava lá fora;
mas por vezes, ao anoitecer, escapava-se de casa, furtivamente,
e ia-se deitar debaixo dos pinheiros, entregando-se então por completo ao terror, ao sofrimento e à
angústia que a minavam. Chegava a ficar horas ali estendida,
olhando a Lua muito branca no céu da noite, ou observando os raios vermelhos de calor que
atravessavam o céu ao fim do dia. Dormia ali mesmo, às vezes, e não acordava
senão
quando a ténue claridade da madrugada começava a inundar o cimo dos montes.
Uma manhã conseguiu ganhar forças para descer ao jardim, e voltou com um cesto cheio de rosas.
Começou a dispô-las nas jarras da biblioteca quando ouviu um ligeiro
ruído atrás de si. Tremendo, voltou-se e viu Jim que deslizava subrepticiamente para dentro da sala.
Nos olhos brilhava-lhe um ar furtivo. Aproximou-se da mesa onde
Amalie se encontrava, relanceou um olhar rápido para trás de si, e murmurou:
- Minha senhora, Mister Jerome diz que chegará no dia trinta.
As mãos de Amalie ficaram imóveis entre as rosas e os seus olhos fitaram o velho criado, em
silêncio.
Jim observou-a com um misto de ansiedade e ternura.
- Vai perdoar-me, minha senhora, mas eu acho que está muito doente. É o calor, talvez, não? As
vezes, nem eu próprio consigo suportá-lo.
Amalie tentou sorrir. Meteu as rosas dentro da água fria, e retorquiu:
- É mau, não é, Jim?
O criado ficou em silêncio, de olhos pregados nas pequenas botas que usava. Por fim pigarreou
como que para aclarar a garganta, e disse:
- O meu amo não gostaria nada de a ver assim, minha senhora!
Um leve rubor surgiu nas faces de Amalie.
- Que queres dizer com isso, Jim? - perguntou.
- Ele disse-me que olhasse pela senhora, Miss Amalie, e não vai gostar de a encontrar nesse estado.
Vai de certeza zangar-se comigo, isso é que vai!
O rubor no rosto de Amalie acentuou-se, ao mesmo tempo que um nó lhe apertava a garganta. Em
voz muito baixa, disse:
- Porque haveria ele de se zangar contigo, Jim? Por favor, não falemos mais nisso!
O criado aproximou-se mais dela, e olhou-a bem de frente, dizendo:
- Minha senhora, quero que saiba que tem um amigo dentro desta casa.
Amalie sentia-se tão abatida e tão fraca, que as lágrimas lhe assomaram aos olhos imediatamente.
- Eu sei que tenho, Jim. Obrigada - retorquiu Amalie, quase a soluçar.
Jim ficou comovido e suspirou.
- Se houver qualquer coisa que eu possa fazer, minha senhora, só precisa de mo dizer!
- Está bem, Jim!
Tocou-lhe no braço com os seus dedos gelados, e depois afastou-se de cabeça erguida. O criado
seguiu-a com os olhos, e suspirou de novo. Aquela jovem era uma criatura
adorável, e uma senhora também, apesar de tudo quanto murmurava a criadagem. Não censurava o
amo, mas... isso não evitava que tudo aquilo fosse uma terrível embrulhada,
uma perigosa complicação.
No dia seguinte, Amalie recebeu uma exuberante carta de Alfred, comunicando-lhe que regressava a
casa.
Aquela notícia deixou-a completamente abalada. Quando tentou levantar-se na manhã do outro dia,
verificou que se encontrava demasiado doente, aniquilada por enorme
apatia que não conseguia afastar, apesar de todos os esforços.
Foi assim que Alfred a encontrou quase sem forças para falar, incapaz de erguer a cabeça da
almofada.
Capítulo trigésimo terceiro
Alfred sentou-se com Dorothea no terraço, à luz morna do entardecer. Dorothea envergava um
vestido leve, de popeline cinzenta, alegrado por uma gola de musselina
branca. Tinha tirado a touca de folhos, e o seu espesso cabelo emoldurava-lhe o rosto em pesados
bandós. Para Alfred, ela simbolizava tudo o que era austero e majestoso,
seguro e forte na sua vida, o bom senso que ele tanto admirava e a estabilidade que era a sua
divindade.
Na sua presença, sentia-se à vontade, confortável, porque sabia que ela era sua amiga e que não
precisava de falar meticulosamente para conseguir que ela o compreendesse.
Dorothea parecia, até, compreendê-lo quando falava só por meias palavras, ou fazia gestos vagos,
ou simplesmente trocava um olhar com ela.
Dorothea tinha, também, consciência dessa realidade, o que aumentava a sua amargura e o seu
desgosto. Como é que um homem podia ser tão cego que não visse onde estava
a verdadeira fonte da sua felicidade? Era essa a pergunta que ela fazia a si mesma, vezes sem conta,
sentindo dentro de si uma sombria revolta contra Alfred.
"Alfred sempre me falou das suas dificuldades, dos seus problemas!", pensou Dorothea. "E sempre
veio até mim quando precisava de consolo ou de simpatia e compreensão.
Sempre nos compreendemos um ao outro, desde crianças. E, apesar de tudo
isso, ele casou com duas mulheres, e não encontrou nelas senão infelicidade e continua sem
compreender nem um pouco! Para ele, eu tenho sido os seus outros ouvidos,
uns olhos amáveis e compreensivos, uma companheira. Mas ao primeiro restolhar de uma saia mais
frívola, afasta-se do meu lado. Mesmo quando ele regressa depois,
cheio de feridas e desgostos, não é capaz de se aperceber que eu, só eu, o compreendo e faço parte
dele."
Dorothea pensou que os homens eram uns loucos, e esta antiga conclusão de milhões de mulheres
antes dela parecia-lhe uma revelação, totalmente nova, que devia ser
ensinada às mulheres crianças quando ainda estivessem nos berços.
"Os homens são uns obtusos!", exclamou para si própria. "Uma face jovem, uma risadinha suave e
traiçoeira, um tornozelo bem feito ou um caracol solto têm o poder
de os reduzir a perfeitos idiotas, levando-os a vagabundear como cabras embriagadas em pastos
estragados. É sempre para mulheres como eu que acabam por se voltar,
temporariamente, para receberem carinhos e confortos, e no entanto é sempre de mulheres como eu
que fogem ao primeiro gesto de um dedo distante."
As suas mãos, mesmo ao lusco-fusco ocupadas com o seu tricô, pararam. Ficou a olhar no vácuo à
sua frente, e o rosto inundou-se-lhe com um rubor forte. Tinha chegado
a uma conclusão extremamente imprópria e indelicada. Para bem dos homens, as mulheres como
ela deviam ser determinadas, austeras e sóbrias. Mas deviam também ir
direitas a esses homens e dizer-lhes abertamente:
"És um doido. Eu sou a mulher que te serve, e estou determinada a casar-me contigo. Podes fugir de
mim, mas eu seguir-te-ei para onde fores. Serei a tua sombra.
Perseguir-te-ei implacavelmente, até tu sucumbires, até te renderes. E chegará o dia em que me
agradecerás, e aprenderás a conhecer-me. A partir desse dia, seremos
felizes."
Que pensamento indecoroso! Mas era forçoso aceitá-lo, em nome do bom senso, e em nome do
bem-estar daqueles cegos mas amados imbecis.
E pensou ainda:
"Mesmo que ele se liberte daquela mulher, andará por aí aos tropeções, até encontrar outra como
ela, e eu perdê-lo-ei outra vez! Não! Desta vez vencerei, mesmo que
tenha de o olhar bem de frente, sem qualquer recato nem modéstia, e dizer-lhe que se deve casar
comigo."
O coração batia-lhe com tamanha intensidade que a respiração saía-lhe entrecortada, e o rubor
intenso tornou-se mais escuro no seu rosto. Alfred, era evidente, estava
totalmente alheio aos pensamentos da prima. Só sabia que era bom e
agradável estar ali com ela, na semipenumbra, que os traços difusos da sua figura lhe davam uma
sensação de conforto no seu actual estado de ansiedade e sofrimento.
Querida Dorothea! Ela estava sempre ali, sua irmã, sua amiga, não simbolizando qualquer sexo para
ele, e isso era tão consolador!
Tinha-lhe falado do seu sucesso em Nova Iorque e das extraordinárias e edificantes conversas que
tinha tido com Mr. Reagan, um cavalheiro tão distinto e tão civilizado.
Mas mesmo na sua voz acalorada, havia uma nota de abstracção que não passou despercebida ao
espírito agudo e perspicaz de Dorothea. Ela sabia que ele estava a pensar
naquela mulher, e os lábios comprimiram-se-lhe de raiva.
Para ela, como para todas as mulheres da sua geração, o divórcio era uma coisa verdadeiramente
terrível, acerca da qual as senhoras não deviam falar, nem sequer
em murmúrios segredados. Contudo, agora, na sua nova determinação, contemplava-o com uma
resolução quase selvagem. Casamentos como aquele eram crimes cometidos contra
a sociedade. Eram crimes contra os próprios homens, estúpidos, cometidos na ignorância e na
cegueira. Agora, olhava o divórcio de Alfred como uma coisa natural,
e com uma calma exultante. Era a sua oportunidade, e agarrá-la-ia com as duas mãos. Aguardava
apenas o momento exacto para atacar, e sabia que esse momento estava
para muito breve.
Pensou então:
"Dizem que os homens e as mulheres divorciados raramente casam de novo. Só disparates! Só
absurdos! É como recusar alguém que se conseguiu recuperar de uma doença
perigosa, ou de uma chaga enorme e purulenta! É claro que haverá atitudes desagradáveis,
escândalos, muitas mãos erguidas no ar, acusadoras. Mas as pessoas verdadeiramente
sensatas não permitem que as opiniões de estranhos interfiram nas suas vidas."
Aqueles pensamentos pouco menos que revolucionários não a excitaram como o teriam feito num
passado muito próximo. Apenas a empurraram para a frente, obrigando-a
a erguer a cabeça, numa atitude de desafio e obstinação, e o bater das agulhas uma contra a outra
pareceu ganhar um novo ritmo, mais impulsivo. Sentia o coração
bater-lhe no peito numa corrida quase selvagem, numa felicidade louca, difícil de reprimir. Era
preciso que ela suportasse apenas mais alguns meses de acontecimentos
desagradáveis, de perturbações incómodas, mas tudo isso era um preço bem pequeno que tinha de
pagar por uma vida inteira de alegria e prazer.
A influência do sonho que tivera era ainda muito forte, e contribuíra em muito para que mantivesse
abafada a sua crónica
hostilidade para com o irmão. Sentia à sua volta as fortes paredes da casa onde nascera. Ela e Alfred
fariam ali a sua vida, juntamente com Philip. Jerome e aquela
mulher abominável viveriam noutro lugar qualquer, longe daquele sítio. Ela, Dorothea, não se
importava. Jerome haveria de chegar à conclusão de que lhe era impossível
viver naquela comunidade, por causa da opinião pública, mesmo que o divórcio se consumasse com
o máximo de decência e privacidade. Uma mulher divorciada era sempre
uma pária. Sairiam, sem dúvida, de Riversend, e isso magoaria o pai. bom, era de esperar, claro!
Ela, Dorothea, não faria nada que pudesse prejudicar Jerome, ou
que o pudesse desgraçar, mas...
Soltou um suspiro, Alfred ouviu-o. Tinha deixado, havia muito, de falar. A escuridão começava a
descer, envolvendo tudo no seu manto. Pigarreou para aclarar a garganta.
Dorothea pensou:
"É agora que vai falar dela. Tenho de estar preparada."
Ouviu-o remexer-se na cadeira, e dizer:
- vou chamar amanhã o doutor Hawley, para que venha verAmalie.
As agulhas de Dorothea bateram com mais ruído uma na outra.
- Ela está num estado deplorável - continuou ele, e Dorothea pôde aperceber-se da forte ansiedade
que transbordava da sua voz. - Está agora em muito pior estado
do que quando a deixei. Naquela altura, cheguei a ter muitas esperanças que...
Interrompeu-se de súbito. Que disparate o seu! Já estivera quase a referir-se a um assunto sobre o
qual não era decente falar com uma mulher solteira.
Dorothea inspirou profundamente, e disse, resoluta:
- Queres tu dizer, Alfred, que esperavas que Amalie estivesse de bebê?
Alfred ficou perplexo e embaraçado, e lançou à prima um olhar apologético e reprovador. No
entanto ela não o viu, e, embora sentisse, fingiu ignorá-lo.
Alfred tossicou.
- Podes chamar-lhe assim - admitiu, por fim.
Vendo que Dorothea se mantinha em silêncio, continuou:
- Mas ela diz-me que... que as minhas esperanças eram, infelizmente, infundadas. Foi ver o doutor
Hawley, e ele receitou-lhe um tónico. Mas devo confessar-te, Dorothea,
que acho o seu aspecto alarmante. Perdeu imenso peso e a cor do seu rosto é muito má.
Tentava dar à sua voz uma entoação calma e normal, mas Dorothea adivinhara-lhe a ansiedade.
- Concordas comigo? - perguntou ele, ainda. Dorothea pousou o trabalho no colo e olhou à sua
frente.
Depois, muito calma, disse:
- Parece-me que Amalie sofre de uma infelicidade muito grande.
Alfred fez um movimento rápido, e Dorothea sentiu que ele se voltava para ela, rodando o corpo
completamente.
- Infelicidade? - exclamou ele.
Havia uma espécie de colapso na sua voz, um repúdio irritado e raivoso.
- Porque haveria ela de ser infeliz? Dei-lhe tudo o que ela sempre desejou. Eu... eu amo-a muito.
Não há nada neste mundo que eu não fosse capaz de fazer por ela.
Dorothea sentiu um sabor amargo na boca. Pegou no trabalho e recomeçou a tricotar com toda a
energia.
- Por vezes, isso não é suficiente - murmurou ela, numa aparente compostura.
- Não é suficiente? Que mais poderei eu fazer então? Seria, até, capaz de dar a minha vida por ela,
Dorothea!
A dor queimou o coração de Dorothea e os olhos encheram-se-lhe de lágrimas.
- Isso nem sempre é suficiente! - disse. - Amalie não te amava quando casou contigo, Alfred. Tu
sabias disso, e até falavas disso abertamente. Talvez ainda não te
ame.
"Tu... doido", exclamou ela, no íntimo. "Porque andarás tu a desperdiçar a tua vida com uma tal
criatura, quando eu estou aqui, mesmo ao teu lado, pronta a dedicar-me
toda a ti?! E, no entanto, estás aí, sentado junto de mim, a falares do "amor" que sentes por aquela
mulher abominável, magoando-me mais do que eu consigo suportar!"
Mas já Alfred dizia, com patética insistência:
- Tu estás enganada, Dorothea. Amalie ama-me. Ficámos muito unidos, desde a doença do tio
William. Compreendemo-nos um ao outro. Ela suplicou-me que não a deixasse,
quando tive de ir a Nova Iorque. Mas eu não a podia levar... por causa das minhas esperanças
infundadas. Tu não sabes como as coisas se passam entre um homem e uma
mulher, Dorothea. A minha mulher!
Havia um tom de desespero tão profundo na sua voz que Dorothea afastou o trabalho e apertou as
mãos com força uma contra a outra, numa convulsão de angústia, insuportável.
com uma obstinação e uma veemência involuntárias, disse:
- Alfred, eu sei que Amalie é infeliz. Não devias ter casado com ela. Desculpa-me ser tão franca,
mas tu és meu primo, meu irmão adoptivo; se não pode haver sinceridade
e verdade entre nós, também não a pode haver entre os outros. Ela é muito mais nova do que tu,
Alfred. Ela julgou desejar o que tu representas, mas não o deseja,
agora. Está a morrer aos poucos, de desgosto e sofrimento, porque sente que está... a enganar-te.
Mas o que ela deseja, é... ser livre de novo.
Alfred não lhe respondeu, mas Dorothea adivinhou toda a violência e desgosto que o abrasavam, o
seu súbito ódio por ela, o seu espanto e perplexidade por tudo quanto
acabava de ouvir da sua boca. Sentiu que ele fechara o espírito àquilo que ela dissera, negando a
evidência. Por isso, inclinou-se para ele e, colocando-lhe a mão
no braço, disse:
- Eu sei que te convenceste de que as coisas entre mim e Amalie não eram muito satisfatórias,
Alfred, e, de certa maneira, tinhas razão. Mas isso acontecia porque
eu tinha a certeza que Amalie era a mulher errada para ti, extremamente errada, tal como tu és o
homem errado para ela.
Alfred afastou-se dela, mas Dorothea, com a nova impetuosidade e obstinação que a invadiam, não
se ofendeu. Sabia que aquele gesto era a defesa instintiva de um
ser ferido.
- Foi ela mesma que te disse isso? - perguntou Alfred com voz abafada. - Ela abriu-se contigo? Fez-
te confidências?
Dorothea hesitou. Por fim deixou escapar um suspiro e respondeu:
- Não propriamente. Mas, de certa maneira, deu-me a entender que o sentia. Certos gestos que
fazia... uma certa maneira de andar... de falar...
Recordou-se do que vira através da janela do quarto de Jerome, havia mais de dois meses, e aquela
recordação foi como que uma labareda de fogo abrasador queimando-lhe
o peito.
- Tudo isso é muito vago! - exclamou Alfred. - Ela sente-se muito só e mais nada!
"Mas não por tua causa!", pensou Dorothea, desesperada. Recostou-se na cadeira, e disse em voz
alta.
- Talvez. Mas... receio que essa solidão não seja só por ti. Ele soltou uma gargalhada abafada e
rouca.
- Por quem mais então? Pela sua antiga vida, pelos seus antigos amigos, pela insegurança e pobreza
que foi sempre o que ela conheceu?
- Talvez!
Um silêncio pesado abateu-se sobre eles, durante muito tempo. Por fim, Alfred pôs-se de pé, e
começou a andar de um lado para o outro, nervoso, pensativo. A Lua
prateada
eerguera-se por entre as copas dos pinheiros, e projectava em Dorothea a sombra alongada de
Alfred, quando este passava pela sua frente.
Dorothea ficara, de súbito, imóvel, quase inerte. A saia cinzenta flutuava-lhe em redor dos
tornozelos, sacudida pela brisa suave que começava a soprar. Todavia,
ela parecia ter apenas consciência daquele passear nervoso e rápido à sua frente.
- Porque não lhe perguntas se ela quer deixar-te? - perguntou ela, num quase sussurro.
Ele deteve-se abruptamente.
- Que estás para aí a dizer, Dorothea? Estás doida? Enlouqueceste de repente?
Ela procurou ver-lhe a expressão, mas apenas conseguiu distinguir-lhe os pálidos contornos do
rosto.
- Não suporto ver-te tão infeliz! - disse Dorothea, num tom de voz quase suplicante. - Eu... eu gosto
muito de ti, Alfred. Lembro-me como vivíamos todos felizes
nesta casa, antes dela vir. Agora, só existe ansiedade, dúvidas e discórdia. Isso não quer dizer que
me insurja contra a posição dela na minha casa. Não. Não. Não
é isso. Eu fiz o melhor que pude por ela. Mas sei que ela trouxe a infelicidade para este lar, e a ti.
Pensa bem, Alfred, e verás que não o podes negar.
Mas a angústia que Alfred sentia, o reconhecimento que secretamente fazia da verdade das palavras
da prima, excitavam-no, tornavam-no quase frenético.
- Tu sempre odiaste Amalie! Eu soube isso desde o princípio. Vi o ódio nos teus olhos, Dorothea,
desde o primeiro momento em que a trouxe aqui, antes de me casar
com ela! Como podes tu ser tão baixa, tão mesquinha? Se o meu amor é infeliz, é porque tu a fizeste
sentir desse modo.
Dorothea ficou estupidificada, com as acusações cruéis que ele lhe fazia, e a dor tremenda que a
invadiu abalou-a selvaticamente. Ergueu-se e enfrentou-o.
- Estás a ser injusto, Alfred, e bem no fundo do teu coração, verás que é verdade. É certo que nunca
consegui admitir completamente que ela vivesse na casa de meu
pai...
- Eu já sabia! - exclamou ele, interrompendo-a. - Foi sempre... "a casa de meu pai"! Até contra a
minha presença aqui tu te revoltaste sempre, embora me suportasses.
Mas não conseguiste esconder esse ressentimento quando eu trouxe a nova senhora para dentro das
paredes que consideravas só tuas!
Ela estendeu a mão e prendeu-lhe o braço.
- Alfred! Como é que tu podes falar dessa maneira? Estás a ser tão desagradável, tão injusto! Tu
sabes que eu... que nós não temos nada, senão verdadeiro amor por
ti. Esta é a tua casa,
Alfred. Tu és o meu irmão adoptivo, o filho adoptivo de meu pai, que tanto te ama. Mas tu trouxeste
uma estranha para esta casa, Alfred. Se fosse outra pessoa qualquer,
eu teria aceite, teria admitido, ter-me-ia reconciliado com a idéia, ficaria até feliz, por ti, se visse
que ela te podia dar a felicidade que mereces. Mas Amalie
não te faz feliz. Muito antes de partires para Nova Iorque já tu parecias cansado, indeciso, ansioso.
Ela não é uma pessoa que tu possas compreender. Sentiste-a
como estranha que é, e a culpa não é tua. De certo modo, nem sequer é culpa dela. O casamento em
si é que foi uma loucura.
Alfred tentou revoltar-se, mas a voz dela, suave, suplicante, com uma estranha entoação de
sofrimento secreto, comoveu-o. Afastou-se dela, mas com delicadeza, e
disse:
- Talvez eu esteja a ser injusto e demasiado duro, Dorothea, e peço-te desculpa. Mas estás enganada
a respeito de Amalie e de mim próprio. Nós amamo-nos. É verdade
que ela teve uma vida estranha e pouco vulgar antes de se casar comigo, mas era uma vida que ela
estava ansiosa de abandonar. Talvez eu tenha andado demasiado absorvido
nos negócios e ela se tenha sentido muito só.
Calou-se. Depois, num tom mais rápido continuou:
- Eu tenho-lhe dado pouca atenção. Dir-lhe-ei que em Setembro iremos visitar Nova Iorque. Ela é
uma mulher de muita sensibilidade e com um temperamento ardente,
e esta casa calma e sossegada foi, talvez, um contraste muito grande entre a vida que levava
anteriormente e a actual. Dorothea, eu não te pedi mais nada senão que
fosses amável e condescendente para com Amalie. Talvez ela não tenha sabido corresponder, ou
talvez te tenha interpretado erradamente...
Apesar da escuridão que os rodeava, Dorothea olhou-o com um desespero profundo e uma intensa
agonia. Apertou as mãos com força aos lados do corpo, para impedir que
elas se lhe soltassem e o fossem abraçar, e comprimiu os lábios para impedir que a voz lhe gritasse
todo o amor, solidão e desejo que ela própria sentia. As lágrimas
cegaram-na, e o luar leitoso transformou-se de súbito numa névoa cerrada em frente dos seus olhos.
Só ao fim de muito tempo, conseguiu falar.
- Alfred, Alfred... lamento... por ti!
Mas ele já recuperara um pouco da sua segurança.
- Querida Dorothea, não fales assim dessa maneira tão trágica. Não tens motivo nenhum para
lamentares. Eu sou feliz, verdade que sou feliz. Estou a começar a acreditar
que a minha preocupação por Amalie não tem qualquer fundamento. Disseste-me que tem feito
muito calor por aqui, e, além disso, eu próprio admito que tenho deixado
Amalie um pouco
abandonada de mais. Não disseste que Jerome, o tio William e Philip vão voltar na sexta-feira? Esta
casa ficará mais alegre, então. depois, haverá o casamento de
Jerome com Sally em Setembro... podemos arranjar uma série de festas e divertimentos...
- Não creio que Jerome se case com Sally! - murmurou Dorothea, completamente abandonada nas
suas próprias emoções.
- O quê? - exclamou Alfred. - Que estás para aí a dizer, Dorothea?
Ela voltou a sentar-se, e tremia como se o corpo fosse vergastado por um vento súbito e gelado.
Alfred aproximou-se da cadeira, e repetiu:
- Que disseste tu, Dorothea? Isso é incrível! Ela afastou o rosto do dele, e voltou a cabeça.
- Acho que Jerome é mais sensato do que tu, Alfred. Acho que chegou à conclusão de que ele e
Sally nunca poderiam ser felizes, juntos.
- Incrível! Foi ele quem te disse isso?
A voz de Alfred era dura e havia nela um estranho tom de censura e reprovação, quando perguntou:
- A rapariga andou a brincar com ele? Acabou com o namoro? Fala, Dorothea!
Ela ficou assustada, e odiou-se por verificar que estava a perder o autodomínio de que tanto se
orgulhava.
- Não sei, Alfred. No entanto, pareceu-me que Jerome andava um pouco nervoso e incomodado com
qualquer coisa. Talvez ele se vá embora... Não tem visitado Sally com
muita freqüência, ultimamente.
Durante uns instantes, sentiu que o sangue lhe saltava nas veias e que um calor forte lhe inundava a
garganta. Mas rapidamente dominou aquela reacção natural à idéia
de que Jerome talvez pudesse ter resolvido sair dali.
- Como é que ele se pode ir embora? Ela já deu a sua palavra a Sally. Ela... ela correu com ele?
Mas a debilidade de Dorothea aumentara até à quase prostração. Quase suplicando, disse:
- Alfred, não me faças mais perguntas! Pode ser que tudo não passe de imaginação minha. Eu... não
sei! Só sei que me sinto extremamente fatigada.
Ergueu-se e olhou à sua volta, hesitante, vacilando como se estivesse cega.
- Decerto que é imaginação tua, Dorothea. Estou realmente surpreendido contigo. Jerome foi
sempre inconstante. Mas os planos para o casamento estão já assentes em
definitivo, e tenho a certeza de que não haverá qualquer mudança, seja
ela qual for. Ora essa! Eu vi o general Tayntor esta manhã, quando vinha para casa. Estava muito
satisfeito e até jovial. E falou sobre o casamento. Minha querida
prima, não deves permitir que a instabilidade temperamental tão freqüente nas outras mulheres tome
conta de ti dessa maneira!
Dorothea sentiu um escárnio feroz e violento por ele, de tal maneira que apagou por instantes o
desgosto e o medo que a venciam, e exclamou:
- Oh, Alfred, não sejas tão obtuso! Estiveste fora dois meses, e aconteceram coisas a que não
pudeste assistir!
Mordeu os lábios, e respirou com força, como se o ar lhe faltasse.
- Que estás a tentar dizer, Dorothea?
Aproximou-se dela, e falava mais calmo, mas também mais incisivo.
- Não sei o que estou a dizer! - quase gritou Dorothea.
- Isso vejo eu - retorquiu Alfred.
A voz saíra-lhe dura, brutal. Depois, mais suavemente disse:
- Tu estás cansada, Dorothea. Talvez também tu te tenhas sentido muito só. Foi demasiado tempo
para vocês as duas.
Avançou outro passo na direcção dela, e continuou:
- Conheço o teu coração bondoso, Dorothea. Tens andado ocupada com Amalie. Mas descansa,
agora. Não te preocupes mais. vou mandar hoje mesmo um dos empregados do
estábulo a casa do doutor Hawley e pedir-lhe que venha cá logo de manhã cedo.
Dorothea pegou no trabalho, hesitou como se estivesse confusa e não soubesse bem o que havia de
fazer a seguir, e depois deixou-o. Ele ficou a vê-la afastar-se,
até a porta se fechar atrás dela. Voltou a sentar-se, então, e vagueou o olhar pela encosta inundada
de luar.
Sentia-se agitado e deprimido. A cabeça começara a doer-lhe. Pensou, amargamente:
"Na realidade não há satisfação nenhuma na vida."
Aquele pensamento, tão estranho nele, tão contrário à sua própria natureza, assustou-o. Olhou à sua
volta, perplexo, sentindo-se envolvido por uma peculiar atmosfera
de tumulto, de coisas sinistras e vagas que não tinham sido ditas. Que estranha a atitude de
Dorothea! Nunca imaginara que se pudesse comportar daquela maneira!
Esfregou a testa dolorida. O vento suave parecia rodopiar em redor dele. Aquela incómoda
depressão e desconforto pareciam aumentar dentro de si. Pareceu-lhe, de
súbito, que tudo se transfigurava à sua volta, que as coisas assumiam uma espécie de carácter
estranho, pouco familiar, vago e impreciso, distante.
Não era um homem dado a melancolias, mas sentia agora o desconforto pulsar-lhe pesadamente em
cada fibra do corpo. A vertente suave que descia para o vale parecia
fugir, tornar-se vaga, enevoada, e as paredes da casa eram frágeis como nuvens. Nem mesmo o
cheiro que se desprendia da terra lhe despertava a memória para recordações
familiares. Era como se nada daquilo fizesse parte da sua vida, de si próprio. Era como um sonho
irreal, imaginário.
Levantou-se irritado, endireitou as costas num gesto brusco, e disse, falando consigo próprio:
- As manias de Dorothea foram demasiado para mim.
Entrou na casa silenciosa e escura, morna ainda pelo calor abafado de um dia quente de Julho.
Ouviu, como Jerome ouvira, o tiquetaque do relógio. Aquela estranha
sensação que dele se apoderara parecia prender-lhe as pernas, tornando difícil e penosa a subida da
escada até ao seu quarto. Toda a ordem da sua vida fora perturbada,
e agora estranhas sombras pareciam deambular pelos caminhos que lhe deviam ser familiares, vozes
desconhecidas e murmurantes pareciam encher de sussurros o silêncio
à sua volta.
Uma única vela ardia no quarto que partilhava com Amalie. Caminhou, sem um ruído, sobre a
carpete, e aproximou-se da cama. Amalie dormia. Observou-lhe a extrema
magreza e transparência das faces, as olheiras profundas e escuras que lhe rodeavam os olhos.
Uma das mãos da mulher pendia inerte da cama. O cabelo negro espalhava-se, espesso, sobre a
almofada. Amalie soltou um gemido abafado, e depois outro e outro ainda,
como se um sofrimento horrível a corroesse.
Um terror imenso apoderou-se de Alfred, um pavor delirante, um misto de amor e paixão
dilacerante, uma quase agonia de morte.
E se Amalie estivesse a morrer? Aquela magreza incrível, aquelas covas fundas nas faces, aquela
rigidez no queixo...
Ajoelhou-se ao lado da cama, e deixou-se ficar ali, não vendo nada senão a mulher adormecida, não
ouvindo nada senão o seu próprio medo.
Capítulo trigésimo quarto
Amalie acordou, e abriu as pálpebras pesadas de lassidão. O Sol lançava um feixe de raios de aço
por entre a abertura dos cortinados, parecendo depois queimar a
carpete, inundar de
fogo uma das colunas da cama, embater por fim no espelho como uma silenciosa mas ardente
explosão.
Descobriu que ainda estava só. Alfred passara a sua primeira noite em casa no pequeno quarto de
vestir, para não a perturbar. Ergueu-se um pouco, apoiando-se num
cotovelo, sentindo o peso húmido do cabelo no pescoço e nos ombros.
Todo o seu corpo foi invadido por um estranho enjoo. Levantou o cabelo, por momentos, com as
duas mãos, mas o ar à sua volta continuava opressivo.
Ouviu o tiquetaque do relógio sobre a lareira. Eram apenas sete horas. A criação cacarejava lá ao
longe, nas capoeiras. Havia sons abafados, indícios de actividades
nas escadas e nas salas do piso de baixo.
O quarto estava mergulhado no escuro, excepto aquele feixe de luz que entrava pelo pequeno
espaço aberto entre os reposteiros, e Amalie, olhando-se ao espelho em
frente da cama, descobriu um rosto quase fantasmagórico, pálido e desgrenhado: o seu próprio
rosto. Deixou-se cair de novo nas almofadas e gemeu. Subitamente a consciência
parecia-lhe demasiado terrível de suportar; fechou os olhos e cobriu-se de novo com o lençol ainda
morno.
A porta do quarto de vestir abriu-se devagar, e Alfred entrou no quarto, na ponta dos pés,
envergando seu roupão de seda carmesim. com o instinto que só o amor pode
criar, apercebeu-se que Amalie estava acordada. Aproximou-se da cama. Ela sentiu a sua sombra
escura contra as pálpebras fechadas. Entreabriu os olhos vagarosamente,
e quando olhou o marido, o vulto dele ficou de súbito mergulhado numa corrente de lágrimas.
Alfred puxou uma pequena cadeira de balanço, sem braços, para junto da cama, e sentou-se,
olhando Amalie com intensa gravidade e tristeza. Não falou. Esperou, apenas.
Ela enxugou os olhos, e fitou-o depois, por entre a névoa que ainda os nebulava.
Por fim, suavemente, Alfred disse:
- O que é que se passa, minha querida? Dói-te alguma coisa? Estás doente?
Ela mexeu-se, tentando erguer-se das almofadas. Alfred levantou-se e ajudou-a, solícito. O esforço
deixou-a exausta, e a cor do rosto tornou-se ainda mais terrosa.
Numa voz subitamente gritada de medo e ansiedade, Alfred disse:
- Mandei chamar o doutor Hawley. Estará aqui às nove horas. Valha-me Deus, Amalie! Que foi que
te aconteceu? Eu sou o teu marido. Poderás dizer-me o que se passa
contigo?
O longo feixe de luz iluminava o quarto, inundando-o de
uma penumbra incandescente e morna. Amalie reparou que o rosto largo e tenso de Alfred estava
extremamente agitado, e que os seus olhos cor de avelã refulgiam de
preocupação. E pensou:
"Eu devia dizer-lhe tudo agora, enquanto estamos sós. Mas Jerome proibiu-me. Terá ele razão?"
De certo seria mais fácil confessar tudo a Alfred, ali na quietude do quarto, suplicar a sua
compreensão, suavizar o seu primeiro extravazar de fúria. Mas os seus
lábios permaneceram rígidos e mudos. Apenas engalfinhou as mãos na dobra do lençol.
Alfred esperou que ela lhe respondesse. Mas como isso não aconteceu, soltou um suspiro e dirigiu-
se para o jarro e abacia de prata que se encontravam sobre a cómoda;
mergulhou a ponta de uma toalha de Unho na água, e depois foi com ela para junto da cama. com
gestos lentos e carinhosos passou-a pelo rosto escaldante de Amalie,
e alisou-lhe o cabelo ternamente. Depois, voltou a sentar-se. Agora, a sua expressão era mais calma.
- Amalie! - disse ele. - Eu tive uma conversa com Dorothea, a noite passada, e ela disse-me que tu
eras infeliz. Minha querida, tu sabes que eu só vivo para ti.
Se te sentes infeliz, deves dizer-me, para eu poder ajudar-te.
O coração dele recomeçou a martelar-lhe no peito, de medo e angústia, ainda que o seu espírito
repudiasse as palavras que escutara de Dorothea. Inclinou-se para
a mulher e pegou-lhe numa das mãos geladas e flácidas.
Amalie inclinou a cabeça, e o véu do seu cabelo negro cobriu-lhe o rosto. Murmurou:
- Sim, sim.
O medo de Alfred aumentou.
- Sim, o quê? - exclamou ele, ansioso. - Que queres dizer com isso, Amalie? Terei eu culpa de
alguma coisa, de algo que te fez mudar tão terrivelmente e te pôs assim
tão doente?
A cabeça de Amalie inclinou-se ainda mais.
- Oh, não, não Alfred! Não é por tua causa. Tu és tudo quanto há de bom e amável. Eu é que tenho a
culpa.
Alfred ficou silencioso, mas a sua mão apertou a dela com mais força.
Alguém bateu à porta ao de leve, e Jim entrou, transportando uma bandeja com o pequeno-almoço
de Amalie. Alfred olhou-o carrancudo. Que diabo estava a fazer ali
o criado de Jerome, em vez de uma criada? Ergueu-se, e tirou friamente a bandeja das mãos de Jim.
- vou já descer para tomar o meu pequeno-almoço, Jim disse Alfred.
Ficou a ver o homenzinho a afastar-se e reparou que havia
qualquer coisa de furtivo nos seus movimentos rápidos e silenciosos.
Olhou depois para a bandeja, com preocupação e desagrado. Havia ali apenas um prato com
torradas quentes e um bule de prata com chá.
- É só isto que comes de manhã, Amalie? - perguntou. Amalie afastou o cabelo com gestos cansados
e fechou os
olhos, com uma expressão de náusea espelhada no rosto. Alfred colocou-lhe a bandeja sobre os
joelhos. Sentia-se mais alarmado do que nunca.
- Isto é um disparate! - exclamou. - Não admira que te sintas tão fraca. Mas, vamos, come isto
agora, e depois desces comigo para tomar um pequeno-almoço a sério.
Era suficientemente humano para sentir dentro de si uma amargura imensa. Voltara para Riversend
cheio de triunfo, ansiando por contar a Amalie o que se tinha passado
em Nova Iorque, por lhe reproduzir as palavras amáveis de Mr. Reagan, os convites que este lhe
fizera. Tinha sentido confiança e uma força nova e exultante. Pensava
voltar para junto de uma amiga querida, que ficaria satisfeita pelas suas vitórias. Mas, afinal, voltara
para junto de uma mulher desesperadamente doente, uma mulher
que parecia estar perigosamente perto da morte, que não sentia qualquer vontade de falar com ele.
Aquela idéia encheu-o de pavor, mas obrigou-se a deitar um pouco de chá na chávena e a erguer a
tampa de prata que cobria as torradas.
- Não, por favor! - disse Amalie, numa voz que traduzia uma agonia imensa. - Não posso comer.
- Que disparate! Tu estás a desaparecer! - retorquiu Alfred, sentindo-se de novo invadido por uma
enorme amargura e medo. - Tu tens-te descuidado muito. Temos de
acabar com essa loucura. Não sou eu o teu marido? Se alguma coisa te preocupa, deves dizer-mo. E
eu quero saber, de uma vez por todas.
Ficou de novo à espera que Amalie falasse, mas ela apenas fitava a bandeja de prata, pousada sobre
os seus joelhos. Alfred humedeceu os lábios, subitamente salgados
e secos.
- Uma vez, pediste-me que te levasse desta casa, e que construísse uma outra para ti, para mim e
Philip.
Interrompeu-se, e os maxilares, tornaram-se-lhe rígidos, num esforço tremendo para se controlar.
Depois, mais calmo, continuou:
- Eu sei que as coisas não têm sido muito boas aqui, para ti, por causa de Dorothea. Ela é um
pouco... difícil. Sei que ela não aceitou de bom grado a tua presença
aqui, e talvez ainda
continue a não te aceitar. Tu não és a senhora desta casa. Fiz mal, talvez, em ter insistido em
ficarmos aqui, embora o tio William me tivesse dado a entender que
esta casa ficaria, eventualmente, paramim.
Calou-se por momentos, mas logo afirmou:
- Amalie, meu amor, se isso te fizer feliz, ir-nos-emos embora. Mandarei construir uma casa onde tu
quiseres, e poderemos, então viver sozinhos, tu e eu e Philip.
Os dedos de Amalie tocaram a chávena quente. Tentou erguê-la, mas ela parecia demasiado pesada
para as suas forças. Alfred, que a observava atentamente, suspirou
e levou-lhe a chávena aos lábios. Ela sorveu um pouco do líqüido, e ele voltou a pousar a chávena,
no pires.
- É isso que tu queres, minha querida, ter uma casa só nossa?
Mas Amalie pensou de si para si: "Se ao menos eu nunca tivesse visto Jerome!"No entanto,
obrigou-se a dizer:
- Alfred, eu estou a deixar que te convenças que é tudo culpa da Dorothea. Não é verdade. Ela... ela
tem sido muito amável para comigo. Se ainda não aceitou a minha
presença aqui, a única culpada sou eu.
com uma alegria que estava longe de sentir, Alfred afirmou:
- Bem, então está combinado. Mas... tu ainda não respondeste à pergunta que te fiz.
O cansaço e abatimento de Amalie deixaram-na prostrada. Murmurou apenas:
- Deixa-me esperar um pouco, Alfred.
Olhou-o abertamente, e julgou não conseguir agüentar toda a preocupação, ternura e amor que lia
nos olhos do marido.
- Alfred, tu não devias ter casado comigo. Tu és demasiado bom para mim, e... eu tenho medo.
Aquelas palavras tocaram tão profundamente Alfred, que fizeram desaparecer um pouco do seu
medo e alarme.
- Que disparate. Seremos imensamente felizes, meu amor! Não insistirei contigo agora, mas espero
que em breve me ajudes
a decidir se devemos ficar ou partir. Só quero o que for melhor para ti, o que te der mais satisfação.
Afastou-se do seu lado e começou a andar de um lado para o outro no quarto, os olhos de avelã
brilhantes de excitação.
- Poderemos ter tudo o que desejarmos. Mister Regan cumprimentou-me pela solidez e aumento dos
bens do Banco. Evidentemente que ele tem um espírito ousado e cosmopolita,
e nem sempre consegue compreender o cuidado que uma casa bancária de um meio rural precisa de
ter. Mas acho que, de uma maneira geral, aprovou a política que eu
utilizo.
Amalie pareceu sair da sua letargia e disse:
- Tenho a certeza de que Mister Regan não podia fazer outra coisa senão aprovar-te.
Ele deteve-se junto da mulher e sorriu-lhe.
- Obrigado, minha querida.
Tudo começara a correr melhor agora. Amalie principiava a interessar-se pelas suas palavras, e
havia uma leve sombra de esperança nos seus olhos.
- Come um pouco de torrada! - pediu-lhe Alfred.
Ela tentou fazer-lhe a vontade, embora se sentisse agoniada.
- Eu não te devia ter deixado! - disse Alfred, com ternura.
- Devia ter-te levado comigo. Mas eu pensei... pensei...
- Sim! - disse Amalie, com amargura. - Devias ter-me levado contigo.
De novo Alfred se sentiu agradado e comovido. Estendeu a mão e afastou-lhe do rosto um caracol
do cabelo.
- Não o fiz porque julguei que íamos ter um filho, e tu precisas de cuidados e protecção, meu amor.
No entanto - o sorriso dos seus lábios era tímido e hesitante
-, talvez possamos vir a ter novas esperanças, num futuro próximo.
Amalie afastou a bandeja. Parecia de súbito mais fraca e exausta. Alfred retirou a bandeja e
colocou-a sobre a mesa. Toda a sua obstinação o fez pensar para consigo
próprio:
"As mulheres têm, às vezes, destas coisas, segundo ouvi dizer. Ela ficará melhor, agora que eu estou
de novo em casa. Continuo a acreditar que Dorothea tenha sido
demasiado opressiva e que a minha querida se tenha sentido só e deprimida."
O calor aumentara dentro do quarto, e o suor cobria de pérolas o rosto extremamente pálido de
Amalie. Hesitou.
- Tens a certeza de que não queres vir comigo tomar o pequeno-almoço? - perguntou por fim.
- Não! Por favor! - respondeu Amalie, fechando os olhos.
- Acho que prefiro ficar um pouco mais na cama, Alfred.
- Sim, talvez seja melhor. O doutor Hawley estará aqui às nove horas, e veremos, então, o que ele
dirá depois.
Alfred inclinou-se e beijou-a na testa e depois nos lábios. As mãos de Amalie apertaram o lençol,
tentando controlar o instintivo estremecimento que lhe percorreu
o corpo, e o espasmo que ameaçava dividir-lhe o coração em dois. Alfred retirou-se para a sala de
vestir, onde começou a preparar-se para descer para o pequeno-almoço.
Amalie ficou rígida no leito, escutando os ruídos abafados no quarto ao lado, os movimentos
silenciosos que o marido fazia. Quando ele voltou a abrir a porta, Amalie
fingiu ter adormecido.
Ouviu-o descer as escadas. Lágrimas febris queimaram-lhe
as pálpebras. Depois, fez um esforço e saiu da cama. Aproximou-se da janela e espreitou. Lá em
baixo, os jardins estavam inundados de um sol radioso. Charlie, o
pequeno cão de Jerome, corria atrás dos pombos, e lá ao longe ouvia-se o assobio de um dos
rapazes do estábulo. Os telhados dos celeiros pareciam refulgir de luz,
e o catavento, no telhado mais alto, balançava à brisa suave, reflectindo os raios de sol. O vale, lá
em baixo, parecia pairar no meio de uma névoa de calor, por
debaixo de um sol opalino.
Amalie deixou-se ficar à janela durante muito tempo, escutando o chilrear sonolento dos pássaros, o
arrulhar dos pombos, o murmúrio leve da brisa. Todos aqueles
sons eram fracos e mornos, cheios de paz, mal perturbando a catarata de luz que descia sobre a
terra, a casa, as árvores, as flores.
Amalie afastou-se da janela. Puxara os reposteiros para o lado, e o enorme quarto ficara cheio de
luz. Aquela era a sua casa, a sua primeira casa, o único lar que
conhecera até ali. Começou a tremer apesar do calor que fazia, e ficou transfigurada com uma
horrível dor que a acicatou. Fosse o que fosse que estivesse para acontecer,
num futuro muito próximo, aquela casa jamais voltaria a ser um lar para ela. Lembrar-se-ia sempre
de que a destruíra, de como a enchera de ódio e de amargura. Todos
os retratos das paredes a haviam de repudiar; todas as paredes, todas as salas estremeceriam de
pavor à sua recordação.
Lavou o rosto com as mãos, escovou o cabelo e enrolou-o em longas tranças negras que lhe caíam
abaixo da cintura. Vestiu um longo roupão de seda azul pálido, e depois,
invadida de novo por aquela estranha fraqueza e sensação de desmaio, sentou-se numa cadeira junto
da janela, as mãos contorcendo-se lenta e estranhamente sobre os
joelhos.
Tinha suportado tanto, que o sofrimento mais não era agora do que uma dor enorme mas
incorpórea, já não tão aguda. Começara a balancear-se um pouco, o rosto inerte
e passivo entre as longas tranças negras do seu cabelo, e observava a luz do sol dançando nas coxas
cobertas de seda azul e na sua aliança de casamento.
De súbito, teve a sensação angustiante de que uma calamidade enorme e terrível se aproximava.
Endireitou-se na cadeira, o corpo sacudido por violentos tremores.
Um instinto misterioso avisava-a. Ergueu-se, assustada, e agarrou-se às cortinas que pendiam das
janelas. O instinto pareceu aguçar-se ainda mais. Tinha de fugir
daquela casa o mais depressa possível. Olhou à sua volta e levou as mãos aos ouvidos, como se
quisesse abafar o som de alguma voz gritada e vociferante. Correu para
o
guarda-roupa e tirou um vestido leve com fitas cor de cereja. Depois, tirou um largo chapéu de
palha amarela da prateleira de cima, e um par de sapatos da prateleira
de baixo. Tirou das gavetas uns calções com rendas, as meias, o corpete. As mãos tremiam-lhe,
convulsas.
Não ouviu o pequeno carro do doutor Hawley sobre o caminho de pedra solta. Não ouviu a sua voz
e a de Alfred subirem pelas escadas. Quando a porta se abriu, assustou-se
de tal maneira, apertando ao peito uns calções, que tinha o ar de um prisioneiro apanhado no meio
de uma fuga desesperada.
- Bem! bem! - começou o doutor Hawley, dando uma entoação alegre à voz. - Ora cá estamos nós!
- Ela parece estar melhor! - disse Alfred, com agradável surpresa. - Decidiste vestir-te, amor?
Mas o doutor Hawley detivera-se no limiar da porta. O sorriso desaparecera-lhe dos lábios; os olhos
tinham-se-lhe estreitado de preocupação. Observou o rosto de
Amalie, disforme de angústia. Viu-lhe os olhos, dardejando aterrorizados entre ele e o marido, como
os olhos de um animal encurralado.
Alfred fez um movimento na direcção da mulher, mas o doutor Hawley, levado pelo forte instinto
que o caracterizava, deteve-o pelo braço e, tentando dar uma entoação
normal à voz, disse:
- Alfred, posso falar com Amalie, sozinho? Importa-se de esperar lá fora, uns instantes?
Alfred deteve-se, e voltou-se para o médico, franzindo o sobrolho.
- Sabe - apressou-se o doutor Hawley a dizer, num tom casual -, por vezes uma senhora diz ao seu
médico... coisas... que podiam deixá-la embaraçada na presença do
marido. Desculpe, Alfred mas... tenho de insistir.
Alfred ficou confuso e indeciso, sem saber o que fazer. Olhou para o doutor Hawley, e depois
voltou-se lentamente para Amalie. Ela recuara até ficar encostada à
cama, ainda agarrando o calção entre as mãos, o robe azul enrolado ao corpo. A sua expressão era
rígida, fugidia, e desconhecida para ele.
- O que há, Amalie? - gritou Alfred. - Que foi que aconteceu?
Os lábios dela moveram-se num sussurro:
- Nada. Eu... ia começar a vestir-me. Tu... tu assustaste-me!
Alfred pareceu ficar aliviado.
- Bem, não te devias levantar até falares primeiro com o doutor Hawley e ele decidir se deves, ou
não, ficar na cama.
O coração começou a bater-lhe no peito com uma espécie de
medo e de alarme. Olhou, quase suplicante, para o médico, como se dissesse:
"Veja como ela está!"
O doutor Hawley acenou ligeiramente a cabeça, e empurrou calmo mas firme Alfred até à porta.
- Serão apenas alguns minutos - disse. - Chamá-lo-ei imediatamente.
Amalie olhou o rosto pálido e ansioso de Alfred, até à porta se fechar. Depois, deixou-se cair sobre
a cama, e a cabeça tombou-lhe pesadamente sobre o peito.
O doutor Hawley ficou junto da porta e observou-a durante longos minutos, em silêncio. O sol
banhava o quarto, inundando-o de luz.
- Porque está tão assustada? - perguntou depois, o médico, numa voz suave.
Amalie respondeu, num murmúrio, sem levantar a cabeça:
- Eu não estou assustada.
O médico aproximou-se dela, e disse:
- Sim, está. E está muito doente.
Pegou-lhe na mão, sentiu-a fria como o gelo, e palpou-lhe a pulsação. Olhou-a muito sério. Depois,
puxou uma cadeira e sentou-se.
Capítulo trigésimo quinto
Alfred caminhou, incessantemente, de um lado para o outro, no corredor e patamar superior da
escada. De vez em quando, limpava o rosto húmido de suor com o seu lenço
de linho que cheirava a lavanda fresca. Aborrecia-o o facto de que os seus joelhos fossem, por
vezes, assaltados por um violento tremor, e que se sentisse tão indisposto
e doente. Então, Amalie estava muito mais doente do que ele suspeitara! Recordava-se da voz
serena mas autoritária do médico, o toque firme da sua mão no braço dele,
detendo-o. O doutor Hawley não era, de maneira nenhuma, um homem dado a dramatismos. Até
durante crises bem graves ele mantinha sempre a sua calma e serenidade.
Durante aquele passeio agitado, Alfred detinha-se por vezes junto da porta do quarto de Amalie, e
procurava escutar qualquer som, qualquer ruído que chegasse até
ele, mas não conseguia ouvir nada, a não ser um leve e intrigante murmúrio. O relógio do avô, lá
em baixo, tocou o quarto de hora, e Alfred relanceou para o seu
próprio relógio. Devia já estar no Banco àquela hora, com a sua pasta de documentos importantes.
Não
estava habituado a ficar em casa aos dias de semana, e o facto de ali se encontrar dava-lhe uma
perturbante sensação de irrealidade. Retesou as pernas, tentando
impedir aquele tremor que de vez em quando as sacudia.
E se Amalie estivesse a morrer? E se o coração dela parasse? Apertou as mãos dentro dos bolsos.
Não, ele não tinha feito nada para merecer aquele incomensurável
terror, Deus não podia ser tão cruel. Olhou à sua volta, para as paredes silenciosas; depois,
encostou-se ao corrimão para olhar para a sala de entrada, lá em baixo.
Ouviu o abafado tilintar de louça e prata, o que indicava que os criados estavam a retirar a mesa do
pequeno-almoço na sala de jantar, onde ele e Dorothea tinham
acabado de comer.
De súbito, sentiu um desejo imenso de ter Dorothea a seu lado, buscando nela a calma e serenidade
que lhe faltavam. Começou a descer as escadas, mas deteve-se logo
no segundo degrau. O doutor Hawley podia sair do quarto de um momento para o outro, e
verificaria que ele não se encontrava ali. Falando consigo mesmo, disse:
"Tenho de ser sensato. Estou a assustar-me sem razão. Seja como for, não estarei a ajudar Amalie se
eu próprio me deixar arrastar por histerismos."
Ouviu o bater de uma porta no andar de baixo e viu a touca branca de Dorothea, os contornos firmes
da sua figura alta e vestida de preto, ouviu o tilintar das chaves,
o restolhar do seu avental de bombazina preta. Chamou-a em voz baixa, sentindo o coração um
pouco mais aliviado. Ela ergueu os olhos para ele e começou a subir as
escadas.
- Ouvi chegar o doutor Hawley - disse Dorothea, olhando fixamente o primo com os seus olhos
negros e perscrutantes. Que se passa com Amalie?
Alfred esboçou um leve sorriso e respondeu:
- Ainda não sei. Estou à espera.
Depois, num impulso muito raro nele, pediu-lhe:
- Fica aqui comigo, Dorothea. Eu... estava à tua procura.
"Está com medo", pensou Dorothea com um misto de amargura e pena. "Está com medo por causa
daquela vagabunda, que apenas sente o peso da pouca consciência que possui!"
- Não estejas preocupado - disse depois, fazendo a voz parecer calma e natural. - Eu estive sozinha
com Amalie durante todas estas semanas, e asseguro-te que ela
não esteve assim tão doente como tu possas pensar.
- Mas ela parecia tão doente esta manhã! - insistiu ele. Dorothea encolheu os ombros, e retorquiu:
- Talvez fosse a excitação do teu regresso.
Hesitou, e depois tocou o braço dele, muito de leve, dizendo:
- Isso nem parece teu! Não ajudarás ninguém, nem mesmo a ti próprio, se te deixas abater dessa
maneira. E garanto-te de novo que Amalie não está doente com a gravidade
que tu imaginas. Talvez seja o calor!
Alfred baixou o olhar para a mão forte dela, pousada no seu braço e, arrastado de novo por um
impulso muito pouco habitual nele, comprimiu os seus dedos contra ela
e murmurou, cheio de
gratidão.
- Dorothea querida!
Surpreendeu-o o movimento brusco que ela fez ao retirar a mão, e o forte rubor que cobriu o seu
rosto. E ao corar, as faces tornaram-se-lhe menos rígidas, mais cheias
de vida, os olhos ficaram extremamente cintilantes, pareciam mais vivos, mais jovens. Dorothea,
embora um pouco mais nova do que ele, sempre lhe parecera mais velha,
e toda a vida se habituara a pensar nela como uma irmã mais velha. Agora ela estava ali
à sua frente, direita e alta, e pela primeira vez sentiu o impacte
do seu sexo e qualquer coisa nela que lhe era estranhamente
desconhecido.
- O que se passa? - perguntou ele, confuso.
Ela não lhe respondeu imediatamente, e só alguns instantes
depois lhe retorquiu com uma voz quente e abafada:
- Nada, nada Alfred. Mas... gostaria que não me tratasses
como se eu fosse a tua avó.
Deixou escapar uma risadinha irónica e disse ainda:
- Afinal de contas, eu ainda não fiz trinta e nove anos, Alfred.
"As mulheres são, de facto, imprevisíveis e desconcertantes", pensou Alfred, perplexo.
Ali, em poucos instantes, Dorothea passara de uma rígida figura sem sexo para a figura viva de uma
mulher. A "irmã mais velha" transformara-se numa estranha para
ele, surgindo-lhe aureolada por uma espécie de rígida beleza de que ele nunca se apercebera. Os
olhos dela, imensamente negros, faiscavam na penumbra, o peito dela
erguia-se e baixava ao ritmo da respiração acelerada, e o rolo de grossas tranças na nuca parecia-lhe
o de uma mulher desconhecida. Sentiu que um calor estranho
lhe inundava as faces ao olhar a boca dela, habitualmente pálida e hirta, agora de um coral vivo e
brilhante.
- Desculpa! - ouviu-se dizer, embora não soubesse porque o dizia. - Claro que és mais nova do que
eu. Mas sempre foste tão... competente, tão... segura de ti...
- Talvez - interrompeu-o Dorothea com secura. - Talvez fosse melhor para mim se eu não tivesse
sido tão competente nem tão segura.
Bailava-lhe nos lábios um sorriso indefinido, como se estivesse profundamente agradecida e
curiosamente divertida. Olhou-o com ternura, e disse-lhe, como se lhe
fizesse um aviso:
- vou deixar de ser, agora, tão responsável e digna de confiança. vou arranjar algumas depressões
temperamentais, e vou passar a pedir com mais freqüência os meus
sais de cheiro. Acho que vou comprar alguns acessórios e lenços mais delicados e tirar de vez esta
touca.
Levou a mão à cabeça e num gesto deliberado e firme, tirou a touca que lhe cobria a cabeça. Os
cabelos, aqui e ali com alguns fios grisalhos, brilharam suavemente
aos seus olhos com uma nobreza que lhe era desconhecida.
- Seria... pouco próprio - balbuciou Alfred. Mas ela respondeu-lhe, num desafio:
- Como é que tu sabes o que é próprio ou não para mim, Alfred? Já alguma vez me olhaste,
realmente? Ou não fui eu sempre a pessoa conveniente, no lugar certo, para
todos dentro desta casa?
- Não, decerto que não! - disse ele, cada vez mais confuso.
Dorothea sorriu de novo, com aquele sorriso estranho e intrigante. Segurava entre as mãos a touca
de folhos, e olhava para ela com desagrado.
- Talvez a culpa tenha sido desta touca - disse, pensativa.
- Eu poderia ter casado.
Alfred ficou perplexo.
- Estás a falar a sério, Dorothea? Tu... desejavas casar? Ela ergueu os olhos e fitou-lhe o rosto, com
um relampejar
irónico.
- Claro que desejava. E... ultimamente tenho andado a pensar muito a sério nisso.
Aquela idéia perturbou-o tanto que nem ouviu o doutor Hawley a sair do quarto, e assustou-se
quando escutou a sua voz alegre. Voltou-se para o médico, e o riso deste,
o seu gargalhar sereno, encheu-o de alívio. O doutor Hawley sorriu-lhe e depois também para
Dorothea.
- Bem, bem! - disse por fim. - Afinal, sempre podemos ter esperanças. A feliz ocasião... deve ter
acontecido antes de deixar Riversend... há cerca de dois meses
atrás.
Pôs a mão sobre o ombro de Alfred, e deu-lhe uma palmada afectuosa.
- Desta vez, acho que podemos fazer os nossos planos. Tenho a certeza de que podemos, sim!
De repente, todos os sons da casa pareceram morrer, e um silêncio profundo e sem ressonância
pareceu invadir tudo e
todos. O ar tornou-se opressivo, fantasmagórico, com um peso de chumbo. O doutor sentiu-o, no
homem e na mulher estáticos e espectrais à sua frente, nos seus olhares
fixos e irreais.
Como se tivesse levado uma bofetada violenta, Dorothea sentiu um estremecimento sacudir-lhe o
corpo, e pensou:
"Então, já não há qualquer esperança para mim!"
A touca, esmagada entre as suas mãos, parecia feita de aço afiado cujas pontas se lhe espetavam na
carne. O peito apertou-se-lhe de agonia, e um nó imenso tapava-lhe
a garganta, impedindo-a de respirar. Encostou-se ao corrimão da escada, como se procurasse apoio
para não cair.
Mas era para Alfred que o médico olhava fixamente. Não conseguia compreender aquele rosto
imóvel, aquela rigidez de morte. com uma voz muito calma e insistente,
disse:
- Não está a perceber, Alfred?
Olhou, pouco à-vontade, para Dorothea, e continuou:
- A sua mulher vai presenteá-lo com um herdeiro, dentro de aproximadamente seis meses e meio,
segundo creio.
com todos os diabos! Dorothea já não era nenhuma jovem inocente que devesse ser protegida contra
os factos reais da vida. Mas Alfred, com voz rouca, disse:
- Isso é impossível. O senhor... enganou-se. O doutor sorriu, irritado.
- Bem, não me enganei, não. Acabo de fazer... um intenso exame a Miss Amalie, e fiz-lhe algumas
perguntas, também. Desta vez, pode ter a certeza.
Alfred não respondeu, mas a cor terrosa acentuou-se-lhe no rosto, e os olhos pareceram afundar-se
nas órbitas. Depois, fazendo um esforço terrível, repetiu:
- O senhor enganou-se. Eu sei que se enganou. Isso que diz... é impossível.
Apoiou as mãos à balaostrada atrás dele e encostou todo o peso do corpo. A voz saía-lhe mais alta,
agora, com um tom de violência e de revolta.
- Eu sei que não pode ser.
O sorriso morreu no rosto do médico. Olhou para a boca trémula de Alfred, para as suas narinas
frementes, para as chispas raivosas que lhe saíam dos olhos encovados.
Relanceou depois para Dorothea. Erguia-se lentamente da balaustrada contra a qual ela e Alfred se
haviam encostado. Olhou para Alfred e depois para o doutor Hawley.
Abriu a boca, mas não saiu qualquer som. Depois, cobriu-a com a mão, num movimento rápido.
"Meu Deus!" pensou o doutor Hawley. "Há aqui qualquer coisa de muito errado!"
Voltando-se para Alfred, disse em voz alta:
- Posso falar consigo a sós, por um instante, Alfred? Há algum sítio para onde possamos ir?
Alfred fez um gesto brusco na direcção da porta fechada do quarto de Mr. Lindsey e, sem esperar,
dirigiu-se para a porta, abriu-a e desapareceu dentro do quarto.
O doutor Hawley, perplexo e assustado, ficou a vê-lo desaparecer, e olhou depois para Dorothea.
Esta olhava-o fixamente, por cima da mão que continuava a comprimir
a boca.
- Não compreendo! - murmurou o doutor Hawley, com um gesto de impotência.
Dorothea deixou cair a mão e caminhou pesadamente em direcção do seu próprio quarto. A porta
fechou-se atrás dela.
- Diabos me levem! - exclamou o doutor Hawley em voz alta.
Entrou no quarto de Mr. Lindsey. As cortinas estavam corridas, deixando penetrar apenas uma
penumbra suave. A mobília estava coberta com grandes lençóis brancos,
que davam ao quarto um ar fantasmagórico. Alfred estava de costas viradas para a porta, e quando
ouviu entrar o doutor Hawley, falou com voz clara e sem entoação:
- Já lhe disse que é impossível. Tem que me dizer que se enganou.
O doutor Hawley apercebeu-se da rigidez e imobilidade dos ombros de Alfred, e os punhos
fechados de cada lado do corpo. Adivinhou um ar de violência recalcada nas
costas de Alfred, e na posição fixa da sua cabeça e nuca.
- Alfred- disse, com toda a calma de que foi capaz-,eu não estou enganado. Tenho a certeza do que
afirmo. Já sou velho e tenho muitos anos de experiência.
Interrompeu-se por momentos, e depois murmurou, quase como se falasse consigo mesmo:
- Tudo isto é muito estranho para mim. Pensei que você ficaria contente.
Sem se voltar, Alfred retorquiu:
- Eu ficaria satisfeito... se... se fosse verdade. Mas não é possível. Eu não... eu não tenho nada com a
minha mulher... há já muitos meses. Portanto, deve compreender
que isso que diz é absolutamente impossível.
O doutor Hawley sentiu-se de súbito fraco e cansado. Tacteou à sua volta, à procura de uma cadeira,
e sentou-se. Tirou um lenço do bolso e passou-o pela testa fria
e molhada de suor. Uma réstea de sol que entrava por uma abertura entre os cortinados parecia
dançar no chão, a seus pés.
com voz quase inaudível, murmurou:
- Talvez eu me tenha enganado. Eu...
Não conseguiu dizer mais nada.
Nessa altura, Alfred virou-se lentamente. O doutor viu-o à sua frente, ameaçador, qual espectro
alongado, difuso, vacilante, como uma estátua de pedra vista através
de uma névoa espessa. Alfred aproximou-se um pouco, parou, e ficou a olhar para o médico. Um
silêncio profundo abateu-se sobre o quarto.
- Não! - disse Alfred, ao fim de muito tempo. - Vejo que não se enganou.
Ficou à espera; mas o médico parecia afundado na cadeira, um velho abatido, retorcendo entre os
dedos o lenço com que limpara o suor.
- Disse à... minha mulher? - perguntou Alfred, com uma voz que parecia vinda de muito longe.
- Sim, sim! - respondeu o doutor Hawley.
- E... que foi que ela disse ?
O doutor Hawley ficou em silêncio. Tudo aquilo parecia um sonho, um pesadelo. Em qualquer
momento iria acordar, e...
- Que foi que ela disse? - repetiu Alfred, inexorável, autoritário, duro.
O ar entrou nos pulmões do médico, dando-lhe uma sensação de dor insuportável.
- Ela... pareceu-me um pouco... chocada. Ela... está muito doente. Deus do céu! Mas... é possível
que eu esteja enganado. Tenho de estar enganado!
- Mas não está, não é verdade? - insistiu Alfred.
De novo o médico ficou sem conseguir falar. - Ela não lhe disse... quem poderia ser o responsável?
A voz de Alfred soara brutal e enlouquecida, embora ainda muito
baixa. Começara a bater com um punho fechado, lenta e ritmadamente, contra a palma aberta da
outra mão.
O médico tomou de súbito consciência do grotesco do seu pesadelo. Que estavam para ali a dizer,
ele e Alfred? Que palavras dementes estavam a ser pronunciadas entre
eles? Num esforço tremendo, ergueu-se da cadeira e exclamou:
- Eu devo estar enganado! Que Deus me perdoe! Já houve outros erros antes...
Alfred caminhou firmemente na direcção da porta, abriu-a, e manteve-a aberta, dizendo:
- bom dia, doutor Hawley!
O médico tentou endireitar-se, mas as pernas tremiam-lhe doidamente, e o chão fugia-lhe debaixo
dos pés. Conseguiu, por fim, chegar junto de Alfred e olhou-o. Que
estaria por detrás daquela fixidez, daquela calma inumana, daquela total ausência de expressão?
- Alfred, procure ser razoável! É muito possível que eu me
tenha enganado. Seja como for... ela está muito doente, a pobre criatura. Há sintomas duvidosos...
Mas Alfred continuava hirto, junto da porta. O médico passou por ele, e o corredor vazio abriu-se à
sua frente, enevoado e vacilante. Voltou-se para Alfred, num
último e desesperado esforço, e disse:
- Se eu... estiver certo, seja misericordioso, Alfred. Lembre-se.
Alfred não respondeu, e o médico afastou-se, num passo vacilante, segurando-se ao corrimão da
escada para não cair. Alfred continuou junto da porta do quarto do
tio até ouvir a porta do quarto fechar-se. Depois, numa passada firme, voltou para os seus próprios
aposentos, e entrou.
Amalie estava completamente vestida. Além disso, enchera à pressa a sua velha mala de palha.
Quando ouviu entrar Alfred, quase caiu de terror. Depois, quando lhe
viu o rosto, ficou muito direita à sua frente, em silêncio.
Capítulo trigésimo sexto
Se acaso havia alguma dúvida no espírito de Alfred, ela deixou de existir quando reparou em
Amalie e nos seus preparativos para fugir.
Fechou a porta, sem um ruído, e encostou as costas contra ela. Observou a mulher, viu-lhe o terror
dos olhos, a palidez mortal do seu rosto sob a sombra ténue do
chapéu que lhe cobria a cabeça. O bonito vestido que lhe emoldurava o corpo parecia agitado por
um vento suave. Comprimia as mãos contra a saia tufada e afastava-se
do marido, recuando aos poucos, sem contudo fugir do olhar dele. Depois, deteve-se e pareceu
endireitar-se, ficando mais alta.
Alfred olhou para a garganta dela. Estava cheia e palpitante. Os dedos enrolaram-se-lhe com força.
Numa voz quase doce, perguntou:
- É verdade, Amalie?
Não havia terror nos olhos dela, agora; apenas um brilho gelado.
- Sim - respondeuela.
- Já o sabias antes do doutor Hawley chegar? Já o sabias, antes de eu vir?
- Não!
Viu-a erguer a cabeça, num gesto de firme resolução, e ouviu-a dizer:
- Se eu tivesse sabido antes, já me teria ido embora, há muito tempo.
Depois, ouviu-a dizer ainda, após alguns minutos de silêncio:
- Desculpa-me, Alfred.
Ele olhou-a, quase com ironia, e perguntou:
- Quem é ele, Amalie? Mas ela respondeu apenas:
- Desculpa-me.
Até àquele instante, ele sentira apenas uma enorme apatia que lhe entorpecia os movimentos; mas
agora sentia que algo crescia dentro dele, uma violência de louco,
transformando-se rapidamente numa angústia selvagem e assassina. Olhou-a incrédulo. A luz
entrava a jorros pelas janelas, e Amalie surgia-lhe diante dos olhos como
que envolta numa auréola radiosa.
- Tu fizeste-me isso, a mim, tu, a minha mulher? Porquê, Amalie?
Mas de novo ela repetiu apenas:
- Desculpa-me. Desculpa-me.
com voz estranhamente calma, ele disse:
- Não me digas isso outra vez, por favor. Seria capaz de te matar se o repetisses. Só quero saber por
que me fizeste isso, por que é que me atraiçoaste, por que
motivo me desonraste. Sabes, eu tenho de compreender as razões que te levaram a dar esse passo,
ou não saberei o que hei-de fazer contigo... com tudo!
Continuava a olhar para ela, incrédulo. Aquela era Amalie, a sua mulher, a mulher que ele tanto
amava. Aquela era a mulher com quem casara, com quem se deitara,
para quem tantos planos fizera, a quem tinha dado o seu nome. Aquela era a mulher que o tinha
convencido de que era não só a sua esposa, mas também a sua amiga.
- Tens de me dizer! - insistiu ele. - Eu preciso de compreender. Que foi que eu te fiz?
- Nada! Nada! Tu nunca me fizeste nada, Alfred. Levou as mãos à garganta, e disse ainda:
- Sou eu a única culpada. Eu é que fui má e conflituosa... Nunca devias ter casado comigo, Alfred.
Alfred ergueu as mãos e esfregou os olhos, abanando a cabeça, confuso e perplexo.
- Não, realmente vejo agora que não me devia ter casado contigo. Mas casei. E tu casaste comigo,
de tua livre vontade. E isso que não consigo entender.
Amalie reparou que o autocontrole do marido estava prestes a quebrar-se, e um terror quase animal
apoderou-se dela. Se ao menos conseguisse chegar até à porta!
Ele deixara cair as mãos dos olhos. Aproximou-se dela, lentamente, e Amalie ficou como que
pregada ao chão, sem conseguir mexer-se.
- Não tenhas medo - disse ele. - Não tenciono magoar-te, Amalie. Só quero saber o nome do... do
homem. Quero saber tudo a seu respeito.
Ela abanou a cabeça, num gesto lento, automático.
- Deixa-me ir embora, Alfred. Deixa-me sair desta casa em paz, e poderás depois esquecer que eu
existo. É tudo quanto espero, é só por isso que eu tenho rezado...
- Tu? Rezar? - perguntou ele com escárnio. - Como é que é possível que tenhas, alguma vez, rezado,
Amalie? Como é que, alguma vez, te atreveste a rezar?
Ela não lhe respondeu, e o rosto tornou-se-lhe ainda mais branco.
Ele olhou-a friamente. E, depois, sentiu-se subjugado por todo o ódio que sentia contra ela, todo o
terrível sofrimento do seu amor e da sua paixão, toda a sua própria
desonra e vergonha. Um espasmo distorceu-lhe a boca e fez-lhe apertar os olhos com força.
Envelheceu anos em breves segundos.
- Tu podes deixar esta casa imediatamente - disse. Mas primeiro quero saber o nome do teu... desse
homem. Tens de me dar o seu nome. Diz-mo, imediatamente ou...
receio bem que serei capaz de te matar se o não fizeres. Tens de me contar tudo... há quanto tempo o
conheces, onde foi que o viste pela primeira vez, onde e como
me atraiçoaste e me desgraçaste.
Ficou à espera, mas apenas o silêncio lhe respondeu.
- Qual é o nome dele, Amalie?
- Não posso dizer-to - murmurou ela. - Se to disser, nada... nada poderá voltar a existir para ti. É
para teu próprio bem que não to digo. Deixa-me ir embora, Alfred.
Ele aproximou-se mais dela, e quando Amalie lhe viu os olhos, fechou rapidamente os seus, como
se tivesse visto a própria morte.
Foi quase sem respiração que disse:
- Mesmo que me mates, não to direi. Nada me poderá fazer falar.
E pensou para si mesma, numa prece:
"Por favor, meu Deus! Seja o que for que tenha de acontecer, que aconteça já! Estou tão cansada!"
Mesmo quando Alfred lhe agarrou o pescoço e a esbofeteou violentamente no rosto, não sentiu mais
nada. A escuridão caíra-lhe sobre os olhos, tudo à sua volta se
desmoronou. Nem mesmo sentiu que caía pesadamente para o chão. Sentia-se no meio de um poço
sem fundo, cujas águas revolteavam sem
cessar. Ouviu ao longe um grito, depois outro, e ouviu o barulho distante de uma luta. Os gritos e a
luta pareciam intermináveis, mas também não lhe interessava
se acabassem ou não. Só queria afundar-se mais naquele poço e perder o conhecimento de tudo. Por
fim, depois do que lhe pareceu uma eternidade, o poço rejeitou-a.
Uma luz incandescente bateu-lhe nas pálpebras. Abriu os olhos, e viu que apenas alguns minutos
haviam decorrido, e que Dorothea tinha aparecido, vinda não sabia
de
onde.
Dorothea tinha atirado os braços em redor de Alfred e com uma força insuspeitada afastava-o de
Amalie. Gritava e chorava
agarrada a ele, e Amalie ouviu-lhe a voz, gritando, desvairada, acusando, chorando:
- Não, Alfred, não lhe deves tocar outra vez. Não lhe deves fazer isso, a ela! Se a matares, que te
acontecerá? Não é ela a única culpada, acredita-me!
Alfred tentou libertar-se dos braços fortes que o prendiam; mas Dorothea apertou-se ainda mais
contra ele, comprimindo a cabeça contra o pescoço dele, prendendo-lhe
os braços com as mãos que mais pareciam garras ferozes.
- Ouve o que eu te digo, Alfred! - gritou Dorothea. Preciso de te dizer uma coisa. Escuta-me por um
instante e então compreenderás porque não te falei nisto antes.
- Vai-te embora, Dorothea! - gritou, por sua vez, Alfred, tentando empurrar-lhe a cabeça.
- Mas tu tens de me ouvir, Alfred. Ouvi-te perguntar o nome dele. Se me escutares com calma, eu
própria to direi.
Alfred ficou subitamente calmo. Afastou Dorothea de si. Ela chorava descontroladamente. Amalie
soergueu o corpo, apoiada num cotovelo e gritou:
- Não! Dorothea, não! Não lho podes dizer!
A cabeça andava-lhe à roda. Qualquer coisa quente e pegajosa escorria-lhe pelos lábios e pelo
queixo, algo de amargo e enjoativo. Uma dor horrível começou a inundá-la.
Mas nenhum deles parecia ouvi-la. Alfred voltara-se para a prima e olhava-a fixamente segurando-a
pelos braços. Abanou-a e gritou:
- Então, diz-me, Dorothea.
- Não! - suplicou Amalie.
Tentou levantar-se, e voltou a cair. Mas, fazendo um esforço terrível, avançou apoiada nos joelhos e
nas mãos na direcção deles, abanando a cabeça. Nada lhe importava,
agora; nem as dores, nem aquela coisa que lhe escorria pelo rosto, nem a névoa que lhe toldava os
olhos. Era preciso chegar junto de Dorothea. Era preciso impedi-la
de falar. Mas o esforço que a separava dela
parecia não ter fim, aqueles poucos centímetros pareciam ter-se transformado em léguas infindas.
- Tens de me ouvir, Alfred - dizia Dorothea, lentamente mas com firmeza. - Tudo aconteceu pouco
depois de tu teres partido. Eu... eu vi-os juntos. Pensei muito sobre
o que havia de fazer. Cheguei a pensar que talvez fosse melhor para ti, se nunca viesses a saber.
Odiei-os. Quis que sofressem os dois. Mas decidi calar-me... para
teu bem. Porque, sabes, eles disseram-me que quando tu voltasses falariam contigo, e que se iriam
embora, depois; dir-te-iam que gostam um do outro, que se amam.
Eu... eu não sei que planos mais teriam. Mas todos concordámos que não se falaria nada que te
pudesse magoar, como isto. E... Alfred, tu nunca saberias a verdade
se o doutor Hawley não tivesse vindo aqui.
Chorava de novo, mas em silêncio.
- Eu não sabia que... que isto tinha acontecido. E não acho que ela soubesse, também.
Numa voz quase inaudível, Alfred perguntou:
- Que estás tu a dizer-me, Dorothea?
O rosto dele estava cinzento como uma pedra.
- Dorothea! - gritou Amalie.
Tinha conseguido, por fim, chegar junto da outra mulher, e agarrava-lhe as saias com as suas mãos
fracas e trémulas.
Mas Dorothea não parecia vê-la nem ouvir o seu grito. Olhava apenas para Alfred, e ele para ela.
- Alfred! Tem um pouco de piedade por ela. Ela tentou evitá-lo, mas ele não fazia outra coisa senão
persegui-la e atormentá-la, desde o primeiro dia em que chegou
aqui. Eu... eu acho que ela não tencionava trair-te. Sempre fugiu dele. Mas houve aquele dia de
tempestade, e ele voltou para casa, quando sabia que eu não estava
cá. Ela devia estar assustada. Eu... eu não sei exactamente. Mas... acho que ela não queria atraiçoar-
te.
Alfred deixou cair os braços inertes e recuou. Olhou para a prima, como um louco.
- Tu não estás a tentar dizer-me, Dorothea...
- Sim, Alfred - respondeu-lhe ela, estendendo-lhe os braços, numa súplica desesperada.
- Jerome - murmurou ele. Dorothea tapou a cara com as mãos.
Amalie deixou cair o vestido de Dorothea. Estava enrodilhada no chão, de novo cega, mergulhando
outra vez na escuridão.
Capítulo trigésimo sétimo
Alfred Lindsey olhou o quarto vazio da casa dos Hobson, onde Amalie passara os dois últimos anos,
antes de se casar com ele.
Ali, naquela casa, tinha cortejado Amalie, tinha escutado as suas recusas, uma vez, duas, e escutara,
por fim, aconcordância dela à sua terceira proposta. Conhecia
cada parede daquela casa cinzenta e atarracada, o jardim pobre que a rodeava, os extensos campos e
pinhais que cobriam cerca de vinte e cinco hectares. Conhecia
aquela propriedade, não só por causa de Amalie, mas porque a mantivera escrupulosamente vigiada
quando estivera quase a retirá-la das mãos de Josiah Hobson.
Mas não lha tirara. E o pobre agricultor bem podia agradecer isso a Amalie. Tinha, até, feito
empréstimos sobre futuras colheitas, uma coisa bem precária e arriscada,
pois Hobson nunca fora um agricultor promissor e espectacular. Aquela sua atitude fora bem contra
os seus princípios e contra o seu habitual procedimento em casos
semelhantes. Havia alguns homens, sabia-o, que, embora conhecessem a fundo as coisas da terra e
tivessem estado toda a vida ligados ao trabalho das quintas e propriedades,
nunca tinham sido capazes, por razões misteriosas que jamais compreendera, de produzir colheitas
boas. No entanto, após o seu auxílio, a pequena quinta parecia ter
prosperado.
Mrs. Hobson era uma mulher limpa e arrumada, e a pequena casa estava imaculada de limpeza
apesar do rancho de filhos do casal.
Ali, naquele quarto de paredes de madeiras nuas, o tecto baixo e inclinado, as pequenas janelas, o
chão limpo mas sem quaisquer tapetes que o cobrissem, tinha dormido
Amalie, e ali iria dormir de novo, durante algum tempo.
Alfred olhou o sofá-cama com a coberta de algodão branco, ornamentada de franjas, também
brancas, feitas pelas mãos toscas mas hábeis de Mrs. Hobson; olhou o pequeno
toucador, com o seu espelho velho e distorcido, a única cadeira de balanço com a almofada bordada.
As minúsculas cortinas brancas volteavam na brisa húmida que entrava
pelas janelas. As árvores, lá fora, pesadas pela chuva, enchiam o pequeno quarto de sombras de um
verde aquoso e espectral.
Alfred pousou no chão a velha mala de palha que pertencia a Amalie. Mrs. Hobson, que não fizera
quaisquer perguntas e sabia que não devia fazer nenhumas, entrou
em silêncio atrás de Amalie e de Alfred, transportando um candeeiro a querosene. Colocou-o em
cima da mesa, olhou timidamente para Amalie e Alfred e saiu do quarto.
Amalie tirou o chapéu e o xaile, e pendurou-os num dos pregos espetados na parede, onde havia
ainda menos de um ano costumava pendurar o seu reduzido guarda-roupa.
A pequena lâmpada dissipara a semipenumbra esverdeada do quarto, mas não conseguira reduzir o
brilho frio do anoitecer.
Amalie abriu a mala e tirou de lá a pouca roupa que ali guardara em Novembro último. Guardou-a,
depois, nas velhas gavetas do toucador. Não tinha trazido nada do
que Alfred lhe dera, nem mesmo o anel de casamento. Vestira o mesmo xaile usado e pusera o
mesmo chapéu de veludo azul com que entrara na casa do tio dele. O vestido
que envergava, de algodão castanho, tinha-lhe custado dois dólares um ano atrás. Tinha-o achado
próprio e conveniente.
Alfred observava-lhe, em silêncio, os movimentos vagarosos mas precisos. Amalie fechou a gaveta
e colocou sobre o tampo a sua velha e patética almofada de alfinetes
em forma de morango, a escova do cabelo, o pente, a pequena taça de louça com violetas pintadas,
onde guardava os ganchos. Não possuía mais nada.
Havia uma porta no espírito de Alfred, uma porta de ferro escaldante, por detrás da qual viu Jerome
Lindsey. Alfred fechara-o ali, por enquanto. Para seu próprio
bem não pensaria, não ousaria pensar nele. Era uma porta que voltaria a abrir dentro de algum
tempo, mas que por agora preferia manter fechada. Se a abrisse, correria
o risco de perder toda a sensatez que ainda lhe restava, todo o sentido das proporções, toda a sua
sanidade mental. Pelo menos, assim pensava, e não estava muito
longe da verdade.
No entanto, quando olhou à sua volta no pequeno quarto e viu o xaile e o chapéu pendurados nos
pregos das paredes, o triste espectáculo dos parcos haveres de Amalie,
a porta de ferro abriu-se um pouco e qualquer coisa como uma loucura surda espreitou por ela. Era
para aquilo que Jerome empurrara Amalie, era àquilo que a tinha
de novo reduzido. Era àquilo que ele tencionava abandoná-la, e disso estava Alfred convencido.
"Não!", exclamou Alfred para si próprio. "Não, nem que seja preciso matá-lo!"
Fechou a porta rapidamente, sentindo que o fogo se lhe pegava às mãos, porque ainda não se
decidira se devia, ou não, matar Jerome. Tinha dentro dele um tal nojo,
um ódio tão grande, uma tão violenta repulsa e raiva, que havia momentos em que ele próprio
parecia desintegrar-se, em que nada senão a morte de Jerome parecia satisfazê-lo.
Ele e Amalie não tinham voltado a trocar quaisquer palavras desde aquele dia horrível no seu
quarto. Fossem quais fossem as breves ordens que ele quisesse transmitir
a Amalie, fazia-o
sempre através de Dorothea. Até aquele dia, Amalie permanecera dentro do quarto e Dorothea
levava-lhe as refeições, sempre em silêncio. Nada se passava entre as
duas mulheres, excepto as ordens que Alfred dava. As criadas nunca mais voltaram a ver Amalie.
Ela passara a viver numa concha de silêncio, fechada do resto da casa.
Nem isso parecia importar-lhe, pensava Dorothea. Mergulhara numa espécie de letargia, ficando
sentada, imóvel, horas a fio, na cadeira perto da janela, e Dorothea
sabia, por puro instinto, que ela ficara ali também, durante a noite.
Quando Dorothea voltava ao quarto para retirar a bandeja da comida encontrava-a quase sempre
intacta, a carne congelada em gordura, o pão frio, o bule de chá gelado.
Dorothea não fazia qualquer comentário, e o seu rosto mantinha-se duro, impenetrável, distante.
Por várias vezes encontrara Alfred nas escadas, ou na sala de entrada, e juntos tinham olhado para a
bandeja, sem trocarem uma palavra sequer, nem mesmo um olhar
entre ambos. Por fim, Dorothea chegara à amarga conclusão de que Alfred estava deliberadamente à
espera dela, ali, para poder inspeccionar a bandeja. Depois de o
fazer, ele voltava-se e entrava de novo no seu próprio quarto, o rosto impassível e duro como o aço,
sem expressão. Quando se juntava a Dorothea, às horas das refeições,
ele próprio mal tocava na comida, e permanecia ali, sentado à sua frente, como que mergulhado
numa apatia e abstracção semelhantes às de Amalie. Nunca tivera muita
tendência para as bebidas alcoólicas, mas Dorothea reparava, com vivo desgosto, que, à mesa, ele
bebia agora vários copos de vinho, que, apesar de tudo, não faziam
mais do que aumentar a sombra e a fixidez dos seus olhos.
Dorothea, ela própria destroçada pela calamidade que se abatera sobre a casa de seu pai, de coração
cheio de angústia, apreensão e medo, fazia todo o possível para
dar aos afazeres da casão aspecto de uma rotina normal. Tentava dar à sua voz uma entoação normal
quando falava, por breves instantes, com os criados. Dissera-lhes
que Mrs. Alfred Lindsey estava doente e que nada a podia perturbar. Obedientemente, os criados
imitavam a sua atitude, mas ela sabia que eles cochichavam pelos cantos,
fazendo perguntas uns aos outros.
Era impossível que eles não tivessem ouvido os gritos de Amalie, e os seus próprios, e ainda a voz
alterada de Alfred, naquele dia horrível. Perguntava a si própria
até onde é que eles sabiam a verdade, e encolhia os ombros num gesto de impotência e de
desespero. Todo o mundo ficaria a saber, não tardaria muito tempo. Entretanto
era melhor esconder o mais possível a verdade dos curiosos criados.
Reparou que Jim, o criado de Jerome, pouco ou nada se mostrava. Por vezes, julgava ver o seu rosto
franzino espreitar no fundo de um corredor. Mas, invariavelmente,
ele procurava manter-se longe de Alfred, e isto enchia Dorothea de conjecturas e preocupações.
Aquele homenzinho horroroso sabia qualquer coisa. Seria ele capaz
de arranjar maneira de avisar Jerome? Mas não, não podia ser. Nenhuma carta poderia chegar às
mãos de Jerome a tempo de o prevenir e impedir que voltasse.
Havia um mundo de terror nas noites sem sono de Dorothea. Odiava o irmão. Pouco lhe importava
o que lhe pudesse acontecer. Merecia um castigo severo, merecia que
toda a justiça caísse sobre a sua cabeça. Mas... e o pai? Como é que ele podia ser poupado a toda
aquela afronta e desgraça?
Tinha conseguido convencer Alfred, ou pelo menos assim o esperava, que quanto menos barulho
houvesse, menor seria a catástrofe que correria naquela casa e tanto
mais rápida seria a cura, mais rápido seria o regresso da paz. Pelo menos, ele escutara-a em silêncio,
fitando-a com aqueles olhos mortos e encovados, e não fizera
qualquer comentário. Quanto a si própria, não fazia quaisquer planos, e procurava não pensar.
Odiava Amalie, disso estava certa. Mas quando retirava as bandejas do quarto da cunhada, quando
via aquele rosto inclinado, quase disforme, os olhos vazios e raiados
de sangue, algo se lhe contraía no coração, e uma estranha raiva crescia dentro dela contra Alfred.
Ele espancara uma mulher indefesa, martelara-lhe o rosto selvaticamente,
transformando-o numa massa sangrenta. Por escassos segundos ela própria, Dorothea, evitara que
ele pontapeasse o pobre corpo atirado por terra. Só conseguia desculpá-lo
quando se recordava da afronta cometida por Amalie.
No fundo, Dorothea tinha sido sempre uma acérrima defensora da mulher. Revoltava-se
furiosamente contra a opressão do seu próprio sexo pelos homens, contra as limitações
das mulheres contra a sua impotência perante a lei, contra as suas vidas tantas vezes sem esperança.
Sentira-se ardendo de raiva, mais do que uma vez, ao recordar-se
de mulheres que conhecia, cujas fortunas tinham sido arrogantemente devoradas pelos maridos,
cujos filhos tinham sido violentados pelos próprios pais, cujos parentes
tinham sido, de modo arbitrário, impedidos de entrar nas casas compradas com as suas próprias
heranças. As mulheres não tinham qualquer recurso à lei; eram meros
objectos, simples animais à disposição dos seus donos.
Dorothea sentia-se assustada e de certo modo revoltada pelo facto de ter sido capaz de sentir
piedade por Amalie; lançava-a numa quase vertigem o facto de descobrir
que tinha quase estado
a ponto de se reprimir, por várias ocasiões, para não falar com Amalie com preocupação e simpatia.
Estes generosos impulsos, nascidos de uma secreta e desconhecida
compreensão e compaixão pelos outros e da indignação contra os homens, voltavam-se, frustrados,
mas ainda poderosos e fortes, contra o seu irmão, Jerome. Jamais
suspeitara daquele lado da natureza de Alfred, e aquilo deixara-a aterrorizada.
Durante os três ou quatro dias depois do pesadelo, uma praga de silêncio parecera ter descido sobre
a casa. Mas Dorothea aguardava, sabendo que Alfred estava, lenta
mas inexoravelmente, arquitectando um plano. Quando ele finalmente anunciou que ia levar Amalie
de novo para a quinta dos Hobson, o alívio que sentiu foi quase histérico,
embora não conseguisse explicar porquê. Comunicara aquela informação em poucas palavras, mas
friamente, a. Amalie, mas esta não dera qualquer resposta. No entanto,
na hora marcada, já muito tarde na noite, quando a foi chamar, verificou que Amalie estava
completamente pronta.
Não se viam criados em parte alguma. Dorothea tomara todas as precauções para que isso não
acontecesse. A casa, sombria e silenciosa, ecoava com a chuva e o vento
lá de fora, e parecia deserta. Alfred aguardava lá em baixo, enfiando as luvas, o enorme sobretudo
apertado até acima contra o frio húmido. Não olhou directamente
para Amalie, mas tirou-lhe a mala da mão, e ela entregou-lha como um autómato. Dorothea ficou a
vê-los afastar-se e não entendeu a dor aguda que lhe tirou todas
as forças.
Tinha sido bom que fosse o próprio Alfred a levar Amalie, pois os criados espreitavam
subrepticialmente. As cortinas do pequeno carro estavam corridas. Amalie e
Alfred sentavam-se lado a lado pela última vez, mas, pela importância que alfred lhe dava, Amalie
parecia não estar ali presente. Olhava fixamente à sua frente,
segurando as rédeas com firmeza, conduzindo o cavalo, escutando o restolhar dos ramos molhados
contra o tejadilho do veículo, cheirando a humidade fria e pesada
que se desprendia da terra. Fossem quais fossem os seus pensamentos, não os dava a perceber. Se
tinha consciência da mulher destroçada que se sentava a seu lado,
não dava quaisquer mostras disso. Um vento frio, entrando por entre as cortinas, arrastara uma
dobra da saia dela para cima da coxa dele, mas Alfred não retirara
a perna nem fizera o mais leve movimento. Apenas os seus músculos se retesaram, tensos, como se
repudiassem o tecido, ou talvez para não o perturbar.
Alfred haveria de recordar aquela viagem durante toda a sua vida, e sempre se lembraria dela com a
mesma agonia, dor e desespero.
Os Hobson, informados poucos dias antes de que deveriam aguardar Mrs. Lindsey, estavam à sua
espera. Olhavam o casal com curiosidade e especulando intimamente sobre
o que tudo aquilo significaria, mas conheciam Alfred demasiado bem. Não se atreveriam a fazer
quaisquer perguntas, com medo da fúria que poderiam despertar nele.
Alfred tinha-lhes dado a entender que fazer isso significaria a sua ruína, e, por causa do tempo, o
sucesso das colheitas era precário. Mrs. Lindsey, tinham-lhes
dito, ficaria com eles algumas semanas. Deveriam tratar dela, mas falar-lhe o menos possível.
Amalie, uma vez arrumadas as suas poucas roupas, sentara-se na pequena cadeira de balanço e
balanceava-se lenta e mecanicamente, olhando à sua frente sem ver, as
mãos pousadas sobre os joelhos, com as palmas viradas para cima, numa atitude pungente de
abandono. O perfil estava voltado para Alfred, mas ela parecia totalmente
alheia à sua presença. Ele viu-lhe a face inchada e escura, e a fixidez do olhar.
Decorreu um longo momento, e ele ali ficou, escutando o vento e a chuva e o suave ruído da
cadeira. De súbito, uma explosão pareceu rebentar-lhe no coração, uma
explosão de agonia, paixão e amor. Sabia agora que, fosse o que fosse que acontecesse, fosse qual
fosse a desonra e a traição que lhe fora infligida, jamais conseguiria
esquecer Amalie, jamais deixaria de a amar e desejar. E nunca mais seria capaz de amordaçar o
remorso que sentia; nunca mais esqueceria aquele súbito e terrível
desejo que dele se apoderava agora de a tomar nos seus braços, de a beijar no rosto magoado, nos
lábios inertes, de lhe suplicar perdão, de lhe pedir que o deixasse
mandá-la embora até que todo aquele horror passasse, para depois a ir buscar de novo, para o seu
amor, para a sua protecção.
A força dos seus próprios pensamentos deixou-o perplexo, fazendo-o sentir-se fraco e doente. Fez
um esforço para se afastar dela, para tirar os olhos de Amalie.
com as mãos que lhe tremiam, convulsas, colocou um monte de moedas de ouro e prata em cima do
toucador. Se ela ouvira tilintar o dinheiro ou não, não o podia dizer.
Pelo menos, por aquilo que via dela no espelho, movendo-se para trás e para a frente na cadeira, a
sua expressão mantivera-se inalterada.
Afastou-se do toucador. Nada o retinha ali, agora. E, no entanto, não se sentia com forças para sair.
Olhou fixamente para a mulher.
"Tenho de me ir embora", pensou.
Mas não se moveu. O vento e a chuva tornaram-se mais fortes. A chama do candeeiro tremeu. Mas
Amalie continuava a balançar-se como se estivesse dominada por qualquer
efeito
hipnótico. Estará ela à espera que ele falasse? Pensou que não. Acreditava que ela nem se apercebia
da sua presença ali, e que fora atirada para o fundo de um despenhadeiro
qualquer, horrível, sem sensações, e que para ali estava, movendo-se inconscientemente
Por fim, disse, com voz rouca:
- Deixo-te algum dinheiro. Acho que concordas em ficar nesta casa até depois do divórcio. Acho
que deves compreender que esta é a única coisa que podes fazer por
mim... a última coisa.
Os lábios dela, muito brancos, moveram-se: - Sim.
Foi apenas o que disse, sem olhar para ele nem interromper aquele balançar incessante.
E de novo apenas o som do vento e da chuva se ouviu dentro daquele quarto pequeno e miserável.
Ia deixá-la ali, naquele frio e humidade, naquela pobreza e abandono.
A garganta apertou-se-lhe, e enfiou nos bolsos os punhos fechados. - Há alguma coisa que tu
desejes? - perguntou. Ela abanou a cabeça, ligeiramente.
A expressão de dor tornou-se mais violenta, tão aguda que à
frente dos seus olhos surgiram milhares de pontos luminosos
numa dança louca.
- Há alguma coisa que possa fazer por ti, antes de me ir embora?
De novo Amalie abanou a cabeça.
Alfred moveu-se na direcção da porta. Quando chegou junto dela parou e voltou-se para Amalie, e
não pode impedir-se de dizer:
- Tens alguma coisa a dizer-me, Amalie?
- Não tenho nada a perdoar-te, Alfred - respondeu ela. Tu deste-me um pouco de paz.
A desolação e a dor que sentia eram-lhe insuportáveis. Deu um passo na direcção dela, e disse:
- Amalie, se precisares de alguma coisa, seja onde for, em que altura for, dizes-me?
Mas Amalie, com um olhar muito firme, retorquiu-lhe:
- Não. Deves esquecer-me o mais depressa possível. Ele não conseguiu impedir-se de gritar:
- Mas que irás tu fazer, Amalie?
De novo ela abanou a cabeça, e respondeu:
- Ainda não sei, mas hei-de encontrar qualquer coisa. Vai para casa, Alfred. Não voltes a pensar em
mim.
Ele saiu. Nunca conseguiu recordar-se de como voltara para casa, daquele regresso para o lar
desolado que, para ele, ficaria vazio para sempre.
Capítulo trigésimo oitavo
Embora Jerome tivesse passado muito tempo com o pai em Saratoga, tinha evitado cuidadosamente
discutir com Mr. Lindsey quaisquer assuntos do Banco ou os planos que
arquitectava. Na verdade, e com grande alarme de Jerome, o velho cavalheiro parecia muito
enfraquecido e débil, apesar das águas de Saratoga e da calma, quietude
e luxo do grande hotel onde estava alojado. Mr. Lindsey não se tinha queixado, e dissera mesmo ao
filho que se sentia "muito mais forte". Mas quando Jerome consultou
o médico este informou-o de que o coração de Mr. Lindsey estava a enfraquecer, apouco e pouco,
sim, mas inexoravelmente: qualquer excitação ou ansiedade fora do
normal lhe poderiam causar um súbito colapso.
Jerome decidiu, por isso, adiar qualquer discussão com o pai até regressarem a casa. Ali, depois de
descansarem da viagem, poderia descrever-lhe os seus planos e
solicitar-lhe o seu apoio. Aliás, era urgente e necessário que o fizesse. Mr. Lindsey tinha de saber o
que se passava. De resto, o crescente entusiasmo e excitação
de Jerome estavam já a ultrapassar todos os limites da sua própria vontade.
Então, no próprio dia em que se preparavam para partir, com destino a Riversend, Mr. Lindsey
recebeu uma carta atrasada de Alfred, dizendo que ia voltar para casa
imediatamente, uma vez que estavam terminados todos os assuntos que alio tinham retido durante
tanto tempo.
"Pensei ir eu próprio a Saratoga", escrevia ele, "mas já que Jerome se encontra aí convosco, e como
há certos assuntos urgentes que aguardam a minha chegada, decidi
que Jerome pode fazer face a quaisquer emergências que eventualmente possam surgir. Espero, no
entanto, que nada aconteça, e que tudo corra o melhor possível".
Em face daquela carta, Jerome pensou, para si:
"Bem, o homenzinho cinzento está já de novo no seu posto, e eu vejo-me obrigado a falar com o
meu pai, agora!"
Restavam-lhe apenas quatro horas, até o comboio partir. Mr. Lindsey estava sentado no enorme
quarto que ocupara até ali e esperava a altura de partir com Jerome.
O velho cavalheiro tinha estado a ler os jornais, uma leitura atenta e cuidada como era seu hábito.
Ele e Jerome estavam sozinhos, pois Philip saíra para dar um
último passeio pelos magníficos jardins de Charles Lamb.
"Que bem que o meu filho está agora!" pensou Mr. Lindsey, com tranqüila satisfação. "Pareceu
rejuvenescer anos. Parece um jovem outra vez, cheio de força e vitalidade.
Perdeu aquele
olhar duro, aquele velho cinismo que mais não eram do que sinais de instabilidade. Há nele agora
um ar de entusiasmo e exuberância que eu não lhe via desde que ele
tinha dezoito anos."
Por sua vez, Jerome pensava: "Tenho de falar agora, antes que o inferno rebente." Ergueu os olhos e
sorriu para o pai. Depois, relanceou um olhar pelo livro que
estivera a ler, e disse, desnecessariamente:
- Charles Lamb.
- Ah, sim, Lamb - disse Mr. Lindsey, com um suspiro. Um jovem infeliz!
- Os que dizem a verdade e os que dela se apercebem são habitualmente infelizes - sentenciou
Jerome.
Mr. Lindsey sorriu.
- Estás a tentar dizer-me que és um infeliz? Jerome riu, e respondeu:
- Não! Pelo menos ainda não. Posso ler-lhe umas linhas que escolhi?
O sorriso de Mr. Lindsey tornou-se intencional e quase divertido.
- Jerome, tu nunca foste casual. Podes ler-me essas linhas, se quiseres, e eu tentarei descobrir os
teus motivos escondidos.
Jerome riu-se de novo, e começou a ler:
"Um jardim foi a primeira prisão, até que o homem, com a ferocidade e coragem de Prometeu,
pecou para se libertar dela. A partir de então surgiram a Babilónia, Nínive,
Veneza, Londres, armadilheiros, ourives, tabernas, teatros, sátiras, epigramas, jogos - e tudo isto
penetrou na cidade e neste lado da inocência."
Mr. Lindsey juntou as mãos quase transparentes. O sorriso bailava-lhe ainda nos lábios.
- Então? - perguntou quando Jerome acabou de ler e olhando para ele na expectativa. - Então nós
estamos deste lado da inocência! É isso que queres dizer? Os dias
do "Paraíso" já desapareceram?
- Sim, sim, claro! Mas Alfred não se apercebe disso.
Mr. Lindsey ficou silencioso e subitamente grave. Os seus olhos perscrutantes, de um azul muito
claro, fixaram-se no filho.
- Por outras palavras - continuou Jerome -, Alfred não se apercebe de que a civilização se mudou de
uma catedral para a praça do mercado. Não sabe que já chegou
a época das mudanças. Ele é como o homem que adora o imutável e que cedo descobre que se
transformou num cavador de túmulos.
Ficou à espera, mas o pai não falou.
- Portanto - continuou ele, então -, Alfredo é arcaico.
Mr. Lindsey endireitou o corpo. Levou os finos dedos aboca e ficou a esfregá-los com ar ausente.
Jerome procurou sentar-se mais confortavelmente na cadeira, como alguém que se prepara para
entrar numa conversa agradável e fácil. Num tom meio divertido disse:
- Alfred representa o moribundo conceito agrário, feudal e aristocrático. Acredita que o poder e a
riqueza derivam unicamente da terra. Por esse motivo, tornou-se-lhe
essencial e vital impedir qualquer invasão na nossa comunidade pelo novo espírito industrial que
ameaça o seu empório. E isso porque, inconscientemente, sente-se
vulnerável. Os da sua espécie só podem existir e florescer numa atmosfera de status quo.
Calou-se. Mas Mr. Lindsey continuava silencioso e pensativo.
Jerome continuou:
- Ele não só tem medo do novo espírito industrial - da sua sujidade, confusão, etc. -, como sabe
também que ele é uma ameaça para a sua precária segurança. Enquanto
as coisas permanecerem na mesma, ele terá sempre nas mãos o controle da vida e das
circunstâncias. Sabe, ele sente necessidade de dominar as coisas, precisamente
por causa da sua falta de segurança interior e imaginação. Falta-lhe... um certo sentido de aventura.
Ele sabe que se continuar da mesma maneira, não arriscará nada,
e ele e o Banco (que se tornou uma projecção de si próprio) permanecerão seguros. Ele não se sente
atraído para a expansão nem para o financiamento de novas indústrias
em Riversend, porque, para ele, elas representam difusão; e a difusão, pensa Alfred, dissipará algum
do seu controle apertado, tornando-o menos omnisciente, menos
piedosamente poderoso.
- Ah! - murmurou Mr. Lindsey.
Jerome não compreendeu o sentido daquela exclamação.
- Não concorda? - perguntou, preocupado. Mr. Lindsey retorquiu-lhe:
- Estou interessado na tua brilhante análise de Alfred. Se é verdadeira ou não, não estou ainda
preparado para o dizer. Mas a tua conversa é, como sempre, muito
viva e interessante. Peço-te que continues.
Jerome procurou tirar tanto apoio quanto pôde daquela ambígua resposta, e continuou:
- Bem, então vejamos. Alfred tem a idéia britânica de que o verdadeiro valor reside apenas na terra,
embora até mesmo os britânicos estejam já a mudar de opinião
e a tornar-se industriais. E... é necessário que nós cheguemos lá primeiro, se a América se quiser
transformar no grande império republicano em que eu acredito que
ela se há-de transformar, um dia.
"Durante os anos que passei em Nova Iorque, e em especial desde a guerra, ouvi muitas vezes
discussões entre Jay Regan e os seus amigos. Nessa altura, não me interessava
muito por esse tipo de conversas, e considerava-as, até, cansativas e maçadoras; mas a educação
obrigava-me a escutá-las. Pensei que as tinha esquecido, mas muitas
delas vêm-me agora de novo ao espírito, com pertinente insistência e um significado totalmente
novo.
"Sei agora que aqueles homens já não sonham com a América agrária, um país de pequenas cidades
e vilas, mas na construção de um verdadeiro império industrial. A
época do feudalismo já ficou para trás, não só pelas próprias leis agora criadas, mas pelos próprios
espíritos dos homens. Além disso, a guerra deu o golpe de misericórdia
nesse ideal fora de moda. Imaginei que uma nova democracia estava a surgir, uma democracia
capitalista e industrial, com tantas oportunidades para o indivíduo empreendedor
que era impossível não pensar nelas. A ênfase está rapidamente a passar do jardim para a cidade, do
celeiro para a fábrica."
Mr. Lindsey tossicou, e Jerome calou-se.
- Compreendo - disse, por fim, Mr. Lindsey. - Mas tu e os teus amigos esqueceram-se de uma coisa:
o homem é algo mais do que fábricas. Ele é a vida. Não sei se é
verdade que a América esteja a passar do jardim para a cidade, do celeiro para a fábrica, como tu
disseste. Mas... receio que muitos dos teus amigos se tenham esquecido
daquele facto na sua entusiástica perseguição de... de quê? Lucros?
- Expansão, não apenas da indústria, mas do próprio indivíduo - respondeu Jerome, rapidamente.
Mr. Lindsey esboçou um leve sorriso e retorquiu:
- Numa sociedade agrária, o homem é comparativamente livre. Numa sociedade industrial, receio
que ele se transforme no instrumento de alguns. A terra tem sido o
seu refúgio e a sua protecção. Preocupa-me pensar que as novas ruas se transformem no pátio da
sua nova prisão.
Jerome achou que aquilo era um sentimento obsoleto, e disse:
- Pai, eu vivi em cidades muito grandes. Senti a ânsia, a urgência da expansão e do crescimento,
depois da guerra. Sei que o futuro está na indústria, nos transportes
e na construção, em suma: na expansão e não na concentração. E sei também, agora, que um banco
tem de ser um meio para a aventura, para financiar novas indústrias
e encorajar todas as idéias que prometam um reembolso certo após o investimento, e também uma
mudança na expansão para novos campos, novas invenções, novos empreendimentos.
"Os bancos estão a começar a aperceber-se disso. Mas... o nosso Banco, não. Por causa de Alfred.
Como o pai sabe, ele tem recusado, persistentemente, a implantação
de fábricas em Riversend. Vê as curvas das novas ondas acima da sua cabeça, e fica aterrorizado.
Não é capaz de compreender que será inundado por essas ondas e com
ele a comunidade também.
"Evidentemente, há muitos como ele. E são eles o verdadeiro perigo da América, os homenzinhos
cinzentos, os pequenos habitantes empedernidos que habitam pequenas
torres também de pedra. A América não vai deter-se por eles. Mas... a verdade é que eles podem
prejudicar muito o novo sonho, o novo destino, antes de serem, finalmente,
eliminados. É triste pensar que, ao serem eliminados, arrastarão consigo os outros."
- Como o nosso Banco, por exemplo - disse Mr. Lindsey. Jerome anuiu com um gesto de cabeça, e
disse:
- Sim.
Mr. Lindsey soltou um suspiro e remexeu-se na cadeira.
- Alfred e eu temos tido muitas discussões - disse, depois, Mr. Lindsey um pouco relutante. - Eu sei
que ele acredita que apenas a terra é estável. Alfred acha que
o negócio especulativo e a indústria se constróem apenas com base num sórdido e duvidoso
aventureirismo, sem olharem aos valores sólidos. Diz que são coisas... precárias,
sem raízes fortes e seguras. Prefere algo em que se possa confiar, para conseguir lucros pequenos,
sim, mas estáveis e seguros. Acho... acho que compreendo o seu
ponto de vista.
Mas Jerome estava entusiasmado e, apesar da reserva do pai, sentia no velho cavalheiro um firme,
ainda que escondido e relutante apoio, e concordância com as suas
idéias.
- Eu sei o que está errado em Alfred - disse Jerome. - Foi pobre durante tanto tempo que
instintivamente receia que, por aventureirismo, acabe por perder o que ganhou.
Não tem intuição para nada, nem mesmo para a própria vida, e isso é o que acontece a um homem
que conheceu uma juventude limitada, restrita, cheia de privações.
Eu não me importaria do que ele está a fazer no Banco, e a Riversend, se não me estivesse a
ameaçar a mim também, e a si, e às coisas que o pai criou, há tanto tempo.
Mr. Lindsey sorriu, contra vontade, mas os seus olhos estavam tristes quando fitaram o filho.
- Tu tens medo, não tens, Jerome? Sentes que homens como Alfred ameaçam a tua integridade
interior, a tua individualidade, a tua liberdade, não é?
Pela primeira vez em muitos anos Jerome corou fortemente, ao ouvir aquela análise tão crua e tão
verdadeira de si próprio.
- Ah, sim! - murmurou Mr. Lindsey, como se concordasse com algum silencioso comentário que
tivesse feito para si próprio.
Depois, tornou-se mais vivo, mais alerta, e perguntou:
- Jerome, quais são os teus planos?
Jerome não esperava aquela súbita capitulação, tão interessada e viva. Tinha esperado uma longa e
árdua conversa com o pai, durante a qual teria de quase suplicar
o seu apoio e a sua compreensão. Por isso, não conseguiu fazer outra coisa senão olhar, perplexo,
paraMr. Lindsey, durante longos minutos, com os olhos muito escuros
escancarados de surpresa mas extremamente brilhantes de excitação e prazer. Depois, recobrando da
sua estupefacção, correu a buscar papel e lápis, e falou, gaguejou
na pressa de encontrar as palavras exactas, falando alto, em voz acalorada e apaixonada,
descrevendo algumas das suas idéias. Mr. Lindsey inclinou-se para a frente,
para ver, para escutar. Havia um leve rubor nas suas faces transparentes, um fulgor cintilante nos
seus olhos cansados. Parecia respirar uma vida nova, como se a
sua juventude tivesse voltado de novo, com todas as promessas de aventura, de risco e de
esperanças gloriosas.
No entanto, quando Jerome se calou, e um silêncio electrizante encheu o quarto, Mr. Lindsey
recostou-se na cadeira e permaneceu calado, mas... o leve rubor continuava
a cobrir-lhe as faces.
Por fim, sorrindo misteriosamente, disse:
- Jerome, tu pareces na realidade... convincente. Jerome riu-se, excitado, e retorquiu:
- O pai quer dizer... "plausível", não é? Sempre admirei a precisão das suas palavras. Isso deve-se à
precaução ensinada pela idade, ou simplesmente às boas maneiras?
Mr, Lindsey soltou uma risadinha de satisfação, e retorquiu:
- Bem, eu sempre achei que um homem de boas maneiras é cauteloso. Tem medo de assumir idéias
novas, e põe de lado os desafios contornando-os.
Jerome esperava com impaciência. Mr. Lindsey, fingindo não reparar, olhou para o relógio e disse:
- Acho que já são horas de irmos para a estação, meu rapaz.
Calou-se por momentos. Depois, vendo a excitação e a paixão impaciente de Jerome, piscou-lhe um
olho e disse:.
- Receio que Alfred seja um homem de boas maneiras.
Capítulo trigésimo nono
Mr. William Lindsey tinha-se, havia muito tempo, retirado da vida activa, não só física mas também
mental, como ele próprio reconhecia agora, com desconfortável
consciência. Poderia conceber-se, conjecturava ele, que era impossível que uma pessoa se retirasse
de uma parte da sua própria natureza sem se retirar da outra?
Amava os filósofos da sua Nova Inglaterra, e sempre admirara profundamente a teoria de
"pensamento elevado e vida simples". Retirara-se, como pensava, para um "pensamento
elevado", e acreditara que, ao fazê-lo, tinha adquirido uma vida simples", simplesmente não
fazendo nada.
Mas começava a suspeitar de que a vida simples significava uma vida verdadeiramente árdua,
remetida ao essencial, como um barco que é retirado das suas carreiras
normais. Ela significava o abandono de frivolidades e futilidades enervantes, mas não significava o
abandono da participação na luta. Isso tinha sido o seu erro.
Concluía, por isso, um pouco frustrado, que embora não se tivesse realmente retirado para uma vida
simples, também não tinha feito muito de "pensamento elevado",
apesar dos seus livros e das suas meditações. Tinha substituído, na realidade, a luta pela
contemplação. Não fora Jerome quem dissera, uma vez, que os homens verdadeiramente
perigosos eram os filósofos enclausurados? E seria verdade, como Jerome também dissera, que os
homens enclausurados nos claustros emitiam um fluido paralisante que
enerva os outros homens que vivam perto deles, inibindo-lhes as energias?
"Se continuo nesta linha de pensamento", meditou Mr. Lindsey, "ainda acabo por me convencer de
que sou um vilão, um destruidor, e ou me transformo num fútil ou me
enforco!"
Fosse como fosse, a verdade é que tinha começado a pensar activamente desde a sua conversa com
Jerome, e pelas dolorosas perturbações que experimentava, pelo resmungar
do seu mecanismo mental, enferrujado e emperrado pela falta de uso, acabou por se convencer de
que estava a despertar aos poucos de um longo período de torpor. Muitos
anos tinham passado desde o tempo em que o simples exercício de pensar lhe fazia crescer dentro
de si aquela exaltação e àquele entusiasmo.
"Se o pensar conduz apenas ao desprezo e à mais profunda inércia, é porque tais pensamentos
emanam de mortos-vivos. O verdadeiro pensar estimula o espírito, faz
correr o sangue mais depressa, o coração bater mais ritmadamente, os
músculos a flectir com mais ligeireza e a cabeça a trabalhar com mais energia."
Mr. Lindsey estava a sentir aqueles fenómenos e tudo aquilo era muito agradável, embora bastante
perturbador, com laivos de uma espécie de desespero não de todo
desagradável.
"Há tanto tempo que eu não sentia desespero!", pensou para si próprio. "Sinto-me outra vez novo."
Embora não concordasse com tudo o que Jerome lhe dissera naquela manhã, sentia-se agradecido
ao filho e ao mesmo tempo sentia dentro de si uma nova força, cheia
de vibração e entusiasmo.
Seria possível que aquele seu único filho que tão cuidadosamente cultivara uma reputação de
esbanjador e inconsciente, por irresponsabilidade e extravagância, se
tivesse de súbito transformado num inteligente e fogoso homem de negócios, interessado em
finanças e na indústria, e no futuro da América?
Mr. Lindsey desconfiava, por instinto, de transfigurações súbitas ou mudanças demasiado bruscas e
repentinas de carácter. Lembrava-se de que o filho pródigo não
regressara à casa de seu pai senão depois de se ter deitado com o gado e comido com os porcos.
Nem William Lindsey era tão sentimental que tentasse persuadir-se
de que talvez não tivesse "compreendido" Jerome. Ele compreendia-o muito bem, mesmo
demasiado bem.
"É evidente", pensou, "que por detrás de toda esta miraculosa preocupação pelos outros existe um
medo muito secreto ou um ódio muito forte".
Não acreditava que Jerome fosse ambicioso. Virou-se, portanto, para o medo e para o ódio que
poderiam impulsionar o filho daquela maneira, e aquele pensamento deprimia-o
cada vez mais, à medida que a sua convicção aumentava. Recordou-se do rubor que enchera as
faces de Jerome, naquela manhã, e ficou ainda mais inquieto.
"Não interessa!", dizia para si próprio, procurando controlar-se. "Duvido muito que, se se
investigassem os motivos dos reformadores, salvadores, mártires e cruzados,
não se descobrissem alguns impulsos mais privados e menos puros por detrás dos seus sacrifícios,
trompetas e palavras sagradas."
Depois, disse para si mesmo que era um cínico emersoniano e que embora respeitasse e defendesse,
como Emerson, a integridade do indivíduo, não tinha nenhuma estima
particular pela humanidade em massa, e tinha muito pouca fé nos seus mais nobres e
desinteressados incentivos.
Como todos os pensadores que são perturbados por pensamentos mais realistas, Mr. Lindsey
escondia as suas meditações sob a capa de palavras fátuas. Voltou-se depois
para Jerome e disse, simplesmente:
- Não concordo com todos os teus pensamentos e argumentos, meu rapaz. Mas estou satisfeito por
ver que tens essas convicções. Sabes, quando me disseste, pela primeira
vez, que querias entrar para o Banco, eu tive uma estranha sensação de dúvida.
Sorriu ligeiramente, e disse ainda:
- Receio bem que, afinal, seja também um pouco romântico!
Jerome lançou-lhe um olhar incisivo e furtivo. Estavam a caminho de Riversend, e deviam chegar
em menos de uma hora. Philip estava sentado à frente deles, lendo,
encostado às sujas almofadas do comboio. As janelas abriam para uma paisagem verde escura, um
pouco manchada. A chuva estremecia como uma cortina de prata entre
o céu e a terra, brilhando fraca e hesitante. As nuvens baixas, como novelos espessos e inchados,
lançavam uma sombra cinzenta sobre as colinas, os prados e as correntes
rápidas dos riachos. Mais para ocidente, onde o sol devia ter brilhado, o céu de chumbo pendia
sobre a terra como um escudo de cobre difuso e enevoado.
Mr. Lindsey observou com ternura o perfil arrogante de Jerome, e disse para si próprio.
"Como ele se tornou jovem e quanta vitalidade transpira! Parece ter perdido anos e ter regressado à
juventude. Dá a impressão de que um homem precisa de ter na alma
uma verdadeira obsessão para ser viril. Só espero que ele possa conservar essa obsessão!"
Jerome estava a falar abstractamente:
- Eu devia ter regressado mais cedo.
E, voltando-se para o pai, disse, sorrindo:
- Devia ter sido eu o primeiro a ver Amalie.
O tom da sua voz era displicente e casual, mas os seus olhos observavam atentamente Mr. Lindsey.
Fossem quais fossem as dúvidas que Mr. Lindsey pudesse ter tido no passado, elas desapareceram
agora. Gargalhou um pouco, e disse:
- Ah, sim, Amalie é toda ela uma mulher que qualquer homem deseja. Eu próprio pensei que
infelizmente já não era novo, nem forte, nem ardente. Se, por exemplo, eu
a tivesse conhecido há vinte anos, tu e Dorothea teriam tido uma madrasta, se Amalie me tivesse
aceite.
Depois, pareceu de súbito incomodado.
- Reparaste, Jerome, como ela tem andado pálida e distraída, direi mesmo, ausente nestes últimos
tempos? Dorothea, nas suas cartas, referiu-se a isso, mas atribuiu-o
ao calor intenso que tem feito. Esperemos que a pobre rapariga esteja melhor. Sem dúvida que
também sentiu a falta de Alfred.
Jerome remexeu-se, pouco à vontade. Lançou um olhar rápido a Philip, que, ao ouvir mencionar o
nome de Amalie, erguera a cabeça do livro.
- A mamã está doente? - perguntou ele, alarmado.
- Não, não! - respondeu Mr. Lindsey, com afabilidade.
- Parece que é só por causa do calor. Ficará muito contente por nos tornar a ver, tenho a certeza.
Philip sorriu e Jerome fitou-o, perplexo. com todos os diabos, o rapaz parecia-se, de facto, com ele,
Jerome! Parecia que olhava para um espelho onde se reflectia
o seu próprio rosto de há vinte anos atrás. Philip, sentindo-lhe o olhar, olhou rapidamente para ele.
Jerome, ficou pouco à vontade e voltou o rosto. No entanto,
cruzou-lhe o pensamento uma idéia curiosa: Philip, pelo menos, não o acusaria a ele nem a Amalie.
Philip era o filho de Alfred, mas o seu espírito não era o do pai.
Voltando-se de novo para Philip, pediu-lhe:
- És capaz de me ir buscar um copo de água, por favor?
Philip ficou extremamente agradado. A sua antiga admiração por Jerome, pelo colorido da sua
conversa, pela sua fácil amabilidade e sociabilidade, regressara durante
aqueles últimos dias em Saratoga. Jerome nunca o tratara como um inválido ou um aleijado, como
faziam sempre os outros membros da família. Jerome tinha, também,
uma maneira de olhar, directa e frontal, como quem olha um igual em espírito e capacidade, e o seu
interesse pelos estudos do rapaz, a sua compreensão pela sensibilidade
de Philip, eram genuínas e francas. Assim, Philip ergueu-se rapidamente, afastando a manta e o
livro, e saiu para ir buscar a água.
Jerome voltou-se, então, para o pai e disse, rápido:
- Acho que é algo mais do que o calor o que perturba Amalie. Acho... que ela é infeliz.
- Infeliz? - exclamou Mr. Lindsey, em voz baixa e perturbada. - Mas porquê? Alfred sente por ela
uma devoção autêntica. Ela casou com ele por aquilo que ele lhe
podia dar, e Alfred não lhe tem negado nada. Penso que estás enganado, Jerome. Reparei, até, que
havia entre os dois uma amizade bastante acentuada, depois da minha
doença.
Franziu a testa, preocupado. Recordava-se do rosto de Amalie, dos seus olhos encovados, da sua
lassidão e apatia, e recordava-se agora de tudo isso com uma preocupação
nova e aguda.
Jerome encolheu os ombros, e disse, ainda:
- Todavia, ela é infeliz. Eu sei que aquele casamento nunca se deveria ter realizado. Acho que seria
bem melhor para ambos se os dois se separassem.
Mr. Lindsey ficou furioso e indignado.
- Que disparate, Jerome! Que coisa revoltante estás tu a dizer! O casamento é irrevogável. Amalie é
uma mulher de senso e discreção, e tenho a certeza de que semelhante
pensamento jamais penetrou no seu espírito. Quando tiver filhos, qualquer incompatibilidade ou
diferença entre ela e Alfred desaparecerão.
Estava realmente aborrecido. Olhou para Jerome, fixamente, e perguntou:
- Que estás tu a tentar dizer-me? Amalie ou Alfred deram-te a entender alguma coisa?
- Não, não! Decerto que não! É só um pressentimento meu.
Jerome sentia-se irritado. Pensara poder "alisar o caminho", preparar o pai. Agora via que tinha
perdido muito do que conseguira ganhar e queMr. Lindsey desconfiava
dele.
- Não te intrometas! - avisou-o o velho senhor. - É muito perigoso, e de mau gosto.
- E o bom gosto é sacrossanto! - disse Jerome. Mr. Lindsey sorriu.
- Bem, para um homem civilizado, é um bom substituto para ética, moralidade e religião.
Philip voltou com a água e havia uma expressão de gratidão infantil no seu rosto enquanto
observava Jerome a bebê-la completamente. Jerome foi atraído por aquela
expressão.
- Diz-me uma coisa, Philip, achas que eu posso ser acusado de mau gosto? - perguntou, mais para
afastar a atenção do seu pai do que por qualquer outra coisa.
- Acho que tem um gosto maravilhoso, tio Jerome - respondeu Philip, com um sorriso.
- E eu acho que ele é um metediço! - disse Mr. Lindsey. Mas voltou a sorrir, com menos
preocupação, e repetiu:
- Um metediço frustrado, Philip.
- Também o eram Lutero, Savonarola, John Huss e talvez mesmo Jesus - retorquiu Philip,
timidamente mas com firmeza.
Esta resposta divertiu tanto Jerome que não conseguiu evitar romper em sonoras gargalhadas, e Mr.
Lindsey, depois de um momento de confusão, começou a rir também.
O pesado e húmido entardecer instalara-se já decisivamente quando chegaram a Riversend. Jerome
enviara um telegrama a Alfred, informando-o da hora a que chegariam,
mas a carruagem que os esperava, escorrendo pingos de chuva, não trazia ninguém senão o
cocheiro. Também a estação estava vazia. Apesar do luxurioso verde das árvores,
havia um ar de desolação um pouco por todo o lado naquela paisagem de Agosto. A pequena cidade
parecia ter encolhido, e as luzes das ruas tremeluziam ao sopro forte
do vento.
Mr. Lindsey perguntou ao cocheiro notícias sobre a família. O homem falou com cuidado, pois fora
avisado por Alfred. Miss Dorothea estava de novo fortemente constipada,
e estava retida no leito. Mr. Alfred tencionava vir ele próprio esperá-los, mas fora chamado de
urgência a Horton Hills para um assunto de extrema importância. Mas
voltaria naquela noite. Hesitou quando Mr. Lindsey lhe perguntou por Amalie. A jovem senhora,
disse o homem, com um tossicar de embaraço, não estava muito bem. Mas
Mr. Alfred explicar-lhe-ia tudo quando regressasse.
- Valha-me Deus! - exclamou Mr. Lindsey, deprimido.
- Parece-me que voltamos em má altura.
Sentia-se exausto por aquela pequena viagem. Recostou-se no assento, fechando os olhos,
escutando o bater do seu coração, doloroso e irregular. Uma sombria sensação
de angústia apoderou-se dele.
Jerome estava silencioso. A sensação de angústia que se apoderara do pai era ainda mais forte nele.
Para ele, a paisagem sombria que se estendia à frente dos seus
olhos tinha um ar agreste e inimigo.
Também Philip estava silencioso.
Antes de chegarem à subida que conduzia a Hilltop, passaram pela casa do general Tayntor. O
general gostava de dar longos passeios todos os dias, mesmo quando chovia,
e ia precisamente a entrar no portão da sua casa, quando viu a carruagem dos Lindsey e os rostos
dos ocupantes por detrás do vidro. Deteve-se de súbito, como se
tivesse sido atingido por um tiro, e ficou a olhar para eles com a mão no portão.
- Não é o general? - perguntou Mr. Lindsey, com evidente prazer.
Disse ao cocheiro que parasse e começou a baixar o vidro.
Mas o general parecera regressar à vida. Abriu o portão de rompante, e fechou-o com violência atrás
de si. Depois, viram a sua figura desaparecer na névoa húmida.
- Será possível que ele não nos tenha reconhecido? - perguntou Mr. Lindsey, desistindo de lutar
contra a janela.
O próprio coração de Jerome tinha começado a bater com uma fúria louca. Algo estava errado.
Tinha visto o rosto do general completamente iluminado pela luz do candeeiro.
Fez sinal ao cocheiro para que continuasse, e a carruagem recomeçou a rolar.
- Está muito escuro e enevoado! - disse ele. - Além disso, não havia uma data marcada para o nosso
regresso.
- Mas de certeza que ele conhece a nossa carruagem! protestou Mr. Lindsey.
Jerome começou a falar de outra coisa. Mas.... sentia-se alarmado. Discutia consigo mesmo o
absurdo e a estranheza de tudo aquilo, e apenas sentia a dúvida e a preocupação
aumentarem dentro dele. Fez novo sinal ao cocheiro e abriu o vidro que o separava do homem.
- Tem a certeza de que está tudo bem em casa? - perguntou.
O homem não voltou a cabeça, e chicoteou os cavalos mais violentamente.
- Ora, claro, Mister Jerome - respondeu.
Jerome fechou o vidro de novo. Mas... não tinha ficado satisfeito: todos os seus sentidos estavam
alerta, como soldados ao som das trombetas do inimigo. O rosto
do general bailava-lhe diante dos olhos. Jerome estivera mais próximo do velho e tinha visto nele
fúria, raiva e ódio, uma ameaça recalcada. E tudo aquilo fora dirigido
directa e deliberadamente aos olhos de Jerome.
Jerome não era daqueles que recuam perante a crise. Preferia ir ao encontro dela. Tinha a certeza de
que alguma coisa acontecera em Hilltop. A carruagem subia a
longa encosta. Via-se já a casa lá em cima. Estava tudo às escuras, excepto uma janela donde saía o
brilho fugaz de uma luz. A chuva aumentara de intensidade, e
o vento soprava com mais força. Agora, pelo menos para Jerome, havia qualquer coisa de sinistro
naquela forma escura no topo da colina, qualquer coisa de ameaçador
na frieza e escuridão das suas janelas.
Tentou controlar-se. Algo estava tremendamente errado ali. Não conseguia afastar do seu
pensamento o rosto do general. Teria Amalie falado antes de tempo com Alfred?
Sim, devia ser isso, e o rumor descera até Riversend e chegara aos ouvidos do general Tayntor, pai
de Sally. Mas, se Amalie tinha falado (e, Deus do céu, que teria
ela dito?), Alfred era demasiado discreto, demasiado egoísta, demasiado fútil e orgulhoso para ter
espalhado por todo o lado as notícias de que a mulher estava cansada
dele e desejava deixá-lo.
Uma grotesca imagem de Alfred, esvoaçando por toda a
Riversend, gritando aquelas notícias dolorosas e batendo contra o seu próprio peito, passou pelo
espírito de Jerome. Teve de sorrir perante o absurdo daquela imagem.
Se Alfred fizesse alguma coisa, seria manter a boca calada e fechar-se dentro de si próprio. E
Amalie, com toda a devoção e protecção que dedicava a Jerome, jamais
falaria ao marido daquela noite tormentosa de Maio, nem sequer mencionaria o nome de Jerome a
Alfred. Havia mais qualquer coisa. A imaginação de Jerome, sempre viva,
fantasiava imagens fantásticas, que o seu senso comum imediatamente rejeitava. A menos que
Dorothea tivesse contado tudo a Alfred! Não, Jerome tinha a certeza de
que ela não o faria. Ela haveria de se lembrar nem que fosse no último instante, de que ele era seu
irmão!
Começou a suar, enterrado no seu lugar dentro da carruagem, e recordou-se das palavras do
cocheiro, a propósito de Amalie:
- A jovem senhora não está muito bem.
Era pouco, mas o suficiente para se sentir reconfortado. Amalie encontrava-se ainda em Hilltop. Já
não estaria ali se tivesse dito alguma coisa a Alfred.
Todavia, a apreensão aumentava dentro dele. Quando a carruagem parou junto da porta, precipitou-
se para fora e ajudou o pai a descer, com uma impaciência difícil
de controlar. Abriu depois com violência a porta de casa. A luz da sala de entrada estava acesa. O
relógio batia as oito horas, lentamente, e as badaladas pareciam
ressoar num silêncio sepulcral. Um fogo pequeno ardia na lareira, por causa da humidade, e o ar
estava
quente, abafado. Mas... não se ouvia nada, não se via ninguém. - É bom estar de novo em casa! -
exclamou Mr. Lindsey.
O rosto fino e transparente estava mergulhado numa profunda sombra de cansaço. Permitiu que
Jerome o ajudasse a subir as escadas até ao seu quarto. Houve uma última
vibração no ar quando o relógio bateu a derradeira badalada, e aquela vibração ecoou no silêncio
como uma voz de aviso, aos ouvidos de Jerome.
Não encontraram ninguém no piso superior. Era como se a casa estivesse completamente deserta.
Philip dirigiu-se para o seu próprio quarto, e o calmo fechar da porta
ecoou através do corredor como o ribombar de um trovão. Mas o quarto de Mr. Lindsey havia sido
preparado. Havia rosas nas jarras de vidro em cima das mesas, e o
fogo ardia na lareira. A cama tinha si do aberta.
- Quase parece que não éramos esperados! - disse Mr. Lindsey. - Excepto o meu quarto. Dorothea
deve estar realmente doente. E onde estão todos os outros criados?
- Não se preocupe, eu ajudo-o a despir-se - disse Jerome, com a voz ligeiramente trémula e rouca.
Tinha agora a certeza de que qualquer coisa de muito terrível tinha acontecido, e de novo o suor o
empapou, literalmente, tão grande era a impaciência de sair dali
para fora e enfrentar o perigo e a ameaça que adivinhava no ar.
Puxou pelo cordão da campainha, e disse:
- Logo teremos alguém aqui com o chá para si. E isso faz-me lembrar uma coisa: o comboio chegou
quase com uma hora de avanço. É possível que não nos esperassem senão
dentro de uma hora, mais ou menos.
- Sim, claro! - murmurou Mr. Lindsey, desejando apenas meter-se entre os lençóis frescos, com
perfume a lavanda. - Mas há uma atmosfera curiosa dentro desta casa.
Está completamente deserta. Espero que Dorothea não esteja demasiado doente. Mas, se assim
fosse, o cocheiro ter-nos-iadito.
Jerome ajeitou as almofadas debaixo da cabeça do pai. Mas escutou, atento e alerta. Teria sido a
porta a fechar-se? Houve uma outra vibração no ar, mais forte, mais
ameaçadora. Mas não se ouviram passos na escada.
Mr. Lindsey sorriu para Jerome.
- Tens as mãos tão meigas como as de uma mulher, meu rapaz! - disse, com satisfação.
Ouviram bater à porta. Jerome precipitou-se a abri-la, mas antes que tivesse tempo de a alcançar,
Jim, o seu criado, apareceu no limiar com um tabuleiro nas mãos.
- Jim! - exclamou Jerome, com gratidão e alívio.
O homenzinho estava quase amarelo debaixo do moreno acentuado da sua pele. Manteve os olhos
baixos, fitando insistentemente o tabuleiro que transportava. Avançou
e pousou-o com todo o cuidado na mesa ao lado da cama de Mr. Lindsey. Este sorriu, agradecido, e
disse-lhe:
- Boa noite, Jim. Parece que voltamos em má altura.
Jim teve um sobressalto. As mãos tremeram-lhe ligeiramente quando retirava as tampas dos pratos,
que continham uma ceia deliciosa e requintadamente preparada.
- Sim, senhor, Mister Lindsey! - gaguejou o criado. Má altura, realmente. com doenças e tudo. Miss
Dorothea está de cama, e...
Interrompeu-se bruscamente.
Jerome tinha estado a observá-lo com uma intensidade silenciosa, e também de modo estranho e
intencional.
Jim parecia atormentado, assustado e ainda mais velho. Jerome olhou-o com mais insistência
quando ele serviu o chá a
Mr. Lindsey. Depois, o criado ergueu os olhos para o amo e Jerome leu neles um mudo aviso e um
medo incontrolável. "Ainda não!", parecia ele dizer, desesperadamente.
Jerome moveu-se devagar na direcção da porta, os braços caídos de cada lado do corpo, e os punhos
cerrados. Ficou à escuta. Não havia ainda qualquer som dentro de
casa. Mas... não entrara alguém? Alfred? Se tinha sido ele, por que não subia até àquele quarto, para
cumprimentar o tio? Devia saber que a família já regressara!
Jim deitou açúcar e creme no chá de Mr. Lindsey e perguntou-lhe depois se desejava mais alguma
coisa. com uma voz muito calma, Jerome disse-lhe: - Eu vou mudar de
roupa. És capaz de me trazer também um tabuleiro com qualquer coisa, Jim?
- Sim, claro, Mister Jerome - respondeu-lhe o criado. Deu uns passos na direcção do amo e os olhos
de ambos
cruzaram-se.
"Meu Deus!", exclamou Jerome para si mesmo.
Saiu para o corredor e deteve-se de novo à escuta. Não, nem um som, nem um ruído. Inclinou-se na
balaustrada e espreitou. A porta da biblioteca estava fechada mas
uma réstea de luz escapava-se por debaixo dela. bom então, alguém estava lá em baixo, à espera.
Talvez Alfred? À espera de quê? Sentiu Jim puxar-lhe pela manga do
casaco.
- Mister Jerome, por favor, venha até ao seu quarto, sem fazer barulho! - murmurou o velho criado,
quase sem se fazer ouvir. - Há um grave problema aqui. Mas não
vale a pena precipitar as coisas. Venha! Eu conto-lhe.
Entraram ambos no quarto de Jerome. Nada fora preparado ali. Não havia flores e o lume não
estava aceso. As cortinas estavam completamente corridas. Jim fechou a
porta sem um ruído, aproximou-se depois de Jerome, nas pontas dos pés, e puxou-o até ao centro do
quarto. Agora, o medo espelhava-se fortemente no rosto do pobre
inglês, um medo que depressa se transformou num desespero aterrorizado.
- Eu tentei avisá-lo, senhor. Mandei-lhe um telegrama. Não o recebeu?
- Não - respondeu Jerome, também em voz muito baixa.
- Vamos, conta lá tudo, depressa. Que diabo se está a passar nesta casa?
Fez uma ligeira pausa, e perguntou logo de seguida, sem esperar resposta à sua primeira pergunta:
- Onde está Miss Amalie?
Jim, num gesto assustado, pousou a mão sobre o braço de Jerome, e segredou-lhe:
- Espere um pouco, senhor. Eu já lhe digo.
Afastou-se e foi colar um ouvido à porta. Mas o silêncio continuava a imperar por todo o lado.
Aproximando-se de novo do amo, Jim começou, então, a falar.
- Foi há menos de uma semana, senhor. Eu não sei tudo. Eles fizeram o possível por me esconder o
que se passou. Só sei que a jovem senhora estava muito doente, de
cama, e Mr. Alfred ficou muito assustado. Disse a um dos rapazes que fosse chamar o médico. Isso
foi na segunda-feira, à noite.
- Sim, sim! Por amor de Deus, continua! - exclamou Jerome, impaciente.
O homenzinho retorceu as mãos, nervosamente. O rosto pareceu ficar-lhe acometido de violentos
espasmos.
- Eu não sei bem, senhor. Tentei escutar, mas não consegui perceber nada. Só sei que o médico veio
logo no dia seguinte, pela manhã. Eu vi-o, mais tarde, ir-se embora.
Depois, no quarto de Miss Amalie ouvi-a gritar. Eram gritos que metiam dó. Não consegui ouvir
mais nada, embora me pusesse à escuta. E depois, ao fim de um bocado,
ouvi Miss Dorothea entrar no quarto e falar com Mister Alfred. Mas era tudo muito confuso.
Falavam baixo e eu não podia ir lá até à porta ouvir o que diziam, porque
todos os outros estavam também à escuta, e andavam, para cima e para baixo nas escadas das
traseiras, espreitando para a entrada, cochichando uns para os outros,
entrando e saindo da cozinha, a ver se apanhavam alguma coisa.
- Ouviste Miss Amalie gritar? - perguntou Jerome. Sabes porque é que ela estava a gritar dessa
maneira?
Jim abanou a cabeça.
- Foi tudo o que consegui ouvir, Mister Jerome. Mas vi Mister Alfred, mais tarde, e juro-lhe que ele
parecia a própria morte, senhor, isso é que ele parecia. Andava
como um fantasma. Nem foi ao Banco. E não voltou a pôr lá os pés, ainda. E Miss Dorothea só
ontem se deitou. Mas antes disso qualquer coisa aconteceu, e de muito
grave.
Abanou de novo a cabeça, e continuou:
- Disseram que Miss Amalie estava de cama, doente, e era Miss Dorothea que lhe levava a comida,
indo depois também buscar o tabuleiro, e fechava sempre a porta à
chave quando saía.
Jerome inspirou fundo, como se tivesse dificuldade em fazer com que o ar lhe entrasse nos pulmões.
O coração batia-lhe tão depressa que teve a sensação de que ele
acabaria por lhe saltar pela boca. Uma fúria terrível crescia dentro dele, e uma névoa macilenta
começou a bailar-lhe diante dos olhos.
Mas Jim recomeçara a falar, ainda num sussurro:
- Então, há dois dias, Mister Alfred levou Miss Amalie de casa, na carruagem pequena.
Jerome agarrou ansioso no braço de Jim e perguntou-lhe:
- Onde é que ela está?
Mas Jim abanou a cabeça, num gesto pesaroso, e respondeu:
- Isso não sei, senhor. Ninguém sabe. Tem havido muitas conversas, e dizem-se por aí muitas coisas,
mas a verdade é que ninguém sabe onde ela está. Nem mesmo lá
em baixo, na cidade. Mister Alfred foi ver o general Tayntor. Foi uma das raparigas que nos disse. E
é tudo. Disse-lhe tudo o que sei, Mister Jerome.
Jerome ficou em silêncio, olhando raivosamente à sua frente. A sua rápida imaginação preenchia as
lacunas da narrativa de Jim.
- Estiveram aqui os advogados de Mister Alfred também, e estiveram todos fechados na biblioteca.
Isso foi a noite passada.
Jerome olhou para a porta. Afastou Jim do caminho, num gesto violento. Saiu do quarto, desceu
rapidamente as escadas não fazendo qualquer esforço para abafar o ruído
dos seus passos. Chegou à porta da biblioteca e abriu-a de rompante.
O lume estava aceso ali também. E ali estava Alfred, de pé diante da lareira, de cabeça inclinada
para a frente. Tinha estado fora de casa, pois o chapéu alto, as
luvas e a bengala estavam em cima de uma mesa. Ouviu Jerome entrar. Viu-o fechar a porta. Tinha
o rosto cinzento e retorcido. Mas quando fitou Jerome os seus olhos
cor de avelã pareceram soltar chispas de ódio, embora não fizesse um só movimento, nem
pronunciasse uma palavra sequer.
- Onde é que está Ámalie? - vociferou Jerome, avançando na direcção do primo.
De súbito, deteve-se e os dois homens olharam um para o outro, em silêncio, um silêncio que se ia
tornando mais ameaçador e mais pesado a cada segundo que passava.
Mr. Lindsey, jazendo quase inerte contra as almofadas, ergueu de repente a cabeça, assustado. Tinha
ouvido os passos apressados de Jerome pelas escadas abaixo, como
se o filho as descesse a quatro e quatro, logo seguidos pelo fechar da porta da biblioteca. Deixou
cair a cabeça para trás, mas um estremecimento gelado começou
a percorrer-lhe o corpo frágil e o coração cansado batia-lhe no peito como um tambor. Atirou as
cobertas para o lado e, com um esforço enorme, enfiou os pés nos
chinelos e Vvestiu o roupão.
Capítulo quadragésimo
Os advogados de Alfred tinham-no avisado bem, e com uma argúcia realista, e Alfred, passados os
primeiros momentos de amarga revolta e de frustração, acabara por
os escutar.
- Lembre-se, Alfred - dissera-lhe um deles -, que Jerome Lindsey é o verdadeiro filho de Mister
Lindsey e que, apesar de tudo, o sangue é sempre mais espesso do
que a água. Tenha cuidado. O jovem Lindsey conseguiu cair nas boas graças do pai. É o que corre
na cidade, pelo menos. Está firmemente apegado ao Banco, agora, e
tem amigos poderosos, não só em Riversend mas também em Nova Iorque. Não foi você mesmo
que nos disse que Mister Jay Regan é um deles? E não nos disse também que
Mister Regan revelou o mais profundo interesse por ele, quando você esteve agora em Nova
Iorque? Tenha cuidado!
- É certo que sofreu a maior provocação que um homem pode sofrer na sua vida - tinham-lhe dito,
ainda, os advogados.
- Se perder a cabeça completamente, terá a seu lado uma simpatia e compreensão consideráveis.
Mas a simpatia não dura muito. Se, ao fim de todos estes anos de trabalho,
você perder o seu lugar no Banco, os seus amigos, compreensivos e simpáticos, em breve se
afastarão de si. Essa mulher, a sua mulher, traiu-o. Certo. Mas ela não
o "envergonhou", como você teima em repetir. Ela apenas se envergonhou a si própria. Quanto mais
depressa a esquecer, melhor. Quanto menos violências e recriminações
fizer, mais depressa recuperará o apoio do velho senhor. Mantenha sempre bem presente que
Jerome Lindsey é o filho dele. Não lhe estamos a dizer que continue a manter
relações de amizade com o homem que o enganou. Isso excederia qualquer natureza humana. Mas
os ajustamentos virão depois. Há sempre a possibilidade, também, de que
ele acabe por chegar à conclusão de que a sua posição dentro desta comunidade é insustentável, e se
você se souber controlar, é muito possível que seja o próprio
Mister Lindsey a mandá-lo embora. Afinal de contas, ele enganou-o, e Mister Lindsey é um homem
de honra. O seu forte é a dignidade e o silêncio. Esta é a sua casa,
a sua comunidade. Se souber dominar-se, conquistará a admiração dos seus amigos!
O forte, ainda que escondido, egoísmo de Alfred, as suas cautelas, a sua desmedida ambição
avisaram-no de que os advogados tinham razão naquilo que diziam e aconselhavam.
Mostrou urgência em arrumar com o divórcio. Entregaria a Amalie dinheiro, uma pequena quantia,
claro, mas suficiente, com a condição de que ela deixasse a cidade
imediatamente após o divórcio. Os advogados tinham fixado o montante em
quinhentos dólares. Iriam fazer com que o divórcio se resolvesse rapidamente, e fariam tudo para
que houvesse o mínimo falatório possível. É claro que haveria sempre
conversas e rumores, mas a única coisa que ele tinha que fazer era, como já lhe tinham dito, manter
a sua dignidade e o seu silêncio.
Eles, e Alfred também, tinham deixado de fora os considerandos acerca daquele primeiro encontro
com Jerome.
Os advogados, habitualmente tão perspicazes, tinham também deixado de fora dos seus cálculos o
facto de que Alfred tinha pela mulher uma profunda e desmedida paixão
que só um homem silencioso e reservado pode albergar, e cuja força ele não conseguiu dominar.
Eles desconheciam em absoluto a compaixão que Alfred sentia por Amalie,
a terrível angústia que o devassava de cada vez que pensava nela. Desconheciam completamente
que ele criara para si próprio uma teoria, nascida do seu amor e da
sua egoísta autoprotecção, segundo a qual Amalie tinha sido mais inocente do que culpada em tudo
aquilo, que ela fora seduzida e não a cúmplice voluntária na sua
desonra.
Todavia, o conselho dos advogados havia sido recebido por ele com mais calma e racionalidade do
que eles tinham esperado. ; Se Jerome não tivesse voltado, se, na
verdade, ele não tivesse irrompido para o seu primo com um aberto desafio,-perguntando-lhe por
Amalie, Alfred poderia, talvez, ter agido em total conformidade com
aquilo que os seus advogados lhe tinham aconselhado.
Mas quando ele viu Jerome à sua frente, quando lhe viu o rosto moreno e arrogante, os olhos
enfurecidos, aquela atitude de raiva e de brutal desrespeito para com
o homem que tinha enganado, todos os conselhos dos advogados se perderam.
Por um momento terrível, Alfred viu a essência de todos aqueles anos com o primo. Sentiu, numa
condensação viva, o seu antigo e secreto ciúme e inveja, as torturas
que o desdenhoso Jerome lhe tinha incessantemente infligido, os receios constantes que o tinham
assaltado naqueles últimos meses. Mil cenas passaram, velozes, diante
dele, e ouviu o gargalhar de Jerome ecoar desde a juventude de ambos, um riso cruel,impiedoso,
brutalmente genuíno. Surgiram vivos na sua memória todos os insultos,
todas as provocações acerbas; todos os olhares de divertido desafio, todas as palavras
deliberadamente viscosas, todo o ridículo que com ele sofrera.
Mas todas estas coisas foram apenas a chispa que fez soltar o fogo nos seus pensamentos
desordenados que lhe varriam o cérebro, todos os seus pensamentos viris,
todo o seu ciúme violento e ódio assassino.
Aquele era o homem odiado que tinha feito dele, Alfred, o
homem de quem todos se ririam, aquele homem fora o que tinha posto as mãos sobre a carne nua de
Amalie, que a tinha beijado, que se tinha deitado com ela... Amalie,
a sua mulher! Aquele era o homem que tinha infligido o pior e mais odioso dos enganos que
qualquer homem pode inflingir a outro, um engano que chocava letalmente
com tudo o que torna orgulhoso um ser humano: a sua dignidade, o seu respeito próprio, o seu
sentido de posse, o seu individualismo protegido, a sua integridade,
a sua plenitude.
Não havia motivos nenhuns, agora, para que Alfred tivesse cuidado. O homem primitivo, erguendo-
se pesada e ameaçadoramente por debaixo de todas as pedras da civilização,
convenções e interesses próprios, que cuidadosamente fora empilhando sobre si, ficou ali, nu e
terrível, na pessoa de Alfred. E foi esta criatura despida de atavios
e preconceitos, que fez com que Jerome se detivesse de súbito, e olhasse para o primo com a
consciência aguda e crescente da presença de qualquer coisa que provavelmente
tentaria matá-lo. Sim, a voz dentro de si dizia-lhe muito claramente:
"Ele matar-te-á, se puder!"
A primeira emoção de Jerome foi a incredulidade. Por mais absurdo que fosse, a verdade era que
nunca tinha pensado de Alfred senão como uma figura apagada e ridícula,
o homem de negócios sem imaginação nem criatividade, imune às paixões dos que possuíam
naturezas mais vivas e brilhantes.
Alfred era, apenas, um obstáculo maçador. Mas... via agora, com crescente incredulidade, que ele,
Jerome, era um louco, e que aquela sua loucura lhe poderia custar
a vida, por mais ridícula que essa idéia pudesse parecer. Era, então, realmente possível que aquele
homem de rosto grave e taciturno e de olhar selvagem tivesse
amado Amalie com uma paixão abominável mas muito poderosa, e que ele fosse bem capaz de um
violento ciúme masculino, e dos excessos que esse ciúme mantinha em potencialidade.
Olharam um para o outro através do pequeno espaço que os separava, e Jerome pensou:
"Ele está louco."
O pensamento foi frio, claro e rápido, e outro se lhe seguiu:
"Ele é mais forte do que eu, e mais duro, embora seja mais velho. Além disso, há a minha perna!"
Esqueceu Amalie pelo puro instinto que desperta num homem quando a sua própria existência está
ameaçada. Conseguia apenas olhar para Alfred, com intenso alerta e
cálculo. Alfred não fizera um único movimento. No entanto, cada fibra do corpo de Jerome
estremecia e vibrava ante a consciência de
que a morte estava, muito possivelmente, apenas a alguns centímetros. O rosto de Alfred quase não
tinha expressão. Eram os seus olhos que prendiam a atenção fascinante
do primo, e foram esses olhos que deram a Jerome a primeira sensação de verdadeiro terror na sua
vida.
Continuava sem poder acreditar. Não conseguia aceitar o facto de que naquela sala, onde tinha
passado a infância e a juventude ele pudesse morrer às mãos de um homem
que sempre desprezara. Reconhecia o terror que crescia dentro de si, com toda a força e o vigor de
uma coisa nova, pois nem mesmo na guerra o sentira, nem antes.
Por sua vez, Alfred olhava para Jerome. Não se apercebia do medo puramente animal que oprimo
sentia. Via apenas aquele rosto, ligeiramente erguido, o duro contorno
do queixo atirado para a frente, os olhos semicerrados e penetrantes que nem por um instante se
afastavam do seu próprio rosto. Via que os músculos em redor daquela
boca insolente estavam rijos e esticados como cordas. E depois, de súbito, soube que Jerome tinha
medo.
Ele tinha medo, aquele homem malvado, aquele canalha, aquele homem odioso e nojento tinha
medo! Tinha medo, pela primeira vez na sua vida, medo dele, Alfred Lindsey.
Alfred disse:
- Ela vai ter um filho teu!
Jerome não falou. Não se deixou enganar pela voz calma de Alfred. Olhou de relance para o lado,
em busca de uma arma com que se pudesse defender. As palavras de
Alfred não chegaram à sua consciência. Na realidade, mal as ouviu.
Alfred reparou naquele olhar furtivo, e seguiu-o com os seus próprios olhos. Viu a sua pesada
bengala, em cima da mesa, e foi mais rápido. Como um relâmpago, estendeu
a mão, agarrou-a, e, antes que Jerome se conseguisse desviar ou mesmo erguer um braço, Alfred
desferiu-lhe uma violenta e selvagem pancada no rosto.
Jerome cambaleou, erguendo agora o braço para se proteger. Não sentia a dor, mas a violência da
pancada deixou-o quase inconsciente. Ouviu um rugido junto aos ouvidos,
a vista turvou-se-lhe, e, por entre as névoas, viu Alfred avançar para ele. Viu o braço do primo
erguer-se outra vez, e outra, e não sentia as pancadas que lhe fustigavam
o corpo.
Teve um único pensamento: fugir. Sabia agora que se não conseguisse escapar, se ninguém viesse
em seu socorro, morreria.
Ao longe, na semi-inconsciência nublada da sua mente, ouviu um grito, uma confusão de gritos.
Deixou de ver Alfred. Parecia-lhe flutuar numa semiescuridão e pela
primeira vez teve
consciência de uma profunda agonia. Sentiu-se empurrado para o ar, nadando, vogando e viu diante
dele uma nuvem de escuridão que se aproximava mais e mais, espalhando-se
sobre ele, envolvendo-o. Por fim, a sombra engoliu-o, e ele mergulhou nela, longe da agonia da sua
própria carne.
Só no dia seguinte, quando acordou, soube que o pai, impelido por um misterioso instinto qualquer,
saíra da cama, descera as escadas e tinha de facto, com o seu
aparecimento, com os seus gritos, salvo a vida do seu filho.
Capítulo quadragésimo primeiro
Mesmo que Amalie tivesse sido fisicamente capaz de passear pela propriedade dos Hobson, o
tempo não teria permitido tais excursões. Os primeiros dias de Agosto estavam
invulgarmente frios e húmidos, cheios de um brilho verde e sepulcral. O céu tenebroso estava cheio
de nuvens cinzentas, raiadas de veios escuros, e a terra parecia
constantemente empapada.
Das pequenas janelas do quarto que ocupava, Amalie via os prados húmidos, o gado deambulando,
melancólico, por debaixo das árvores vergadas pelo peso da água, os
contornos enevoados dos montes distantes. Mas, à medida que os dias iam passando, Amalie
tornava-se também mais febril e inquieta, sem conseguir dormir, mais susceptível
e mais nervosa.
Mal se apercebia da presença dos Hobson, embora sorrisse, triste, paraMrs. Hobson e para os filhos
do casal, quando os via. As refeições eram-lhe servidas no quarto.
Se as suas emoções fossem menos intensas e se os seus pensamentos e sentidos não fossem
permanentemente arrastados para fora daquele local, ter-se-ia apercebido
de que vivia em total isolamento e que os Hobson evitavam qualquer contacto com ela. Na verdade,
eles haviam recebido ordens bem precisas: Mrs. Lindsey, deveria
ser mantida afastada de tudo e de todos, não lhe eram permitidas visitas, não podia sair da quinta e
não devia conversar com ninguém. A sua presença no meio daquela
família devia manter-se em segredo, pelo que ninguém, absolutamente ninguém podia saber que ela
se encontrava ali.
Se os Hobson receavam, a princípio, que Amalie lhes fizesse qualquer pergunta, ou que se revelasse
incomodada ou intratável, acabaram por concluir que ela não lhes
dava o mínimo motivo para isso. Passava os dias sentada àjanela, sem dormitar nem ler, mantendo
apenas os olhos fixos lá ao longe, na estrada tortuosa que conduzia
à cidade.
Amalie contava, e os dias iam passando.
"Hoje", disse para si própria, "Jerome regressou de Riversend. Que estará a acontecer ali! Ele ficará
a saber, contar-lhe-ãotudo".
Estremeceu e procurou não imaginar a cena que estaria naquele momento a decorrer em Hilltop.
"Amanhã ele virá. Ou depois de amanhã, o mais tardar!"
Nem sequer lhe ocorreu que Jerome pudesse desconhecer em absoluto o seu paradeiro.
Sexta-feira chegou. E acabou na tarde escura, com uma trovoada tremenda. Durante a noite, Amalie
não conseguiu, sequer, dormitar. Ficou estendida no leito, tremendo,
os olhos doloridos fitos nas janelas. Escutava o vento e a chuva e o apito distante do comboio da
meia-noite. Quando a madrugada chegou, estava prostrada, mas, ainda
assim, obrigou-se a vestir-se, arranjou os bandós e as tranças do cabelo, e sentou-se de novo à
janela. Ele viria hoje, de certeza.
Mas o dia passou, as horas arrastando-se lentas, umas após outras. Os tabuleiros da comida ficavam
em cima do toucador, sem que ela lhes tocasse. A sua respiração
cobria as janelas do quarto frio com vapor, que ela esfregava com os dedos gelados. A estrada
transformava-se num lago de lama castanha... e continuava vazia. Quando
a noita baixou, ela ainda estava ali, olhando fixamente lá para fora. Bill Hobson, que se dirigia para
os celeiros, viu-lhe o rosto branco e imóvel, os olhos que
fitavam o espaço para além dele, e assustou-se. Aquele rosto parecia o de um fantasma, disse depois
para a mulher, preocupado.
Nem entre eles tinham ousado fazer perguntas. Mas agora a surda indignação das gentes do campo
começava a despertar dentro deles. Algo estava errado. Algo acontecera
a Mrs. Lindsey. Não iam muitas vezes à cidade, e tinham sido avisados de que não deveriam falar.
Alfred estava a pagar-lhes vinte dólares por semana, para que eles
cuidassem de Amalie. Era uma quantia muito grande, e um homem não discute perante quantias
grandes, mesmo quando velhas lealdades e antigas afeições remexem ainda
lá dentro.
Mas... os Hobson deviam muito a Amalie. Ela tratara deles na doença, tinha impedido que a quinta
lhes fosse tirada, tinha-lhes dado quase metade do seu magro salário
quando eles haviam necessitado de ajuda médica e de roupas para se vestirem. Amalie sentara-se
junto deles, na pequena mas limpa salinha, tinha-lhes ajudado o filho
mais velho, um rapazinho inteligente, ajudara Mrs. Hobson a tratar dos outros filhos mais pequenos,
e tinha cosido as roupas para eles e para si própria. Lembravam-se
de como ela costumava ir aos celeiros com Mr.
Hobson cantando, ajudando-o a ordenhar o gado, enquanto a mulher estava doente. Tinha cavado as
batatas, ajudara-os na ceifa e nas sementeiras. Tinham-na amado,
e ela amara-os, também.
Agora, para ali estava, sentada no quarto, uma imagem de desespero, sem falar, apenas olhando
para eles com ar ausente e olhos encovados, onde o violeta, outrora
ardente e cintilante, parecia desmaiar a pouco e pouco. Quando falava, fazia-o num sussurro quase
inaudível. Sabiam que ela ficava à anela horas a fio. Por quem
estaria ela à espera? Pelo marido?
Os Hobson odiavam Alfred, e sentiam por ele um verdadeiro terror. Lembravam-se da sua
expressão carrancuda, da voz dura com que lhes falara, das ordens peremptórias
que lhes dera. Sim, havia qualquer coisa de errado com Mrs. Lindsey, e ela estava a morrer aos
poucos dentro daquele quarto. Mas não sabiam o motivo, nem o que haviam
de fazer.
No sábado à tarde, Mr. Hobson foi à cidade. Voltou mais cedo do que o habitual e chamou pela
mulher, horrorizado. Meteram-se os dois no quarto onde dormiam, e ficaram
por ali a cochichar durante mais de uma hora. Por uma ou duas vezes, Mrs. Hobson deixara escapar
uma exclamação abafada de surpresa e de pena. Mas Amalie não ouviu
nada, e aqueles seus amigos também não se atreviam a contar-lhes as notícias.
- E por isso vai ter que ficar aqui até ele se ver livre dela! dizia Mr. Hobson à mulher. - E depois...
ainda isto! Foi uma sorte o tipo não ter sido assassinado...
E o pobre do pai, coitado!
Mr. Hobson estava perplexa e revoltada. Sentia, é certo, uma aversão natural e rude pelo "pecado"
de Amalie; mas isso fora imediatamente afastado pelas notícias
que o marido lhe dera a seguir.
- Acho que ela está à espera dele! - disse a boa mulher, abanando a cabeça. - E ele não sabe onde ela
está, nem podia vir agora... pelo menos, não por enquanto.
Achas que lhe podíamos dizer?
- Não. Não lhe podemos contar nada. No estado em que ela está...! É melhor deixar as coisas
correrem o seu curso.
Mas Mr. Hobson, que era um homem calado e taciturno, começou a arquitectar um plano.
Amalie voltou a sentar-se à janela no domingo. Ao fim de muitos dias, o sol surgiu com um brilho
pálido, lançando uma luz fraca e indecisa sobre os prados e as colinas.
Escutou o repenicar dos sinos, na cidade. Olhou a estrada caracoleando até
Riversend, surpresa ainda de uma névoa esbatida e fraca; mas nem um só vulto surgiu. Ficou ali
toda a noite, vigiando, sem saber que Mrs. Hobson hesitava à entrada
da porta, esfregando as mãos num desespero de impotência.
Um nevoeiro escuro abateu-se sobre os olhos de Amalie, e ela não foi capaz de se libertar dele
durante longos instantes. Quando, finalmente, conseguiu emergir daquela
escuridão cinzenta, ficou espantada por ver que o sol estava a brilhar quando ainda poucos minutos
antes era noite cerrada. A manhã de segunda-feira surgira.
Mrs. Hobson entrou no quarto com um jarro de água quente e toalhas frescas e limpas. Amalie
voltou a cabeça, lentamente. Mrs. Hobson viu-lhe o rosto fantasmagórico,
as faces encovadas onde uma sombra agoirenta se fora acentuando, dia após dia, os olhos vazios e
inchados.
Não conseguiu dominar-se.
- Mistress Lindsey! - exclamou. - Não pode continuar assim! Ele há-de vir! Vai ver!
Depois, levou precipitadamente a mão à boca, aterrorizada com as suas próprias palavras. Amalie
abanou a cabeça.
- Não! - murmurou. - Ele não vem! Eu sei.
Pôs-se de pé, num esforço quase sobre-humano, e cambaleou como uma mulher vergada pelo peso
dos anos e da doença. Mrs. Hobson apoiou-a e ajudou-a a deitar-se. Lavou-a,
depois, carinhosamente, enquanto as lágrimas lhe corriam pelo rosto duro de aldeã, tisnado pelo sol.
- Ele virá, vai ver! - dizia uma vez e outra.
Mas Amalie respondia-lhe apenas com um sorriso triste, afastando o cabelo negro com as mãos, que
lembravam as de uma defunta.
Recusou-se, no entanto, a ficar na cama, e Mrs. Hobson ajudou-a a vestir-se e a escovar o cabelo.
Foi depois de persistentes rogos e súplicas da pobre mulher que
Amalie acedeu a comer um pouco de pão e a beber uns golos de café quente. Depois, voltou a
sentar-se à janela, o rosto encostado ao vidro, os braços amparados no
parapeito. Os olhos fixavam-se, absortos, na estrada.
Não pensava. Toda a pressão do seu pensamento exausto fixava-se em Jerome e na estrada pela qual
ele havia de chegar. Não tinha consciência das horas nem das vozes
murmurantes do agricultor e da mulher. Nada existia para ela, a não ser aquela estrada que conduzia
a Riversend.
"Agora, já não vem!", pensou vagamente. "Deve ter chegado na sexta-feira, o mais tardar. Se
quisesse vir já o teria feito há
três dias. Ele prometeu-me. Ele disse que me amava. Mas mentiu. Agora só quer esquecer-me."
Viu uma mancha lá ao fundo da estrada, serpenteando. Inclinou-se para a frente, para ver melhor.
Sim, era uma charrete! Viu que o sol brilhante se reflectia no dorso
do cavalo. Ergueu-se da cadeira, com um soluço abafado na garganta.
- Jerome! -exclamou agitando as mãosjunto à janela. Mas logo reparou que aquela charrete lhe era
estranha, e
ficou ali, olhando sem ver.
Um homem baixo e idoso desceu à esquina da casa. Reconheceu-o. Era Mr. Eli Kendricks, um dos
advogados de Alfred. Caminhava na direcção da porta, com uma pasta na
mão, o fato castanho muito apertado, em redor da sua figura orgulhosa. Amalie puviu-o falar com
Mrs. Hobson, e depois escutou os seus passos firmes na escada.
O homem entrou, afivelando um sorriso grave. Viu Amalie voltar-se para ele, lentamente. As
palavras formais que preparava para a cumprimentar morreram-lhe na garganta.
"Meu Deus! Apobre criatura está a morrer!", pensou.
Mas havia trabalho para fazer, e não era homem para se perturbar ou compadecer com o sofrimento
de um réu. Aclarou a garganta, enquanto pousava a pasta. Desejaria
que ela não voltasse para ele aqueles olhos... esfomeados, suplicantes, desesperados.
"Quer saber notícias daquele bastardo!", pensou. "Parece que tem estado à espera dele."
Fazendo com que a voz lhe saísse o mais fria possível, disse então:
- Mistress Lindsey, o seu marido enviou-lhe alguns papéis para a senhora assinar.
Abriu a pasta e remexeu dentro dela, para logo retirar um molho de documentos.
- É apenas uma formalidade. Poderá lê-los se quiser, e assinar depois.
Colocou um frasco de tinta e uma caneta sobre o toucador de Amalie, e estendeu-lhe os papéis,
tentando dominar aquela piedade nada profissional que o arrastava.
Mas Amalie abanou a cabeça, e disse, num tom muito débil:
- Está tudo bem. Não preciso de os ler, mas assiná-los-ei.
- Não pode ser, Mistress Lindsey - retorquiu o advogado, com falsa rispidez. - A lei é uma coisa
muito peculiar. Terá de os ler. Mas pode dar-lhe só uma leitura
rápida, uma olhadela.
Ela estendeu a mão trémula, pegou nos papéis, obedientemente, e tentou lê-los, mas apenas uma ou
duas frases chegaram ao seu consciente.
"... reconhece e admite que a criança que irá ter não é filha do seu marido, Alfred Lindsey, de
Hilltop, Riversent, N. I. .. recusa-se a divulgar o nome do seu cúmplice...
concorda em não contestar o proposto divórcio..."
Sem a satisfação que sentira anteriormente, Mr. Kendricks pensou para si mesmo que aquilo era
uma coisa horrível para a pobre criatura. Ele e o sócio tinham discutido
o assunto com Alfred, em todo o pormenor. Era melhor para a família, para a sua reputação, manter
o nome de Jerome fora daquela embrulhada. Quanto menos se dissesse,
mais depressa tudo ficaria concluído. Fosse como fosse, o imundo diabo tinha recebido o seu
castigo, com o espancamento que sofrera, e o pai... Era melhor deixar
o assunto morrer por si. Concluir o divórcio, mandar embora a mulher, e que o diabo a levasse.
Cerrar fileiras. Havia o Banco a ter em consideração, e Master Philip,
e Miss Dorothea.
Mas Mr. Kendrics, para seu grande horror profissional, descobriu que já não desejava que "o diabo
a levasse", e que Amalie fosse para sempre esquecida. Exercia aquela
profissão havia tantos anos e aquela era a primeira vez que desperdiçava compaixão por um
culpado.
Então, para seu grande espanto, viu que Amalie sorria. Era como uma luz frouxa naquele rosto
esmaecido, aquele pobre sorriso.
Ela dizia:
- Estou tão contente!
E ele soube que ela estava contente porque o nome de Jerome não tinha sido mencionado como
cúmplice do processo de divórcio de Alfred.
"Que diabos o levem!", pensou o advogado, com a sensação de que Jerome não tinha sido
suficientemente castigado.
Depois, disse em voz alta:
- bom, então vamos assinar os papéis, e eu vou-me embora, Mistress Lindsey.
Calou-se, mas logo de seguida, disse ainda:
- Há só mais outro pequeno assunto. Mister Lindsey entregar-lhe-á mil dólares, imediatamente
depois do divórcio, na condição da senhora deixar Riversend.
A soma fora de quinhentos dólares, mas o advogado, de novo muito fora do seu profissionalismo,
aumentara o montante para o dobro.
- Oh, sim, partirei imediatamente - respondeu Amalie, com uma docilidade que confrangiu o seu
coração duro de homem de leis.
Assinou os documentos, com uma letra trémula e quase invisível. Depois afirmou:
- Mas não quero o dinheiro de Alfred. Diga-lhe isso, por favor.
- Mas... que irá fazer, minha senhora? - protestou o advogado.
Amalie olhou através das janelas, e respondeu, agora com voz mais forte e nítida:
- Eu me arranjarei. Já tive de lutar pela vida sozinha. Lutarei outra vez.
Os ombros endireitaram-se-lhe. Esquecerão advogado. Não via a estrada agora, porque sabia que
Jerome não viria. Não interessava; estava de novo só, como sempre estivera.
Não tinha medo. Levou a mão, lentamente ao ventre. Não, não estava só, e, fosse como fosse,
haveria de encontrar maneira de trabalhar e de ganhar a vida para si
e para o filho de Jerome. Pela primeira vez, pensou na criança que trazia dentro de si, indefesa e
fraca, dependente dela; uma firme resolução e uma vontade de viver
apoderaram-se dela. Haveria de proteger aquele filho. Haveria de lutar por ele e fazer com que nada
de tão terrível como aquilo lhe pudesse acontecer. O seu filho
não seria vulnerável perante a vida como ela o tinha sido.
Mr. Kendricks hesitou ainda. Talvez devesse dar à pobre rapariga uma palavra de encorajamento,
uma esperança. Mas não, era melhor assim.
Amalie estava a voltar-se para ele, e o seu sorriso era agora vivo e consciente.
- Obrigado! -disse ela.
Enlaçou os dedos, e o sorriso morreu-lhe nos lábios.
- Posso fazer-lhe uma pergunta, apenas uma? Jerome Lindsey está em casa... está bem? É só o que
eu quero saber.
Mr. Kendricks sentiu-se incomodado com aquela estúpida pergunta. Respondeu, portanto, de modo
evasivo:
- O... cavalheiro... está bastante bem. Voltou para casa na semana passada.
Amalie ficou em silêncio, mas os seus olhos imploravam-lhe, retinham-noali.
Mr. Kendricks, para evitar aquele olhar patético, baixou a cara e meteu os documentos dentro da
pasta. Depois procurou o chapéu, hesitante, e colocou-o na cabeça.
com voz suave, Amalie perguntou-lhe:
- E Mister Lindsey? Está bem? Ele... ele não ficou muito... muito ferido comigo? E Philip ?
O advogado ficou, de súbito, fortemente ruborizado. Não sabia para onde olhar. Depois, disse
rapidamente:
- Mr. Lindsey está bem... bem... Eu... eu tenho acerteza de que ele lhe perdoou...
Voltou-se abruptamente.
- E agora boa tarde, Mistress Lindsey.
Desceu as escadas tão depressa quanto pôde, e saiu de casa. Saltou para a charrete, virou-a e partiu.
A dado momento, descobriu que estava a suar.
Tinha os documentos consigo. Aquela pobre rapariga não teria necessidade de aparecer em tribunal.
O divórcio seria resolvido da mesma maneira. Ele, Kendricks, estava
contente com esse facto. Não teria suportado vê-la interrogada, desprezada de novo, diante dos
olhos de um tribunal negativo, acusada da mais vergonhosa e baixa
conduta. Mas... que iria ser dela? Era um disparate ela recusar o dinheiro. Deveria aceitá-lo, teria de
o aceitar.
"Dois mil dólares...!", disse o advogado, raivosamente, para si próprio.
Amalie não se sentou, agora, junto da janela. Dirigiu-se para a cama e deitou-se, ficando a olhar
para o tecto, o corpo rígido como o de um cadáver. O divórcio estava
a ser acelerado. Seria pronunciado na quarta-feira, ou seja, no mesmo dia em que era posto em
tribunal. Compreendia porquê. Não tinha qualquer defesa. Teria apenas
de permanecer ali, para o caso de surgirem circunstâncias inesperadas. Era a última coisa que podia
fazer por Alfred. Para o ajudar, para o poupar, de bom grado
apareceria no tribunal, para fazer sua confissão na presença do juiz, dos jurados e de todos os seus
inimigos. Se não surgisse nada que obrigasse à sua presença
ali, poderia partir em silêncio e sem ser vista, e todos a esqueceriam. Tinha compreendido, sem que
ninguém lho dissesse, que a implicação a apresentar ao tribunal
era de que ela se escondera voluntariamente.
Não soube quando a noite caiu. Não soube quando amanheceu. Apenas soube que uma imensa
agonia a tinha invadido, inundando-a com uma dor rápida e fulminante como
um relâmpago. Entre o sofrimento horrível que dela se apoderou, tinha de vez em quando a
consciência da presença de Mrs. Hobson, que a tratava desveladamente. Sentia
mãos que a erguiam e viravam, toalhas molhadas, frescas, sobre a cabeça. Nesses períodos breves
de consciência, sentia apenas que estava tão cansada que não conseguia
mexer a cabeça, e que as sombras se aproximavam dela, vindas de muito longe.
Uma vez ocorreu-lhe um pensamento:
"Estou a morrer!"
Mas... esse pensamento não a assustou.
Por uma ou duas vezes viu a luz do Sol. Depois adormecia, e logo o Sol estava ali de novo, fixo,
imóvel, inalterável. Aquilo surpreendeu-a infantilmente. Mas era
estranho ver Mrs. Hobson e logo deixar de a ver; por vezes via o rosto de Mrs. Hobson transformar-
se no de Mr. Hobson, e depois no rosto de uma aldeã, ainda jovem,
desconhecida, que passava as suas mãos hábeis e firmes pelo seu rosto. Era tudo tão confuso!
As pálpebras estavam pesadas, tão pesadas que mal conseguia erguê-las.
Ao fim de muito tempo, ouviu vozes mais altas, vozes que protestavam, e depois um silêncio forte e
vibrante. Estava alguém no quarto; estava alguém sentado a seu
lado, segurando-lhe na sua mão fria. Sorriu. Voltou a cabeça vagarosamente. Abriu os olhos.
Jerome estava sentado ao lado da cama, olhando para ela. Quando se apercebeu de que ela o vira,
deixou cair a cabeça na almofada e apertou-a contra ele, sem falar.
Capítulo quadragésimo segundo
Amalie sentou-se, encostada às almofadas, e bebeu obedientemente o caldo que Jerome lhe levava à
boca. Estava demasiado fraca para falar, mas quando sorriu para
ele, todo o seu rosto se transformou, ficando radioso e brilhante. Não se cansava de olhar para ele.
Soube, mais tarde, que ele não abandonara aquela casa durante dois dias. com um conforto que a
encheu de alegria, teve a certeza de que quando acordasse, a qualquer
hora, ele estaria ali, quer fosse dia quer à luz do candeeiro. As feições dele foram-se tornando mais
nítidas, até que por fim conseguiu vero seu rosto moreno. Mas
foi só ao terceiro dia que lhe viu a enorme ferida vermelha na testa, e outra já a começar a sarar, na
face. Um dos olhos estava inchado e pisado, e o braço esquerdo
estava metido em ligaduras e talas.
Foi nesse momento que ela voltou por completo à vida, gritando. Ele erguera-a com o braço direito,
e apertava-lhe a cabeça de encontro ao ombro para que ela não
visse. Mas ela lutara com ele, afastara-o com a sua força renovada, tinha gritado acusações contra
Alfred, tinha-lhe pedido, com desesperada súplica, que lhe contasse
tudo.
Mas havia muita coisa que Jerome não lhe podia contar. Disse-lhe que Alfred o tinha atacado, mas
tocou no assunto
apenas ao de leve, pois não conseguia suportar o horror e a angústia que via nos seus olhos.
- Afinal - disse Jerome -, Alfred foi realmente provocado.
Esboçou um sorriso, e disse ainda:
- Podia ter sido pior.
- Mas ele podia matar-te! Jerome encolheu os ombros.
- Duvido. Ele é demasiado cuidadoso consigo próprio. Quis apenas esmagar-me um pouco.
A boca magoada endureceu à recordação daquela noite. Não havia necessidade que Amalie
soubesse todos os pormenores.
Amalie estudou-lhe o rosto, com as lágrimas correndo-lhe pelas faces. Reparou que Jerome estava
muito mais magro e mais pálido, como ela nunca o vira, nem mesmo
durante aqueles dias de Fevereiro em que o pai esteve à morte.
- Ele apanhou-me desprevenido - disse Jerome, com um natural orgulho masculino. - Atingiu-me
antes de que eu me apercebesse do que ele ia fazer. Se assim não fosse,
eu também o teria deixado um pouco mutilado.
Sentiu-se um pouco satisfeito por ver que Amalie se encontrava ainda demasiado enfraquecida para
se aperceber de todas as implicações daquilo que tinha para lhe
dizer. Soltou um suspiro e olhou para o casaco negro que o cobria.
Disse-lhe que o divórcio tinha sido pronunciado três dias antes.
Disse-lhe que não soube logo onde ela se encontrava. Mas não lhe contou que durante três dias não
tivera consciência dela, com clareza, e que durante esses três
dias vivera num inferno de dor, sofrimento e desespero.
Tinha mandado Jim à cidade, em busca de notícias de Amalie. Jim descobrira que Amalie não tinha
apanhado qualquer comboio em Riversend; ambos concluíram que ela
se devia encontrar algures nas proximidades. Todavia, nenhuma das pessoas a quem Jim
discretamente fizera perguntas, sabia do seu paradeiro. Jim e Jerome tinham
discutido o assunto minuciosamente, durante horas e horas, eliminando hipóteses, tecendo
conjecturas. Por fim, Jim fora abordado numa rua de Riversend por Hobson,
que o puxara para o lado, lançando duvidosos e assustados olhares à sua volta. Jim fora autorizado a
ver Amalie, mas ela não o havia reconhecido.
- Febre, escaldavas em febre.
Jim voltara imediatamente para junto de Jerome com as notícias.
- Eu não pude vir logo - disse Jerome, afastando o rosto
do de Amalie. - Eu... eu ainda não estava capaz de me mexer. Ordens do médico. O meu braço
estava partido em dois sítios. O meu rosto tinha sido cosido...
Havia tanta coisa que não lhe podia contar! Tinha de lhe encobrir aquela dor que o devastava, para
que ela não suspeitasse sequer. Depois, quando ela já estivesse
um pouco mais forte...
Mas disse:
- A casa é nossa, se tu quiseres. Alfred e Philip foram-se embora. Estão a viver, temporariamente, na
velha casa Anstead. com Dorothea. Poderemos ir para casa logo
que nos casarmos, o que acontecerá assim que tu te sentires com mais forças. Teremos de nos casar
na Pensilvânia. É uma questão de leis. O juiz daqui não contestará
o casamento. Aliás, ninguém o fará.
Amalie escutou, chorando em silêncio, mas compreendeu. A parte culpada de um divórcio não se
poderia casar no estado de Nova Iorque senão ao fim de cinco anos, excepto
com uma autorização especial do tribunal. O juiz estava em má posição. Alfred era seu amigo, mas
havia uma criança a ter em consideração. Um casamento realizado
na Pensilvânia, todavia, não seria posto em causa. Amalie e Jerome poderiam depois regressar a
Riversend e ninguém os molestaria.
- Masoteupai... - murmurou Amalie.
com aquela frase, Amalie forçava a dor que deveria enfrentar quando estivesse suficientemente forte
para se recordar que ela e Jerome tinham afastado Alfred, Philip
e Dorothea da sua antiga casa.
- E o teu pai? - insistiu ela - Ele não foi... com eles? Jerome ergueu-se, bruscamente, e encaminhou-
se para a
janela. Havia um brilho estranho nos seus olhos, e um peso tremendo no seu coração.
- Não - respondeu ele. - O meu pai não foi com eles. Ele... içou.
- Então ele perdoou-nos! - exclamou Amalie, com alegria.
- Sim, minha querida, ele... perdoou-nos. Eu... eu soube agora do testamento. Os advogados
disseram-me. Alfred e eu ficamos com a casa, e vendemos a parte de um
ao outro, se não quisermos viver juntos.
Jerome falava com voz muito baixa e enrouquecida.
- Acho que Alfred preferirá vender-me a sua parte. Devemos, também, partilhar o Banco. Isso vai
ser um pouco difícil, mas as coisas hão-de arranjar-se de qualquer
maneira. É o que sempre acontece. No entanto, isso é para se tratar lá mais para a frente. A primeira
coisa agora é o nosso casamento.
Ficou em silêncio.
- Como vês, o meu pai compreendeu. - disse Jerome, por fim. -Eu... acho que ele sempre soube.
Caiu um silêncio estranho no quarto. Jerome continuava a olhar pela janela, sem ver. Não ouviu
nenhum ruído atrás dela. Por fim, tomou consciência de que Amalie
não pronunciava palavra havia muito tempo.
Voltou-se rapidamente. Amalie estava sentada na cama, muito direita, branca como os próprios
lençóis que a cobriam, os olhos escancarados, fitos nele. Jerome abeirou-se
dela, deixando escapar uma exclamação abafada, mas ela estendeu-lhe a mão.
- Jerome! - murmurou Amalie. - Jerome, o teu pai morreu!
Aquilo era o que ele tinha querido poupar-lhe, e afinal, acabara por o dar a perceber, estupidamente.
Sentou-se a seu lado, na cama, amaldiçoando-se. Procurou dentro
de si mentiras para a consolar, mas Amalie olhou para ele, e Jerome não conseguiu dizer nada.
Ela afastou-se dele, e enterrou o rosto nas almofadas.
Jerome começou a falar-lhe baixinho, a suplicar-lhe. As palavras saíam-lhe em catadupas, mas não
se atrevia a tocar-lhe. Balbuciava e gaguejava, dizia coisas sem
sentido, afagando distraidamente com a mão direita, o cabelo dela.
Aquela morte não fora inesperada, disse ele. O coração do pai vinha a falhar, havia muito tempo.
Era apenas uma questão de tempo. Mesmo que nada daquilo tivesse
acontecido ele apenas viveria mais algum tempo, muito pouco. Agora tinha de lhe contar tudo.
Tinha de lhe contar que William Lindsey tinha inesperadamente descido
à biblioteca e que fora ele quem salvara a vida do filho. Tinha de dizer a Amalie, completamente,
que Mr. Lindsey tinha sofrido um colapso após uma luta breve e
fraca com Alfred, que Alfred, esquecendo o homem inconsciente a seus pés, tinha transportado o
seu pai adoptivo lá para cima, deitando-o no seu leito, chamando Dorothea
e o doutor Hawley.
Jerome soubera tudo aquilo mais tarde, pela boca de Jim. Ele, Jerome, fora deixado na biblioteca,
esquecido por todos excepto por Jim, que não tinha forças para
o transportar dali. Mas Jim cuidara dele o melhor possível, e quando o doutor Hawley descera, perto
da meia-noite, Jim chamara-o. com a ajuda do médico, Jim conseguira
então transportá-lo para o quarto e metê-lo na cama, e o exausto Dr. Hawley tinha-lhe cosido os
golpes e tratado do braço. Durante dias, ele próprio não soube o
que tinha acontecido. Jim nunca o deixara. O homenzinho tratara dele, dera-lhe de comer, mudara-
lhe os pensos das feridas. O resto da criadagem estava absorvida
pelo velho senhor moribundo.
Fora só no quarto dia que ele soubera a verdade, quando uma criada o viera avisar de que o pai lhe
queria falar.
Mas... Jerome não podia descrever a Amalie aquela cena junto da cama do velho pai. Jamais o
poderia contar a ninguém.
Ficou em silêncio, recordando. Amalie voltou-se para ele, sem falar. Esperou.
Ao fim de alguns momentos, Jerome continuou, falando com voz rouca e um pouco ausente.
Ele e Amalie não deviam sentir-se culpados da morte de Mr. Lindsey. Antes de morrer, Mr. Lindsey
mandara-lhe dizer que gostava muito dela. Pedira insistentemente
a Jerome que lhe dissesse que havia muito tempo que estava para morrer e que não havia nada que o
salvasse. Sentia-se feliz por saber que o seu filho e Amalie iam
casar-se. Desejava apenas, ainda, poder ver o casamento, e recebê-los na casa que lhes pertencia.
Amalie compreenderia, dissera Mr. Lindsey, depois de ver o testamento.
Jerome agarrou na mão de Amalie. Ela não se afastou, mas proferiu um murmúrio:
- Alfred. Deve ter sido horrível para ele.
Jerome pensou no primo e, involuntariamente, o rosto contorceu-se-lhe de ódio. Virou a cabeça, e
retorquiu:
- Alfred sabia também que o meu pai não iria viver muito mais tempo. O próprio doutor Hawley lho
disse. Acho que não precisas de te preocupar tanto com ele.
Amalie chorava de novo, e Jerome não sabia o que fazer para a confortar. Tinha a certeza de que
não poderia voltar a entrar naquela casa outra vez, onde todas aquelas
coisas terríveis tinham acontecido, e onde Mr. Lindsey morrera por causa do choque que lhe fora
infligido. Via-o diante de si, claramente, com o seu sorriso bondoso;
ouvia-lhe as palavras amigas e os silêncios subtis e compreensivos.
Ela e Jerome tinham-no assassinado, tinham enchido os seus últimos dias de horror e sofrimento.
- Não - disse ela a Jerome. - Jamais seremos capazes de esquecer. Será esse o nosso castigo.
- Já te disse, minha querida, ele não nos fez quaisquer recriminações. Disse até que a única pena era
não poder conhecer o nosso filho, o seu coração ansiava tanto
este primeiro neto. Tu sabes, Amalie, como ele era bom, e como era feliz, ultimamente.
"Quando eu lhe pedi que nos perdoasse, riu-se um pouco como se eu lhe estivesse a fazer um
pedido absurdo."
Mas não contou a Amalie aquilo que seu pai lhe dissera, quase no fim:
- Se tu ao menos puderes compreender, Jerome, que
nenhum homem pode injuriar e ferir outro com impunidade, que a crueldade feita com maldade e
deliberação é o seu próprio castigo, que quando um homem fere outro
está a ferir, não só a si próprio, mas todos aqueles que ele ama, então todo este sofrimento terá
valido a pena!
Não, havia muita coisa que ele jamais poderia contar, mesmo no dia da sua própria morte. Ele e o
pai tinham ficado sós, e Mr. Lindsey falara tranqüila e calmamente.
Nesses momentos, ele apenas pensara no filho, e não em si próprio ou na sua própria angústia, e
isso tinha sido o pior de suportar.
Não podia falar a Amalie do funeral, de como ele e Alfred tinham ficado em frente um do outro, de
lados opostos da cova aberta, escutando as palavras do pastor,
e de como a chuva jorrava, incessante, naquele cemitério sombrio e solitário. Aquilo era uma coisa
que ele próprio não se atrevia a pensar durante muito tempo.
Alfred permanecera ali o tempo todo, uma figura de pedra cinzenta, de olhos fixos no túmulo
aberto, os braços cruzados no peito. Dorothea, chorando desconsoladamente,
ficara ao lado dele; Philip do outro lado. Ninguém parecera reparar em Jerome, encostado à sua
bengala, o braço dobrado em ligaduras e talas. Ninguém a não ser Philip.
Jerome encontrara os olhos compadecidos e tristes do rapaz, e vira que não havia neles nem
acusações nem censuras, mas apenas uma enorme compaixão e ternura.
Lá mais atrás estavam os amigos, mas nenhum se abeirara de Jerome. Ele ficara sozinho, isolado,
como se fosse um leproso. Ninguém lhe falara, ninguém parecera ter
consciência da sua presença ali, excepto Philip.
Depois da cerimónia, Philip tinha conseguido aproximar-se dele. Tocara-lhe no braço e dissera-lhe:
- Por favor, dê... a Amalie... todo o meu amor, tio Jerome.
Philip retirara-se logo em seguida para junto do pai e das outras pessoas, e Jerome fora abandonado.
Os amigos tinham seguido Alfred, Dorothea e Philip. Jerome
ficara
sozinho. Os coveiros, que estavam à espera para lançarem a terra húmida sobre o caixão, tinham-no
olhado com curiosidade e impaciência. Depois, também eles se afastaram
para uma distância discreta, cochichando entre si.
Jerome ficara ali, olhando para o caixão no fundo da cova. A chuva penetrava naquele buraco
escuro, e os ulmeiros pareciam chorar lágrimas em fio para cima da terra
molhada, como fontes de água verde. O ar pesado e húmido estava cheio de aroma fúnebre das
flores. As pedras tumulares ali à volta brilhavam espectralmente na penumbra
sombria. O silêncio profundo e
angustiante do cemitério parecera engolir tudo em seu redor, e Jerome apenas escutava o gotejar da
chuva, o murmúrio das folhas e mais nada.
Tinha-se voltado, por fim, para os portões do cemitério. Jim esperava-o ali, na charrete. Não se via
mais ninguém.
Voltara então para a sua casa desolada, e fora directamente para a cama. Na manhã seguinte, à
primeira luz da madrugada, Jim viera dizer-lhe que Alfred, Dorothea
e Philip partiriam naquele mesmo dia. Não ficariam debaixo do mesmo tecto que o homem que
trouxera tamanha catástrofe a eles e àquela casa.
Não, havia muita coisa que ele não podia contar a Amalie, que jamais lhe poderia contar.
Sentava-se a seu lado, beijando-a carinhosamente, alisando-lhe o cabelo, e ela apertava-se contra
ele, chorando. Mas, Jerome mal tinha consciência dela agora. A
dor que sentia era demasiado grande, demasiado viva. Levaria anos a esquecer e duvidava que o
pudesse fazer alguma vez, completamente.
Pensou:
"Como é que é possível que eu retome a vida aqui? Que nos acontecerá? Toda a cidade está cheia de
ódio e de desejo de vingança."
Pensou em partir, em abandonar tudo a Alfred.
Afastou Amalie, e dirigiu-se de novo para a janela. Olhou lá para fora, para o crepúsculo morno e
calmo que sucedera à chuva violenta. E pensou:
"Não, não me irei embora. Há aqui trabalho para mim. Ele não me empurrará daqui para fora. Se
alguém tiver que partir, não serei eu."
Havia outra coisa, também, que Jerome jamais poderia perdoar: a sua irmã, Dorothea, tinha
aparecido como testemunha e testemunhara contra a culpa de seu irmão e
contra o seu adultério.

TERCEIRA PARTE
Capítulo quadragésimo terceiro
Amalie Lindsey admitia que a paisagem que se estendia diante de Hilltop, embora bastante viva e
animada e exalando o ar de actividade e empreendimento, não tinha
exactamente evoluído, do ponto de vista estético. O silêncio e a simetria rurais, as enormes
proporções de terra e de árvores (que tanto faziam recordar a paisagem
europeia) tinham sido destruídos e alterados, e a mudança não fora propriamente para melhor, ainda
falando do ponto de vista estético. A América estava empenhada
num processo de escarificação, e embora isso trouxesse, sem dúvida, prosperidade, excitação e
novas perspectivas para milhões de pessoas, era, por outro lado, uma
ofensa e uma tristeza para aqueles que acreditavam que a beleza (talvez para algumas almas
superiores, em pouco número) era preferível a salários elevados, à esperança
e à crescente capacidade e oferta de emprego.
Por exemplo, onde outrora existira uma espessa zona florestal com correntes de água e árvores
frondosas, no sopé da colina, existia agora uma fábrica florescente
activamente dirigida pelo entusiástico King Munsey, que produzia alfaias agrícolas. As suas quatro
chaminés libertavam um fumo denso e ofensivo com um odor enjoativo
e pesado para um céu outrora limpo e imaculadamente cristalino. As correntes tinham perdido a sua
transparência azulada, e estava agora manchadas de óleo, de tons
purpúreos e amarelados, e a vegetação ao logo das suas margens, outrora verdejantes, compostas de
ulmeiros e chorões que se curvavam para as águas e de lírios e
rufos de um verde aveludado e quase irreal, estava a transformar-se agora em massas de tufos
cinzentos e moribundos.
Na sua voracidade insaciável, Mr. Munsey nada fizera das centenas de troncos de árvores que
rodeavam a fábrica, troncos esses que noutros tempos tinham erguido para
os céus azuis os seus orgulhosos ramos de folhagem viçosa e sussurrante. Sim, os outrora belos
pinhais e matas eram agora uma tristeza para o olhar.
Amalie reconhecia tudo isso; mas também reconhecia que, devido à inexorável insistência de
Jerome, os miseráveis casebres que tinham começado a surgir junto da entrada
dos bosques tinham desaparecido e tinham sido substituídos por pequenas casas de pedra e madeira,
rodeadas por pequenos e limpos jardins, onde viviam os empregados
das fábricas de Mr. Munsey.
Mr. Munsey tinha sido implacavelmente avisado de que não devia trazer para Riversend quaisquer
escândalos sobre "casas-chiqueiros" e que os seus empregados não deviam
viver numa espécie de prisão que tinha levado à má fama de várias fábricas da Pensilvânia. Ele e
Jerome eram agora bons amigos, mas tinha havido sérias divergências
e discussões a princípio.
- Estes brutos não conhecem nenhum melhor! - protestara Mr. Munsey, quase debulhado em
lágrimas, e com mais paixão do que gramática.
- Não estou interessado em saber se eles conhecem ou não
- retorquira Jerome. - Eu penso pela minha própria cabeça e é comigo que me preocupo.
Isto tinha sido um pouco enigmático e estranho para Mr. Munsey, mas por fim acabara por obedecer
à vontade de Jerome. Aliás, se não o tivesse feito, ver-se-ia expropriado
do seu belo terreno. No entanto, quando os jornais, mesmo da cidade de Nova Iorque, tinham
elogiado aquela "inovação, aquele novo e cristão respeito pelos direitos
do homem, ainda que humilde, aquele humanitário respeito para com o bem-estar dos trabalhadores
e das suas famílias", Mr. Munsey acedera em posar para os fotógrafos
metropolitanos e permitira, modestamente, que o elogiassem como um "benfeitor da humanidade".
Houvera outro atrito, desesperado e privado, entre ele e Jerome, sobre o assunto dos sindicatos, a
que ele chamava de "ninharias e uma infracção aos direitos do
capital, conduzindo à anarquia, à insolência e à opressão por parte das massas ignorantes". Mas
Jerome vencera de novo, e quando interrogado pelo choroso Mr. Munsey,
dera-lhe exactamente a mesma resposta de que "era com ele que se preocupava". No entanto,
quando se viu de novo elogiado como representando o "novo industrial, conhecedor
de que a condescendência, o tratamento aberto e o respeito pela dignidade da classe trabalhadora
davam lugar à existência de relações amistosas e agradáveis, e ainda
muito mais proveitosas, entre o trabalhador e o patrão", Mr. Munsey não se referira nem
mencionara o nome de Jerome.
O lado sul de Riversend apresentava agora uma pequena mas florescente siderurgia, uma fábrica de
material pesado, um enorme armazém de caminho-de-ferro, uma fábrica
de moagem para o trigo, uma destilaria que considerava a água natural daquela zona de qualidade
excelente para a "aguardente-do-diabo", e uma fábrica de carruagens.
Estendendo-se para além destes edifícios fabris, ficavam as agradáveis secções "ajardinadas",
ocupadas pelos trabalhadores e suas famílias, rigorosamente policiadas
e mantidas em boa ordem física e moral.
Todos os novos possuidores das fábricas tinham tido as suas
lutas apaixonadas mas inúteis com Jerome. No entanto, como ele lhes trouxera o agradável e
elogioso título de "benfeitores da humanidade", engoliram a sua indignação,
raiva e ódio naturais, posaram complacentes para os fotógrafos e deram entrevistas aos repórteres
dos jornais das grandes cidades. Riversend tornara-se, por isso,
"a comunidade fabril modelo".
Os homens de negócios tinham vindo para a cidade, e, se eram ignorados pelos velhos aristocratas e
abertamente postos de lado por eles, não eram tão estúpidos nem
suficientemente ricos para não se aperceberem de que estavam a ser votados ao ostracismo por essa
velha classe.
Jerome tinha, evidentemente, os seus inimigos violentos e inquietos, que não esperavam senão uma
oportunidade para o atacarem. Entre eles contavam-se quase todos
os clérigos da comunidade, que declaravam que ele "estava a troçar no rosto da Providência,
encorajando os velhacos, a ralé e os humildes a erguerem-se acima da
posição que deviam ocupar na vida por ordem divina".
Quando Jerome conseguiu fazer com que os donos das fábricas desembolsassem uma certa quantia
de dinheiro, todos os anos, para a construção e manutenção de várias
escolas, pequenas mas com muita freqüência, em benefício dos filhos dos trabalhadores, tal acto foi
considerado como o mais hediondo, o mais ultrajante da moral
cristã.
Ele era "um fomentador de revoluções". com todas aquelas escolas gratuitas e com toda aquela
"impudica" supervisão das suas vidas, em breve os que não possuíam nome
nem tradições, os vulgares e ordinários acabariam por se considerarem tão bons como os que lhes
deviam ser superiores, por nome, classe e educação.
Mas o seu pior, o mais imperdoável acto, fora quando ele, por meios desconhecidos e sem dúvida
altamente reprováveis, contribuíra para o subomo de vários cavalheiros
ligados à legislatura do estado, e o resultado fora que a escolaridade se tornara obrigatória, por lei,
para todas as crianças até à idade dos catorze anos. Isto,
clamavam, horrorizados, os grandes senhores, usurpava os direitos dos pais, privava-os do fruto do
trabalho dos seus filhos e encorajava à irresponsabilidade e à
ociosidade os rapazes e raparigas que deviam, pelo contrário, trabalhar nas fábricas, em casa de seus
pais ou nos campos, em vez de adquirirem uma educação que não
lhes serviria de nada e até os tornaria desajustados nas suas futuras ocupações como criados
domésticos, ajudantes nos campos e pacientes manipuladores de máquinas
durante doze horas por dia. Todavia, ao enviarem os seus filhos para as escolas, os trabalhadores
estavam
aparentemente esquecidos ou ignorantes do destino que lhes cairia em cima, o que aumentava as
apreensões daqueles que tinham nascido para educar os seus filhos,
para depois lhes deixarem enormes propriedades e casas confortáveis.
Não havia um único lugar naquela paisagem suave e maravilhosa que não fumegasse, meditava
Amalie, com um sorriso misto de inquietação e de satisfação. E tudo aquilo
era obra de Jerome, seu marido. Fora ele quem realizara tudo, não sem fúria, ameaças ou
chantagens da sua parte, e com a ajuda daqueles que, a princípio, haviam
declarado a sua hostilidade de morte e a sua firme determinação de o punirem pelo "crime" que
cometera contra a sociedade, a afronta que infligira a todos quantos
possuíam moral cristã. Mas quando Jerome demonstrara a esses mesmos inimigos os lucros sólidos
que lhes iriam parar às mãos, todo o seu proclamado amor pela rusticidade
e pela moral edificante se desvaneceu de súbito.
Tinha havido uma má época, durante o pânico de 1873, quando aquele florescente mas ainda
precário industrialismo da América parecia ir fracassar. Nessa altura, os
inimigos da indústria tinham andado triunfantes. A terra, declaravam eles alto e bom som, nunca
estava sujeita a flutuações, nem nunca era estéril. Uma civilização
baseada puramente na agricultura era uma civilização que nunca morreria de fome. Mas a
civilização sem raízes, dependente do roufenho trabalhar de "máquinas do demónio"
dentro de paredes de tijolo, era sempre vulnerável a qualquer vento mais sensível que soprasse da
Wall Street.
- A culpa - dizia Jerome -, não está na indústria, mas naqueles que a manipulam sem nunca terem
sujado as mãos e sem nunca se terem decidido a compreendê-la.
Quase tinha ido à falência para conseguir manter uma horda de trabalhadores com comida e casa.
Comprara enormes quantidades de produtos nas jovens indústrias de
Riversend, a fim de as manter em funcionamento. Emergira depois, no fim da crise, um pouco
abalado e com a fortuna quase destruída. No entanto, ao fim de cinco anos
transformara-se num homem fabulosamente rico. Pertencia à direcção de todas as fábricas da
cidade. Aquele devasso, aquele abjecto freqüentador das franjas mais imundas
da sociedade, aquele beberrão e enfatuado tornara-se no maior poder dentro daquela comunidade.
Mas essa comunidade, embora o aceitasse com uma nova amizade (ternamente conhecedora e
consciente dos lucros), escorraçava Amalie. Ele era convidado, adulado, adorado,
respeitado, tratado com consideração e com a amizade concedida a um filho pródigo (que
regressara, não de entre os porcos mas com os bolsos cheios de ouro). Mas
Amalie não era
convidada, a não ser pela sua velha amiga, a viúva Kingsley, e pelas orgulhosas esposas dos
vulgares "comerciantes" que tinham invadido Riversend a convite do seu
marido.
Nem Jerome nem Amalie se revoltavam contra aquela situação. Achavam-na, até, imensamente
divertida. Amalie era uma mulher "divorciada", que tinha sido outrora condenada
abertamente nos tribunais públicos como uma "adúltera". Jerome não se divorciara, e o adultério era
uma prerrogativa natural de um homem solteiro.
A viúva Kingsley, no entanto, dizia, citando Benjamin Franklin:
"Onde existe casamento sem amor, haverá sempre amor sem casamento!"
Ora, cochichavam os seus amigos, condescendentes, a viúva tinha sido sempre uma excêntrica e
gostava de chamar a atenção sobre si com actos pouco ortodoxos e aberrações.
Se ela desejava atrair as atenções com a devoção que dedicava à "mulher escarlate", e mesmo com a
atitude que assumira quando se tornara madrinha do primeiro filho
e do segundo, também dessa mulher, o dever dos seus amigos era ignorarem as suas actividades
como se ignora o facto de ter havido um enforcamento na família mais
respeitável.
Amalie, encontrando-se um pouco abaixo de Hilltop naquele dia escaldante de Agosto, voltou-se
para a direita e olhou para os subúrbios de Riversend. Ali, no meio
das ávores imponentes e de uma paisagem excelente, erguiam-se as casas de tijolo e pedra, num
estilo rococó e esplendoroso, onde habitavam os novos industriais e
suas famílias. Amalie avistava os tectos vermelhos dessas mansões imponentes e via o sol reflectir-
se nas vidraças das janelas. Aquela era uma comunidade separada
do resto, que não se apercebia, felizmente, de que o era, ou que simplesmente não se importava
nada com esse facto. Chamavam-lhe os Jardins de Hilltop, em consideração
e deferência para com o homem que tornara possível tudo aquilo.
Virou-se depois para a esquerda, e lá em baixo, no sopé da colina no cimo da qual se erguia Hilltop,
ficava a nova casa de Alfred Lindsey, severa e austera mas bonita.
Alfred construíra aquela casa havia oito anos, mais ou menos, e vivia ali com Dorothea, como sua
devotada governante, e com o filho Philip. Não se casara com Dorothea.
Não se casara com mais ninguém. Dorothea era mais do que perfeita como prima-mãe de Philip,
que regressara havia pouco tempo de Harvard, e nunca ocorrera, nem ao
espírito mais puritano e retrógrado de Riversend, que pudesse haver qualquer coisa de menos
próprio quanto à presença de Dorothea em casa de seu primo. Dorothea
demonstrara
habilmente que se podia tão pura como o gelo e tão cândida como a neve, e escapar totalmente à
calúnia.
Havia alguns que, não sem alguma simpatia e comiseração, se perguntavam porque motivo Alfred
tinha construído aquela casa mesmo a meio caminho da encosta que conduzia
a Hilltop, num sítio que facilmente se avistava daquela outra casa de onde tão vilmente fora expulso
pelo primo e pela amante deste. Alguns diziam que ele o fizera
para que eles se "recordassem" para sempre do crime que haviam cometido contra ele. Um ou dois
afirmavam, em segredo, de que estavam convencidos de que Alfred construíra
ali a sua casa porque não suportava estar muito afastado de Amalie e da casa que ele tanto tinha
amado. Fosse como fosse, Alfred nunca se deu ao trabalho de explicar
os seus motivos a ninguém. Dorothea acreditava que ele a tinha mandado construir ali porque não
gostava de estar muito longe da cidade, nem de viver no meio de novos
e vulgares habitantes.
Todavia, embora a casa de Alfred ficasse a tão pouca distância de Hilltop, Amalie não tinha visto
nunca, em dez anos, ninguém dos que a habitavam, nem encontrara
alguma vez qualquer deles. Por vezes, em dias muito claros, avistava uma figura ou duas, pequenas
como brinquedos, nos jardins da casa, mas não conseguia distinguir-lhes
os rostos. Uma vez, quando de uma das suas raras excursões à cidade, avistara Philip ao longe.
Depois, o jovem fora para o colégio, e logo a seguir para Harvard.
De outra vez julgara ter visto Alfred apenas a uma ou duas ruas de distância. Amalie vivia
totalmente alheia a Riversend, excepto os convites para jantar em casa
da viúva Kingsley, três ou quatro vezes durante o ano, na companhia de Jerome, ou as visitas, muito
raras, que fazia ou recebia, das mulheres dos novos amigos e
sócios de Jerome.
Quando ela e Jerome desejavam um pouco de diversão iam a Nova Iorque, Boston ou Filadélfia, e
tinham ido por duas vezes à Europa, para uma estadia de seis meses
de cada vez.
Amalie vivia, portanto, entre as paredes daquela enorme mansão, e isso com o enorme e vingativo
prazer da velha Riversend, que a julgava lamuriante e chorando em
Hilltop, triste e amarfanhada com a solidão a que era devotada, esperançada, dia após dia, de que
pudesse alguma vez vir a ser perdoada, e que uma das senhoras nobres
e aristocratas acedesse em a convidar. Mas enganavam-se os que assim pensavam. E era até bom
que as ainda dilaceradas sensibilidades dessas senhoras não soubessem
que Amalie vivia feliz e satisfeita em Hilltop, que ela não desejava mais nada senão não encontrar
nunca mais as suas antigas "amigas", ou que, quando Amalie pensava
nelas, rogava veementemente aos céus que elas continuassem naquela atitude
para com ela. Jamais conseguiriam perceber que algumas naturezas são congenitamente orgulhosas,
reservadas e autoconscientes, e que encontram o seu próprio mundo
apenas entre aqueles que amam verdadeiramente.
Numa das poucas ocasiões em que Amalie tinha sido vista em Riversend a sua presença ali dera
motivos a conversas e murmúrios durante dias.
Aquela mulher atrevera-se a passear pelas ruas "insolentemente", saracoteando os seus vestidos e
casacos de Paris, as suas peles da Europa, os chapéus de plumas
e os guarda-sóis cheios de rendas e laços, mas ninguém se dignara sequer a erguer os olhos para ela.
Diziam e repetiam para si próprios que era perfeitamente inútil
que ela tentasse introduzir-se de novo no meio deles. Que passeasse na sua carruagem, que se fosse
encontrar com Jerome numa esquina qualquer a uma distância considerável
do Banco, e que sorrisse disfarçadamente sob a sombra dos seus elaborados e pretenciosos guarda-
sóis! Ninguém lhe falaria nem daria a perceber que a tinha visto.
Evidentemente, diziam eles, que era natural que uma criatura tão sem educação e sem princípios
fosse tão insolentemente insensível ao escárnio e à repulsa da sociedade
onde lhe era permitido viver. Mas sem dúvida que ela acabaria por compreender a pária que era, e
essa consciência da sua perpétua desgraça haveria de a atirar para
o mais profundo desespero e para a mais amarga melancolia. Esse seria o seu eterno castigo.
Por causa de Jerome, que tinha muitos deles sob o seu poder, a "velha comunidade" mostrava-se
condescendente em aceitar os seus filhos. Os convites estendiam-se
à jovem Mary Maxwell Lindsey, mas a resposta da mamã da jovem senhora era sempre a mesma:
"Julgamos que Mary não está ainda em idade de freqüentar festas, nem mesmo
as das crianças."
Todavia, compreendia-se tacitamente que quando Mary tivesse mais alguns anos, ela seria aceite
pela sociedade decente, apesar do ostracismo a que sua mãe estava
votada. Jerome não era nenhum louco, costumava dizer aos seus amigos. Ele sabia que não seria
bom para os seus filhos mantê-los afastados da companhia de pessoas
dignas e respeitáveis. Além disso, Mary seria uma herdeira e era a preferida de seu pai, embora
tivesse um outro filho mais novo, um rapaz.
Amalie não se ressentia nem condenava o facto de Alfredter construído a sua casa perto de Hilltop.
Sentava-se muitas vezes no terraço e ficava a olhar lá para baixo,
com uma expressão estranha, ainda que tranqüila. Uma vez, Jerome surpreendera-a assim, e dissera,
bastante desagradavelmente:
- Hei-de comprar-te um par de binóculos para que possas ver com mais nitidez!
De olhos cintilantes, Amalie aceitara jocosamente a oferta e quando Jerome lhe oferecera realmente
os binóculos, ela agradecera-lhe com mais calor do que ele gostaria.
Nunca soube se ela alguma vez os utilizara ou não, mas suspeitava bem de que ela o fizera.
Amalie utilizara-os de facto. Sentava-se durante muito tempo, escondida da sua própria casa pelos
pinheiros rendosos que o rodeavam, e ficava ali, de binóculos colados
nos olhos. Agora, conseguia ver com toda a clareza Dorothea deambular pelos jardins, sozinha ou
com Alfred. Os rostos deles eram apenas manchas esborratadas, mas
via-os caminhar lentamente por entre os canteiros, e observara que Alfred fazia, de vez em quando,
um dos seus gestos habituais.
Quando Philip se encontrava em casa, de férias, Amalie conseguia vê-lo, sentado sozinho debaixo
dos ulmeiros, com um livro no colo, os olhos fixos no espaço. Amalie
sentia, nessas alturas, a sua própria tristeza, e deixava cair os binóculos com um suspiro.
Raramente Jerome e Amalie falavam dos seus familiares. Mas, por vezes, quando estavam a sós
junto da lareira da biblioteca, Amalie reparava que Jerome deixava cair
o livro das mãos e ficava a olhar à sua frente, com uma expressão quase selvagem. Nessas alturas,
as duas cicatrizes que lhe marcavam o rosto, uma na testa e outra
na face esquerda, brilhavam com uma cintilação tão crua e vermelha que pareciam ter sido
infligidas recentemente.
Amalie sabia que o marido odiava Alfred e Dorothea, com um ódio feroz, e que se ressentia da sua
impotência para se vingar deles. Não lhe interessava que Alfred,
com uma dignidade orgulhosa e tocante, com o seu quase desmedido sentido de justiça, tivesse
abandonado Hilltop, renunciando à casa a favor do primo. Alfred poderia,
de facto, ter tornado as coisas mais difíceis e cruéis, pois a casa fora deixada a ambos. Mas
recordara-se, como sempre o tinha feito, que Jerome era o verdadeiro
filho de William Lindsey, e afastara-se.
Amalie sabia que Jerome tinha feito uma oferta para comprar a parte que pertencia a Alfred, mas
este recusara friamente. Sabia também, com um estremecimento interior
e involuntário, que aquela atitude de Alfred e a parte que ele continuava a ter naquela casa
enlouquecia o marido, e receava, não sem um certo sentido de justiça,
que tinha sido precisamente por esse motivo que Alfred não se quisera libertar dessa parte que lhe
pertencia por direito. Amalie e Jerome podiam ocupar a casa, Alfred
recordar-lhes-ia sempre que o seu inimigo, vivendo calmamente a pouca distância deles, continuava
a ter, ainda, poderes sobre
Hilltop, e que eles viviam ali, sem serem molestados, apenas devido ao seu magnânimo e afrontoso
consentimento.
Todos os anos Alfred pagava metade dos impostos que recaíam sobre a propriedade. Quando
Jerome fizera alguns melhoramentos - bastante dispendiosos, pois ele mandara
abrir mais casas de banho, instalar gás, um poço novo, mandara colocar um telhado novo e dera
outra forma aos jardins - recebera a visita do advogado de Alfred,
que o informara formalmente de que Mr. Alfred Lindsey insistia em pagar metade dos custos.
- É a sua parte, como sabe! - dissera o advogado. -E ele tem por obrigação proteger a parte que lhe
pertence.
No entanto, Jerome recusara aceitar aquilo e muito menos a humilhação que tal acto representava.
Mr. Lindsey, que tinha tido um forte sentido britânico de tradição, deixara a casa conjuntamente ao
filho e ao sobrinho, com a condição de que ela caberia inteiramente
a Jerome caso Philip morresse e Alfred não tivesse mais filhos, e se este morresse primeiro que
Jerome. Se Jerome tivesse um filho, no entanto, esse filho ficaria
com a parte de seu pai na casa. Depois da morte tanto de Jerome como de Alfred, e se os filhos lhes
sobrevivessem, o mesmo sistema continuaria.
Quando Amalie presenteou Jerome com um filho, o pequeno
William Lindsey, a satisfação de Jerome foi enorme. A criança
era extraordinariamente bem constituída, o que levou Jerome a
uma selvagem e cruel observação, de tal maneira repelente que
Amalie sentira uma forte, ainda que passageira repulsa para
com ele. Jerome tinha orgulho ilimitado naquele filho varão e
amava-o extremosamente, mas não tanto como amava a sua
filha Mary.
Amalie pensava em todas estas coisas naquela manhã, e sentia-se, por isso, um pouco amargurada e
triste. Enchera um ces to com as melhores flores do seu jardim e
tencionava levá-las ao ; túmulo de Mr. Lindsey, pois passava mais um aniversário sobre a sua
trágica morte.
Aquele dia de Agosto não tinha o ar espectral e aguado que tinha tido naquela ocasião terrível dez
anos antes. O céu estava agora incandescente de luz e toda a paisagem
parecia, ela própria, feita de uma luminosidade forte que lhe marcava os contornos. As árvores
estavam imóveis, como que carregadas de calor. De vez em quando, uma
brisa escaldante levantava-se da terra e parecia queimar a relva e as flores. No entanto, os jardins
refulgiam de cor; lírios pareciam espadas de luz brilhante contra
o tijolo vermelho das paredes; crisântemos manchavam de amarelo, rosa e branco os canteiros;
pêras rosadas pendiam dos
ramos carregados como pérolas ovais de dimensões gigantescas; musgos e heras bordejavam as
veredas; as rosas lançavam para o ar quente o aroma das suas pétalas delicadas;
a fonte de mármore que Jerome mandara construir jorrava gotas de luz faiscante.
Do cesto de Amalie desprendia-se uma fragrância misturada. Os jardineiros tinham regado as flores
e nas pétalas e folhas viam-se pequenas gotas cristalinas que mais
pareciam de orvalho húmido e fresco.
Amalie dirigiu-se para casa e encontrou ali uma criada. Perguntou por Mary, mas Mary, como era
habitual, tinha desaparecido. Amalie soltou um suspiro abafado mas
impaciente. Jerome encorajava aquelas escapadelas da pequena rapariguinha, porque elas lhe
faziam lembrar as suas próprias surtidas e também porque a sua filha lhe
fazia lembrar muito o seu próprio pai, de natureza reservada e silenciosa.
Amalie encaminhou-se para a biblioteca. Os reposteiros tinham sido corridos por causa do calor, e a
sala estava mergulhada numa semiobscuridade fresca e acolhedora.
As grandes poltronas de couro estavam aparentemente vazias; mas Amalie, ainda transportando o
seu cesto carregado de flores, caminhou por entre elas, em silêncio.
Tal como havia suspeitado, Mary estava acocorada na velha poltrona de couro vermelho onde
outrora Mr. Lindsey costumava sentar-se, e lia.
- Bem! - disse Amalie. - Estás uma senhorinha muito pouco amável. Pensei que me irias ajudar a
apanhar flores para o túmulo do teu avô!
Mary pôs de lado o pesado livro que estava a ler e, sem uma palavra, desenroscou-se de cima da
cadeira e levantou-se. Não tinha ainda dez anos, mas era muito alta
para a idade, precocemente tímida e silenciosa. com voz doce e estranhamente penetrante, disse:
- Desculpe, mamã. Não pensei que fosse tão tarde.
- Ora, é sempre a mesma coisa. És muito maçadora, Mary. Estava a pensar ir a pé, para passearmos
um pouco, mas agora é tão tarde que teremos de ir de charrete. Olha
para a tua saia! Quanto mais não fosse por respeito para com o teu avô, devias ir vestir outra mais
arranjada.
A criança baixou os olhos para o vestido com uma expressão divertida mas não disse nada. Tinha
um certo receio da mãe, que era habitualmente muito impaciente com
ela. Mas quando Amalie estendeu a mão e afagou ternamente os cabelos que caíam pelos ombros de
Mary, esta detectou mais amor do que indiferença naquele gesto. Sorriu
timidamente.
Amalie deixou escapar um suspiro.
- Vai ver se descobres onde está Jim, Mary, e pergunta-lhe se nos pode levar ao cemitério. E não te
esqueças de pôr um chapéu grande. O sol está muito quente, hoje.
Pousou o cesto sobre a imensa mesa de castanho e saiu da sala. Mary ficou a olhar para ela. Quando
ficou de novo sozinha, a criança aproximou-se do cesto e acariciou
delicadamente as flores; as rosas, os lírios e crisântemos pareciam uma mancha viva e colorida
sobre o castanho-escuro da mesa. Mary inclinou a cabeça e aspirou-lhes
o perfume doce. Uma onda de prazer estranho e quase selvagem inundou-lhe os olhos, uma espécie
inocente encantamento e alegria. Segurou com as delicadas mãos os
cabelos de ouro pálido enquanto se inclinava de novo para aspirar o perfume das flores. Murmurou
depois qualquer coisa de ininteligível, sentindo uma dor estranha.
Lamentava que aquelas coisas frágeis e tão lindas tivessem sido arrancadas aos seus canteiros para
irem cobrir uma pedra fria e sem graça.
Olhou à sua volta rapidamente. Depois, com um movimento ligeiro, tirou um botão vermelho-
escuro, meteu-o debaixo de um folho da sua saia e saiu a correr da sala.
Trepou pelas escadas, retendo a respiração. Não viu ninguém. Espreitou furtivamente para dentro
do quarto da mãe e do pai. Tal como esperava, a mãe fora dar uma
última espreitadela ao irmão, o pequeno William. Mary encontrou um copo, encheu-o com a água
que se encontrava num jarro, meteu nele o botão e colocou-o depois em
cima da mesa do pai. Ficou a olhá-lo, durante alguns instantes, com intenso prazer, e depois puxou
o botão para si e beijou-o com ternura.
Os seus olhos, tão parecidos com os do avô, brilharam profundamente. Não eram, todavia, uns
olhos parados e calmos como tinham sido os de Mr. Lindsey; o tom azul-claro
que os tingia era mais vivo e mais intenso, como água corrente sob um céu de Verão. Mudavam,
tornando-se mais pálidos, mais profundos ou mais escuros, tal como o
seu temperamento silencioso mas ardente. A juventude irrompia dentro dela, mas era uma juventude
silenciosa, profunda e expectante, cheia de promessas. Assim tinha
sido Mr. Lindsey, na sua juventude, suspeitava Jerome.
Olhou-se ao espelho de sua mãe. Tinha um rosto pequeno, pontiagudo e delicado, finamente rosado
e sensível, mas com uma curiosa expressão de força interior. No entanto,
não era um rosto nobre como o de Amalie; havia nele qualquer coisa de rígido, apesar de toda a sua
sensibilidade e imobilidade infantis. Mais tarde, poderia vir
a ser duro e frio, como o de Mr. Lindsey. Agora, era doce e puro; apesar da delicadeza das suas
feições, não era vulnerável. Um certo ar de inteligência viva
reflectia-se-lhe nos olhos, nas curvas da sua pequena boca rosada, nas narinas frementes do seu
nariz rectilíneo. Jerome costumava chamar-lhe a sua "Pequena Beleza",
com orgulho e um certo egoísmo. Sem qualquer vaidade pessoal, Mary sabia que era, na realidade,
bonita, mas sentia-se satisfeita por isso, pois esse facto agradava
a seu pai. Por vezes ele chamava-lhe a sua "pequena vestal da Nova Inglaterra", e embora sorrisse
quando a chamava assim, ela não tinha a certeza se não haveria
uma certa admiração na sua voz. Era muito confuso.
Afastou o véu dourado de cabelo que lhe caíra para as faces acaloradas. Alguns fios ficaram colados
à sua testa coberta de suor. Teria de pentear o cabelo, o que
a aborrecia extraordinariamente. À luz difusa do quarto, o cabelo tinha um tom quase branco, tão
pálido era o dourado que o tingia.
Sim, a mamã tinha razão; a sua saia azul e vermelha estava amarrotada. Alisou-a com as suas
pequenas e estreitas mãos. Ajeitou melhor os folhos do avental, e depois,
com um gesto de impaciência, tão característico de Amalie, desatou os laços que o prendiam e
atirou-o para cima da cadeira favorita do pai. Jerome haveria de o encontrar
mais tarde, e escondê-lo-ia, apressadamente, do olhar reprovador de Amalie. Ficava comovido e
deliciado quando encontrava aquelas pequenas provas da visita sub-reptícia
da filha ao seu quarto.
Esquecendo-se totalmente de que decidira pentear os cabelos Mary desceu de novo as escadas a
correr, e apressou-se a ir à procura de Jim, o seu criado favorito,
para o informar de que devia conduzi-las ao cemitério.
Enquanto isso, Amalie tinha ido ao quarto do filho. O pequeno William, com cinco anos de idade,
estava a dormir na sua caminha. Inclinou-se para ele, cheia de ternura.
Se Mary era a preferida de seu pai, ali estava o seu próprio favor, o seu benjamim. O rapazinho era
alto e irrequieto, e não tinha ainda perdi do por completo as
formas arredondadas e cheias tão próprias de um bebê. Dormia profundamente, num abandono
absoluto, os cabelos pretos e encaracolados espalhados sobre as almofadas
de uma brancura imaculada, um punho pequenino e rosado apertado debaixo da sua face escarlate.
As pálpebras eram orladas de espessas pestanas; por baixo delas, palpitavam
uns olhos adormecidos de um tom de púrpura muito escuro, como os da mãe. A boca era grande e
forte e as linhas do rosto, embora ainda tão jovens, revelavam já que
mais tarde haveriam de possuir os ângulos fortemente marcados do rosto de Amalie. A criança
transpirava o odor inocente e animal da carne humana limpa e jovem. O
lençol estava enrolado em redor das suas pernas, pois mesmo a dormir o pequeno William era
irrequieto.
Amalie tocou ao de leve os caracóis húmidos do filho, saiu na ponta dos pés do quarto e fechou a
porta atrás de si sem um ruído.
Amalie afastou-se da porta fechada. Sentia dentro de si uma satisfação imensa e profunda, uma
sensação de realização completa. Entrou depois no seu quarto para pôr
na cabeça um enorme chapéu de palha, e olhou-se ao espelho, desapaixonadamente mas com prazer.
Tinha agora trinta e dois anos, e as duas maternidades não tinham
deformado o seu corpo esguio. Pelo contrário, tinham-lhe dado mais força e mais maturidade, uma
certa riqueza exuberante que não possuía anteriormente. O seu vestido
branco, salpicado aqui e ali por pequenos botões vermelhos, fazia realçar-lhe a sua beleza natural, a
cintura estreita, as curvas dos seus seios altos e redondos.
A garganta, erguendo-se por entre os folhos do corpo do vestido, mantinha ainda as linhas firmes de
anos atrás, sem apresentarem o mínimo traço de flacidez. Observou
a sua própria boca, sorridente, cheia e vermelha como uma ameixa madura, as faces claras e
vibrantes. Os olhos brilhavam-lhe vivos; o cabelo muito negro e cintilante
estava bem penteado debaixo do chapéu. Perturbava-a, no entanto, recordar-se que tinha já alguns
fios brancos junto de uma das têmporas, embora Jerome, com quarenta
e cinco anos, estivesse já completamente grisalho.
Quando pensou no marido, todo o seu rosto se transformou, ficando ainda mais jovem e mais doce.
Mesmo as ocasionais discussões que de vez em quando tinham, e que
perturbavam a paz daquela casa, apenas aumentavam a paixão que continuavam a sentir um pelo
outro. Havia ali felicidade, sim, mas havia também furiosos altos e baixos,
sem uma verdadeira tranqüilidade. Amalie sorriu um pouco e desceu as escadas.
Ficou na sala de entrada, depois de ter ido buscar o cesto das flores à biblioteca. Sentia-se às vezes
assaltada por fantasmas, o fantasma de Mr. Lindsey, os passos
de Alfred, pesados e seguros sobre as escadas, a voz austera de Dorothea, a sombra calma e
deformada de Philip. Mas o fantasma de Mr. Lindsey era sempre amável e
afectuoso, e a presença recortada de Philip era gentil e bondosa.
Abanou a cabeça e suspirou, recordando-se que nunca mais tinha passado a porta do quarto que
havia partilhado com Alfred sem que sentisse um estremecimento involuntário
e apressasse o passo, como se fugisse. Mary dormia ali agora, precisamente na mesma cama onde
ela e Alfred haviam dormido juntos. Jerome, que não era sentimentalista
nem via sombras estranhas nas paredes do seu próprio quarto, não compreendia nem se importava
muito com aquela aversão de Amalie.
O quarto de Mr. Lindsey tinha sido transformado no quarto do pequeno William, e o quarto de
Dorothea estava vazio, bem como os outros dois quartos daquele andar,
"reservados" aos hóspedes, financeiros e industriais de Nova Iorque, amigos de Jerome. O quarto de
Philip era o quarto de brinquedos de Mary, elaboradamente mobilado
pelo seu extremoso pai, um santuário onde ninguém, excepto Jerome, entrava com a sua completa
aprovação. Quando fizera cinco anos, Jerome dera-lhe um pequeno piano
extraordinariamente bonito, todo feito em madeira de rosa e marfim, pois a pequenita revelava
marcados dons musicais. Todo o resto da mobília era também em madeira
de rosa, cuidadosamente escolhida por Jerome.
Amalie, lá em baixo, na sala de entrada, franziu ligeiramente a testa. Tentava a todos os momentos
do dia reprimir dentro de si aquele vergonhoso e escondido sentimento
de ciúme que parecia queimar-lhe o peito. Bem, um dia Mary casaria, e Jerome seria obrigado a
entregar aquele seu tesouro a outro homem. Apesar de tudo o que sentia,
Amalie sorriu, abanou os cabelos que lhe emolduravam a cabeça e saiu de casa.
A charrete estava já à espera. Jim, mais velho e enrugado do que nunca, com os últimos cabelos que
lhe restavam já completamente brancos, conversava alegremente
com Mary. Tirara das cavalariças a pequena charrete de dois lugares, aberta, e Mary estava sentada
a seu lado, no banco da frente, de cabeça descoberta, o seu cabelo
quase cor de prata flutuando à brisa forte que se levantara.
- Esqueceste-te do chapéu, criança maçadora - disse Amalie, enquanto Jim saltava da charrete para a
ajudar a subir.
- Vai lá dentro buscar um, imediatamente. Vais apanhar uma constipação de sol e depois o teu pai
diz que sou eu a culpada. As tuas faces estão já demasiado vermelhas!
Capítulo quadragésimo quarto
Um vento forte e quente começara a soprar, e abanava agora as árvores com violência, retorcia a
relva e transformava as poucas nuvens brancas do céu em caravanas
puxadas por cavalos à desfilada. O céu escaldante passara a um azul mais profundo e o sol lançava
sombras fugidias sobre os montes e o vale.
Amalie e a pequena Mary seguravam os grandes chapéus que lhes cobriam a cabeça, enquanto
seguiam sentadas na pequena charrete que as conduzia ao cemitério. Quando
desceram, o vento quente revolteou-lhes as saias, transformando-as em esculturas vivas. Jim e
Amalie tiveram de lutar com força com o portão de ferro do cemitério
para o conseguirem abrir. Jim voltou, depois, para junto do cavalo, e Amalie e a filha, transportando
as flores, caminharam ao longo de colunatas de árvores muito
antigas e imponentes.
O vento era, ali, menos violento, quebrado pelos troncos fortes das árvores e pelos muros que
rodeavam o cemitério. Mas as cúpulas dos ulmeiros balouçavam de encontro
ao céu. As pedras dos túmulos cintilavam brancas à luz do sol. Coelhos e esquilos corriam pela
relva, para se esconderem logo de seguida nos tufos mais altos. A
populosa solidão dos mortos estendia-se em redor das duas figuras femininas, e o silêncio era ali
mais silêncio do que em qualquer outro lugar.
A secção reservada aos Lindsey ficava na extremidade do cemitério, junto do muro de pedra coberto
de musgo. Os jardineiros dos Lindsey tratavam desta zona com todo
o cuidado, e por isso ela estava limpa e arranjada, as pedras muito polidas e brilhantes. Um
semicírculo de choupos, altos e frágeis, curvava-se para a terra verde,
guardando os túmulos e cobrindo de sombra, como um refúgio, os bancos de mármore branco.
Encontravam-se ali jarrões e caixas cheias de fetos e gerânios. Havia também um pequeno lago
artificial, construído com pedras lisas, onde os pássaros costumavam
juntar-se e tomar banho, esvoaçando e chilreando em tons melodiosos e suaves, com se não
quisessem perturbar a paz e o silêncio. Depois da morte da sua amada esposa,
Mr. Lindsey mandara fazer uma estátua em pedra branca, com a forma de uma figura meio
inclinada para a frente e com as mãos pousadas sobre o colo. Esta estátua fora
colocada entre dois choupos, olhando os túmulos com o rosto grave e semiescondido pela folhagem.
As pregas da sua saia estavam já verdes de musgo húmido e brilhante.
Amalie dirigiu-se para o túmulo de Mr. Lindsey, acompanhada pela sua pequena filha. Parou junto
do túmulo e leu a inscrição na pedra:
"William Monrgomery Lindsey, 1800-1870."
Era tudo. Não havia sentimentalismos floreados em nenhuma das pedras tumulares. Amalie
inclinou-se e pousou devagar as flores sobre a campa. Ao fazê-lo, reparou
que mais alguém estivera ali antes delas. Havia um ramo de lírios brancos, extremamente belos, à
cabeceira do túmulo; eram apenas alguns pés, mas de uma brancura
tão imaculada e tão pura que pareciam brilhar sobre pedra lisa.
- Que flores tão bonitas! -exclamou Mary, ao mesmo tempo com admiração e pena. - É triste deixá-
las morrer aqui, onde ninguém as pode ver.
No seu íntimo, Amalie aprovou aquele realismo, mas disse, numa reprovação que ela própria não
pode deixar de considerar hipócrita:
- Não sejas tonta, Mary. Nós vemo-las, não é verdade? As flores são para os vivos e não para os
mortos.
- Nesse caso, porquê pô-las ali? - perguntou a rapariguinha, com voz doce. - Porque é que não as
podemos levar para casa? Não temos lá lírios como estes!
Amalie ia de novo começar com uma dissertação de censura sobre o acto de se roubar os mortos,
mesmo que fossem só flores, mas calou-se. Jerome tinha razão; era estúpido
ser-se sentimental com as crianças. Elas conseguiam sempre ver para além do sentimentalismo
comezinho dos adultos, e, no íntimo dos seus pequeninos corações, riam-se
deles.
Disse, portanto:
- Bem, se queres um ou dois lírios, leva-os, por amor de Deus!
Rapidamente, Mary escolheu dois, segurou-os entre as suas mãos pequenas, e ficou a olhá-los com
um ar de quase adoração. Enterrou o narizito entre as pétalas, e
retirou-o, depois, coberto de um pó dourado.
- O avô não se importará - disse ela.
- Não! - respondeu Amalie, muito séria. - Acho que não. Suponho até que ele gostará que tu os
leves.
Mary lançou-lhe um olhar rápido e estranho, como se tivesse ficado surpreendida com aquelas
palavras. Era também um olhar agradecido, um olhar de quem se encontra
no meio de desconhecidos e escuta de súbito uma voz familiar vinda de um lugar inesperado.
Amalie ficou ao mesmo tempo comovida e aborrecida. Não achava nada que fosse destituída de
sensibilidade e de subtileza, e no entanto a sua filha não estava à vontade
com ela, e parecia sempre na defensiva quando em presença da mãe ou quando conversava com ela.
Isso não era lisongeiro para alguém que tinha o dom raro de uma percepção
delicada, e a vaidade de Amalie sentia-se ferida. Recordava-se que, por vezes, Mary tagarelava com
Jim, com o pai e com o irmão. Mas para com ela, sua mãe, era sempre
reservada. Porquê? Amalie franziu o rosto. Jerome acusava-a muitas vezes de "não falar" com Mary,
mas isso era um absurdo. Não conseguia entender Jerome quando ele
lhe dizia aquilo. Noutra altura, Jerome dissera-lhe:
- Tu estás sempre na defensiva com Mary. Nunca dizes aquilo que pensas. Achas que deves assumir
sempre o teu papel de mãe, é o que é. Tenta lembrar-te, de vez em
quando, de que Mary é também um ser humano e não apenas tua filha.
Amalie pensava, com exasperação, que tudo aquilo era demasiado subtil. Olhou para a filha. O
vento levantara madeixas prateadas do cabelo de Mary, atirando-lhas
para a testa e para o rosto, dando-lhe um ar estranho e irreal. As suas feições delicadas e pequeninas
tinham um ar sonhador, e Mary parecia completamente mergulhada
na contemplação dos lírios que tinha nos braços. Retirara-se de novo para aquele sítio escondido
e secreto onde só Jerome parecia poder entrar.
Muito baixinho, Amalie disse:
- Gostava que tu tivesses conhecido o teu avô, Mary. Ele
era mais do que um homem bom. Era um amigo.
- Oh, sim! - exclamou a criança, obedientemente, aspirando de novo o perfume que se desprendia
dos lírios. - Eu sei!
- Foi o papá que te disse?
Mary abanou a cabeça e respondeu:
- Não, sou eu que sei. Sinto-o aqui, neste lugar.
Amalie ficou silenciosa. Ajoelhou-se para arranjar melhor as flores que tinha trazido. As rosas
começavam a pender já, emurchecidas, por causa do calor.
- Acho que não volto a trazer flores cortadas outra vez disse ela. - Talvez uma planta... ou fetos...
Sim, é uma pena deixar estas flores tão delicadas morrerem
aqui!
- Poderíamos levá-las para casa! - sugeriu Mary que, apesar do seu rosto sonhador e dos seus olhos
tímidos e inquietos, tinha um extraordinário sentido prático das
coisas.
Amalie esteve quase a adverti-la de novo para que não dissesse coisas tolas, mas deteve-se a tempo,
e engoliu com determinação as palavras que lhe afloravam aos
lábios. Assim, abanou simplesmente a cabeça e ao fim de alguns instantes disse, pensativa:
- Não. Elas morreriam antes de lá chegarmos. É melhor deixá-las.
Mary sorriu, satisfeita. Depois, apontou para o pequeno lago:
- Elas viveriam um pouco mais se as metêssemos ali, espetadas na lama.
Amalie, apertando os lábios com força, pegou nas flores e dirigiu-se para o pequeno lago com elas,
lírios e tudo. Espetou os longos caules na lama e a água verde
agitou-se por breves momentos. Sentia-se absurda. Trouxera flores para um túmulo, para ficarem
com o morto, e agora dava-lhes um pouco mais de tempo de vida, longe
daquele mesmo túmulo a que se destinavam. Mas quando viu a expressão de alegria que se
espelhara no rosto de Mary, não lamentou o que estava a fazer. Bastante aliviada,
olhou para as flores.
- Os passarinhos gostarão delas - disse Mary, com o seu incompreensível regresso aos sonhos.
Amalie pensou que era inútil tentar compreender Mary. Mas... podia ao menos fingir.
Teria sido Alfred quem trouxera os lírios? Ou Dorothea? Cultivariam eles aquelas flores
maravilhosas no seu jardim? Dorothea, no entanto, nunca revelara um interesse
especial por lírios... "as flores da morte", como ela lhes chamara, um dia. E Alfred nunca tinha
demonstrado nenhum gosto particular por qualquer espécie de flores.
- Quem teria trazido os lírios? - perguntou Amalie, quase como se falasse consigo mesma.
- Creio que foi ele! - respondeu Mary calmamente, apontando para um banco que se encontrava
quase totalmente encoberto pela sombra e pelos ramos dos choupos.
Assustada, com o coração a bater-lhe descompassado no peito, Amalie voltou-se e olhou na
direcção que Mary apontava com o dedito espetado. A figura sombria e vigilante
de um homem estava sentada no banco. Quando reparou que Amalie o tinha descoberto, levantou-se
e avançou devagar e em silêncio.
- Philip! - exclamou Amalie, enquanto um forte rubor lhe tingia o rosto.
- Amalie! - disse Philip, sorridente.
Estendeu a mão na direcção de Amalie e olhou-a. Amalie hesitou, mas logo aceitou aquela mão que
se lhe estendia, quente e amável.
- Há tantos anos que não te via! - balbuciou ela, sentindo que o calor lhe aumentava nas faces. -
Como estás, Philip? Tens um óptimo aspecto! Quase não mudaste!
""
Mas Philip tinha realmente mudado. Era agora um homem de vinte e quatro anos, e embora o seu
corpo deformado não tivesse aumentado muito em altura, o seu rosto tinha
já os traços da maturidade. Era também o rosto de Jerome, mas mais gentil, mais doce, mais
pensativo e subtil, sem a arrogância e a fria acintosidade de Jerome.
Possuía também algo que faltava nas feições do seu segundo primo: uma suave mas poderosa
reflexão, cheia de vida interior e de tristeza. O cabelo, espesso, forte
e preto e muito curto, podia ter sido o de Jerome, na sua juventude, e a forma da sua estreita cabeça
lembrava o orgulho de Jerome, mas sem a impaciência deste.
Havia em Philip uma quietude e uma calma firmes, como se o seu caminho tivesse sido longo e
árduo, cheio de tristeza, mas também com uma coragem indómita e apaixonada.
- E tu estás exactamente na mesma, Amalie - disse
Philip com voz suave, segurando-lhe ainda a mão, e olhando o
rosto dela com os seus olhos escuros e firmes. ; Amalie, ainda extremamente embaraçada e confusa,
retirou
a mão. - Esta é a nossa filha, Mary - disse.
Philip voltou-se para a criança, sorrindo. - Sim, eu sei.
O seu sorriso tornou-se mais brilhante, mas por consideração para com Amalie não a olhou quando
disse ainda:
- Eu também tenho um par de binóculos!
Amalie reteve a respiração, e o rosto tornou-se-lhe ainda mais ruborizado. Depois, começou a rir.
- Oh, Philip! - exclamou. - Não me digas que todos... os outros sabem!?
- Não! - sossegou-a ele, ainda sem olhar para ela, e continuando a fitar Mary com o seu sorriso
bondoso.
Mary fitava-o, por sua vez, abertamente, com os seus olhos cândidos de um azul muito claro.
- Pareces-te muito com o papá! - disse ela francamente.
- Conheces o meu papá?
- Sim, Mary - respondeu Philip muito sério, como se falasse com uma pessoa da sua idade. - Eu sou
segundo primo do teu papá. Chamo-me Philip. Philip Lindsey.
- Porque não vens visitar-nos? - perguntou Mary, apertando-lhe a mão que ele lhe estendera. - Acho
que poderia vir a gostar de ti.
Amalie ficou, de coração apertado, a aguardar a resposta de
Philip; este respondeu, depois, pensativo:
- Tenho estado fora, a estudar, Mary. Terminei agora, no
mês de Junho. Agora voltarei definitivamente para casa, e se tu
queres que eu te visite, terei muito prazer em o fazer.
- Onde é que tu vives? - perguntou Mary, interessada.
- No sopé da colina, abaixo da vossa casa.
As finas sobrancelhas prateadas de Mary arquearam-se
Numa interrogação.
- Queres dizer... "naquela casa"? - perguntou ela, enquanto Amalie escutava aquele diálogo,
assustada.
O sorriso de Philip inundou-lhe de novo os lábios, mas mais
uma vez respondeu sem fitar Amalie:
- É assim que o teu papá lhe chama? Sim, vivo "naquela
casa".
Mary, completamente ignorante do imenso embaraço de sua
mãe, disse:
- O papá costuma dizer que eu não devo ir nunca a essa
casa. Ele diz que há lá homens de pedra cinzenta e que eles
podem deixar-me gelada para sempre.
A criança sorriu para Philip, como se quisesse partilhar com ele uma confidência absurda.
- Mary! - exclamou Amalie. - Eu nunca ouvi o teu pai dizer semelhante coisa! Tu estás sempre a
inventar coisas, e estás a ser muito indelicada para com Philip!
Mary voltou para ela o seu olhar severo, e retorquiu:
- Mamã, eu não estou a inventar coisas. Tu é que dizes sempre que eu estou a inventar. Mas eu não
invento. O papá disse-me isso. Pergunta-lhe.
Amalie ficou em silêncio. Philip olhou para a criança com ternura.
- Tu pareces-te com o teu avô, minha querida - disse Philip.
Mary acenou com a cabeça num gesto de concordância.
- Sim, eu sei. O papá e a mamã disseram-me. Ele deve ter sido muito bom.
A estas palavras, Amalie e Philip romperam às gargalhadas, enquanto que Mary os observava,
perplexa. Depois, com petulância, disse:
- Mamã, o Philip não me parece nada um homem de pedra cinzenta. Têm estado todos a enganar-
me.
- Deixa lá! - disse Philip, cautelosamente. - Isso é apenas uma expressão poética do teu papá. As
pessoas às vezes utilizam palavras para expressar outra coisa totalmente
diferente.
Mary concordou, com um ligeiro gesto de cabeça e um brilho de satisfação no rosto.
- Eu sei! - disse ela num tom misterioso e lançando à mãe um olhar rápido que Amalie, agora
completamente desmoralizada, felizmente não viu.
- Vamo-nos sentar ali, Philip - disse Amalie. - Há tantas coisas que quero saber a teu respeito!
Os três dirigiram-se para o banco e sentaram-se. Mary estava absolutamente fascinada com o seu
novo parente. Sentou-se ao lado dele e olhava-o abertamente enquanto
Philip conversava com sua mãe.
Philip falou a Amalie nos anos que passara a estudar, naquela voz calma que ela lhe conhecia, mas
agora mais amadurecida, mais forte, mais segura de si. Voltara
agora, disse ele, e o pai queria que ele entrasse para o Banco.
- Mas... e a tua música? - exclamou Amalie, desgostosa.
- E os teus livros, Philip?
Philip baixou o olhar para o chão.
- O meu pai não tem mais nenhum filho, Amalie. Se ele... tivesse casado... outra vez... e tivessem
nascido outros filhos,
talvez pudesse ser diferente. Talvez eu pudesse, então, fazer o que quisesse.
Os olhos de Amalie ficaram de súbito sombrios e tristes. Ali estava outra pessoa que ela tinha
magoado. Fizera-o sem intenção, mas mesmo assim a dor apertava-lhe
o coração.
- O Banco não é tão importante como tu, Philip - disse.
Philip não respondeu. Estava a pensar no pai, sempre sombrio, pensativo, triste, sem esperança
alguma na vida. Philip sabia bem que a compaixão destrói, com freqüência,
aquele que a sente. Mas... não havia mais nada a fazer, não tinha havido mais nada que ele pudesse
ter feito para o ajudar.
- Tu não gostarás de trabalhar no Banco - continuou Amalie, obstinada, sentindo que a dor se lhe
tornava mais aguda no peito.
Philip olhou para a cascata de ramos ondulantes do choupo por cima deles.
- Isso não irá ocupar toda a minha vida - retorquiu, pensativo. - E, por outro lado, não estou
especialmente interessado no meu engrandecimento pessoal ou na fama
do meu nome.
- Ninguém tem o direito de enterrar os seus próprios talentos - disse Amalie, quase numa súplica.
Philip sorriu-lhe, como se a quisesse consolar, e retorquiu:
- Acho que não cheguei a passar de um simples principiante, Amalie. Faço tudo aquilo apenas por
puro prazer. E poderei continuar a fazer. Os principiantes têm a
sua função na vida, mas essa função não é propriamente convencer os outros de que são uns génios.
O olhar dele fixou-se nela, de modo penetrante.
- Jerome continua a pintar? Amalie corou.
- Só retratos de família - respondeu. - Tem-me pintado a mim e aos filhos.
- Bem, então, se ele tivesse realmente sido um génio, não poderia ter abandonado o seu talento -
disse Philip. - É esse o teste dos génios: andar para a frente.
Eu não o fiz, assim como Jerome também não o fez. Mas isso não significa que tenhamos de
abandonar o prazer que os nossos dons simples nos dão. Podemos gozá-los
em privado, sem termos de enfrentar a humilhação e o desespero da indiferença do mundo ou da
crítica.
A mão de Amalie repousava ao lado da de Philip. Ele pousou a sua sobre a dela, e apertou-a com
firmeza e ternura. Os olhos de Amalie encheram-se de lágrimas.
- Tu tinhas mais do que um simples dom, Philip - disse ela.
Ele tirou o relógio e viu as horas. Uma inscrição ressaltava do seu fundo dourado. Mary foi
imediatamente atraída por ela.
- Oh, que bonito! Deixa-me ver!
Pegou no relógio com os seus finos dedos e estudou-o deleitada, enquanto Philip a observava com
uma ternura divertida. Mary voltou o relógio e leu em voz alta:
- "Para o querido Philip, da sua mãe"... Oh! Foi a tua mãe que to deu. Ela morreu?
Philip tirou-lhe o relógio das mãos e voltou a colocá-lo dentro do bolso.
- Sim, querida, morreu. Amalie olhou para ele, comovida.
- Continuas a guardar o relógio, Philip? Ele fitou-a longamente e respondeu:
- Sim, Amalie. E porque não o havia de guardar? Gostei muito daquela que mo deu.
Ficou por momentos em silêncio e depois murmurou de modo quase inaudível:
- E continuo a gostar!
- Oh, Philip! - murmurou Amalie.
Ele ficou em silêncio, pensativo. Sabia que ela queria saber notícias sobre os outros. Por isso,
começou a falar, muito devagar:
- O meu pai está bem. Também não mudou muito, excepto no cabelo, que está agora quase
totalmente grisalho. E a tia Dorothea continua sem idade determinada. com a
diferença de que parece ter cada vez mais energia. E mais devoção. Acho que vivem felizes.
- Sinto-me satisfeita - murmurou Amalie. - Oh, estou tão satisfeita!
com ar muito sério, ele retorquiu:
- Pensei que ficarias.
Mary tinha estado a ouvir aquelas incompreensíveis palavras com profunda curiosidade. A sua
mamã estava tão estranha! O rosto dela tinha uma expressão esquisita,
que nunca lhe tinha visto. E aquele simpático Philip parecia tão bondoso! De súbito, disse:
- Posso ir visitar-te, Philip, "naquelacasa"? Ou... eles não vão gostar de mim?
Philip olhou-a com aquele ar grave e sério, como se estivesse a olhar para uma pessoa adulta, o que
a deixava tão satisfeita, e respondeu:
- Tenho a certeza de que haviam de gostar muito de ti, Mary. Mas são pessoas já idosas. Já não são
crianças, sabes? Não creio que fosses gostar de lá ir.
- Mas podia ver-te! - insistiu ela.
Philip pareceu meditar profundamente no argumento dela, e depois retorquiu:
- Bem, então, e que tal se fosse eu a visitar-te de vez em quando?
O nervosismo de Amalie voltou. Que iria Jerome dizer de tudo aquilo? Mas Jerome nunca tivera
qualquer hostilidade para com Philip. Até tinha sido amável, à sua maneira
descuidada e um pouco egoísta. Mary estava encantada.
- Amanhã? - perguntou, entusiasmada e ansiosa. Philip e Amalie levantaram-se, e Philip respondeu:
- Amanhã talvez não. Mas irei visitar-te em breve. Sim, acho que irei lá em breve.
Voltou-se para Amalie, e perguntou:
- Posso ir lá em breve, Amalie? Amalie hesitou; depois, respondeu:
- Sim. Sim.
Encaminharam-se juntos na direcção dos portões; Mary seguia de mão dada com Philip. Não
trocaram mais palavras até à saída. Quando chegaram junto dos portões do
cemitério, Amalie perguntou de súbito:
- Philip, eles... continuam a odiar-me?
Philip fechou os portões e repôs a tranca no sítio. Depois, sem a olhar, respondeu-lhe:
- Não creio que o meu pai alguma vez te tenha odiado, Amalie.
Preferia que ela não tivesse sido tão pouco cuidadosa. Havia coisas que era melhor não serem
pronunciadas. Recordou-se, no entanto, que Amalie nunca fora uma pessoa
especialmente dotada de tacto e sorriu.
Tomou entre as mãos o rosto escarlate da pequena Mary e beijou-lhe as faces. com grande surpresa
de Amalie, a criança não se furtou ao beijo como sempre acontecia
quando pessoas estranhas a afagavam. Pelo contrário, beijou por sua vez Philip com uma
simplicidade tocante.
- Tenho outro filho, Philip - disse Amalie. - Um rapazinho. Tem o nome do pai de Jerome.
Philip recordou-se de súbito do pai, que não tivera mais filhos não ele próprio, deformado. Os olhos
ensombraram-se-lhe.
- Deve ter sido bom...para Jerome. - disse ele.
Havia agora na voz dele qualquer coisa de frio e de formal. Amalie sentiu um arrepio gelado
percorrer-lhe o corpo. Sabia que Philip se afastara dela instintivamente,
e o desespero
inundou-a. Será que Philip a censurava? Será que ele a desprezava? Quis saber a resposta às suas
perguntas, numa ânsia quase voraz.
- Tu... não me esqueceste, Philip? - perguntou ela, com mais ansiedade na voz do que ela própria
notava.
Ele foi de novo amável. Pousou a mão fina e delicada no braço dela, e sorriu-lhe, afectuoso. Sabia
que Amalie tinha querido dizer "perdoaste", e não a palavra que
tinha proferido.
- Nunca te esqueci, Amalie. E nada, nada neste mundo faria com que eu deixasse de gostar de ti -
respondeu-lhe.
Jim, que aguardava na charrete, viu-os e ficou a olhar para eles sem poder acreditar no que via.
Capítulo quadragésimo quinto
"Aquela casa", como Jerome lhe chamava, tinha sido baptizada, com bastante falta de imaginação,
aliás, de Os Pinheiros, e erguia-se sobre cinco hectares de terra
que ondulava, suavemente, perto do sopé da colina. Tinha uma forma rigorosamente quadrada e
fora construída em tijolo vermelho; estava decorada com quatro colunas
redondas de madeira de um branco brilhante, à entrada, que subiam até à altura dos beirais do
telhado. Todo o trabalho de madeira no exterior, incluindo a porta,
era também branco. Mas os pesados pinheiros que se espalhavam à sua volta e o telhado vermelho
que a cobria davam-lhe aquilo que podia ter sido uma certa sobriedade
austera, e os seus jardins, se bem que pouco inspirados, eram excelentes.
Os canteiros, formais, cheios de gerânios e plantas rasteiras, tinham sido abertos sobre a relva e não
à sua volta. Uma outra parede de pinheiros por detrás dos
jardins, formava uma barreira natural que limitava a propriedade.
Havia um ar de simetria angulosa na casa e nos terrenos que a circundavam, e não havia varandas
ou terraços, nem torreões ou cúpulas que destruíssem a pureza das
suas linhas. As árvores de Verão davam-lhe um aspecto mais suave e mais doce, talvez, mas no
Inverno, quando os pinheiros ficavam revestidos de um verde mais escuro
e caía a folhagem das outras árvores, havia nela uma frieza que a tornava distante e quase
inacessível.
O seu interior, apesar de aquecido por lareiras e fogões, e ainda que iluminado por janelas altas e
estreitas, tinha essa mesma soturnidade fria, essa mesma distância
austera e impessoal.
Fora Dorothea quem escolhera os reposteiros e as peças de mobiliário, e também neles a sobriedade
linear do seu rosto, a
sua austeridade, a sua repulsa instintiva por tudo o que fosse suave ou colorido, era
desconcertantemente evidente e até um pouco chocante.
Dorothea gostava de madeiras pesadas e escuras e desprezava tudo o que fosse almofadado; por isso
mesmo, os sofás e as poltronas, duros, austeros e escuros, não
convidavam ao lazer de um dormitar repousado. No entanto, ela não sucumbira ao pêlo de cavalo,
nem aos drapeados de veludo para cobrir as janelas. As lareiras não
tinham qualquer adorno e não havia quaisquer vasos com penas de pavão ou plumas, uma nova
moda que ela considerava simplesmente odiosa. Também não enchera as mesas
em cada canto com peças de bricabraque ou bibelots, que considerava disparatados, para o seu
gosto, e embora as amigas achassem muito pouco convidativos aqueles
jogos de luzes sem qualquer cobertura e os enormes espaços vazios de tapetes ou carpetes, aquela
atmosfera limpa e quase ascética que ali se respirava era refrescante.
As suas cortinas eram de renda, os reposteiros eram finos e de cor pálida, e o sol de Verão e as
brancas sombras de Inverno entravam livremente em todas as salas
e quartos. Tudo, em suma, era sóbrio, frio, pouco acolhedor.
Se Alfred e Philip não encontravam nenhum canto mais recolhido ou confortável onde pudessem ler
ou simplesmente repousar, não sentissem qualquer sensação de privacidade
e calor, sentiam-se, por outro lado, demasiado gratos a Dorothea pelo escelente arranjo e ordem da
casa, e pela sua competência, para se queixarem.
Por vezes, Philip achava tudo aquilo demasiado deprimente e soturno e, quando finalmente
regressou da universidade, remodelou os seus aposentos, modificando-os por
completo. Dorothea, com fria reprovação, queixou-se de que ele estava a destruir a simetria da casa
e da sua decoração e também a "criar trabalho" para os criados.
Todavia Philip, com uma delicadeza a que ela não conseguia resistir, explicou-lhe que precisava de
mobiliário mais suave e mais leve e de luz menos intensa, e também
de um pouco mais de calor e conforto, por causa da sua saúde delicada. Isto era, claro, pura
hipocrisia, mas Philip preferia uma mentira agradável a um combate aberto
e melindroso. Por outras palavras, Philip era possuidor de um espírito cheio de tacto e de
ponderação.
Philip sabia que Dorothea o adorava, como poderia ter adorado um filho da sua própria carne. Muita
da antiga devoção que sempre dedicara a Alfred passara-a para
o filho deste. Sentia um prazer secreto, e nunca revelado, por ele regressar a casa para sempre, e por
ter terminado os seus tempos de estudo.
Sonhava com o casamento dele com uma senhora dotada, obediente, de famílias de nome e
educação, que não interferisse na direcção da casa. Uma rapariguinha pálida,
suave, calma, que desse, pelo menos, netos a Alfred.
Que importância tinha que o querido Philip fosse deformado? Ele tinha um rosto fino, era um
cavalheiro elegante, de modos delicados, era rico, herdaria a sua parte
no Banco, era culto e viajado. Era, pois, um excelente partido, apesar da sua deformidade física.
Dorothea estava impaciente com aquele casamento. Sally Tayntor casara com o filho de Mr.
Hendricks, o advogado de Alfred, com fortuna própria, muito considerável,
e tinha já três adoráveis rapariguinhas. Uma delas poderia, decerto, casar com o filho de Philip,
embora pudesse haver dois ou três anos de diferença nas idades.
Josephine Tayntor estava ainda solteira; transformara-se numa mulher pálida, silenciosa, embora de
uma graciosidade elegante. Era apenas três ou quatro anos mais
velha do que Philip, e Dorothea procurava sempre fazer com que ela jantasse com freqüência em Os
Pinheiros, quando Philip se encontrava em casa.
Dorothea estava cheia de planos.
Tinha sido um sofrimento quase insuportável quando Alfred a informara de que não tencionava
casar outra vez. Dorothea, a princípio esperançada de que ele voltasse,
por fim, o seu olhar para ela, tinha perdido todas as esperanças. com o seu natural bom senso, a sua
capacidade para tirar sempre o melhor de tudo, até da própria
adversidade, apoderara-se do que ainda lhe restava e contentava-se em criar um lar para o seu primo
e para Philip. Já não se sentia infeliz. Tinha agora quase quarenta
e oito anos, e a sua antiga paixão por Alfred transformara-se numa profunda afeição fraterna, bem
envolvida em toucas de folhos, aventais imaculadamente brancos,
vestidos severos de bombazina escura, com cheiro a lavanda fresca e sabão.
Achava que Alfred era feliz. Estava já com quase quarenta e nove anos, e as suas maneiras e gestos
continuavam rígidos, pontuais, iguais ao que sempre tinham sido.
O cabelo, outrora claro, tinha embranquecido e havia rugas no seu rosto quadrado e largo. Os olhos
cor de avelã eram frios e sempre reservados. Mesmo quando falava
de Jerome, a voz mantinha-se-lhe calma, reservada e fria, sem a mínima inflecção de ódio, raiva ou
amargo antagonismo. Dorothea reparara nisso com um certo alívio.
Na sua opinião, Alfred cortara também, radicalmente, com o passado. O que estava feito, estava
feito e pronto. O futuro poderia surgir um pouco pavimentado de pedras
duras e bicudas, mas não
havia sombras duvidosas ao longo do seu caminho, nem arvoredos escuros e sombrios a quebrar-lhe
o traçado rectilínio, nem secretas passagens de recordações ou lamentos.
Mas Dorothea não sabia que, muitas vezes, durante a noite, Alfred se sentava horas a fio à janela do
seu quarto, e olhava lá para cima, para Hilltop, com o cérebro
e o coração cheio de pensamentos que encheriam Dorothea de dor e de sofrimento. Ela não sabia
das suas longas noites de insónia, das longas e penosas noites em que
ele suspirava e se mexia na cama, estendendo os braços, numa busca vã, para o espaço vazio a seu
lado. Ela não sabia que, numa caixa de ferro que escondia no seu
guarda-roupa, Alfred guardava recordações de Amalie; um pente, um pedaço de fita de veludo cor
de rubi, um botão de flor em renda que um dia lhe ornamentara o pescoço,
as cartas que ela lhe escrevera, uma das suas finas meias de seda e o anel de casamento que ela
usara. Isto, para Dorothea, teria parecido, se o soubesse, um sentimentalismo
perigoso.
O pior de tudo, no entanto, era que Alfred guardava também uma adorável miniatura de Amalie que
ele tinha mandado pintar durante a lua-de-mel que tinham passado
em Saratoga. Era incrustada de brilhantes. Para a paz de espírito de Dorothea era preferível que ela
não soubesse que a parte de trás dessa miniatura, em veludo,
estava gasta de tantas vezes Alfred lhe pegar, e que muitas vezes ele adormecia com ela na mão,
depois de a ter olhado longamente, depois de ter fitado com emoção
aquele rosto pálido, os lábios vermelhos e cheios, os olhos cor de violeta.
A vida decorria calma, inalterável e com uma eficiência sempre igual em Os Pinheiros. Não havia
ali correntes efervescentes, alaridos, perturbações acaloradas, noites
de insónia, nenhuma instabilidade menos confortável, nada, em suma, que perturbasse aquela rotina
monótona. Tudo era paz, cortesias, delicadezas agradáveis. O nome
de Amalie jamais era mencionado; a sua recordação, pelo menos para Dorothea, nunca caminhava
pelos corredores longos e frios, nunca sorria aos espelhos. Ela não
passava de uma miserável que morrera, fora rapidamente enterrada e logo de imediato esquecida.
Se Dorothea alguma vez erguia os olhos para Hilltop, imponente, cinzenta, e quente à luz do sol, ou
com as chaminés fumegantes e o telhado parecendo queimar contra
os agrestes céus de Inverno, forçava-se a não pensar que Amalie Maxwell se encontrava dentro
daquelas paredes espessas, juntamente com os seus filhos. Aquela era
uma casa de sonhos, onde vivera William Lindsey, e que ali permanecia imutável, no cimo da
colina. Dorothea apagara dentro de si todas as recordações. A
casa era apenas uma miragem da sua juventude, uma miragem que se fora tornando-se irreal e
imaterial. Não sentia qualquer desejo de subir a colina para olhar os
jardins que outrora tratara, para espreitar, através das janelas, a mobília familiar e as velhas lareiras
que sempre conhecera. Tudo aquilo existira uma vez, mas
desaparecera para sempre.
Philip, sempre tratado com invariável delicadeza e afeição por seu pai, tinha-se tornado muito
querido de Alfred. Na realidade, Alfred já não sofria com a deformidade
do filho, já não o magoava que as costas de Philip tivessem uma curvatura fora do normal. Não via
no rosto dele qualquer semelhança com Jerome; o rosto do filho
era gentil, meditativo, revelando uma integridade forte e complacente. Havia, no carácter de Philip,
muitos traços que faziam recordar William Lindsey a Alfred e
Alfred jamais se esquecera daquele que tinha sido seu tio.
Philip, sem qualquer resistência, acedera em entrar para o Banco. A princípio, Alfred sentira-se
preocupado com os dotes e as tendências artísticas que via no filho.
No entanto, quando, preparado para encontrar fortes argumentações e protestos, discutira o Banco
com Philip, o filho concordara prontamente com tudo o que o pai
lhe propunha. Se não revelara qualquer entusiasmo e ansiedade de entrar para o Banco rapidamente,
também não demonstrara desapontamento nem revolta.
Alfred decidira, após a conversa que tivera com Philip, que o filho entraria para o Banco em
Setembro. Entretanto, devia "descansar". Alfred descobrira que a presença
de Philip em casa fazia com que ele próprio regressasse ao lar com agradáveis sensações de orgulho
e contentamento. Philip era sempre muito atencioso, cortesmente
interessado, respeitador e afectuoso. O rosto de Alfred, que se tornara cada vez mais sombrio e sério
durante os últimos dez anos, ficava sempre mais alegre quando
avistava o filho à sua espera junto dos portões de Os Pinheiros ou na sala de entrada, quadrada e
austera.
Costumavam passear os dois, mais tarde, depois do jantar, nos jardins formais e simétricos, ou
ficavam sentados junto da lareira da biblioteca, discutindo assuntos
do Banco ou os seus amigos, ou ainda o desconcertante futuro de Riversend.
Philip escutava atentamente as queixas de Alfred, as suas expressões de reservada censura e de
desagrado, a sua pesada resignação. E as suas respostas eram sempre
afáveis, compreensivas, atenciosas. Alfred, sempre tão solitário em toda a sua vida, sempre tão
retraído pelo seu secreto complexo de inferioridade, sempre tão ávido
de compreensão e de ternura, encontrara um lenitivo imenso no seu filho. Considerava-o um
amigo. Os dias eram, agora, menos sombrios e as noites menos vazias.
Alfred não suspeitava que Philip, na sua extrema compaixão pelo pai, na determinação que a si
próprio impusera de trazer um pouco de felicidade e de paz àquela vida
crua e sem interesse nem esperanças, decidira sacrificar a sua própria vida e as suas próprias
esperanças. Philip conhecia bem o pai, e por vezes sentia-se invadido
por uma verdadeira e silenciosa angústia e piedade. Os caminhos pedregosos e solitários da
existência de Alfred eram claramente perceptíveis à compreensão de Philip,
e este decidira fazer tudo o que estivesse ao seu alcance para tornar esses caminhos mais suaves,
revestindo-os de folhagem fresca e verde e de alguns jardins aromatizados.
Assim, até àquele momento não tinha havido conflitos ou fricções com o pai. Mas... iria haver um
agora, e ele sabia-o. Philip não era, por natureza, furtivo ou dissimulado,
e por vezes a sua integridade natural sobrepunha-se ao extraordinário tacto que possuía.
Chegara o momento em que os fantasmas, havia muito sepultados, deviam ser arrancados dos seus
túmulos. Philip pensava que seria fácil não fazer qualquer referência
ao seu encontro com Amalie e sua filha no cemitério, e não dizer, de modo casual, que tencionava
visitar Hilltop. Apenas teria de fazer essas visitas em segredo,
e deixar que seu pai continuasse a viver naquela paz um pouco enganadora.
Mas Philip decidira, teimosamente, que os fantasmas sepultados tinham o hábito terrível de
abandonarem os seu túmulos em momentos inesperados, e suspeitava que muita
da dor sempre viva que seu pai sentia podia ser aliviada se um certo ar de naturalidade pudesse ser
dado aos habitantes de Hilltop.
Philip sabia aquilo que Dorothea desconhecia por completo. Sabia que seu pai se sentava muitas
vezes à janela do seu quarto e ficava ali longos momentos a olhar
para a casa no alto da colina. Além disso, com a sua clara percepção dos sentimentos humanos,
Philip não acreditava que fosse melhor não verem Amalie, nem reconhecerem
a sua existência nem a existência dos seus filhos. De certo modo, para Philip, aquela atitude de
Alfred e de Dorothea era absurda.
Se o pai pudesse ouvir falar de Amalie de vez em quando, aquele ar de dor gelada poderia, talvez,
desaparecer dos seus olhos; pelo menos, Philip assim o pensava
e, sorrindo satisfeito, disse a si mesmo que estava a racionalizar o seu desejo de ver Amalie sempre
que quisesse.
Philip dirigiu-se até aos portões de Os Pinheiros para ali aguardar a chegada do pai. Por causa da
sua saúde, Alfred
costumava percorrer a pé os curtos dois quilómetros que separavam o Banco de sua casa, e fazia-os
todos os dias, excepto em ocasiões em que o tempo estava demasiado
rigoroso. Philip avistou-lhe a figura alta, larga e muito direita a subir a pequena inclinação que
conduzia à propriedade. Agora que se encontrava longe das ruas
de Riversend, Alfred sentia que podia pôr um pouco de lado a sua rigidez, e retirara, por isso, o
chapéu, na brisa quente de Agosto. A sua cabeça, grande e redonda,
quase branca à luz do sol poente, erguia-se num gesto pomposo, quase magistral. O seu orgulho,
sempre forte, tornara-se nos últimos dez anos mais austero, à medida
que uma e outra bofetada lhe ia sendo infligida. Enfrentara cada acontecimento com uma coragem
inabalada, e tinha, por isso, inspirado respeito mesmo entre aqueles
que não gostavam dele e se riam dele em segredo.
Se, dentro de si próprio, guardava a dura tenacidade do desespero, que mantinha nua no seu coração
qualquer árvore outrora frondosa e cheia de frutos, e se nem uma
só esperança florescia, só o seu filho o sabia. Tinha apenas quarenta e nove anos, e se o seu cabelo
não tivesse embranquecido durante os últimos anos, teria passado
por muito mais novo, tamanho era o vigor que lhe transpirava de cada movimento, tão peremptória
era a sua voz e tão firmes os seus gestos.
Momentos havia em que Philip chegava, com prazer, à conclusão de que o pai, tão pouco
imaginativo, tão pomposo e circunspecto, tão limitado nas suas atitudes e opiniões,
tinha começado a pensar. Philip pensava que o desespero era, por vezes, o grande dinamizador do
pensamento, embora por vezes também os seus resultados fossem estéreis.
Se Alfred pensava, se a outrora calma e um pouco egoísta crosta da sua natureza fora rasgada por
constantes e violentos tumultos subterrâneos, então a sua natureza
estava a crescer, abaixo da superfície, expandindo-se dolorosamente e com surdos rugidos, mas
expandindo,-se realmente. Havia momentos em que a sua voz dogmática
vacilava, um pouco à deriva, em que um ar de dúvida parecia ensombrar os seus olhos de avelã, em
que a sua mão, erguida num gesto didáctico, caía lentamente e ficava
com que abandonada, perdida, hesitante.
Alfred não tinha um temperamento que se fosse suavizando com a idade; pelo contrário, tinha uma
tendência inata para se ir cristalizando em moléculas mais pequenas
e mais duras. Todavia, Philip, com um prazer secreto e muito íntimo, julgara descortinar por vezes
rasgos de uma natureza que se ia tornando mais desgostosa com
a sua própria omniscência, e sabia que esse descontentamento era o sinal de uma alma que
aumentava de estatura e que se empurrava vigorosamente a si mesma,
ainda que com sofrimento, contra as duras fronteiras da sua
velha couraça.
Nessas alturas, Philip pensava:
"Se não puder fazer mais nada, ao menos posso empurrá-lo!"
Quando Alfred viu Philip à sua espera junto aos portões,
apressou o passo, e acenou com o chapéu, gritando:
- Olá!
Philip acenou-lhe também, e começou a caminhar lentamente na direcção do pai. Encontraram-se a
meio caminho dos portões. Alfred olhou para o filho afectuosamente.
Pousou-lhe a mão sobre o ombro, e juntos dirigiram-se para casa.
Tinha Philip "descansado" durante o dia? Tinha tomado o seu tónico? Tinha passeado um pouco?
Tinha dormido?
- Fui até ao cemitério e pus alguns lírios na campa do tio William - disse Philip.
- Ah, sim! - retorquiu Alfred, enquanto uma sombra de tristeza lhe inundava o rosto. - Passa hoje o
aniversário da sua morte.
A firmeza da sua mão sobre o ombro de Philip abrandou um pouco.
- Mas esse lugar é um pouco deprimente para ti, Philip. Não devias ter lá ido.
- Pelo contrário, pai, não me deprime mesmo nada! - respondeu Philip num tom jovial. - Gosto de
pensar no meu velho tio. E... pode pensar que imagino coisas, mas
às vezes penso que ele se encontra ali comigo, e temos conversas muito amenas e agradáveis.
Alfred pareceu pouco à vontade, mas o olhar que lançou ao filho era, ao mesmo tempo, perturbado
e esperançoso.
- Bem, talvez! - admitiu. - Mas, se fosse eu, não transformava isso num hábito!
- Quando voltei para casa, fiz uma leitura bastante demorada daqueles livros sobre a actividade
bancária que me trouxe ontem - disse Philip.
O sorriso de Alfred foi mais espontâneo do que antigamente, e também menos soturno.
- Leste? Achaste-os interessantes?
- Sim, de facto. Há muito de romance nos negócios de um banco.
Alfred franziu a testa, numa dúvida surpreendida.
- Romance? Romance nos negócios? Num banco?
- Quero dizer, podia ser excitante! - emendou Philip, com tacto e cuidado.
O rosto do pai pareceu desanuviar-se, com prazer.
- Bem! - disse Alfred. - Eu não sei nada de excitações.
Às vezes entregas-te a essas linguagens extravagantes. Suponho que queres dizer que não deixa de
ter interesse. É isso?
- Sim - respondeu Philip, sorrindo.
Tentara evitar aquele sorriso, mas não o conseguira.
- E como está a tia Dorothea, hoje? - perguntou Alfred, quando chegaram ao caminho empedrado
que conduzia à casa.
- Esplêndida, como é hábito, e muito cheia de energia. Descompôs três criadas, e pareceu ficar
muito bem disposta depois disso.
O sorriso de Alfred foi quase infantil.
- Na verdade, ela é uma excelente disciplinadora. Mas não podemos censurá-la, Philip. A disciplina
parece estar a desaparecer hoje em dia, na América. E devo dizer-te
que observo isso com um certo alarme.
Se Philip se sentia, por vezes, divertidamente impaciente pela tendência do pai em utilizar
aforismos, e se os achava sensaborões e entediantes, nunca o dera a entender.
Assim, compôs uma expressão séria no rosto e limitou-se a acenar com a cabeça, como se
concordasse com as palavras do pai. Alfred sentiu-se satisfeito. Entraram
em casa com uma agradável sensação de entendimento e afeição mútuas.
Dorothea esperava-os na sala de entrada, onde se viam apenas painéis de madeira muito escura,
cadeiras e bancos sem qualquer estofo. Cumprimentou Alfred com uma
amabilidade cortês, perguntou-lhe se não se sentia acalorado depois da caminhada que fizera desde
o Banco até casa, e anunciou-lhe que tinha preparado uma limonada
e uns biscoitos de que ele se poderia servir, enquanto não chegava a hora do jantar. Enquanto falava,
olhava de pai para filho com mais suavidade do que ela própria
imaginava, e depois afastou-se, apressada, para ir buscar o refresco de que falara. Alfred dirigiu-se
ao seu quarto para se refrescar um pouco, e Philip encaminhou-se
até ao terraço das traseiras, sentou-se numa cadeira trabalhada de ferro e esperou que o pai se lhe
juntasse.
Capítulo quadragésimo sexto
Alfred vestira um casaco de alpaca preta, mais leve por causa do calor, e uma gravata de um azul
suave, em vez das rígidas gravatas que normalmente usava durante
as horas de trabalho. Sentou-se ao lado de Philip e alongou o olhar tranqüilo sobre os jardins que se
estendiam para lá do relvado simples e sem ornamentos. Um ulmeiro
próximo lançava as suas sombras
rendilhadas sobre a terra quente, e o céu do entardecer tinha adquirido um tom turquesa velado.
- Teve um dia difícil no Banco?- perguntou Philip, enquanto beberricavam a limonada que Dorothea
lhes trouxera.
- Não. Foi um dia calmo, invulgarmente calmo. Apenas os negócios e assuntos de rotina.
Alfred estava pensativo.
- Vais gostar da atmosfera que se respira no Banco, Philip
- disse Alfred, ao fim de algum tempo, durante o qual parecia ter meditado profundamente em
qualquer coisa. - É estável, assente em bases muito sólidas e firmes.
Não há nada de febril ali. Mas isso deve-se ao facto de o nosso negócio se basear na própria terra,
nas quintas, isto é, em propriedades reais e bem sólidas. Não
temos ali nada de aventureirismos, nem coisas perigosas ou especulativas.
A sua expressão tornara-se mais sombria e fechada, e os olhos fixaram-se-lhe nos canteiros de flores
ao fundo do jardim.
- Nada de perigoso - repetiu Philip.
Alfred fez um gesto afirmativo com a cabeça, e continuou a falar:
- Estou realmente preocupado com o... o novo espírito... que está a invadir a América. É muito
pouco seguro.
Remexeu-se na cadeira, como se estivesse pouco confortável, e disse ainda:
- De facto, às vezes sinto medo. Não consigo conceber nada mais ameaçador, mais destruidor da
dignidade do indivíduo do que esta mudança terrível que se está a operar
na América, esta transformação de uma economia baseada na terra para uma sociedade urbana e
industrial, onde os homens deixarão de ter raízes e passarão a sua existência,
não debaixo do sol, mas dentro das escuras paredes de uma fábrica. Evidentemente, não acredito
que essa ameaça se estenda e se alargue cada vez mais até se tornar
num facto universal e consumado. Mas a tendência existe, nos espíritos de homens instáveis e
aventureiros que não se importam com o bem-estar do povo americano.
- Talvez a idéia que eles têm do que é o "bem-estar" do povo americano seja simplesmente diferente
da... nossa.
Philip juntou a última palavra com o seu habitual tacto, pelo que o primeiro olhar de reprovação que
Alfred lhe lançou, logo se tornou mais suave.
- Eles não se interessam nada pelo bem-estar do povo disse ele de modo dogmático. - Apenas se
interessam por lucros. e quanto maiores eles forem, melhor.
Permitiu-se um sorriso que num rosto menos forte e anguloso teria sido quase irónico, e disse:
- Eu não sou contra os lucros. Mas acredito mais em lucros pequenos, freqüentes e sólidos, que não
perturbam o equilíbrio de uma sociedade segura e ordenada. E também
acredito que tais lucros apenas podem resultar da terra e do povo que nela trabalha. Fábricas! Quem
é que vai proteger ali os trabalhadores? Quem olhará pela sua
saúde, pelos seus direitos constitucionais, de modo a que eles não se transformem num peso morto
para a sociedade? Não, Philip, vejo surgir uma sociedade sem rosto,
uma nação de homens sem lar, sem dignidade, nem orgulho, nem respeito por si próprios.
"bom!", pensou Philip, aprovadoramente. "Quando um homem começa a utilizar metáforas, é
porque o seu cérebro está mergulhado em dúvidas. Mas quem é que julgaria
alguma vez o meu pai capaz de metáforas?"
Olhou para Alfred e reparou que todo aquele longo e rápido raciocínio tinha perturbado a rígida
superfície do seu rosto, tornando-o quase fluido.
Como se meditasse nas palavras do pai, Philip retorquiu pausadamente:
- Compreendo perfeitamente o seu ponto de vista. Há muita coisa por detrás daquilo que disse, pai.
Mas aquele ano, ou pouco mais, em que eu estudei Leis em Harvard
deu-me uma espantosa tendência para olhar também para o outro lado das coisas, ou pelo menos
tentar compreender os objectivos que os outros tentam atingir. Não é
que eu concorde. Limito-me simplesmente a observar e a analisar os dois lados da questão
desapaixonadamente.
Alfred sentiu-se muito confuso com as palavras do filho, mas o orgulho que tinha nele levava-o a
fixar em Philip um olhar de espectativa ansiosa e atenta.
- Ouçamos, então, o outro lado! - disse ele, indulgentemente.
Philip recostou-se melhor na almofada da cadeira de ferro e olhou pensativo para uma árvore à sua
frente.
- Tem havido muitas discussões sobre este assunto, pai disse ele. - Tenho lido isso nos jornais e nos
periódicos. Há homens, e nem todos são ávidos de fortunas
fáceis
ou exploradores exigentes, que acreditam que uma nova era industrial trará mais conforto, educação
e liberdade ao homem comum. Vêem as comodidades produzidas em
tal quantidade, e a preços tão acessíveis, que aquilo que é luxo hoje será a agradável necessidade de
amanhã...
- Um processo diabolicamente suave! - protestou Alfred.
Philip inclinou a cabeça, e retorquiu:
- Talvez. Lembre-se que estou apenas a reproduzir aquilo que dizem os que defendem uma
sociedade industrial e urbana.
Fez uma ligeira pausa, e depois continuou:
- Esses homens imaginam a existência de grandes centros industriais, rodeados por pequenos jardins
que por sua vez rodeiam casas individuais, depois de uma nova
consciência de responsabilidade social ter acabado com todos os bairros delata que tanto se vêem
por aí agora. Eles dizem que pode ser muito "dignificante" ter uma
sociedade baseada na terra, mas que poderá ser muito mais agradável usar sapatos bons e baratos e
ter ainda dinheiro no banco.
- Isso é encorajar o homem comum a erguer-se da situação em que se encontra e que ocupa na
sociedade sem os preliminares da luta, do trabalho próprio e do auto-sacrifício
- disse Alfred. - Uma vida fácil e urbana torna o homem indolente e egoísta, que pensa que tem
"direitos" sem deveres.
Philip enrugou os lábios num gesto de dúvida e repetiu, desta vez sem hipocrisia:
- Talvez. Há muito de verdade naquilo que diz. Eu estou só a formar uma teoria, a partir dos
argumentos desses novos entusiastas.
Alfred tornou-se mais excitado.
- Uma economia com base no solo é uma economia de ritmo natural. É estável. Inspira confiança na
continuidade do governo, na continuidade da vida pessoal e familiar.
É uma afirmação do futuro.
"bom!", exclamou de novo Philip para si próprio. "Ele está realmente a pensar. Tem andado a pensar
e a repensar neste assunto ao longo destes anos todos. E eu? Estarei
de acordo? Não sei. Realmente, não sei!"
Depois, em voz alta, disse:
- Lembre-se, pai, que eu estou apenas a repetir os argumentos dos outros. Estou só a pedir-lhe a sua
própria opinião. No entanto, é um facto que a América está a
tender para a centralização e para a urbanização. É inevitável, dizem eles, que a economia baseada
no solo seja ultrapassada. Devemos, creio eu, procurar noutro
lado a permanência e a continuidade, e também a nossa terrivelmente necessária segurança.
Quase exaltado, Alfred perguntou:
- Onde? Nas fábricas? Nas cidades desmedidamente grandes e sem raízes de qualquer espécie?
Philip abanou a cabeça, num gesto de desalento, e respondeu:
- Não sei. Mas talvez os homens devam criar uma economia de valores estáveis e espirituais, de
virtudes
intelectualizadas. Quanto muito, isso seria pão seco, admito, e só conseguiria ser digerido por
alguns. Teremos de encontrar qualquer coisa... Sinto que o crescente
desenraízamento poderá conduzir a assustadores ciclos de pânicos, depressões, e até mesmo a
guerras mundiais. Sim, teremos de encontrar qualquer outra coisa... mas
não sei o quê.
Olhou para o pai, com uma expressão de pesar. Alfred estava mergulhado de novo em pensamentos.
O seu rosto, se bem que resistindo, estava a atraiçoá-lo.
"Ele sabe que a sua época está a passar" pensou Philip. "E tem medo!"
Alfred disse:
- Farei tudo o que estiver ao meu alcance para manter a velha economia baseada no solo. Receio
bem que os da minha espécie estejam a perder terreno. Mas não nos
afundaremos sem luta.
Levantou-se. Agora a sua maciça figura parecia um pouco curvada e abatida. Levou a mão à cara e
esfregou-a com a palma aberta, lentamente. A inquietação que se lhe
lia nos olhos aumentou, e a expressão dele tornou-se melancólica ainda que determinada. com voz
muito calma, disse:
- Repara no que se está a passar agora aqui, em Riversend, desde... desde... Jerome. Os
trabalhadores bem pagos-daquelas abomináveis fábricas e indústrias não sabem
o que hão-de fazer consigo mesmos. Não têm nada senão o seu salário, o pagamento que recebem.
Os olhos de Philip pestanejaram rápidos e pareceram cintilar quando fitaram o pai.
"Nada senão o pagamento que recebem!", repetiu ele para si próprio. "Sim, o meu pai começou a
pensar, graças a Deus! E desta vez tem razão. Mas pergunto a mim próprio
se ele terá consciência dessa razão que tem, da profunda verdade da sua afirmação e das sinistras
implicações que dela decorrem."
E Philip pensou que, por vezes, os homens simples proferiam palavras proféticas que ultrapassavam
o seu próprio entendimento. Todo um mundo de perspectivas sombrias
que se abriam diante de Philip, com as últimas palavras que o pai proferira, pareceu abater-se sobre
ele. Mas duvidava que Alfred visse à sua frente todo esse mundo
de conturbações, tumultos e fome, esse mundo revoltado e sem lar, esse mundo perigoso e perdido,
sem estabilidade, nem fé, nem responsabilidade individual.
E Philip pensou:
"Tanto o meu pai como Jerome têm razão. E ambos estão errados, também!"
A sineta para o jantar fez-se ouvir. Alfred estava tão mergulhado nos seus pensamentos que se
sobressaltou. Voltou-se então para Philip e disse, com um sorriso ao
mesmo tempo surpreendido e divertido:
- Jantar!
Era como se só ele tivesse ouvido a sineta.
Entraram juntos em casa. A fria e austera sala de jantar estava inundada pela luz desmaiada do
entardecer, pois a sala ficava virada para leste. A atmosfera era
esbranquiçada e difusa, e a penumbra que começava a envolver tudo era realçada pelos estreitos
armários de louça, feitos em madeira muito escura, que se erguiam
do chão até ao tecto, ele próprio igualmente escuro.
A mesa redonda, coberta com uma toalha de linho, cintilava como prata. As janelas, altas e estreitas,
davam para os jardins já meio escurecidos pelo lusco-fusco,
já desmaiados de cor. De uma árvore invisível, um pardal lançava o seu gorjeio distante e
melancólico para o silêncio cinzento e sem brisa.
O jantar era excelente, forte e sem imaginação. Se Philip sentia, por vezes, saudades de uma lagosta
delicadamente preparada, de requintados cozinhados com ervas
e bacon, de carnes temperadas com molho de vinho, de tudo quanto saboreara no Delmonico
quando das suas freqüentes visitas a Nova Iorque, era, porém, suficientemente
cortês e delicado para não se referir a isso, nem ao de leve.
Não gostava do pesado vinho do Porto que era servido com os jantares de Alfred, mas este insistia
para que o filho o bebesse, porque lhe fazia bem ao "sangue". Invariavelmente,
Philip encolhia os ombros àquelas palavras. Via a fina elegância do seu líqüido vital tornar-se
espessa com aquele vinho abominável, pois sentia-o correr mais devagar,
e o cérebro ficava-lhe sempre como que emperrado e preguiçoso depois de o beber.
Bebia, pois, o vinho do Porto apenas em pequenas quantidades. Não admirava que os Ingleses
amassem tanto o seu status quo! Carne em sangue e vinho do Porto era o
suficiente para transformar o mais sóbrio dos homens no mais brutal e estúpido dos seres. Philip
recordava-se, com saudade, dos vinhos latinos, leves, saborosos,
que experimentara. Ah, esses eram os vinhos da literatura brilhante, das estátuas maravilhosas
esculpidas, da graça da vida e da versatilidade dos governos! Lembrava-se
que tinha ouvido dizer que os Portugueses não bebiam aquele poderoso vinho do Porto que eles
próprios fabricavam, mas que apenas o destinavam à exportação. Elogiou-lhes
a perspicácia e o bom senso.
Esperou até verificar que Dorothea e Alfred tinham ficado satisfeitos e que as suas sensibilidades
estavam de certo modo
menos aguçadas pela própria gravidade específica daquela pesada refeição; preparava-se para lançar
um fósforo aceso sobre a madeira humedecida em vinho do Porto
das suas reacções.
E então, disse:
- Estava muito agradável no cemitério, hoje. Os seus lírios eram maravilhosos, tiaDorothea!
Dorothea retorquiu-lhe:
- Só os tenho aqui porque tu gostas, Philip.
Ele inclinou a cabeça na direcção dela, com um sorriso, e disse:
- Eu sei. É muita amabililidade sua. Extremamente agradada, Dorothea retorquiu:
- Eu sei que devia ter lá ido. Mas tinha imensas coisas a fazer cá em casa e, além disso, não consigo
convencer-me de que o meu pai está ali.
A sua face seca, já ligeiramente enrugada, entristeceu-se.
- Gostaria que tivesse ido, tiaDorothea! - disse Philip. Depois, com toda a naturalidade, adiantou:
- Tive o prazer de ver lá a pequena filha de Jerome. Uma criança encantadora. Parece-se com o avô.
Verificou de imediato que a madeira humedecida em vinho do Porto era perfeitamente capaz de se
inflamar. Tanto Dorothea como Alfred voltaram-se para ele com uma
rapidez violenta, os rostos de ambos endurecidos, estupidificados, ensombrados por nuvens de
emoções contraditórias. Calmamente, Philip continuou a beberricar o
café que tinha à sua frente, fingindo não se ter apercebido da profunda perturbação que tinha
provocado.
Por fim, com voz enrouquecida e as mãos trémulas, Dorothea disse:
- Espero... que não lhe tenhas dirigido a palavra, Philip. Philip ergueu as sobrancelhas num
artificioso espanto.
- Não lhe dirigir a palavra? Porque não? É uma criança tão adorável! Parece arrancada aos contos
de fadas! Teria sido impossível não lhe falar. Eu estava sentado
à sombra de um dos choupos, e ela foi descobrir-me ali.
Dorothea atirou-se pesadamente contra as costas da cadeira. Olhou para Alfred. Esperava ver-lhe ira
nos olhos, uma fúria gelada na boca. Mas Alfred olhava para Philip
com uma expressão estranha e curiosamente espectante, a larga cabeça esticada para a frente, como
se quisesse ver melhor.
- Estava... estava lá mais alguém, Philip? - perguntou Alfred, com uma voz quase imperceptível,
como se não tivesse corpo.
Philip pousou a chávena e respondeu com grande naturalidade:
- Sim. A mãe dela.
Dorothea ficou sem respiração. Continuava a olhar fixamente para Alfred.
Alfred afastou os olhos do filho. Começou a percorrer abstractamente com o dedo o rebordo do
pires, e não disse nada. Tinha a cabeça inclinada, e o rosto perdido
na crescente obscuridade que invadia a sala.
Vendo que Alfred não pronunciava palavra, Dorothea gritou, indignada:
- Philip! Não me digas que tu falaste com aquela horrível
criatura? Não me digas que tiveste conversas com... com ela!
Philip olhou-a como se tivesse ficado imensamente surpreendido com a reacção dela.
- Sim, falei, tia Dorothea! E porque não?! Ela foi sempre gentil para comigo, quando eu era rapaz.
Nunca tive qualquer zanga ou desavença com ela.
Dorothea olhou-o com fria incredulidade. Mal conseguia
falar, de tal maneira intensa era a sua sensação de ultraje. Depois, exclamou rapidamente:
- Qualquer zanga com ela! Philip, tu enlouqueceste?
Tornou a virar-se para Alfred, mas a cabeça deste continuava inclinada, imóvel, quase estática. O
dedo continuava a seguir os contornos do pires, num gesto absorto
e ausente. Dorothea mal podia acreditar! Voltou-se de novo para Philip. Vibrava de paixão e os seus
olhos escuros estavam dilatados com a fúria que a queimava.
- Tu enlouqueceste? - repetiu ela, muito dura. - Já te esqueceste do que ela fez... a todos nós? Será
que é preciso que te conte outra vez tudo, injúria atrás de
injúria? Philip, isso nem parece teu! Como é que tu podes ser tão insensato, tão esquecido, tão cego,
tão sem decência e respeito por ti próprio?
Philip, extraordinariamente calmo, retorquiu:
- Não vejo onde é que entra a "decência" neste assunto. A senhora falou-me primeiro, depois da
criança me ter descoberto. Haveria eu de as deixar, de lhes voltar
as costas, malcriadamente, estupidamente? Creio que ainda sou um pouco civilizado.
Pelo canto dos olhos, observou o pai.
Dorothea afastou a cadeira da mesa, num gesto brusco.
- Se tu tens tanta falta de sensibilidade, de honra pessoal, de orgulho... então não tenho mais nada a
dizer-te! Só posso dizer-te que me decepcionaste profundamente.
Respirava com dificuldade, e o seu rosto muito pálido estava desfigurado pela raiva e a violência
reprimida.
Olhou de novo para Alfred. Porque é que ele não dizia nada? com uma voz cada vez mais
embargada pela violenta emoção que a avassalava, Dorothea continuou:
- Não tens qualquer consideração para com o teu pai? Não tens o mínimo de respeito por ele? Já te
esqueceste do que aquela Jezebel lhe fez, a desgraça que ela trouxe
a todos nós? Já te esqueceste de que foi ela a causa da morte do meu avô... a causa directa?
Philip continuava muito calmo.
- Eu só sei que houve uma série de acontecimentos infelizes, mas perfeitamente inevitáveis -
retorquiu ele. - Os acontecimentos decorrem do carácter, e o carácter
é fixo. O que aconteceu, tinha de acontecer. Não vejo onde é que eu posso ser acusado de qualquer
falta de consideração para com o meu pai, ou de falta de respeito
por ele. Ele conhece-me suficientemente bem para acreditar que eu fizesse alguma coisa
deliberadamente para o humilhar.
Calou-se. Alfred não se mexeu nem falou. Continuava sentado na cadeira, como se tivesse
adormecido.
- Não acho que Amalie tivesse sido a causa directa da morte do tio William - continuou Philip. - Era
inevitável que ele morresse dentro de pouco tempo. E não creio,
também, que ele guardasse qualquer ressentimento ou rancor contra Jerome ou contra Amalie.
Lembro-me perfeitamente que ele não sentia nada disso. Seja como for,
Amalie foi sempre amável comigo, e eu gostava muito dela. A decência comum exigia que eu lhe
falasse quando ela me viu e me cumprimentou.
Encolheu os ombros, e disse ainda:
- Afinal, já passou muito tempo e eu acho que foi melhor assim!
- Tu não sabes...! -gritou Dorothea.
Esteve quase para lhe falar do odioso adultério cometido por aquela desgraçada mulher sem
vergonha, mas dominou-se. Philip tinha vinte e quatro anos, mas ela estava
convencida de que ele era ainda absolutamente inocente e desconhecia os aspectos mais sombrios
da vilania humana. Para ela, Philip continuava a ser um rapazinho,
casto, puro e desconhecedor daquelas horríveis aberrações físicas.
Philip parecia ter-lhe lido os pensamentos, e mal conseguiu reprimir um sorriso. Achava Dorothea
má e pateticamente absurda. Era ela quem nada sabia de paixão e
das fortes ondas da irresistível libido e do desejo. Além disso, sentia-se um pouco aborrecido e
humilhado por ela repudiar a sua maturidade e virilidade.
A sua voz, no entanto, continuou calma.
- Sempre lamentei que as coisas tivessem acontecido como aconteceram. Mas, repito, foram
inevitáveis. E repito também que tudo isso aconteceu há muito tempo. Não
estou a sugerir que caiamos todos numa orgia de perdão, beijos e lágrimas. Mas julgo que a
decência civilizada exige cortesia, e que é ridículo manter uma atitude
de eterna hostilidade.
- Eterna hostilidade! - vociferou Dorothea, numa voz que era quase um guincho. - E quem, diz lá,
quem é que está a manter essa hostilidade? O teu pai? Não! Basta
olhar para aquela enorme monstruosidade de banco que aquele... aquele homem... construiu apenas
a três ruas de distância do nosso próprio banco! Riversend Bank of
Commerce! Brada aos céus! Um horror, uma afronta directa e um desafio lançado à cara de todos
nós! Ano após ano, ele injuriou o teu pai, reduziu o nosso banco a
um segundo lugar na comunidade, infligiu sobre nós a insignificância de uma posição secundária,
mortificou-nos, trouxe criaturas horrorosas para a nossa cidade,
sujou e emporcalhou todos os bairros! E tudo com uma maldade premeditada!
Philip sorriu, indulgente.
- Vamos, tia Dorothea, isso é um disparate. Jerome estava atrás do dinheiro e daquilo que ele
supunha ser o progresso. Ele considerava o nosso banco retrógrado e
desactualizado. Construiu o dele, não interfere connosco...
- Não interfere connosco? - repetiu Dorothea quase estupidificada com a enormidade que ouvira da
boca de Philip. Ele "apenas" açambarcou os depositantes mais ricos
do teu pai, os agricultores mais abastados, e deixou-nos simplesmente com os pequenos agricultores
e fazendeiros e os pequenos homens de negócios!
O rosto de Alfred, na obscuridade da sala, pareceu retrair-se.
- E fez isso tudo por pura maldade! Por maldade premeditada! - continuou Dorothea, cada vez mais
fora de si. Fez tudo isso, só para humilhar o teu pai, para o arruinar,
se possível!
- Os homens não constróem grandes casas bancárias comerciais por mero despeito ou vingança ou
capricho! - respondeu Philip, desta vez friamente. - Esse é o tipo
de raciocínio puramente feminino, absurdamente ilógico. E estúpido.
Dorothea abriu a boca, perplexa. A voz enrolou-se-lhe na garganta como se um nó lhe tivesse de
súbito cortado a respiração.
Lentamente, Alfred ergueu a cabeça, e disse num tom estranhamente enrouquecido:
- Philip tem razão naquilo que diz. Ele... Jerome... -
pronunciou aquele nome como uma voz ainda mais enrouquecida - sempre teve as suas idéias muito
próprias. E... elas nada tinham a ver com... outras pessoas.
- Não te compreendo, Alfred -disse Dorothea, quase debulhada em lágrimas.
Alfred olhou-a com sombria gentileza e disse:
- Temos de ser justos, Dorothea. Eu tive muitas discussões com Jerome, antes... antes... e ele sempre
esteve convencido de que eu estava enganado. Havia muitos meses
que eu sabia que qualquer coisa estava a fermentar-lhe no espírito. Eu sabia que ele tinha longas
conversas com o pai. Ao fim de algum tempo, comecei a suspeitar
de que ele estava a convencer o tio William. Não interferi, porque se o fizesse seria uma atitude
injusta e errada da minha parte.
Fez uma longa pausa, e depois continuou:
- Quando foi lido o testamento do tio William, não fiquei perturbado nem surpreendido, nem
mesmo irritado. Era justo. Afinal de contas, Jerome era seu filho e eu
suspeitava de que o testamento já tinha sido mudado, muitos meses antes... antes... Não disse nada.
Tratava-se do dinheiro do tio William e Jerome era seu filho.
O tio William sempre foi um homem justo e eu sabia que ele teria de alterar o testamento. Tu tinhas
a tua parte separada, estabelecida pelo teu pai, e com ela poderias
governar-te enquanto vivesses. Vinte mil dólares para Philip e ainda a fortuna que a avó lhe deixou,
e que receberia quando atingisse a maioridade. Jerome e eu dividiríamos
todos os bens do Banco, a... a casa, e todos os outros bens líqüidos...
Num acesso de fúria apaixonada e ilógica, Dorothea interrompeu-o:
- Ele nunca foi capaz de te vender sua parte na casa nem a do Banco! Teve mesmo a ousadia de te
exigir, depois de todo o teu trabalho, que te afastasses e deixasses
que ele se tornasse presidente.
Alfred esboçou um sorriso sombrio, e disse:
- Mas eu não me afastei, e não lhe vendi a minha parte na casa. Talvez eu próprio tivesse sido mau.
Não sei.
Fez uma ligeira pausa, como que a ganhar fôlego, e continuou:
- Por intermédio dos nossos advogados, chegámos em conclusão a um acordo muito satisfatório, e
devo admitir que Jerome foi bastante compreensivo. Poderia ter sido
muito mais mesquinho, se o tivesse querido. Temos de ser justos. Ele concordou em receber metade
de todos os bens líqüidos do Banco, logo que isso me fosse conveniente,
por meio de notas, vencendo a intervalo regulares, bastante razoáveis e confortáveis, aliás,
cobrindo a sua parte dos investimentos, propriedades reais e outros bens. Jerome poderia ter exigido
tudo isso imediatamente, e se o tivesse feito eu teria ficado
arruinado, completamente arruinado. Durante o pânico, ele não exigiu qualquer pagamento, e
apenas se limitou a receber o que eu consegui poupar. Não tem qualquer
poder no Banco, agora. Poderia tê-lo conservado e ter-me afastado, se o quisesse. Mas não o fez.
Dorothea ficou a olhar para ele, em silêncio. Nunca soubera nada daquilo. Era a primeira vez que
tinha conhecimento de todos aqueles factos, mas a sua mortificação,
o ódio desmedido que sentia pelo irmão apenas aumentavam à medida que escutava aquelas
revelações. Um homem como Alfred tinha estado à mercê de um patife como Jerome,
um malandro, um chantagista e um vilão! O simples facto de Jerome ter sido "decente" e "justo"
apenas intensificava a sua humilhação. Aquele monstro poderia ter
arrumado Alfred, e a magnanimidade que revelara era simplesmente odiosa.
A boca tremeu-lhe e retorceu-se como se tivesse provado qualquer coisa de intoleravelmente
amargo e enjoativo. Sentia-se enojada de revolta e repulsa.
Cambaleou, agitou a mão e o braço como se quisesse apagar de diante dos olhos aquilo que não
suportava ver, e sibilou:
- E ele construiu aquela horrorosa monstruosidade para insultar os teus olhos todos os dias!
Alfred sorriu de novo, e retorquiu:
- Jerome tem o seu gosto muito próprio e pessoal no que respeita à arquitectura; e mesmo que eu
não o admire, compreendo que tem o direito de escolher aquilo que
prefere.
- Riversend Bank of Commerce! - exclamou Dorothea, com profundo desprezo.
- Bem, é um banco comercial! - disse Alfred.
Deixou escapar um suspiro. Parecia exausto. Ergueu-se e fitou Dorothea e Philip com os olhos
nublados. Philip levantou-se também.
- Philip! - disse Alfred, quase num murmúrio. - Gostaria de falar contigo durante alguns minutos.
No teu quarto.
Capítulo quadragésimo sétimo
Dirigiram-se ambos para o quarto de Philip, bonito e confortável. O jovem tinha feito todo o
possível por transformar a austeridade e o rigor da decoração originalmente
escolhida por Dorothea.
Como tinha um profundo amor pelas flores, toda e cada uma das jarras do quarto estava cheia de
botões brilhantes e folhas verdes. As janelas que abriam para os jardins
eram emolduradas por cortinados leves, de cores suaves e alegres.
Num gesto solícito e delicado, Philip puxou uma cadeira confortável para o pai e depois sentou-se a
seu lado. Abriu uma caixa de prata e tirou um cigarro fino e
longo.
Alfred perguntou-lhe:
- Feito à máquina?
Philip sorriu e fez um gesto afirmativo com a cabeça. Alfred disse, então:
- Mas nunca se sabe o que é que eles põem dentro dessas coisas... nas fábricas... Quando somos nós
a prepararmos os cigarros, sabemos ao menos que não contêm nada
de prejudicial!
Philip apressou-se a replicar:
- O sabor deles é excelente. Se lhes meteram dentro bocados de sapatos ou de tapetes velhos, ou
ainda, como dizem algumas más línguas, um ou outro dedo da mão de
um operador da máquina, isso só veio aumentar o sabor!
Ao ver o súbito sorriso que iluminou o rosto de Alfred por momentos, Philip pensou que, alguns
anos atrás, o seu pai teria franzido o sobrolho numa muda reprovação
e censura àquela afirmação jocosa. Viu-lhe o sorriso, sim, mas também lhe adivinhou a tristeza.
- Experimente um, pai! - sugeriu-lhe.
com lenta relutância, mas também com alguma curiosidade, Alfred aceitou um dos cigarros que o
filho lhe oferecia, e deixou que Philip lho acendesse. Durante os dois
ou três últimos anos, tinha começado a fumar um ou outro charuto, embora parecesse nunca tirar
grande prazer disso.
Aspirou cautelosamente uma fumaça do cigarro, e ergueu as sobrancelhas brancas.
- É suave... e não é mau de todo! - disse ele, como se estivesse um pouco surpreendido.
- Estes têm sabor a rum - disse Philip.
- Rum? - repetiu Alfred, perplexo. - Mas... o que é que há de errado com o sabor da folha pura? Será
que os Americanos se tornaram assim tão efeminados que não são
capazes de suportar o sabor do tabaco tal como ele cresce?
Philip encolheu ao de leve os ombros e respondeu:
- Talvez os gostos do homem se vão tornando mais requintados e estéticos à medida que ele se vai
tornando mais próspero.
Ficou à espera; mas Alfred fumava, completamente
absorto, olhando através da janela sem ver. Por fim, após um longo momento de silêncio, disse:
- Philip, a tua tia fala, às vezes, de uma maneira um pouco rude... Mas fala com o coração. As suas
palavras tornam-se, então, um pouco mais violentas do que seria...
necessário. compreendes isso?
Philip fez um gesto afirmativo com a cabeça, mas não respondeu.
- Ela não faz isso por mal, Philip! - continuou Alfred. A sua sensibilidade e lealdade são muito
fortes e agudas, e... nós devemos-lhe muito!
- Eu sei, pai. Nunca desprezei a extraordinária contribuição da tia Dorothea para o nosso conforto,
nem a devoção que ela sente para connosco.
Alfred suspirou.
- Ela não pretendia ofender-te.
- Eu sei.
Alfred pôs de lado o cigarro.
- Eu sei que a tua lealdade não é coisa que se possa pôr em causa, Philip. Confio inteiramente no teu
discernimento e na tua capacidade de julgar e de decidir. Seja
o que for que tu faças, não poderá nunca ser objecto de censuras, do ponto de vista moral. É apenas
uma questão de bom gosto.
- Acho que teria sido de muito mau gosto se eu tivesse insultado uma criança - disse Philip. - Nem
tão pouco poderia ser descortês para com uma mulher que sempre
foi boa para mim, e que me deu o amor de uma autêntica mãe, ainda que tivesse sido por pouco
tempo.
Alfred fixou o olhar no cigarro que se desfazia em cinza no cinzeiro de prata.
- Tens razão, claro! - disse ele, quase sem se fazer ouvir.
- É muito difícil!
Hesitou um pouco, e depois disse ainda:
- Contudo, há necessidade de se ter um mínimo de cuidado para não se cair em situações difíceis, e
também para se evitar quaisquer oportunidades para isso. Deus
sabe que há situações que é impossível evitar. Mas... procurá-las abertamente, expormo-nos a elas...
já é um caso diferente.
- Eu não procurei este encontro! - lembrou Philip ao pai.
- Se a criança não me tivesse descoberto, creio que eu não teria dito nada. Elas já ali estavam há
algum tempo, antes de me descobrirem.
Alfred inclinou a cabeça, e apressou-se a dizer:
- Sim, sim, claro! Tu fizeste o que seria de esperar de um cavalheiro. Mas... tenho a certeza de que...
saberás evitar outras situações semelhantes.
Philip ficou em silêncio, mas fixou no pai um olhar penetrante e atento.
- Vivemos aqui durante bastantes anos, Philip, e este foi o primeiro... encontro. Tenho a certeza de
que passaremos de novo muitos mais anos sem que ele se venha
a repetir.
com voz muito calma, Philip retorquiu:
- Eu fui convidado a visitar Hilltop, pai. Aceitei o convite, em princípio. É possível que eu lá vá.
Alfred voltou-se para o filho rapidamente, com espanto e incredulidade estampada no rosto.
- Philip, será que eu ouvi bem?
- Sim - respondeu Philip com voz firme, ainda que suave.
- Estou a lembrar-me de que o pai possui metade dos interesses naquela casa, e que... mais tarde...
esses interesses virão parar às minhas mãos. Eu nasci ali; é,
portanto, a minha casa. A minha mãe morreu num daqueles quartos. As minhas recordações mais
felizes vivem dentro daquelas paredes. As vezes, sinto-me como que exilado...
Fez uma pausa longa, e depois continuou:
- Quero voltar a ver a minha velha casa. Quero rever a árvore que plantei no jardim. O tio William
deu-me um cantinho que eu enchi de rosas brancas... sinto que
elas me pertencem. É a nossa casa, também, tanto quanto é de Jerome. Até mais, talvez, se
analisarmos bem as coisas.
Alfred olhava para o filho como se estivesse mergulhado na mais profunda confusão. Sentia-se
avassalado pelas emoções mais contraditórias. Via Hilltop claramente
no seu espírito, as veredas que serpenteavam por entre os relvados e os canteiros do jardim, o muro
vermelho nas traseiras, as árvores velhas e enormes, a luz do
sol a reflectir-se nas janelas antigas. E sentiu-se invadido por uma intensa nostalgia e tristeza.
Por fim, disse:
- Sim, creio que compreendo o que sentes, Philip. Esta casa é demasiado nova. Dentro de cem anos,
mais ou menos, talvez ela pudesse adquirir a suavidade de um verdadeiro
lar. Mas... receio que por enquanto ela ainda não o tenha... nem o adquirirá no nosso tempo. Isso é
qualquer coisa que teremos de deixar para os nossos herdeiros.
Sim, compreendo.
com deliberada hipocrisia, Philip disse ainda:
- Quero voltar a ver Hilltop. Quero voltar a caminhar dentro das suas salas. Quero olhar de novo
para as coisas que nos pertenceram e que ainda nos pertencem. Talvez
eu seja um sentimental. e sei de muitos que desprezam esse sentimentalismo e que provavelmente
até têm razão.
- Não! Não! - disse Alfred, confuso, e esfregando
suavemente a sua testa enrugada. - Não se trata de sentimentalismo. Os instintos mais profundos de
um homem estão enraízados na sua casa. É natural. Só queria fazer
com que tu te recordasses de quem vive nessa casa.
- Eles não têm o direito de nos afastarem daquilo que é nosso - disse Philip, artificiosamente. -
Aquela casa também é nossa. Temos o direito legal de entrar ali
sempre que o desejarmos, e isso graças à sua sabedoria e ao seu bom senso quando decidiu não
vender a sua parte a Jerome, pai.
Alfred estava incomodado e confundido, mas também estranhamente agradado e comovido. Os seus
olhos cansados brilhavam de satisfação quando pousaram no filho.
- Tive de proteger os direitos que te assistem por nascimento, Philip. Jamais deixarei que alguém tos
tire.
Philip acenou com a cabeça, fingindo uma preocupação que não sentia, e disse:
- Obrigado, pai!
Alfred não sabia, na realidade, se devia sentir-se satisfeito ou aborrecido, e disse:
- Não pensava que tu fosses tão... implacável, meu rapaz!
- Uh! - exclamou Philip. - Eu sou um poço de implacabilidade. Quero o que é meu e tenciono obtê-
lo, custe o que custar, e gozá-lo.
Alfred recostou-se na cadeira e pareceu meditar naquela perturbadora situação que o deixava
confuso, inquieto e magoado.
Por fim, disse, com ar pensativo e ao mesmo tempo duvidoso:
- Tu podias combinar com... eles... de maneira a que te deixassem visitar a casa e os jardins,
digamos, por exemplo, de tantas em tantas semanas. Sem dúvida que
eles terão consideração e tacto suficientes para se afastarem durante essas tuas horas de visita, ou
pelo menos de não te aparecerem.
Philip reprimiu um sorriso, mas, como era hábito, a ingenuidade de seu pai enchia-o de ternura.
- Isso seria absurdo - disse ele como se sobrepesasse as palavras do pai. - Acho que isso daria
motivo para que certas pessoas se divertissem à nossa custa. Penso,
talvez, que seria preferível que eu fosse lá com toda a naturalidade e desse uma volta, sem os avisar
previamente da minha visita.
Alfred ficou de súbito de rosto carrancudo.
- Admito que isso seria uma atitude menos absurda, mas há ainda outro problema: ele... ele pode
estar lá. Pode insultar-te, tentar expulsar-te. E isso seria uma
coisa que não conseguiria suportar.
As mãos de Alfred, até ali apertadas uma contra a outra, separaram-se de súbito num movimento
brusco e transformaram-se em enormes punhos cerrados e ameaçadores,
e os seus olhos, fixos e faiscantes, pareciam queimar.
"Ele odiará sempre Jerome", pensou Philip. "E esse ódio é qualquer coisa que ultrapassa até a
própria Amalie, que não se prende apenas a ela. É fruto de muitos anos
de ódios, ciúmes, insultos e hostilidades. É uma coisa instintiva entre os dois."
Depois, muito calmamente, disse em voz alta.
- Como poderá isso acontecer? Nunca irei lá acima quando suspeitar que Jerome se encontra em
casa.
Alfred diminuiu um pouco a pressão das mãos, que continuava a manter apertadas, mas não disse
uma única palavra; os seus olhos continuavam fixos no espaço à sua
frente.
Philip continuou então a falar num tom deliberadamente suave e penetrante:
- Sempre admirei uma coisa em si, pai, mais do que todas as outras. O pai sempre soube ser justo.
com cínica tristeza, Philip chegara à conclusão de que um homem precisa sempre de ter uma virtude
de que se orgulhe e de que tenha consciência, e a "justiça" era
a virtude quase idolatrada por seu pai.
Ao ouvir aquela palavra que tanto amava, os últimos vestígios de raiva de Alfred pareceram
desaparecer. Olhou então para Philip, com ternura e consideração.
- O pai podia ter tornado as coisas tão desagradáveis para Jerome que ele acabaria por não ter outro
remédio senão sair daquela casa - continuou Philip. - Poderia
tê-lo perseguido, poderia sujeitá-lo a mortificações e embaraços sem fim. Mas o pai não fez nada
disso e, quanto mais não fosse, ele devia estar-lhe agradecido por
essa sua atitude. Em compensação, Jerome não se deveria opor agora a que eu visite a casa, a minha
velha casa, sempre que eu o deseje.
- Ele não se atreverá a opor-se a isso! - trovejou Alfred. Philip acenou com a cabeça num gesto de
satisfação, e retorquiu:
- Oh, não! Ele não se atreverá a fazê-lo. E, além disso, há outra coisa. O pai tem mandado os seus
advogados e representantes fazerem uma inspecção à casa uma vez
por ano. Acho que eu poderia fazer um trabalho melhor, penso reparar nas coisas que poderão
naturalmente escapar aos olhos dos advogados e agentes, isto é, aos olhos
daqueles que não estão verdadeiramente interessados. Afinal de contas, trata-se da minha
propriedade, e acho que devo ser eu próprio a olhar por aquilo que me pertence.
Alfred retorquiu:
- Fui informado de que Hilltop está em excelentes condições. Ele... Ele introduziu-lhe muitos
melhoramentos, e também embelezou os jardins. É justo que se diga a
verdade.
De novo Philip meditou no facto inegável de cada homem necessitar de possuir uma virtude
suprema; e começou a perguntar a si mesmo por aquelas provas visíveis de
dor profundamente instalada, se aquela virtude escolhida não causaria ao seu possuidor mais
angústia do que valia a pena, e se essa mesma virtude adquirida quase
à força não seria uma quase total alienação e não seria um factor totalmente estranho à verdadeira
natureza do seu possuidor.
"É como que uma espécie de autoflagelação!", disse Philip para sipróprio, num cinismo suave.
A cada homem a sua camisa, na verdade; a cada homem, o seu martírio; a cada homem a sua
autoflagelação. Qual seria a sua? Um auto-sacrifício deliberado. A mais feia
das "virtudes". Por vezes, esse auto-sacrifício transformava numa criatura perigosa o homem que o
possuía e que fazia dele o seu lema e a sua cruzada.
Alfred levantou-se e dirigiu-se para a janela. Manteve-se de costas viradas para o filho quando
disse:
- É claro que tu não precisas de desperdiçar as tuas palavras com... ninguém... nas tuas visitas de
inspecção, Philip.
Ficou em silêncio, mas Philip quase que sentia na pele a angustiada expectativa do pai, e a
inquietação com que ficara a aguardar a sua resposta.
- Farei apenas o que me for exigido pela delicadeza e educação - retorquiu Philip.
Acendeu outro cigarro e disse ainda, num tom de voz indiferente e casual:
- A rapariguinha é, na verdade, muito bonita. Há qualquer coisa nela que me faz lembrar o tio
William. Tem os seus olhos, a mesma cor de pele, e a expressão da boca
dela é exactamente igual. Não se parece nada com a mãe nem com o pai.
Alfred não se voltou nem proferiu uma palavra sequer. Continuava imóvel, virado para a janela,
mas Philip adivinhava-lhe a tensão.
- É uma criança muito calada e talvez um pouco fria e calma - disse Philip, pensativamente. - Creio
que deve ser um autêntico quebra-cabeças para a mãe dela. Tive
a impressão que nem tudo são rosas e felicidade para Amalie.
- Eu... eu não estou realmente nada interessado em... retorquiu Alfred, numa voz abafada.
Mas não se mexeu.
Como se não tivesse ouvido o pai, Philip continuou a falar:
- Amalie não mudou muito. Tem apenas alguns fios prateados no cabelo. Mas, quem é que pode
dizer que é completamente feliz? Falou-me do filho, também, e disse-me
que lhe tinham dado o nome do tio William.
Fez uma breve pausa, e depois disse com pretensa hesitação:
- Ela... pediu-me que lhe dissesse que o pai não a odeia. Alfred fez um gesto brusco e abrupto junto
da janela, um
movimento involuntário de dor. Depois, ficou de novo imóvel. Philip via-lhe as linhas maciças dos
ombros largos, e adivinhou neles qualquer coisa de comevedoramente
suavizada, uma espera ansiosa e angustiada.
Continuando a falar, Philip disse:
- Eu respondi-lhe que não acreditava que o pai a tivesse alguma vez odiado. Ela pareceu ficar
contente e como que aliviada.
Philip não se importava de mentir, quando essas mentiras traziam um pouco de paz e de prazer a
alguém. Por isso, sem que o mais leve escrúpulo lhe toldasse a consciência,
proferiu uma:
- Ela perguntou muitas coisas acerca de si, pai. Eu não lhe respondi em muito pormenor, mas disse-
lhe que o pai se encontrava bem e feliz. Também me pareceu que
ela ficou feliz com essa minha resposta, de tal maneira que até me disse que jamais se poderia
esquecer da sua gentileza e da sua bondade. Sabia que ela tem um par
de binóculos? - perguntou Philip.
- Binóculos?! - murmurou Alfred, quase num sussurro. Philip riu-se, baixinho, e retorquiu:
- Sim. E confessou-me que passa muito tempo a olhar cá para baixo. E .. suspeito bem que não é
propriamente para mim...
Alfred ficou de novo silencioso. Ao fim de algum tempo, rodou rapidamente sobre si próprio e
olhou o filho. Tinha o rosto alterado, tornado mais vivo e mais luminoso
por uma espécie de intensidade interior que lhe dava mais vida.
- Tu... não estás a brincar, Philip? - perguntou ele.
O tom da sua voz era de tal maneira pungente e ansioso que o coração de Philip estremeceu de dor e
compaixão.
- Não, pai, não estou a brincar - respondeu. - É verdade. Ela tem um par de binóculos.
Levantou-se também e fixou no pai um olhar muito sério.
Ficaram os dois de pé durante muito tempo, de olhos fixos um no outro, como se se estudassem
mutuamente.
Por fim, como se falasse arrastado por um impulso qualquer interior mais forte do que a sua própria
vontade, Alfred mumurou:
- Jamais conseguirei esquecer Amalie. Eu... acho que... que não a considero culpada do que se
passou.
"bom Deus!", exclamou Philip para si mesmo, com piedade. "Será que ele acredita que Jerome a
violou, contra a sua vontade? bom, é melhor deixá-lo continuar a acreditar
que assim foi, se a sua vaidade, o amor que ainda sente, a sua solidão puderem ser um pouco
apaziguados."
Muito do ar sombrio e absorto de Alfred tinha desaparecido. Ergueu a cabeça e pôs a mão sobre o
ombro do filho, sorrindo quase com excitação. Depois, disse:
- Philip, eu sei que posso confiar inteiramente no teu bom gosto e na tua discreção. Tu foste sempre
tão bom! Estou-te agradecido. E... nestes últimos anos aproximámo-nos
tanto um do outro...!
Apertou com força o ombro de Philip. Depois, ainda sorrindo, saiu do quarto. Os seus passos na
escada eram leves e rápidos.
com um a certa sensação de desconforto, Philip pensou para si próprio:
"Espero que não tenha ido demasiado longe!"
Capítulo quadragésimo oitavo
O Riversend Bank of Commerce, tão ironicamente descrito por Dorothea como "aquela horrível
monstruosidade", não era nem um pouco monstruoso, nem sequer horrível,
na sua dignidade deliberadamente leve e suave.
No entanto, fora na verdade destinado a ensombrar o Banco dos Lindsey.
Havia muito do empresário teatral em Jerome. Ele sabia o valor das "propriedades" imponentes.
Como era também um artista, compreendia muito bem o impacte físico
do volume, das proporções, o efeito dos ângulos, a enorme incapacidade do homem em afastar os
olhos de uma coluna bem moldada. Sabia que o espírito inglês preferia
as coisas pequenas, a solidez e o despretensiosismo, e que o inglês, de uma maneira geral, tinha
tendência para respeitar tudo quanto fosse sóbrio e compacto.
Mas o espírito americano, já imbuído e afectado pelos vastos céus, as grandes planícies e as imensas
paisagens do novo país, adorava monólitos. A América, pensava
ele, estava pronta a receber uma arquitectura muito própria e individual: grandes paredes cintilantes,
suavidades perturbadoras, angularidades fortes e lisas.
O Sul tinha já demonstrado esta nova tendência, numa arquitectura toda individual e peculiar, e
Jerome tencionara utilizar aquelas proporções de linhas, a mesma
sobriedade de alabastro, e adaptá-las à luz mais clara e mais pálida do Norte.
E assim, o Riversend Bank of Commerce tornou-se, com toda a naturalidade, no maior edifício
comercial de Riversend. Demorara mais de um ano a construir. Jerome escolhera
um terreno com cerca de dois hectares a menos de trezentos metros do velho banco dos Lindsey, e
mandara deitar abaixo as pequenas lojas e estábulos que ali existiam.
Mandou depois limpar todo o terreno, retirando-lhe todos os arbustos, pedras, madeiras, árvores,
muros e vedações. Ficou tudo nivelado, aberto, numa nudez quase
afrontosa sob a imensidade dos céus. Depois, naquele espaço quadrado varrido pelos ventos,
mandou erguer o edifício do banco. Foi trazido de Vermont granito puro
de cor branca, em enormes blocos que se adaptavam cuidadosamente uns aos outros, formando
grandes paredes quadradas de uma austeridade brilhante. Como odiava as
pequenas e estreitas janelas da sua infância, Jerome mandou abrir janelas muito largas e altas.
Quatro enormes colunas brancas de granito emolduravam a fachada,
erguendo-se a toda a altura dos três andares do edifício. As portas, quase gigantescas, eram de
bronze polido, com grelhas.
Nos terrenos que circundavam o banco Jerome mandou plantar relva e no segundo Verão, depois de
tudo pronto, aquele edifício imponente, gracioso e brilhante erguia-se
no meio de um imenso quadrado de relva extremamente verde e quase cintilante. Nem um só
canteiro manchava aquele tapete de veludo e também não havia árvores, excepto
dois maravilhosos ciprestes que se erguiam junto dos três degraus baixos, brancos e largos que
conduziam às portas do banco.
O general Tayntor tinha chamado ao banco um "fino exemplo do Grego bastardo". Mas, tal como
Jerome dizia, não havia qualquer objecção válida, contra o facto de se
adaptar a mais nobre forma de arquitectura ao gosto americano. Na realidade, se um olhar imparcial
estudasse o banco durante alguns momentos, era evidente que a
influência grega existia apenas no efeito da forma e das colunas.
Riversend tinha ficado como que estupidificada perante o aparecimento daquela arquitectura tão
diferente da habitual naqueles sítios, onde os edifícios surgiam numa
espécie de arquitectura insular e inglesa, tudo tijolo vermelho, granito cinzento e sombrio ou
madeira. E a pequena cidade parecia encolher-se à sua vista, afastar-se
daquele edifício novo e estranho, num misto de desconfiança e de terror.
O banco de Jerome erguia-se imponente, branco e imenso e não havia sítio em Riversend donde se
não avistasse aquela massa magnífica. A pequena cidade de província
levou quase cinco anos a aceitá-lo, mas acabou por o admirar. E nessa altura, Jerome tinha-se
imposto de tal maneira, tinha-se apoderado de tal poder dentro da comunidade,
que mesmo que o banco fosse de facto "uma horrível monstruosidade", ainda assim teria parecido
belo e magnífico aos olhos de todos.
Logo após a leitura do testamento do pai e do seu casamento com Amalie, Jerome tinha ido a Nova
Iorque com a sua noiva. Ali, na grande metrópole, tinha tido longas
conferências com o seu velho amigo Jay Regan, e também com o amigo deste último, Gordon
Livingston, de Livingston, Hatfield andCompany, banqueiros e homens de investimentos
e grandes negócios.
Mr. Livingston era um cavalheiro que escutava Jerome com grande atenção e simpatia, pois estava
muito interessado em todas as actividades bancárias que se voltassem
para o campo industrial.
Jerome informou os seus amigos dos planos que trazia em mente, falou-lhes da sua vontade de abrir
um banco que seria denominado de Riversend Bank of Commerce, e
disse-lhes também que tencionava atrair a Riversend tantas novas indústrias quantas lhe fosse
possível. Ele próprio tencionava entrar para o campo dos financiamentos,
e estava preparado para financiar e subscrever essas indústrias. avia muito dinheiro por investir no
velho Banco dos Lindsey, mas antes de conseguir convencer os
donos dessas fortunas a investirem o seu dinheiro com ele, tinha de provar que financiar indústrias e
investir dinheiro em empreendimentos como, por exemplo, caminho-de-ferro,
minas e outras indústrias de âmbito nacional, poderia trazer maiores lucros do que a agricultura
local e o financiamento de pequenas lojas e armazéns.
Por fim, muito francamente, Jerome pediu aos seus amigos que lhe recomendassem os seguros que
ele, por sua vez, recomendaria mais tarde aos investidores de Riversend,
e que ele próprio compraria para si.
Investiu pesadamente, seguindo os conselhos desses amigos.
Após o seu regresso a Riversend começou a construir o seu banco.
Enquanto o banco estava a ser construído, começou a fazer com que se espalhassem pela cidade,
muito sábia e cautelosamente, rumores segundo os quais "Jerome Lindsey
tinha entrado em certas coisas muito boas em Nova Iorque". Permitiu que começasse a correr pela
cidade que ele era um investidor esperto e atento e que estava a
caminho de duplicar, senão triplicar
mesmo a sua fortuna. A grande explosão industrial e financeira que se seguiu à guerra ajudava a dar
crédito a esses rumores.
Durante algum tempo, a nobreza ofendida de Riversend mantinha a sua distância daquele homem
que tanto escarnecera das suas convenções e do forte sentido vitoriano
de respeitabilidade. Não, nada neste mundo os faria aproximarem-se daquele homem! Viam o seu
banco crescer, ganhar forma e satirizavam entre si, aos serões, nas
festas, nas reuniões. Viam-lhe a carruagem nas ruas e voltavam-se para o lado, para não lhe falarem.
Jerome era um pária. Mas... Jerome sorria intimamente daquela
atitude. Ele sabia que, mais tarde ou mais cedo, o cheiro do dinheiro haveria de tapar todos os
outros odores.
Quando lhe chegou aos ouvidos o boato que o general Tayntor andava a espalhar acerca dele, riu-se
com gosto... e até com certo prazer exultante, ainda que secreto.
Parecia que esse boato fazia constar que Jerome nunca tinha tido intenção de se casar com Amalie,
mulher de Alfred, mas que Alfred lhe tinha "imposto" aquele casamento.
Jerome, dizia o general, tinha estado muito apaixonado por Sally Tayntor, mas a rapariga tinha-o
escorraçado quando o escândalo se tornara do domínio público, e
essa atitude da sua antiga noiva tinha-o lançado no desespero.
Cheio de satisfação, Jerome pensava de si para si:
"bom, com que então o velho diabo está a salvaguardar o seu orgulho e a preparar-se para me
conceder o seu perdão e aproximar-se de mim. Será tudo um gesto de grande
magnanimidade, claro!"
Mas Jerome não fazia quaisquer confidências àqueles que continuavam a ser seus amigos.
Limitava-se a esperar.
Ainda o banco não estava totalmente concluído e já o general achara uma maneira de o abordar
"acidentalmente" mesmo em frente da sua própria casa. Fora um encontro
muito frio e reservado. Não fizeram quaisquer referências a outras pessoas. O general limitou-se a
dizer que tinha estado recentemente em Nova Iorque e que tinha
escutado ali certos rumores segundo os quais Jerome era considerado um dos especuladores mais
audazes e mais espertos.
E o general dissera:
- É claro que isso não passa de um absurdo e de um autêntico disparate. Espero que esses boatos
sejam falsos, quanto mais não seja pela memória do teu pai!
Todavia, aquele reparo tinha a estranha entoação de uma pergunta velada mas ávida e ansiosa.
Sabendo que o general era o homem mais valioso e mais importante em Riversend, extremamente
avarento e no fundo
demasiado ansioso por saber se aqueles "boatos" tinham de facto algum fundo de verdade, Jerome
convidou-o imediatamente a almoçar com ele naquele mesmo dia no Riversend
Hotel. O general recusou a princípio, muito empertigado e senhor de si, mas acabou por se deixar
convencer. Provocaram uma certa sensação e espectativa quando se
encontraram os dois na sala de jantar do hotel menos de três horas mais tarde.
Cautelosamente, os dois ignoraram o velado espanto que aquele seu encontro provocava à sua volta,
e beberam juntos vários copos de uísque antes da refeição. Por
essa altura, a rígida atitude do general começara a desaparecer. A amizade que sempre sentira para
com Jerome tinha sido sempre sincera, e começara a vir agora à
superfície no meio de grandes gargalhadas e de profusas exclamações de "meu caro rapaz!"
Uma bebida ou duas mais tarde, o braço do general estava já sobre o ombro de Jerome, as cabeças
de ambos estavam muito juntas, e trocavam ambos gratas e sentimentais
recordações de William Lindsey.
Duas horas depois encontravam-se ainda na sala de jantar do hotel, onde Jerome encomendara uma
refeição excelente. O general sempre acreditara que Jerome era um
"espertalhão", e escutava agora as conversas e as "confidências" do seu velho amigo, sentindo-se
ele próprio muito esperto e astuto. Tinha a certeza de que todo
o velho sentimentalismo e o uísque tinham ajudado a "soltar" a língua de Jerome, sempre tão
cauteloso habitualmente, e não fazia quaisquer perguntas sobre as coisas
que Jerome lhe confiava. Além disso, tinham entre eles o "anel" da verdade.
Jerome informou o seu velho amigo que tanto Mr. Regan como Mr. Livingston o apoiavam. É claro
que, dizia ele, tudo aquilo era de extrema confidencialidade e que
esperava que o general soubesse guardar aquele segredo. Jerome fazia grandes dissertações sobre a
sua enorme e entusiástica esperança no futuro da indústria e no
crescente poder da América no mundo dos negócios.
Não era sua intenção, dizia ele, alargar as suas ofertas aos investidores de Riversend, nem
tencionava convidar ninguém a segui-lo. Ninguém, repetia ele com ênfase,
excepto talvez um amigo ou dois, como o general, por exemplo, se é que podia confiar na discreção
do general. Assim, o general tinha uma oportunidade para "crescer"
com ele... as possibilidades, os lucros eram ilimitados. Ele, Jerome, poderia, após pensar seriamente
no assunto, oferecer ao general algumas acções no novo banco,
o que lhe daria direito a dividendos, em vez de ter acesso apenas a simples lucros de menor
importância.
- Tenciono ter sempre uma grande reserva de bens líqüidos
- explicava Jerome. - Quero ter flexibilidade nos investimentos.
Antes de se separar do general, pediu-lhe de novo que guardasse segredo, o segredo mais absoluto
sobre tudo aquilo de que lhe falara. O general, ardendo em impaciência
por ir espalhar aquilo que tinha escutado da boca de Jerome, procurou libertar-se do amigo o mais
depressa possível. E de novo Jerome se meteu na sua concha, rindo
abertamente para si mesmo, e aguardou os resultados daquela saborosa conversa.
Ainda o banco mal tinha iniciado as suas actividades e já os grandes detentores de fortunas de
Riversend queriam abrir contas. Nessa altura, estavam já a estabelecer-se
na pequena cidade novas indústrias encorajadas, financiadas e estimuladas por Jerome.
- Ora aí está a lealdade! - dizia Jerome, ao ver os velhos amigos e depositantes de Alfred acorrerem
ao seu banco.
Jerome recebia-os a todos com gravidade e deferência. Ele era ao mesmo tempo o presidente e o
conselheiro financeiro do banco e as suas maneiras eram formais e afáveis
ainda que frias.
As acções do novo banco foram vorazmente devoradas e desapareceram de um momento para o
outro. O general era agora um director. Riversend estava perplexa e estupefacta.
Nunca ali tinha havido tanta prosperidade, tanta excitação, tantas caras novas, tanto barulho e
agitação, tantos trabalhos de construção, tanta avidez, tanto comércio
nem tantos rumores. As pessoas não conseguiam compreender tudo de uma só vez, não podiam
digerir tudo aquilo de imediato. Era incrível. Durante três anos, Riversend
viveu como num sonho, um sonho delirante de progresso, actividade, riqueza que surgia pelos
cantos.
Os agricultores tinham equipamento novo, carros novos, alfaias novas e produtos inteiramente
novos. As suas mulheres compravam "bons" vestidos de seda sempre que
queriam. Os seus filhos freqüentavam escolas novas. As ruas surgiam restauradas e bonitas quase de
um dia para o outro. Milhares de homens com as suas famílias vinham
das cidades, vilas e quintas vizinhas e precipitavam-se para Riversend para trabalharem nas
fábricas.
Depois, veio o pânico de 1873 e de súbito, quase como da noite para o dia, os martelos e êmbolos,
correntes e máquinas ficaram silenciosos em toda a América.
E os velhos e intransigentes inimigos de Jerome, que nunca se haviam reconciliado com ele e que se
tinham mantido fiéis a Alfred, disseram nessa altura:
- Isto é o fim do aventureiro!
Mas não foi o fim. Tal como dissera ao general, Jerome conservava uma grande reserva de bens
líqüidos. Quando os seus stoks e papéis e títulos não lhe davam já bom
lucro, vendeu-os e quando o pânico chegou ele possuía boas reservas, incluindo as suas notas sobre
o banco de Alfred. Foi bastante razoável neste assunto e não pressionou
Alfred quando sabia que, se o fizesse, essa sua pressão poderia resultar num desastre para o primo.
Tinha sólidas razões comerciais para todas as suas atitudes magnânimas.
Ele sabia que a sua tolerância lhe traria novos amigos, aqueles que eram leais a Alfred e aqueles que
teriam ido ao fundo com Alfred se Jerome tivesse resolvido
exercer pressão sobre o primo.
O pânico passou. Fora apenas um hiato durante o qual a América se debatia ainda nas últimas fases
da velha economia agrária antes de entrar na nova economia industrial.
No espaço de dez anos o Riversend Bank of Commerce tinha-se transformado na maior potência
dentro do Estado de Nova Iorque, o grande centro industrial da América.
Era uma coisa possível apenas na América dos anos setenta e oitenta.
O banco de Alfred continuava a ser o banco dos pequenos agricultores, o banco dos pequenos
proprietários e das pequenas lojas. Mas ocupava um lugar seguro dentro
da comunidade, e Jerome nada fez para o destruir. Sabia por instinto que bancos como aquele eram
necessários ao bem estar da comunidade. Jerome tornou-se de novo
no ídolo adulado dos seus velhos amigos. O facto de eles não aceitarem Amalie não o preocupava;
pelo contrário, divertia-o. Não sentia nenhuma reverência especial
pela "nobreza". Sentia-se satisfeito por ver que os seus filhos tinham por companheiros os filhos dos
novos industriais. Pelo menos, costumava ele dizer, aquelas
crianças tinham sangue forte e vitalidade nos seus corpos. No entanto, a governanta da pequena
Mary era uma francesa culta e educada que ele e Amalie tinham trazido
de França numa das suas muitas viagens à Europa. Jerome fazia para a sua pequena filha muitos
planos que nada tinham a ver com Riversend, e que ultrapassavam em
muito as suas fronteiras. O filho, esse, haveria de o seguir no banco.
E era assim que, naquele dia de Agosto em que Amalie e Philip Lindsey se encontraram pela
primeira vez ao fim de dez anos, Jerome se sentia contente e satisfeito
consigo mesmo e com tudo o que tinha alcançado.
Foi o último a sair do banco, às seis horas. Entrou na sua carruagem e seguiu para casa. Como era
habitual, ansiava por
voltar a ver a família, a sua mulher, a sua filha e o seu filho. Tinha tudo quanto podia desejar.
A carruagem passou pelo velho Banco dos Lindsey, e Jerome nem sequer lhe lançou a mínima
olhadela, nem mesmo de relance. Aquilo era o seu passado e o passado estava
muito para trás dele.
Capítulo quadragésimo nono
É muito reconfortante e agradável saber-se que se tem uma tremenda influência na comunidade
onde se vive. O sentido que o homem tem do seu significado pessoal, quase
sempre inseguro, na melhor das hipóteses, adquire uma ilusão de valor duradouro e forte quando o
homem se apercebe das provas externas do seu poderio individual.
Ao pensar nesta verdade, Jerome sabia que não constituía excepção à regra, que também ele não
fugia à tendência quase patética que o homem tem de tentar escrever
o seu nome na água e esperar que ele se solidifique em mármore.
Riversend tinha agora duas carreiras de diligências. Os velhos candeeiros a óleo que iluminavam as
ruas tinham dado lugar a lâmpadas a gás, que lançavam as suas
luzes sobre ruas pavimentadas e limpas que pareciam surgir de um dia para o outro atravessando a
cidade. Tinham aparecido também novas lojas e ainda uma "ópera".
Havia igualmente dois hotéis, sempre cheios de uma clientela nova, constituída por viajantes e
comerciantes. Ele, Jerome, era o autor de tudo aquilo, e olhava para
a sua obra com satisfação.
Inaugurara o seu banco oito anos atrás. Mr. Regan, Mr. Livingston e vários outros distintos
banqueiros e financeiros de Nova Iorque tinham vindo a Riversend expressamente
para essa inauguração. Jerome convidara ainda mais de uma dúzia de pequenos banqueiros das vilas
e cidades vizinhas e todos eles tinham comparecido, ávidos de curiosidade.
Tinham vindo também os industriais com quem Jerome estabelecera contactos, esperançados na
implantação das suas novas indústrias naquela região ainda por descobrir
e virgem de qualquer industrialização.
O general Tayntor, a viúva Kingsley e vários outros amigos de novo reconciliados com Jerome
tinham também estado presentes. Jerome não permitira que ninguém entrasse
no banco durante a sua construção, e tivera então o prazer de lhes ver nos rostos espanto, o respeito
e a admiração e de lhes escutar os cumprimentos entusiásticos
e extasiados.
O interior do edifício era de facto impressionante. O chão parecia composto por uma peça única e
gigantesca de um cintilante mármore negro. O tecto era suportado
por colunas de mármore branco polido e brilhante como cetim. As paredes eram, até metade da sua
altura, mármore preto, e o estuque da parte de cima estava decorado
com requintados murais da autoria do próprio Jerome. Também ali ele revelara uma imaginação que
ultrapassava a sua época, pois os murais representavam homens trabalhando
em acampamentos, fábricas, fazendas e casas bancárias. As cores eram suaves mas intensas. Os
compartimentos dos caixas eram revestidos a bronze. Ao longo das paredes
estavam dispostos compridos bancos de mármore, separados por palmeiras e árvores-da-borracha.
Riversend estava estupefacta.
Mais tarde, Jerome oferecera uma recepção em Hilltop para os seus amigos mais chegados e para os
que o tinham apoiado. Nunca ali tinha havido uma recepção como aquela,
nem comida assim! Ao fim de oito anos, aquela festa continuava a ser o tópico principal de todas as
conversas.
Nem o próprio Jerome se cansava de tudo aquilo, também. Quando a sua carruagem deslizava pelas
ruas da cidade e ele era cumprimentado afectuosamente pelos seus amigos
e conhecidos, retribuía-lhes os cumprimentos com gentileza e afabilidade. Sentava-se na sua
carruagem, muito direito, as mãos, metidas numas sóbrias e elegantes
luvas cinzentas, apoiavam-se na sua bengala, num gesto displicente, o chapéu cinzento posto com
elegância sobre a cabeça muito direita e bem erguida, e inclinava-se
ora para um lado ora para o outro, em gestos deferentes e amáveis.
Por vezes Amalie suspeitava que Jerome estava a perder o seu sentido de humor, e com a sua
habitual candura disse-lho um dia. Quando ele se irritava com aquelas
suas suspeitas, ela mais se convencia de que as suas dúvidas tinham fundamento.
- O sentido de humor é a fortaleza dos inseguros - respondia-lhe ele nessas alturas de velada
irritação.
- É também uma salvaguarda contra a complacência! retorquia-lhe Amalie.
Jerome teria ficado enraivecido se soubesse que Amalie começava a pensar que ele e Alfred tinham,
afinal, muitas coisas em comum, facto que nem sequer suspeitara
nos outros tempos. E não era sem uma certa dose de inquietação que Amalie pensava que um
homem só precisava de um pouco de sucesso individual para perder o seu habitual
brilhantismo de imaginação. Seria porque o sucesso trazia com ele um quase inevitável aumento da
secreta insegurança pessoal? Isso era um pouco
paradoxal, mas Amalie chegara havia muito à conclusão de que a vida era cheia de paradoxos
espantosos e de contradições.
Era também possível, pensava Amalie, que quando o ambiente que rodeava um homem era inseguro
e incerto, esse homem tinha de lutar contra essa insegurança e essa
mesma luta dava-lhes forças, uma capacidade vivaz e activa, um sentido das proporções, uma certa
sensação de impregnabilidade. Era quando um homem se alargava acima
do seu meio ambiente que se tornava vulnerável e, no entanto, negava-o.
A objectividade criava cidades, expandia a civilização, mas, quando levada demasiado longe,
acabava por reduzir a subjectividade do homem, que era no fundo a sua
própria individualidade, o seu conhecimento intuitivo de que a sua própria alma era a sua fortaleza.
O "pensamento elevado e uma vida simples" dos naturais da Nova
Inglaterra era mais do que uma filosofia interessante, pensava Amalie. Era um segredo do poder do
homem sobre o exterior, o segredo da sua integridade e da sua capacidade
de resistência.
Quando falava acerca disto com Jerome, ele escutava-a com atenção. Depois, a sua impaciência, a
sua retirada brusca convenciam-na de que, apesar de tudo quanto ele
tinha feito, o marido sentia-se profundamente inquieto e inseguro. Amalie amava-o então ainda
mais, naquela impaciência. Ela sabia que ele sabia que qualquer coisa
estava errada em tudo aquilo.
- Tu julgas que eu estou constantemente em busca de dinheiro! - acusava-a ele, irritado. - Mas
ninguém se interessa menos pelo dinheiro do que eu.
E Amalie sabia que aquela afirmação era verdadeira.
Quando a carruagem começou a subir a vertente que conduzia a Hilltop, naquela tarde de Agosto
quente e mesclada de tons vermelhos e dourados, Jerome sentiu-se de
súbito inquieto e pouco à-vontade. Aquela sensação estava a tornar-se cada vez mais freqüente nele,
e desconhecia-lhe a causa. Fora ele quem trouxera prosperidade,
bons salários, oportunidades e progresso a Riversend. Mas havia naquilo tudo qualquer coisa de
estranho e terrível, também. O que era?
Adquirira um hábito agora... e de facto, um hábito terrível, embora ele não o soubesse... Na
verdade, Jerome passara a atribuir as culpas do seu mal estar a objectos
exteriores, e a acusar esses objectos como se eles fossem a verdadeira causa das suas depressões.
Por isso, quando avistou por entre as árvores a austera casa do
primo, de tijolo vermelho, convenceu-se de que aquela casa era uma seta constantemente espetada
na sua carne, uma fonte permanente de infecções que
lhe causavam uma depressão constante e que o oprimia. Alguns anos antes, aquela casa apenas o
tinha divertido. Agora, irritava-o.
Estava de muito mau humor quando chegou a casa. Amalie e as duas crianças estavam à sua espera
no jardim. com o instinto de uma mulher extremamente apaixonada, Amalie
apercebeu-se de que Jerome estava perturbado, quando desceu da carruagem. Havia qualquer coisa
na posição dos seus ombros, na linha dura e arrogante do queixo, que
lho dizia.
Amalie inclinou-se para a pequena Mary e sussurrou-lhe baixinho:
- Querida, não digas já ao papá que encontrámos hoje Philip. Eu própria lho direi mais tarde.
A criança ergueu para ela os seus imensos olhos azuis, e perguntou:
- Mas porquê, mamã?
Amalie apertou os lábios e retorquiu irritada:
- Porque eu te estou a dizer que não o faças!
Mary calou-se imediatamente. Depois, atirando para as costas a sua cascata de cabelos de prata
correu sobre a relva na direcção do pai, o rosto delicado erguido
numa expressão de ansiedade e êxtase. A sua saia de folhos esvoaçava ao vento suave que soprava
revelando os laços e as rendas dos seus calções de cambraia. Movia-se
como uma sombra, mas Jerome apercebeu-se da sua aproximação. Os olhos iluminaram-se-lhe.
Estendeu os braços para a filha e ela atirou-se para eles. Jerome ergueu-a,
levantou-a nos ares, e depois beijou-a ruidosamente. A pequenita rodeou-lhe o pescoço com os
braços, apertou a sua face contra a do pai, num gesto ávido e ansioso.
O seu rosto pequenino parecia iluminado de uma luz nova.
Caminhando vagarosamente, Amalie aproximou-se de Jerome, segurando na sua a mão
rechonchuda do pequeno William. O chapéu de Jerome caíra para o chão, atirado pelo
entusiasmo de Mary. O seu cabelo encaracolado, agora grisalho, dava-lhe ao rosto moreno um ar de
distinção. Quando estava satisfeito e sem preocupações, as velhas
cicatrizes da testa e da face tornavam-se quase invisíveis.
com o instinto tão comum das esposas realmente apaixonadas, Amalie apercebia-se de tudo quando
parecia não ver nada. Aceitou placidamente o beijo que o marido lhe
depositou nos lábios, e puxou o pequeno William para a frente para que Jerome o beijasse também.
Ele pousou a filha no chão, num gesto de evidente relutância, e
ergueu o rapazinho nos braços. A criança recebeu as carícias do pai com timidez. Os seus olhos
escuros pareceram ficar ensombrados, e um certo alívio pareceu
inundá-lo quando o pai o voltou a pousar no chão, e ele pode voltar para junto da mãe e para o
santuário das suas saias.
- Esteve um dia tão quente! - disse Amalie, enquanto caminhavam juntos na direcção da casa.
Jerome olhou-a rapidamente e reprimiu um sorriso. Sabia que Amalie lhe adivinhara a irritação e
lhe estava a dar agora uma abertura para se libertar dela. Apertou-lhe
afectuosamente a orelha e disse-lhe:
- Não se passa nada comigo! Simplesmente me irrita cada vez mais ver aquela casa maldita lá em
baixo!
- Ao fim de nove anos? - perguntou Amalie, arqueando ligeiramente as sobrancelhas negras e finas.
- As úlceras não mais são fáceis de suportar, à medida que o tempo vai passando - retorquiu Jerome.
Sentiu que estava a ser ridículo e soltou uma gargalhada curta.
- Gostaria de lhe atirar para cima com um pau de dinamite!- disse ele.
No entanto, o tom com que preferiu aquela frase era mais ligeiro e quase indulgente.
A penumbra fresca e perfumada da casa inundou-o e deu-lhe uma sensação de conforto como
sempre acontecia. De braço dado, ele e Amalie subiram as escadas na direcção
dos seus aposentos. Jerome reparou no botão de rosa na sua mesa e os olhos iluminaram-se-lhe; mas
não fez qualquer comentário a Amalie.
Conversaram um com o outro enquanto se lavavam e trocavam de roupa para o jantar. Amalie
mostrava-se atenciosa e afável. Deu-lhe o nó na gravata, e beijou-lhe o
queixo em seguida num gesto de ternura que realmente sentia. Depois, tirou o botão de rosa da
pequena jarra e colocou-lho na lapela do casaco.
- Como aquela criança te adora! - murmurou Amalie. A disposição de Jerome pareceu melhorar
ainda mais com
aquela afirmação. Olhou-se ao espelho e disse com ternura na voz:
- Ela é uma autêntica raposinha! Conhece todos os truques femininos. Que será que ela quer desta
vez?
- Nada. Ou será que as mulheres querem sempre qualquer coisa? - perguntou Amalie, sorrindo, ao
mesmo tempo zombeteira e carinhosa.
- Sempre! - retorquiu Jerome, beliscando-lhe o rosto com suavidade.
Ficaram a olhar um para o outro durante alguns momentos. O amor que sentiam um pelo outro
continuava vivo e vibrante
como antes e a paixão continuava a queimar-lhes a carne, tão ardente como sempre fora.
Sentindo que Jerome podia agora já suportar as notícias de certo modo desagradáveis que tinha para
lhe dar, Amalie afastou-se do marido, dirigiu-se para o seu toucador
e começou a alisar o cabelo. Inclinou-se para o espelho, como se estivesse a examinar qualquer
rugazinha incipiente que lhe tivesse aparecido no rosto.
Observou Jerome através do espelho. O marido estava a preparar um uísque com soda, numa
mesinha que ali fora co locada especialmente para esse efeito.
- Prepara-me antes um copo muito pequeno com vinho, meu amor! - pediu Amalie.
Aceitou o copo que ele lhe estendia, e sentaram-se depois os dois juntos, a saborear as bebidas.
Havia sempre vinho lá em baixo, e as crianças não comiam habitualmente
com os pais, mas Jerome tinha decidido que preferia não beber uísque em qualquer lugar onde Mary
pudesse entrar de um momento para o outro sem ser esperada. Amalie
achava aquela atitude um pouco ridícula.
Quando reparou que Jerome estava mais calmo e reconfortado, Amalie disse então, com ar
displicente:
- Eu e a Mary fomos hoje ao túmulo do teu pai.
Jerome fez girar o líqüido âmbar dentro do copo, e disse, de olhos fixos na bebida:
- Os túmulos estão bem conservados?
- Sim - respondeu Amalie.
Fez uma ligeira pausa e depois com voz despreocupada disse:
- Sabes quem fomos descobrir ali? O Philip! Ele tinha estado a pôr umas flores também na campa
do teu pai.
Jerome ergueu os olhos e fitou-a com ar sombrio.
- Philip? Espero que ele não tenha tido a pouca decência de te dirigir a palavra! - disse Jerome.
Amalie ergueu as sobrancelhas, num gesto que Jerome começava a achar absolutamente irritante, e
retorquiu:
- Pouca decência? Porquê pouca decência, Jerome? É claro que ele nos dirigiu a palavra! Para dizer
a verdade, até foi a Mary que o descobriu. Fiquei mesmo com a
impressão de que ele não chegaria a revelar a sua presença ali se não fosse o olho de lince da nossa
filha o descobrir.
Calou-se por instantes, e logo continuou:
- "Pouca decência" nunca foi exactamente o estilo de Philip.
Ficou preocupada quando reparou que as cicatrizes ficavam
mais vincadas no rosto do marido, num tom quase escarlate. Fazendo nitidamente um esforço para
dominar a raiva que lhe ia no peito, Jerome retorquiu:
- Bem, suponho que não foste capaz de resistir e tiveste uma conversa com ele. Espero que tenham
ficado por aí!
com uma serenidade que não sentia, Amalie sorveu um pouco do líqüido do seu copo, e respondeu:
- Eu sempre gostei do Philip. Além disso ele sempre gostou de ti e tu dele. Talvez isso aconteça
porque vocês se parecem tanto um com o outro!
Jerome pousou o copo num gesto brusco.
- Não sejamos sentimentais, por favor! Eu nunca tive nada contra Philip. Ele era apenas um
rapazinho quando... Mas tenho a certeza de que tu não prolongaste desnecessariamente
essa conversa...
- Depende! - disse Amalie, pensativa. - Depende daquilo que tu entendes por "prolongar
desnecessariamente a conversa". Tínhamos muitas coisas a dizer um ao outro.
Philip vai começar a trabalhar no... banco do pai...
- O quê? Nada de música nem de escritos? - perguntou Jerome num tom que pretendia ser jocoso,
mas que Amalie adivinhou ter muito de interesse e uma certa perplexidade.
- Não! - respondeu Amalie. - Suponho que ele o faz por sentir que é esse o seu dever.
- Mais outro! - exclamou Jerome, rindo um pouco. - É incrível como o "dever" persegue esta
maldita família! Bem, eu nunca tive muita fé nos dotes dele, como tu parecias
ter!
Amalie recordou-se do rosto grave e pensativo de Philip e sentiu-se irritada. Jerome observava-a
com curiosidade.
-Imagino que ele esteja bastante crescido agora. Mudou muito? - perguntou.
- Não está muito mais alto, mas é um homem. No carácter, nas maneiras e num certo modo de falar,
parece-se muito com o teu pai.
Amalie falava com voz muito fria, e ficou surpreendida quando Jerome disse, quase com
afabilidade:
- Sim. Sempre fui dessa opinião, também. Pobre diabo! Pareceu ficar mergulhado nos seus
pensamentos e recordações, e depois disse ainda:
- A herança da Nova Inglaterra tem uma certa tendência para se infiltrar na família, como o granito
através da terra fértil. bom, então ele vai para o banco, não
é verdade? Não sou capaz de conciliar essa idéia com aquilo que me recordo de Philip. Mas...
suponho que ele também se deve ter transformado num empertigado...
- Não. Estás enganado, Jerome. Ele continua a ser aquilo que era, só que está um homem e as
características do seu carácter parecem ter-se acentuado com o decorrer
dos anos. Eu... eu gosto muito de Philip. Ele perguntou por ti, e quis saber muitas coisas a teu
respeito. Pareceu-me... interessado... e falou de ti com bastante
simpatia. Pediu-me que te dissesse que tu realizaste maravilhas autênticas nesta cidade e que
esperava vir um dia a poder estudar todo o processo.
- Muita bondade da parte dele! -retorquiu Jerome. Levantou-se e preparou outra bebida para si
próprio.
- Imagino que ele demonstrou também uma enorme magnanimidade!
- Como tu compreendes tão pouco as outras pessoas, Jerome! - exclamou Amalie.
O seu temperamento tempestuoso estava prestes a saltar.
- Que idéia distorcida tu fazes de Philip! - continuou ela.
- Tu próprio costumavas dizer que ele era extremamente parecido com o teu pai. Se Philip está
pronto a "sacrificar-se" e entrar no banco, não o faz por sentir que
o deve fazer, mas porque é compreensivo.
Jerome afastou-se da mesa e olhou para Amalie. A expressão do seu rosto era sombria, quase
desafiadora.
- Como vocês dois devem ter nadado em sentimentalismos!
- disse ele, mordaz. - Que cena de partir o coração se deve ter desenrolado entre os dois! Que
suspiros! Que lágrimas! Que olhares patéticos e dramáticos!
Voltou a sentar-se, enquanto Amalie o olhava, furiosa e vermelha de raiva contida.
- Um episódio desses já chega! - continou Jerome. - Que ele tenha sido o primeiro e o último. E
ponto final neste assunto!
O temperamento de Amalie estava quase a ultrapassar as barreiras de todas as cautelas e precauções.
- Isso não é assim tão fácil, Jerome! - afirmou ela. - Ele deseja visitar Hilltop de vez em quando.
Os olhos de Jerome adquiriram um brilho vicioso, quase mau.
- Ah, quer!? E eu digo que não!
- Estás a esquecer-te que também ele tem interesse nesta casa, que também ele tem direitos sobre
ela.
Jerome ficou em silêncio. Olhou para a mulher friamente. As cicatrizes do seu rosto tinham-se
tornado num escarlate vivo.
- Muito bem. Então ele quer vir até aqui e espiar, não é?
- Philip? Espiar? - exclamou Amalie quase completamente fora de si. - Se é que tu o conheces ao
menos um pouco,
como é que podes dizer uma coisa dessas? Pareces esquecer-te de que esta é a casa de Philip, e que
sempre foi a casa dele, e que é muito possível que ele tenha aqui
muitas recordações.
Calou-se. A respiração saía-lhe entrecortada de excitação. Depois continuou:
- Tu não podes afastar Philip desta casa, Jerome! A menos que lhe peças para não vir aqui. Ele não
virá, se tu lhe disseres que não venha. Sabes isso muito bem.
E... tu vais fazer uma coisa dessas, Jerome?
Jerome pousou o copo, pegou num charuto e acendeu-o. Todos os seus gestos eram deliberadamente
calmos e compassados.
- Tu sabes que ele respeitará sempre a tua vontade, Jerome
- continuou Amalie. - Ele gostou sempre tanto de ti! Só tens de lhe dizer que não venha, que
preferes que ele se mantenha afastado desta casa, e ele não virá aqui
nunca. Serás tu capaz de sertão mesquinho, tão cruel?
Jerome retorquiu:
- Quando corto com uma parte da minha vida, faço o possível por fazer um trabalho perfeito. Não
gosto de deixar pontas de fora nem pequenos detalhes a esbracejar
por aí!
A preocupação de Amalie pareceu desaparecer ao escutar aquelas palavras do marido. Observou-o
atentamente, e disse com voz muito suave:
- Nós não temos nada contra o Philip. Além disso, vocês dois sempre gostaram um do outro. Mas
ele é muito sensato, e sei que não virá quanto tu estiveres aqui, se
tu assim o desejares.
Esperou que Jerome respondesse, mas ele não o fez, e o temperamento de Amalie ameaçou explodir
de novo.
- Nunca imaginei que fosses assim tão falho de percepção, Jerome! Estou desapontada contigo!
Ficou confusa e atónita quando Jerome rompeu em gargalhadas, já que nada na atitude dele lhe dera
a entender aquele divertimento inesperado.
- Costumas dizer-me pelo menos duas vezes por semana que estás desapontada comigo! - afirmou
Jerome, rindo-se ainda. - Vocês, mulheres, querem sempre moldar o homem
aos vossos desejos. Fiz de ti uma mulher honesta, e tu fizeste de mim um pai de família. Mas isso
não parece satisfazer-te, pois não?
Amalie esteve quase a retorquiu-lhe com uma resposta furiosa, mas ficou em silêncio; reparou que
Jerome estava pensativo e que algo no seu comportamento revelava
que os seus pensamentos o divertiam, pois um estranho sorriso bailava-lhe nos lábios.
- Bem, se ele quiser vir, está no seu direito, suponho. Que
venha, então, pobre diabo! Imagino que ele deve achar bastante enfadonha a vida dentro daquele
mausoléu. Quem sou eu para lhe negar esse prazer?
Voltou a sorrir e perguntou:
- Combinaste outro encontro com ele, minha doçura?
- Oh, não sejas abominável, Jerome. As vezes consegues ser verdadeiramente mesquinho! Pode até
muito bem acontecer que ele não venha cá. Sabes muito bem que Philip
é capaz de continuar afastado desta casa se chegar à conclusão de que isso poderia ofender o pai.
Ele é demasiado sensato, por vezes!
A campainha soou para o jantar, ecoando brandamente pela casa, e Jerome ergueu-se. Estendeu a
mão para Amalie e puxou-a meiga e jocosamente, obrigando-a a levantar-se
também. Depois, atraiu-a de encontro a si e pousou-lhe nos lábios um beijo sonoro.
- Apesar de seres uma tola, eu amo-te! - disse Jerome, esfregando com ternura o queixo no cabelo
de Amalie.
Saíram do quarto e desceram de mãos dadas as escadas na direcção da sala de jantar.
No entanto, Amalie sentia-se deprimida. Durante toda a sua vida sonhara com segurança, desejara-a
avidamente, e na sua busca ansiosa e quase cega cometera um erro
trágico.
Era agora a dona e senhora daquela sólida e velha mansão, a esposa do seu proprietário, a mãe dos
seus filhos. Tinha a sua própria carruagem, os seus vestidos e
as suasjóias. O seu retrato e os dos filhos pendiam das velhas paredes revestidas a painéis de
madeira. Podia passear, dona de tudo, através dos imensos jardins
que rodeavam a casa, sentar-se à sombra das árvores centenárias, antigas como o próprio tempo.
Mas... apesar de tudo isso, continuava a sentir-se insegura, e sabia
que jamais tinha conseguido alcançar aquela segurança tão ardentemente desejada e tão
ansiosamente procurada. Talvez isso acontecesse porque não possuía dentro de
si mesma a capacidade intrínseca para atrair essa segurança ou até para a adquirir. Aquilo era como
que uma fome voraz dentro de si e, sempre que levava aos lábios
a taça da segurança, acabava por descobrir que estava vazia.
Durante toda a sua vida sentira à sua volta os ventos da instabilidade, uma certa inconstância na
atmosfera que a rodeava. Satisfação e contentamento não eram, ao
que parecia, coisas que alguma vez lhe pudessem pertencer. Seria porque ela, tal como acontecia
com Jerome, era demasiado inquieta, demasiado exigente, demasiado
insatisfeita? Mas porquê, se sempre procurara permanência e raízes com tanta ansiedade, se sempre
esgaravatara por elas tão ardentemente?
Chegaram juntos à sala de entrada, e Jerome relanceou um olhar pela biblioteca. Ficaram os dois a
escutar o relógio do avô no seu tique-taque constante, um tique-taque
que se repetia havia mais de cem anos.
- Afinal, sempre há qualquer coisa de bom na tradição! disse Jerome.
Nesse preciso momento Amalie teve a certeza de que também Jerome se sentia inseguro, que
também ele sentia que a mais leve brisa podia arrancar do chão as suas raízes
pouco firmes, arrancá-lo a ele próprio daquelas paredes e atirá-lo para o tumultuoso vazio da
incerteza.
Dirigiram-se para a sala de jantar, onde durante um século nada tinha mudado. Sentaram-se e
passearam o olhar pelas velhas pratas, as velhas louças de Limoges, as
flores. Então, Amalie pensou que a culpa não era apenas sua ou de Jerome, mas do próprio ar que se
respirava na América. A tradição estava a desaparecer, lentamente,
mas com passos muito firmes. A permanência e a segurança estavam a desvanecer-se. A religião
estava a dar lugar à objectividade e ao materialismo. As raízes da América
remexiam-se perigosamente num chão mole e movediço.
Jerome dizia, nessa altura:
- Hoje andei pelas fábricas, com Munsey e os outros. As coisas estão a andar depressa. Chego a
pensar às vezes que estão mesmo a andar depressa demais. Tenho a sensação
de que qualquer coisa está a crescer de modo gigantesco neste país, e que pode escapar-nos dos
dedos de um momento para o outro. E... essa "qualquer coisa" pode
ser boa ou pode ser má. Não sei!
Amalie olhou o marido com profunda gratidão, mas sem surpresa. Ela e Jerome tinham muitas
vezes aquela espécie de transmissão de pensamentos, aquela quase que telepatia,
e nessas alturas acontecia que um dizia em voz alta precisamente o que o outro estava a pensar.
Sentiu-se comovida. Estendeu a mão ao marido. Jerome prendeu-lha
entre as suas e os dois fitaram-se de olhos brilhantes e apaixonados.
- Pode ser que tudo isto não passe de um disparate, claro!
- continuou Jerome. - Mas... acho que os nossos filhos deviam ir para uma igreja qualquer e adquirir
ali alguns ensinamentos religiosos. Sei lá! Uma coisa que não
seja meramente científica, mas... Oh! Diabos me levem! Não sei!
Capítulo quinquagésimo
O ar deprimido de Jerome não desapareceu por completo nem naquela noite, nem durante o dia
seguinte.
Os seus estados de depressão eram invariavelmente acompanhados por uma espécie de desprezo por
si próprio, uma espécie de furiosa impaciência. Sempre considerara
uma coisa efeminada ser vitima das suas próprias más disposições, e achava alarmante que essas
mesmas irritações crescessem em intensidade e freqüência. As tentativas
que fazia para aplicar a lógica a esses estados de angústia começaram a parecer-lhe pueris. Eram os
jovens ingénuos e os inexperientes que adoravam a lógica, que
agiam de modo calculado, que buscavam razões lógicas e terra-a-terra para a doença e o mal-estar
que se apoderavam do espírito humano e o transformavam numa massa
informe de inércia dolorosa e desgastante.
Por vezes, bastava apenas uma certa luminosidade no céu, um certo tom mais esbranquiçado de
uma árvore, uma determinada entoação na voz de um amigo para o atirar
para o desespero mais absoluto, para uma sensação de frustração aparentemente sem razão de ser.
Nessas alturas deixava de ser capaz de pensar. Limitava-se então
a sentir e a suportar aquela estranha angústia, com a pouca paciência de que era dotado, ou bebia
rapidamente, ou aproveitava o mínimo motivo e as razões mais absurdas
e mesquinhas para ficar irritado.
Jerome sabia que havia pessoas que tinham um ar constante de tranqüilidade e repouso, uma certa
ausência de temporalidade que as fazia parecer descansadas e felizes.
E foi então que se começou a aperceber e a ter a noção da relatividade do tempo. Para ele, o tempo
era uma violenta corrente que se despenhava pelas encostas íngremes
das montanhas, cheia de rápidos e remoinhos, lançando-se em cataratas pelos despenheiros e
abismos. Mas para os homens tranqüilos, o tempo era uma coisa totalmente
isenta de quaisquer perigos, um elemento natural como o ar que se respirava, que passava
lentamente por eles sem distúrbios nem violências, sem perturbarem as suas
personalidades e sem molestarem a paz e a tranqüilidade das suas vidas calmas e imperturbáveis.
Que segredo era esse que possuíam esses homens tranqüilos, que os fazia caminhar pela vida
calmamente e sem perturbações, que os fazia cumprirem os seus deveres
sem precipitações e violência, mas antes com uma solidez e uma constância que ele nem conseguia
alcançar? As calamidades passavam por esses homens como que por um
caminho paralelo, como um rio precipitando-se para o mar. As suas vidas decorriam sem
alarmes e as suas famílias sorriam serenamente, cheias de confiança. Sentavam-se às suas lareiras,
beberricavam os seus uísques e nos seus olhos não se lia insegurança,
nem medo nem paixão. A maior parte das vezes, Jerome sentia por esses homens tranqüilos uma
inveja imensa. Talvez se pudesse sentir bastante melhor se conseguisse
descobrir que a existência deles não tinha qualquer significado. Mas... era demasiado inteligente
para acreditar isso.
Havia nele qualquer coisa que estava errada, mas não sabia o que era. Talvez fosse uma
característica especial da personalidade. Durante toda a sua vida se tinha
sentido perturbado, enraivecido, deprimido, exultante, desesperado... mas nunca se tinha sentido
verdadeiramente feliz. Porquê? Tinha uma mulher e uma família que
adorava, mas acontecia-lhe por vezes que só de os ver sentia aumentar dentro de si aquela
inquietação e intranqüilidade que o atirava para o mais fundo dos desesperos.
As vezes sentia pena por eles pois sabia que os seres que mais amava no mundo sofriam por sua
culpa, e nessas alturas apetecia-lhe fugir, abandonar tudo, perder-se
para sempre no turbilhão do mundo e do esquecimento. Mas... sabia também que, mesmo que o
fizesse, arrastaria consigo aquela permenente insatisfação que fazia parte
de si próprio.
Procurava, quase como um louco, provas que lhe demonstrassem que "estava a realizar qualquer
coisa", mas cedo se apercebeu de que essa mesma procura desenfreada
fazia parte daquela doença sem nome de que padecia. E pensava então:
"Um homem tem de se aceitar a si mesmo tal como é, e tudo aquilo que é, para que consiga obter ao
menos uns momentos de paz."
Por breves instantes, aquele pensamento parecia-lhe um excelente epigrama, mas logo no instante
seguinte chegava à conclusão de que esse belo epigrama não passava
de uma absurda colecção de palavras sem qualquer significado e apenas revestida de um
pretensiosismo atroz.
Recordava-se da sua vida antiga, dos tempos em que fora irresponsável e pedante, e compreendia
finalmente que a única coisa que o tinha governado e dirigido tinha
sido o medo. Sempre sentira medo. De quê? Sempre sentira ódio. Mas... de quem? e porquê?
Não sabia!
Naquele fim de tarde, quando rolava na sua carruagem a caminho de casa, os seus pensamentos
eram sombrios e confusos e a angústia que lhe subia do peito era mais
forte do que nunca. Chegou à base da colina que subia na direcção de Hilltop, mas a paisagem à sua
volta passava-lhe despercebida. Nem mesmo
reparou na casa de Alfred. A estrada começou a subir suavemente e depois curvou num ângulo
fechado. Philip caminhava ao longo da berma brincando com um pequeno cão
branco.
O primeiro impulso de Jerome foi passar por ele como se o não tivesse visto. Mas depois um novo
impulso apoderou-se dele e ordenou ao cocheiro que parasse. Ao ouvir
a sua voz, Philip virou-se, e quando viu o ocupante da carruagem sorriu com um prazer natural e
sincero. Assobiou para o cão e caminhou na direcção da carruagem
de Jerome.
- Jerome! - exclamou Philip quando chegou junto da carruagem.
- Olá, Philip! - disse Jerome, um pouco embaraçado. Saltou da carruagem e estendeu a mão ao
jovem. Philip
apertou-lha calorosamente e sorriu.
- Há quanto tempo, Jerome! - disse Philip.
- Sim! Há quanto tempo, Philip! - retorquiu Jerome.
- Estou tão contente por voltar a vê-lo! - disse Philip ao fim de alguns instantes, com uma
simplicidade profunda e sincera.
Jerome ficou surpreendido e desconcertado. Que se passava com ele? Sentia-se contente por rever
Philip! Olhou para o primo com uma espécie de espanto. Philip transformara-se
num homem e deixara de ser aquele rapazinho quase patético por quem ele sentia um misto de
compaixão e repulsa. Agora Philip enfrentava o olhar de Jerome com firmeza
e um sorriso afável a bailar-lhe nos lábios e havia qualquer coisa naquele sorriso estranho que
misteriosamente quase fez desaparecer o mau humor de Jerome, aliviando-o
por momentos do sofrimento medonho e desconfortável que o deprimia. Apertou com força a mão
de Philip antes de lha soltar e disse:
- Cresceste muito, Philip!
E juntou, quase sem se dar conta do que dizia:
- Estou satisfeito por te encontrar!
Estar ali com Philip era quase como ter saído de uma tempestade violenta e achar-se de súbito num
porto seguro e abrigado. Aquela sensação era absurda, evidentemente,
mas a verdade era que a sentia dentro de si, com uma realidade quase palpável.
- Voltaste para sempre? - perguntou Jerome, cada vez mais confundido com aquela perturbadora
sensação que dele se apoderara.
- Sim, sim. Voltei para ficar!
- Estou contente.
Olharam de novo um para o outro fixamente.
"Há qualquer coisa em Jerome que não corre bem!", pensou
Philip. "Aquela velha inquietude e instabilidade que sempre lhe conheci são agora mais fortes e
mais visíveis. Fisicamente, não envelheceu muito. Portanto, há mais
qualquer coisa para além dos anos que passaram sobre ele. E, ou eu me engano muito, ou essa
qualquer coisa é incurável. Dá-me a impressão de ser um homem com medo
de qualquer coisa, um homem perseguido constantemente pelo medo... nem ele próprio sabe de quê.
Que será que ele quer? De que é que ele tentará fugir?"
O silêncio entre ambos estava a tornar-se absurdo e estúpido, mas Jerome não parecia disposto a
deixar partir Philip. Disse então:
- Amalie disse-me que tencionavas visitar Hilltop. Queres jantar connosco amanhã? Aceitas o
convite?
Philip hesitou, e depois respondeu muito calmo:
- Sim. Sim, acho que aceito o convite. Obrigado.
Não havia embaraço no seu olhar nem nas suas palavras e Jerome pensou:
"Ele nunca foi doido. Pelo contrário, Philip foi sempre um rapazinho de quem se podia esperar a
atitude correcta em todas as ocasiões, o comportamento mais natural
e mais razoável!"
Um sentimento espantoso de amizade e calor pareceu invadi-lo.
- Gostaria de te ver no meu banco, Philip! - disse Jerome. - E gostava também que visitasses as
fábricas. Fizemos alguns progressos ao longo destes últimos anos,
sabes?
Philip voltou a sorrir, e fitou o primo com curiosidade e também um pouco de comiseração.
- Obrigado - respondeu. - Aceito o seu convite, claro. Para dizer a verdade, tencionava até escrever-
lhe a pedir autorização para o fazer um destes dias.
- Estiveste fora tanto tempo que é impossível que saibas o que tem passado por aqui - disse Jerome.
Philip detectou-lhe na voz uma vaidade infantil e disfarçada.
- Sim, é verdade - respondeu. - Mas já reparei que houve muitas mudanças na cidade. E gostava de
ficar a saber tudo sobre elas.
O rosto de Philip tinha uma expressão compreensiva e interessada, mas havia nos seus olhos
escuros um brilho estranho que trouxe de súbito à memória de Jerome a
expressão maliciosa e arguta de seu pai, William Lindsey. Sim, era efectivamente verdade; Philip,
apesar do seu rosto moreno e dos seus olhos escuros, parecia-se
de uma maneira extraordinária com o que fora seu tio-avô, em especial em certos traços do seu
carácter. Havia nele uma quietude, um equilíbrio, um certo humor
calmo e uma tão grande e profunda bonomia que Jerome sentiu crescer dentro de si uma maior
ternura e uma maior atracção pelo jovem.
Riu-se um pouco, como se quisesse afastar a perturbação e a perplexidade que o invadiam, e
perguntou:
- Diz-me uma coisa, Philip. Também tens a mania das citações?
Philip não ficou confundido nem perplexo com aquela pergunta de certa maneira um pouco
extraordinária e fora de propósito. Compreendeu-a de imediato, e o sorriso
que lhe iluminou o rosto pareceu tornar ainda mais brilhantes os olhos. Voltou-se um pouco e
abrangeu com o olhar o extenso vale à sua frente, onde as chaminés das
fábricas continuavam a lançar para os céus um fumo escuro e espesso.
- Sim, às vezes! - retorquiu. - De facto, até podia fazer uma citação agora mesmo. Estava a pensar
numa coisa que Benjamim Franklin disse uma vez a propósito da
riqueza natural. "Parece haver apenas três maneiras de um país adquirir riqueza. A primeira é a
guerra, como os Romanos faziam, saqueando os países que lhes são
vizinhos. Isso é roubo. A segunda é o comércio, que significa, de uma maneira geral, enganar os
outros. A terceira é a agricultura, a única maneira honesta, pela
qual o homem recebe um aumento real da semente por ele lançada à terra, numa espécie de milagre
contínuo realizado pela mão de Deus a seu favor, como uma recompensa
pela sua vida inocente e pelo seu trabalho virtuoso!"
A sua voz era calma, repousada e agradável, mas Jerome corou ligeiramente.
- Sempre perguntei a mim próprio como é que o meu pai conseguia decorar tantas citações - disse
ele. - E tu pareces ter herdado esse mesmo condão. Isso é o resultado
de uma memória prodigiosa, ou de uma incapacidade inata de formar idéias próprias? Afinal, parece
que é necessário preencher qualquer coisa, como que um vazio, não
é?
Philip gargalhou com gosto, e Jerome, que começara a arder em irritação, achou-se de súbito a rir-se
também.
- O velho Ben foi ainda apanhado pelo último estrebuchar do feudalismo! - afirmou Jerome.
- Nunca gostei do feudalismo, mas devo dizer que tinha também os seus aspectos positivos -
retorquiu Philip. - No entanto, se não aprecia Franklin, posso consolá-lo
com um pouco de Thoreau ou Emerson.
Jerome ergueu a mão num gesto de divertido alarme, e disse:
- Oh, não, por amor de Deus! Esses sou eu capaz de citar ad nauseam! l
Fez uma ligeira pausa, e logo continuou:
- Ouvi dizer que vais entrar para o velho banco, Philip.
- Sim, é verdade. Em Setembro - respondeu Philip num tom tranqüilo.
Jerome ficou de novo embaraçado, quase sem saber o que dizer a seguir.
- Estás com bom aspecto! - afirmou, pouco à vontade.
- Oh, sim! Sinto-me bem, de facto. Em boa verdade, a minha constituição é bastante forte, apesar do
que dizem e pensam os meus amigos.
Philip era, todo ele, calma, compostura e à-vontade. Pelo contrário, o embaraço de Jerome tornava-
se cada vez mais evidente. No entanto, não sentia qualquer desejo
de se afastar de Philip. Olhou para a sua carruagem, e perguntou mais uma vez, com uma estranha
insistência na voz:
- Então, podemos esperar por ti amanhã à noite? Philip acenou com a cabeça, num gesto afirmativo
e respondeu:
- Sim, claro! E, se não se importar, gostaria de dar uma volta pelo seu banco e pelas fábricas
também, amanhã. A menos que esteja muito ocupado!
- Não, não! vou, até, gostar que os visites! - retorquiu Jerome.
Subiu para a carruagem, e disse ainda, despedindo-se:
- Então, até amanhã!
Levou a mão ao chapéu, murmurou umas palavras ao cocheiro e a carruagem afastou-se. Foi-lhe
necessário um esforço enorme para se impedir de olhar para trás. Parecia-lhe
que deixava atrás de si um lugar seguro e calmo, acolhedor e abrigado, onde por momentos se
sentira descansado e sem inquietações.
Philip ficou a vê-lo afastar-se, pensativo, enquanto o rosto se lhe inundava aos poucos com uma
sombra de preocupação. Suspirou, esfregou lentamente o queixo, num
gesto igual ao do seu tio William Lindsey, assobiou para o cão e seguiu o seu caminho, num passo
lento.
Capítulo quinquagésimo primeiro
Philip provocou uma onda de espanto e incredulidade ao penetrar na enorme entrada de mármore do
banco de Jerome, na manhã seguinte. Mas a sua atitude era cheia de
dignidade e profundamente natural e a sua voz soou calma quando solicitou a um empregado que
informasse Mr. Lindsey de que Mr. Philip Lindsey desejava vê-lo.
Os poucos clientes que se encontravam no banco àquela hora não cabiam em si de perplexidade e
trocaram entre eles comentários abafados e especulativos quando Philip
desapareceu pela porta que dava acesso ao gabinete de Jerome. A excitação aumentou quando,
momentos depois, Jerome e Philip apareceram juntos, conversando animadamente
um com o outro, dando mostras de uma evidente amizade. Todos os olhares seguiram aquele par
estranhíssimo, enquanto os dois homens, indiferentes ao espanto que levantavam
à sua volta, percorriam as instalações do banco. Philip mostrava-se interessado e atento às
explicações de Jerome, não se dando conta, aparentemente, de toda a excitação
que a sua presença ali provocava.
A maior estupefacção surgiu, no entanto, quando todos os presentes ouviram Jerome pedir a sua
carruagem e viram depois os dois homens abandonar o edifício e partir
juntos.
Às duas horas foram de novo vistos no hotel, onde se sentaram na mesa previamente marcada por
Jerome, e juntos encomendaram o almoço. Os outros clientes lançavam
a ambos olhares furtivos, e tentavam escutar as palavras que trocavam. Jerome e Philip beberam
primeiro um copo de uísque com soda, antes do almoço, e tinham ambos
um ar excessivamente interessado; na realidade, a sua absorção um no outro era total, como se
estivessem completamente sozinhos.
As duas e meia já Alfred estava a par de todo o relato daquela história incrível, mas recebeu a
notícia com ar impassível e aparentemente sem qualquer interesse
ou perturbação. A verdade era que Philip o tinha informado naquela manhã de que tencionava
visitar as fábricas e dar uma olhadela ao banco de Jerome, e também lhe
comunicara que fora convidado para jantar em Hilltop naquela mesma noite. E Alfred, como lhe era
habitual, não fizera nenhum comentário. Limitara-se a fitar o filho
com ar sombrio. No entanto, a confiança que depositava em Philip era muito grande. Alfred
conhecia o filho demasiado bem para suspeitar de quaisquer motivos menos
confessáveis na atitude de Philip.
com uma disposição magnífica, como havia muito não sentia, Jerome perguntou:
- bom, então? Que achas de tudo quanto viste? Philip sorriu e respondeu:
- Acho que Napoleão era um homem muito esperto, quando falava da facilidade com que podia
construir um novo exército. Se bem se lembra, ele disse que tudo o que
tinha a fazer era oferecer uma hipótese de fuga às fábricas de botões.
Jerome franziu a testa.
- Fábrica de botões?
Franziu ainda mais o sobrolho e fingiu não ter compreendido aquela alusão.
- Pensei que ficarias impressionado com o que viste, Philip. Não és capaz de ver o que está por
detrás de tudo isto? O futuro da América é ilimitado. A expansão
do nosso império industrial libertará o homem do trabalho alienante e dar-lhe-á tempos livres
durante os quais ele se poderá divertir; poderá mesmo estudar, adquirir
educação, elevar-se a posições mais importantes, libertar-se da insegurança em que sempre viveu, e
poderá encher a sua casa de coisas confortáveis e que lhe darão
um prazer que nunca poderia ter de outro modo.
Esperou que Philip lhe respondesse, mas o jovem ficou silencioso, sorvendo a sua bebida em
pequenos golos, com ar pensativo. A impaciência de Jerome aumentou. Por
fim Philip disse:
- Passeei muitas vezes à noite pelas zonas onde vivem os trabalhadores dessas fábricas. São umas
áreas bonitas, sem dúvida, mas eu vi esses trabalhadores sentados
nas soleiras das portas, sem nada fazerem, olhando para o espaço vazio. Poderá dizer-me que
mesmo que eles sejam incapazes de qualquer evolução, mesmo que eles tenham
estagnado dentro dos limites apertados dos moldes em que foram criados, continuando presos à sua
vida antiga, os seus filhos avançarão e tornar-se-ão mais conscientes
da vida que lhes é oferecida.
Abanou a cabeça com ar pesaroso e continuou:
- Lamento, Jerome, mas acho que não é bem assim. Há qualquer coisa que falta no meio de tudo
isto. Também não tenho bem a certeza do que possa ser, mas mais tempos
livres, uma educação melhor, mais dinheiro para... coisas várias... não é a resposta. Acho que os
homens como você estão a cometer um erro muito grave, mas não lhe
sei dizer qual é esse erro. Sei que é enorme e assustador mas neste momento confunde-me e escapa-
se à minha compreensão e ao meu entendimento.
Ficou à espera de uma resposta revoltada de Jerome ou de uma atitude conflituosa da parte dele;
mas para sua grande surpresa, Jerome fitou-o com ar perscrutador,
quase ansioso, e disse depois com uma tentativa de sorriso zombeteiro:
- Tu vais ser exactamente como o meu pai. Vamos, anda lá! Deves ter chegado a qualquer
conclusão. Qual foi?
- Tu próprio o sentiste, não é verdade, Jerome? - perguntou por sua vez Philip olhando atentamente
para o primo.
- Não sei do que é que estás a falar! - retorquiu Jerome, desviando o olhar para os bifes que
acabavam de lhes pôr à frente.
Pediu uma garrafa de vinho e com ar despreocupado informou Philip de que guardava no hotel uma
pequena reserva do seu próprio vinho, para seu uso pessoal.
Mas Philip insistiu:
- Voltemos às fábricas de botões. Francamente, Jerome, achas que elas contêm tudo quanto um
homem precisa para a sua realização pessoal, para a sua eterna exigência
instintiva de excitação, para o seu desejo primitivo de aventura? Elas produzem coisas em
quantidades enormes, é verdade. Mas não acho que produzam as "coisas" que
darão ao homem tudo o que a sua natureza basicamente exige e procura. Creio que é algures nessa
teoria que reside todo o erro.
Fez uma pausa ligeira, mas logo continuou:
- Só sei que o crescente número de invenções, o troar cada vez maior que se ouve agora por toda a
América, rouba ao homem qualquer coisa que é a sua necessidade
mais premente, e eu acho que vocês ignoram essa necessidade intrínseca, correndo vocês mesmos
um grande risco; vocês, os que pensam que a simples posse das coisas
e o dinheiro pode satisfazer a busca subjectiva do homem.
- Estás a tornar-te metafísico! - disse Jerome.
No entanto, escutara as palavras de Philip com uma avidez de que nem ele próprio parecia
aperceber-se.
- Vá! Continua! Tentarei recordar-me de que és ainda um estudante e não um banqueiro com idéias
mais práticas - disse Jerome sorrindo.
Philip tornara-se mais pensativo do que nunca.
- Quando visitámos as fábricas esta manhã, tu disseste, e com uma grande dose de verdade, devo
confessar, que tinha passado a época do infindável trabalho manual,
do laborioso e cansativo trabalho individual. No entanto, eu continuo a sentir uma certa dissonância
nessa tua afirmação, quando penso nela. Porque, digas tu o que
disseres, eu continuo a acreditar que o trabalhador dos velhos tempos tinha um orgulho pessoal
naquilo que criava com as suas próprias mãos, naquilo que era o resultado
da sua própria imaginação. Fosse o que fosse que ele fizesse, as coisas que saíam das suas mãos
levavam a marca de si mesmo, da sua individualidade; o seu trabalho
era a expressão do
seu próprio espírito, e pouco importava o que ele fosse. A única coisa que lhe interessava era que
"aquilo" que ele fazia era seu, era qualquer coisa de si mesmo,
fosse quem fosse depois o comprador que a adquirisse.
Ficou silencioso por instantes, mas logo continuou:
- Sinto o receio pouco confortável de que as fábricas roubem, e continuem a roubar, ao homem o
seu orgulho pessoal, a sua necessidade de se sentir importante, a
sua confiança no seu próprio valor. Acho que foi este orgulho natural que fez do homem, nos outros
tempos, um gigante capaz de suportar as infindáveis horas de trabalho
que passava nos campos ou nas suas pequenas oficinas, suportando-as sem revolta, em silêncio e
sem amargos ressentimentos. Jerome, eu reparei hoje que os trabalhadores
pareciam profundamente inf elizes,..
Jerome pareceu mergulhar a sua atenção na refeição que lhes tinha sido servida, e disse:
- Encomendei estes bifes especialmente por tua causa!
- Obrigado! - retorquiu Philip gravemente e com um brilho estranho nos olhos.
Fitava o primo com afeição.
"Ele sabe", pensou. "Ele sabe e é precisamente isso que o incomoda!"
Jerome ergueu os olhos do prato, e disse:
- Bem, continua! Dizias tu que tinhas reparado que os trabalhadores pareciam profundamente
infelizes...
- Sim, Jerome. Eu viajei por toda a Europa continental, e muito em especial todos países latinos. As
pessoas são, nesses países, incrivelmente pobres, é verdade.
Mas, por mais estranho que possa parecer, julguei-as felizes. O materialismo e as fábricas ainda não
afectaram muito esses países profundamente católicos, por enquanto.
Acho que talvez seja essa a verdadeira chave... a verdadeira resposta para o nosso problema.
Pareceu mergulhar nos seus pensamentos, e depois continuou a falar, fitando o primo com um olhar
intenso.
- A Igreja Católica Romana considera o indivíduo, e admite a superioridade do homem em relação
ao mundo que o cerca. Reconhece também que cada homem é uma alma distinta
e com orgulho próprio bem como um par de mãos absolutamente características. Os sábios da Idade
Média compreenderam isso, e a Igreja também o compreendeu. Sejam
quais forem os erros que apontarmos ao feudalismo e a luta que travarmos contra ele (e não há
dúvida que se trata de uma luta válida e justa), a verdade é que pelo
menos o trabalhador nunca se sentia aborrecido. Ele fazia coisas vivas; a sua vida não era ocupada
com coisas mortas. A nossa nova indústria, portanto, deve ir buscar
à Igreja
Romana esse princípio, de que é o indivíduo que conta, e que a sua alma não deve ser posta em
confronto desfavorável com a máquina, seja qual for a competência e
o rendimento com que esta trabalhe, seja qual for o número de coisas que ela seja capaz de produzir,
hora após hora.
- Continuo a pensar que te estás a tornar metafísico! disse Jerome. - Estarás tu por acaso a defender
a sujidade, a ignorância, a doença e a miséria, contra a industrialização
limpa e contra a educação dos homens?
Philip soltou uma gargalhada suave e retorquiu:
- É claro que não! E... peço-te que não me interpretes mal. Eu gosto do som da indústria. Acho que
tens absoluta razão nas tuas profecias quanto ao futuro, e sinto-me
satisfeito por isso. Mas também sou de opinião de que não devemos fazer uma escolha entre a
felicidade e o orgulho do indivíduo, por um lado, a produção em massa
e o materialismo objectivo, por outro. Creio que a resposta reside na nossa capacidade para
combinarmos as duas coisas... o que é, sem dúvida, uma tremenda tarefa
para o futuro.
Jerome aceitou um dos cigarros que Philip lhe ofereceu, e examinou-o com um sorriso a brincar-lhe
nos lábios.
- Feitos pela máquina! Não me pareces muito consistente nas tuas idéias e nas tuas atitudes práticas,
Philip!
- Oh, que disparate! Não tentes enganar-me, Jerome. Tu sabes muito bem onde é que eu quero
chegar, porque sinto que tudo isto que eu acabei de dizer está também
bem presente no teu espírito. Tu tens perfeita consciência de que a época da máquina que agora
atravessamos e que parece aumentar de dia para dia está a destruir
a diversidade da vida humana. E a versatilidade é a característica mais proeminente do homem. O
materialismo e o seu novo apóstolo, a máquina, acabarão por a destruir,
a menos que...
- A menos que... o quê?
Philip encolheu os ombros e respondeu com aberta sinceridade:
- Ainda não sei. bom, eu sei muito bem que não vale a pena gritar e vociferar contra as máquinas,
denunciando o que de mal elas trazem para a civilização do mundo.
Do que eu tenho medo é que nunca sejamos capazes de injectar nessa produção em massa um pouco
do sentido do orgulho e do valor pessoal, e o individualismo que o
homem deve continuar a possuir, a não ser que ele se queira tornar num simples servo das máquinas
que ele próprio criou. com essa terrível potencialidade, o homem
poderá correr o risco de mergulhar na loucura, numa loucura qualquer, como por exemplo nas
garras universais, para escapar
à vida mecânica, direi mesmo, demasiado mecânica que ele mesmo originou.
"As vezes chego a pensar que não podemos injectar a individualidade e o orgulho nas fábricas. É
incompatível. Mas algures, de algum modo, temos de descobrir qualquer
coisa fora da monotonia das fábricas que possa dar ao homem a sensação palpável do seu próprio
valor, de que ele tanto necessita para a sua realização pessoal, de
modo a que ele acredite que está de algum modo a contribuir para o bem-estar no mundo com
qualquer coisa que é particularmente sua. Sinto que ano após ano a imensidade
dessa necessidade vital aumenta, na proporção directa da expansão da máquina. Quanto maior for o
lugar que a máquina ocupe na vida, mais esmagado se sentirá o homem.
No entanto, o homem é, não nos devemos esquecer, um explosivo espiritual... e é altamente
perigoso comprimir ou tentar esmagar explosivos. Chega uma dada altura
em que eles atingem o ponto máximo da compressão e explodem."
Jerome apoiou os cotovelos na mesa e observou Philip com os olhos semicerrados, por ente uma
nuvem de fumo. Por fim, disse com voz muito suave:
- Portanto, Philip, tu queres dizer-me que vais entrar na luta contra os homens cinzentos!? Muito
bem! Os homens cinzentos abandonaram os campos e estão a invadir
a indústria. Podes ter a certeza de que os odeio, estejam eles onde estiverem. Há já muito tempo que
pressinto isso e nunca fui capaz de falar a ninguém naquilo
que me perturbava o espírito. Estou-te terrivelmente agradecido.
A sua voz tornou-se mais intensa, apesar de continuar a falar calmamente:
- Ao contrário do que tu possas ter ouvido, Philip, eu não sou um "louco por dinheiro". Ganhei
bastante, é verdade, mas também é verdade que nunca me interessei
por dinheiro como coisa em si mesma que é. Consegui viver de maneira muito confortável em Nova
Iorque e na Europa com montantes muito inferiores aos que agora possuo.
Não imaginas, com certeza, que o meu velho pai, com todos os seus hábitos de bom cavalheiro
descendente da Nova Inglaterra, era pródigo no dinheiro que me dava!
Calou-se por momentos, mas afirmou logo em seguida:
- Sim, descobri por mim próprio que não é preciso muito dinheiro para que um homem se possa
sentir feliz, especialmente se o dinheiro lhe chega às mãos com demasiada
facilidade. O dinheiro ganho com o esforço individual é o único dinheiro que consegue dar ao
homem a sua satisfação pessoal. Isto poderá
parecer-te um aforismo romântico e fora de moda, mas não é por isso que deixa de ser verdadeiro.
Philip escutava-o com gravidade e ponderação, e abanava a cabeça lentamente em sinal de absoluta
concordância com as palavras do primo. A comunhão entre os dois
homens parecia adensar-se a cada momento que passava. Jerome sentia-se muito excitado. Olhou
para Philip com uma expressão profunda que lhe distorcia as feições
morenas, e disse:
- Também eu tenho sentido os meus medos, Philip. Tenho sentido, tal como tu, que a expansão da
máquina está a reduzir cada vez mais o sentido que o homem possui
da sua própria integridade. Eu sei que a emoção é a base da vida de todos os homens. E a verdade é
que toda a sua felicidade, emoção e drama estão a ser sugados
pelas máquinas. Os meus amigos, se me ouvissem neste momento, pensariam que me transformei
num herético. Mas... eles são os homens cinzentos, sem imaginação nem
sensibilidade. bom, qual é a resposta? Por acaso chegaste a alguma conclusão?
Philip deixou escapar um suspiro e respondeu:
- Também não sei! Será que a resposta se encontra na actividade religiosa? Deverá a religião ser
revitalizada na América? Ou será antes um interesse deliberadamente
incrementado pela política, no âmbito de cada homem? Ou será por acaso uma expansão do seu
espírito, de modo a que ele se possa consciencializar de que o bem-estar
de todos os outros homens reside na sua responsabilidade pessoal? Ou residirá essa resposta numa
melhor educação, num prazer artificialmente estimulado pelas artes?
Continuo sem saber qual é a resposta certa. Só sei que o homem terá agora de encontrar uma vida
activa separada do seu trabalho, porque esse seu trabalho lhe roubou
necessariamente todo o seu significado pessoal. As emoções dos homens não podem ser
indefinidamente espezinhadas e suprimidas. Acredito que o primeiro passo a dar
será diminuir substancialmente as horas de trabalho nas fábricas para que a monotonia não acabe
por enlouquecer os homens.
- Sim, eu sei - afirmou Jerome. - Os homens trabalham nove horas por dia nas fábricas de
Riversend. Eu próprio impus isso. Mas tu viste-lhes os rostos durante as
suas horas de lazer. É... diabolicamente estranho e confuso...
Acabaram de beber o café em silêncio. Por fim, Philip disse:
- Eu não passo de um principiante. E também não sou um homem prático. Na realidade sei muito
pouco acerca destes problemas, mas sinto algo de ameaçador, qualquer
coisa de terrível que parece pairar no ar que respiramos e que nos rodeia. Espero não o ter
aborrecido muito, Jerome, com toda esta minha conversa.
- Não! - retorquiu Jerome. - Apenas te limitaste a traduzir por palavras aquilo que, no meu
subconsciente, eu já suspeitava havia muito.
- Eu só sei - disse ainda Philip - que o homem não pode viver objectivamente durante todo o tempo
da sua vida. Se o fizer, acaba por se pôr em risco, a si próprio
e a todo o mundo que o rodeia. Tem de haver uma saída qualquer para esse ego poderoso e
expressamente subjectivo que existe dentro de cada um de nós. O homem precisa
de encontrar uma fuga e escapar da fábrica dos botões. Se não o fizer, enfrentaremos, todos nós,
uma verdadeira catástrofe.
Capítulo quinquagésimo segundo
Sentado ao lado de Jerome na carruagem que os conduzia a Hilltop, Philip ia lançando um olhar
lento e penetrante à sua volta.
Não percorria aquele caminho havia dez anos. Recordava-se daquele ulmeiro norueguês que ficava
na berma da estrada, lembrava-se do seu tronco coberto de musgo verde,
dos seus ramos pesados de folhagem, como braços esguios e sinuosos. Reparou que tinha
aumentado de tamanho e volume. Era como que um amigo muito querido que não
via há muito tempo.
Recordava-se daquela outra depressão, lá mais em baixo, orlada de carvalhos sem idade. Quantas
vezes se deitara na relva espessa que atapetava o chão por debaixo
das suas copas frondosas! Quantas vezes não tinha ido para ali observar em silêncio os pássaros
esvoaçando em redor dos ninhos! Mais além estava a nascente de onde
bebera água nos dias escaldantes de Verão. Lembrava-se de apanhar a água fria nas mãos e ficar a
vê-la escapar-se-lhe brilhante e viva por entre os dedos, como prata
líqüida.
A carruagem continuou a subir a colina. Passaram pelo grupo de pinheiros, quase negros à luz do
entardecer. E por fim surgiu Hilltop, cinzenta e quadrada, todas
as janelas cintilando num fogo escarlate, os relvados extraordinariamente verdejantes. Os telhados
dos celeiros estavam ainda exactamente como deles se recordava,
e também os velhos muros do jardim, ensombrados pelos ramos verdes e pendentes dos chorões. De
um momento para o outro, Charlie surgiria ali, ladrando e saltando
de contentamento. Mas... Charlie, ele sabia, tinha morrido vários anos atrás.
"A minha casa!", pensou Philip.
Sentiu-se de súbito grato a seu pai por nunca ter vendido a Jerome a sua parte naquela casa que lhe
era tão imensamente querida. Jerome podia pensar que tal atitude
resultava de pura maldade, mas Philip sabia que não era assim. As raízes de todos os Lindsey
tinham penetrado fundo naquele chão; os seus pensamentos e as suas emoções
tinham crescido sobre aquela terra, como a hera entre as suas paredes.
Philip, em quem vivia umextraordinário sentido de permanência que não vivia nem em Amalie nem
em Jerome, olhou para a casa com um profundo e apaixonado sentimento
de felicidade, e sentiu, com uma intensidade instintiva, que algum dia voltaria a viver ali, dentro
daquelas paredes que tanto amava.
Jerome, sempre tão perspicaz quando se tratava de analisar as emoções e os sentimentos dos outros,
pressentiu o que se passava dentro do jovem que ia sentado a seu
lado. Sorriu, agora com simpatia e compreensão. Deixava que Philip percorresse tudo com o olhar
sem o perturbar naquele transe em que parecia ter mergulhado. Não
proferiu por isso uma só palavra, nem fez um único gesto durante toda a viagem.
Amalie, envergando um belo vestido de seda de um cinzento suave, habilidosamente drapeado,
esperava-os acompanhada pelas crianças. Estava um pouco nervosa. Quando
Jerome a informara na noite anterior de que tinha convidado Philip para jantar, Amalie olhara para o
marido com ar perscrutador. Jerome não era pessoa que fizesse
as coisas por impulso, e por isso ela suspeitava que por detrás daquele convite tão repentino
estavam outros motivos que ela desconhecia.
Reparou todavia, ainda que com ligeira preocupação, que Jerome tratava Philip com toda a
afabilidade e cortesia quando ambos desceram da carruagem. Amalie avisara
Mary de que se devia comportar dignamente naquela noite. Avançou devagar, com os filhos,
sorrindo. A pequena Mary envergava o seu melhor vestido, todo feito em musselina
branca e rendas da mesma cor, e calçava meias também brancas; uma fita igualmente branca
apanhava-lhe os cabelos quase prateados. O pequeno William, acabado de sair
do seu banho, estava sonolento e corado, os caracóis negros emoldurando-lhe a cabecita redonda.
Philip pensou:
"Que belo quadro eles fazem!"
Mary, com os seus enormes olhos azuis que pareciam encher-lhe todo o rosto, e a massa brilhante
do cabelo que lhe caía até à cintura, fazia-lhe lembrar Alice no
País das Maravilhas. Quanto ao rapazinho, ele fazia-lhe recordar o retrato de Jerome quando tinha
seis anos, e que tinha sido um dos tesouros mais queridos de Mr.
Lindsey.
As crianças foram-lhe apresentadas, e Philip cumprimentou-as com ar muito sério e cortês. O
pequeno William, habitualmente tímido com desconhecidos, olhou-o com
interesse, enquanto que Mary trocava com ele um aperto de mão cheio de compostura e sobriedade.
"Sim, é, na verdade, uma autêntica senhorinha!", pensou Philip, sorrindo para si próprio. "Mas, ou
eu me engano muito, ou é também um diabrete capaz de grandes tempestades!"
"Tempestades à maneira da Nova Inglaterra!", pensou ainda Philip. "Frias, persistentes, aguçadas e
escorregadias como o gelo!"
Ficou a observar Jerome enquanto ele beijava a filha com enorme ternura, e depois o filho com uma
afeição mais ténue.
- Philip! Estou tão contente! -exclamou Amalie simplesmente, quando lhe apertou a mão.
Philip soube que ela estava a ser sincera. Os seus olhos cor de púrpura brilhavam no seu rosto de
traços bem marcados. Amalie mandou os filhos embora e ela, Jerome
e Philip entraram em casa, pela pesada porta de carvalho tão viva na sua memória.
Amalie encetou de imediato uma conversa banal com Jerome para que Philip pudesse observar tudo
com mais à-vontade.
- Não mudou nada! - disse ele, por fim.
Amalie lançou também um olhar à sua volta e murmurou:
- Achas que não!
O relógio que pertencera ao avô bateu as sete horas. Philip ficou em silêncio escutando atentamente
as notas melodiosas até a última se perder num eco musical de
encontro às paredes da casa. Quantas vezes não escutara aquelas notas, e quantas cenas elas não
faziam reviver na sua memória!
A porta da biblioteca abriu-se à sua frente e a emoção que sentiu foi de tal modo forte que não teria
ficado admirado se visse a figura magra e alta de Mr. Lindsey
recostada na sua velha poltrona de couro vermelho, e ouvisse a sua voz repousada e tranqüila.
Tudo aquilo lhe era penoso, tudo aquilo lhe tocava o mais fundo do seu coração: as altas janelas
francesas, quais molduras da paisagem maravilhosa dos jardins e
dos montes distantes, das árvores e da relva de veludo verde, as enormes estantes cobertas de livros
de capas azuis e vermelhas, a comprida mesa de carvalho com
o seu velho candeeiro, a lareira imensa, agora apagada, por cima da qual continuava pendurado o
retrato da mãe de Jerome. Que estranho era que um simples conjunto
de ornamentações, a simples dobra de uma cortina recortada, o cheiro de flores, terra e árvores, a
simples patina das paredes
revestidas com painéis de madeira, pudessem fazer bater mais depressa um coração!
Sentou-se numa cadeira onde se tinha sentado milhares de vezes, e todos os seus contornos lhe eram
familiares. Bebeu xerês de um copo cuja superfície elaboradamente
trabalhada o obrigou a erguê-lo para melhor o admirar, como tantas vezes o fizera no passado.
Um dos livros preferidos de Mr. Lindsey, um fino volume de Keats, estava aberto sobre uma
pequena mesa redonda a seu lado, como se tivesse sido ali deixado pelo
velho senhor apenas uma hora atrás. A colecção de cachimbos que lhe pertencera continuava no
mesmo sítio, queimados, exalando ainda o mesmo odor fragante da sua
marca de tabaco preferida. Qualquer coisa muito perto do sofrimento ensombrou os olhos de Philip
por instantes. Não se apercebeu, por isso, do olhar de entendimento
e compreensão trocado em silêncio entre Amalie e Jerome.
Conversaram depois os três numa conversa fácil e agradável. Para Philip os últimos dez anos
pareciam-lhe agora como um sonho de que despertara por fim. De um momento
para o outro Dorothea e seu pai iriam entrar naquela sala! Quando ouviu a campainha para o jantar,
não se sobressaltou. Era natural que a ouvisse! Ele... nunca tinha
estado fora daquela casa!
Foi Jim quem abriu as portas que davam acesso à sala de jantar, e Philip deteve-se para o
cumprimentar com um aperto de mão e para trocar algumas palavras com ele.
Jim, tal como acontecera com o carvalho das mobílias e das madeiras das paredes, tinha apenas
escurecido um pouco mais, tendo-se tornado talvez um pouco mais gasto
e cansado.
- É bom voltar a vê-lo, Mister Philip! - disse Jim. E Philip respondeu com um estranho sorriso:
- Nada mudou, Jim, nem mesmo tu!
Pareceu-lhe estranho que apenas estivessem postos na mesa três lugares, e uma espécie de mal-estar
físico apoderou-se dele. Jerome sentou-se na velha cadeira outrora
ocupada por Mr. Lindsey e Amalie ocupava agora o antigo lugar de Dorothea. Quanto a Philip,
sentou-se no lugar que costumava habitualmente ser ocupado por seu pai,
mas no íntimo o jovem desejou que lhe tivessem posto o seu lugar no mesmo sítio que tinha
ocupado nos outros tempos. Dessa maneira, poderia olhar para o pesado aparador
de mogno cheio das mesmas velhas pratas e louças.
Sentia-se um pouco deprimido agora, pois aquela mudança de lugares era a primeira alteração que
observava e havia nela qualquer coisa de errado. Fixou, no entanto,
a sua atenção na velha taça de prata que ocupava o centro da mesa, e que se
encontrava, como sempre, cheia de rosas. Eram as mesmas rosas que sempre conhecera. Não
tinham mudado nada. Sorriu.
Amalie, que tinha esperado ver um certo constrangimento, sentia-se feliz por verificar que nem a
mais leve sombra de perturbação existia entre o marido e Philip.
Mas... Philip tinha sido sempre tão cheio de tacto e diplomacia, os seus modos tinham sido tão
cheios de sobriedade, que não a espantava o acto de ele dominar qualquer
espécie de situação por mais delicada que ela fosse.
"Transformou-se num perfeito cavalheiro!", pensou Amalie, com ternura e uma profunda gratidão.
Nunca tinha considerado repugnante a deformidade de Philip; em boa verdade, como tantos outros
que o conheciam, acontecia-lhe muitas vezes nem dar por ela. Via-lhe
apenas a cabeça grande e bem moldada, o cabelo preto e encaracolado, como o do seu próprio filho.
Via-lhe apenas a testa larga e alta, uma testa verdadeiramente
nobre, os olhos escuros e pensativos, o rosto magro e moreno, o nariz aquilino, a boca firme com
traços vincados de compreensão e tolerância. Se essa cabeça assentava
nuns ombros deformados, isso não tinha a mínima importância. Via-se-lhe apenas o rosto fino e
inteligente que tanto se parecia com o de Jerome, mas que era ao mesmo
tempo tão diferente; mais amadurecido, mais adulto, mais calmo e mais compenetrado.
A natureza pensativa de Philip, tão gentil e tão profunda, o seu espírito, tão tolerante, justo e subtil,
enchiam Amalie de paz e satisfação. Sabia que no fundo
Philip tinha um temperamento obstinado, mas não havia nele qualquer traço de hipocrisia ou de
maldade, nem de intransigência para com os outros. Philip haveria sempre
de tentar compreender as outras pessoas, em vez de censurar as suas atitudes ou os seus
pensamentos. Ele era um homem bom. E Amalie pensou, com um certo espanto
e perplexidade, que era uma coisa excelente e ao mesmo tempo estranha conhecer um homem bom.
Um homem assim era "a sombra de um grande penedo no meio de uma terra
deserta e inóspita."
Verificava, com satisfação, que Jerome não era insensível às qualidades de Philip. O marido falava
com Philip com uma sinceridade e uma simplicidade que ela já não
lhe ouvia havia muito tempo, se é que alguma vez lhe tinha escutado. Jerome parecia ter um grande
prazer na companhia de Philip. Dos seus olhos desaparecera um pouco
da inquietação que fora a sua amarga companheira durante os últimos tempos, e também muito da
sua expressão de descontentamento e de busca ansiosa e ávida. Amalie
escutava as vozes dos dois homens com uma felicidade
que havia muito não sentia, e desejava, com tristeza na alma, que Philip se pudesse sentar àquela
mesa todos os dias. A sua presença seria um incentivo e também
um calmante para o temperamento febril de Jerome.
Depois do jantar, sentaram-se no terraço, ao lusco-fusco, bebendo brande.
Philip passeou o seu olhar calmo pelas sombras que se espalhavam sobre a terra, a suave curva da
Lua prateada erguendo-se acima das copas dos pinheiros. O murmúrio
das árvores era como música para os seus ouvidos. Não lhe parecia possível abandonar aquele lugar
querido e ir... para casa! Aquela é que era a sua casa, o seu verdadeiro,
o seu único lar.
Em breve teria de partir de novo para o seu exílio. Escutava cortesmente Jerome, que nesse
momento falava dos seus filhos, e em especial de Mary.
- Aquela raposinha tem um dom especial para a música!
- dizia Jerome, fingindo elaboradamente uma indulgência divertida.
Philip ficou imediatamente interessado.
- Gostaria muito de a ouvir tocar - disse ele. - Mas agora já é muito tarde, evidentemente.
Jerome ergueu-se com entusiasmo mal disfarçado, e exclamou:
- Não, não acho que seja assim tão tarde. Ela já foi para a cama, Amalie?
Mary tinha já ido, de facto, para a cama, mas Amalie foi chamá-la. A rapariguinha apareceu logo de
seguida, envolta num bonito roupão de seda branca. Os seus olhos
azuis estavam brilhantes de contentamento. Philip pegou-lhe carinhosamente na mão e, falando com
ela num tom que teria utilizado para com uma mulher já adulta, pediu-lhe
desculpa, dizendo:
- Mary, lamento imenso perturbar-te, mas ouvi dizer que sabes tocar de uma maneira esplêndida.
Achas que seria demasiado pedir-te que fizesses o favor de tocar um
pouco para mim, antes de me ir embora?
Um ligeiro rubor tingiu ao de leve as faces de Mary. A rapariguinha fez uma pequena vénia e
retorquiu:
- Obrigada. Será um prazer para mim!
Sorriu para Philip e foi sentar-se ao piano com gestos desenvoltos, mas com a atitude de uma jovem
ponderada e educada.
Uma criada acendera o grande candelabro a gás no salão de música, e Philip lamentou que ela o
tivesse feito. Preferia a antiga suavidade da luz das velas, que fazia
soltar reflexos cintilantes nos pendentes de cristal. Aquela luz crua, fria, não lhe agradava.
Mary afastou os cabelos para as costas com um gesto preciso que Philip achava tão encantador.
Depois, uma onda de compenetração inundou-lhe os olhos, uma expressão
de sonho que parecia alargar ainda mais aquele mar intensamente azul num rosto pequenino e
delicado. As suas mãos brancas e diminutas moveram-se suavemente sobre
as teclas, soltando murmúrios de doçura. Mas a criança estava a improvisar. Era como se o seu
espírito vagueasse entre os belos pensamentos que os outros recordavam,
e estivesse a construir para eles um novo mundo muito seu.
Philip escutou atentamente e sentiu-se atónito e perplexo. A técnica era ao mesmo tempo infantil e
amadurecida; uma breve seqüência de notas aqui, infinitamente
doces, mas simples e incertas, logo seguidas de algumas outras mais fortes, originais, irrompendo
das teclas como se se desprendessem de pensamento apaixonado de
uma mulher.
A cabeça de Mary estava atirada para trás, e tornava-se evidente que ela esquecera a presença de
seus pais e de Philipe. Penetrara num mundo que só a ela pertencia,
num sonho que era só seu. O perfil delicado do seu rosto era firme e pálido, quase como que
hipnotizado na sua rigidez inflexível. Parecia quase impossível que aquela
torrente melodiosa de notas saísse daquelas mãos frágeis e tão pequenas.
Philip aproximou-se dela, de cabeça inclinada e rosto atento, e observou-a com ar perscrutante. Ela
não o viu; não tinha consciência de mais nada à sua volta que
não fosse a sua música.
Para lá das janelas, a noite era calma e silenciosa, quente e escura. A música parecia invadi-la,
penetrá-la, como uma voz ao mesmo tempo gritante e harmoniosa.
Depois, abruptamente o piano ficou silencioso. Era como se um pensamento belo e violento tivesse
cessado de repente antes de ter chegado a uma conclusão. Mary virou-se
de costas para o instrumento, e uma fina cortina de cabelo caiu-lhe sobre as faces. Olhou para o pai.
Jerome sorriu -lhe com orgulho, e depois virou-se para Philip.
- com uma total ausência de disciplina, evidentemente, mas a professora diz que ela tem talento. O
que é que tu achas?
- perguntou.
- É extraordinária! - disse Philip.
Olhou para a Mary com ar grave, e calou-se. Ela ergueu-se, hesitante. Depois, com a sua voz doce e
suave, disse:
- A mamã disse-me que tu também sabes tocar. Queres tocar um pouco para mim, agora?
Philip inclinou-se numa vénia sóbria e retorquiu:
500
- Dar-me-á o maior dos prazeres, minha querida.
Sentou-se ao piano. Estava ali a pequena falha de uma das teclas, tal como ele se recordava, de
origem desconhecida, no mogno velho. As quatro teclas seguintes estavam
amareladas, como sempre as tinha conhecido. Lembrava-se, até, que uma criada tentara limpá-las,
procurando devolver-lhes a brancura que deviam ter tido, com uma
solução qualquer. Recordava-se também daquele brilho suave que se desprendia da madeira, do
modo como o banco se inclinava um pouco para o lado esquerdo, de tal
maneira que ele tinha sempre que se apoiar no pé para poder permanecer em equilíbrio. Aflorou as
teclas com os dedos, e elas pareceram ganhar vida, como que em resposta
extasiada aos desejos de um velho amigo.
Começou a tocar a segunda parte do primeiro movimento da Sinfonia nº 8 em menor de Schubert, o
allegro moderato.
As teclas responderam-lhe num grito enorme e ardente, numa imploração selvagem e discordante,
que fazia vibrar qualquer coisa de primitivo e de terrível no coração
humano. Era uma invocação, ameaçadora e selvagem, aos deuses primitivos, um protesto de terror e
desafio ao mesmo tempo heróico e desesperado. Depois, misturando-se
com aqueles gritos, surgiu um tema mais suave e doce, intensamente penetrante, como se os deuses
nobres e estranhos respondessem, e se erguesse por entre o sonho
uma cabeça agonizante e esperançosa nos sons que escutava, as mãos levantadas numa prece muda.
Mais alto, com sons mais profundos e mais doces, os deuses respondiam,
os deuses da piedade, da beleza e da ternura, para que a fúria do caos mergulhasse nas profundezas
do vazio e da escuridão, e a voz do barbarismo, incerta a princípio,
iniciou uma oração de paz em murmúrios suaves.
Mary aproximara-se tanto de Philip que quase lhe tocava. Fixou atentamente os olhos no seu rosto.
A boca dela abrira-se ligeiramente, como se tivesse ficado de súbito
com dificuldade de respirar. Jerome pegara na mão de Amalie, e ela sentia-lhe o estremecimento
involuntário, o calor e a humidade pegajosa que dela se desprendia.
Mas também Jerome estava completamente atraído para Philip e os seus olhos não se despegavam
da figura do rapaz sentado ao piano.
A doçura e a majestade tornaram-se então quase insuportáveis, imponentes, exultantes. O rosto de
Mary estava coberto de lágrimas. Inclinou mais a cabeça e uma longa
madeixa dos seus cabelos tocou o ombro de Philip.
Quando ele parou de tocar e se virou, sorrindo, para ela, Mary olhou-o extasiada. O sorriso dele
desapareceu de súbito. Ergueu a mão lentamente, como se quisesse
tocar em Mary, mas
esta afastou-se rápida, soltou um som abafado, virou-se e saiu do salão a correr.
- Parece-me que assustei a pobre pequenita - disse Philip, erguendo-se do banco, e fitando Jerome e
Amalie com ar preocupado.
- Oh, não! - disse Amalie. - Ela é extraordinariamente sensível e a música perturba-a. Mas...
confesso que nunca a tinha visto tão comovida. Ela é... tão metida
consigo... tão fechada...
- Sensibilidade da Nova Inglaterra! - disse Jerome, um pouco abstracto e pensativo. - Não perdeste
esse teu magnífico dom, Philip. E pensar que vais entrar para
um banco...!
A expressão no rosto de Philip tornou-se mais reservada.
- Um homem tem de ser prático! - retorquiu ele, num tom demasiado formal.
Jerome e Amalie olharam-no. Ele tirou o relógio do bolso do colete, lançou-lhe uma olhadela e
disse:
- São horas de me ir embora. Queria agradecer-lhes a maravilhosa noite que me ofereceram.
Ficou silencioso por breves momentos e depois disse:
- Têm a certeza de que eu não assustei a pobre criança?
Jerome e Amalie asseguraram-lhe que podia estar descansado, pois isso não tinha de certeza
acontecido. Jerome pediu a carruagem para Philip. Trocaram apertos de
mão e Jerome afirmou:
- Gostei muito que tivesses vindo aqui, Philip. E queria pedir-te que viesses mais vezes. Há tantas
coisas que precisamos de discutir! E, entretanto, queres fazer
o favor de ires pensando na solução que havemos de dar ao nosso problema?
Capítulo quinquagésimo terceiro
Quando Philip chegou a casa, encontrou o pai lendo na fria biblioteca onde o calor do Verão parecia
nunca penetrar.
Alfred pôs o livro de lado, as Meditações de Marco Aurélio, e cumprimentou o filho com afeição.
Philip sentou-se numa daquelas rígidas e desconfortáveis cadeiras
que sempre lhe pareciam tão pouco acolhedoras e familiares. Alfred perguntou-lhe se queria um
copo de vinho, como era habitual ao fim da noite, e Philip aceitou.
O pai parecia-lhe cansado e um pouco retraído, mas amável e carinhoso.
- Senti a tua falta hoje, Philip! - disse Alfred.
Vagueou o olhar pelas paredes sombrias, pelas janelas estreitas e tristes, pela carpete vermelha de
Bruxelas. Por fim, perguntou em voz muito baixa:
- Foi assim tão difícil regressares?
Philip olhou para o pai com uma compaixão escondida. À medida que o carácter de Alfred se ia
tornando mais suavizado, moldado pelo sofrimento e pelas longas e secretas
meditações, à medida que ele se ia tornando mais perceptivo, mais sensível, menos dogmático e
didáctico, o amor de Philip aumentava.
com a sua habitual simplicidade, Philip respondeu:
- Não, não foi demasiado difícil. O pai estava aqui, à minha espera.
Alfred fez girar o copo entre os dedos ligeiramente trémulos. Depois, quase num murmúrio, disse:
- Obrigado Philip.
- Seja onde for que o pai esteja, será esse o meu lar - afirmou ainda Philip.
Alfred não respondeu. Estava demasiado comovido para poder falar e a voz enrolava-se-lhe na
garganta.
Ao fim de alguns momentos, pousou o copo, quase sem ter tocado na bebida de que se servira, e
ficou a olhar para ele, com ar sombrio.
- Eu não gosto desta casa, Philip. Não sei o que se passa comigo, mas a verdade é que não gosto
dela. Quando o construí, pareceu-me que ela era tudo quanto eu queria.
A culpa é minha se ela é aquilo que é... triste, fria, pouco acolhedora e nem um pouco convidativa.
Não sei como é que eu a concebi assim. Não há um único quarto,
uma única sala que eu próprio não tivesse idealizado e projectado, e no entanto...
Soltou um suspiro, e percorreu lentamente com o olhar as paredes, o tecto, o chão. Observou todos
os pormenores como se os visse pela primeira vez, todas as mesas,
os candeeiros, as cadeiras. Depois abanou a cabeça num gesto de desagrado.
- Não há pessoas em número suficiente aqui! - disse Philip sentindo uma profunda piedade por seu
pai. - Mas eu agora já estou em casa. Para sempre. Havemos de dar
algumas festas, convidar pessoas jovens... Uma casa precisa de vida!
Alfred suspirou de novo.
- Precisa de vida, sim, sobretudo dentro daqueles que a habitam. Receio bem que nunca tenha sido
muito alegre, Philip.
"Ah, mas agora está a ser!", disse Philip para si próprio, com ternura.
Parecia-lhe que o pai se despira de uma pele exterior demasiado dura e crua, e que emergira
vulnerável e susceptível aos novos ventos e aos ares mais fortes.
- Hilltop está na mesma, como dantes? - perguntou Alfred, fitando teimosamente a biqueira das
botas.
- Sim. Está precisamente na mesma. Cheguei apensar que o pai ia entrar de um momento para o
outro na biblioteca ou na sala de jantar. Parecia-me estranho e errado
que o pai não se encontrasse ali. Sentei-me no lugar que o pai costumava ocupar.
Para sua surpresa a princípio e depois sem surpresa nenhuma, reparou que o pai erguia os olhos e o
fitava sorrindo.
- bom. Estou contente com isso, Philip. Sim, estou muito contente com isso. Parece-me uma atitude
correcta.
O seu rosto quadrado e forte parecia iluminado agora. Os seus olhos cansados tinham um
relampejar desconhecido e muito vivo.
- Possivelmente foi um acaso! Não consigo imaginar que... eles... fizessem isso de propósito.
Philip voltou às suas mentiras piedosas.
- Pelo contrário! Eles até me chamaram a atenção para esse facto.
A luz nos olhos de Alfred aumentou.
- Ah! - exclamou. - Ela faz isso! É mesmo dela! Sempre compreendeu. Mas eu não... nessa altura.
Mas... Amalie... sempre teve o noção do que devia ser delicadeza
e simpatia. Sim, ela compreendeu sempre.
Philip nunca se tinha apercebido daquilo mas naquele momento começava a perguntar a si próprio
se seu pai não teria razão.
- O tio William falava sempre da subtileza de Amalie continuou Alfred, com crescente entusiasmo e
animação. Nessa altura, eu não compreendia. Acho que eu era um
perfeito idiota nesse tempo, Philip. Se eu tivesse tido um pouco mais de sensibilidade por certas
coisas, um pouco mais de percepção e de delicadeza, as coisas podiam
ter sido... diferentes!
O rosto cobriu-se-lhe de uma nuvem de profundo sofrimento. Alfred levantou-se. Caminhou de um
lado para o outro, lenta e pausadamente, em silêncio, as mãos enfiadas
nos bolsos das calças.
Por fim, recomeçou a falar.
- Naquele tempo, eu só pensava no sucesso, em fazer dinheiro, em... em...
Olhou para o filho com um intenso espanto espelhado no rosto.
- .. em me "justificar" a mim próprio, em "dar provas" a mim mesmo - continuou ele. - Que estaria
eu a tentar provar? Parece-me tudo muito vago agora, tudo muito
pueril e inútil. Sabes, eu sempre me senti tão inseguro, tão inferior a todos os
outros! Acho que queria provar ao tio William que ele não estava enganado nos juízos que fazia a
meu respeito.
Deteve-se junto da mesa onde depusera o copo, ergueu-o e bebeu a bebida de um trago. Philip
adivinhava no pai uma.excitação desconhecida, qualquer coisa nova que
o empurrava.
- Só um homem muito forte, um homem muito sábio, Philip, pode erguer-se acima das suas próprias
origens, libertar-se das garras da dúvida e da desconfiança de si
mesmo, das perturbações que enchem o coração e o espírito de terror, da ambição que queima por
dentro e que acaba por destruir tudo. Só um homem assim pode continuar
e esquecer. Só ele pode crescer e expandir o seu carácter. Eu nunca fui um homem assim. Só
conseguia lembrar-me de como o meu pai era pobre, de como ele sempre fora
um frustrado, e de como ele vivia à sombra e às esmolas do tio William. Recordo-me da minha
vergonha, quando era rapaz, de ter um pai que recebia o que era pura
caridade do seu próprio irmão. E acho que senti que... devia ter dentro de mim um pouco do seu
carácter. Quando o tio William me ofereceu aquela oportunidade, quis
mostrar-lhe que não era mais um como o meu pai, mas que tinha herdado qualquer coisa do carácter
do tio William. Eu... eu tentei demasiado, Philip. Jamais o conseguirei
esquecer. Havia dentro de mim apenas uma idéia fixa. E exigi demais de mim próprio, fui
demasiado impiedoso para comigo mesmo, demasiado cruel.
Ergueu o jarro de vinho e voltou a encher o copo vazio. Segurou-o entre os dedos e fixou no filho
um olhar febril.
- Qualquer outra potencialidade que eu pudesse eventualmente ter, foi suprimida por um veemente
desejo de agradar e satisfazer o tio William, compensá-lo do seu
desapontamento por Jerome. Isso era o que eu pensava então. Mas agora, eu sei que o fazia para
esconder o meu secreto receio da minha falta de confiança, da minha
própria insegurança, da minha certeza de que eu não era um grande homem, afinal. Não conseguia
ser superior à média do comum dos mortais. Não tinha imaginação nem
sensibilidade. Era apenas um idiota, estúpido, obtuso e imbecil.
Philip recostou-se na cadeira onde estava sentado e escutou atentamente aquela longa confissão de
seu pai. Alfred viu nos olhos do filho um amor e uma compreensão
profundas e algo lhe apertou a garganta, como um nó.
A voz saiu-lhe enrouquecida quando continuou a falar.
- Era tudo isso que estava por detrás de todo o meu ódio por Jerome. Parece-me tão estranho, agora,
ter consciência disso ao fim de todos estes anos! Jerome possuía
autoconfiança, sabia
sempre aquilo que queria. Ele... ele era forte, Philip. Nada parecia incomodá-lo, nada lhe
interessava nem preocupava; nem o dinheiro, nem a necessidade de demonstrar
qualquer coisa a si mesmo. Ele tinha segurança em si próprio.
Philip mexeu-se na cadeira e interrompeu o pai para dizer:
- Não. Eu sei agora que isso não é assim tão verdade como o pai julga.
Alfred ficou a olhar para ele, incrédulo. Abriu a boca, como que para protestar, mas ficou em
silêncio. Volveu os olhos para o copo que continuava a segurar entre
os dedos e disse:
- Compreendo. Sim, acho que compreendo. Olhou à sua volta, pensativo, e continuou:
- É tudo muito estranho. Parece-me que já não desejo nada com a intensidade com que o fiz, Philip.
Tentando sorrir, continuou:
- Será porque estou a envelhecer, meu rapaz, ou a ficar cansado?
Philip abanou a cabeça e retorquiu:
- O pai não tem ainda cinqüenta anos. Não está nem velho nem cansado. Acho até, que, pelo
contrário, o pai se tornou mais forte e mais ponderado. Talvez mais consciente.
O tio William tinha essa força e essa sabedoria, também.
Alfred ficou silencioso por momentos, e depois disse:
- Obrigado, Philip. Obrigado. Nunca na minha vida ouvi nada de tão amável.
Ouviu-se um ligeiro ruído junto da porta, e Dorothea entrou na biblioteca. Philip ergueu-se, mas
Dorothea ignorou-o; no seu rosto duro lia-se raiva e ultraje.
- Está a fazer-se tarde, Alfred - disse ela. - Sabes muito bem que ficarás com uma das tuas horríveis
dores de cabeça se não fores para a cama imediatamente. Não
deves deixar-te dominar por aqueles que tão pouca consideração têm pelos teus sentimentos e
desejos.
Dorothea tinha-se detido à entrada da biblioteca, alta, imponente, majestosa, o olhar acusador e frio
fixo implacavelmente em Alfred. Aguardou a resposta do primo,
e esperava ouvi-lo dizer, como sempre, quase com fraqueza na voz:
"Tens razão, Dorothea."
Mas Alfred sorriu para ela com ternura, e retorquiu:
- Não me sinto nem um pouco cansado, Dorothea, e acho que não vou ter quaisquer dores de cabeça
desta vez. De qualquer modo ainda são só onze horas, e não tenho
sono, por enquanto.
Dorothea pestanejou surpreendida com aquela resposta inesperada. Philip observava-a, divertido.
- Além disso - continuou Alfred -, Philip não está de maneira nenhuma a tentar dominar-me! Ele e
eu estamos, até, a ter uma conversa muito interessante!
- Ah, sim, sem dúvida! - retorquiu Dorothea, com uma ironia virulenta. - Mas acontece que eu não
estou nada interessada nas "conversas interessantes" daqueles que
tão pouco respeito têm pelos seus próprios pais, e que tão pouco ligam à decência e à educação.
Recuso-me mesmo a reconhecer a sua existência. Esses que assim se
comportam ficam fora da minha total capacidade de entendimento.
Philip, como de costume cheio de tacto, nem sequer tentou protestar contra as palavras de Dorothea.
Sabia que ela esperava impaciente a mínima oportunidade para
se voltar contra ele, para lhe gritar na cara toda a raiva e toda a afronta que lhe queimava a carne.
Enquanto ele não lhe desse essa oportunidade, Dorothea não
teria qualquer hipótese de extravasar todo o seu ódio de anos e toda a sua revolta pela atitude do
primo.
Dorothea abanou a cabeça grisalha e insistiu:
- Não vais subir agora, Alfred? Gostaria de desligar o gás! Não se podem deixar essas coisas
entregues a criados ignorantes!
Philip aguardou a resposta do pai com uma ansiedade quase absurda. Acabaria o seu pai por
considerar, como sempre, a "justiça" das observações de Dorothea, e desistir?
Mas quando Alfred falou, Philip sentiu um alívio quase igualmente absurdo.
- Ora, Dorothea, eu acho que sou perfeitamente capaz de desligar o gás. Podes ficar descansada de
que não o apagarei com um sopro, prometo-te! Philip e eu ainda
não acabámos a nossa conversa, e como já te disse ela está a ser muito interessante. Mas, por favor,
não te incomodes por nossa causa! Não é preciso ficares à espera
até nós acabarmos. Tu levantas-te sempre muito cedo e acho que te devias ir deitar.
Dorothea reteve a respiração, e ficou imóvel, como que paralisada. Depois, voltou-se muito rígida,
ergueu a cabeça orgulhosa e saiu da biblioteca sem dizer mais
nada.
Alfred ficou a vê-la afastar-se. Nos lábios brincava-lhe um sorriso quase divertido.
Depois de ela ter saído, disse:
- Dorothea é uma boa mulher. Que Deus a abençoe! Mas às vezes torna-se demasiado inflexível e
obstinada. Senta-te, senta-te, Philip, e fala-me mais de Hilltop. Eles
mudaram alguma coisa nos jardins, ou deitaram abaixo o velho ulmeiro que costumava raspar no
telhado nas noites de ventania?
Capítulo quinquagésimo quarto
Aquele dia de Inverno estava engalanado de uma mistura festiva de azul e branco. As férias, há
muito terminadas, tinham sido esquecidas, e os habitantes da cidade
começavam a ansiar já pela chegada da Primavera.
Das janelas do seu gabinete, Jerome podia ver a espessa camada de neve muito branca sobre os
imensos relvados que circundavam o banco. Os dois grandes ciprestes
erguiam-se, quais pilares verdes-escuros, contra toda aquela pureza azul e branca, como guardiões
de um templo.
O gabinete estava acolhedoramente aquecido, e grossos troncos de macieira ardiam na lareira-
soltando estalidos e aúlhas chispantes.
Jerome, Philip e o general Tayntor estavam sentados junto a uma mesa pequena e bebiam brande.
Sobre a mesa estavam espalhados alguns papéis, para os quais o general
olhava com ar céptico", as sobrancelhas brancas erguidas na direcção da fina Unha branca acima da
sua testa enrugada.
O general parecia não ter envelhecido. O seu corpo esguio e magro tinha perdido pouco da sua
postura de soldado e dos seus contornos duros e sólidos. O rosto malicioso
e rude estava talvez um pouco mais macilento, mas conservava ainda o seu ar de zombeteira argúcia
e perspicácia, e os olhos pequenos e azuis continuavam vivos e
brilhantes.
Espetou um dos seus dedos magros e bateu com ele nos papéis espalhados sobre a pequena mesa.
- Isto vai custar rios de dinheiro... esta "Comunidade de Riversend" que vocês inventaram! -
resmungou o general. Quem é que vai pagar a conta, hem? Ora! "Comunidade
de Riversend"! Deus me valha! Para quê? Acho tudo isto um perfeito disparate. Quem é que se vai
interessar por isto?
Inclinando-se um pouco para acender o charuto no lume que Philip respeitosamente lhe estendia,
continuou:
- Um monte de dinheiro! E vão ver que logo começarão a correr boatos acerca do banco! Não
vamos poder suportar isto! Nenhum banco seria capaz de suportar uma despesa
destas!
Philip lançou a Jerome um olhar divertido, quando este respondeu:
- O senhor tem um monte de dinheiro, general! Pode dizer-se mesmo que o senhor é quase um
milionário, e tem de me agradecer a mim por isso, ou pelo menos por uma
grande parte disso. Que diabo pretende fazer com todo esse dinheiro, general?
O general franziu ainda mais a testa e resmungou:
- Queres tu dizer com essas tuas meias palavras que eu sou velho e que já tenho que me chegue, não
é? Mas sempre te digo que nunca ninguém tem o suficiente. O dinheiro
é um estupendo substituto para aquilo que os sentimentalistas pensam que são os filhos. Filhos!
Uma perda de tempo, é o que eles são! Quem me dera ter sabido isso
mais cedo. Que utilidade têm os filhos para um homem?
Voltou-se para Philip e perguntou, irritado:
- O que vem a ser isto tudo? Que pensa o teu pai disto, por tu estares por aqui instalado tão
confortável como um cão preguiçoso em cima de um tapete macio?
Sorrindo, Philip respondeu:
- O meu pai agora costuma ler Marco Aurélio! Aquela resposta deixou o general ainda mais
enfurecido.
- Ah! Acho que os homens da contabilidade deviam estudar estas contas com toda a cautela! -
vociferou ele. Diabos me levem! Marco Aurélio! Ainda não cheguei a isso!
No entanto, olhou para Philip com curiosidade, e perguntou:
- Ele não se opõe a que tu mantenhas esta amizade, hem? Jerome franziu o sobrolho, descontente,
mas Philip pareceu
ficar divertido.
- O meu pai respeita as minhas resoluções - respondeu Philip, com simplicidade.
- É a primeira vez que ouço dizer que Alfred Lindsey respeita outras resoluções que não sejam as
suas. Acho que terei de me referir a isso quando falar com os representantes
do estado.
Philip apontou para os papéis e disse:
- Eu tenciono entrar com vinte mil dólares... do meu dinheiro, e não do banco do meu pai! Jerome
fará o mesmo, ou talvez entre com mais. Pensamos que o senhor poderia
querer contribuir também para o bem da comunidade. A viúva Kingsley pretende entrar com dez
mil, e há ainkda outros que tencionam igualmente oferecer a sua comparticipação.
Se examinar bem o projecto a longo prazo, verá que os dividendos serão bastante positivos. Os
trabalhadores, como Jerome já lhe mostrou, são na realidade capital
investido. Estou até surpreendido que os patrões não tenham ainda chegado a essa conclusão.
Quando um homem se sente feliz, confortável e interessado, e tem qualquer
coisa mais para que olhar para além do seu trabalho diário, quase sempre extremamente monótono,
produz bastante mais do que se não tiver mais nenhum interesse na
vida. São a monotonia, o aborrecimento, a rotina desesperante e cansativa que fazem com que um
trabalhador se sinta inquieto e insatisfeito, e que acabam por conduzir
directamente a grandes perturbações
no mundo do trabalho, à indiferença, à perda de tempo e de dinheiro e à revolta.
- Visionários! Anarquistas! Para que é que serve, então, um trabalhador? Ele apenas tem de
trabalhar, e mais nada. O diabo que os carregue a todos! - vociferou o
general, quase fora de si.
com voz muito fria, Philip retorquiu:
- Nós estamos a fazer uma experiência. Uma experiência em humanidade. Uma experiência em
cooperação humana.
- Oh! Diabos me levem com a humanidade! Toda a minha vida o disse, e continuarei a dizê-lo.
Arranja-se um lindo sarilho quando se paga a um homem mais do que ele
merece, pois há que se cuidar da sua alma! Da sua alma, valha-me Deus! Este gado não tem alma!
Não basta já Jerome ter andado aos pontapés aos traseiros dos patrões,
de tal maneira que conseguiu reduzir o tempo de trabalho para nove horas por dia, em vez das
habituais dez ou doze? Que mais querem eles agora? Não lhes chega já
o que têm?
- Querem viver também, general - respondeu Philip. Sim, eu sei que haverá sempre aqueles que
nunca desej arão mais nada senão o dinheiro que recebem, dormir e possuir
as suas mulheres quando lhes apetece. Mas existem igualmente muitos outros que desejam mais
qualquer coisa para além dessas simples satisfações menores, e que devem
ter essa mais qualquer coisa, não só para o bem deles, mas para o nosso próprio bem, também.
O general olhou primeiro para Philip e depois para Jerome com a desconfiança estampada no rosto.
Os olhos estreitaram-se-lhe de tal maneira que quase desapareceram.
Parecia, no entanto, imensamente divertido.
- Tudo isto é muito estranho. Não consigo imaginar Jerome transformado num homem filantrópico.
Isso não se coaduna nada com aquilo que conheço dele.
com um sorriso, Jerome retorquiu-lhe:
- Estou a pensar em mim mesmo, general. Não gosto dos homens cinzentos que começam agora a
querer controlar também a indústria americana. Nunca gostei dos homens
cinzentos que só pensam em lucros e dinheiro. Estudei o seu comportamento ao longo dos séculos,
desde a altura em que eram grandes senhores feudais, até agora em
que se transformaram em grandes industriais e financeiros. Odeio-os. Como não têm vida nem
alegria deles próprios, tentam destruir essas coisas em todos aqueles
que têm a pouca sorte de cair sob a alçada das suas garras. Mas... já vi que não compreende,
general.
O general Tayntor ficou em silêncio, os olhos ainda semi-
cerrados, um sorriso de escárnio na boca fina e dura. Puxou uma longa fumaça do charuto, e por fim
disse:
- Estou a lembrar-me de uma certa conversa que tivemos há tempo, Jerome. No dia em que eu e as
minhas filhas fomos tomar chá em Hilltop, recordas-te? Foi uma conversa
acerca de um sonho que os jovens tinham, na América. Recordas-te de eu ter dito nessa altura que
eu também tinha tido um desses sonhos, nos tempos da minha juventude,
mas que não era capaz de me lembrar qual era? Era um belo sonho, qualquer coisa como viver num
permanente estado de embriaguez. Mas... continuo sem me lembrar dos
pormenores desse sonho.
Num gesto muito lento e abstracto começou uma orelha, e continuou:
- É engraçado! Lembro-me do que sentia, mas não consigo recordar-me de como era esse sonho!
Fez uma pausa, como a tentar trazer à memória uma coisa há longo tempo esquecida, e afirmou
depois:
- Parece-me que tu continuas a sonhar, Jerome, e acho isso uma coisa muito engraçada. Muito,
muito engraçada, mesmo! Vamos, deixa-te de segredos e de subterfúgios
e conta lá a verdade. O que é que se passa? Gostaria de me recordar do meu sonho de ontem!
Foi Philip, e não Jerome, que lhe respondeu:
- Peço-lhe perdão se lhe pareço exageradamente sentimental, mas acho que o sonho é o bem-estar
universal dos homens. É muito triste verificar que os homens, à medida
que se vão tornando mais velhos, perdem o sentido pessoal da responsabilidade para com o mundo.
No entanto, ninguém devia perder esse sonho; ele foi escrito há muitos
séculos atrás nos dois Testamentos. Haja quanto tempo não lê a Bíblia, general?
O general bateu com força com a mão espalmada contra o tampo da mesa, e desatou às gargalhadas.
- O quê? Um par de pregadores agora? Valha-me Deus! Nunca imaginei poder um dia assistir a um
espectáculo destes!
Voltou-se para Jerome, e perguntou com um esgar irónico:
- Por acaso não tens aí à mão uma Bíblia, Jerome?
Mas Jerome respondeu-lhe apenas com um sorriso. O general estudou-o com o seu olhar arguto e
perspicaz.
- Vamos! - disse ele, por fim. - O que é que está por detrás disto tudo? De certeza que não é o amor
pela humanidade. Conheço-te demasiado bem para acreditar nessa
fanfarronada.
Muito calmamente, Jerome retorquiu-lhe:
- Tem razão. Não é, general. Pode-lhe chamar antes desprezo pelo tipo de homens que sempre odiei
em toda a minha
vida. Os assassinos da alegria e da felicidade. Os malditos espectros que passam a vida a gritar
"Trabalho! Trabalho."
Levantou-se e começou a caminhar de um lado para o outro, em grandes passadas, nervoso e
excitado.
- Encontro esses homens todos os dias no meu caminho. E quando os vejo não posso deixar de me
revoltar contra a sua estreiteza de espírito, contra a sua mentalidade
mesquinha, contra o vazio que preenche por completo as suas almas e as suas mentes. Se não são
capazes de encontrar nada de melhor na vida senão o trabalho, então
seria bem melhor que morressem, que desaparecessem da superfície da terra. Não se dá por isso,
mas a verdade é que eles acabam sempre por impor as suas leis obtusas
e impiedosas sobre os outros. Essas criaturas abjectas só vêem cinzas e paredes nuas, por causa da
esterilidade que lhes secou o espírito, e têm de trabalhar para
apagarem da consciência o peso tremendo da sua própria futilidade. E o pior de tudo é que tentam
aprisionar todos os outros homens por detrás das grades que eles
próprios ergueram para si mesmos.
Deteve-se junto da janela, e continuou a falar, com voz mais repousada agora:
- Todos nós temos de trabalhar, claro; mas ninguém devia ser obrigado a trabalhar mais do que
algumas horas por dia para ganhar a vida. Em breve isso se tornará
realidade, espero. Quando as fronteiras da América estiverem já totalmente conquistadas, quando
todas as cidades estiverem construídas e as grandes estradas tiverem
aberto caminho por entre montanhas e rochedos, a América chegará ao seu objectivo final, no que
respeita à riqueza material. Mas... se entretanto não acontecer qualquer
coisa de revolucionário, o mito do trabalho continuará a imperar, e no fim nada mais se conseguirá
senão a ruína e a destruição do espírito e do pensamento americano.
Calou-se por instantes, mas logo continuou:
- O que acontecerá À medida que a era da máquina avança e se torna mais poderosa, será produzida
tal quantidade de coisas que os mercados ficarão a transbordar de
produtos e então surgirão inevitavelmente as crises e os pânicos. Terá de haver um limite imposto
ao número de coisas que podem ser produzidas. Ou então, a semana
de trabalho terá de ser encurtada. Caso contrário, a América será esmagada sob o peso de
montanhas de produtos... que a cada dia que passa se irão tornando mais
triviais e inúteis. Os homens acabarão por passar a vida a fazer coisas absolutamente desnecessárias
e luxos idiotas e sem o mínimo de interesse. E, então, isso
será um autêntico crime cometido sanguinariamente contra o espírito do homem e a sua dignidade.
O general arranhou a orelha mais vigorosamente, mas os seus olhos fitavam Jerome com
curiosidade e interesse. Então, Philip disse:
- Acho que o que Jerome quer dizer é que uma civilização demasiado mecanizada exerce uma
violência mortal contra a natureza subjectiva do homem. O homem não pode
viver exclusivamente das máquinas, nem em função das coisas que elas produzem. É preciso que
ele tenha mais qualquer coisa para além disso. Na Comunidade de Riversend
que nós imaginamos, Jerome espera poder dar aos trabalhadores locais essa "qualquer coisa mais".
Não podemos acabar com as máquinas nem pretendemos fazê-lo; mas
podemos fazer qualquer coisa de útil pelo homem, de modo que a máquina não o transforme num
mero servo dos mecanismos. O trabalho só é bom quando produz apenas o
pão suficiente para a sobrevivência. Quando começa a produzir mais do que o pão necessário, é o
inferno, e aqueles que exigem devoção absoluta ao trabalho são os
verdadeiros inimigos do homem.
O general gargalhou, e disse:
- Vocês acabarão por ter os padres e toda a Wall Street em peso atrás de vocês por causa dessas
filosofias. Ora essa! Então a Bíblia não diz que a humanidade foi
expulsa do Paraíso e mandada para o mundo para ganhar o pão do seu rosto e trabalhar nos campos?
- É exactamente o que nós pretendemos dizer - retorquiu Philip, com o seu habitual encanto. -
Obrigado, general. O senhor foi capaz de traduzir com perfeita fidelidade
os nossos pensamentos. Nós propomo-nos dar aos trabalhadores desta comunidade uma
oportunidade de "ganharem o pão com o suor dos seus rostos nos campos". Como uma
fuga das fábricas, É esse justamente um dos nossos planos. Jerome comprará duzentqs hectares de
terra na parte ocidental de Riversend, e permitirá que cada trabalhador
adquira um hectare, em pagamentos suaves e com financiamentos pelo banco. O trabalhador e a sua
família poderão então plantar o que quiserem ou criarem o que muito
bem entenderem: flores, legumes, galinhas. Dessa maneira eles não ficarão totalmente divorciados
da terra. Nós achamos que é uma coisa muito perigosa para o homem
divorciar-se totalmente da terra. Se os homens têm de trabalhar nas fábricas, precisam também de
ter um pedaço de terra que lhes pertença em absoluto e onde eles
possam fazer aquilo que quiserem. Uma sociedade urbana em constante expansão é canibalista. É
uma ameaça para a paz do mundo.
Jerome afastou-se da janela. Ele e Philip trocaram um longo olhar de profunda afeição e
entendimento. O general viu aquele
olhar e gargalhou de novo, mas desta vez para si próprio e também com um pouco menos de ironia.
Voltou a bater nos papéis com a mão aberta, e disse:
- Bem, eu concordo com toda essa vossa história acerca da terra, diabos me levem! Mas essa
conversa sobre a "educação" dos fedelhos dos trabalhadores das fábricas!?
Querem ensiná-los a "apreciar" livros! Jesus Cristo me valha! Querem ensinar-lhes o que significa
ser-se um cidadão americano! E ainda por cima pretendem o auxílio
dos padres e dos pastores! Ah! Isso é uma coisa que eles nunca farão!
- Farão, sim! - retorquiu Philip com convicção. - Há apenas um ou dois pregadores retrógrados e
antiquados que se sentem... horrorizados. Mas nós falámos já com
vários ministros, e com os dois padres católicos desta comunidade. Confesso que tivemos menos
problemas com os padres, pois a verdade é que a Igreja Católica Romana
compreende e aceita o facto de que o homem não pode viver apenas do pão que ganha, mas que
precisa de ter qualquer coisa mais que lhe alimente a sua natureza fortemente
subjectiva. Assim, esses bons homens vão ajudar-nos. Darão aulas num dos nossos edifícios; claro
que não serão aulas de religião, propriamente, mas morais, cheias
de interesse. Eles explicarão qual o verdadeiro lugar do homem na natureza, quais os deveres que
tem para com os outros, qual a responsabilidade que deve assumir
para com o resto do mundo.
O general mantinha-se em silêncio, masabanavalevementea cabeça uma vez e outra. Philip ia
ficando excitado à medida que falava, embora a sua voz continuasse a sair-lhe
calma e firme:
- Falámos também com os professores locais e com outros de outras cidades. Teremos aulas sobre
comércio. Teremos também recitais de música, dados por trabalhadores
que aprenderam a tocar os vários instrumentos. Ensinar-se-á igualmente a arte de trabalhar a prata.
Teremos um armazém onde todas as coisas poderão depois ser vendidas,
e o produto recolhido reverterá a favor dos trabalhadores. Ou poderão fazer ali as coisas que
precisem para as suas próprias casas. Ofereceremos prémios todos os
anos àqueles que apresentarem os melhores trabalhos e os melhores jardins. Teremos ainda
discussões em grupo sobre política. Faremos com que os trabalhadores se
apercebam de como é necessário haver um eleitorado inteligente.
Respirou fundo, como que a tomar fôlego, e concluiu:
- Todas estas coisas serão feitas depois das horas de trabalho, durante as férias e nos fins de semana!
- Meu Deus! - murmurou o general, como se se sentisse confuso e estupefacto. - Mas... mas isso é
um perfeito absurdo! Que niilismo!
- Haverá ainda jardins para as crianças feitos e arranjados pelos pais. E quanto às mulheres, haverá
aulas sobre os assuntos domésticos, cuidados pré-natais, cuidados
e tratamento das crianças, culinária, costura, participação nas feiras do condado .. - juntou ainda
Philip.
- Visionários! -exclamou o general. - Vocês vão ter todo o país em cima do vosso pescoço! Nunca
na minha vida ouvi tamanho disparate! Quem é que se interessa por
essa ralé, por esse gado imundo? Toda a gente se rirá de vocês!
Philip dirigiu sub-repticiamente uma piscadela de olho a Jerome. Depois, voltando-se de novo para
o general, perguntou:
- Que me diz, general? Fará a sua doação de alguns milhares de dólares para o nosso projecto?
Pense nos títulos que lhe chamarão de "extraordinário benfeitor da
humanidade"! Sim, porque nós tencionamos dar a maior publicidade possível a tudo isto!
Abanando a mão, como se quisesse apagar da sua frente todas as imagens que lhe tinham sido
descritas, o general perguntou por sua vez:
- Quem é que vai construir todos esses edifícios infernais e sei lá que mais?
- Os próprios trabalhadores. Claro. Temos excelentes pedreiros e carpinteiros, sabe? Já falámos com
eles acerca de tudo isto. E pode ter a certeza de que nunca vimos
tamanho entusiasmo!
- E o dinheiro? Vão ser necessários rios de dinheiro!
- Já lhe disse! Jerome e eu daremos vinte mil dólares cada um, ou mais se for preciso. E...
esperamos que outros como o senhor façam o mesmo.
O general levantou-se, abanando e sacudindo as abas do seu casaco.
- Vocês estão doidos!-exclamou ele. Franziu o sobrolho e perguntou:
- Quanto? bom, não darei nem mais um cêntimo acima de cinco mil dólares!
Philip e Jerome quase tropeçaram um no outro na pressa de apertarem a mão do general.
O velho soldado olhou para eles, abanou a cabeça, retirou a mão num gesto brusco, e disse,
resmungando:
- Devo estar a endoidecer com a idade! Bem podem rezar para que eu não mude de idéias!
Depois, soltou uma gargalhada, e perguntou:
- Que pensam de tudo isto os "rapazes" que possuem as fábricas, hem?
Rindo também, Jerome respondeu:
- Entraram em pânico, até ao momento em que lhes explicámos que isto se trata de um projecto
privado e que não lhes irá custar nada. No entanto, o pior de tudo é
o medo que eles têm de que os trabalhadores se tornem "indomáveis" que se esqueçam de que
nasceram e foram criados exclusivamente para trabalharem para os seus amos
e patrões. Sim, os "rapazes" estão um pouco de cabeça perdida, é verdade! Mas haveremos de lhes
provar que não têm razão!
- E os industriais das outras cidades e das outras zonas? Hão-de cortar os vossos corações em
pedaços, Jerome!
- Isso é uma coisa com que temos de lutar na devida altura. Já correm boatos por aí acerca do
projecto. Foi por esse motivo que fui visitar Jay Reagan na semana
passada, bem como Mr. Livingston e ainda outros dos meus apoiantes. Eles não aprovam as nossas
idéias. Disseram, como o senhor disse, que este projecto é "revolucionário",
uma "experiência perigosa". Sabe, eles também só pensam nos seus próprios lucros! Ficaram com a
impressão de que eu sou um louco, um visionário. Mas consegui convencê-los
a esperarem um ano ou dois, para poderem ver os resultados com os seus próprios olhos e tirar deles
as conclusões respectivas. Portanto, temos de transformar isto
num autêntico sucesso.
Abriu os braços e estendeu as mãos enquanto os lábios se lhe distendiam num sorriso calmo e
esperançoso.
- Vamos precisar do auxílio de toda esta comunidade, porque, se formos ao fundo, todos os que aqui
vivem e trabalham irão ao fundo também, general.
O general Tayntor sentiu que o coração lhe saltava no peito, num súbito alarme, e exclamou:
- Era o que eu pensava! Mas afinal, quem é que diabo inventou este projecto furado?
- Fui eu! - respondeu Philip calmamente. - Jerome pressentia que havia qualquer coisa que não
estava a correr bem. Falámos muito um com o outro e eu pus-me a pensar
que talvez fosse possível uma solução. Por fim, arquitectámos juntos este plano.
O general lançou-lhe um olhar furioso, e resmungou:
- Ora, que outra coisa se poderia esperar de um maldito estudante! Um letrado! Um rato de
biblioteca!
Philip sorriu, e replicou:
- Também freqüentei Harvard, general.
- Não foi em Harvard que tu aprendeste estas coisas! De certeza que não foi! - exclamou o general. -
Eu também lá andei e nunca ouvi falar disto!
- Pois então haveria de ficar surpreendido com as coisas
que agora se ouvem por lá, general! - disse Philip sorrindo ainda. - Ficaria ainda mais surpreendido
se ouvisse dizer que muitos milhares de homens na América estão
francamente preocupados com o crescimento da máquina neste país, e com o que esse crescimento
significa para o povo. Esses homens sabem muito bem o que é que o materialismo
exacerbado e incontrolado pode fazer a uma nação. Eles têm perfeita consciência das provas que a
própria história apresenta.
Olhou para Jerome, como se lhe quisesse pedir autorização para aquilo que ia dizer a seguir. Jerome
dirigiu-lhe um leve aceno de cabeça, e Philip continuou:
- Conforme Jerome já lhe explicou, teremos detranformar tudo isto num autêntico sucesso. Iremos
avante com ele, e ninguém nos poderá impedir. Mas precisamos de todo
o auxílio daqueles que possuem dinheiro. E o senhor não pode recusar, general. O senhor está
demasiado apostado em Jerome, investiu muito com ele.
Fez uma ligeira pausa, observou atentamente o general, e disse ainda:
- Mas também o chamámos hoje aqui, porque o senhor é um homem perspicaz, cheio de
compreensão e extraordinariamente inteligente. Confiamos em si e esperamos que
possa convencer os outros.
- Chantagem! Chantagem para uma montanha de disparates visionários! - gritou o general.
- Tome outro brande, general! - continuou Philip, enchendo-lhe o copo - É muito bom este brande.
E aceite outro charuto.
Abriu a caixa de prata que pertencia a Jerome e estendeu-a convidativamente na direcção do velho
soldado. Depois continuou:
- Vamos convidar repórteres dos jornais de todo o país para virem aqui. E artistas também. Acho
que o senhor poderia fazer as honras da casa, como se costuma dizer,
general. O senhor será, digamos, o nosso porta-voz. Ouvi dizer que um escritor muito famoso irá
escrever um livro sobre este projecto, também. O seu nome será mencionado
em todo o lado em grande destaque.
- Comunidade de Riversend - resmungou o general.
A excitação que se apoderara dele era de tal maneira forte que o seu rosto estava vermelho e
congestionado.
- Sim, com o senhor como um dos directores! - disse Philip.
O general bebeu o brande num gesto brusco e furioso, e deixou que Philip lhe acendesse o charuto.
Depois, ficou em
Philip um olhar penetrante, como se quisesse dissecar-lhe o interior. Sim, o pobre diabo era um
aleijado, mas corria bom sangue nas suas veias e a deformidade não
era coisa hereditária. Além disso, um dia haveria de ficar com uma fortuna considerável... o banco
de Alfred. Sim, na verdade os Lindsey era o que havia de melhor
naquela região.
com a sua habitual franqueza desarmante, o general disse:
- Já é tempo de te casares, projectista do diabo! Que tal a minha Josephine? Está insuportável,
sabes? Só pretende amimar-me e enrodilhar-me em algodão e lã. Odeio
tudo aquilo! Ainda não estou a morrer, que diabo! Que idade é que tu tens? Vinte e cinco, não? Olha
que ela é muito mais velha do que tu. Está combinado?
Capítulo quinquagésimo quinto
Amalie tinha estado a ler uma novela, altamente recomendada pela sua "sensibilidade, percepção e
profunda análise da natureza humana". Os críticos tinham-lhe tecido
rasgados elogios, e a novela tornara-se imensamente popular. A própria Amalie achou-a interessante
e atractiva, até ler uma frase que a deixou perplexa:
"Lucille pedia tão pouco da vida! Ela apenas queria ser feliz. Uma coisa pequena, tão pequena!"
Ao ler aquele monstruoso absurdo, aquele incrível exemplo de ingenuidade e ignorância, Amalie
deixou escapar uma exclamação profana e atirou com tal força o livro
através do terraço de tijolo que ele foi embater com um ruído surdo contra o tronco de uma árvore.
"Uma coisa pequena, tão pequena!" era como aquela novelista pretensiosa classificava a
"felicidade". Um pêssego fresco pendente de uma árvore num pomar sem quaisquer
vedações a impedir o caminho; uma minúscula concha na areia da praia; uma flor magnífica no
meio de um jardim!
Como é que um ser humano podia ser tão ridículo, tão pretensioso, tão espantosamente inconsciente
da agonia do mundo?
Felicidade. Nem mesmo os fundadores da América tinham declarado que a felicidade era um dos
direitos inalienáveis do homem. Apenas "a sua procura". Havia ali sabedoria,
havia ali compreensão, havia ali um cinismo triste. A única coisa a que se tinha direito era procurar
essa felicidade. E depois, raramente essa felicidade era atingida,
se é que alguma vez o era, e, quando
isso acontecia, ela durava apenas uns breves instantes, como o sol quando espreita por detrás de
uma massa espessa de nuvens negras.
O louco, na sua desgraça, acreditava que um destino perverso qualquer o impedia de dançar num
êxtase perpétuo. O insatisfeito acreditava que à sua volta havia uma
espécie qualquer de conjura, e que os outros homens pretendiam expulsá-lo. Os sofredores, no seu
egoísmo cego, acreditavam que todos os outros homens possuíam satisfação,
dinheiro, saúde, alegria, menos ele. Apenas alguns, muitos poucos, sabiam que não havia felicidade
nem paz, nem um repouso real e duradouro em nenhuma parte do Mundo.
Nem sequer no amor havia felicidade. Os homens chocavam uns contra os outros no meio de uma
escuridão desesperada, e suplicavam segurança e conforto! Era a procura
do possível... a sua sombra... que constituía a esperança.
"Uma coisa pequena, tão pequena!" Realmente! Oh, malditos doidos!
Ela própria era uma doida varrida. Mas mais consciente e mais sensata agora. E também muito mais
triste.
Olhou para o livro que atirara para longe de si. A brisa quente do Verão revolvia-lhe as páginas
amachucadas de um modo quase patético, e Amalie sentiu uma espécie
de compaixão pelo livro e pela sua ingénua autora, e ainda por todos os outros que acreditavam
poder alcançar facilmente aquilo que nunca se podia alcançar, que
julgavam ser capazes de atingir, o inatingível.
Sabia agora que uma das forças mais activas e terríveis do mundo era o medo. Era o medo que
levava os homens a procurarem a felicidade, tal como um corpo agonizante
procura um narcótico. Era o medo que desenvolvia civilizações, construía monumentos e dava
origem às guerras. Ele estava por detrás do irracionalismo e das emoções
caóticas que estrangulavam a humanidade. Ele era a fonte-mãe da religião. Fora ele quem concebera
Deus ou tomara consciência da Sua existência. Ele era a mãe do
ódio.
Os profetas antigos tinham conhecido o poder do medo. Todos os livros sagrados reconheciam-no
pelo poder que tinham. Fora contra ele que Moisés tinha erguido a fortaleza
dos Dez Mandamentos, reconhecendo instintivamente que a lei poderia ser um muro poderoso
contra a incerteza selvagem, que a obediência aos ditames da ordem e da
lei rígida podia dar ao homem um pouco de segurança. A lei ajudava o homem a não pensar. Ele
substituía a meditação pela conduta e conseguia salvaguardar assim os
homens da loucura. A repetição de orações,
um código estabelecido do qual quaisquer desvios eram perigosos hipnotizava os homens e fazia
adormecer o terror das suas percepções instintivas.
Fora Jesus, ou qualquer outra pessoa, quem tinha dito: "O amor perfeito expulsa o medo" ?
Mas não havia nenhum amor que fosse perfeito. Havia, sim, pequenos períodos de espantosa auto-
abnegação e auto-sacrifício, e durante esses períodos o homem esquecia-se
de si mesmo e dos seus terrores. Mas era impossível para qualquer homem, excepto um santo, viver
num estado perpétuo de "amor perfeito". E... os homens tinham de
viver uns com os outros.
Amalie sabia que Jerome era profundamente perturbado e torturado pelo medo, muito mais do que
acontecia com a maioria dos homens. Mas medo de quê? Amalie não sabia
com exactidão; mas sabia que esse medo explicava o modo de vida do marido, os seus períodos de
brutal irritabilidade, as suas ilações igualmente irracionais, as
suas crueldades, os planos febris e entusiásticos que concebia, e até a sua própria preocupação pelos
destinos de Riversend.
Esse mesmo medo desconhecido tinha estado detrás da vida estagnada de Jerome na sua juventude.
Havia alguns homens que, perseguidos pelo medo universal, fortificavam as suas casas. Outros
havia que, mais profundamente afectados por esse terror, fortificavam
toda a cidade em redor da casa que lhes servia de abrigo. Jerome era como estes últimos; fortificava
Riversend erguendo-a como um imenso muro em redor da sua casa,
ela própria transformada também em fortaleza inexpugnável.
Amalie fitou os olhos nas árvores distantes que soltavam lampejos cintilantes e trémulos quando
sacudidos pela brisa suave.
Sim, ela também sentia esse medo. A sua antiga coragem, a sua força, eram, tinha a certeza, agora,
um produto desse medo. Mas, apesar de tudo, não era um terror
tão forte como o que Jerome tinha. Havia nela uma espécie de fatalismo. Deixara de procurar a
felicidade, deixara de encetar contra ela uma perseguição quase feroz
e por isso conseguia, por vezes, sentir-se quase tranqüila.
"Talvez isso aconteça porque sou tão inteligente como Jerome", pensou Amalie, com um sorriso
amargo que lhe distorceu um pouco o rosto.
Quanto mais consciente era um homem, mais vulnerável ele se tornava e tanto mais altos eram os
muros que construía à sua volta para se proteger. Mas, no fim, os
seus muros não eram nada, as suas fortalezas ruíam em pedaços e pó.
"Aquele que não governa o seu próprio espírito é como uma cidade arruinada e sem muros!"
Pela memória de Amalie passaram lentamente os anos do seu casamento com Jerome. Neles ela
tinha conhecido a alegria, o riso, o delírio e a excitação. Mas... não
a felicidade. Fora uma louca ao pensar que a poderia conquistar algum dia.
O mais perto que estivera da felicidade, fora quando tinha estado casada com Alfred, pensou
Amalie, e a este pensamento, o corpo estremeceu-lhe como se açoitado,
de repente, por uma vergastada invisível.
Aqueles poucos dias que se haviam sucedido à doença, quase fatal, de Mr. Lindsey, há tantos anos
atrás! Quando Alfred se sentava a seu lado na cama onde ela repousava
das longas e exaustivas noites de vigília, e lhe falava com voz suave e carinhosa, contando-lhe
coisas que nunca dissera a mais ninguém, segurando-lhe com ternura
na mão, enquanto ela o escutava mais com o coração do que com os ouvidos... nessa altura, estivera
perigosamente perto da paz e da felicidade.
Mas jamais a voltara a conhecer, pois Jerome fugia-lhe, não se aproximava dela. Via-o apenas
quando ele desejava ser visto, num momento particular. Quando Amalie
se aproximava dele, num dos seus momentos de abstracta abertura, Jerome dirigia-se-lhe com
irascível e irracional brutalidade, como se ela o tivesse apanhado numa
posição humilhante ou num acto indecente.
Pelo contrário, Alfred tinha-lhe demonstrado muitas vezes, com toda a humildade, que desejava que
ela o visse na sua nudez espiritual, e tentasse entender, com piedade
e compreensão, as suas deformidades e as suas limitações.
Também ele sentira medo, mas os seus medos tinham sido superficiais, quase infantis. Sem saber
como, Amalie tinha a certeza de que Alfred deixara de ter medo, fosse
do que fosse. Talvez o soubesse, porque Philip lhe transmitia veladamente coisas que lhe davam a
entender o novo homem em que o pai se transformara.
No entanto, pensava Amalie, não tinha amado Alfred. Talvez porque os seus próprios temores, a sua
inquietação que ela mesma sentia e que era por si só o sintonia
desse medo, a tivessem impedido de o amar. Em Jerome, Amalie tinha instintivamente reconhecido
os mesmos alarmes e instatisfações que a assaltavam.
Teriam eles conseguido neutralizar a... sua cobardia mútua? Não sabia. Mesmo agora as suas vidas
eram cheias de períodos tempestuosos, cheios de uma alegria falsa,
quase desesperada. E isso não contribuía nada para a harmonia e
satisfação tranqüila e repousada. Talvez ela estivesse a envelhecer, mas a verdade é que a ansiedade
a dominara e essa satisfação se escapara por entre os dedos.
Desejava e ansiava a segurança que elas lhe poderiam trazer, mas com Jerome... não sabia!
Haveria de ensinar os filhos a não terem medo de nada, nem da dor ou da doença, da morte ou da
frustração, do sofrimento físico ou mental. Mas para isso era preciso
que os próprios pais não o sentissem. E como é que isso seria possível? Havia Deus, sim, claro!
Ergueu-se da cadeira onde estava sentada e começou a passear vagarosamente
pelo terraço, sentindo que uma inquietação absurda crescia dentro dela. Num gesto involuntário, as
mãos contorciam-se-lhe apertadas e convulsas, uma contra a outra.
Como conseguiria ensinar a Mary e ao pequeno William que os acontecimentos eram apenas água
correndo em redor do barco forte do espírito humano? Como poderia fortalecer
as suas almas de modo a que as suas pequenas velas pudessem erguer-se airosas e imponentes
contra qualquer vento por mais forte que fosse? Havia Deus, sim, claro.
Mas Deus, costumava Jerome dizer, era uma superstição nascida do próprio medo.
Amalie abanou a cabeça, desesperada. No entanto, fora o próprio Jerome quem sugerira que os
filhos freqüentassem a igreja. Amalie passara a mandá-los então, todos
os domingos, à Igreja da Congregação de Riversend. Até ali, não havia qualquer indício que
demonstrasse que os filhos estivessem a tornar-se mais resistentes e mais
fortes contra o medo.
Havia uma quantidade imensa de igrejas e, no entanto, o mundo continuava minado pelo terror e
cheio de ódio. Seria porque o mundo nunca tinha realmente tentado a
religião? A boca podia estar cheia do nome do Senhor, mas os espíritos poderiam continuar
esfomeados e vazios.
Qualquer coisa estava errada. Os bancos nas igrejas ficavam totalmente repletos, aos domintos, mas
as pessoas saíam mais tarde, no fim dos serviços, e continuavam
a olhar umas para as outras com desconfiança, temor e ódio.
Seriam os pastores falsos e incapazes, e as palavras que proferiam seriam sem sentido? Nunca, até
agora, os homens tinham experimentado Deus. Até que o fizessem,
continuariam a saber o que era o medo e o terror, e a destruir e a matar por causa desse medo, e não
havia imaginação, por mais fértil que fosse, que pudesse prever
as enormidades que ainda seriam cometidas.
Amalie ouviu os passos de criança correndo pela casa; uma
porta abriu-se e fechou-se com estrondo, e o jovem William, agora já quase com nove anos, dirigiu-
se para ela, gritando e rindo. Amalie olhou o filho com apaixonada
ternura e alisou-lhe o cabelo negro e encaracolado. Depois, puxou-o para si e exclamou:
- Meu amor, não tenhas medo! Nunca, nunca tenhas medo! Se o tiveres, serás um homem mau e
cruel, e nunca mais haverá paz na tua casa.
Capítulo quinquagésimo sexto
"Pelo menos aqui não muda nada!", pensou Dorothea.
Encontrava-se no jardim, arrancando com determinação as folhas mortas e amarelecidas dos lilases,
e as flores que pendiam castanhas e secas dos ramos ainda verdes.
Podia-se confiar num jardim que não conhecia nunca outras mudanças que não fossem as que lhe
eram trazidas pelas próprias estações, e ainda assim, na repetição inexorável
e sucessiva dessas estações, apenas se provava a sua imutabilidade.
O seujardim só tinha treze anos e, noentanto, Alfred dissera que era preciso muito mais que treze
anos para fazer um jardim. Que coisa estranha! Não era nada costume
Alfred pronunciar frases daquelas, e dizer coisas assim tão absurdas, pensou Dorothea.
O seu pensamento parecia galopar, confuso, a uma velocidade impressionante. Não, na verdade não
eram só as palavras que Alfred ultimamente pronunciara que a deixavam
perplexa. Parecia haver sempre uma segunda intenção naquilo que ele dizia, uma espécie de sentido
mais profundo. Ultimamente? Dorothea deteve de súbito os seus movimentos
àquela palavra, a faca aguçada imóvel na sua mão inerte. Que pouco sensata tinha ela sido!
Atirou com as flores mortas para dentro do cesto a seu lado. Olhou para os muros do jardim e em
seguida para a fachada vermelha da casa. Uma súbita depressão apoderou-se
dela. Abanou a cabeça. Na noite passada Philip tinha lido a Alfred um poema extraordinariamente
melancólico. Dorothea pouca importância ligava à poesia, mas escutara
atentamente aquela leitura. Ouvira falar do seu autor, pois tratava-se de um escritor muito famoso e
de certa maneira chocante, pelo que as pessoas de bem habitualmente
repudiavam-no. O seu nome era Algernone Swinburne.
Aquele poema enchera-a de um desespero indescritível, e
fora com esforço e contra-vontade que escutara a sua leitura até ao fim. O pior de tudo fora que
também Alfred o ouvira, de cotovelo apoiado no braço da cadeira
e o queixo descansando-lhe na mão espalmada.
Dorothea recordava-se claramente apenas de alguns versos:
Sinto-me cansado de lágrimas e risos
e dos homens que riem e choram;
não me importa aquilo que venha depois
nem dos homens que semeiam para colher;
não me interessam os dias e as horas
nem os botões das flores,
nem os desejos, os sonhos e os poderes
nada me interessa
senão dormir.
Que disparate incompreensível! Nem conseguia mesmo entender por que motivo aquelas linhas a
enchiam de uma absurda inquietação, nem porque é que o jardim hoje lhe
surgia como que mergulhado numa luz espectral e sem substância. Encolheu os ombros como se
quisesse afastar de cima deles um peso invisível que os fazia tombar;
a sua saia, muito engomada, restolhou um pouco.
Teria Alfred achado também o poema um disparate? Porque seria que ele tinha ficado sentado na
sua cadeira, tão completamente imóvel, escutando a leitura de Philip?
Dorothea vira-lhe o rosto extremamente calmo mas com uma expressão muito estranha. Os anos
tinham-no emagrecido, acentuando ainda mais as linhas duras e fortes,
tendo-lhe retirado muito da carne que outrora cobria os ossos. Estranhamente, Alfred permanecera
sentado, de olhos fixos em Philip, uns olhos que pareceram a Dorothea
demasiado imóveis, demasiado estáticos, como que hipnotizados, como que atraídos por algo de
cuja presença ela não se tinha apercebido.
Dorothea lançou um olhar para o cesto que continha as flores mortas que arrancara dos lilases.
"Nem os botões das flores."
Estremeceu.
- Que disparate! - disse ela em voz alta.
Aquela terrível poesia! Aqueles versos horríveis que pareciam trazer com eles um traço indelével da
morte! Porque seria que à sua simples recordação todo o seu jardim
lhe parecia morto e sem vida? Porque seria que aquele poema lhe trazia à memória sinais de ruína,
de mortalidade, de "duvidosos sonhos de sonhos"?
O Sol quente surgiu por detrás de uma nuvem, para logo se ;. esconder por detrás de outra, e o
jardim ficou de súbito mergulhado numa ausência de cor que a assustou.
As rosas mais pareciam cabeças disformes de fantasmas ondulando ao sabor do vento; as próprias
árvores pareciam espectros esguios e ondulantes. Estremecendo, Dorothea
teve a sensação de que se encontrava ali havia muito tempo e que tinha visto, com os seus próprios
olhos, o espectro da morte emergindo das profundezas da terra.
"Mudanças!", pensou, irritada.
Alfred tinha mudado. Jamais fora um homem exuberante, mas tinha sido um homem poderoso, de
voz forte, quase ditatorial. Tinha sido um homem consciente de si mesmo,
dos seus deveres, da sua força, da sua importância. Quando teria ele mudado?
Dorothea repetiu aquela pergunta para si mesma, mas não conseguia responder. Sabia apenas que
Alfred era agora um homem diferente, mais sombrio, abstracto, por vezes
demasiado gentil, quase inseguro, sobrepesando os assuntos quase com incerteza, enquanto que
outrora a sua opinião surgira sempre quase instantânea e dogmática.
Alfred estava cansado. Muito cansado e só agora Dorothea tinha consciência desse facto.
Sentiu no peito uma pontada fina de dor, sofrimento e amor. O pequeno cão branco que pertencia a
Philip e que andara farejando, nervoso e agitado, entre os arbustos
e os canteiros das flores, emergiu de súbito, ladrando furiosamente. Desatou a correr para os portões
do jardim, numa excitação que Dorothea considerou fora de propósito.
Viu-o depois ficar ali, ladrando atroadoramente, e Dorothea chamou-o com a sua voz ríspida. O
animal voltou a cabeça para ela, mas continuou a ladrar com tamanha
força que o corpo lhe estremecia a cada latido. Uma rapariga ainda muito jovem estava encostada
do outro lado do portão e olhava calmamente para dentro do jardim.
Dorothea ficou mais calma. Alisou o cabelo e perguntou friamente:
- O que é? O que é que tu queres? Estás à procura de alguém?
Aproximou-se do portão numa passada vagarosa mas determinada. Sem dúvida que aquela rapariga
era um dos filhos daquela gente pouco educada que habitava agora nas
casas do vale. Uma intrusa. Enquanto caminhava na direcção do portão, Dorothea decidira que a
mandaria imediatamente embora. Já muito perto, repetiu:
- O que é que tu queres?
Curvou-se e pegou no pequeno animal que continuava a ladrar desesperadamente.
A rapariga era muito alta e magra e envergava um bonito vestido de musselina pintalgado de flores.
O seu cabelo muito louro estava atado na nuca com uma fita azul,
tão azul como a cor dos seus olhos. Tinha um rosto delicado, firme, e finamente moldado.
- Philip mora aqui, não é verdade? - perguntou a jovem.
- Philip? - repetiu Dorothea franzindo a testa.
Olhou para a jovem, sem compreender. No entanto o seu coração tinha começado a bater-lhe no
peito de uma maneira muito estranha, como se respondesse a qualquer instinto
desconhecido, ainda não compreendido pelo pensamento consciente de Dorothea.
- Quem és tu, rapariga? - perguntou ela nervosa, sem seber porque se sentia assim.
A rapariga sorriu e Dorothea sentiu-se confusa e inquieta. Aquele sorriso... aquele sorriso suave e
pensativo não lhe era estranho. Tinha-o visto em qualquer lugar,
mas não era capaz de se lembrar em que rosto o tinha observado. No entanto, era um sorriso
extremamente familiar.
- Sou Mary Lindsey - respondeu a rapariga. - E tu deves ser a minha tia Dorothea. A minha
verdadeira tia. E não a tia de Philip.
com um à-vontade que desconcertou Dorothea, a jovem meteu a mão por entre as grades e abriu o
portão; logo a seguir penetrou no jardim, movendo-se com graciosidade,
mas também com uma determinação e uma segurança que mais não fez do que aumentar o espanto
e a inquietação de Dorothea. O cão, que entretanto se acalmara um pouco,
desatou a ladrar com redobrada força. Dorothea pôs-lhe a mão sobre a cabeça e exerceu sobre ele
uma pressão de tal maneira forte e violenta que o pobre animal soltou
um ganido abafado.
Mary atirou para trás o cabelo que lhe descaíra para a testa e o sol que de novo surgira por detrás
das nuvens brilhou de súbito naquela massa pálida e cintilante
que lhe caía até à cintura.
- Como estás, tia Dorothea? - perguntou Mary com à-vontade.
"Ela tem exactamente o rosto do meu pai!", pensou Dorothea. "Tem os seus olhos, os mesmos
gestos, a mesma segurança e frieza. Ela é... a minha sobrinha... corre-lhe
nas veias o mesmo sangue..."
O rosto de Dorothea adquirira uma tonalidade cinzenta, e a respiração parecia sair-lhe do peito em
golfadas dolorosas; as suas faces, sempre tão hirtas e imóveis,
pareciam ainda mais repuxadas.
Mary lançava à sua volta um olhar interessado, observando o jardim e a casa.
- Não percebo porque é que me disseram que nunca devia vir aqui! - afirmou ela com uma voz
quase neutra.
Dorothea procurou controlar-se e retorquiu numa voz muito débil mas também muito fria:
- Tu perguntaste ao teu pai?
Mary sorriu um pouco, e retorquiu:
- Sim. Mas ele foi muito indefinido. Parece que ele não
gosta de ninguém que mora nesta casa, a não ser de Philip.
Pareceu estudar Dorothea friamente e disse ainda:
- Para mim, não tens nada um aspecto assustador, tia
Dorothea.
Dorothea pousou de novo o cão no chão e o animal desatou a
pular em volta de Mary farejando-a ansiosamente. Mary tocou-lhe ao de leve com um pé,
afastando-o.
- Vim agora mesmo da escola de Miss Finch, em Hudson, e ia a caminho de casa - disse Mary. -
Pensei que talvez pudesse ver Philip, se ele estivesse em casa.
- Não está - respondeu Dorothea com uma tremura estranha na voz. - Philip está com o pai no
banco.
Hesitou um pouco e os olhos ensombraram-se-lhe profundamente.
- Então, tu és a Mary.
- Sim - retorquiu a rapariga ainda com um sorriso muito frio mas encantador.
- E... deixa-me ver. Tu deves ter mais ou menos catorze anos, não é verdade?
- Sim, quase. Faço catorze anos no próximo mês de Fevereiro.
- Então, já és uma senhorinha - murmurou Dorothea. Mary inclinou a cabeça num gesto gracioso, e
retorquiu:
- Sim. E vou casar com Philip quando tiver dezassete ou dezoito anos.
O corpo de Dorothea estremeceu convulsivamente como se tivesse sido atingido por uma violenta
chicotada; semicerrando os olhos, fixou a rapariga de modo penetrante.
- Eu ainda não lho disse, evidentemente - continuou Mary. - Mas em breve o farei. Foi por isso que
vim até aqui. Acho que é um verdadeiro absurdo eu não conhecer
a minha própria tia e o pai de Philip.
Dorothea lançou um olhar furtivo e quase inconscientemente para a casa. Logo naquele dia Alfred
encontrava-se ali, com uma das suas dores de cabeça, e Dorothea sentiu-se
de súbito alarmada. Alfred não podia ver aquela rapariga.
Voltou-se abruptamente para Mary mas quando viu aquele rosto muito jovem, mas cheio de
compostura e dignidade, não conseguiu dizer aquilo que tencionava.
Ainda com tremura na voz, e sem a conseguir dominar, apesar de todos os seus esforços, disse.
- Acho que devias pedir ao teu pai autorização para vires aqui, criança.
- Ora, ele nunca seria capaz de me deixar vir - retorquiu Mary, ainda com um sorriso nos lábios. -
Tenho a certeza. Mas acho tudo isso um disparate absurdo. Não
me dás um beijo, tia Dorothea?
Aproximou-se de Dorothea e esta olhou-a estupefacta. Mary era quase da sua altura e estendia-lhe o
rosto com uma simplicidade que apesar de toda a sua frieza a comoveu;
viu-lhe a pele fina e vibrante e, para sua grande perplexidade, achou-se de repente a inclinar-se um
pouco e os lábios afloraram aquela face doce e fragrante como
as pétalas de uma rosa.
Qualquer coisa aconteceu então dentro de Dorothea. Qualquer coisa se derreteu e se transformou
em lágrimas, num caudal incontrolável. Ergueu a mão e pousou-a no
ombro de Mary, enquanto os seus olhos fixavam aqueles outros de um azul tão claro e ao mesmo
tempo tão profundo que lembravam os de seu pai. E foi com voz profundamente
comovida que murmurou:
- Mary, Mary.
O sorriso de Mary tornou-se doce e gentil.
- Tia Dorothea! - exclamou por sua vez Mary com voz suave.
Então, com os olhos humedecidos e doridos do esforço, Dorothea disse apressadamente:
- Minha querida, não deves voltar aqui sem a autorização expressa do teu pai. Isso não seria uma
atitude correcta. Bem pelo contrário. Seria um comportamento errado
e pouco respeitador.
- Oh, tenciono dizer ao papá que estive aqui - retorquiu Mary com simplicidade. - Mas acontece que
ele não estava em casa esta manhã e por isso não pude pedir-lhe.
Sorrindo para si própria, Dorothea pensou: "Isto é o que o papá teria chamado de cautelosa
esperteza." Mary tinha um olhar puro de uma transparência delicada e Dorothea
sentiu-se de súbito aliviada e até um pouco divertida. Aquela criança era decidida, senhora de uma
força calma mas determinada, com uma vontade que não seria facilmente
dominada. Não, aquela jovem não era nenhuma coisinha que se pudesse moldar com facilidade.
Havia nela o bom aço dos Lindsey.
"Ela é como eu era na sua idade", pensou Dorothea para si mesma.
Procurou no rosto da rapariga quaisquer traços de semelhança com Jerome e Amalie, mas não
encontrou nenhuns.
"Ela parece mais a filha de meu pai do que filha deles", pensou Dorothea, com um sentimento quase
patético de alívio e gratidão.
- Tu também tens um irmãozinho, não é verdade, meu amor? - perguntou Dorothea.
Mary inclinou a cabeça num gesto tão familiar que o coração de Dorothea começou a bater-lhe no
peito num ritmo descompassado.
- Sim, chama-se William. Tem oito anos e é um maçador
- respondeu Mary. - Os rapazes pequenos são às vezes incrivelmente maçadores. Além disso, ele é o
preferido da mamã, o que ainda o torna pior.
Mary tinha um ar de desarmante franqueza, mas Dorothea não se deixou iludir. Aquela jovem tinha
em si uma força indescritível e uma capacidade de profunda reserva
e sobriedade. Não falava impensadamente, seguindo os impulsos que sentia, embora as suas
palavras parecessem sair-lhe com facilidade.
- Tenho a certeza de que as mães não fazem qualquer distinção entre os seus filhos - disse Dorothea.
Mary soltou uma curta risada. As suas feições, finas como porcelana pura, pareceram brilhar.
- Desde que o papá as faça, não me importo - retorquiu ela.
Dorothea observou a sobrinha com afeição e perspicácia. Havia naquela jovem qualquer coisa de
muito fresco que a comovia. Era impossível imaginá-la confusa, perturbada
ou inquieta. Apesar de toda a sua aparente fragilidade, era uma jovem que devia saber comportar-se
em todas as ocasiões.
- São quase horas do meu almoço - disse Dorothea, arrastada por um impulso que não compreendia.
- Queres fazer-me companhia?
Que importância tinha se Alfred visse aquela rapariga tão jovem e tão bonita? Tinha a impressão,
muito estranha mas também muito segura, de que Alfred não se importaria,
nem se sentiria perturbado com a sua presença. Talvez fosse aquela mudança que se operara nele e
que tanto o tinha transformado mas da qual só agora Dorothea se
apercebia.
com extrema delicadeza, Mary aceitou o convite imediatamente. Olhou à sua volta com um
interesse cortês enquanto acompanhava Dorothea. Entraram as duas em casa e,
reparando no olhar interessado da jovem, Dorothea perguntou com voz amarga:
- Isto não é como Hilltop, não é verdade, Mary ?
- Acho que Hilltop é o mais belo lugar do mundo - respondeu a jovem. - Mas esta casa também
poderia ser muito bonita e agradável se houvesse um pouco mais de sol
nas salas.
Dorothea retorquiu:
- Já não se fazem tapetes e mobílias como antigamente. Os reposteiros e as carpetes perderão
facilmente a cor se deixar entrar demasiada luz do sol dentro de casa.
- Oh, já tudo perdeu a cor em Hilltop. Mas apesar disso, acho tudo aquilo encantador - retorquiu
Mary.
Dorothea ficou aborrecida. Hesitou um pouco mas depois afastou as cortinas das janelas da sala de
entrada e deixou que o sol inundasse todo os recantos. Estremeceu
um pouco involuntariamente quando reparou que os raios do sol pareciam abrir manchas douradas
nos seus tão estimados tapetes de Bruxelas. Mas Mary abanava a cabeça
num gesto aprovador e satisfeito.
- Senta-te, por favor, minha querida - disse Dorothea. vou dizer aos criados que ponham mais um
lugar à mesa.
Como resposta Mary voltou a inclinar a cabeça num daqueles gestos que lhe eram tão
dolorosamente familiares. No entanto, embora pousasse a mão sobre as costas de
uma cadeira, não se sentou até que Dorothea saiu da sala. Um rubor de prazer inundou o rosto
pálido de Dorothea.
Subiu as escadas rapidamente com um passo mais apressado do que lhe era habitual. Sentia-se ao
mesmo tempo excitada e satisfeita. Bateu ao de leve na porta que dava
acesso à sala de estar de Alfred. Este, muito pálido, estava sentado à sua secretária e debruçava-se
sobre o seu livro de despesas pessoais. Sorriu para a prima
quando esta abriu a porta e se deteve à entrada da sala. Como que tomando uma resolução súbita,
Dorothea entrou na sala e fechou a porta atrás de si, coisa que nunca
tinha feito anteriormente.
- Alfred! - disse Dorothea com voz muito calma mas com uma excitação evidente. - Temos uma
visita. Ela veio até aqui sem qualquer convite nem aviso. Espero que tu
não te importes.
Lançou-lhe um olhar ansioso e disse ainda:
- Trata-se de Mary. A filha de Jerome.
Alfred pousou a caneta tão abruptamente que ela provocou um ruído surdo no tampo de mogno da
sua secretária. Os olhos pareceram encovar-se-lhe mais debaixo das sobrancelhas.
Ficou a olhar para Dorothea, como se esperasse qualquer outra explicação.
- Convidei-a para almoçar comigo - continuou então Dorothea. - É uma rapariguinha muito doce,
mas não é
Alfred reparou que Dorohea estava invulgarmente corada e trémula. Aquilo era muito estranho. Não
se lembrava de ver a prima perder a sua habitual compostura, a sua
rigidez, que nada parecia poder derrubar. Desenhou-se-lhe no rosto um sorriso doloroso, e
retorquiu:
- Não é necessário. Terei muito prazer em fazer companhia a ambas.
- É muito amável da tua parte, Alfred. Ela perguntou por ti, e disse-me que tencionava... que
tencionava conhecer-te. Como vês, é uma rapariguinha muito decidida
e determinada!
Soltou um suspiro, e alisou o avental com gestos nervosos e excitados.
- Não sei o que é que a gente de hoje pensa! Parece que não têm qualquer espécie de respeito, nem
delicadeza para com os outros. Fazem sempre aquilo que muito bem
entendem.
- As crianças não precisam de ter nada disso, Dorothea! retorquiu Alfred, erguendo-se da secretária.
Dorothea ficou perplexa ao escutar aquelas palavras da boca do primo. Decididamente, Alfred,
outrora tão rígido e tão correcto, tinha mudado.
Mas já Alfred dizia:
- Descerei imediatamente. Não devemos deixar a nossa convidada demasiado tempo sozinha. Não
seria bonito nem educado.
- vou falar com Elsie, para que ponha mais um lugar na mesa - disse Dorothea, quase sem
respiração.
Voltou-se e saiu da sala.
Alfred ficou por momentos imóvel e depois saiu também da sala e começou a descer as escadas
com passos lentos e pesados, dirigindo-se para a sala de estar. Quando
entrou viu o contorno de uma cabeça muito loura; depois a cabeça voltou-se e Alfred viu o rosto
delicado e frio de Mary. A rapariga levantou-se com delicadeza, e
fez-lhe uma ligeira vénia.
Durante uns instantes, Alfred sentiu-se incapaz de qualquer movimento. A filha de Amalie! Aquela
jovem poderia ter sido a sua própria filha, aquela jovem doce, de
olhos azuis, estranhamente familiares. Sentiu-se frustrado, enganado, roubado e algo no seu peito
começou a arder perturbando-lhe a visão.
- Sou Mary Lindsey, senhor - disse a jovem com delicadeza. - E suponho que o senhor é o pai de
Philip.
- Sim, minha querida - retorquiu Alfred.
A voz saíra-lhe rouca e trémula. Estendeu a mão para a jovem e ela apertou-lha com sobriedade e
sem o menor traço de
timidez. Mary olhava-o aberta e francamente. O que via agradava-lhe, e Mary lançou-lhe um sorriso
extremamente doce.
- Suponho que é meu segundo primo, não é verdade? Alfred hesitou um pouco, mas retorquiu, logo
em seguida:
- Sim, é verdade, Mary. Mas eu fui adoptado pelo teu avô. Portanto, também sou teu tio adoptivo.
Podes chamar-me, se quiseres, tio Alfred.
A mão de Mary, macia e esguia, encontrava-se ainda apertada na mão grande e forte de Alfred. Era
como a mão de sua mãe, firme e com uma força insuspeitada por debaixo
da doçura da pele. Alfred apertou mais aquela mão delicada, sem que disso se apercebesse. E Mary,
sempre tão subtil, esperou pacientemente que ele lha soltasse.
Compreendeu que a sua presença e o seu contacto perturbavam de algum modo aquele cavalheiro
calmo. Mas não sabia porquê.
- Estou muito contente por te conhecer, Mary - disse Alfred. - Espero que venhas aqui mais vezes. É
pena que Philip não venha almoçar a casa, mas espero que não
te sintas demasiado aborrecida connosco.
- Oh, tenho a certeza de que não me sentirei aborrecida de maneira nenhuma - retorquiu Mary com
ar muito sério. Philip falou-me muito de si e da tia Dorothea. De
facto, falou-me tantas vezes que sinto que já os conheço.
Pareceu recordar-se de súbito das maneiras que lhe eram ensinadas na escola de Miss Finch e disse:
- Espero que a minha presença não o incomode nem pense que é uma presunção da minha parte ter
vindo aqui sem ter sido convidada.
- Não acho que precises de esperar que te façam convites retorquiu Alfred com igual polidez. - Por
favor, vem mais vezes. Tantas quantas quiseres. Ficaremos encantados
por te ver.
Mary esperou que ele se sentasse primeiro, e depois sentou-se a seu lado, os pés decorosamente
juntos, as mãos sobriamente pousadas no seu colo coberto de musselina.
Alfred sentiu-se profundamente tocado pela delicadeza da jovem, e olhou com comoção o seu
queixo bonito e firme, o brilho dos seus calmos olhos azuis. Sim, aquela
poderia ser a sua querida filha, o seu grande amor, a sua consolação. Algo dentro dele parecia
empurrá-lo para ela. Sentia que aquela jovem fazia parte da sua própria
carne.
"Bem", pensou ele, "de certa maneira é. Afinal de contas, trata-se da neta do meu tio. É uma
Lindsey."
Ao olhar para Mary, e ao observar-lhe o rosto delicado não conseguia pensar nela como filha de
Jerome. Decorrera já muito
tempo desde que sentira ódio e raiva por Jerome. Aquela era simplesmente a filha de Amalie, a neta
de William Lindsey. Para Alfred, isso era suficiente.
com delicadeza fez a Mary algumas perguntas sobre os seus estudos. Ela informou-o de que aquele
era o seu primeiro ano em que estudava fora de casa. O pai não tinha
querido a princípio que ela saísse tão cedo mas a mamã tinha insistido. Agora o papá estava
convencido. Pensava mesmo que Mary se tinha desenvolvido muito durante
aquele ano. Mary sorriu ao pronunciar aquelas palavras, num sorriso indulgente que perturbou
Alfred. Não, não se sentia infeliz na escola. Tinha uma excelente professora
de música, e as alunas eram muitas vezes acompanhadas a Nova Iorque para assistirem à ópera e
também ao teatro. Havia tantas coisas para ver em Nova Iorque!
A voz de Mary, alta e um pouco neutra, mas muito doce, soava como música aos ouvidos de Alfred
e ele escutava-a profundamente absorvido. Observava-lhe os cabelos
macios inundados de sol. Aquele era o cabelo do seu tio William, tinha a mesma cor, a mesma
textura. Mary voltou o seu perfil para Alfred durante alguns instantes,
e a visão daquele contorno definido fez-lhe bater com mais força o coração. Era o perfil de William
Lindsey. Mas havia mais qualquer coisa. Havia uma certa doçura
na sua cabeça, um leve traço nos ossos da face que lhe faziam recordar Amalie.
Por sua vez, Mary tinha chegado à conclusão de que gostava do seu tio Alfred. Havia nele uma
força e um temperamento calmo que lhe agradavam. Não era de maneira
nenhuma um "homem cinzento". O papá estava enganado. E aquele erro do pai perturbava-a, pois
sempre apreciara nele o seu discernimento e a franqueza com que analisava
as outras pessoas. Mas sabia também que o pai era por vezes demasiado dogmático, um pouco duro,
talvez ligeiramente cruel e malicioso. Porém, era tão imensamente
divertido!
Querido, querido papá. Sorriu e Alfred estremeceu involuntariamente ao ver aquele sorriso. Algo
parecia rasgar-lhe o coração. Aquele sorriso fazia-lhe lembrar Amalie.
Foi com voz rouca que disse:
- Eu também vivi em Hilltop, Mary. Antes de tu nasceres. Continuo a lembrar-me dessa casa e a
adorá-la.
Mary olhou para ele rapidamente.
- Eu não sabia - disse ela, observando-o atentamente. Porque é que se veio embora? Há lá tantos
quartos! Eu teria gostado imenso de ter sempre a companhia de Philip.
Alfred ficou silencioso. Depois, quando reparou que Mary aguardava com ansiedade a sua resposta,
retorquiu:
- bom, é sempre preferível uma família viver sozinha. Duas famílias juntas podem por vezes ser
cansativas uma para a outra. Eu... eu achei preferível afastar-me
com a minha própria família e construir a minha própria casa.
- Mas a tia Dorothea é a irmã de meu pai - disse Mary, confusa. - Ela devia ter ficado connosco.
O sorriso que se desenhou no rosto de Alfred era sombrio.
- Mas o teu... pai... tinha a tua mãe, minha querida. Ele tinha a tua mãe. E eu não tinha ninguém, Foi
por isso que Dorothea resolveu vir connosco para esta casa.
Mary fixou nele os seus olhos penetrantes. Adivinhava que Alfred não lhe estava a contar tudo e
tinha dentro dela a curiosidade natural de uma criança.
- Mas o tio nunca nos foi visitar a Hilltop. Não gosta do meu papá, nem da minha mamã?
Alfred levantou-se impulsionado por uma dor súbita. Olhou para a porta desejando
desesperadamente que Dorothea regressasse, e foi com voz enrouquecida que retorquiu:
- O teu pai e eu não temos muitas coisas em comum, minha querida.
Sentiu-se incapaz de continuar e quando falou, Mary quase não lhe entendeu as palavras que ele
proferia.
- Sim, gostei muito da tua mãe. Muito. Mas às vezes as famílias são incompatíveis.
Voltou a calar-se e depois perguntou, quase com alívio na voz:
- Não foi a campainha que eu ouvi?
Foi com profunda gratidão que Alfred viu Dorothea entrar na sala. Dorothea olhou primeiro para
Alfred, depois para Mary e de novo os seus olhos se voltaram para
o primo. Reparou que Alfred estava extremamente perturbado e inquieto. Que lhe teria dito aquela
estranha jovem? Mas Mary continuava impávida e serena e ergueu-se
polidamente quando a sua tia entrou na sala.
Mary achou o almoço demasiado simples e sem gosto, completamente diferente das dliciosas
refeições que eram servidas em sua casa. Também aquele casarão parecia anormalmente
sossegado. Não se ouvia o tiquetaque de nenhum relógio, nem o som abafado e agradável das
criadas. Devia haver ali cavalos e também o pequeno cão de Philip, mas
não se ouviam quaisquer relinchos ou latidos. Apenas o restolhar dos ramos das árvores chegava aos
seus ouvidos.
As janelas naquela sombria sala de jantar estavam viradas a norte e Mary via à sua frente os
relvados escurecidos pela sombra dos pinheiros. Sentiu uma certa humidade
na atmosfera e
estremeceu involuntariamente. Não admirava que o querido Philip fosse tantas vezes a Hilltop.
Aquele silêncio e a humidade que pareciam imperar por todo o lado deviam
ser extremamente desagradáveis para ele.
Dorothea mostrou-se de súbito ansiosa.
- Mas... a tua mãe, minha querida. Não ficará ela assustada por não saber onde tu estás, nem onde
almoças?
Mary abanou a cabeça, agitando ao de leve a massa sedosa dos seus cabelos, e respondeu:
- Eu comi qualquer coisa mais cedo com o meu irmão. A minha mamã recebe hoje Mistress
Kingsley, e disse-me que mantivesse William afastado. Mistress Kingsley não
gosta de crianças. Parece que prefere os animais.
Mary pareceu ficar pensativa, mas depois disse:
- Não a censuro, realmente. Os rapazes pequenos tornam-se por vezes demasiado cansativos e
maçadores.
Dorothea recordou-se de súbito daqueles anos em que ela própria tomara conta do irmão. Também
ela tinha sido muitas vezes avisada de que deveria ajudar as criadas
a manter Jerome longe dos convidados. Os seus olhos humedeceram-se àquela recordação, e disse:
- O teu irmão é muito barulhento, meu amor? É difícil controlá-lo?
- Só com a mamã - respondeu Mary. - Ele porta-se muito bem quando o papá está em casa. Por
vezes o papá é muito ríspido com ele, mas quando a mamã está sozinha,
é difícil controlar William. Ele aproveita-se dessa circunstância.
Ah, sim! Também Jerome sabia "aproveitar-se das circunstâncias". Como Dorothea se recordava
bem disso! Sorriu para Mary com simpatia e compreensão. Como era estranho
que aquela mesma história se repetisse dentro da mesma família! E estranhamente sentiu que uma
ligação profunda existia entre ela e aquela rapariguinha calma e serena
que se sentava à sua mesa. Quase por instinto apercebeu-se de que Mary só com muito esforço seria
capaz de controlar William, tal como lhe tinha acontecido a ela
em relação a Jerome.
Dorothea voltou-se para Alfred e ele sorriu-lhe. Também ele pensava exactamente nas mesmas
coisas que lhe enchiam o pensamento. Céus! Há quanto tempo não acontecia
aquele ambiente de ternura e compreensão, aquele entendimento mútuo entre os dois?
Depois, Dorothea recordou-se de que Mary tinha faltado aos seus deveres, e afirmou:
- Mas afinal, tu deixaste o teu irmão sozinho. Acho que foi uma atitude muito errada da tua parte.
Mary não ficou intimidada com a ligeira severidade do tom com que a tia lhe falara, e retorquiu:
- Ora, já me bastou tomar conta dele durante duas horas. Dei à Margie, a criada dele, um velho
guarda-jóias que me pertencia e fiz-lhe prometer que tomava conta
dele e que o manteria afastado da mamã e de Mistress Kingsley. Ela chegou mesmo a prometer-me
de que o amarraria se fosse preciso. Evidentemente ele vai refilar,
mas Margie pode muito bem fechar as portas.
Uma vez, Dorothea tinha fechado Jerome num armário. Isso acontecera quando a mamã estivera
gravemente doente. Mas ele não parecera ter ficado assustado. Tinha passado
todo o tempo dando violentos pontapés nas portas. A mão de Dorothea imobilizou-se em torno da
chávena de chá, sem que contudo ela a levasse aos lábios. Ficou a olhar
para a toalha que cobria a mesa, recordando. Não foi senão muito mais tarde que reparou que se
tinha recordado de todas aquelas coisas passadas com Jerome sem sentir
amargura nem ódio.
Mary parecia emprestar um brilho radioso àquela sala de jantar habitualmente tão sombria. A sua
presença ali parecia a coisa mais natural do mundo. Era como se ali
estivesse afilha de Alfred. A filha de Alfred! Ele tinha sido roubado daquele tesouro, daquela
rapariguinha doce e suave, e isso acontecera por culpa dos outros,
apenas por culpa dos outros. No entanto, Dorothea não era capaz de sentir mais nada senão tristeza
e lamentação.
Mary recusou, com delicadeza, que uma carruagem a transportasse até casa. Gostava de andar a pé.
Deixou cumprimentos para Philip. Disse também que ele não se devia
esquecer que tinha de jantar em Hilltop no dia seguinte à noite. Esperava que ele lhe levasse o
volume de Shelley que lhe tinha prometido, encadernado em couro vermelho.
Ele escrevera-lhe a dizer-lhe que o tinha comprado especialmente para ela.
Mary beijou delicadamente a sua tia Dorothea e depois Alfred, agradeceu-lhes o almoço e afastou-
se. Eles acompanharam-na até aos portões e ficaram a observar a sua
figura alta e magra caminhar firmemente pela colina acima. Quando se tinha já afastado um pouco,
Mary voltou-se e acenou-lhes. Ambos sentiram então uma dolorosa
sensação de que haviam perdido qualquer coisa de muito terno, e isso encheu-os de um sofrimento
irreparável. Não estava certo que ela os deixasse. Não. Mary não
devia ter partido. Ficaram a ver o brilho suave que se desprendia dos seus cabelos até que uma
curva da estrada roubou aquela figura delgada aos seus olhos.
"O nome dela devia ter sido Elizabeth", pensou Alfred. "O nome da minha mãe."
Capítulo quinquagésimo sétimo
- Realmente, Mary! - exclamou Amalie, muito perturbada e fora de si. - Tu não tens o mínimo
sentido das proporções. Nem quero pensar no que o teu pai dirá quando
lhe dissermos. A menos que tu não lhe queiras falar no assunto.
- Oh, tenciono fazê-lo - retorquiu Mary, placidamente.
- Não há necessidade nenhuma de transformar isto num segredo.
Olhou para a mãe, fixamente, e disse ainda:
- Ele nunca me disse expressamente que eu não devia visitar o tio Alfred e a tia Dorothea.
Amalie soltou um suspiro resignado, e disse:
- É escusado utilizares subterfúgios comigo, minha rapariga. Tu sabes muito bem que não deves ir
àquela casa, tu não desconheces os... sentimentos... do teu pai
acerca daquela família.
Mary alisou o cabelo com as duas mãos e depois abanou-o de novo, atirando-o para trás.
- Mamã - disse ela, muito calmamente. - Eu tenho quase catorze anos. Já não sou propriamente uma
criança. Não achas que já vai sendo tempo de eu saber o motivo desse
ressentimento que o papá tem pela família de Philip? Acho tudo tão misterioso!
Amalie ficou silenciosa. A filha tinha razão. Um dia, talvez muito breve, ela teria de ficar a
conhecer toda a história. Poderia ser uma coisa penosa pois Amalie
sabia que Mary, apesar de toda a sua tranqüilidade aparente, tinha uma profunda capacidade de
sentir e de se emocionar.
Amalie não sabia o que fazer! Fosse o que fosse que ela fizesse, Jerome ficaria de certo furioso.
Mas Jerome ficaria de qualquer modo furioso e acusaria a mulher
sem reticências e sem pensar nas palavras que deixava escapar nessas alturas.
"Meu Deus!", exclamou Amalie para si própria, com desespero. Aquela história era realmente muito
má e os factos crus poderiam chocar qualquer pessoa. No entanto,
não havia nada a fazer. Seria preferível ser a própria mãe de Mary a dar-lhe um breve relato,
cuidadoso e sereno, do que se tinha passado do que ela vir a conhecê-los
por um estranho qualquer. Pensou na fúria que Jerome sentiria, mas sabia que não podia fazer outra
coisa.
Foi então que disse:
- Mary, tu és uma rapariguinha sensata, e concordo contigo quando dizes que já é tempo de saberes
a verdade. Se não for eu a fazê-lo, é muito possível que outras
pessoas te contem o que se passou, e elas poderão ser pouco delicadas e amáveis.
Calou-se. Sim, era preciso que ela falasse. Afinal Mary ia fazer catorze anos. Mas... isso bastaria?
Que poderia a sua filha saber das paixões humanas? Não iria
ela censurar os seus próprios pais? Não iria ela formar no seu espiritozinho ainda não
suficientemente adulto alguma opinião fantástica?
Completamente desesperada, Amalie murmurou:
- Houve uma altura, Mary, em que eu fui casada com AlfredLindsey.
Mary fez um movimento rápido. Virou-se na cadeira e olhou fixamente para a mãe. No entanto,
nem uma palavra saiu dos seus lábios.
Amalie apertou os dedos uns contra os outros. Mordeu os lábios. Mas Mary estava à espera que ela
continuasse.
- Nós... nós vivíamos todos juntos em Hilltop, nessa altura. O teu pai veio a casa para assistir ao
casamento.
Oh, Deus do céu! Aquilo era muito pior do que ela tinha pensado!
- Talvez tivesse sido um caso muito infeliz, mas o teu papá e eu... o teu apá e eu... chegamos à
conclusão de que estávamos apaixonados um pelo outro. Foi por isso
que, alguns meses depois, eu e Alfred Lindsey nos divorciámos, e depois eu casei com o teu papá.
- Divorciados!? - repetiu Mary, demasiado suavemente. Amalie franziu a testa, e disse:
- De certo que tu sabes o que significa divórcio, Mary. É claro que o divórcio é uma coisa muito
pouco... habitual. Mas às vezes é necessário. Eu cheguei à conclusão
que não amava realmente Alfred Lindsey. Foi melhor para todos que as coisas se tivessem passado
dessa maneira.
Não conseguia entender o que diziam os enormes olhos azuis de Mary. Sabia apenas que eles não se
afastavam nem por um segundo do seu rosto. De súbito, apercebeu-se,
com choque e estupefacção, que Mary a admirava.
- Porquê, mamã? - disse Mary, quase maravilhada. Tu deves ter sido muito corajosa!
Amalie sentiu-se completamente perturbada e confusa.
Mary olhava perscrutadoramente a mãe, com um interesse profundo estampado no rosto. Então, a
sua mãe não era tão apagada como ela sempre pensara. A sua mãe tinha
sido ousada e forte; tinha tido a coragem de fazer uma coisa que toda a sociedade considerava
ultrajante e aventurosa. Ela tivera a coragem de enfrentar todo um
mundo de censuras e repulsa.
Mary sentia-se excitada e comovida. E o papá? Como ele devia ter sido galante e irresistível! Não
era simplesmente um pai; tinha sido uma figura romântica e ousada,
uma figura de
alegria e abandono. Mary sentiu que nunca tinha amado tanto os seus pais como naquele preciso
momento. Não, nunca tinha amado tanto a sua mãe como agora, a sua mãe
que sempre lhe parecera tão demasiado correcta e rígida para com ela. Sonhadoramente, Mary
afirmou:
- Então, é por isso que as nossas famílias não se visitam. O tio Alfred deve ter ficado magoado, não
é verdade?
Amalie mexeu a cabeça, pouco à vontade.
- Acho que sim - disse ela, ainda perturbada com o que tinha visto no rosto da filha. - Mas ele é um
homem muito sensato. Tenho a certeza de que não guarda qualquer
rancor. No entanto, as coisas são às vezes um pouco estúpidas, sabes? Portanto achámos melhor não
ter quaisquer contactos com aquela família lá em baixo.
- Sim - disse Mary, fixando o seu olhar na janela. - Sim. Acho que compreendo. O tio Alfred é
muito gentil. Ele não guarda qualquer rancor. Perguntou-me por ti,
mamã. Muitas coisas.
Ficou,em silêncio por alguns instantes, e depois perguntou:
- Porque é que ele não se voltou a casar também?
- Não sei! - exclamou Amalie. - Afinal, ele foi casado duas vezes. Talvez ele pensasse que era
suficiente.
Ficou por sua vez em silêncio, e depois perguntou:
- O que é que ele te perguntou a meu respeito, Mary?
- Ele queria saber se tu continuavas bonita - retorquiu Mary.
Olhava a mãe agora de uma maneira totalmente diferente. Jamais tinha pensado na mãe como uma
mulher bonita ou de qualquer outra maneira. A mamã era simplesmente
a mamã. Mas agora, pela primeira vez, Mary apercebia-se da extraordinária beleza de sua mãe, e
uma sensação estranha, uma timidez nunca dantes sentida apoderou-se
dela. Olhava também pela primeira vez a mãe como uma mulher, e não simplesmente como sua
mãe.
- Ele queria saber se tu continuavas a gostar do jardim. Perguntou se a tua cor preferida continuava
a ser o verde.
Os olhos de Amalie ficaram de súbito escurecidos. Deixou pender a cabeça para o peito e ficou
silenciosa.
- Eu não sabia nada disso nessa altura- continuou Mary.
- Mas agora sei. Acho que ele continua a gostar de ti, mamã.
Amalie ergueu-se de repente e disse numa voz extremamente estranha:
- Mary, não sei o que havemos de fazer. O teu pai vai ficar muito zangado. Eu... eu acho que deves
ser tu mesma a dizer-lho. Acho que lhe deves dizer o que eu te
contei. Não quero estar presente quando o fizeres.
Mary acenou com a cabeça num gesto de concordância e o sorriso que lhe brincou nos lábios era
um sorriso de maturidade e de compreensão.
- Tenho a certeza de que ele te vai dizer que não quer que tu lá voltes outra vez, Mary. E tu tens de
lhe obedecer.
- Acho que as crianças, ou mais propriamente os filhos, não têm de obedecer a ordens estúpidas -
disse Mary, com muita calma e compostura. - Além disso, gosto de
visitar os meus familiares.
Amalie voltou-se para a filha num movimento rápido, quase sem respiração.
- Mary! Como podes tu dizer essas coisas? Não achas que os pais dão por vezes ordens aos filhos
que os filhos não podem compreender?
- Não - retorquiu Mary. - Afinal, eu já não sou nenhuma criança. Já tenho idade suficiente para ter
as minhas próprias opiniões e decidir sobre o que quero fazer.
Acho que o papá vai compreender isso. Ele ouve sempre o que eu digo.
Jerome estava branco de raiva. Ele e Mary estavam sentados no quarto desta última. Mary
convidara-o para ali depois de jantar. Aliás, aquelas confidências aconteciam
muitas vezes entre pai e filha. Tinham saído juntos da biblioteca, como tantas vezes faziam, depois
de Jerome ter dirigido à mulher o seu habitual sorriso indulgente
e um pouco malicioso, como se pretendesse rir-se com ela antes de se afastar com Mary para uma
das suas "conversas" afectuosas.
Mas, se Jerome estava quase sem fala de raiva e fúria, Mary estava absolutamente calma e
impassível.
- Não deves censurar a mamã - dizia ela. - Ela não sabia que eu ia lá. De facto, eu saí de casa sem o
seu conhecimento e tencionava firmemente ir até casa de Philip
quando saí. Quando regressei, a mamã estava muito zangada comigo. Eu insisti com ela para que
me contasse tudo. E ela acabou por me contar. Não fiquei nem um pouco
chocada, asseguro-lhe. Acho, até, uma história verdadeiramente excitante. Além disso, agora
consigo compreender tudo, e só não entendo porque motivo não me contaram
há mais tempo toda a verdade.
Mary ficou pensativa. Se de facto estava perturbada pelo rosto irado do pai, e na verdade as
cicatrizes de Jerome apareciam brilhantes e vermelhas no rosto e na
testa, Mary não dava quaisquer sinais disso. Nunca o tinha visto daquela maneira; nunca Jerome
tinha olhado para ela daquele modo. No entanto, Mary continuava muito
calma e impassível.
Ao fim de alguns instantes, disse, pensativamente:
- É claro que eu não precisava de ter contado à mamã. Mas acho que essa teria sido uma atitude
muito incorrecta e errada, não há motivo nenhum para que as pessoas
sejam desonestas e utilizem subterfúgios para com aqueles de quem gostam.
Jerome nunca tinha batido na sua filha em toda a sua vida. No entanto naquele momento sentia o
mais brutal desejo de o fazer. Mas, apesar de toda a violenta vontade
de que era acometido, continuou sem se mexer.
Disse apenas com voz rouca:
- Tu... minha cabrazinha. Tu sabias muito bem que eu não queria que tu fosses lá, nunca. Sempre to
disse muito claramente, mas tu desobedeceste-me deliberadamente.
Mary estremeceu. Pela primeira vez na sua vida sentiu medo do pai. Ergueu bem alto o seu queixo,
mas a cor das faces tinha-lhe desaparecido.
Jerome sentiu uma picada dolorosa, uma espécie de queimadura, nas suas cicatrizes. Aquela dor
violenta acicatou-o ainda mais contra Mary. Levantou-se num gesto muito
brusco, dirigiu-se para a filha, e esbofeteou-a violentamente na face.
Mary não gritou, não se mexeu, não levantou sequer os braços em defesa própria. Limitou-se a
erguer a sua pequena cabeça ainda mais alto. As marcas da mão de Jerome
começaram a surgir num vermelho vivo no rosto muito branco de Mary. Ergueu os olhos para o pai,
fitou-o firmemente, e os seus olhos azuis eram agora poços de luz
verdadeiramente imperscrutáveis onde não se lia nem a mais leve sombra de medo.
Aquele olhar fez deter Jerome. Era a própria expressão do seu pai. Odiou-se de súbito por aquela
bofetada que tão violentamente desferira contra a filha. Mas a sua
voz, ainda que um pouco insegura, continuava rouca quando falou:
- Quero que tu compreendas uma coisa, rapariga. Nunca mais deves voltar àquela casa. Se o fizeres,
quero que saibas que será por tua própria conta e risco.
Num tom de voz muito suave, Mary respondeu:
- Há aqui uma coisa que eu não compreendo, papá. Se alguém tinha de estar zangado, é o tio Alfred
e não tu. Tu roubaste-lhe a mamã.
O que era aquilo que Jerome lia nos olhos da filha? Seria desafio que cintilava tão brilhantemente
naqueles olhos ainda tão jovens? A fúria de Jerome pareceu aumentar
ainda mais de tal maneira que a sua cabeça começou a martelar com violência.
- A tua mãe foi uma doida em te ter contado - disse ele, com voz tão rouca que mal se entendia. -
Ela devia saber que tu não serias ainda capaz de compreender, e
que não te devia ter contado coisa nenhuma.
Jerome estava quase fora de si novamente. Tocou ao de leve as cicatrizes na cara e quase gritou:
- Olha para isto, imbecil. Foi o teu amável "tio Alfred" que me fez isto.
Mary ergueu-se da cadeira, incapaz de afastar os olhos do pai. Estava mais branca do que nunca.
Murmurou:
- Quando ele... soube... do que se passava entre ti e a mamã?
- Sim! - quase vociferou Jerome.
- Que absurda atitude da parte dele - disse Mary, num tom ainda sussurrante. - Ele devia ter sabido
que tu e a mamã não podiam ter evitado tudo aquilo.
Ergueu a mão muito devagar e pousou-a na marca escaldante do seu rosto, e de novo os olhos
brilharam com insistência.
- Tal como tu, papá, devias ter sabido fazer melhor.
A dignidade da filha obrigou-o a ficar em silêncio. Jerome sentiu-se envergonhado. Mordeu os
lábios. Por fim, estendeu a mão na direcção de Mary. Ela segurou-lha
sem hesitações.
- Mary! - disse ele. - Tu és ainda demasiado jovem para que possas compreender tudo. Talvez algum
dia tu consigas. Nessa altura saberás porque motivo eu te pedi
e te peço ainda para que não vás nunca mais a essa casa de novo.
Ficou silencioso por momentos, e depois afirmou:
- Perdoa-me, minha querida.
Jerome sempre tivera absoluto controle sobre Mary. A simpatia e o amor entre os dois tinham sido
sempre absolutos. Agora, por qualquer instinto que não conseguia
explicar, Jerome soube que qualquer coisa de muito importante se perdera entre os dois, como se
tivesse sido cortado entre ambos uma corrente outrora forte e indestrutível.
"Era quase como um cordão umbilical", pensou Jerome confuso e cheio de dor.
- Se tu me estás a dar uma ordem, papá, então eu terei de obedecer - disse Mary, simplesmente.
Tinha a dignidade e o orgulho de uma mulher. Sim, aquilo que lia nos olhos da filha era puro
desafio. Mas era um desafio que o fazia compreender que se tinha esquecido
de si própio e que se comportara infantilmente e de uma maneira imperdoável.
- Obrigado, minha querida - disse Jerome. Afastou-se e deixou-a sozinha. Tencionava chamar
Arnalie e
insultá-la o mais violentamente que pudesse fazer. No entanto apenas sentia uma incrível e
crescente sensação de que tinha perdido qualquer coisa de muito importante.
Sentia-se, por isso, desesperado e miserável.
Capítulo quinquagésimo oitavo
Quando Philip foi a Hilltop para jantar na noite seguinte, olhou perscrutadoramente para os seus
habitantes em busca de sinais de constrangimento. Para seu desgosto,
e também com alguma apreensão, reparou que Amalie, embora graciosa como sempre, parecia
demasiado controlada, e que havia um brilho mau e inimigo nos olhos de Jerome
sempre que fixava a sua mulher. No entanto os seus modos para com Philip eram fáceis, agradáveis
e acolhedores como sempre.
Philip mostrou-lhe um embrulho que tinha trazido com ele.
- Um livro de Shelley, e um volume com algumas áreas de Brahms - disse ele. - São para Mary. Eu
prometi-lhe o Shelley e esqueci-me dele há já alguns dias.
Soltou uma risadinha suave e depois continuou:
- Mas Mary não se esqueceu. Foi procurá-lo ontem. Amalie esboçou um sorriso retraído, como se se
sentisse
pouco à vontade. Porsua vez, Jerome sorriu abertamente e disse:
- Mary é uma rapariga muito impaciente. É também muito rigorosa no que diz respeito a promessas.
Nós a há muito tempo que descobrimos isso.
Por natureza muito frontal em relações humanas e senhor de uma considerável finura quando se
tratava de lidar com os casos inevitáveis e absurdos que sempre ocorrem
em sociedade, ele odiava quaisquer provas de rudeza e pouca educação. Isso devia-se em parte ao
facto de ele ser a própria discrição em pessoa, e também porque era
naturalmente delicado e amável para com todas as pessoas. Usava mentiras graciosas e hipocrisias
gentis sempre que achava necessário para salvar a sensibilidade
dos outros e criar um ambiente de boa vontade onde apenas a animosidade e mal-estar existiam.
Para ele, um homem rude que falava abruptamente e "com verdade" à mais
ligeira provocação era como um touro tresmalhado que atacava com chifres pontiagudos e cascos
pontapeando violentamente o chão, e não havia qualquer desculpa para
ele nas relações delicadas entre os seres humanos.
Philip mantinha a graça de um minuete polido nos seus próprios encontros com os outros; deslizava
em redor dos bailarinos num salão de baile com a serena despreocupação
que assume todo aquele que é igualmente adepto. A sua própria presença impedia embaraços e
perturbações agudas e por vezes desnecessárias, e, se acaso as havia,
ele impedia que elas atingissem os limites de uma verdadeira hostilidade, perturbadora e frontal; e a
elegância e consideração dos seus modos tinha um efeito muito
salutar e inibidor sobre os crónicos "contadores de
verdades" e sobre aqueles que amavam a discórdia e a discussão acima de tudo.
Philip sempre admirara Jerome porque este último possuía em grande medida a capacidade e
extrema habilidade de cobrir a areia rude e desconfortante daqueles que
eram ameaçadoramente irritantes com uma substância reluzente de boas maneiras e comportamento
civilizado.
Ele e Jerome beberam uísque, enquanto Amalie beberricava um pouco de xerez. O agradável
entardecer de Verão, calmo e morno, suavisava os espíritos que haviam suportado
o extenuante calor que fizera durante o dia. Philip, pondo de lado o assunto de Mary, cumprimentou
Amalie pelo arranjo das flores nas jarras e nas pequenas travessas
pintadas.
- És uma perfeita anfitriã, Amalie - disse ele. - Nunca há em ti uma única nota falsa, sej a no que for.
Os olhos de Jerome pousaram agora na mulher com um pouco menos de inimizade e repúdio. Philip
continuou a falar:
- Correndo o risco de parecer desleal para com a querida tia Dorothea, devo confessar que Hilltop,
sob o teu controle, Amalie, adquiriu um ar novo e mais brilhante.
Mas não é de maneira nenhuma uma atmosfera falsa. É como se todos os recantos desta casa
tivessem sido limpos e arejados. Tu pareces cumprir a mecânica da direcção
da casa com suavidade e eficiência. Também costumas ter com os criados os mesmos problemas
que a tia Dorothea tem?
- Amalie tem uma maneira muito especial de lidar com os criados - disse Jerome.
Não se deixava nem um pouco enganar por todos aqueles cumprimentos de certa maneira
exagerados, e tinha perfeita consciência da intenção que estava por detrás deles.
No entanto, como eles correspondiam à verdade, e como se sentia orgulhoso da sua mulher, não se
importava.
- Amalie sabe como lidar com eles - continuou Jerome. Nunca discute, mas também não lhes
permite quaisquer liberdades. Por outro lado, nós pagamos-lhes muito bem.
Philip reparou que os lábios de Amalie tremiam. "bom, a pobre querida tem passado um mau
bocado com este diabo desde ontem!", pensou ele.
- És muito amável, Philip - disse Amalie, agora com um sorriso um pouco mais natural.
- A tia Dorothea continua a acreditar que se devem tratar os criados com firmeza e chicote na mão -
continuou Philip. Eu já tentei dizer-lhe que os tempos são outros,
mesmo para os criados. Mas não me serviu de nada, evidentemente. Não temos
um único criado que esteja connosco há mais de cinco meses. Bem, também é preciso que se diga
que depois dos cinqüenta anos é quase impossível mudar de atitude.
As pessoas acabam por ficar metidas dentro dos seus próprios hábitos, como um caracol dentro da
sua casca.
Inclinou a cabeça na direcção de Jerome, e disse:
- Creio, no entanto, que tu és uma excepção, meu amigo. A tua natureza vai-se tornando mais
flexível e compreensiva à medida que te aproximas desse malfadado meio
século de vida.
Jerome riu-se com prazer, e perguntou:
- Será que esta é a tua noite em que costumas fazer as tuas ofertas de Natal, Philip?
Voltou a encher o seu copo e também o de Philip. Os olhos pareciam dançar-lhe nas órbitas. Mas
Philip estava muito sério.
- Não, estou simplesmente a exprimir a minha gratidão pelo facto de ser autorizado a entrar nesta
casa e aprender a conhecer-te a ti e a Amalie.
Num impulso, Amalie retorquiu:
- E nós estamos agradecidos pelo facto de tu vires, Philip. Hesitou um pouco e olhou para Jerome.
- Não é verdade, meu amor? - perguntou.
- Oh, sim, de facto, minha querida - retorquiu Jerome.
Jerome encontrava-se agora de pé ao lado da mulher. Estendeu a mão e afagou-lhe o rosto, num
gesto indiferente. A boca vermelha e cheia de Amalie tremeu visivelmente.
- Agora, não poderíamos passar sem Philip - disse ainda Jerome, cada vez mais deliciado. - Ele é o
único homem com quem consigo falar em toda a Riversend. Não passa,
com efeito, de um patife cheio de diplomacia, mas tem o seu valor muito próprio.
Dirigiram-se para a sala de jantar. Philip reparou de imediato que Amalie tinha voltado à sua velha
tarefa de tentar apaziguar os ânimos de Jerome. com efeito, os
seus pratos favoritos constituíam a refeição daquela noite. Philip cumprimentou mais uma vez a sua
anfitriã pela excelência da apresentação e pelos esplêndidos acepipes
que eram servidos.
- Onde é que vocês conseguem arranjar esta carne? - perguntou ele.
Jerome ficou imediatamente mais interessado.
- Compro-a a um dos maquinistas que trabalha na fábrica de Munsew - respondeu ele. - Ele
comprou-me mais quatro hectares de terra, e tem ali uma ou duas vacas.
Começou então a tecer largas considerações sobre uma nova experiência sua, que, de facto, lhe
tinha sido discretamente
sugerida por Philip. Aquele trabalhador e também outros tinham adquirido touros de raça. As
fêmeas resultantes da procriação tinham ganho prémios nas feiras do estado
pela produção e qualidade do leite. Os agricultores, a princípio cépticos e desconfiados, tinham
finalmente sucumbido à idéia da criação científica de gado.
Os homens voltaram depois a sua atenção para o assunto sempre absorvente da Comunidade de
Riversend. A Comunidade estava em plena actividade havia mais de um ano.
Industriais, grandes proprietários de terras e aqueles filantropos que se preocupavam com o bem-
estar da propriedade, tinham vindo em grandes massas para Riversend,
a princípio duvidosos e pouco convencidos, e por fim tinham içado verdadeiramente estupefactos.
Philip, embora ocupasse o lugar de assistente do banco de seu pai, tinha achado tempo depois das
suas horas de serviço para planear todo o projecto e ajudar na direcção
do mesmo. Nos últimos três anos nada mais nada menos do que seis gigantescos edifícios tinham
sido erguidos no vasto terreno que Jerome comprara perto do caminho
de ferro. Por seu lado, Philip tinha conseguido arranjar um grupo de assistentes verdadeiramente
valiosos.
As terras em redor de Riversend tinham, parafraseando um repórter entusiástico, "florescido como
uma rosa". Extensos hectares de terra dedicados agora à agricultura,
criação de galinhas ou floricultura tinham substituído a terra árida e vazia que durante anos estivera
abandonada. Nos feriados, aos domingos, durante as férias,
depois das horas de trabalho, centenas de empregados e suas famílias dirigiam-se a caminho das
suas terras, sentados ou de pé em grandes carroças, cantando, mulheres
de largos chapéus cobrindo-lhes as cabeças, crianças queimadas pelo sol, homens de peles tisnadas,
mas todos com um olhar de profunda serenidade e satisfação que
só aparece naqueles que têm mais algum objectivo na vida para além do seu trabalho diário e
rotineiro.
A paisagem habitualmente calma e sossegada tornava-se nessas ocasiões efervescente de vida e
vibrante de vozes e das figuras fortes daqueles que cavavam, regavam
e cultivavam. Os donos de terras vizinhas discutiam sobre os adubos e os produtos que delas
recolhiam, o tempo que prejudicava ou favorecia as suas pequenas colheitas.
Depois do pôr-do-sol, havia sempre uma festa alegre e divertida da Comunidade, que se espalhava
em imensas mesas de madeira rodeadas por bancos. Enormes fogueiras
eram então acesas. Alguns homens tinham apanhado peixe na corrente que
passava perto; as mulheres traziam grandes panelas e caçarolas cheias de feijão, carne cozida e
assada, tortas, bolos, pão quente acabado de fazer em casa. As cafeteiras
ferviam ao lume e assava-se nas brasas entrecosto e carne. As crianças brincavam e corriam à volta
das mesas e das fogueiras, cansadas mas cheias de fome, e também
cheias de saúde. Uma guitarra ou duas lançava doces acordes para o ar quente da noite, algumas
vozes cantavam, e sombras escuras moviam-se vigorosamente em redor
dos fogos. Depois, mais tarde, alguns dos mais jovens dançavam, enquanto os mais velhos se
sentavam por ali e passavam o tempo batendo as palmas, quer acompanhando
o ritmo da música quer aplaudindo os dançarinos. Os bebês, satisfeitos, confortados, dormiam
felizes nos braços robustos das suas mães. Por fim as carroças voltavam
para casa, cheias deocupantes cansados mas ainda rindo e cantando, enquanto que a enorme Lua
dourada parecia baloiçar por cima das árvores.
No Inverno, as casas pertencentes à Comunidade ficavam normalmente cheias. Os produtos dessas
casas tinham já adquirido uma fama espantosa. Compradores de Nova Iorque,
Chicago, Filadélfia e Boston vinham a Riversend, atraídos pelas excelentes colchas de renda, saias,
louças, vidro pintado, finas esculturas de madeira e pequenos
artigos de mobília, bem como um sem-número de outros produtos. Bons professores tinham
oferecido os seus serviços, mas Jerome e Philip tinham insistido em pagar-lhes.
Agora havia um pessoal permanente na época de Inverno. No Verão, os professores ajudavam no
trabalho da terra. Havia também uma estufa, e no Inverno as igrejas estavam
permanentemente cheias de flores fragantes e doces, como acontecia no Verão.
No entanto, o melhor de tudo era que os proprietários das fábricas em breve descobriram que"
raramente perdiam um bom trabalhador. Descobriram também que os homens
tinham adquirido mais interesse, mesmo nas tarefas mais monótonas que desempenhavam, e que
cumpriam muito melhor os seus deveres. Cada vez mais trabalhadores compravam
pequenas casas nas quais passavam a viver. Muitos deles chegavam a construir eles próprios essas
casas, tal como tinham construído os edifícios da Comunidade.
É claro que nada daquilo fora conseguido sem esforço, ansiedade e apreensão, por parte dos que
haviam planeado aquele gigantesco projecto. Os trabalhadores, a princípio
surpreendidos e desconfiados, só se tinham deixado convencer ao fim de prolongadas e inúmeras
discussões e conversas. Tinha sido uma árdua e pesada tarefa convencê-los
de que havia alguém realmente interessado no seu bem-estar, verdadeiramente
preocupado com a sua felicidade, bem como com o trabalho que resultava das suas mãos.
A Comunidade de Riversend tornou-se famosa em todo o Leste industrial.
Tão dura como a vitória sobre os próprios trabalhadores, ou talvez ainda mais dura, fora a vitória
sobre os industriais locais. Aos seus protestos irritados tinham
ido juntar-se os protestos dos industriais de quase todo o país. A experiência tinha sido descrita
como "perigosa, demolidora, anarquista, revolucionária, cheia
de visionismos sem qualquer viabilidade". Alguns clérigos tinham acusado e condenado a
Comunidade. Os jornais tinham-se rido daquele projecto visionário, enchendo
as suas páginas com caricaturas e desenhos destruidores, e por vezes insultuosos.
Então, um dia, com grande pompa e rodeado de grandes suspeitas, o governador do estado tinha
decidido visitar Riversend. Ficou durante três dias como convidado de
Jerome. Quando partiu ia cheio do mais extravagante entusiasmo.
- Mister Jerome Lindsey, fundador da Comunidade, demonstrou aos dirigentes da América não só o
carácter cristão de semelhante projecto, mas as vantagens materiais
que ele comporta - dissera ele, dirigindo-se ao senado.
Nada menos nada mais do que quatro livros tinham sido escritos a propósito da Comunidade.
Dirigentes sociais, tanto homens como mulheres, tinham vindo de Nova Iorque
e de Chicago para estudar aquela idéia revolucionária e ao regressarem tentaram persuadir o povo
das suas próprias cidades a imitar aquele projecto fantástico. Os
jornais, abandonando as suas críticas maldosas e destrutivas, passaram a apresentar elogiosos
editoriais acerca da Comunidade.
Mas a batalha não estava ainda completamente ganha, e Jerome e Philip tinham consciência desse
facto. Eles sabiam que a luta pela justiça e decência humanas, bem
como pela dignidade do homem, jamais podia ser dada como terminada.
Naquela noite, falavam dessa luta, enquanto bebiam em pequenos golos um excelente vinho do
Porto.
- Por vezes penso que tu, Philip, te entregaste demasiado
- disse Jerome. - Nunca tens um momento a que possas chamar completamente teu.
- É a minha vida - protestou Philip.
No entanto, ficou silencioso, não era a "sua vida", ali, no conservador banco de seu pai, onde ficava
permanentemente rodeado de absurdos livros de registos, fichas
e inúmeras e infindáveis listas de números. Fazia, no entanto, o seu trabalho de uma maneira
perfeita, e Alfred sentia-se agradecido e orgulhoso
do filho. Mas Philip escapava-se do banco sempre que podia. Ele e Alfred nunca concordavam nas
discussões que tinham acerca da Comunidade. Mas Philip estava a começar
a acreditar que o pai se sentia, pelo menos, um pouco interessado.
O banco de Alfred também beneficiava da Comunidade. Nos últimos anos Riversend tinha
triplicado a sua população e transformara-se numa autêntica cidade. No banco
de Alfred havia agora mais quatro caixas ao serviço. Uma vez, durante um fim de semana, quando
Alfred teve a certeza de que Jerome não se encontrava por ali, tinha
acompanhado o filho numa visita através dos edifícios da Comunidade e permitira-se lançar uma
olhadela aos trabalhadores que cultivavam as suas terras.
- Como vês, pai - tinha dito Philip, nessa feliz ocasião-, nós estamos a impedir a concentração da
indústria e a completa urbanização dos trabalhadores, antes que
elas possam sequer começar a ameaçar esta área.
- Eu sempre reprovei o divórcio dos homens da terra dissera-lhe Alfred, com dignidade. - Estou
satisfeito por verificar que outros concordam comigo.
Philip sorrira para si próprio, mas com afeição.
Uma semana mais tarde, Alfred entregara a Philip o seu cheque pessoal no valor de três mil dólares
como contribuição para a construção de uma pequena clínica médica
da qual Philip lhe tinha falado.
- No entanto - disse Alfred, muito rígido -, gostaria que este donativo ficasse anónimo.
Philip tinha ficado extremamente comovido com aquela atitude do pai. Aceitou o donativo com
algumas palavras simples, mas sem demonstrar o que lhe ia na alma. Alfred
ficou-lhe agradecido por aquela atitude conscienciosa.
Depois do jantar, Jerome pediu a Philip que tocasse para ele e Amalie, e Philip anuiu com prazer.
Dirigiram-se então para a sala de música e Philip tocou algumas
selecções de Chopin, o nocturno a dois. Lá fora, a noite escura e sem Lua estava silenciosa e quente.
Os pássaros entoavam um gorjeio melancólico, como se pretendessem
acompanhar a música. A brisa soprou por momentos e as árvores murmuraram sons surdos e
abafados. Philip apercebeu-se de que uma certa paz temporária e momentânia
tinha-se instalado entre Jerome e Amalie. Sentavam-se ao lado um do outro, escutando. Jerome
estendeu a mão e segurou a de sua mulher. Os olhos dela encheram-se
de lágrimas, mas o seu olhar não se afastou de Philip.
Um pouco mais tarde, Philip comunicou que desejava entregar a Mary os livros que tinha trazido.
Amalie levantou-se para chamar a filha, mas Philip interrompeu-a
dizendo:
- Por favor Amalie, não a chames. Eu vou à sua sala, como é costume. Sabes, nós gostamos de
conversar um pouco juntos. E haja tantos dias que não vejo Mary.
Capítulo quinquagésimo nono
Philip abriu a porta da pequena sala de estar de Mary e disse com voz viva:
- Posso entrar?
Mary encontrava-se sentada à sua secretária de madeira de rosa, escrevendo minuciosamente no seu
diário. Levantou-se de imediato, sorrindo debilmente.
- Oh, Philip - exclamou a jovem.
Philip apercebeu-se de um ligeiro retraimento naquela voz, embora ela continuasse calma como
sempre. O candeeiro em cima da secretária lançava uma sombra suave no
rosto de Mary. Ela apontou-lhe uma cadeira, e Philip sentou-se, colocando em cima dos joelhos o
embrulho com os livros.
Mary voltou a sentar-se mais lentamente do que se tinha levantado.
- Trouxe-te Shelley, minha querida - disse Philip. - E trouxe-te também algumas áreas de Brahms.
Um exemplar assinado, segundo se supõe, pelo próprio compositor.
Comprei-o em Nova Iorque, há cerca de um mês, mas ele não chegou senão hoje, juntamente com
algumas outras coisas. Quando toquei as árias esta manhã, decidi que
devias ter este livro.
Estendeu-lhe o embrulho, estudando-lhe minuciosamente o rosto, sem que parecesse olhar para ela.
Foi então que reparou em várias nódoas negras na sua face. Embora
continuasse sorrindo, sentiu que um profundo choque lhe abalava o peito. Mal se apercebeu que os
dedos ansiosos de Mary lhe retiravam das mãos o embrulho dos livros.
O seu corpo mantinha-se frio, quase gelado, mas qualquer coisa dentro dele que lhe parecia queimar
as entranhas.
A jovem sentou-se com a sua habitual calma, cheia de graciosidade, numa compostura quase real e
perfeitamente elegante. Abriu o embrulho e examinou os livros. Por
fim ergueu para ele uns olhos brilhantes de alegria.
- Oh, Philip! - exclamou Mary. - É tão amável da tua parte!
Philip falou então, tentando dominar, sem o conseguir, a tremura da sua voz, que o atraiçoava:
- Não sou nem metade daquilo que tu és, Mary. Foi a coisa
mais bonita que podias ter feito quando visitaste a minha tia e o meu pai, ontem. Eles quiseram que
eu te dissesse que gostaram muito de ti.
Um brilhante rubor inundou o rosto de Mary e as pequenas manchas ficaram ainda mais acentuadas.
Não afastou o olhar do dele, e disse simplesmente:
- Também gosto deles. Queria conhecê-los, por tua causa, Philip.
Philip recordou-se de que Dorothea lhe falara, com uma afeição profunda e desconhecida na voz,
"da determinação daquela criança em casar com ele dentro de três ou
quatro anos". Tinham rido ambos. Philip nunca tinha escutado um riso tão suave e tão meigo em
Dorothea, em toda a sua vida.
- Eles querem que tu lá voltes muito em breve, Mary disse Philip.
Mary inclinou a cabeça para os livros. Uma longa madeixa de cabelo caiu-lhe sobre o rosto.
- Eu gostaria muito, Philip - disse ela, quase num murmúrio. - Mas acho que é melhor não o fazer.
Houve um pequeno silêncio entre os dois. Por fim, Philip murmurou:
- Foi o teu pai quem te proibiu?
Mary respondeu-lhe afirmativamente num mudo gesto de cabeça, o rosto ainda inclinado sobre os
livros.
Philip soltou um suspiro. A queimadura dentro do seu coração tornou-se mais dolorosa.
Procurando controlar-se, Philip falou com aquilo que esperava ser um tom de voz razoável:
- Bem, lamento. Provavelmente ele sabe o que faz.
Mary ergueu a cabeça; os olhos brilharam-lhe sem medo, mas pareceram a Philip mais velhos do
que aquilo que recordava deles.
- Devia ter-lhe pedido primeiro. Sabes, Philip, havia coisas que eu desconhecia.
"Valha-me Deus!", pensou Philip.
Sentia uma profunda aversão por situações que provocassem embaraço e invasão na privacidade
dos outros.
- Eu não sabia que a minha mãe tinha sido casada com o teu pai - continuou Mary, sem qualquer
hesitação. - Eu não sabia que ela se tinha divorciado dele para depois
se casar com o papá. Se eu tivesse pensado melhor nisso... quer dizer, no facto do papá não querer
que eu fosse à tua casa... eu poderia ter calculado que talvez
ele tivesse boas razões para me proibir. Parece-me bem que envelheci alguns anos desde ontem.
Para Philip, aquela voz jovem e no entanto extremamente
profunda tornava-se insuportavelmente patética. Como se a defendesse contra a crueldade da
desilusão, Philip exclamou:
- Minha querida criança!
- A mamã contou-me tudo - continuou Mary como se não o tivesse ouvido. - Ela estava muito
nervosa. Na realidade, eu não tive cuidado nenhum.
Philip tamborilou nervosamente com os dedos no braço da cadeira onde estava sentado.
Ouviu Mary suspirar e depois dizer:
- Deve ter sido muito difícil para vocês terem de abandonar Hilltop.
- Sim - respondeu Philip, com a nova consciência de que Mary deixara de ser uma criança. - Foi
muito difícil. Foi mesmo muito duro. Havia tantas recordações ligadas
a esta casa! Mary, minha querida, eu gostei muito da tua mãe, também. Ela foi a minha primeira
mãe, a única que sempre tive. Ela deu-me este relógio.
Retirou o seu velho relógio do bolso e mostrou-o a Mary. Ela observou-o atentamente e depois
disse, com espanto e surpresa espelhado no rosto:
- É tão estranho não sermos capazes de pensar que os nossos pais possam ter tido uma vida
diferente antes de nós nascermos. E é uma coisa muito estúpida, também.
A mamã parecia-se bonita para ti, Philip, e amável?
- Sim, ohsim, Mary.
Philip sentia-se um pouco confuso e achou difícil olhá-la de frente.
No entanto Mary fixava a parede com o olhar sonhador.
- Sabes, Philip, eu cheguei a pensar por vezes que a mamã era um pouco cansativa. Ela era apenas a
minha mãe, e eu estava sempre a vexá-la. Mas agora, parece-me
que a conheço melhor. Ela parecia-me tão triste hoje quando falou do teu pai. Philip, achas que ela
alguma vez gostou dele realmente?
O conflito de emoções dentro de Philip deixava-o perturbado.
- Mary, não sei. Realmente não sei. Talvez ela tivesse gostado. Sim, devia ter gostado, caso
contrário não teria casado com ele primeiro. Bem. Nada do que se passou
poderia ter sido evitado. Aconteceu há muito tempo, muito antes de tu nasceres. Há coisas que é
melhor serem esquecidas. E não vale a pena desenterrá-las depois
de elas estarem sepultadas.
As mãos de Mary engalfinharam-se nos livros. Pela primeira vez Philip observou-as com atenção, e
sentiu-se comovido pela sua extraordinária e delicada brancura e
transparência. O candeeiro lançava uma luz suave sobre o perfil claro da jovem; as
suas espessas pestanas ensombravam levemente a sua face. Philip pensou:
"Tem um rosto tão adorável, tão delicado, tão fino. E também tão nobre e tão orgulhoso. Aquele
pequeno queixo tão firme tem dignidade. A forma das suas sobrancelhas
é aristocrática, imperial, nos seus contornos quase brancos."
Philip sentia-se cada vez mais perturbado e comovido.
- Mas, tu vens aqui, Philip. O papá gosta de ti. Ele quer que tu venhas.
- Nós sempre gostámos um do outro, o teu pai e eu - respondeu Philip. - Nunca houve qualquer
discussão entre nós dois.
Calou-se. Sabia exactamente o que é que a jovem estava a pensar: "não há também qualquer
discussão entre mim e o teu pai".
Viu o sorriso de Mary. Aquele sorriso entristeceu-o, porque era um sorriso irónico, de onde fugira
toda a espécie de juventude. Depois ela voltou-se para ele e olhou-o
aberta e francamente.
- Há algumas coisas que eu ainda não sei, não é verdade, Philip?
Philip sentiu-se extremamente embaraçado e alarmado.
- Tenho a certeza de que a tua mãe te contou tudo o que há para saber. Eu... eu diria que se trata de
um assunto de temperamentos incompatíveis, entre o teu pai
e o meu. Acho que toda a vida foram inimigos. Nunca se compreenderam um ao outro.-Não foi
apenas por causa da tua mãe...
Interrompeu-se. Não gostava nada de discutir sobre as outras pessoas quando elas não se
encontravam presentes. Parecia-lhe que uma atitude dessas era prova de deslealdade.
Mary estava a observá-lo com ar muito sério.
- Acho que compreendo. Mas o teu pai não foi duro quando falou sobre o meu. O papá disse-me que
aquelas cicatrizes que tem na cara, lhe foram feitas pelo tio Alfred.
Talvez se não houvesse cicatrizes, o papá pudesse ter sido capaz de esquecer. Assim, elas fazem
com que ele se recorde sempre. O papá deve ter-se sentido terrivelmente
humilhado. Pobre papá.
Philip levantou-se rapidamente.
- O teu pai é um homem muito orgulhoso, Mary. Calou-se. Aquela jovem tinha realmente uma
argúcia desconcertante. Observou-a atentamente, e de novo se sentiu comovido
e perturbado.
- Sim, muito orgulhoso, Philip - retorquiu Mary. - Eu sei isso agora. Já podes ver como eu estava
enganada. Mas sei também que há mais qualquer coisa que não me
disseram. És tu capaz de me dizer?
Philip sentiu-se cheio de consternação. com mais severidade do que aquilo que realmente sentia,
retorquiu:
- Mary, minha querida. Não achas que é um pouco impertinente estarmos a discutir o teu pai desta
maneira? Achas que ele iria gostar disso?
- É claro que não. Ele não gostaria mesmo nada. Tens razão, Philip.
Colocou os livros de lado, e a expressão do seu rosto era tão tranqüila que parecia impossível.
- Irás tentar esquecer tudo isto, Mary? - perguntou Philip, ansioso. - Achas que isso poderá fazer
com que as coisas passem a ser diferentes entre nós os dois?
Mary ergueu-se. A sua cabeça ficava um pouco acima da dele. Os seus olhos eram de novo cândidos
e muito azuis.
- Como é que isso podia acontecer, Philip? Estendeu-lhe a mão. Estava fria, mas firme.
- Serás capaz de dizer à tia Dorothea e ao tio Alfred que eu lhes envio todo o meu amor, e que irei
visitá-los um dia, mais tarde? - perguntou ela.
- Sim, querida, arei isso.
A pobre criança. Mas... Mary já não era uma criança.
Philip desceu as escadas lentamente. Procurou compor no rosto sombrio um sorriso animado antes
de entrar na biblioteca. Viu Jerome e de novo sentiu que a dor parecia
queimá-lo por dentro. Mas viu também Amalie, e o seu rosto ansioso olhando para ele.
Alegremente disse:
- Mary está muito satisfeita com os livros que eu lhe trouxe. Ela quer tocar Brahms, para ti, logo de
manhã, Jerome.
Capítulo sexagésimo
Jerome costumava dizer:
- O trabalho, os negócios, ou mesmo as profissões transformaram-se não apenas na fonte de prazer
da vida mas também na razão da própria existência.
Isto parecia-lhe um dos mais terríveis erros espirituais. Acusava os puritanos por isso, os puritanos
que eram masoquistas e odiavam a alegria e a vida. Ouvira Philip
falar dos últimos anos que passara em Harvard. Os escolásticos e o classicismo já não tinham como
objectivo o alargamento do conceito humano do universo, o aumento
do prazer, à medida que aumentava a
inconsciência, mas tinham-se transformado em meras preparações para fazer dinheiro.
Philip tinha amigos em Boston e Filadélfia, e Jerome sentia-se desgostoso quando Philip o
informava cinicamente de que as conversas acerca das artes e da filosofia,
as conjecturas quanto ao lugar do homem dentro da natureza e no governo, eram ridicularizadas
como ocupações dos professores e mestres loucos e aqueles que desconheciam
a realidade. Agora tudo era "negócio". Em defesa destes novos princípios, muitas pessoas de Boston
e Filadélfia costumavam censurar tudo o que não tinha nada a ver
com a capacidade de fazer dinheiro, afirmando que isso se tratava de algo não "democrático", não
"americano".
Uma onda de antieuropeísmo tinha surgido. Muitos tinham-se sentido alarmados com isto. Mas
Philip explicava que não se tratava de um antieuropeísmo em si mesmo,
mas de uma revolta culpada contra a tradição, a aristocracia, as artes e a filosofia, que o
"europeísmo" representava para os potros selvagens e amantes da luxúria
que haviam invadido as casas bancárias e a indústria da América. Era "a ódio de classes",
explicavam essas pessoas, que rapidamente estabeleciam uma "aristocracia"
muito própria, que assentava as suas bases apenas em balanços monetários.
Na Europa, "as classes" tinham tido como base a família, a tradição, a aprendizagem, o
cumprimento intelectual. Mas as "classes" americanas eram ainda mais rígidas:
quantos milhares de pares de sapatos ou de toneladas de ferro, ou de fatos pronto a vestir, ou de
locomotivas, ou carris, ou de prata, ou de carvão, tinha um determinado
homem vendido durante o ano passado?
Para Philip e Jerome isto parecia uma coisa muito mais horrível do que as antigas diferenças de
classes da Europa, e mesmo darAmérica dos primeiros tempos.
- É comparativamente fácil fazer dinheiro - dizia Philip.
- O aldeão mais simples ou o velhaco mais requintado podem fazê-lo. Assim, se não tivermos
cuidado, os novos chefes da América, os novos homens de estado e políticos,
sairão inevitavelmente de entre aqueles que não têm qualquer tradição de orgulho, dignidade e
honra. Teremos charlatães que representam milhões de loucos sem consciência
mas cheios de esperteza, sem educação, sem o sentido das responsabilidades universais e sem
qualquer tipo de exaltação. Prevejo uma altura em que a América terá
um peso específico muito grande no Mundo. Mas se esse peso não for acompanhado por um
raciocínio profundo, percepção intelectual e um altruísmo decente, então o
Mundo entrará num estado verdadeiramente caótico.
E Philip recordava a Jerome a imagem de Platão para uma
sociedade perfeita: que se mantivesse uma certa classe de homens nobres e letrados, de tradição e
intelecto, dos quais se retirassem todos os homens de estado, todos
os legisladores.
- Não é necessário que eles venham das "velhas" famílias disse Philip. - A verdade é que as "velhas"
famílias na América são quase sempre descendentes de simples
ladrões e piratas que se meteram em grandes negócios de minas, caminhos de ferro ou abatimento
de carne. Deveríamos ter monitores em todas as nossas escolas públicas,
constantemente atentos em relação às crianças, rapazes, homens jovens, que revelem uma
delicadeza intuitiva, integridade e inteligência, independentemente das suas
famílias ou dos seus antecedentes. Esses seriam separados do conjunto de todos os outros que
apenas se preocupam com a tarefa de fazer dinheiro e com o trabalho
em si mesmo. Deveria dar-se depois a esses jovens a possibilidade de continuarem os seus estudos
gratuitamente nas melhores universidades governamentais de ciência
política, onde se daria a devida ênfase à história e relações humanas. De entre estes diplomados, e
apenas de entre eles, deveriam então sair os senadores e congressistas,
os funcionários civis, os autarcas e os juizes, os oficiais das forças armadas e mesmo os presidentes
dos Estados Unidos. É esta a verdadeira democracia; a livre
escolha dos melhores. Só numa verdadeira democracia podem os melhores serem elevados a
posições de autoridade, independentemente do seu nascimento ou dos seus antecedentes.
Nestas escolas governamentais não haveria qualquer ênfase dada ao dinheiro. Pelo contrário,
sublinhar-se-ia a importância do serviço para com a nação e para com
a humanidade. Seria esta a sua vocação, o ideal pelo qual eles se regulariam e ao qual se deveriam
dedicar.
- Uma classe brâmane! - disse Jerome, soltando uma gargalhada. - Pensa só nas potencialidades
perigosas de tudo isso que acabaste de dizer!
- Não existe qualquer perigo - disse Philip muito sério. Uma aristocracia hereditária é a vossa real
classe "brâmane". A classe que eu sugiro seria retirada de todos
os níveis da sociedade, dos filhos dos trabalhadores e pedreiros aos filhos da sociedade de Boston e
de Filadélfia, dos filhos dos proprietários das plantações do
Sul aos filhos dos pobres rendeiros. Eles seriam eleitos a posições governamentais; não as
herdariam. Não haveria na América nenhuma coisa parecida com "câmara dos
lordes".
- A tua idéia cheira a mosteiro! - disse Jerome.
No entanto todo o seu cinismo e ironia, como sempre acontecia quando conversava com Philip,
eram na realidade apenas uma máscara para o seu verdadeiro interesse
e aprovação.
- A idéia do mosteiro não é muito má! - replicou Philip.
- Um corpo de homens dedicados, livres de qualquer necessidade paralisante de fazer dinheiro,
livres de trabalharem para o bem geral e para o avanço do conhecimento
e da sabedoria. Sempre concordei com a premissa da igreja romana: para fazer um melhor trabalho,
um homem deve libertar-se das suas ansiedades pessoais e do peso
da obrigação de ganhar dinheiro para alimentar a sua família.
Fez um curto silêncio, mas logo continuou, entusiasmado:
- Os diplomados das minhas hipotéticas escolas seriam suficientemente remunerados, de maneira
que não tivessem preocupações quanto à subsistência das suas famílias.
Não é o desejo do dinheiro que é a raíz de todo o mal, pessoal e nacional, mas a desesperada
necessidade dele.
Sorriu, e continuou:
- com este meu plano, o advogado venal, o comerciante untuoso, o falhado intelectual e o
incompetente nunca conseguiriam chegar à política, nem serem eleitos para
posições de profunda confiança e gravidade. Como os meus diplomados estariam imbuídos
profundamente da sua missão, não poderiam ser facilmente comprados por subomos
subversivos. Como seriam, em primeiro lugar, homens bons, nunca poderiam ser tentados por
vigaristas ou charlatães.
- Tenho o pressentimento de que tudo isso me vai custar dinheiro! - disse Jerome, pensativo.
- É verdade! - respondeu Philip sorrindo. - Poderíamos começar aqui mesmo nas escolas de
Riversend, experimentando tornar viável este meu projecto. Mas teremos de
ter longas conversas com os professores. Tentaremos encontrar os melhores alunos, isto é, não
aqueles cujos espíritos sejam meramente espertos e perspicazes, mas
aqueles que sejam pensativos, conscientes, intrinsecamente decentes, além de serem bons
estudantes. Poderíamos criar bolsas de estudo para esses rapazes. Poderíamos
dizer-lhes, desde o princípio, qual a tarefa a que se deviam dedicar.
Philip levantou-se e começou a caminhar lentamente pelo gabinete de Jerome. Notava-se, no
entanto, nos seus movimentos, uma certa ansiedade nervosa e excitada.
- América! - exclamou. - Sinto-me profético. Esta nação será grande e heróica. Erguer-se-á como
um colosso sobre o rochedo sombrio e maligno da história. Saberá
e deverá saber que o destino e os sonhos de todos os homens repousam nela, como uma criança no
colo de sua mãe. Quem poderá fazer face à América, se este país viver
no sol da nobreza e da generosidade, se todos os homens dentro das suas fronteiras puderem dizer
com sinceridade: "sou livre"?
Continuou a caminhar de um lado para o outro, cada vez mais nervoso e mais excitado. E dizia,
divertido:
- Sinto-me quase místico. A América não é simplesmente uma experiência conduzida pelos homens
em liberdade, visão e esperança. É uma experiência conduzida por Deus
para descobrir se o homem se tornou mais consciente, se amadureceu o suficiente para orientar o
seu próprio destino, se adquiriu grandeza suficiente de coração para
socorrer e ajudar os outros homens. É aqui que reside a esperança dos tempos. É aqui que se
encontra o sonho dos profetas. É este o pensamento de Platão e Sócrates,
de Jesus e Buda. Foi a todos os homens, e não apenas a Moisés, que Deus disse: "Ergue os teus
olhos para ocidente, para norte e para sul, para oriente, e abraça-o
com os teus olhos."E de certeza que ele disse isto da América. De certeza, esta é a terra prometida.
Raramente Jerome tinha visto Philip tão comovido e tão entusiasmado. Philip voltou-se para ele de
repente, os olhos chispando de excitação, as mãos engalfinhadas.
- Temos de manter a América longe dos charlatães, dos mentirosos, dos exploradores, dos loucos,
daqueles que não têm mais nada dentro de si senão o ódio. É este
o sonho. Não devemos deixar que ele se transforme num pesadelo, onde apenas o dinheiro e a
propriedade são coisas sagradas e a alma do homem fica sepultada debaixo
das pedras do materialismo e do luxo. Algo mais deverá ser ensinado nas escolas para além da
preparação para se fazer dinheiro. Algo de espiritual, algo de subjectivo
e nobre deve ser injectado nos espíritos das crianças. Qualquer coisa que não seja chauvinista e
estreita.
Pareceu meditar por instantes, mas logo continuou:
- Há centenas de anos que temos vindo a dizer que todos os homens são iguais à imagem de Deus e
perante a lei. Mas nunca conseguimos fazer com que os nossos filhos
acreditassem nisso. E se não o fizermos, estamos perdidos. É essa a grande prova e o grande
exemplo que nos dá a história. Enquanto na América existir um homem que
viva sem esperança, então toda a Nação não tem qualquer esperança. Enquanto existir um homem
sem visão, nenhum de nós a terá. É essa a tarefa para o futuro: dar
a todos os homens esperança, de modo a que eles se convençam e ganhem consciência de que não
vivem apenas para ganhar o pão de cada dia.
- Tudo isso se resume na eterna luta contra "os homens cinzentos" - disse Jerome.
- Sim - retorquiu Philip. - A luta contra aqueles que amam apenas os seus estômagos e as suas
próprias contas bancárias. A luta contra os que vêem nas suas propriedades
e
naquilo que possuem a única razão de viver. A religião, até agora, não conseguiu conquistar os
"homens cinzentos", nem mesmo combatê-los. Esta luta tem de ser iniciada.
Aliás, já devia ter sido iniciada há muito tempo.
Philip interrompeu-se por instantes. Olhou para Jerome perscrutadoramente, e disse:
- Tu estás enganado, sabes? O meu pai não é um "homem cinzento". Ele apenas precisava de
dinheiro. Alguém lhe deveria ter dito, na sua infância, que um homem não
precisa de demonstrar a sua competência e de justificar a sua existência pelo simples facto de fazer
dinheiro. Agora ele sabe isso. Sim, tu estás enganado.
Jerome ergueu-se abruptamente, e, como se não tivesse ouvido as últimas palavras de Philip, disse:
- Vamos almoçar juntos.
Philip deixou escapar um suspiro. Saíram os dois.
Jerome não voltou a falar daquilo que tinham estado a discutir, mas Philip sabia que ele estava a
pensar e que o seu primo se sentia satisfeito.
Jerome começou a falar de Mary. Amalie e a rapariga deviam estar a regressar à América depois de
alguns meses de viagem pela Europa. Tinham ido assistir ao jubileu
da rainha Vitória. Os amigos de Jerome em Inglaterra tinham conseguido apresentar tanto Amalie
como Mary na corte.
- Eu quero que a minha filha adquira uma sensação de estabilidade, de firme integração na história -
disse Jerome. Ela tem agora dezassete anos e tem um espírito
e um pensamento muito argutos. Quando ela regressar, pretende ir para a Universidade de Cornell.
Nunca imaginei que viria ainda a ver o dia da educação comum na
América!
- Mary tem uma alma extraordinária - disse Philip. Uma expressão estranha, de profunda comoção e
ansiedade,
inundou-lhe o rosto. Um pouco perturbado, afastou os olhos de Jerome, e disse:
- Espero que ela case com um homem tão grande e tão bom como ela.
- Oh, sim, eu tenho os meus planos no que lhe diz respeito
- retorquiu Jerome, com um sorriso de satisfação.
Todo o seu corpo e o seu rosto pareciam extravasar orgulho e amor. Disse ainda:
- Mas também há o meu rapaz. Ele vai para Grotonx muito em breve. Meu Deus, como o tempo
passa. É banal esta observação, não é? Mas não deixa de ser verdade. Will
vai fazer já doze anos, e tem nele as marcas de um excelente comerciante. No entanto, Amalie tem
sido extremamente cuidadosa com ele.
Will vai à escola dominical e a mãe ensina-lhe constantemente que ele tem um dever para com os
outros, acima do dever que tem para consigo mesmo. Se ele aprende
e guarda no seu coração esse ensinamento ou não, apenas o tempo o poderá dizer. Ele já tem a sua
conta bancária!
Depois do almoço, Philip regressou ao banco de seu pai. Alfred, como era costume, pareceu ficar
feliz quando viu o filho. Philip sentou-se.
- Falei com Jerome acerca daquele assunto que estivemos a discutir na noite passada, pai - disse ele.
- Acho que ele vai conceder algumas bolsas de estudo. Se juntarmos
a essas as tuas e as minhas, isto vai ser uma coisa bastante impressionante.
- Espero que não tenhas feito qualquer referência ao meu nome! - disse Alfred, rapidamente.
- Não! -mentiu Philip. Alfred disse, então:
- Há já muitos anos que deixei de odiar Jerome. Evidentemente nunca poderemos vir a ser amigos,
suponho. Nunca poderemos mesmo voltar a falar como antigamente. Eu
nunca consegui esquecer Amalie. Nunca me consegui esquecer da maneira um pouco chantagista
como Jerome tratou toda aquela situação. Mas não censuro nenhum deles,
nem os acuso, agora. Talvez me sinta simplesmente cansado.
Calou-se por momentos, e depois disse ainda:
- Tenho o pressentimento de que um destes dias Jerome e eu nos voltaremos a encontrar e... as
coisas... poderão ficar um pouco aclaradas.
- Sim! - disse Philip, com uma expressão estranha no olhar. - Penso que sim.
Alfred continuou num tom de lamento, agora:
- Sabes, Philip, pareceu-me um gesto muito vingativo, por parte de Jerome, o facto de ele nunca
mais ter permitido que Mary voltasse a visitar-nos. Eu gostei muito
daquela criança e Dorothea também. Que mal lhe poderíamos nós fazer?
- Mas tu encontras Mary muitas vezes na rua, absolutamente por acaso - disse Philip com um
sorriso. - E também nas casas dos amigos discretos e mútuos. Mary sabe
ser bastante subtil.
- Nunca considerei que isso fosse uma coisa muito justa e certa - disse Alfred, pouco à vontade. - Se
o pai lhe proibiu, talvez ela devesse ter-lhe obedecido não
só à letra, mas também nas suas intenções e no seu espírito.
- Mary sabe pensar por si própria e é uma criatura cheia de razão - replicou Philip.
Falou ao pai do regresso iminente de Mary e disse ainda:
- Eu recebi uma carta dela esta manhã e também uma fotografia.
Tirou o envelope do bolso e Alfred agarrou na fotografia com um gesto ávido. Observou aquele
rosto fino e de formas delicadamente moldadas, brilhante na sua juventude
e beleza, os olhos imensos cheios de uma luz espiritual e de resolução e vontade firme. O cabelo
muito claro, que se erguia encaracolado acima da sua testa larga,
parecia repousar-lhe sobre a cabeça ao mesmo tempo frágil e forte, em ondas largas e suaves, e
recolhia-se depois um espesso chignon na base da nuca.
- Tem um queixo adorável, forte e erguido - disse Alfred, com amor. - O nariz é exactamente como
o do tio William. Tem também muitas expressões dele. É uma criança
adorável.
- Já tem dezassete anos - disse Philip. - Já não é nenhuma criança. Nem nos anos, e muito menos no
temperamento e no carácter.
Alfred pôs os óculos para ler a inscrição na fotografia, escrita com uma caligrafia muito pequena e
muito nítida:
"Ao meu querido Philip, com todo o meu amor. Mary."
- Que comovente! - disse Alfred. - Percebe-se que por debaixo de toda a sua capa de frieza se
encontra realmente um coração cheio de calor e de doçura. Ela é-te
muito dedicada.
Philip recebeu a fotografia das mãos do pai com uma expressão mais estranha do que nunca.
- E... eu também gosto muito dela - disse Philip, com uma voz um pouco rouca.
- Quem seria capaz de não gostar dela? - disse Alfred, num tom abstracto.
Pareceu ficar pensativo por alguns momentos, e depois disse:
- Philip, tu já tens mais de trinta anos. Nunca te ouvi falar em casamento. E acho que já vai sendo
altura, sabes? Tudo quanto eu possuo será teu um dia. Devias
ter filhos.
Philip sorriu.
- Prometo-te que casarei dentro de dois anos - retorquiu. Alfred ficou imensamente satisfeito.
- Josephine Tayntor... imagino! - disse ele. - É claro que ela é três ou quatro anos mais velha do que
tu mas parece-me ainda com pouca maturidade. Ou será antes
a filha dos Goodwin? Tem apenas vinte e dois anos e tu vais visitá-la muitas vezes. Não terá a
fortuna de Miss Josephine, mas isso também não tem qualquer importância.
- Eu já fiz a minha escolha - retorquiu Philip. - Agora, por favor, não me perguntes mais nada, pai!
Suponho, no entanto, que não irás ficar desapontado.
Capítulo sexagésimo primeiro
A concessão de doze bolsas de estudo por Jerome Lindsey provocou uma enorme excitação em
Riversend. Todos ficaram mais do que satisfeitos, até que se descobriu que
aquelas bolsas de estudo não eram para o benefício exclusivo dos filhos das "velhas" famílias de
Riversend. A indignação e ultraje fizeram estremecer várias zonas
da cidade quando se descobriu, além disso, que sete.das bolsas de estudo tinham sido entregues aos
jovens filhos de um maquinista, dois agricultores, um pedreiro,
um lojista, uma costureira viúva, e por último a um rapazinho de catorze anos de idade, filho de um
bêbado da cidade. As outras cinco foram divididas entre três
filhos da respeitável classe média e dois filhos de uma "velha" família.
De novo os gritos de "niilismo, anarquismo, socialismo e revolução", perpassaram por todos os
habitantes da cidade.
Jerome teve de enfrentar vários dos seus amigos ultrajados. Apenas o general Tayntor parecia
compreender. Os outros quatro que haviam pretendido tirar satisfações
dele acabaram por se afastar, totalmente convencidos de que Jerome tinha em mente qualquer
nefando esquema para minar o governo.
Como Jerome amava a luta, sentia-se imensamente satisfeito com aqueles recontros.
A sua paz de espírito teria ficado bastante perturbada se Philip o tivesse informado de que Alfred
doava duas destas bolsas de estudo, um facto que o cuidadoso Philip
discretamente manteve em segredo.
Jerome tinha escolhido as finas escolas preparatórias privadas para os seus estudantes. Nessa altura
viu-se a braços com um novo problema, pois essas escolas foram
as primeiras a apresentarem uma recusa intransigente em aceitarem os filhos de trabalhadores sem
nome e de bêbados. Jerome conseguiu o auxílio dos seus poderosos
amigos de Boston e Nova Iorque e acabou por ser bem sucedido nas suas tentativas, mas os jornais
voltaram de novo ao tom azedo e cutilante nos comentários que faziam
a seu respeito.
- As escolas que eu escolhi são as mais excelentes para a preparação dos jovens com vista aos
deveres que devem cumprir para com o seu país - disse Jerome para Philip.
- Mas parece
que as pessoas adquiriram a idéia errada de que esses homens deveriam ser escolhidos entre as
famílias mais prósperas e de maiores tradições. Foi difícil convencê-los
de que talvez as classes trabalhadoras possam ser capazes de produzir a sua quota-parte de chefes.
Citei Abraham Lincoln e eles retorquiram-me citando por sua vez
George Washington com igual destreza. Citaram também Alexander Hamilton, e a observação deste
que escolheram era de que o povo era "uma grande besta". Eu disse-lhes
que Hamilton não se queria referir exclusivamente ao povo que trabalhava com as suas próprias
mãos. Eles retorquiram-me que não havia quaisquer provas de que ele
não quisesse significar simplesmente isso. No entanto, os presidentes das faculdades são homens
sensatos. Simplesmente não gostam de novidade; ela aborrece-os e
perturba-os, e não há nada tão obstinado como um pedante quando se vê na presença de qualquer
coisa fora do vulgar a que está habituado!
Mary e Amalie tinham regressado a Riversend. Jerome convidou Philip para jantar, para celebrar o
regresso. Ele próprio encontrava-se com uma disposição excelente,
e ficou aborrecido ao descobrir que Amalie estava curiosamente calma e de olhos sombrios.
- Eu pensei que tu gostasses de Philip - disse Jerome impaciente, quando Amalie não revelou
quaisquer sinais de animação e alegria com a notícia que ele lhe dera.
- Se quiseres, podemos ser rudes e enviar-lhe uma mensagem para que não venha.
- Não sejas louco - retorquiu Amalie.
Havia uma tonalidade acinzentada em redor da sua boca.
- É claro que eu gosto muito de Philip e sinto-me muito satisfeita por saber que ele vem cá jantar -
continuou Amalie.
- Mas acontece simplesmente que me sinto um pouco deprimida. Ou serás tu a única pessoa dentro
desta casa que tem direito a ter indisposições?
Jerome sorriu.
- Não há espaço suficiente nesta casa para duas pessoas mal dispostas - retorquiu. - E gosto que a
disposição dos outros coincida com a minha.
- Egoísta, como é costume. - comentou Amalie. Ergueu-se um pouco, e continuou:
- Não te incomodes comigo. Mas... já alguma vez te disse que não gosto da cidade, lá em baixo?
Nunca a devia visitar. No entanto, foi necessário. Precisava de umas
rendas, e acontece que só o Rogers tinha aquilo que eu queria.
Jerome olhou para ela com ar penetrante. Então a pobre
querida tinha sido de novo ultrajada! Era estranhamente pueril da parte dele acreditar que esse
"ultraje" poderia deprimir alguém tão forte como Amalie, mas por
mais estranho que possa parecer, Jerome acreditou. Beijou-a carinhosamente, como se a quisesse
consolar, e não foi capaz de compreender o motivo pelo qual ela se
agarrou a ele de súbito e soltou uma exclamação abafada. Teria ficado, decerto, surpreendido, se
soubesse que não havia naquele momento qualquer conforto para Amalie
nas suas carícias.
Porque, naquela tarde, emRiversend, Amalie encontrara-se de repente face a face com Alfred.
Amalie fora realmente ao Rogers. Saíra da loja, segurando bem alto o seu guarda-sol de renda preta,
e erguendo um pouco as suas saias de seda malva, para que não
se sujassem no pó das ruas. O seu elegante chapéu de seda amarela estava preso com fitas cor de
malva, e ela parecia bonita e jovem, como já há muito tempo não acontecia.
Caminhou ao longo do estreito passeio na direcção da sua carruagem, e foi colidir com alguém com
uma certa violência.
- Peço-lhe desculpa! - disse-lhe o cavalheiro, com perturbada cortesia. - A culpa foi minha, minha
senhora.
- Que descuidada que eu sou! - murmurou Amalie com graciosidade.
Ergueu o rosto com um sorriso e encontrou os chocados olhos de avelã de Alfred.
Estavam sozinhos no passeio, uma vez que eram apenas três horas da tarde e o calor sufocante
impedia que a habitual multidão de compradores que normalmente enchia
os passeios se encontrasse nas ruas. Aqueles que de vez em quando passavam eram relativamente
estranhos em Riversend e não reconheceram nem Amalie nem Alfred. Assim,
ficaram diante um do outro, olhando-se mutuamente, numa espécie de paralisia, indiferentes aos
poucos homens e mulheres que passavam por eles.
Alfred teria apenas de erguer delicadamente o seu chapéu e continuar a caminhar. Amalie, por seu
lado, teria apenas que murmurar umas palavras de desculpa e dirigir-se
rapidamente para a sua carruagem. No entanto, nenhum deles conseguia mover-se. Apenas podiam
fitar os olhos um do outro, sem uma palavra. O rosto de Amalie ficou
extremamente branco sob a sombra do seu guarda-sol; mesmo os seus lábios pareciam ter perdido a
cor. Por seu turno, Alfred estava imensamente pálido.
Estavam tão próximos um do outro que Alfred pôde aperceber-se da tremura que inundara a
garganta de Amalie, a violenta pulsação das suas têmporas. Dezoito anos tinham
passado entre eles, como uma rápida corrente de água, dezoito anos
de sofrimento e de solidão para Alfred, dezoito anos de ansiedade e de febril inquietude e
perplexidade para Amalie.
O seu choque mútuo mantinha-os imóveis, estáticos, numa quase paralisia. Amalie tentou quebrar
aquele encantamento e, de facto, fez uma ligeira tentativa para o
fazer. Mas os olhos de Alfred paralisavam-na. Aqueles olhos tinham-se tornado vivos de ânsia,
sofrimento, desejo, paixão dolorosa e de mais qualquer coisa que apenas
poderia ser uma ternura patética e profundamente sentida. Amalie sentiu que dentro dela algo se
revolteava com aquilo que via tão simples e tragicamente revelado.
Estendeu-lhe a mão, não tanto em sinal de cumprimento e delicadeza, mas num gesto de súplica,
profundamente impulsivo e involuntário.
Alfred olhou para aquela mão estendida, como se não pudesse acreditar no que via. E então, pegou-
lhe e segurou-a entre as suas. Por fim, disse num murmúrio:
- Não mudaste, Amalie.
- Oh, sim - ouviu-se Amalie a dizer, com a respiração entrecortada. - Sim, mudei. Oh, sim.
E o seu rosto ficou de súbito escarlate e trémulo. Ele escutou-a muito sério, como se aquilo que ela
tinha dito fosse de extrema importância para ele.
- Também eu mudei - disse Alfred, ao fim de alguns momentos.
A mão dele era quente e forte e muito gentil. Afastou a sua, mas continuava a sentir aquele calor,
aquela força, aquela gentileza.
Amalie reparou que Alfred parecia cansado e muito calmo. Ele sempre tinha sido um homem forte e
seguro de si mesmo, mas nunca tinha possuído aquela calma. Era a
mesma espécie de paz e serenidade que parecia pender por todo o lado em Hilltop, reconfortante,
serena, segura. Tinha envelhecido, mas adquirira com os anos a dignidade
da sabedoria, e não a velha dignidade consciente de um homem inseguro de si mesmo.
Por seu lado, Alfred observava que a força, que tinha sido sempre um dos traços mais marcantes do
rosto de Amalie, se transformara numa rigidez demasiado severa,
como se os ossos e os músculos tivessem ficado aprisionados numa expressão permanentemente
tensa. Entre os seus olhos, cansados e ansiosos agora, havia uma única
ruga, um pouco profunda. No entanto, Amalie continuava bela. Sempre seria bela. Alfred jamais se
esqueceria dela, da maneira como sorria, da maneira como os seus
lábios se alargavam nos cantos, em vez de se estreitarem.
- Tu tens uma filha extraordinária... Mary - disse Alfred.
- Uma jovem estupenda. Ele deve fazer-te muito feliz, Amalie.
- Sim! - murmurou ela.
Depois, em voz mais alta, Amalie disse ainda:
- E tu tens Philip.
Que estavam eles a dizer um ao outro? Estavam a falar como se pronunciassem condolências! O
coração de Amalie batia-lhe descompassado, num ritmo demasiado rápido.
O calor morno do contacto de Alfred continuava ainda na sua mão. Qualquer coisa parecia queimar-
lhe ao longo das suas pálpebras.
Naquele momento, Alfred aflorou-lhe o cotovelo com os dedos.
- A tua carruagem? - perguntou.
Ajudou-a a subir. Ela tropeçou nos folhos de malva da sua saia. Alfred esperou até que Amalie se
sentasse. A sua cabeça descoberta estava branca à luz quente do
sol, e os seus olhos fixavam-se nela perscrutadores e penetrantes.
- Adeus! - disse Amalie, tentando sorrir de novo.
- Boa tarde!-retorquiu Alfred.
Ele ficou a vê-la afastar-se. A rua pareceu ficar mais escura à sua volta. Quando chegou à esquina,
Amalie voltou a cabeça e olhou para trás. Alfred acenou-lhe com
o chapéu, e ela agitou ao de leve o seu guarda-sol em resposta.
O choque tremendo que sofrera continuou ainda dentro dela durante todo o caminho na direcção de
Hilltop. Não era capaz de compreender. Era como uma espécie de torpor
que se tivesse apoderado de todos os seus nervos, um vazio que de súbito lhe tivesse enchido o
espírito.
Capítulo sexagésimo segundo
A disposição de Jerome estava, naquela noite, verdadeiramente exuberante. Era como se ele tivesse
tido um secreto triunfo sobre um inimigo detestado. Philip escutava
com simpatia e com um ar de amável reflexão as suas palavras exultantes. Amalie, que
habitualmente entrava em qualquer conversação com espírito e à-vontade, estava,
pelo contrário, um pouco calada, como se estivesse cansada. MasMary, fazendo saltitar os seus
cintilantes olhos azuis do pai para Philip e deste de novo para o pai,
parecia absorvida. No entanto, o seu olhar detinha-se durante um pouco mais de tempo no jovem e
por vezes a radiosa palidez do seu rosto parecia reflectir um ligeiro
rubor. Por vezes, também, a sua boca tinha uma expressão ligeira de determinação, que
imediatamente se desfazia num sorriso quente quando Philip se voltava para
ela.
Fixava a mão de Philip quando ela tocava os talheres ou o copo, com uma intensidade serena.
Olhava-lhe o perfil, e parecia reter a respiração. Depois, aquela expressão
de rígida determinação e resolução parecia endurecer no seu rosto, e a sua cabeça loura erguia-se
um pouco mais.
Não foi senão ao fim de algum tempo que Amalie tomou consciência de tudo quanto se passava.
Quando o fez, ficou incrédula e perplexa. Num gesto inconsciente, abanou
a cabeça devagar, como que numa recusa estupefacta. Não era possível! Mary era apenas uma
criança. Reparou no olhar terno que Philip lançava a Mary, e não viu nada
naqueles olhos que confirmasse as suspeitas que tão avassaladoramente tinham surgido no seu
espírito. No entanto, Amalie não se sentiu reconfortada com isso. Sabia
muito bem que Philip poderia parecer tão desprendido e abstracto quanto quisesse. Amalie
conseguia ler na expressão da filha, e quase lhe sentia a tensão que a perpassava.
Sentiu-se assustada e cheia de uma súbita preocupação maternal pela filha. Conhecia Mary
demasiado bem. Sabia que a sua filha não era dada a impulsos repentinos
e que o seu espírito, uma vez decidido, era tão inflexível como uma pedra. Nem tentaria manter esse
facto em segredo.
Durante uns breves momentos, Amalie sorriu. Por mais que ele tentasse, ou mesmo que não
retribuísse o amor de Mary, Philip jamais conseguiria escapar. Mary ficaria
mutilada para toda a sua vida, como se lhe tivessem amputado uma parde de si mesma.
"Mas, ela é ainda tão jovem!", pensou Amalie, tentando reconfortar-se. "É ainda possível que o
esqueça. Não tem ainda capacidade para escolher ou decidir qual aquele
de quem gosta mais!"
Para se distrair dos pensamentos que a perturbavam, tentou interessar-se pela conversa que decorria
entre Jerome e Philip. Jerome encontrava-se numa daquelas suas
disposições, tão pouco habituais, exultantes e mordazes, em que criticava todo o mundo e tudo
quanto existia à superfície. Era essa a sua habitual reacção a uma
vitória pessoal. As críticas que fazia eram as de um vencedor, as de um homem que triunfara sobre
os seus semelhantes. Não importava que se tratasse de uma vitória
pequena ou grande e, no princípio, Amalie nunca chegava a compreender se o marido tinha
simplesmente ganho um ponto sobre um dos directores do Banco, ou se tinha
conseguido obter um grande sucesso no cumprimento de qualquer coisa de profunda importância.
Jerome estivera a contar a Philip a sua conquista e a vitória que obtivera sobre os pedantes, naquele
assunto das bolsas de
estudo. Amalie começou a sentir-se embaraçada e pouco à vontade. Uma conquista, uma vitória tão
pequena! Imaginava aqueles homens já muito idosos, cansados e sem
qualquer capacidade de resistência serem, por fim, dominados pelos argumentos determinados,
resolutos e brilhantes do excitado Jerome. Amalie quase sentiu pena desses
homens tão idosos e indefesos. O embaraço e a vergonha que sentia eram de tal maneira grandes
que não foi capaz de olhar para Philip, receando ver divertimento e
ironia no seu sorriso atencioso. Todavia, Philip não se sentia divertido; sentia apenas compaixão.
Seria possível que Jerome tivesse perdido o cuidadoso sentido
das proporções que sempre tinha parecido uma das suas mais conspícuas virtudes? Ou haveria nele
qualquer coisa que o perturbava e que lhe distorcia aquela virtude
por vezes, e então quase sempre em ocasiões insignificantes?
- É muito curiosa a extrema importância que estes pedagogos se arrogam - disse Jerome com ar
orgulhoso e desafiador. - Eles parecem estar convencidos de que os
seus
estudozinhos insignificantes são as colunas nas quais Sócrates se sentou, e que as opiniões e
sentenças que pronunciam sobre assuntos sem importância são verdadeiros
ditames de sabedoria. Não pude evitar citar a um deles uma certa frase de O Cidadão do Mundo, de
Goldsmith: "... minúsculos, os ocupantes de um átomo, arrogando-se
uma comparticipação na criação da natureza universal!"
- Suponho que isso o atirou ao tapete - disse Philip, sorrindo. - Ou terá ele citado, em resposta, o
pequeno parágrafo de Pascal que diz o seguinte: "O homem...
é um bambu pensante. O universo inteiro não tem necessidade de se armar até aos dentes para o
destruir. Um simples vapor, uma gota de água, basta para o matar. Toda
a nossa dignidade, então, consiste no pensamento. É por seu intermédio que nós nos podemos
elevar, e não pelo espaço e pelo tempo que não conseguiremos preencher.
Pelo espaço, o universo destrói-me e engole-me como um átomo; pelo pensamento eu posso
abranger todo o mundo".
- Eles não abrangem coisa nenhuma - retorquiu Jerome com ironia. - Eles são incapazes de pensar.
Quando lhes expliquei que pretendia que os meus rapazes tivessem
uma formação em ciências práticas, ficaram chocados e confundidos. Disse-lhes, então, que estudar
não significa nada se esse estudo não se transformar numa coisa
útil. A educação clássica não tem lugar no mundo muito realista, ou, quanto muito, ocupará apenas
uma ínfima parte dele.
"Nem sempre pensas assim", pensou Philip. "E será que, na realidade, pensas dessa maneira agora?"
Em voz alta, disse:
- Pelo meu lado, continuo a acreditar numa sólida aprendizagem do tipo académico. Só pelo
entendimento dos velhos pensamentos dos homens, podem os homens de hoje
compreender-se a si próprios e também qual o lugar que ocupam na natureza. Sócrates está hoje tão
fresco e tão vivo como estava há alguns milhares de anos. O espírito
do homem é a única constante, a única verdade. Lembras-te do que Bacon dizia? "Os homens
deviam pensar apenas numa coisa: se eles aplicassem uma pequena parte do
imenso desperdício de talento, tempo e fortuna que agora entregam aos assuntos e estudos de
importância inferior e valor reduzido, a uma aprendizagem sólida e sã,
isso bastaria para que eles conseguissem vencer todas as dificuldades." Por outras palavras, o
homem pode realmente juntar alguns centímetros à sua estatura pelo
simples exercício do seu pensamento. Jesus era simplesmente um cínico quando pretendia duvidar
da eficácia do pensamento.
Jerome pareceu ficar inquieto e pouco à vontade. Grossas e espessas nuvens de fumo soltaram-se-
lhe do charuto. Retorquiu, então:
- A nossa conversa de hoje pareceu-me estranhamente familiar. O meu pai e eu costumávamos
passar horas atirando um ao outro citações contraditórias.
Fez uma pausa breve, e logo continuou:
- Por vezes, quase que me convenço de que não haverá qualquer lugar no futuro para nenhum
homem, excepto aquele que tiver excluído do seu mundo pessoal tudo o que
não seja ciência e evidência científica.
?"Também não acreditas nisso que estás a dizer!", pensou Philip.
Dirigiram-se para a biblioteca, para ali tomarem brande e café. O calor que fizera durante o dia
tinha diminuído de intensidade e transformara-se numa chuva miúda
e prateada que sussurrava junto às janelas. Philip escutou o suave restolhar dos ramos do ulmeiro
junto aos beirais do telhado. Sombras difusas enchiam a sala. Jerome
perdera de súbito o seu ar despreocupado. Fumava em silêncio, de rosto franzido, movendo-se
inquieto na sua cadeira. Amalie bordava. Mary estava também sentada junto
deles e olhava para Philip. Enquanto sorvia o seu café em pequenos golos, Philip tomou consciência
de que um crescente desconforto se começava a instalar entre eles.
Havia naquela atmosfera sussurrante uma tensão que não conseguia compreender.
Uma criada entrou para acender um candeeiro, e a luz brilhou como uma pequena lua de âmbar na
penumbra da sala.
A chuva tinha parado, mas todo o mundo parecia envolto numa frescura musical de sons doces e
suaves. O céu do anoitecer tinha-se tornado lilás e prateado.
Foi então que Mary propôs que ela e Philip dessem um pequeno passeio antes de ele se ir embora
para a sua casa. Philip acedeu com amabilidade, e lançou um olhar
a Amalie como que a pedir-lhe autorização. Ela retorquiu-lhe com um ligeiro aceno de cabeça
enquanto que os seus lábios esboçavam a sombra de um sorriso. No entanto,
ficou a observar Philip e Mary quando saíram da sala, sentindo que o coração lhe estremecia no
peito, num misto de preocupação, ansiedade e satisfação. A verdade
é que lera no rosto claro e delicado de Mary qualquer coisa que a deixara mais apreensiva.
Depois de um longo momento de silêncio, Jerome disse:
- Por vezes, Philip aborrece-me. Receio bem que também ele tenha qualquer coisa de pedante.
"Ele é a tua consciência!", pensou Amalie, com uma intuição súbita e dolorosa. "Philip é aquilo que
realmente existe no teu pensamento."
Depois, em voz alta, disse:
- Oh, não, Philip não é pedante. Tu sabes que ele não o é, Jerome.
Jerome não respondeu. Voltou a encher o seu cope de brande e Amalie voltou também ao seu
bordado. Sentia-se vagamente perturbada e os seus dedos tremiam ligeiramente.
Entretanto, Mary e Philip caminhavam muito devagar pela estrada que descia de Hilltop na direcção
da cidade. Chegaram junto de um fragrante aglomerado de pinheiros
e arbustos. Por cima deles, o céu tornara-se mais escuro, e surgia aos seus olhos imenso e calmo. A
Lua era um rosto branco no céun erguendo-se lentamente por entre
névoas arroxeadas. Para ocidente, o céu era um lago de verde pálido, profundo e liso como o jade,
onde navegavam pequenas nuvens róseas. A relva parecia cintilar
como gotas de cristal. Dos fragrantes pinheiros pendiam lágrimas cristalinas. Era aquela hora do
entardecer que não lança sombras e em que tudo parece existir sem
substância. Mesmo os montes violáceos pareciam ser apenas grupos de nuvens contra o céu fresco
da noite.
Entre os pinheiros respirava-se uma paz silenciosa. Philip e Mary caminhavam vagarosamente de
mão dada. A cabeça de Mary era mais alta do que a dele e erguia-se
com uma graça orgulhosa, que Philip tanto amava. Havia uma tamanha tranqüilidade na jovem,
uma integridade tão profunda, que Philip se sentiu comovido. A sua mão
apertou mais a mão de Mary. com uma paixão profunda e simples, pensou:
"Que nada a magoe! Que nada nem ninguém se atreva a feri-la! A sua natureza não suportaria
qualquer sofrimento. Minha querida, minha muito querida!"
Chegaram a uma pequena clareira entre as árvores. Era ali o lugar favorito de ambos, onde havia
uma pedra baixa e cinzenta. Sentaram-se sobre ela, e não falaram
durante muito tempo.
Por fim, Mary disse com voz muito suave:
- Em Fevereiro, farei dezoito anos.
Abanou ao de leve a cabeça, como se a massa prateada dos seus cabelos se lhe espalhasse em cima
dos seus ombros, em vez de estar recolhida num rolo suave e cintilante
que lhe repousava no pescoço.
- Sim. Eu sei, minha querida - retorquiu Philip.
- Decidi não ir para Cornell, Philip. A princípio, pensei fazê-lo, e o papá ficou muito satisfeito. Mas
agora quero outra coisa.
Philip ergueu a mão de Mary e acariciou-a, afastando-lhe com ternura os dedos brancos e esguios.
Ela observou a sua cabeça inclinada, e o seu pálido rosto suavizou-se,
parecendo irradiar um brilho terno.
- O que é que tu queres agora, Mary? - perguntou Philip.
- Quero-te a ti, Philip - respondeu Mary.
A voz de Mary soara extremamente nítida e determinada. Philip deixou-lhe cair a mão. Ergueu os
olhos para ela, e o seu rosto perplexo empalideceu com o choque. Mexeu-se
como se pretendesse levantar-se, mas Mary pousou-lhe firmemente a mão no braço, impedindo-o.
- Tu nunca mais me perguntas, querido! - disse ela. - E nem sei porquê! Parece, portanto, que terei
de ser eu a perguntar-te. Queres casar comigo, Philip?
Philip viu-lhe os olhos brilhantes, o sorriso doce, a cintilação pálida do seu cabelo e pensou:
"Nunca imaginei que um homem pudesse sentir uma dor como esta, e não morrer por isso."
Depois, em voz alta, disse:
- Mary, olha bem para mim.
Mary obedeceu-lhe e observou-o lenta e intencionalmente. Não respondeu, até que concluiu aquele
seu deliberado e terno exame, sempre com um sorriso bailando-lhe
nos lábios, como se ele tivesse dito qualquer coisa de incoerente como uma criança.
- Estou a olhar para ti - disse ela.
Philip soltou um suspiro e voltou-lhe as costas.
- Acho que estás a ser muito estúpido, Philip - disse Mary, com uma ligeira tremura na voz. - Tu
querias que eu visse as tuas costas, não é verdade? Tu querias que
eu visse
como o teu pescoço assenta directamente nos teus ombros, não é verdade? Sim, eu vejo tudo isso,
mas vejo também o teu rosto. Vejo-o todo inteiro.
Agarrou-lhe no braço e obrigou-o a voltar-se de novo de frente para ela.
Os olhos de Philip estavam escuros e sombrios de sofrimento.
- Eu sou quinze anos mais velho do que tu.
- Quinze anos! - repetiu ela. - O que são quinze anos? Eu já não sou nenhuma criança, querido.
Acho, até, que nunca o fui.
Philip viu-lhe a boca; estava muito perto da sua. E pensou: "Não lhe faria mal nenhum se eu a
beijasse. Ou faria? Só uma vez? Apenas uma vez?"
No entanto, afastou-se dela abruptamente e disse:
- Mary, eu sempre te amei. Não sei se terá muita importância eu dizer-te isto. Pelo menos, espero
que não. Tu és tão nova, Mary, minha querida. Devo tentar fazer-te
compreender. Tu não sabes o que estás a dizer!
Teve de parar, para recuperar o fôlego, pois parecia-lhe que um nó lhe apertava a garganta. Depois,
continuou:
- Pensei em tudo isto... há muito tempo. Mas agora vejo que esse pensamento era vergonhoso e
idiota.
O desespero parecia confundi-lo.
- Tens de pensar nos teus pais - disse Philip, ainda, com voz muito débil.
Mas Mary, fixando o olhar no longe dos montes e do céu, sorriu com ar sonhador, e retorquiu-lhe:
- Philip, eu sei, agora, muitas coisas. Sei que a mamã casou com o teu pai porque ele tinha aquilo
que ela sempre desejara. Sei tudo sobre a vida dela. Quando estivemos
na Europa as duas sozinhas, contou-me tudo. Eu sei também que nasci apenas seis meses depois de
ela se ter casado com o meu papá. A mamã e eu aproximámo-nos muito
uma da outra nestes últimos tempos. Nunca fomos muito ligadas, tu sabes, mas tudo se modificou
depois dos meus catorze anos.
Interrompeu-se por momentos, mas depois continuou:
- Agora, compreendemo-nos. A mamã gosta muito de ti. O papá admira-te e sente, também, por ti
uma profunda amizade. Eles ficarão satisfeitos.
Philip soltou uma aguda exclamação de recusa e dor. Mary agarrou-o pelos braços e olhou para ele
bem de frente.
- Toda a minha vida - disse ela -, desde que te conheci, que te amo, Philip. O papá e eu entendemo-
nos bem um ao outro; o mesmo acontece agora entre mim e a mamã.
Mas
nenhum deles tem a minha total confiança, como tu tens. Tu fazes parte de mim, Philip. Nunca fui
capaz de desejar ou de querer outra pessoa qualquer. A mamã compreendeu
o que se passava comigo, e foi por isso que ela me levou para a Europa... Pelo menos, estou
convencida disso. Mas... é como se eu tivesse uma... armadura sobre o
meu coração. Não era capaz de pensar em mais nada senão em ti. Portanto, não tens de que ter
medo. Tu és tudo quanto eu tenho, e tudo quanto eu quero.
Ficou à espera, mas Philip não lhe respondeu. No entanto, Mary viu-lhe o sofrimento que o
avassalava, a força com que procurava dominar-se, a sua recusa, o seu desespero.
E disse:
- Tens de confiar em mim, Philip.
Estendeu-lhe as mãos, de palmas viradas para cima, num gesto simples e comovente de entrega e
súplica. Philip agarrou naquelas mãos oferecidas e apertou-as com força
desesperada.
- Como poderei eu aceitar, Mary? Tu és tão nova, tão... inexperiente... Seriaumcrime!
- Oh, porquê? - exclamou Mary, num grito de impaciência. - Estás a ser insultuoso, Philip. Philip,
meu querido, olha para mim, olha mesmo para mim, bem de frente,
Philip!
- Não tenho feito outra coisa senão olhar para ti, Mary. Eu... eu também tive as minhas esperanças,
os meus sonhos loucos. Mas... pensei muito!
Mary gargalhou baixinho, num doce triunfo.
- Tu pensas demasiado. Vais casar comigo, Philip? Ou vais obrigar-me a perseguir-te por todo o
lado em Riversend, até que a opinião pública te obrigue a fazeres
de mim uma mulher honesta?
Ficou de novo à espera, mas Philip não se moveu. No entanto, os seus olhos fitavam-na com uma
avidez e uma ânsia apaixonadas. Soltando um suspiro de indulgente impaciência,
Mary pôs-lhe os braços em redor do pescoço, inclinou a cabeça e beijou-o nos lábios.
Ainda durante mais alguns momentos, Philip não se mexeu. Por fim, apertou Mary contra ele numa
espécie de fervor delirante e de abandono, e comprimiu o rosto contra
os seus cabelos.
Capítulo sexagésimo terceiro
- Tu fizeste... o quê? - perguntou Amalie incrédula e perplexa, atirando para trás um anel de cabelo,
num gesto muito habitual nela quando qualquer coisa a perturbava.
- Pedi a Philip que casasse comigo. - respondeu Mary, com a sua habitual franqueza cristalina.
Philip disse:
- Por favor, Amalie. Não foi bem assim. Mary faz com que as coisas pareçam tão frias e tão pouco
naturais! É isso porque ela é sempre tão directa em tudo o que faz
e diz.
Amalie tinha começado a sorrir.
- Compreendeste-me mal, Philip - retorquiu ela. - Estou simplesmente surpreendida por não teres
sido tu a pedi-la em casamento, e que tivesse sido necessário que
ela o fizesse.
O sorriso mantinha-se inalterado no seu rosto, mas os olhos estavam ansiosos e abstractos.
Encontravam-se os três na pequena sala de estar de Amalie. O crepúsculo daquele mês de Agosto
acentuava-se lá fora, e as janelas abertas pareciam quadros representando
paisagens de um verde sombrio e tons de púrpura.
- Eu tinha a certeza de que Philip jamais conseguiria perguntar-me se eu queria casar com ele - disse
Mary, calmamente. - Tinha a certeza de que não valia a pena
esperar.
- Mas... isso foi uma coisa muito pouco própria e sensata
- murmurou Amalie.
Parecia cansada. Apoiou a cabeça contra o encosto preto e vermelho da sua cadeira de balanço.
Tinha agora quarenta anos, e a sua imponência natural aumentara com
os anos. Uma mancha espantosamente branca parecia refulgir entre as massas espessas do seu
cabelo negro, descendo-lhe da testa até à nuca. O seu rosto forte e marcado
apresentava algumas rugas muito finas; os seus olhos cor de violeta continuavam firmes e cheios de
vigor. Apenas a sua boca, embora ainda cheia e rica, revelava
uma tristeza permanente e uma amargura inquieta. Todavia, esses traços desapareciam quando ela
sorria, e nessas alturas todo o seu rosto parecia brilhar de felicidade
e humor.
Philip pensou que nem mesmo Mary tinha o esplendor de Amalie. O vestido de seda verde que
envergava, muito justo no peito, alongava-se até aos tornozelos, e era
apanhado atrás em elegantes drapeados e folhos. O tecido macio e brilhante marcava-lhe as ancas e
as coxas; os tornozelos pareciam os de uma rapariga.
Mary, alta e muito esguia, mesmo com uma certa atitude de demasiada rigidez, estava sentada na
beira de uma cadeira, e parecia ainda mais jovem no seu vestido clássico
de cor azul. Se Amalie tinha um esplendor fulgurante, esta rapariga tinha uma graciosidade
inultrapassável.
"Vale a pena ter-se um espírito sem dúvidas", pensou Philip.
De facto, Mary poderia, com certa freqüência, oferecer luta,
mas manteria sempre a sua paz interior. Essa paz tinha sido negada a Amalie. Esta tinha demasiada
imaginação.
- Não acho que tenha sido uma atitude menos própria disse Mary. - Alguém tinha de falar. E
acontece que tive de ser eu.
Philip sorriu, um pouco embaraçado. Depois, disse:
- Amalie, estou tão contente por não te importares!
- Importar? - repetiu Amalie, erguendo as sobrancelhas.
- Sinto-me, até, agradecida. Sempre gostei muito de ti, Philip. Estou orgulhosa por tu quereres casar
com Mary.
Mexeu-se, inquieta. Olhou para o chão.
- Queria pedir-lhes uma coisa, aos dois - disse, pensativa.
- Gostaria que não falassem disto ao teu pai, a Jerome, até Mary completar os dezoito anos. Isso
acontecerá em Fevereiro próximo.
Mary enrugou a testa, como se não entendesse os motivos que levavam Amalie a fazer-lhes
semelhante pedido. E perguntou:
- Mas porquê, mama?
Amalie olhou para Philip e depois para Mary, e a sua voz soou pouco natural e sem o mínimo de
candura:
- Mary, tu ainda só tens dezassete anos. Não é senão quando uma mulher atinge os dezoito anos que
ela é considerada adulta. Até lá, parece sempre uma criança aos
olhos de seu pai. Sabes muito bem que o teu pai ficaria furioso só de pensar que tu pretendes casar-
te tão cedo.
- Concordo absolutamente com o que dizes! - retorquiu Philip.
Os olhos de Amalie encontraram os de Mary. "Quando tiveres dezoito anos, serás então senhora de
ti própria", diziam os olhos de Amalie. E os olhos de Mary responderam:
"Compreendo. Tens razão."
- Se achas que é melhor assim - continuou Philip -, então é porque essa é a melhor atitude a tomar,
Amalie.
Hesitou um pouco, mas afirmou:
- Achas que Jerome poderá levantar alguma objecção? No fim de contas, eu sou quase quinze anos
mais velho do que Mary. Jerome pode pensar que sou demasiado velho
para a filha.
Sorriu, mas aquele seu sorriso trazia com ele uma ansiedade profunda.
- E, evidentemente - juntou ele, com uma hesitação dolorosa -, há ainda outras coisas a considerar.
- Nenhuma delas é importante. Não existe nada senão no teu próprio espírito - retorquiu Amalie.
Uma sombra inundara-lhe o rosto. De súbito, levantou-se e Philip ergueu-se também. Amalie
segurou-lhe na mão, inclinou a cabeça e beijou-o.
- Querido Philip! - murmurou ela com voz ligeiramente trémula.
Beijou depois Mary, afagando-lhe com ternura a cabeça.
- Parece-me que ainda ontem tu não eras mais do que uma rapariguinha orgulhosa e provocadora -
disse ela.
Havia lágrimas nos seus olhos, e o coração estremeceu-lhe no peito, de medo.
Naquela noite, Philip regressou a casa caminhando vagarosamente sob uma Lua que lançava uma
onda de prata brilhante sobre o Mundo adormecido.
Lá em baixo, no vale, brilhavam as caóticas luzes que jorravam das janelas imensas dos edifícios da
Comunidade de Riversend. Esses edifícios erguiam-se no meio de
um vasto pedaço de terra, ternamente cuidado e tratado por centenas de mãos dos trabalhadores.
Agora que os dias eram mais curtos e o entardecer mais frio, os trabalhadores
ficavam dentro dos edifícios trabalhando, lendo, ouvindo música, cantando, tocando, rindo, fazendo
planos para os trabalhos do Inverno e comentando, orgulhosos,
as colheitas do Verão.
A noite era doce, silenciosa e morna. No entanto, Philip sentia-se cheio de uma curiosa inquietação,
uma sensação de nervosismo que o perturbava. Não era capaz de
a afastar. Acabara de ficar noivo de uma rapariga que toda a vida amara. Pela primeira vez o futuro
surgia aos seus olhos cheio de promessas de felicidade, beleza
e excitação. Tinha-se tornado num verdadeiro homem, deixando para trás aquilo que até ali tinha
sido, isto é, um mero espectador estudioso e atento.
Sentia-se, no entanto, perturbado. Sabia que parte dessa perturbação provinha da sua crescente
apreensão sobre qual seria a reacção de Jerome àquele noivado. Por
muito que Jerome confiasse nele, por muita amizade que ele lhe tivesse, Mary era sempre o seu
cordeirinho preferido, a filha que ele amava acima de tudo e de todos.
Philip pensou em si próprio com uma frieza desapaixonada. Que tinha ele para oferecer a Mary?
Não possuía juventude, nem ardor, nem um corpo forte e resistente.
Via-se a si próprio com os olhos de Jerome.
Decidira, a princípio, não falar a seu pai do noivado senão em Fevereiro. Mas agora sentia-se
estranhamente impulsionado a contar-lhe tudo. Precisava de sentir conforto
e apoio de outra pessoa.
Foi encontrar Alfred sozinho, lendo na fria e solitária
bibblioteca. Alfred ergueu os olhos do livro, quando o filho entrou na sala, e sorriu-lhe com prazer.
"Ele é tão solitário!", pensou Philip. "Tenho-o abandonado muito. Estou sempre em Hilltop."
Sentou-se ao lado de Alfred, que imediatamente lhe perguntou por Amalie e Mary. Philip
respondeu-lhe com um certo constrangimento; depois, inclinou-se para o pai
e disse:
Tenho de te contar uma coisa, embora isso tenha de
ficar em segredo entre nós dois. Quando Mary fizer dezoito anos, casar-me-ei com ela.
O livro que Alfred estivera a ler escorregou-lhe das mãos. Caiu no chão, fazendo um ruído abafado.
O rosto de Alfred ergueu-se pálido e incrédulo para o filho.
- Sim! - disse Philip, sentindo que o coração lhe batia com mais força, ao reparar na expressão do
pai. - Espero que não te importes.
- Tu... queres dizer que... que te vais casar com Mary:
- perguntou Alfred, muito devagar.
- Sim - respondeu Philip.
Levantou-se, nervoso, como se obedecesse a um impulso
irresistível.
- Falámos com Amalie - continuou Philip. - Ela pareceu-me ter ficado... contente. Pareceu-me, até,
que já o esperava.
Alfred ficou em silêncio.
- Desaprovas este casamento, pai? - perguntou Philip, com ansiedade.
Alfred olhou-o fixamente.
- Não. Não, sinto-me muito feliz, Philip - retorquiu. No entanto os seus olhos cor de avelã estavam
profundamente perturbados.
- Mas... e Jerome? - perguntou, hesitante.
- Falaremos com Jerome em Fevereiro.
Philip ficou à espera da reacção do pai, mas Alfred remetera-se de novo ao silêncio. Os seus olhos,
no entanto, não desfitavam o filho. Passados alguns instantes,
Philip não suportou mais aquela espera e o olhar penetrante do pai, e exclamou:
- Achas que é uma ousadia da minha parte? Achas que eu nunca devia ter pensado em semelhante
casamento? Olhas para mim e pensas: Esta pobre criatura tem a ousadia
de pensar em casar com aquela rapariga adorável. Não é isso que estás a pensar, pai?
Alfred estremeceu como se uma faca aguçada lhe tivesse penetrado fundo na carne. Levantou-se
também e disse:
- Não. Philip. Não estou a pensar nada disso. Como é que podes acreditar numa coisa dessas? Tu és
meu filho, e para mim tu és perfeito, não só porque és meu filho,
mas por causa daquilo que tu és, por causa do homem em que te tornaste.
Pliilip deixou escapar um suspiro.
- Estou a pensar em Jerome - disse Alfred, com comiseração.
Philip encaminhou-se para junto de uma mesa e começou a erguer e a pousar os vários pequenos
objectos que se encontravam em cima da sua superfície polida.
- Também tenho estado a pensar em Jerome - murmurou.
Então, ouviu a voz do pai, forte e firme como havia muitos anos não ouvira:
- Não importa, Philip. Encontraremos uma saída. Fez um silêncio muito breve, e depois exclamou:
- Deus do céu! Acho isso uma coisa maravilhosa! Mal posso acreditar! Aquela rapariga adorável,
minha filha! Philip, olha para mim!
Capítulo sexagésimo quarto
Foi no dia quatro de Janeiro de 1889 que Dorothea Lindsey morreu.
Aquela morte chegou sem qualquer aviso prévio, excepto no facto de Dorothea, que raramente se
queixava, ter observado para Alfred, no dia anterior, que se sentia
extraordinariamente cansada. Dissera ela, então, como numa desculpa, que tinham sido as férias a
causa daquele cansaço anormal. Além disso, dissera ela ainda, com
uma certa ironia na voz, que já não era nova como tinha sido, e que quando uma mulher chegava
aos cinqüenta e quatro anos, devia ser perdoada por sentir o peso da
idade.
Alfred repetira, então, com ar jocoso:
- Cinquenta e quatro anos!
Era ligeiramente mais velho do que Dorothea, e nunca tinha pensado na passagem do tempo em
relação a si próprio. Ficara, por isso, um pouco chocado e surpreendido,
mas também de certo modo divertido. Ora essa! Parecia que tinha sido no dia anterior que ele e
Dorothea tinham passeado juntos nos jardins de Hilltop, conversando
com ar sério e compenetrado! Que idade tinham eles nessa altura? Dorothea tinha dezoito anos e ele
dezanove. Nesses tempos, Alfred fazia planos e mais planos e Dorothea escutava-o com simpatia e
compreensão. Os anos que haviam decorrido entretanto, estavam envoltos
numa névoa sombria e imprecisa, e ao longo de todo esse tempo Alfred via-se a si mesmo e a
Dorothea novos, frescos e fortes.
O sono de Alfred naquela noite foi agitado e quando despertou na manhã seguinte sentia-se
cansado. Como se sentisse o peso dos anos! Curioso! No dia anterior não
tinha sentido a idade que tinha!
Alfred e Philip desceram para o pequeno-almoço e foram ali informados por uma criada de que
Miss Dorothea não se estava a sentir bem e que tinha pedido que lhe levassem
um tabuleiro ao quarto com o pequeno-almoço.
Alfred enviou-lhe os seus desejos de rápidas melhoras e ele e Philip prepararam-se para sair para o
banco. O trenó esperava por eles lá fora, cheio de mantas de
pele, confortáveis e quentes. A luz brilhante e azul da manhã começava a iluminar o mundo de
neve; todas as árvores e arbustos estavam dobrados sob o pesado manto
branco que as cobria. O ar estava tão puro e límpido que se ouviam as campainhas dos trenós e
carruagens na cidade.
Alfred verificou de súbito que se esquecera da sua pasta de documentos em cima da mesa da sala de
entrada. Philip encontrava-se já no trenó e o primeiro impulso
de Alfred foi mandar o cocheiro buscar a pasta. No entanto, sem saber porquê, voltou para trás e foi
ele mesmo procurá-la.
A pequena e estreita sala de entrada estava escura e sombria, apenas iluminada pela claridade que
entrava pela porta. A pasta de Alfred estava pousada sobre uma
cadeira de carvalho junto da entrada. Pegou nela. Depois, qualquer coisa de muito estranho
aconteceu. Alfred sentiu como se alguém estivesse com ele na sala.
Deteve-se à escuta. Não ouviu qualquer ruído, a não ser o bater acelerado e misterioso do seu
coração. Soava forte e rápido como um tambor.
Olhou à sua volta. A luz parecia abrir caminho por entre as frestas das janelas de aço e vidro que
ladeavam a porta da rua. À sua esquerda, a porta da biblioteca
abria para a sala escurecida; apenas uma das janelas estava aberta para aquele mundo exterior,
brilhante de branco e azul. Parecia não haver um único som ou movimento
dentro daquela casa enorme e sombria.
No entanto, alguém estava ali com ele, na sala de entrada. Um estranho tremor perpassou o corpo de
Alfred. O seu coração bateu ainda com mais força. Olhou à sua
volta em busca nem ele
sabia de quê. Sentia apenas a aproximação de uma personalidade invisível. E aquela personalidade
acercava-se ainda mais dele, deslizando sem fazer um único ruído.
Involuntariamente, Alfred recuou alguns passos na direcção da porta que dava para a rua, a mão
apertando com força a pasta dos documentos. Depois, foi incapaz de
se continuar a mover. Um outro sentido desconhecido mantinha-o imóvel, esperando, sentindo,
escutando, com uma intensidade que jamais experimentara em toda a sua
vida.
Depois, por fim, soube. E, em voz alta, murmurou:
- Tio William!
A personalidade invisível pareceu deslizar suavemente à sua volta, como se estivesse satisfeita por
ter sido reconhecida, e procurasse irradiar simpatia e afeição.
De novo Alfred falou, ainda em voz mais alta:
- Tio William? É o tio William?
Já não sentia medo. Pelo contrário, sentia-se quase feliz, quase excitado, e exclamou:
- Tio William! O que pretende, tio? Há alguma coisa que eu possa fazer por si?
Olhou à sua volta, rápido e ansioso. Tão forte e tão concentrada era a influência daquilo que
permanecia invisível, que os olhos de Alfred esquadrinhavam todos os
cantos, todas as esquinas, todas as saliências. Se Mr. William Lindsey tivesse de súbito aparecido à
sua frente, Alfred não teria sentido qualquer choque, nem terror,
mas apenas uma alegre afeição e reconhecimento.
Sentiu como que um riso suave a seu lado, embora não o escutasse com os seus ouvidos, e uma
ternura imensa cresceu dentro dele. Qualquer coisa de quente e suave
pareceu pousar sobre ele, como se a mão terna do tio o acariciasse, e tivesse escutado ao mesmo
tempo ternas palavras com promessas de felicidade e conforto.
- Sim, sim! - murmurou Alfred, suavemente. - Como é bom, tio William! Estou tão contente por ter
vindo até aqui!
Teria sido um suspiro, um murmúrio, aquilo que ouvira? Tentou escutar ainda... tentou ouvir,
ansiosamente, avidamente...
A personalidade estava a afastar-se dele. Seguiu-a. Alcançou as escadas. Alfred movia-se contra
vontade, como se estivesse hipnotizado. De súbito, a personalidade
desapareceu. Alfred ficou junto às escadas, olhando para cima, tentando descortinar o corredor
escuro que se estendia para lá dos degraus. Então, qualquer coisa
o obrigou a subir as escadas a correr, com a velocidade dos seus tempos de jovem.
Uma criada, com os braços cheios de lençóis, dirigia-se para o quarto de Alfred. Voltou-se ao
escutar os passos de Alfred e olhou para ele espantada e assustada
com a expressão que lhe via no rosto. Ali estava o seu patrão, de casaco vestido e chapéu na cabeça,
a pasta na mão enluvada, tal como o tinha visto momentos antes
a sair de casa. Agora, ele olhava-a como se nunca a tivesse visto.
- Miss Dorothea! - exclamou Alfred. - Como está Miss Dorothea?
A rapariga recuou, assustada, e balbuciou:
- Miss Dorothea? Acabei de lhe ir buscar o tabuleiro ao quarto, senhor! Ela estava a dormir. Não
tocou no pequeno-
- almoço.
Alfred passou pela criada numa passada rápida e quase brusca, e abriu a porta do quarto de
Dorothea de rompante.
Dorothea estava encostada às almofadas, muito quieta, os olhos fechados. Do seu peito não saía
qualquer som, e o rosto tinha a cor da cera, com ligeiras manchas
esverdeadas.
Alfred aproximou-se da cama e olhou para a prima. Durante longos momentos não conseguiu
mexer-lhe. Dorothea sorria debilmente. As suas tranças um pouco grisalhas
estavam espalhadas sobre as almofadas como as tranças de uma rapariga. Muito tempo passou e
Alfred não sentia nada senão uma imensa rigidez que lhe paralisava os
membros e uma paz enorme que o envolvia como se o abraçasse.
Por fim, apercebeu-se de que Philip se encontrava a seu lado, lhe pousara a mão no braço e lhe
dirigia palavras que ele não ouvia. Alfred voltou-se para o filho,
confuso e perplexo.
- O tio William esteve aqui - murmurou. - Veio buscar Dorothea.
Capítulo sexagésimo quinto
- Tens a certeza de que não vais ao funeral, Jerome? perguntou Amalie.
- Não, não vou! - respondeu Jerome. - Porque é que havia de ir?
Amalie ficou chocada. Olhou para Mary, que se encontrava sentada ao seu lado direito à mesa do
pequeno-almoço. Ajovem olhava para o pai com firmeza. Estava muito
pálida, e o vestido de lã vermelha que envergava acentuava aquela palidez.
- A tia Dorothea é tua irmã, papá - murmurou Mary. Imperturbável, Jerome continuou a beber o
café. Mas
Amalie sabia que ele estava irritado. Jerome pousou a chávena, e os seus olhos escuros estreitaram-
se-lhe.
- Olha aqui, minha rapariga! - disse ele, com voz rouca.
- Não vamos agora ser sentimentalistas. Eu não vejo a "tia Dorothea", há dezoito anos, e não tenho
interesse nenhum em a ver agora que está morta. Não sou nenhum
daqueles idiotas que gostam de ir choramingar aos funerais dos que foram seus inimigos em vida.
Amalie e Mary ficaram em silêncio. No entanto, continuaram ambas a olhar para ele fixamente.
- Além disso - continuou Jerome -, não quero que nenhum membro da minha família esteja
presente!
Muito calma, Mary afirmou:
- Ela é a tia de Philip, por adopção. Nós devemos um pouco de respeito a Philip. Ele era muito
amigo dela.
Jerome bateu com força na mesa com a sua mão morena e esguia.
- A amizade que Philip sentia ou não por ela não nos diz respeito. Ele não é estúpido, e
compreenderá perfeitamente. E ponto final neste assunto!
Amalie conseguiu falar, mas a voz saiu-lhe trémula e balbuciante por entre os lábios extremamente
pálidos e exangues:
- Tua irmã! Ela nunca te fez mal, Jerome! Ocupou o lugar deixado vazio pela tua mãe. Tentou ser
tua amiga, mas tu sempre a odiaste. Oh, que poderei eu dizer? Não
haverá dentro de ti nenhum sentimento, nenhuma ternura e respeito?
Jerome levantou-se. Lançou à mulher um olhar virulento, quase mau, e vociferou:
- Lamechices sentimentais! Idiotices! "Sentimento", valha-me Deus! Só porque eu me recuso a ser e
a agir de modo repugnante vens para mim a choramingar como uma
imbecil! Não quero ouvir falar mais disto, compreendes? Compreendem as duas?
Mary ergueu-se muito devagar e saiu da sala sem pronunciar uma palavra. Jerome ficou a olhar para
ela, e depois voltou-se para Amalie num movimento quase selvagem.
- Muito bem! Conseguiste finalmente voltar a minha filha contra mim, não é verdade? Deves sentir-
te muito satisfeita com isso, suponho. Rebaixaste-me aos olhos dela
sempre que pudeste, e fizeste tudo para a separares de mim. Imagino que te sentes muito feliz agora.
Amalie levantou-se também, e encostou-se contra a mesa, como se buscasse apoio.
- Como podes tu dizer uma coisa dessas, Jerome? - murmurou. - Como podes tu ser tão cruel?
Calou-se. Os seus olhos cor de púrpura tornaram-se maiores e brilharam com mais intensidade.
- Cruel! - repetiu ela, ainda num murmúrio. Mas Jerome estava fora de si.
- Está a negar o que eu disse, minha senhora? Negas que andaste a envenenar a minha filha contra
mim, desde que ela fez catorze anos? Eu bem o vi, e andei a observar-te
desde essa altura! Não penses que fui assim tão cego que não tenha visto e percebido o que andavas
a fazer. E agora aproveitaste esta ocasião para lhe demonstrares
que eu sou um homem "cruel", um pai insensível, um mau irmão. Meu Deus!
Pronunciou as últimas palavras com uma entoação feroz de raiva e desprezo.
Amalie ficou ainda mais pálida, mas conseguiu dizer com firmeza na voz:
- O teu pai havia de gostar que tu fosses ao funeral da tua irmã!
- Não estejas para aí a falar como uma idiota!
Amalie respirou fundo, muito lentamente. Parecia fraca e sem forças. Depois, disse ainda:
- Há ainda uma outra coisa. Podes ofender os sentimentos e a moral desta comunidade quando
quiseres, e mesmo assim obteres o seu perdão e as suas desculpas. Mas
não podes ofender a sua etiqueta, nem as suas boas maneiras. Portanto...
- Moral! - gritou Jerome, com ar vicioso e mau. - Que sabes tu de "moral" ?
Amalie estremeceu e recuou, muda de espanto e de incredulidade.
- Não há dúvida que és a pessoa mais indicada para estares para aí a falar de moral! - continuou
Jerome. - Tu não tens nenhuma. Se tivesses tido algum sentido de
moral, não terias andado a atraiçoar-me pelas costas e a voltar a minha filha contra mim!
- Estás enganado! - conseguiu dizer Amalie.
Todo o seu corpo tremia, mas conseguiu ainda continuar:
- Eu não voltei Mary contra ti. Se ela não é para ti aquilo que foi, a culpa é só tua, e não minha.
Sentia-se estupidificada, incrédula com a atitude do marido. Aquele homem, ali à sua frente, era
Jerome, o seu marido, o homem que ela amava, aquele estranho de
olhar mau, cabelo grisalho e rosto ameaçador? Aquilo que lia nos seus olhos era realmente ódio e
desprezo, um ódio feroz e sem a mínima centelha de piedade ou amor?
Como é que ela não se tinha apercebido que ele era um homem cruel? Sim, decerto que tinha
percebido. Mas esmagara
dentro de si aquela revelação, espezinhara-a a seus pés, como que a querer apagar a verdade; mas
agora já não a conseguia apagar mais, não podia continuar a pretender
não ver aquilo que era uma imensa verdade naquele homem.
A voz saiu-lhe mais firme quando lhe disse, olhando-o sem fazer um único movimento:
- Tu és um homem cruel, Jerome. Acho que nunca o admiti, nem mesmo para mim própria. Sou
capaz de perdoar tudo, consigo perdoar tudo, mas não a crueldade, Jerome.
A crueldade, não!
"Sim, é essa a verdade!", pensou.
Era verdade, sim. Não conseguia perdoar a crueldade, nem conseguia encontrar qualquer
justificação para ela. Era a coisa mais imperdoável, mais viciosa, mais mesquinha.
Um homem cruel não possuía, não podia possuir, quaisquer virtudes. A crueldade impedia que elas
surgissem, anulava-as. Um homem cruel era perigoso, traiçoeiro. Podia
ter paixões, mas nunca seria capaz de sentir um amor verdadeiro.
O pensamento torturado de Amalie percorreu rápido e agudo os anos passados. Recordou-se de tudo
quanto Jerome realizara para o bem de milhares de mulheres e homens
desesperados. Se ele era na realidade um homem cruel, porque teria feito tudo aquilo?
Soube, por fim. Jerome fizera tudo aquilo porque odiava Alfred. O bem tinha sido o fruto excelente
de uma árvore envenenada. Seria isso possível? Sim, parecia que
era possível. O que Jerome fizera não lhe chegara ao coração empedernido, simplesmente porque
não lhe saíra do coração. Saíra-lhe da sua alma inquieta e sem confiança.
Amalie sabia que Jerome não era feliz porque não tinha dentro de si mesmo a capacidade de sentir a
felicidade. Era inquieto e insatisfeito porque não era possível
sentir paz. Havia em Jerome qualquer coisa de inacabado. E isso porque Jerome era um homem
cruel.
Amalie sentiu-se aterrorizada. Como seria possível viver com Jerome num clima de afeição ou
amizade, agora que sabia que ele era tão cruel, agora que o tinha admitido
para si própria?
- Então, eu sou cruel, não é verdade? - disse Jerome, com voz cortante. - Então, é isso que tu tens
andado a dizer a Mary durante todos estes anos, não é?
Amalie não conseguiu responder-lhe. Havia no seu peito uma dor profunda, um sofrimento que
quase não era capaz de suportar. E pensou:
"Que ingénua sou! Que pouco conhecia eu da maldade da alma humana! Afinal... não sei nada...
absolutamente nada!"
Mas Jerome continuava:
- Sem dúvida que lamentas o teu terno primeiro marido que tu tão facilmente atraiçoaste e
abandonaste! Porque é que não vais a correr dizer-lhe? Tenho a certeza
de que essa revelação o deixaria muito satisfeito!
O rosto de Jerome, os seus modos, os seus olhos cintilantes estavam cheios de maldade, de uma
rudeza e brutalidade violentas. Mas... havia neles também um medo misterioso.
Durante todos aqueles anos, Amalie acreditara que Alfred era o único possuído por um secreto
sentimento de inferioridade e insegurança interior. No entanto, agora
compreendia, com súbita iluminação, que tinha estado enganada. A insegurança de Alfred tinha
surgido do sentimento de gratidão que ele sentia pelo tio, da sua devoção
por William Lindsey. Caso contrário, Alfred teria sido um homem forte. Tinha sabido por Philip que
Alfred se transformara com o decorrer dos anos num homem seguro
e consciente, que era agora um homem cheio de uma sabedoria profunda.
Mas Jerome jamais seria um homem assim. Andaria sempre em luta constante com o mundo.
Jerome odiava, porque tinha medo. Odiava porque nunca seria capaz de confiar.
A compaixão apoderou-se de Amalie como uma onda envolvente. Estendeu as mãos para o marido e
disse:
- Oh, por favor, querido, não! Desculpa-me!
Mas Jerome não podia, não era capaz de se sentir comovido. Lançou a Amalie um olhar de raiva e
de desprezo e saiu da sala sem lhe responder.
Amalie ficou ali sozinha durante muito tempo.
Parecia-lhe que toda a sua vida estivera sozinha. Sentiu-se cheia de desolação, aquela desolação
terrível daqueles que se apercebem e compreendem, por fim.
"Estou tão cansada!", pensou. "Estou tão cansada de tentar compreender, de tentar ser feliz. Há em
mim também qualquer coisa de inacabado!"
Capítulo sexagésimo sexto
Dorothea foi enterrada no dia sete de Janeiro, na secção do cemitério pertencente à família.
O dia estava cristalino, branco e de um azul cintilante. Os pinheiros negros do cemitério pareciam
vergados ao peso da neve. O túmulo era um negro buraco feito na
terra pura. Dezenas de amigos de Dorothea estiveram presentes nos funerais.
Ela nunca tinha inspirado muito amor, mas inspirara respeito. A sua vida tinha estado acima de
qualquer censura ou reprovação. Estas eram virtudes frias, mas no
fundo eram apreciadas.
Alguns dos presentes cochichavam que Alfred parecia muito calmo e resignado. Olhava para o
túmulo, para os montes de fetos e flores de estufa que aguardavam à beira
da campa. Outros diziam que ele estava inconsolável, petrificado de dor, um pouco perplexo pelo
que tinha acontecido. Se assim não fosse, como explicar de outro
modo a sua atitude? Como não revelava ele quaisquer sinais de sofrimento à vista do caixão da
prima, da irmã, que o tinha servido tão lealmente e com tamanha afeição?
Philip, o filho, estava a seu lado. A pobre criatura aleijada, pensavam os amigos. Pobre Alfred
Lindsey! Não tinha nada no Mundo para o confortar, pensavam os sentimentais.
A sua primeira mulher tinha morrido, a segunda atraiçoara-o. Não tinha filhos fortes nem filhas
bonitas que lhe dessem um pouco de consolação e esperança.
Philip adivinhava-lhes os pensamentos de comiseração, e parecia até escutá-los nitidamente.
"Nenhuma consolação, nenhuma esperança!"
Mas que consolação ou que esperança havia na vida? A única coisa inevitável era o sofrimento do
homem, a morte do homem. Contudo, quando essas coisas lhe aconteciam,
o homem vulgar ficava estupefacto e incrédulo e o desespero apoderava-se dele. O homem vulgar
não fazia qualquer preparação para elas durante a sua vida, como o
faziam os chineses. Não tinha qualquer filosofia que o ajudasse a enfrentar os inevitáveis. Encarava-
os simplesmente como catástrofes e calamidades, coisas inexplicáveis,
acontecimentos que nunca deviam ocorrer.
No entanto, o homem devia saber que o sofrimento era uma coisa bem real, que teria de enfrentar a
morte e perder para essa morte tudo quanto tinha algum significado
e tudo quanto lhe era querido. A preparação para a agonia, para o afastamento, para a separação,
devia fazer parte da educação de todos os seres humanos. Sem esta
educação, sem estes ensinamentos, o homem perdia a sua dignidade, pois na dor e no sofrimento
revelava-se aos outros e a si próprio como uma criatura que estava
mal preparada. Nem mesmo a religião preparava um homem para esses acontecimentos, embora os
livros sagrados falassem extensamente do sofrimento e da morte. No entanto,
toda a ênfase era sempre dada à vida. De facto, a religião não tomava uma posição real quanto aos
aspectos negativos, e o homem não podia viver apenas pelos aspectos
positivos, uma vez que eles eram apenas uma parte da vida.
E Philip pensava:
"A Lua tem um lado escuro e um lado brilhante, mas eles são uma e a mesma coisa. Todavia,
ninguém parece dar importância a esse facto. Assim, o homem lamenta-se
em agonia profunda à vista do lado escuro, e não é capaz de encontrar qualquer consolação e
esperança."
Alfred, de sobretudo preto e a cabeça descoberta à luz do sol de Inverno, apoiava-se na sua bengala
de ébano e olhava fixamente para o túmulo.
"Adeus, querida Dorothea!", dizia ele de si para si. "Sei que agora és feliz. Espero, minha querida,
que eu tenha sido capaz de te dar também um pouco de felicidade
aqui. Esse meu desejo é tudo quanto te posso mandar. Que estúpido fui! Houve tantas vezes em que
eu poderia ter-te sorrido, em que eu me poderia ter rido contigo.
Mas não o fiz. Porquê? Não sei. Acho que foi porque nós nunca aceitámos o facto de que a morte
inevitável deve surgir um dia, e que todas as coisas caladas e jamais
realizadas ficarão para sempre ao nosso lado como túmulos fechados."
Recordou-se que Dorothea tinha um dia desejado plantar malmequeres amarelos ao longo da parede
do lado esquerdo da casa, mas que ele, num dos raros momentos de obstinação,
tinha recusado. Ora, os malmequeres davam apenas uma única flor, brilhante e dourada, era
verdade, mas durante tão pouco tempo, e depois deixavam cair as pétalas
e permaneciam como que um olho negro e pisado durante o resto do Verão. No entanto, naquele
momento, desejava com um remorso profundo e doloroso ter permitido que
Dorothea plantasse aqueles malmequeres ao longo da parede da casa. Pobre Dorothea!
Lembrou-se dos malmequeres, e de imediato pareceu-lhe ver a secreta natureza de Dorothea
completamente revelada. Dorothea tinha amado as flores pela sua fresca florescência
primaveril, pela sua veemente e apaixonada vida dourada, pela alegre afirmação que elas
representavam e a promessa que eram do renascer da esperança do Verão. Foi
então que uma dor amarga se apoderou dele. Devia tê-la deixado plantar os seus malmequeres. Mas
mandá-los-ia plantar agora, exactamente no mesmo sítio onde ela os
tinha pretendido. Daria ordens para que os plantassem também no seu túmulo. A sua mancha
amarela dançaria em sua memória.
O ministro tinha concluído as suas orações. Lançou uma mão cheia de lama e neve para dentro do
caixão que se encontrava no túmulo. Os presentes remexeram-se inquietos
e pouco à vontade. Instintivamente não gostavam daquele gesto. Apertaram-se mais uns contra os
outros e afastaram os olhos.
"Não têm coragem de enfrentar o inevitável", pensou Philip. "Quando voltarem a suas casas,
acenderão o lume mais forte nas lareiras, e muitos deles darão ordens
para que lhes tragam repetidos copos de uísque com soda; alguns outros convidarão amigos para
passarem o serão, e hão-de conversar e rir um pouco mais alto do que
é habitual!"
De súbito, houve um murmúrio de surpresa entre as pessoas presentes e como que um ligeiro
movimento de estupefacção. Uma rapariga alta e ainda jovem, envergando
um casaco de pele e trazendo a cabeça coberta com um chapéu redondo também de pele, tinha-se
aproximado do túmulo. Os seus braços estavam cheios de lírios e rosas
de estufa.
Era Mary Lindsey!
Todos olharam para ela incrédulos e curiosos, e também com um alívio peculiar, como se ela os
tivesse salvado da necessidade de olharem para a campa aberta. No entanto,
Mary não olhou para ninguém. Olhava fixamente à sua frente, os seus enormes olhos azuis lúcidos e
calmos. Dirigiu-se directamente para Alfred e Philip. Ao chegar
junto deles, sorriu ternamente.
- Mary! - murmurou Alfred.
- Minha querida! -sussurrou Philip.
Mary pôs-se na ponta dos pés e beijou a face de Alfred. E depois beijou Philip. Voltou-se então para
a campa, e deixou cair as flores sobre o caixão.
- Adeus, tia Dorothea! - disse ela, numa voz muito suave. Deixou-se ficar entre Alfred e Philip, os
braços entrelaçados
nos dois homens, e voltou a sorrir.
Mais tarde, voltou com eles para casa, para aquela enorme mansão, escura e silenciosa. Parou
quando Alfred se deteve. Ele apontou para o lado esquerdo da casa e
disse:
- vou mandar plantar malmequeres ali. Dorothea queria-os.
Mary relanceou um olhar rápido para Philip. Havia lágrimas nas suas pestanas. Voltou a pegar no
braço de Alfred e os três entraram em casa.
Os criados tinham acendido nas lareiras um lume suave. Num gesto resoluto e determinado Mary
lançou-lhes mais carvão e espevitou o lume. Acendeu as lâmpadas. Movia-se
de um lado para o outro com rapidez e ligeireza. Para Philip, pelo menos, parecia-lhe que Mary
deixava atrás de si um rasto de luz. Uma criada apressou-se a trazer
chá, biscoitos frescos e compota, e Mary serviu-os. Philip e Alfred tinham-se sentado, dominados
pelo peso da tristeza, observando a jovem; mas, quando ela lhes
serviu o chá, riu um pouco e falou com despreocupada alegria, obrigaram-se a si próprios a
responder, por delicadeza.
- Parece-me bem que terei de tomar conta de vocês dois disse Mary, sentando-se na ponta de uma
cadeira e beberricando o seu chá. - A tia Dorothea teria ficado muito
aborrecida se soubesse que vocês estavam sentados aqui tão cabisbaixos e tristes, ou, como ela
costumava dizer, "metidos nos entulhos".
Fez uma ligeira pausa, e logo afirmou:
- Afinal, é preciso continuar a viver.
Olhou para Alfred e Philip, sem quaisquer artifícios, e sorriu:
- A única pergunta é: porquê? - disse Mary.
- Porquê? - repetiu Alfred.
Mas Philip achou-se a sorrir, apesar de todos os seus esforços.
- Acho que Mary está a troçar de nós - disse ele.
Alfred tentou ficar chocado. Mas não o conseguiu. Uma ternura e um calor renovados estavam a
penetrar nele. Começou a sentir um pouco de consolação e de paz.
- Há que ter um pouco de reverência para com os mortos disse ele, depois de alguma hesitação.
- Reverência? - repetiu Mary, ao mesmo tempo que erguia as sobrancelhas. - Porquê ter por eles
mais reverência do que quando se encontravam entre nós? Eles são,
provavelmente, tão desprezíveis ou amáveis ou bons ou loucos como sempre foram. São
exactamente a mesma coisa. com a única diferença de que estão agora, possivelmente,
a começar a aprender algumas coisas mais. Seria interessante saber o que é que a tia Dorothea está a
aprender exactamente neste momento.
Riu um pouco, e continuou:
- Provavelmente está a resistir a alguma idéia que não coincide exactamente com as suas convicções
preconcebidas. A pobre querida!
Umpouco mais séria, Mary disse ainda:
- É claro que todos nós sentiremos muito a sua falta. Ela sabe isso. Ela sabe também que nós não o
poderemos evitar. Mas creio que ela acharia muito estúpido que
chorássemos e lamentássemos a sua partida. A tia Dorothea era assim.
Quando alguns amigos chegaram para apresentarem as suas condolências a Alfred e seu filho,
ficaram surpreendidos e um pouco revoltados ao escutarem risos e gargalhadas
na sala de estar. Foram encontrar Mary, enchendo, feliz, chávenas e pratos. Encontraram Alfred e
Philip, fumando, de expressão confortada e divertida.
- Ela é como a mãe! - disseram mais tarde quando, chocados e sentindo-se ultrajados, abandonaram
a casa. - Ela não tem qualquer espécie de respeito ou decência.
Surpreende-me que Alfred a receba. Quanto a Philip, ele sempre pareceu tão convencional e
educado, e no entanto lá estava ele a rir-se de qualquer observação absurda
que ela fez, e levantou-se para nos cumprimentar com um esforço de tal maneira grande que nos
deu a entender que éramos mal recebidos.
Capítulo sexagésimo sétimo
As discussões entre Jerome e Amalie eram habitualmente acaloradas e breves, e terminavam sempre
em reconciliação e risos. Mas aquela discussão, embora aparentemente
passageira, não terminou em risos. Pelo contrário, terminou numa espécie de silêncio opressivo.
Amalie, com a sua imensa e profunda capacidade de compreensão, sabia que tinha magoado
profundamente Jerome quando o acusara de crueldade. Jerome jamais a poderia
perdoar, porque ele sabia que ela tinha dito a verdade. Amalie cavara um fosso entre eles, um fosso
que jamais voltaria a desaparecer.
Os sombrios dia de Janeiro e Fevereiro decorreram no meio de uma inquietação palpável e de um
mal-estar constantes. Jerome foi sozinho a Nova Iorque em negócios.
Daquela vez, nem sequer convidou Amalie para o acompanhar. Naquela mesma viagem, levou o
filho de casa para a escola.
- Pelo menos - disse ele a Amalie - não terás muitas oportunidades de voltares William contra mim,
também.
Amalie não respondera àquela observação. Passava os dias abstracta e ausente, mergulhada num
silêncio de onde era muito difícil arrancá-la. Sentia saudades do filho.
Mas sentia também saudades de qualquer coisa mais apaixonada e mais urgente. Sentia saudades
daquilo que ela tinha acreditado ser Jerome. Não importava que o homem
da sua imaginação nunca tivesse existido. Sentia-lhe a perda tão intensamente como se ele tivesse
morrido e um estranho tivesse ocupado o seu lugar.
Embora soubesse que Jerome se sentia tão desesperado e miserável como ela própria, não teve
forças para tentar remediar aquela situação entre os dois. Sentia-se
demasiado cansada.
Mary era agora o seu conforto, a doce, suave e jovem Mary, com a sua voz neutra, os seus olhos que
nunca ficavam ensombrados por muito tempo. Mary não falava daquele
dia na sala de jantar em que Jerome insultara a mulher e a filha com tanta fúria e crueldade. Não
falava de Dorothea. Quando Philip vinha visitá-las, saudava-o com
uma luminosidade feliz no rosto, mas
as suas palavras eram sempre calmas e despreocupadas. Amalie tinha a sensação de que qualquer
coisa de muito forte e seguro estava agora a orientar os destinos daquela
casa. Qualquer coisa de muito límpido e prático estava a empurrar para fora dela teias de aranha,
sombras e inquietações. E Amalie observava Mary e Philip com um
contentamento que já não sentia havia muitos anos.
Jerome regressaria dentro de alguns dias. Mary e Philip tinham decidido que lhe deveriam falar
então nos seus planos quanto a si próprios. Mary não revelava qualquer
perturbação. Sabia o que queria. Tinha decidido o que havia de fazer. Num temperamento com tanta
determinação e clareza, não podiam existir nem medos nem apreensões.
Por vezes, Philip e Amalie trocavam olhares de calmo divertimento e ansiedade. Mas apesar de
tudo, não conseguiam evitar serem contagiados por um pouco da desenvoltura
e tranqüilidade de Mary. Ela quase os tinha convencido a acreditar que Jerome receberia a notícia
com toda a naturalidade e calma.íi Sozinha, na sua cama, à noite,
Amalie pensava:
"Afinal de contas, Philip tem sido o melhor amigo de Jerome, o seu único confidente. Eles
compreendem-se um ao outro; existe entre os dois uma afeição real. Que
objecção poderá ter Jerome contra Philip? A idade? A deformação física? Mas, isso não é nada.
Jerome é subtil; jamais será capaz de ver essas coisas em Philip. O
dinheiro? Philip tem muito e terá ainda muito mais."
Mas havia Alfred. Era Alfred que Jerome não poderia suportar. Amalie sabia que Jerome se
recordava do primo de cada vez que via reflectidas no espelho as cicatrizes
que trazia marcadas no rosto. Nessas alturas, Amalie achava que não podia censurar muito Jerome.
Se Alfred o tivesse enfrentado, homem a homem, naquele dia terrível
na biblioteca de Hiltop, se tivessem lutado ambos, de igual para igual, então talvez Jerome tivesse
esquecido. Mas Alfred não dera a Jerome a mínima hipótese; erguera
a sua bengala contra ele, como um homem ergue uma bengala contra um cão raivoso. Tinha abatido
Jerome como um homem abate um animal selvagem.
Era muito estranho. Alfred sofrera uma provocação intolerável. Jerome saíra vitorioso na sua
traição. No entanto Amalie, numa consciência quase perversa, compreendia
que de certa maneira Jerome tinha sido enganado. Era tudo muito confuso.
No dia em que Jerome devia regressar, Amalie disse a Mary:
- Vamos acabar com isto, criança. Confesso que já não consigo agüentar por mais tempo.
Mary sorriu.
- Querida mamã! - disse ela. - Não há nada a temer. Eu vou dizer simplesmente ao papá que me vou
casar com Philip muito em breve e é tudo.
Era tudo, mas não era assim tão simples.
Quase meio século de ódio e animosidade erguia-se por detrás das palavras despreocupadas da
jovem. Que poderia ela compreender de tudo isso?
com uma impaciência um pouco irritada, Amalie exclamou:
- Mary, por vezes tu falas como uma criança! Como tens ainda tão pouca experiência da vida, julgas
que essa experiência não existe. Tu apenas tiveste um contacto
muito pequeno com os seres humanos, e como o teu horizonte é tão limitado, acreditas
ingenuamente, como uma criança, que o mundo tem apenas duas dimensões. Tu vês
apenas aquilo que queres; e não podes compreender que existem imponderáveis que são
suficientemente poderosos para te negar aquilo que tu desejas.
Mary olhou para a mãe bem de frente e com uma expressão muito serena.
- Mamã! - disse, ao fim de alguns momentos de reflexão.
- Eu recuso-me a permitir que os "imponderáveis" dos outros destruam a minha vida. Sim, é simples
para mim. Eu amo Philip e ele ama-me. Nenhum de nós é responsável
por aquilo que te aconteceu a ti, ou ao tio Alfred, ou ao papá. Eu... nós não vamos deixar que aquilo
que se passou destrua a nossa própria felicidade. A própria
idéia é absurda e insensata! Se alguém está magoado, a culpa não é nossa.
Os seus olhos tornaram-se mais penetrantes e um pouco duros.
- Tu não levantas objecções quanto ao meu casamento com Philip, mamã - continuou Mary. - Nem
o tio Alfred, eu sei. Quem, então, irá fazê-lo? O papá? Não sei se ele
o fará. Mas se o fizer, isso também não tem qualquer importância para nós. Não lhe permitiremos
que interfira nas nossas vidas.
Interrompeu-se por instantes, e depois disse ainda:
- Ele também não deixou que ninguém interferisse na sua.
Havia muito tempo já que Amalie tinha começado a acreditar que se sentia invariavelmente
seduzida pela lógica. Por isso, escutava atentamente aquilo que Mary estava
a dizer.
E a rapariga continuava:
- Parece-me que existem demasiadas pessoas que permitem que "os imponderáveis" as destruam. E
acontece que são sempre os "imponderáveis" dos outros. A única coisa
a fazer é olhar o problema com simplicidade e bem de frente.
Amalie retorquiu:
- E não importa quem fica magoado? Esse é um ponto de vista muito frio, Mary.
Mas Mary replicou calmamente:
- Pode ser frio, mas acho que é sensato. Como também acho que ninguém devia conseguir a
felicidade à custa de outro ser humano. Não. Mas o meu casamento com Philip
não destruirá a felicidade do papá, nem irá magoá-lo, nem lhe causará feridas irreparáveis. Por outro
lado, ele também não tem o direito de exigir que eu desista
da minha própria felicidade para que ele possa gozar até ao fim da vida um feudo que ele próprio
criou. Ninguém tem o direito de interferir com a paz e a felicidade
de outras pessoas, apenas quando se é levado por razões egoístas e preconceitos. Isso é um crime.
- E se o teu pai te deserdar por tu casares com Philip? perguntou Amalie pensativa.
Mary gesticulou um pouco com as suas pequenas mãos e sorriu.
- Duvido que ele o faça - disse ela. - Mas se o fizer, perderá mais do que eu. Terei muita pena dele
se ele tomar essa atitude.
Saiu da sala para vestir o casaco e pôr o chapéu para dar um pequeno passeio. Amalie ficou sozinha
junto da lareira da biblioteca e pensou vagamente:
"A pior coisa na lógica, é que se acaba sempre no meio da confusão. Olham-se e analisam-se
demasiados lados."
Respeitava a límpida frontalidade de Mary, mas reconhecia igualmente que havia na atitude da filha
um pouco de insolência. Admitia também, por outro lado, que Mary
tinha o direito à sua própria vida e à sua própria felicidade. Mas, não deveria ela qualquer coisa a
seus pais?
E Amalie continuava a pensar para si mesma:
"Existe qualquer coisa de bom na simplicidade de propósitos. Talvez isso seja o que de errado
existiu sempre em mim: nunca tive simplicidade de propósitos porque
não soube nunca realmente aquilo que queria. Comecei num lamaçal e termino num lamaçal.
Jerome e eu fomos uns insatisfeitos. Mas essa nossa insatisfação era suja.
Pelo menos Mary é límpida e afiada como a lâmina de uma faca. Tenho a certeza de que ela jamais
será cruel, brutal ou disfarçada nos seus intentos. Como nós fomos.
Talvez haja qualquer coisa de bom e de positivo, afinal, naqueles que são senhores de um espírito
simples."
Quando Mary voltou à biblioteca, envergando um vestido vermelho que lhe descia até aos
tornozelos, e um casaco de pele preta e trazendo na cabeça um chapéu redondo
também de pele,
Amalie estendeu-lhe a mão num súbito impulso de ternura. Mary beijou-a calmamente. Detestava
todos os impulsos, especialmente aqueles que tinham por base um sentimentalismo
excessivo. Calçou as luvas e sorriu.
- Está uma tarde magnífica para passear. Levo comigo um dos cães.
- Mary! - disse Amalie. - Tu tens absoluta razão, minha querida. Agarra toda a felicidade que
puderes. Nunca te deixes destruir pela confusão ou pela dúvida. Se
o fizeres, poderás tornar-te numa mulher cruel, desesperadamente cruel.
Evidentemente Amalie pensava que a sua filha era demasiado jovem e inexperiente para
compreender. Mas Mary olhava para a mãe com uma expressão muito séria e pensativa.
Por fim, abanou levemente a cabeça e disse:
- Por vezes não se pode evitar ser-se cruel. Por vezes, a vida pode ser tão destruidora que, para nos
salvarmos, é preciso sermos cruéis.
Amalie dirigiu-se até à janela para observar a filha descer a encosta da colina. Os olhos inundaram-
se de lágrimas e o coração encheu-se-lhe de ternura e gratidão.
Capítulo sexagésimo oitavo
Jerome regressou a casa com uma disposição bastante animada. Comprara a Amalie, em Nova
Iorque, um maravilhoso alfinete de peito, um camafeu, e a Mary um casaco
de arminho, com regalo e um pequeno chapéu a condizer.
Cumprimentou a mulher com a despreocupação e a afabilidade que Amalie aprendera a conhecer
como as suas reacções a uma consciência pouco tranqüila. E, seguindo subconscientemente
os princípios de que se devem apresentar aos condenados os seus pratos favoritos, mandou preparar
uma refeição elaboradamente requintada.
Jerome olhou para ambas com ar zombeteiro.
- Isto é apenas uma recepção de boas-vindas, ou deverei eu preparar-me para dar alguma coisa ou
perdoar qualquer disparate? - perguntou ele, quando começou a trinchar
um estupendo ganso recheado.
Amalie corou, mas Mary sorriu afectuosamente.
- É tudo junto, papá! - retorquiu ela com plácida compostura.
Jerome deteve-se de faca na mão e depois soltou uma gargalhada. Pousou a faca e estendeu o braço
para beliscar com ternura a face da filha.
- Seja como for, tenho a certeza de que, seja o que for que tu queiras, será sempre uma coisa
inofensiva, minha querida disse Jerome. - Que queres tu obter de mim
desta vez?
Amalie lançou à filha um olhar assustado, mas Mary continuava impassível e muito calma.
- Sugiro que apreciemos primeiro o nosso jantar - disse ela.
Por breves instantes os seus olhos suavisaram-se quase dolorosamente quando fitaram o pai. Num
gesto carinhoso afagou a mão de Jerome. Àquele gesto quase maternal,
Jerome sentiu-se lisonjeado e divertido, e tentou encontrar o olhar de Amalie para trocar com ela
um sorriso. Mas Amalie parecia absorta e distraída, brincando com
o pé do copo de vinho que tinha à sua frente.
com uma extraordinária boa disposição, Jerome deu a Amalie e Mary notícias sobre o pequeno
William.
- O rapaz entrou na escola como um caterpillar. Quando me vim embora, já ele estava a lutar contra
vários outros rapazes. E eu que tanto medo tinha de que ele fosse
demasiado tímido! Não é como o meu pai, não! Também não é como eu, nem mesmo como tu,
Amalie. A quem é que ele sairá assim?
- À tia Dorothea - afirmou Mary tranqüilamente. "Que falta de tacto!", pensou Amalie.
Mas, para sua grande surpresa, Jerome sorriu.
- Como é que tu podes saber? - perguntou ele a Mary, com ar indulgente.
Depois, juntou ainda:
- Valha-me Deus, minha querida! Acho que até tens razão! Sempre fiquei confundido com uma
certa familiariedade que notava nele... Deve ter havido um bandoleiro ou
qualquer coisa assim parecida na nossa árvore genealógica!
Amalie sentia-se imensamente surpreendida. Daquela vez, Jerome não ficara enfurecido pela
referência que a filha fizera a sua irmã, mas parecera apenas divertido
como se admitisse a parecença entre Dorothea e o seu filho William. Então, muito no fundo, ele
sempre tinha admirado Dorothea! E isso apesar de toda a incompatibilidade
que havia entre ambos, apesar do ressentimento, suspeitas e ódio! Porque é que Jerome tinha
admirado o carácter inflexível e a arrogância indómita da irmã? Porque
nele não havia nada daquelas características?
De novo Amalie sentiu crescer dentro de si uma imensa e triste piedade e uma enorme ternura pelo
marido.
Jerome estava a falar da sua visita a Jay Regan e aos seus outros amigos. Tinha jantado com o
governador. As duas mulheres escutavam-no com uma polidez pouco habitual
e atenta.
- Havia uma coisa que Philip me pediu para fazer em Nova Iorque - disse Jerome. - Julguei que ele
estivesse aqui esta noite. Escrevi-lhe a dizer quando chegava.
Mary respondeu-lhe com suavidade:
- Ele não pôde vir hoje, papá. Pediu-me que lhe apresentasse as suas desculpas.
- bom, está bem. Tenho pena - disse Jerome. - E sinto-me desapontado.
Mary olhou para a mãe, e depois perguntou:
- Tu gostas muito de Philip, não é verdade, papá?
- Ele e o meu pai foram as únicas pessoas em quem confiei na minha vida - retorquiu Jerome, com
uma curiosa suavidade na voz. - Têm a mesma integridade, a mesma
lógica calma e a mesma subtileza. Pode-se confiar em Philip. Sinto a falta dele hoje, aqui. Tinha
tantas coisas para lhe contar!
- Tu nunca o achas detestável... em nenhum aspecto, pois não? - perguntou ainda Mary.
Jerome ergueu a cabeça e fitou de testa franzida a filha.
- Estás a referir-te à sua deformidade? Nunca pensei que fosses assim tão mesquinha e vulgar,
Mary! Estou surpreendido contigo. Philip é um verdadeiro homem, em
todo o sentido da palavra. bom, mas tu és ainda muito jovem, e tens ainda a tendência para dar
muita importância ao aspecto exterior das pessoas. Nunca reparei em
nada em Philip, a não ser a excelência do seu carácter.
Amalie pousara o garfo e escutara as palavras do marido com uma atenção ansiosa. Qualquer coisa
como um suspiro escapou-se-lhe dos lábios, e de novo os seus olhos
encontraram os de Mary.
Mas já a filha dizia suavemente:
- Tens inteira razão, papá. Talvez eu seja mesquinha e vulgar, como tu dizes. A propósito, quase me
esquecia! Tenho um recado de Philip para ti, mas gostaria de
to transmitir quando estivéssemos sozinhos. Se a mamã não se importar, claro!
Quase histericamente, Amalie respondeu:
- Oh, não, claro que não me importo, Mary! Tenho a certeza de que se trata de uma coisa muito
particular.
- Não consigo imaginar nenhum recado vindo de Philip que exclua a tua mãe, Mary - retorquiu
Jerome, com um tom de censura na voz.
- Tenho a certeza de que Philip não pretendia ofender ninguém, e muito menos a mamã. Mas a
verdade é que ele me disse que a mensagem era... particular... Não se
referiu à mamã...
- Que tremendamente obstinada que tu és, minha querida
- disse Jerome. - Lá porque ele não mencionou
especificamente a tua mãe, tu concluíste que ele não queria que a tua mãe estivesse presente. Tens
uma mentalidade demasiado rigorosa, Mary.
- É a minha consciência da Nova Inglaterra! - afirmou Mary. - Portanto, depois do jantar podes ir
até ao meu quarto, papá, e escutar o recado que Philip mandou para
ti?
Jerome sentia-se satisfeito. Havia já muito tempo que Mary não o convidava para aquelas
"conversas particulares". Olhou para a filha com um amor profundo. Depois,
lançou a Amalie um olhar que levava nele um misto de satisfação, vingança e um triunfo quase
infantil. Amalie suspirou, e esboçou um ténue sorriso, enquanto levava
à testa o lenço amarfanhado.
Jerome não reparou que sua mulher mal tinha tocado na comida, que mal provara aquele jantar
excelente que tinha mandado preparar para ele. Mas Mary, reparou Amalie,
comia com o seu habitual bom apetite. Haveria alguma coisa capaz de abalar aquela criança?
Talvez. Mas muito provavelmente não haveria nada capaz de destruir o gosto
que tinha pela boa comida. Dever-se-ia isso à sua falta de sensibilidade, ou seria simplesmente
porque nada conseguia demover Mary de um propósito determinado, firmemente
decidido?
Sentindo-se quase um pouco invejosa daquela capacidade da filha, Amalie acabou por concluir que
se tratava realmente dapueta última hipótese.
Quando o jantar terminou, Jerome seguiu Mary para o seu quarto bonito e aquecido. Ela puxou uma
cadeira confortável mais para junto da lareira para que o pai se
sentasse. Acendeu-lhe depois o charuto, num gesto de deferência e amabilidade. Jerome observava-
a com ternura.
O vestido de Mary, sóbrio e castanho escuro, era alegrado na gola e nos punhos por renda irlandesa.
O seu cabelo pálido e macio, brilhava à luz do candeeiro. O seu
rosto, muito delicado, estava sereno e os olhos azuis cintilavam sorridentes mas firmes. De novo
Jerome se sentiu perplexo pela parecença extraordinária que havia
entre a filha e seu pai. Mary tinha o mesmo jeito de inclinar a cabeça, os seus ombros largos e
magros tinham a mesma compostura que os de seu avô, numa elegância
orgulhosa.
"Elaé, comoele, granito puro!", pensou Jerome.
A mão que segurava o charuto estremeceu.
Mary sentou-se ao lado do pai, cruzou os tronozelos e recostou-se na cadeira. A luz da lareira
reflectia-se no seu perfil, e Jerome sentiu uma estranha perturbação.
Aquele era o perfil de
seu pai, talvez um pouco mais suavemente moldado, talvez um pouco mais pequeno. O seu pai, nos
tempos da juventude, deveria ter sido a imagem de Mary.
- És tão parecida com o teu avô, minha querida! - disse Jerome.
- Dizes-me isso tantas vezes, papá! - retorquiu Mary, imperturbável.
- Mas não tens o hábito de fazeres citações! - continuou Jerome. - O meu pai fazia sempre citações a
propósito de tudo.
- Talvez isso seja mais fácil do que tentar encontrar as nossas próprias palavras! - observou Mary. -
Ou talvez quando se é velho, seja mais fácil recordar os pensamentos
dos outros do que os nossos próprios pensamentos. Ou então, o avô era demasiado reticente,
demasiado cauteloso. Quando citava os outros, atirava para cima desses
homens mortos toda a censura, crédito ou valor e libertava-se assim dessa mesma censura ou
admiração.
Jerome ficou sem saber se gostava das observações feitas pela filha, mas sentiu-se surpreendido
pela agudeza revelada por Mary. Pensou atentamente naquilo que ela
tinha dito, e depois afirmou com relutante surpresa:
- Quase que acredito que o meu pai agia de modo um pouco cobarde. Mas... acho este pensamento
muito pouco caritativo e bondoso. Digamos que talvez o meu pai se escondesse
detrás dessas citações que fazia.
- Isso não explica o porquê - disse Mary.
- As explicações nem sempre são amáveis, meu amor. Mas, o que querias tu dizer-me a propósito de
Philip?
Mary ergueu as mãos, num gesto muito lento e alisou o cabelo. Depois, sacudiu um pouco a saia,
alisando-a também. Por fim voltou os olhos para o pai, fitou-o abertamente,
e sem qualquer alteração na voz serena, disse:
- Philip e eu queremos casar, papá. Achámos que tu devias saber as nossas intenções imediatamente.
O charuto de Jerome encontrava-se entre os seus lábios. Muito lentamente, Jerome ergueu a mão e
retirou-o. O charuto caiu-lhe dos dedos para junto da lareira. As
suas feições escureceram-se-lhe, e os olhos estreitaram-se até mais parecerem simples frestas
relampejantes. Depois, em voz muito baixa, perguntou:
- O quê?
Mary inclinou a cabeça e esboçou um ligeiro sorriso.
- Sim, papá - retorquiu. - Nós vamo-nos casar, Philip e eu.
Não revelava qualquer agitação ou medo, embora houvesse
uma certa rigidez no seu rosto e o queixo se lhe erguesse como que a querer revelar uma decisão
indomável.
- Tu endoideceste? - perguntou Jerome, num murmúrio abafado. - Tu sabes o que estás a dizer?
- Sim, papá. Sei muito bem o que estou a dizer. Assumiu uma atitude de aberta surpresa, e
perguntou:
- Tens alguma objecção, papá?
Jerome levantou-se abruptamente. Teve de pôr as mãos nas costas da cadeira para se impedir de
cambalear.
- Tu enlouqueceste! -repetiu ele.
Sentiu dificuldade em respirar; havia como que um aperto no peito, um remoinho diante dos olhos
que o impedia de ver.
Mary ergueu-se também e fitou o pai. Depois, muito calma, disse:
- Papá, tu falaste esta noite acerca de Philip. Pensaste que eu estivesse a falar... da sua
deformidade... de uma maneira pouco delicada. Na verdade, eu estava apenas
a tentar descobrir o que tu próprio pensavas. Portanto, não pode ser contra a... deformidade... de
Philip que tu levantas objecções. Então, o que é? Será porque
eu sou ainda muito nova? Mas... Olha que não sou. Então, o que é?
" Os punhos de Jerome fecharam-se com força. Num gesto inconsciente, soergueu o punho direito,
mas logo o deixou cair ao lado do corpo, e ficou como que paralisado.
No entanto, a sua expressão adquiriu um ar mau e vicioso.
- Quem é que está por detrás disto? - perguntou.
As palavras saíram-lhe como que pronunciadas com um esforço tremendo.
- Ninguém. Apenas eu e Philip.
- Aquele miserável aleijado!
A frase soou aos ouvidos de Mary ainda mais terrível por causa da entoação com que Jerome a
pronunciara. Apoiando-se com firmeza no chão, Mary ergueu a cabeça e
uma estranha expressão inundou-lhe o rosto. Os olhos faiscaram na penumbra do quarto.
- Que coisa horrível que disseste, papá. Mas, tenho a certeza de que não era isso que querias dizer.
Não pode ser isso que tu pensas na realidade.
Mesmo apesar de toda a perturbação e de toda a raiva que sentia por aquilo que acabara de ouvir,
Jerome apercebeu-se do tom inflexível com que a filha falara. Viu-lhe
a rigidezbranca do rosto. Levou a mão ao pescoço, engoliu com esforço, e perguntou:
- A tua mãe já sabe?
Mary inclinou a cabeça, num gesto afrmativo e respondeu:
- Sim. Nós já lhe dissemos. Pareceu-me ter ficado contente.
Jerome murmurou:
- A cabra!
A expressão de Mary alterou-se de súbito. Recuou um passo, não com medo, mas com repulsa.
Fechou os olhos com força, para não ver diante dos olhos o rosto distorcido
do pai. No entanto, o seu próprio rosto mantinha-se duro e invulnerável.
Procurando respirar, Jerome falou de novo, quase incoerentemente.
- Nunca se pode confiar nela. Eu nunca confiei nela. Ela não tem qualquer centelha de dignidade,
nem honra, nenhum sentido das proporções. E fez-me isto, a mim,
à minha filha!
Em voz alta e muito dura, Mary retorquiu:
- A minha mãe não tem nada a ver com isto. Ela ficou, até, inquieta e assustada, sem saber qual seria
a tua reacção. Falámos acerca disto há muito pouco tempo. Ela
disse que eu não tinha o direito de lutar pela minha felicidade, se ela te magoasse. Eu respondi-lhe
que tu não tinhas o direito de te sentires magoado por isto.
Agora, pela primeira vez na sua vida, sentiu uma violenta emoção de raiva e desgosto. Os olhos
pareceram vacilar, inundados por uma forte cintilação azul.
- Tu não podes impedir, papá. Seja o que for que tentes fazer, não nos poderás impedir. Nunca
pensei que teria que te dizer estas palavras. Pensei na tua amizade
por Philip, pensei que alguma decência natural te faria considerar o nosso casamento com
ponderação e justiça, fossem quais fossem as tuas possíveis objecções particulares
que nada têm a ver connosco. Fazes-me sentir doente, papá.
Mas Jerome estava fora de si.
- Vejo agora por que é que ele veio até aqui, passeando-se obscenamente, falando com voz melíflua.
Ele andava atrás de ti, aquela criatura nojenta. Ele... teve a
ousadia de pensar na minha própria filha. Teve a audácia de pensar que seria capaz de trazer a sua
obscenidade e a sua vilania para dentro desta casa.
Mary sorriu estranhamente, mas não disse uma palavra. Jerome continuou, rápido e incisivo:
- Se ele pensar em pôr de novo os pés dentro desta casa, matá-lo-ei. Podes escrever-lhe a dizer isso
mesmo, àquele filho repelente de um pai abominável. Quanto a
ti, vou mandar-te embora daqui imediatamente, até que tu voltes a recordar-te de quem és e aquilo
que és... Até que te cures dessa... doença. Tu... tu animal sujo
e asqueroso!
Mary reparou que não havia no pai a mínima centelha de
raciocínio, de que qualquer coisa que ela dissesse apenas serviria para aumentar a sua fúria
enlouquecida e demente. Jerome estava para além de qualquer razão ou
de qualquer consciência. Ficou em silêncio, fitando o pai com firmeza. Jerome ergueu o punho de
novo, e vociferou:
- Ficarás aqui em casa, neste quarto, até eu resolver o que hei-de fazer contigo. Não te atrevas a sair
nem por um instante sequer, nem mesmo te atrevas a assomar
à porta. Nem cometas a audácia de dirigires a palavra a quem quer que seja.
Um relâmpago fugaz atravessou os olhos de Mary, mas ela apertou os lábios com força e não
pronunciou palavra.
- Quanto à tua mãe... e a... ele... eu próprio me encarregarei deles.
Lentamente, como se se tivesse acometido de uma súbita cegueira, cambaleou junto da cadeira, e
voltou-se. Estendeu as mãos à sua frente, como que a guiar os passos
trémulos e incertos, por entre mesas, cadeiras e candeeiros. Mary ficou a vê-lo sair do quarto. O seu
jovem coração pareceu abrir-se numa dor insuportável. Avançou
um passo na direcção do pai, mas depois deteve-se.
Jerome saiu e fechou a porta atrás de si, devagar.
Mary ergueu as mãos, tapou com elas os olhos e.soltou um suspiro profundo.
Capítulo sexagésimo nono
Amalie encontrava-se sentada no seu quarto, à espera. O lume ardia suavemente na lareira, mas
apesar disso ela sentia-se terrivelmente enregelada. Estremeceu. Ergueu
a mão lentamente e limpou o suor que lhe escorria da testa e do lábio superior.
A casa estava silenciosa. Escutou as notas do relógio da sala de entrada quando bateu o quarto de
hora e depois meia hora. Ouviu o ranger das árvores lá fora açoitadas
pelo vento intenso. A curva de uma brilhante lua em quarto-crescente cintilava através da janela.
"Como posso suportar esta espera?", pensou Amalie. "Talvez fosse melhor eu ir ter com eles."
O silêncio parecia-lhe aumentar a cada momento. Amalie tinha a sensação de se encontrar sentada
sozinha num espaço vazio, abandonada, totalmente sem esperança. As
paredes da casa, a própria lareira, a mobília, tudo lhe parecia afastar-se dela. Recordou-se que já
uma vez experimentara aquela sensação de recuo por parte da casa,
e apercebeu-se de que a casa
jamais a tinha aceite e que era precisamente por esse motivo que ela jamais tinha conseguido
encontrar uma verdadeira paz dentro das suas paredes.
"Oh, meu Deus!", pensou. "Estou tão cansada! Estou cansada de todos estes anos de ansiedade,
sofrimento, confusão e incerteza. Estou cansada de toda esta insegurança
e inquietação. Que se passa de errado comigo?"
Ficou à escuta. Não havia ainda qualquer som, qualquer movimento. Uma rajada de vento mais
forte ergueu-se de súbito, fez abanar as janelas, o lume cintilou com
mais força, e depois tudo voltou ao mesmo silêncio opressivo.
Jerome e Mary tinham partido juntos havia muito tempo. Que se estaria a passar entre eles? Amalie
não tinha ouvido nem gritos, nem vozes altas, nem exclamações.
O relógio voltou a bater as horas, num ritmo sincopado que parecia ecoar por toda a casa.
De repente, a porta abriu-se. Jerome surgiu no limiar e olhou para ela. Quando Amalie lhe viu o
rosto, levantou-se num gesto automático e involuntário, como se alguma
coisa a tivesse empurrado.
Quase falando por entre dentes, Jerome exclamou:
- Tu, cabra!
Amalie estendeu as mãos à sua frente como se quisesse defender-se. Não, não era para se defender.
Era para esconder de si o rosto de Jerome, o rosto horroroso de
Jerome.
- Tu fizeste-me istoamim! - disse ele, ainda entre dentes.
- Eu devia saber que uma mulher como tu, sem tradições, nem honra, nem decência, seria capaz de
fazer uma coisa como esta nas minhas costas. Bem, digo-te que não
o conseguirás.
O corpo de Amalie retesou-se lentamente, erguendo-se em toda a sua altura. Já não se sentia nem
aterrorizada nem chocada. Lançou a Jerome um olhar resoluto, e depois,
sem pressas passou por ele e saiu do quarto.
Dirigiu-se ao quarto de Mary. Foi encontrar a filha, sentada diante da lareira, imóvel, muito branca e
muito calma.
Quando a mãe entrou, Mary levantou-se.
- Não te preocupes, mamã! - disse Mary, com suavidade.
- Eu vou casar com Philip. Nada poderá impedir-me.
Os olhos brilhavam-lhe, indomáveis.
Aproximou-se de Amalie e rodeou-a com os braços. Amalie não se mexeu. Não tinha lágrimas.
Tinha apenas aquele imenso sofrimento dentro do coração.
- Fica comigo esta noite, mamã - disse Mary, compreendendo o que se passava com a mãe. - Dorme
comigo aqui.
- Sim!-disse Amalie.
Apoiou-se pesadamente contra a filha, sem ser capaz de dizer mais nada.
Mary conduziu-a carinhosamente para uma cadeira. Ajoelhou-se ao lado da mãe e esfregou as mãos
geladas de Amalie. Beijou-a na face e nos lábios inertes. Amalie parecia
não se dar conta de todos os gestos carinhosos da filha. Tinha o olhar vazio fixo à sua frente. Então,
ao fim de alguns momentos, começou a falar:
- Não sei o que hei- de fazer. Foi o seu rosto... ele odeia-me. Conseguiria suportar tudo, tudo, mas
não isso.
Mary ergueu as mãos da mãe e comprimiu-as contra o seu próprio rosto.
- Oh, não, mamã ele não te odeia! Ele não odeia ninguém, excepto, talvez, a si próprio. Ele está tão
confuso.
Mas a voz entrecortada de Amalie continuou:
- Todos estes anos! Foi como viver sempre à beira da catástrofe. Ambos sentíamos isso. Não sei
porquê. Havia qualquer coisa de errado connosco, dentro de nós dois.
Pensei que poderíamos ser felizes.
Apertou as palmas das mãos uma contra a outra, pareceu encolher-se na cadeira e estremeceu.
- Nós fomos felizes. Sim, tenho a certeza disso. Mas havia sempre qualquer coisa no meio, qualquer
coisa de ameaçador. Estava dentro de nós mesmos. Havia qualquer
coisa de errado. Havia sempre qualquer coisa de errado.
Mary sentou-se nos calcanhares e olhou a mãe pesarosamente. Os olhos de Amalie estavam
perturbados e quase selvagens.
- Queríamos segurança e paz e não as conseguimos conquistar. Não sei porquê. Mary, peço-te que te
recordes sempre de uma coisa acerca do teu pai. Ele foi cruel porque
teve sempre medo. Sabes o que é isso, ter medo dessa maneira?
- Não, mamã. Eu nunca tive medo. Porque nunca precisei de ter medo, como aconteceu contigo.
Mary falava com uma voz muito profunda e muito rica, cheia de comiseração e entendimento.
- Pobre mamã! Pobre papá!
- Tu não podes realmente saber, Mary. Tu não podes realmente saber!
- Eu não sei, mas posso sentir!
Num súbito estremecimento febril, Amalie agarrou nos ombros da filha com as mãos.
- Tu não deves casar-te com Philip, Mary, pelo menos não durante os tempos mais próximos. Deves
pensar no teu pai. Promete-me que fazes isso, Mary.
Mary levantou-se, e, depois de uma pausa prolongada, disse suavemente:
- Mamã, não podemos permitir que o papá perca a sua sensatez desta maneira. No teu coração, tu
sabes isso muito bem. Não deves pedir-me que faça uma coisa dessas.
Capítulo septuagésimo
O frio aumentou durante a noite. Seguiu-se-lhe uma tempestade medonha, uma trovoada que rugiu
nas asas brancas que sopravam do norte.
Quando o dia nasceu, o Mundo parecia ter-se transformado num imenso rodopio de vento e neve.
Nalguns sítios, as estradas tinham sido desnudadas e revelavam agora
a terra húmida e mole; noutros, surgiram apenas como gigantescos montes de neve. Os cimos das
colinas apareciam difusos por detrás de um imenso e agitado véu cinzento.
Riversend parecia encolher-se sob a fúria que a açoitava; ao meio-dia estava tão escuro que por todo
o lado as luzes começaram a aparecer. Os candeeiros a gás das
ruas lançavam à sua volta uma luz trémula e amarelada. No entanto, as ruas estavam vazias.
Philip e Alfred estavam sentados juntos no gabinete aquecido deste último. Havia já uma hora que
estavam os dois ali a conversar, e a sua conversa não incidia sobre
o banco.
- Sim! - disse Alfred. - Vai ao banco dele por volta das três horas. É claro que há a hipótese de ele
não ter saído de Hilltop esta manhã. Esta é a pior tempestade
que eu vi durante quase vinte anos.
Recordou-se daquela outra tempestade, na noite em que Jerome tinha voltado para casa, trazendo
tanta catástrofe e miséria a Hilltop. A tempestade de agora era como
aquela outra, selvagem, ululante, devastadora. Alfred sentia-se pouco à vontade. Olhava constante
através das janelas. Grossos flocos de neve pregavam-se contra
as vidraças, para logo serem arrastados, e de novo substituídos por outros. O lume na lareira
crepitava soltando faúlhas furiosas.
- Eu devia ter lá ido a noite passada - disse Philip. - Mas Amalie e Mary pediram-me para não o
fazer. Agora, parece-me ter sido cobardia da minha parte tê-las deixado
enfrentar tudo sozinhas.
Alfred voltou o rosto para o filho. Os seus olhos pálidos tinham ficado subitamente duros.
- Philip, parece-me que devia ser eu a levantar objecções, e não Jerome.
Philip não respondeu.
Alfred soltou um suspiro e continuou:
- No entanto, Jerome foi sempre um homem vingativo e avassalado por demasiadas paixões. Por
aquilo que eu ouvi, não mudou nem um pouco. E... porque é que ele não
havia de ter mudado? Ele já está com mais de cinqüenta anos. Se até esta altura um homem não
aprende a ser sensato e não adquire maturidade, então não há qualquer
esperança para ele. Como pode Jerome ser tão infantil!
Philip retorquiu:
- Ainda não temos qualquer prova de que ele é "infantil" no que diz respeito a este assunto, pai.
- Não! - admitiu Alfred. - Isso é verdade! Devemos reservar o nosso julgamento.
- É sempre muito duro um homem entregar uma filha que adora, mesmo se... mesmo se tudo o mais
seja satisfatório - disse Philip, com tristeza. - Não devemos censurar
demasiado Jerome, se ele levantar algumas dificuldades. No entanto, tenho confiança em todos os
nossos anos de amizade e compreensão, de trabalho e de simpatia mútua.
Ele não poderá esquecer tudo isso, decerto.
- Ficarias surpreendido se soubesses o que um homem é capaz de esquecer quando dominado por
emoções violentas disse Alfred, sombriamente. - Ele pode esquecer o amor,
a decência, a honra e a razão. Pode, nessas alturas, fazer e dizer coisas que nunca poderão ser
perdoadas. Nunca. Nunca.
Esperou um pouco, e depois disse:
- Para muitos, Dorothea pode ter parecido dura e inflexível. Mas na realidade ela não o era. Só que
não tinha compreensão para muitas coisas, ainda que essas coisas
fossem de pouca importância. Quando se tratava de questões muito importantes, revelava sempre
um ilimitado entendimento. Especialmente durante os seus últimos anos
de vida, tornou-se mais amável, mais compreensiva e mais gentil. Só gostava que ela tivesse vivido
o suficiente para ver o teu casamento com Mary. Isso tê-la-ia
feito muito feliz.
- Tu devias ter-te casado com a tia Dorothea, pai. Alfred remexeu-se na cadeira, pouco à vontade.
Corou.
- Bem, pensei nisso algumas vezes, confesso. Havia entre nós uma profunda afeição. Eu... eu tive a
sensação de que ela o esperava. Mas não teria sido justo para
com ela. Sabes, meu querido rapaz, eu nunca fui capaz de esquecer Amalie.
Olhou para a janela e observou a tempestade que continuava a rugir lá fora. Depois, disse ainda:
- Eu ainda amo Amalie, Philip. Penso que sempre a amarei.
Como se falasse em voz alta consigo mesmo, continuou:
- Vi Amalie algumas vezes, ao longe. Pensei que ela parecia infeliz e abstracta. Eu... eu nunca te
falei nisto antes, Philip. Mas agora tenho que te perguntar directamente:
ela é realmente feliz com Jerome? Ele tem sido bom para com ela? Amável, caridoso, terno? Dar-
me-ia um pouco de paz, saber ao certo se tudo isso é verdade.
Philip hesitou. Depois, pensativo, respondeu:
- Eu não sei se Amalie tem a capacidade de ser realmente feliz. Talvez no fundo não seja culpa de
Jerome.
Alfred estremeceu e perguntou ansioso:
- Queres tu dizer com isso que ela é infeliz?
- Se o é, não penso que seja culpa de Jerome.
- Ele não a compreende, então? - disse Alfred, sentindo-se imensamente comovido. - Eu... eu
também não, há muito tempo atrás. Mas os anos fizeram-me compreender.
Amalie precisa de sentir à sua volta permanência e segurança. Ela nunca a teve. Nenhum de nós...
Jerome ou eu... podíamos dar-lha. Não sei porquê. Acho que talvez
eu fosse capaz de o fazer, se as coisas tivessem sido diferentes.
Interrompeu-se durante uns instantes, e depois afirmou:
- Sim, tenho a certeza que lhe poderia ter dado toda a segurança de que ela necessitava. Quando
finalmente me apercebi disso não tive tempo para me justificar. Não
tive tempo.
Philip sentiu dentro de si uma forte emoção de triste indulgência. Começou a falar, e depois
interrompeu-se. Olhou para o pai incrédulo e soube então a verdade com
uma espécie de cega clarividência. Sim, Alfred poderia ter feito Amalie feliz, feliz como ela nunca
tinha sido antes. Alguns anos, apenas alguns anos teriam sido
necessários. Durante esse tempo, Alfred poderia ter conquistado a verdadeira sabedoria, paz e
segurança na felicidade de estar casado com Amalie. Havia pessoas que
demoravam bastante tempo a amadurecer e algumas nunca o conseguiam. Alfred encontrava-se
entre as primeiras, e Jerome, infelizmente, entre as segundas. Se Jerome
nunca tivesse regressado a Hilltop, então, em poucos anos, teria havido paz ali, e satisfação.
O coração de Philip começou a doer-lhe. Depois, disse para si próprio:
"Mas se isso tivesse acontecido, Mary teria sido minha irmã."
Poderia ele, Philip, lamentar-se? Se tivesse tido alguma hipótese, teria desejado que as coisas
fossem diferentes?
"Talvez!", pensou. "Talvez não."
A porta abriu-se, e um empregado apareceu, extremamente excitado.
- Mister Jerome Lindsey está aqui, senhor, e quer vê-lo, a si e a Mister Philip.
- Jerome! - exclamou Alfred, levantando-se.
Ia começar a andar, mas deteve-se. Voltou-se, então, lentamente para Philip.
Philip tinha-se tornado muito pálido.
- Manda-o entrar - disse Alfred.
O empregado saiu. Philip pousou uma das mãos sobre o braço do pai, e disse:
- Por favor, sejamos tão calmos quanto possível. É evidente que Jerome não está de maneira
nenhuma calmo. Se o estivesse, jamais teria vindo aqui. Posso ter a certeza
de que manténs atua calma, pai, mesmo que haja qualquer provocação da parte dele?
Alfred inclinou a cabeça, e voltou a sentar-se. As mãos tremiam-lhe. Apertou-as com força uma
contra a outra e depois pousou-as em cima da secretária. Philip, de
pé, esperava.
A porta voltou a abrir-se. Jerome apareceu no limiar, a aba do chapéu e os ombros brancos com a
neve.
Não olhou para Philip. Olhava simplesmente para Alfred. Fechou a porta atrás dele.
Através do espaço coberto pela carpete escura e quente, através do espaço de anos de ódio, loucura
e amargura, os dois homens olharam-se em silêncio. Nenhum pareceu
reparar nas mudanças que se tinham verificado no outro. Continuavam a ser novos; a infância de
ambos, a sua juventude, a sua maturidade tardia rolou à volta deles,
como uma cena dissolvendo-se para dentro de outra, um som atrás do outro. No relâmpago de um
simples momento recordaram-se de centenas de coisas, todos os anos de
inimizade, incompreensão, ódio, inveja, pequenos triunfos e vitórias devastadoras, derrotas,
humilhações e vergonhas. As suas naturezas incompatíveis continuavam
opostas, embora os anos tivessem passado por eles; Alfred e Jerome continuavam os mesmos.
Philip, sempre tão calmo e seguro em todas as emergências, não conseguia falar. Apercebia-se,
muito vagamente, de que o lume estalava na lareira, que a luz dos candeeiros
estremecia, que o vento parecia gritar junto às janelas. O silêncio dentro da sala tornou-se como
respiração retida até à sufocação. No entanto, mais do que qualquer
outra coisa, teve consciência de que Jerome fitava Alfred com uns olhos dos quais tinha
desaparecido toda a razão.
Contudo, Alfred devolvia aquele olhar implacável e mau, muito calmamente. O seu próprio rosto
tornara-se cinzento e
rígido, como se tivesse ficado chocado por aquilo que via à sua frente. Mas não se sentia com medo,
nem mesmo alarmado. A sua expressão era, de facto, calma e impassível,
mas não era a expressão de um homem que se defronta com a demência e sabe que para o bem do
homem enlouquecido não pode deixar-se ou abater por ele.
Então, a expressão de Alfred alterou-se. Philip viu queopai olhava para as cicatrizes vermelhas no
rosto de Jerome. O seu choque parecia aumentar. Os lábios tremeram-lhe,
uma das suas mãos soergueu-se, como se quisesse tapar a vista daquelas cicatrizes. Depois, caiu de
novo pesadamente sobre a mesa.
No silêncio impressionante, o som pareceu ecoar estridente.
Jerome ficou no mesmo lugar onde se encontrava, encostado contra a porta pela qual entrara. A
respiração saía-lhe abrupta por entre os lábios. Por fim, em voz muito
baixa, disse:
- Repara bem, tu! Eu só tenho uma coisa a dizer: não. Philip moveu-se inconscientemente. Jerome
apercebeu-se
daquele movimento, voltou-se para o jovem, e Philip viu-lhe o branco dos dentes quando os lábios
se lhe entreabriram num esgar de raiva e fúria.
- Tu, maldito aleijado, miserável e nojento aleijado! disse Jerome, ainda com voz baixa, mas
enrouquecida. - Tu, criatura maldita e nojenta. Não te atrevas a atravessar-te
nunca mais no meu caminho. Não deixes que alguma vez mais os meus olhos pousem sobre ti. Se o
fizeres, matar-te-ei.
Estava agora cheio de um ódio incontrolável.
- Como tiveste a ousadia de olhar para a minha filha, tu?! Como ousaste sequer pensar nela, tu!
Alfred nunca tinha visto Philip encolher-se ou recuar perante coisa nenhuma. Pela primeira vez na
vida de Philip, a luz desapareceu-lhe por completo dos olhos. Alfred
esqueceu tudo, então, excepto a agonia que via no filho, o incomensurável desespero e humilhação.
Esqueceu-se de tudo, excepto de que aquele homem amarfanhado era
o seu filho, hediondamente atacado, e que não tinha qualquer defesa. Alfred levantou-se, deu a volta
à secretária e enfrentou Jerome; entre os dois havia penas o
curto espaço de alguns centímetros. As pernas tremiam -lhe, fracas, entorpecidas, mas ardia-lhe no
peito um fogo escaldante.
- Escuta-me, Jerome Lindsey! - disse ele, muito devagar.
- Eu também tenho algumas palavras a dizer. E quero dizer-te, agora, que sou eu que proíbo que o
meu filho se case com a tua filha. Já devia ter feito isto mesmo
antes. Fui um louco ao pensar que tu poderias ter mudado, que tu poderias ter-te transformado num
homem, num homem decente e compreensivo. Vejo agora
que me enganei. Tu jamais conseguirás mudar. Eu devia ter sabido que um homem mau é incapaz
de qualquer mudança, que nunca será capaz de adquirir qualquer espécie
de compreensão e amabilidade para com os outros. Sim, fui um louco ao acreditar que poderia ainda
haver entre nós os dois qualquer coisa mais que não fosse ódio
um pelo outro.
Olharam-se os dois fixamente. Os olhos de Alfred eram inflexíveis e calmos. Os de Jerome
pareciam rodopiar como loucos dentro das órbitas.
Philip, extremamente pálido e fraco, encostava-se contra a secretária do pai. Um nó espesso
atravessava-lhe a garganta, e na boca sentia um sabor salgado e amargo.
Alfred estava a falar de novo:
- Não quero que na minha família entre nada que possa trazer consigo a mínima fealdade de
espírito. Teria medo. Não quero nada que me faça recordar a tua língua
viperina e a tua natureza infame. Tiraste-me tudo o que valia a pena. Perdoei-te, e esperava poder
também esquecer. No entanto, tu tornaste isso impossível, agora.
Voltou-se para Philip, e foi-lhe insuportável ver o filho naquela atitude. No entanto, disse,
obrigando-se a dar à voz uma entoação de força:
- Philip, compreendeste o que eu disse? Proíbo-te que cases com a filha deste homem. Se o fizeres,
contra a minha ordem e a minha vontade, jamais te voltarei a considerar
como meu filho.
Todo ele era resolução, orgulho e dignidade. Mas estava a tornar-se cada vez mais impossível
suportar a tensão do sofrimento de Philip.
- Responde-me, Philip. Vais obedecer-me?
Philip comprimiu com mais força a mão contra a secretária dopai. Porfim, respondeu:
- Sim. Obedecer-te-ei, pai.
"Meu filho!", pensou Alfred com uma dor insuportável no peito. "Meu filho, meu filho!"
Avançou um passo na direcção de Philip, e o filho tentou afastar-se da secretária. com os olhos, em
silêncio, disse ao pai, no meio da sua tortura interior:
"Está tudo bem. Não te sintas tão infeliz por minha causa. Está tudo bem. Havemos de nos arranjar
juntos, de qualquer modo."
Alfred deteve-se com a mão meio erguida na direcção de Philip, parecendo escutar, demasiado
comovido para poder falar.
Jerome olhava de um para o outro. Depois, desatou às
gargalhadas. Não se ouviu qualquer outro som na sala, senão aquele riso brutal. No entanto, Alfred,
e Philip pareciam não o ouvir. Philip estava até a tentar sorrir
para Alfred, com um encorajamento gentil.
De súbito Jerome parou de rir. Passava-se ali qualquer coisa que o perturbava e atormentava de
modo muito estranho. No entanto, disse:
- Então, está tudo combinado, sem perturbações, nem fogos de artifício. Sempre gostei de ver as
pessoas agirem de modo razoável. Assim, é tudo muito mais agradável.
"Não te importes, pai", estava Philip a dizer com os seus olhos a Alfred. "Não te importes comigo.
Não hei-de morrer por isso. Os homens não morrem por estas coisas.
Havemos de esquecer os dois, um dia."
Jerome continuava a falar:
- Sim, isto dá-me muito prazer. Esperei muito tempo por isto.
Concentrou a sua atenção em Alfred que continuava a olhar apenas para o filho, e continuou:
- Pensavas abrir o teu caminho até Hilltop através do teu filho deformado, não é verdade? Pensavas
poder introduzir-te na minha vida, e andares por ali a espiar.
Era uma bela conspiração, mas não resultou da maneira como pensavas que resultaria. Foi uma
conspiração muito estúpida e infantil.
Alfred voltou-se muito lentamente para ele, como se se tivesse esquecido da presença de Jerome no
seu gabinete, e tivesse ficado surpreendido ao descobri-lo ainda
ali. Não conseguiu falar imediatamente, mas por fim disse, numa voz muito baixa e inflexível:
- Não houve conspiração nenhuma. Ela existe apenas no teu espírito. Não quero voltar a ver Hilltop.
Tu transformaste aquela casa num lugar horroroso para mim. Nunca
quis voltar a ver-te de novo, também, nem a ninguém que te pertença.
Interrompeu-se, mas logo afirmou, como que em crescente incredulidade:
- Não o compreendo! Como é que tu pudeste viver durante tanto tempo sem conseguir adquirir
nenhuma caridade, nem decência, nem gentileza? Como é que é possível um
homem ser tão cruel?
Jerome não se mexeu. No entanto, parecia ter recuado um passo ou dois. Toda a sua virulência e
maldade pareciam ter desaparecido do seu rosto estreito e moreno.
Parecia ter ficado profundamente surpreendido, como se tivesse escutado qualquer outra coisa mais
para além de Alfred. As suas sobrancelhas apertaram-se uma contra
a outra, num esforço de concentração.
Alfred suspirou pesadamente, e disse ainda:
- Tenho-te observado durante todos estes anos. Vi o que tu fizeste. E pensei que te tinhas tornado
um homem diferente, um homem melhor. Não compreendo, não compreendo.
Abanou a cabeça, e disse ainda:
- Tenho a impressão de que não sou muito esperto.
De novo, Alfred era todo ele dignidade. Então, aoolharpara Jerome, apercebeu-se de que uma
expressão muito estranha surgira no rosto do primo. Inclinou-se um pouco
para a frente, perplexo, tentando descobrir o que era. Jerome fitou-o também, e nos seus olhos havia
um brilho muito estranho, como se estivesse a escutar qualquer
coisa com todos os seus sentidos.
Alfred ouviu a sua própria voz dizer, muito trémula e insegura:
- Acho que não temos mais nada a dizer um ao outro. Excepto uma coisa: Peço-te que não sejas
demasiado duro para aquela criança adorável. Ela é muito nova. Isto
foi... um erro. Deixa-a esquecer.
Jerome não respondeu. Alfred, sentindo-se subitamente pouco à vontade e perplexo, olhou de novo
com curiosidade para o primo. Apercebeu-se de que estava a ver em
Jerome qualquer coisa que não tinha visto nunca. Uma espécie de reflexão sóbria, uma extrema
solidão, um homem completamente vulnerável. Alfred abanou lentamente
a cabeça. Era imaginação sua, claro! Os relâmpagos e a tempestade estavam a confundi-lo.
Então, Jerome voltou-se, abriu a porta e fechou-a vagarosamente atrás de si.
Philip tinha-se sentado. Apoiara os cotovelos na secretária do pai, e tinha tapado o rosto com as
mãos.
Alfred observou-o e pensou para si mesmo que aquela era a maior dor que jamais tinha sido
obrigado a suportar, e que era mais fácil para um homem sofrer as suas
próprias agonias pessoais do que ver sofrer aqueles a quem amava.
Disse:
- Philip, meu filho!
Philip deixou cair as mãos. Olhou-o fixamente e respondeu:
- Sim, pai!
Alfred pousou a mão sobre o ombro de Philip, e ficou desesperadamente silencioso. Olhou
longamente através das janelas cobertas de neve. Por fim, afirmou:
- Não te sintas demasiado infeliz. Não compreendo algumas coisas, mas sei que tudo correrá bem,
Philip; quando olhei agora mesmo para Jerome, vi uma coisa muito
estranha! Era como ver alguém sair pela primeira vez por detrás de sombras distorcidas. Ele já não
me odeia. Sim, tenho a certeza disso:
ele já não me odeia. Não sei, mas tenho a certeza de que as coisas decorrerão bem para ti, meu
querido rapaz. Apenas um pouco mais de confiança!
Capítulo septuagésimo primeiro
Jim, enrolado em peles, estava à espera de Jerome no trenó. O velho homenzinho estava muito
inquieto e perturbado.
"Não há maneira de suportar este tempo maldito", pensou.
Era como aquela outra noite em que Mr. Jerome tinha voltado para casa. Era ainda dia, mas a
tempestade tinha escurecido de tal modo o céu que mais parecia a noite.
Jim sentia-se também assustado. Porque é que Mr. Jerome tinha ido àquele banco? Não tinha
pronunciado uma única palavra desde a altura em que tinha saído de Hilltop.
Tinha ficado apenas ali sentado, como uma imagem esculpida em pedra. Ali sentado, no trenó,
olhando fixamente à sua frente com olhos que mais pareciam pequenos berlindes
cintilantes de mármore. Qualquer coisa estava errada. Qualquer coisa tinha estado sempre errada
desde que tinham deixado Nova Iorque havia já dezanove anos. Deus
do céu, já tinham passado dezanove anos? Como o tempo passava depressa!
Os cinzentos véus de neve e vento tornaram-se mais espessos, de tal maneira que a rua ia perdendo
o seu brilho cintilante e vacilante. Então, Jim ouviu Jerome trepar
para o trenó de novo.
- Vamos para casa! - disse Jerome. Puxou as mantas até ao queixo.
- Sim, senhor - disse Jim. - Está um dia horrível, e ainda será pior à noite. Não se pode ficar hoje na
cidade.
- Não! - retorquiu simplesmente Jerome com voz abafada.
Jim fez com que os cavalos dessem a volta na rua. O trenó deslizava entre montões de neve
aglomerados junto aos passeios. Os candeeiros de gás pareciam pestanejar.
O vento chicoteava os rostos dos homens, fazia estremecer os seus chapéus, sacudia-lhes as roupas
apertada e quentes. O nariz de Jim estava entorpecido com o frio;
o velho criado fungou e pestanejou os olhos avermelhados.
Era quase impossível ver. Jim soltou um pouco mais os cavalos. Os pobres diabos saberiam como
encontrar o caminho para casa. As lâminas do trenó cortavam, guinchando,
a neve; o veículo balançava e estremecia sobre as ondulações do caminho. O vento parecia ir-se
tornando cada vez mais forte, e embatia
com tamanha violência no rosto de Jim, que ele tinha dificuldade em respirar. Jerome, afundado no
assento do trenó, continuava sem se mover e sem falar.
Os candeeiros amarelados das ruas passavam por eles como débeis luas vistas através do nevoeiro.
Riversend tinha um ar abandonado, perdido. Ninguém se atrevia a
sair a pé para a rua, enfrentando a tempestade, nem mesmo nos trenós. A neve parecia cortar,
arrastada pelo temporal violento. Uma vez, um dos cavalos tropeçou e
o trenó balançou perigosamente para um dos lados.
Amalie. Mary. Jerome limpou a neve do rosto. Ergueu-se um pouco.
- Não podes andar mais depressa? - perguntou ele.
- Não, senhor. É impossível, com esta tempestade! -disse Jim, a medo. - Os animais estão a fazer o
melhor que podem.
- Tenho que chegar a casa o mais depressa possível - disse Jerome quase gritando.
Jim esticou as rédeas. As campainhas tocaram. Os cavalos, apreensivos, lutaram desesperados,
tentando vencer a custo a subida na direcção de Hilltop.
"Tenho de chegar a casa!", pensou Jerome. "Amalie. Mary. Minhas queridas, minhas muito
queridas."
- Mais depressa! - gritou ele.
- Não posso, senhor, desculpe, mas não posso! - gritou Jim, por sua vez. - É preciso ter cuidado aqui
por estes lados. Há aqui um sítio muito traiçoeiro. Há por
aqui um dique. E não consigo ver onde é que ele fica.
Agora estava tão escuro como se fosse noite cerrada. A escuridão tornava-se cada vez mais
impenetrável. O vento rugia por entre os pinheiros invisíveis, que corriam
ao longo da estrada. O trenó baloiçava perigosamente de um lado para o outro. Os cavalos
escorregavam aqui, erguiam-se acolá, relinchavam de dor. Jerome não conseguia
ver nada, nem mesmo Jim, que se sentava à sua frente e segurava desesperadamente as rédeas.
"Amalie. Tenho de ir ter com Amalie, Tenho de lhe dizer... o quê? Que posso eu dizer-lhe. Só lhe
posso pedir que me perdoe. Tanto que ela sempre soube a meu respeito,
e que eu desconhecia por completo! Ela apercebeu-se de tudo, mas eu não o compreendi senão
agora."
Via-se a si mesmo e compreendia-se com uma nova e nítida consciência, e sentiu vergonha e
espanto. Sabia agora que sempre tinha sido dominado por um medo jamais
admitidoeconfessado, medo da sua capacidade para fazer face aos seus sonhos e aspirações. Tinha
sido um debutante, um trapalhão em tudo o que fizera. Uma vez, tinha
sonhado em se tornar um grande artista.
Então, numa altura qualquer, tinha descoberto que nunca seria grande, mas apenas agradavelmente
medíocre, e a desilusão tinha-o deixado paralisado, transformando-o
numa coisa inerte. Convencera-se nessa altura ainda que apenas subconscientemente, de que jamais
seria capaz de atingir uma posição de comando em qualquer circunstância.
Nunca tinha conseguido racionalizar aquele seu medo, nem subjugar o seu egoísmo, e esse seu
egoísmo tinha-se sempre recusado a sentir-se satisfeito com qualquer
coisa que não fosse a melhor, a maior. A sua imaginação, a única a fazer dele um homem superior,
tinha-o derrotado, não o deixando nunca sentir-se contente ou satisfeito
com aquilo que estava ao alcance das suas capacidades.
A sua vaidade tinha-o tornado apático, desinteressado, mas ele tinha sempre interpretado esta apatia
como se ela significasse um desinteresse fácil e maduro por
todas as febris lutas dos outros homens; agora, compreendia como tinha sido pueril. Ele tinha tido a
estúpida, inconfessada noção de que homens como Alfred, "os
homens cinzentos", eram exactos e invencíveis, e por isso odiava-os. Tinha racionalizado a sua
derrota inconfessada, e portanto tinha-se considerado superior aos
lutadores, não importando aquilo por que eles lutavam.
Tinha desprezado homens como Alfred por causa da sua dedicação às coisas estéreis e improdutivas
da vida, mas agora sabia que tinha realmente desprezado esses homens
pela falta de imaginação que os impedia de se aperceber que poderiam ser derrotados. Eles tinham-
se contentado com pequenas vitórias; ele, Jerome, nunca tinha conseguido
sentir-se satisfeito nem contente com coisa nenhuma que não fosse a mais resplandecente e
poderosa. Esses homens não tinham tido medo de lutar. Ele, na sua juventude,
tinha tido sempre medo das lutas, pelo receio de ser ignominiosamente vencido. Que alegria tinha
tido ao longo daqueles últimos dezanove anos, quando finalmente
realizara qualquer coisa, e provara a sua capacidade.
No entanto, teria sido muito melhor para ele se se tivesse conhecido nessa altura como se conhecia
agora.
Tinha ficado em Hilltop, sabia-o agora, não só por causa de Amalie, como tinha pensado, mas por
que tinha sentido naquela velha casa uma serenidade, uma paz, um
refúgio, uma sensação de eficácia. A casa fizera com que descansasse nele qualquer coisa de febril e
exausto.
Se ao menos tivesse podido entregar-se àquela velha casa completamente e com compreensão!
Poderia então, talvez, ter realizado mais, sem aquela sensação de ser arrastado
que o tinha feito odiar, lutar e destruir-se a si mesmo. Teria, então, tido uma vida mais feliz; teria,
também, tornado os outros mais felizes.
Via agora, com toda a nitidez, como tinha tornado Amalie miserável, por causa da sua própria
miséria. Via passar à sua frente todos os repulsivos erros que cometera,
por que tinha sido tão cego.
"Mary", pensou, "o teu pai é um louco".
- O que é que se passa agora? - gritou ele, quando reparou que o trenó se detinha abruptamente.
A voz de Jim, abafada pelo vento, chegou soprada até ele:
- Acho que é o caminho que é muito mau, senhor. Está a subir muito. Os cavalos estão a ter
problemas, parece. Vamos. Já se libertaram agora.
A casa seria quente, brilhante, acolhedora. O relógio que pertencera ao avô estaria entoando a sua
canção das horas. Haveria uma lareira acesa no seu quarto. Voltava
a casa completo e curado. Chamaria Amalie e dir-lhe-ia:
- Perdoa-me, se puderes. Perdoa-me todos estes anos, toda a minha loucura e estupidez, todas as
coisas que eu fiz, não só contra ti, mas também contra mim próprio.
Então, Amalie beijá-lo-ia, e diria .. que diria ela? Mas ele conhecia Amalie. O seu rosto mostrava
um cansaço tão grande havia tanto tempo, e tudo por sua culpa.
Será que ela se iria alegrar um pouco, quando ele lhe falasse?
Haveriam de falar muito em breve, junto ao lume da lareira ele, Amalie e Mary. E ele diria então:
- Mary, eu estava errado. Desculpa-me. Manda chamar Philip.
Philip. Via à sua frente Philip afastando-se dele, voltando-lhe as costas. Philip, que tinha sido seu
amigo. Philip tinha compreendido. Philip soubera sempre o que
dominava Jerome. com a sua amabilidade, com as suas próprias convicções profundas e com toda a
sua integridade, ele tinha tentado ajudar Jerome a encontrar-se a
si próprio. Tinha tornado coisas confusas em coisas límpidas e claras. Dirigira a energia concentrada
de Jerome, de si próprio, para os outros. Agora Jerome recordava-se
olhos muito calmos e sofredores de Philip. Sim. Ele tinha compreendido. Ele tinha dado a Jerome
uma noção de vitória. Se ele, Jerome, tinha realizado qualquer coisa
de verdadeiramente permanente em Riversend, isso de via-se a Philip.
"Como é que eu fui capaz de falar assim com ele?", pensou Jerome. "Que foi que se apoderou de
mim? Eu devia estar louco. Parece-me que estive louco toda a minha
vida!"
Os pensamentos corriam-lhe em turbilhão.
"Amanhã escreverei uma carta a Alfred", pensou. "Não pode haver nada entre nós, claro. Jamais
poderá haver, enquanto
vivermos. Mas posso escrever-lhe: Tenta esquecer aquilo que eu fiz e aquilo que eu disse.
Aconteceu há muito tempo já."
Sentia as faces rígidas, e os pés e as mãos entorpecidos. O trenó balouçava violentamente. Ouviu
Jim praguejar. Pela inclinação do trenó, soube que se encontravam
numa vertente bastante íngreme. Olhou para cima. Aquilo era uma luz, na distante janela de
Hilltop? Não era apenas um cintilar amarelado, muito breve, que logo se
perdeu de novo na neve e no vento.
"Espera por mim!", disse ele para a luz.
Então teve um pensamento extremamente curioso. O pai estava à sua espera, lá em cima, em
Hilltop. Iria encontrar o seu pai na biblioteca. Ele estaria ali, a fumar
e a ler. Ergueria os seus olhos, com um sorriso, e colocaria de lado o livro. Que iria ele citar desta
vez? Jerome sorriu em resposta. Addison? Thoreau? Whitman?
Emerson? Seria provavelmente Emerson, o jovem Emerson.
Jerome ouviu a voz do pai clara e alta acima do vento e da tempestade:
- Jerome, Jerome! Meu querido rapaz!
Amalie ouviu a porta abrir-se lá em baixo. Tinha ouvido um enorme grito, lancinante e rouco. Saiu
a correr do quarto e foi encontrar as criadas a correr também.
E havia Mary. Correu pelas escadas abaixo. Jim, sangrando de um terrível golpe na face, estava lá
em baixo, tremendo violentamente, apavorado de terror, as roupas
cobertas de neve.
Olhou para Amalie enquanto ela descia as escadas. Viu-a parar nos degraus. Ergueu a mão de súbito
à boca, os olhos desesperadamente abertos. Viu-a agarrar-se com
força ao corrimão. Mary estava atrás dela, muito pálida e imóvel.
Jim vacilou e dirigiu-se cambaleando para as duas mulheres, estendendo os braços à sua frente.
De súbito gritou:
- Socorro! Socorro! O dique! O patrão está lá em baixo, no dique!
Capítulo septuagésimo segundo
Philip desceu as escadas um pouco tarde naquela manhã de Outono. A lassidão que o tinha vindo a
enfraquecer a pouco e pouco durante os meses de Verão parecia-lhe
especialmente pesada naquele dia. Alfred queixava-se de que o seu filho estava a trabalhar de mais.
Mas sentia-se orgulhoso de Philip, orgulhoso por tudo o que ele
tinha realizado e estava a realizar.
O pequeno-almoço estava à espera dele na pequena e estreita sala que dava para o jardim. Philip
pensou:
"Que estranho é que toda esta fulgurância esteja a brilhar lá fora e nesta casa não exista senão frio e
escuridão!"
Alfred tinha ido para o banco. Philip começou o seu pequeno-almoço sozinho e sem apetite. Havia
cartas para ele. Separou-as rapidamente, numa ansiedade febril, e
segurou por fim uma entre os dedos, com uma avidez que não conseguia controlar. Era uma carta de
Mary, escrita de Nova Iorque.
"Querido Philip," escrevia ela "ficarás sem dúvida surpreendido por a mamã e eu nos encontrarmos
agora em Nova Iorque. Tivemos que deixar Nova Orleães para vir buscar
William à escola. Mas essa não foi a única razão. A mamã decidiu de súbito que estava muito
cansada e que desejava voltar a Hilltop. Ela não está nada bem e sinto-me
preocupada por causa dela. Nos últimos dias, tem andado com um ar muito triste e determinado.
Mas não me parece tão indiferente e abstracta como acontecia durante
os primeiros meses depois da morte do papá".
Os olhos de Philip percorreram rapidamente a caligrafia pequena e aguçada.
Continuou a ler:
"Talvezeu esteja a imaginar coisas, mas as tuas cartas parecem-me tão curtas e tão distantes. Tão
frias! Será porque tens andado-a trabalhar demasiado? Se é esse
o motivo, então a mamã e eu teremos remorsos na consciência, mas também nos sentimos
orgulhosas. O papá foi muito bom e consciente ao nomear-te seu executor do testamento
e das suas propriedades, e também em te nomear presidente do seu banco! Ele sabia que tu e o
general Tayntor eram bons amigos e que o general, como vice-presidente,
não encetaria quaisquer discussões contigo."
Philip interrompeu a leitura e ficou a olhar à sua frente.
"Não posso continuar com isso!", pensou.
Mas, ele sabia que devia continuar. Não podia abandonar Amalie e Mary. O amor que lhes dedicava
e o dever, como o seu pai lhe frisara, obrigavam-no a manter-se no
banco de Jerome, como presidente, até que o jovem William tivesse atingido a maioridade. Mas,
mesmo nessa altura, de acordo com os termos do testamento, Philip deveria
continuar a ser presidente. Os anos alongavam-se diante de Philip como um imenso deserto se
alonga diante de uns olhos exaustos. Não era apenas o banco, aquele imponente
e maciço templo grego de Jerome dedicado às finanças. Philip era também director da Comunidade
de Riversend. Havia demasiadas coisas que dependiam dele.
"Não tenho forças!", pensou Philip.
Mas sabia que o verdadeiro motivo porque queria desistir de
tudo aquilo era porque já não tinha coração. Não queria nada para si próprio, porque a coisa que ele
realmente queria não poderia obter.
A carta de Mary continuava:
"Já passou tanto tempo desde a última vez que te vimos. Desde Fevereiro último. Oito meses! Mas,
como sabes, tive de me vir embora com a mamã. Tive medo que ela
morresse... primeiro, durante as semanas da doença depois da morte do papá, e depois durante os
meses seguintes. Ela tornou-se tão magra que tu dificilmente a reconhecerias
e o coração parte-se-me de cada vez que olho para ela. Mas, agora, sorri de vez em quando. Sorriu
pela primeira vez, há cerca de um mês atrás, quando William disse
qualquer coisa muito ridícula. Agora, já vai lendo de vez em quando. Mas o seu verdadeiro interesse
só parece despertar quando falo da altura em que tu e eu nos
casarmos. De facto é só quando eu falo nesse assunto que ela se torna verdadeiramente viva e quase
parece a mulher que foi. Continua sem falar muito do papá. Ao
princípio não conseguia referir-se a ele de maneira nenhuma. Mas agora diz muitas vezes: O teu pai
havia de gostar desse vestido, Mary. O teu pai haveria de ficar
muito divertido por ver como tu te pareces com o teu avô.
"Eu comecei a ficar muito deprimida com todas estas viagens. Mas, evidentemente, quis fazê-las
por causa da mamã. Ela estava sempre tão inquieta,"mesmo quando parecia
estar prestes a cair na inconsciência. No entanto, tem vindo a tornar-se mais calma. Quando falou
em irmos para casa, tentei esconder-lhe a minha alegria."
A caligrafia tornava-se mais suave, agora, menos segura:
"Querido Philip, estou a contar os dias que faltam para te voltar a ver. Que maravilhoso será! E
então poderemos fazer os nossos planos. Eu sei que tu não os mencionaste
antes porque era ainda demasiado cedo depois da morte do papá. Mas a mamã diz que agora já não
parecerá mal se o fizermos.
"Não sei o dia exacto em que regressaremos. Mas será muito em breve. Eu sei que será!"
Lentamente, Philip pôs a carta de lado. Olhou de novo através da estreita janela para o jardim.
Mary. Mas... ele não podia casar com ela. Era impossível. Jerome
tinha-o feito ver o que ele, Philip, era em contraste com aquela rapariga adorável. Ela era nova. Ela
conseguiria esquecer depressa. No seu abatimento, Philip não
conseguia convencer-se de que Mary o recordaria por muito tempo. Um dia, Mary ficar-lhe-ia
agradecida por não ter casado com ela.
Aquela pedra escura e sombria que agora vivia sempre no seu peito tornou-se mais pesada.
Esfregou os olhos cansados.
Não tinha sido muito difícil para ele enquanto Mary tinha estado fora, enquanto Hilltop se tinha
mantido desabitada, excepto pelos criados, no cimo daquele monte
verdejante. Mas agora Amalie e Mary iam voltar. Hilltop voltaria a estar cheia de vida; o seu
coração voltaria a bater de novo, forte, poderoso. Como é que ele seria
capaz de o suportar, não voltar nunca mais àquela casa, não voltar a ver Mary senão
ocasionalmente, não voltar a conversar com Amalie?
Mary. Mary.
Mas quando pensava em Mary, Philip pensava em Jerome.
Que tinha Alfred dito, quase numa súplica?
- Philip, tu és demasiado imaginativo, demasiado sensato. Se Jerome tivesse realmente significado
todas aquelas coisas mesquinhas que te disse, não teria escrito
o seu testamento como o fez. Ele revela em todas as linhas toda a confiança e afeição que sempre
sentiu por ti. Pobre Jerome! Considerava-se a essência do autocontrole,
mas realmente era o mais descontrolado dos homens. Prefiro pensar, e acredito, que este testamento
é mais o verdadeiro Jerome do que aquele que nós vimos no meu
gabinete. Tu próprio vês e reconheces como ele confiava em ti pela tua sabedoria e capacidade.
"Tenho a estranha convicção de que durante os últimos minutos que passou connosco alguma coisa
aconteceu a Jerome. Eu vi qualquer coisa nos seus olhos. Eles mudaram
subitamente. Parecia estar a escutar, a compreender. Todo o ódio desapareceu do seu rosto. Quando
nos deixou, tive o pressentimento de que ele estava a regressar
a Amalie e Mary sem raivas nem fúrias, mas com amor e uma nova percepção."
Philip sorrira às palavras do pai, com um cinismo desconcertante.
- Assim - tinha continuado Alfred -, vai ter com Mary quando ela regressar, e refaz a tua vida com
ela. Não acalentes as tuas próprias dúvidas acerca daquela pobre
criatura. Tu podes fazê-la feliz. Tu podes fazer Amalie feliz. O teu dever para com elas não termina
com o teu trabalho no banco de Jerome, nem com a direcção das
suas propriedades.
"Mas Jerome nunca pensou que eu pudesse vir a casar com a sua filha", pensou Philip. "Eu era o
seu amigo, o seu confidente, o seu conselheiro. Mas nunca viu em mim
o marido da sua filha. Isso, não podemos esquecer."
E os seus pensamentos perturbados continuavam:
"Nem nos podemos esquecer que Mary merece melhor do
que um homem deformado, muito mais velho do que ela. Mary
merece a glória e a juventude da vida, a felicidade e a alegria. Eu
não posso dar-lhe nada disso. Que louco fui, desde o princípio!
Se eu tivesse pensado ao menos um pouco, ter-me-ia apercebido de como tudo isto era impossível.
Mas eu queria-a e para mim isso parecia-me suficiente."
Saiu de casa. O peso dentro do seu coração estendia-se-lhe a todo o corpo. Caminhava como um
velho. Deteve-se na estrada e ergueu o olhar para o cimo da colina onde
se erguia a casa de Mary. Via-lhe o brilho cintilante das janelas, o telhado vermelho, por entre as
árvores. De súbito, sentiu um impulso irresistível de se dirigir
até ali pela última vez. Não causaria mal nenhum. Depois disso, jamais voltaria a entrar naquela
casa. Nunca mais.
A sua inconsciência pareceu desaparecer. Transformou-se numa sede apaixonada. Apenas mais uma
vez, apenas mais uma vez ver a biblioteca onde o tio William se tinha
sentado, ver os jardins e os estábulos! Era-lhe suficiente. Não havia lá ninguém senão os criados.
Os pés caminhavam mais depressa. A manhã quente de Outubro cintilava brilhante de imensa
vastidão à sua frente. As folhas das árvores esvoaçavam, como alegres criaturinhas
arrastadas pela brisa suave. O pó dourado parecia persegui-lo. Voltou-se para trás uma vez e
alongou o olhar pelo vale que parecia flutuar numa névoa prateada. Conseguiu
distinguir por entre aquela névoa grossos rolos de fumo, e embora não conseguisse escutar, na
realidade, nada mais senão os sons das árvores à sua volta, pensou
poder discernir a ruidosa actividade das fábricas e do caminho de ferro.
Deteve-se de novo, desta vez para olhar para o vale com mais atenção. Pensou em todas as coisas
que costumavam ser ditas acerca da América como uma "nação crescente
e amadurecida".
No entanto, sentiu de súbito um medo desconfortável. Qualquer coisa estava a escapar-se da
América. Enquanto ela crescia industrialmente, perdia a sua maturidade.
Era como se um gigante, duplicando anormalmente a sua estatura, começasse a sofrer de
perturbações no seu cérebro.
"E se nós nos tornamos num dinossauro entre as nações?", pensou Philip. "Bem armados,
poderosos, fazendo estremecer a terra sob os nossos pés e com as nossas ameaças,
e tendo as percepções de uma diminuta ainda que luxuriosa inteligência? É possível que tenhamos
alcançado a nossa maturidade com Emerson e Thoreau? É possível que
tenhamos já perdido essa maturidade?"
Os pensamentos pareciam galopar-lhe no cérebro:
"Estamos nós a desperdiçar os nossos poderes enquanto ganhamos e gastamos? Será que o mundo
do espírito, tão amado pelo tio William e pelos seus contemporâneos,
perdeu o seu
prestígio por causa da sua intocabilidade? A vida simples e o pensamento elevado dos da nova
Inglaterra degenerou, receio bem, numa existência exuberante e na ausência
de qualquer capacidade de pensar, que atraiçoa o plebeu e o vulgar."
E os pensamentos de Philip continuavam cheios de melancolia:
"A alma humana caiu na corrupção, na América! Por falta de contenção, está a desaparecer. Por
falta de luz, está a tornar-se cega. Por falta de um sonho, está a
morrer. No entanto, essa alma humana pretende tão pouco, na realidade. Pretende apenas reverência
e paz contemplativa. Deseja livros e espaços abertos. Quer o céu
límpido e o sol selvagem. Deseja um pouco de privacidade e um pouco de música. Pretende pensar
em Deus".
No entanto, aquele tão pouco estava rapidamente a ser arrancado do coração e da alma da América.
Propriedades, bens, possessões: tudo isso tinha usurpado o lugar
do contentamento e da satisfação. Ninguém podia menosprezar aquele respeito por si mesmo que se
manifestava na realização de uma vivência adequada. No entanto, essa
vivência adequada não exigia que o coração e o espírito de um homem, e também a sua alma, se
dedicassem à aquisição de gigantescas possessões, de mais banalidades
malignas do que as que alguma vez foram possuídas por um príncipe medieval.
Para a sua felicidade, a casa de um homem não precisava de ser grande e requeria apenas um
pequeno jardim nas suas traseiras. Os seus filhos não morreriam por falta
de carpetes dispendiosas e bibelots dourados. Mas morreriam, de certeza, e a América com eles, se
deixassem de ter sonhos.
"Nós fizemos o que pudemos em Riversend", pensou Philip. "Jerome e eu fizemos tudo o que
pudemos."
Agora, conseguia pensar em Jerome com uma débil ternura e afeição que lhe pareciam
revigoradoras.
"Sim, fizemos tudo quanto pudemos, mas... e o resto da América? Quem continuará a fazer aquilo
que nós começámos? Quem renovará o sonho no nosso país? É meu país,
o meu querido, querido país! Que te poderá acontecer quando mesmo o homem pobre, o agricultor
pobre nos seus campos, não pensa em Deus, nem no destino, nas virtudes
e no contentamento, mas apenas em adquirir dinheiro e em comprar coisas fúteis e desnecessárias
com ele?"
Ainda que o desconforto e a inquietação de Philip se tornassem mais fortes, ele sentiu um
estremecimento familiar dentro de si, como se uma nova força e resistência
o impelissem para a luta.
"Decerto que não sou só eu a ter estes pensamentos", pensou Philip. "Decerto que existem outros
homens que acreditam como eu acredito, e sentem esperança e receio
como eu sinto. Tenho de encontrar esses homens que pensam e sentem como eu!"
O seu pensamento corria claro e livre. Recordou-se de Jerome com a primeira sensação de dor e
tristeza que experimentava desde a morte do primo. A alma veemente
e perturbada de Jerome tinha tido aqueles mesmos pensamentos e tinha tentado corporizá-los na
Comunidade de Riversend. Pobre Jerome!
Em voz alta, Philip disse:
- Não te esquecerei, Jerome. Tentarei fazer aquilo que tu querias fazer, mesmo que não tivesses a
certeza do que era.
Os seus passos tornaram-se mais rápidos. Já não se sentia perturbado. Sentia-se, pelo contrário,
quase maravilhado e satisfeito. Agora, podia erguer a cabeça e caminhar
em frente com mais determinação. Porquê?
Estava a aproximar-se de Hilltop. A casa, forte e cinzenta contra o céu de cobalto, apareceu de
súbito à sua frente. Tinha o rosto de um amigo. Via-lhe agora as
janelas abertas de par em par, o fumo saindo de uma chaminé ou duas. Estava a preparar-se para o
regresso da família.
"Eu posso ser forte!", pensou Philip, olhando para aquela casa que tanto amava. "Posso ser forte,
mesmo que Mary não esteja a meu lado. Posso ser feliz, um pouco
mais tarde, sabendo que ela encontrou juventude, alegria e amor, e que encherá esta casa com os
seus filhos."
Caminhou silenciosamente ao longo das paredes exteriores da casa, para olhar os jardins pela última
vez. Não se via ninguém, mas Philip podia ouvir o relinchar inquieto
e nervoso dos cavalos dentro das cavalariças.
Aquele dia magnífico de Outubro era todo ele luminosidade, ar calmo e límpido, num último
suspiro glorioso de cor, paz e doçura. Que silencioso era o sol quente
e dourado! A parede de árvores parecia uma tapeçaria de verde escuro e pálido, misturado com o
amarelo esverdeado dos ulmeiros, o vermelho escuro dos carvalhos.
Philip não conseguia recordar-se de outra altura em que as flores estivessem tão brilhantes, fossem
tão numerosas e tão delicadas, e no entanto exalavam uma fragrância
tão forte na sua repulsa pela morte que se aproximava. Uma enorme abelha zumbia sobre as
campânulas e os enormes botões vermelhos das últimas rosas, e uma borboleta
branca parecia pairar por momentos no ar, sobre malmequeres pálidos, tão brancos como ela, de tal
maneira que o pequeno animal mais parecia uma das
suas pétalas. A parede vermelha estava coberta de trepadeiras, e sobre ela pendiam os frutos corados
e as folhas verdes-escuras das macieiras. A relva era alta e
espessa, mais profunda e mais fresca do que tinha estado durante o tórrido mês de Agosto, e os
lilases, no meio da sua folhagem já amarelecida, mostravam os ricos
botões verdes que haveriam de florir na Primavera. Alguns pássaros chilreavam e cantavam entre os
ramos das árvores. Nunca tinha existido um céu tão suavemente azul,
tão extenso, tão radioso, tão nobremente terno e doce. A brisa suave tinha um quê de frescura sob o
calor do sol, e o silêncio era profundo e envolvente.
"Chamam a esta estação, a estação da morte", pensou Philip. "Mas eu sei agora que o Outono é a
estação do princípio da vida."
Sabía que os botões e os frutos estavam cheios de sementes. Pequenos grãos castanhos-dourados
encontravam-se dentro dos seus envólucros esverdeados. Em breve cairiam
para o chão, e ali ficariam à espera.
"É a estação da vida!" pensou Philip. "Sob todo este silêncio, a terra está ocupada, semeando,
plantando, criando. Também os esquilos estão ocupados, enterrando
nozes que na Primavera darão origem a novas árvores. A Primavera não é um despertar. É apenas
um florescer daquilo que foi semeado no Outono, a estação da vida."
Um profundo e terno conforto encheu Philip, um conforto tão rico e tão cheio como aquele dia de
Outubro. Fosse o que fosse que lhe acontecesse agora, Philip conseguiria
suportá-lo com força e paz. Algures na América, as sementes dos pensamentos dos homens bons
haveriam de cair em solo fértil. Algures, algum dia, essas sementes transformar-se-iam
em árvores, seguras, altas, invulneráveis, e impediriam que o deserto do materialismo invadisse a
América, protegendo o solo da erosão e oferecendo abrigo às almas
cansadas dos homens e frutos aos seus lábios sequiosos.
Inclinou-se e apanhou um último botão de rosa amarelo, e segurou a flor doce de encontro ao nariz
e à boca. Olhou à sua volta com satisfação. Embora não o voltasse
a ver nunca mais, haveria sempre de se recordar daquele jardim. Para ele, era como que um lugar
sagrado.
Sentiu uma ligeira pressão no braço. Não tinha ouvido ninguém a aproximar-se dele. Voltou-se
rapidamente, e deparou com Mary. Ela estava ali, a sua cabeça loura
nua à luz do sol, o seu rosto muito fino e límpido sorrindo, os olhos azuis cheios de lágrimas. Mary
esperou que Philip falasse; havia nela uma impaciência imperceptível,
uma felicidade suave e ao mesmo tempo gloriosa.
- Mary! - murmurou Philip. - Mary, minha querida! Ela riu um pouco, então.
- Philip. êh, Philip. Nós viemos ontem à noite! Como é que tu sabias?
"Eu não sabia", pensou Philip. "Ou sabê-lo-ia eu por instinto?"
Mary reparou que ele a olhava com ar muito sério, quase sombrio, os seus olhos escuros reservados
e serenos, mas distantes. E então, ela soube que Philip se sentia
perturbado. Sim, sabia que ele estava perturbado, e compreendeu, perfeitamente, porquê.
Pegou-lhe na mão, olhou directamente para ele, e disse:
- Philip, quando encontrámos o papá naquela noite, naquele dique terrível, ele não estava morto.
Trouxemo-lo para casa. Ele... morreu mais tarde, à meia-noite. Mas
antes de morrer, ele murmurou-me: "Manda chamar Philip. Quero ver Philip, Quero vê-los aos dois
juntos, tu e Philip."
Os olhos de Mary pareceram abrir-se ainda mais.
- Tu não sabias, pois não? Mas eu julguei que tu o soubesses!
Apertou as mãos dele entre as suas e Philip sentiu a doçura da sua carne, a força, a tristeza. Ela
exclamou:
- Era por isso que as tuas cartas eram tão estranhas?
- Eu não sabia! - retorquiu Philip.
E, mais perturbado do que nunca e com voz enrouquecida, repetiu:
- Eu não sabia!
O ar brilhante cintilava tão forte que o cegava. Beijou as mãos e os pulsos de Mary, com uma
emoção profunda. Aquilo estava errado, errado!
E de súbito, soube que estava certo.
- Mary!
Ela inclinou a cabeça e pousou os lábios sobre os dele, num gesto simples.
- Entra, querido. A mamã quer ver-te, quer falar contigo, Philip.
Capítulo septuagésimo terceiro
Cheio de dor, Alfred exclamou:
- Não, Amalie não deve fazer uma coisa dessas! Ela não pode fazer isso! Deixar Hilltop? É
impossível! Aquela é a sua casa. Há muito espaço ali para ti e Mary e Amalie.
- Isso foi o que eu lhe disse! - retorquiu Philip, tristemente - Mas de nada serviu. Ela disse que a
casa nunca a tinha "aceite", que não havia paz para ela dentro
das suas paredes. Portanto, insiste em me dar a sua parte, como presente de casamento. Disse
também que iria viver para uma casa pequena, algures em Riversend.
Philip e o pai estavam sentados nojardim, nolusco-fusco do entardecer.
- Terias dificuldade em reconhecer Amalie - continuou Philip, com uma tristeza ainda maior. - Está
tão branca, tão branca e tão febril! Mas parece-me calma. É quase
a calma do desespero. É, pressinto, mais do que desgosto pela morte de Jerome. Por vezes, parece
cair numa espécie de imobilidade e inconsciência. Já nem consigo
lembrar-me de quando a vi feliz e sorrir. Mas foi ela alguma vez feliz? Não sei.
- Mas ela não pode abandonar Hilltop! - repetiu Alfred. Depois, com patética simplicidade, afirmou:
- Eu não conseguiria suportar pensar em Hilltop, sem Amalie se encontrar dentro daquela casa.
Esperou que o filho falasse, e a sua voz tremeu quando disse:
- Philip, diz-me uma coisa: ela sofre muito por Jerome? Philip suspirou, uma vez e outra, e por fim
respondeu:
- Não sei. Ela sofre, é claro. Mas eu penso que há mais alguma coisa, também. Penso que isto foi o
culminar de toda uma vida de insegurança, de insatisfação e de
confusão. Não sei o
que é.
Alfred estava silencioso. Na penumbra sentia, mais do que via, o filho. Sentia a felicidade de Philip,
o que mais parecia um relâmpago brilhante, a sua força e a
sua vida totalmente renovadas.
"Graças a Deus que ele se sente feliz. Deus abençoe aquela doce rapariga!", exclamou Alfred para si
mesmo.
Ela e Philip viveriam em Hilltop Juntos. Ele, Alfred, poderia ir visitá-los, de vez em quando. Àquele
pensamento, algo estremeceu em Alfred. Fixando bem os olhos,
podia descortinar um ténue relampejar de luz, lá em cima, na colina.
Hilltop! Agora, de certa maneira, era de novo a sua casa!
Ficou quase imóvel, as mãos pendendo-lhe de cada lado do corpo, o coração martelando-lhe no
peito.
Por fim, com voz abafada, disse:
- Preciso de sair por algum tempo. Mais ou menos uma hora. Espera aqui por mim, Philip!
Não havia lua, mas as estrelas estavam tão brilhantes que uma longa sombra espectral de prata
parecia cobrir a terra e os
montes. Alfred caminhava lentamente. Teve de parar por instantes procurando fazer descansar um
coração que teimava em pulsar e palpitar como um louco. O caminho
era-lhe tão familiar! Conhecia todas as árvores que lançavam o seu contorno difuso sobre a estrada.
Passou pelo dique profundo onde Jerome tinha sido mortalmente
ferido. Deteve-se e olhou para ele. Sentiu-se inundado de dor e remorso.
Continuou a caminhar. As janelas de Hilltop brilhavam agora com mais nitidez. Quantas vezes as
tinha visto assim, cheias de uma luz dourada! Jamais as conseguiria
esquecer. Sentiu como se o seu tio estivesse à sua espera na biblioteca.
Philip tinha-lhe contado que as coisas tinham mudado muito pouco dentro de casa.
Era como... voltar para o seu antigo lar.
A noite estava fresca, mas o rosto de Alfred estava húmido, e havia em todo ele um prolongado
estremecimento. Quando chegou aos portões não entrou imediatamente.
Deteve-se e olhou longamente para a casa. O velho e familiar candeeiro de bronze brilhava
suavemente numa das janelas da biblioteca. Decerto que o tio William estava
sentado junto do candeeiro, a ler.
Quando ergueu o batente de bronze contra a porta de carvalho, o som chegou até ele através dos
anos. Tocou com os dedos nas paredes cinzentas enquanto esperava.
Eram quentes, velhas, fortes, e a sua mão parecia reconhecer-lhes todas as saliências.
A porta abriu-se e uma criada fê-lo entrar.
A lareira estava acesa naquela imensa sala de entrada. O relógio do avô bateu as nove horas, com as
suas velhas notas ressoantes e musicais. A luz que se desprendia
da lareira e dos candeeiros reflectia-se nas paredes cobertas com painéis de madeira.
Deus do céu! Parecia que tinha saído dali no dia anterior, apenas naquela mesma manhã. O relógio
era seu amigo, o fogo acolhia-o. Foi conduzido à biblioteca e olhou
para as prateleiras dos livros, para o lume baixo da lareira, para as cadeiras de couro escuro. Viu a
cadeira vazia de seu tio, como que à espera. Viu os seus cachimbos.
Qualquer coisa de tenso e de apertado dentro de Alfred pareceu relaxar-se e ficar mais quente.
Deteve-se diante da lareira e olhou para os seus utensílios de bronze. Nada tinha mudado. Mas,
porque havia de mudar? Ele nunca tinha deixado aquela casa. Era o
seu lar.
Ouviu um suave ruído atrás de si e de novo o seu coração começou a bater descompassadamente.
Voltou-se lentamente. Amalie estava perto dele. Mas era uma Amalie emagrecida,
branca, reservada, com um rosto inerte e exausto, e uns olhos
purpúreos que tinham chorado durante demasiados anos. Era uma Amalie com um anel branco de
cabelo que lhe escorria da testa até à nuca.
Em silêncio, ficaram a olhar um para o outro. O vestido negro de Amalie brilhava à luz do
candeeiro, revelando a sua ainda esplêndida figura, a sua dignidade, a
sua graça.
Amalie estendeu a mão na direcção de Alfred, mas não havia emoção nos seus olhos, excepto uma
infinita inconsciência, um vazio enorme.
- Alfred - disseela.
Ele pegou-lhe na mão. Sentiu-se vacilante, trémulo, dominado de amor e compaixão.
- Amalie! - murmurou Alfred. Ela retirou a mão de entre as dele.
- Senta-te, por favor, Alfred - disse Amalie.
A sua voz soara débil, sem aquele timbre antigo que Alfred recordava, tão rico e tão cheio. Amalie
sentou-se à frente dele, onde tantas vezes se tinha sentado, e
olharam um para o outro sem falar.
A princípio, os olhos de Amalie permaneceram abstractos e vazios. Depois, começaram a vê-lo.
Viu-lhe a sua força, a sua maturidade, a paz que finalmente se apoderara
dele ao longo dos anos de dor e de sofredora compreensão. O espanto aflorou o rosto de Amalie, o
espanto de uma criança. Qualquer coisa passava de Alfred para Amalie,
qualquer coisa de reconfortante, de seguro, de profundo e apaixonado reconhecimento.
Amalie disse, então, vagamente:
- Mudaste, Alfred.
- Sim! - retorquiu ele com doçura. - Acho que mudei, Amalie.
Era intolerável vê-la daquela maneira. Quis aproximar-se dela, comprimir aquele rosto sombrio
contra o seu ombro, mantê-la apertada contra si, confortá-la.
- Sabes, Amalie, eu agora sei tantas coisas que desconhecia antes!
Amalie retorceu as mãos sobre os joelhos e ele recordou-se daquele antigo gesto de inquietação.
Viu-lhe o peito inchar como que empurrado por uma respiração pesada.
- Alfred! - murmurou Amalie. - Penso que sei porque é que vieste. Foi para me dizeres que não
aprovas o casamento de Philip com Mary, não foi?
Alfred ficou tão surpreendido que não conseguiu falar. Então, Amalie inclinou-se na sua direcção,
os olhos cheios de uma súplica desesperada.
- Não digas isso! Deixa-os ser felizes, Alfred. Eles amam-se!
A voz de Alfred tremia quando respondeu:
- Minha querida, eu não vim aqui para dizer isso. Sinto-me muito feliz com esse casamento entre
Philip e Mary. Espero que também te sintas feliz.
Amalie ficou surpreendida; mergulhou de novo na sua cadeira e Alfred viu-lhe lágrimas nos olhos.
Amalie tentou sorrir quando lhe respondeu:
- Eu estou, eu estou, Alfred.
Voltou um pouco a cabeça, e disse ainda:
- E sei que Jerome está também feliz.
- Sim, eu sei que está! - disse Alfred.
De novo o silêncio se impôs entre eles. O fogo na lareira estalou. O velho ramo do ulmeiro arranhou
os beirais do telhado. Alfred surpreendeu-se. Era como que o
bater de um amigo numa porta antiga e esquecida.
Então, disse:
- Amalie, eu vim aqui esta noite para te convencer a não saíres de Hilltop.
Ela voltou o rosto para ele, um pouco assustado e perplexo. Abanou a cabeça e retorquiu-lhe:
- Eu devo fazer isso, Alfred. Devo realmente fazer isso. Sabes, esta nunca foi, na realidade, a minha
casa. É a casa de Philip, a casa de Mary.
Interrompeu-se por instantes, e depois exclamou, debilmente:
- É também a tua casa, Alfred! Eu não tenho quaisquer direitos dentro dela.
Alfred não conseguiu resistir mais. Aproximou-se de Amalie e segurou-lhe na mão. Estava fria e
húmida. Apertou-lha com força e disse:
- É a tua casa, Amalie. Não posso suportar pensar que não estás aqui. Ficarás aqui, por mim?
Deixas-me continuar a pensar em ti nestas salas, nestes jardins, olhando
através destas janelas?
A voz começou a faltar-lhe até se tornar num quase sussurro:
- Tu não sabes como isso me confortou durante todos estes anos! Pensar que tu estavas aqui,
Amalie.
A mão dele era quente e firme e segurava as mãos de Amalie com força, uma força que a
reconfortava. Amalie agarrou-se àquela mão. As lágrimas inundaram-lhe as faces.
Tentou sorrir de novo, mas apenas conseguiu abanar ligeiramente a cabeça.
- Alfred, tu estás apenas a tentar ser amável...
- Oh, não! - disse ele. - Não! Estou a tentar conservar a minha recordação de ti, Amalie. E é tudo.
Cheia de espanto, incrédula, ela olhou para ele. Os olhos de
ambos encontraram-se. Agora havia apenas o som do lume estalando na lareira e o arranhar do ramo
do ulmeiro naquele silêncio profundo.
Alfred inclinou a cabeça e murmurou:
- Sim, Amalie!
Ainda agarrando-lhe a mão, Amalie ergueu-se lentamente. Não conseguia afastar os seus olhos dos
dele. Tentou falar. Fez várias tentativas, mas os lábios tremiam-lhe.
Porfim, conseguiu murmurar apenas:
- Alfred, tu... E ele disse:
- Amalie, deixas-me voltar aqui outra vez, um dia qualquer, em breve? Deixas-me vir ver-te?
Amalie?
Ter-se-ia ela realmente movido? Ter-se-ia Amalie aproximado um pouco mais dele?
Alfred podia ver o purpúreo húmido dos seus olhos, a sua luz brilhante.
Amalie estava a dizer:
- Sim. Podes vir outra vez. E em breve. Tu deves vir outra vez, Alfred. Tens de vir sempre.
"Sim, virei!", pensou Alfred, com uma profunda certeza. "E algum dia jamais voltarei a sair daqui!"

Fim

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