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Como Casar-se

com um canalha
(O Clube do Falcão 03)

Katharine Ashe
Para Idaho e Atlas, meus fiéis companheiros
de escrita que me aquecem os pés
e se deitam felizes e contentes ao sol
que entra pela janela de meu estúdio, como se isso fosse o único
que necesitam
na vida. Para eles, porque me fazem
brincar ainda que tontamente pense que deveria estar
trabalhando. E porque todos os dias
me recordam que o amor pode ser incondicional. Obrigada por
converter-me
em um ser humano melhor.
Sinopses

A bela Diantha Lucas entende as regras da alta sociedade:


uma mulher solteira precisa encontrar um homem para se
casar. Mas Diantha tem um objetivo mais ambicioso e não se
importa de se atirar de cabeça em uma aventura para alcançá-
lo, e está convencida de que Wyn Yale é o homem de que ela
precisa.
Acontece, no entanto, que Wyn é um agente do Falcon
Club e tem seu próprio plano: roubar um cavalo de grande
valor, matar um duque depravado, vingar uma garota inocente
e impedir que enforquem... nessa ordem.
O que menos precisa é da distração de um rostinho
bonito, embora conte com covinhas e lábios sorridentes, que
pedem para serem beijados
1

Caros compatriotas britânicos:


Que escândalo!
Tenho passado as noites acordada com o coração
desbocado, sem fôlego, e chorando pelo saque em que é
submetida a Grã-Bretanha. Minha alma chora e minha frágil
constituição feminina se estremece ao saber que a Elite da
Sociedade, admirada por todos, está roubando nosso reino para
financiar suas destrezas.
Um roubo em toda regra!
Levo três anos indagando sobre a identidade dos membros
do escorregadio Clube Falcon, uma instituição lúdica para
cavalheiros que recebe regularmente recursos do erário público
sem passar pelo Parlamento tal como estabelece a lei. Hoje
anuncio o maior lucro de minha cruzada até esta data: descobri
a identidade de um de seus membros. Contratei um assistente
para que siga este homem e descubra suas atividades. Quando
tiver em meu poder relatórios confiáveis, mostrá-los-ei.
Até então, se estiver lendo esta missiva, senhor Peregrino,
secretário do Clube Falcon, saiba que desejo que algum dia nos
encontremos cara a cara para poder lhe dizer exatamente minha
opinião que você me merece.

Lady Justice

****

À atenção de lady Justice


Brittle & Sons, editores
Londres

Minha querida senhora:


Deixou-me quase sem fôlego (como suponho que acontece
às três quartas partes da população masculina londrina) ao
imaginá-la deitada em seu leito, transbordante de emoção e com
os lábios trêmulos. Sua devoção me comove. E, qual mastro que
se eleva orgulhoso com as velas desdobradas, sinto-me cheio
pela emoção de saber que anseia me conhecer.
Embora, talvez, não tenha descoberto a um simples
membro do clube. Talvez tenha descoberto minha própria
identidade. Talvez não me veja obrigado a esperar muito tempo
para conhecê-la. Talvez minhas fantasias noturnas se convertam
logo em realidade. Ou isso espero.
Seu cada vez mais fervente admirador,
Peregrino
Secretário do Clube Falcon

****
Peregrino:
Envie o Corvo em busca de Lady Priscilla.
O Diretor

****

Senhor:
Vou ser-lhe franco. Está cometendo um erro. Não há na
Inglaterra um homem mais inteligente nem mais perspicaz.
Enviarei o Corvo atrás da besta e obedecerá sem pigarrear. Mas
tenha por certeza que o terá perdido depois deste insulto.
Com todos meus respeitos,
Peregrino
2

«Tenho… que… chegar… ao… estábulo.»


Em algum lugar, em uma estadia da planta alta, uma
moça gritou.
Não uma moça. Uma mulher. Um grito rouco, ébrio, um
grito de prazer. O grito da moça estava somente em sua cabeça.
Como sempre.
«Chegar ao estábulo. Resgatar à dama.»
Wyn abriu os olhos. A sala começou a dar voltas. Mas ele
seguia de pé. Em um canto, contra a parede. Fosse como fosse,
seguia de pé. Em uma situação muito melhor que a de seu
anfitrião, que estava inconsciente no vão da porta, com uma
garrafa em uma mão e o tornozelo nu de uma mulher na outra.
O resto do corpo da mulher se encontrava no corredor, e
padecia da mesma indisposição.
Wyn percorreu a estadia com o olhar, que estava cheia de
taças e de fumaça. Uma gravata enrugada adornava uma
estante, e algumas meias de mulher, abandonadas,
repousavam sobre os braços de uma poltrona em uma pose
muito sugestiva e intencionada. Um taco quebrado sobressaía
da tela de um abajur, e as guimbas de numerosos charutos
tinham furado o tapete.
Voltou a fechar os olhos com força.
― Já nos divertimos?
Continuando, sentiu a queimação em seu estômago.
Ah. Nem mesmo um minuto consciente antes que
1
começasse a tortura. Seu nêmesis mais fiel se tornou muito
insistente de um tempo para cá. Não recordava ter comido
desde que chegou à festa campestre três dias antes. A comida
acalmava a tortura de seu estômago. Mas não tinha tempo
para isso. Já estava nesse lugar muito tempo. Se outros se
encontrassem no mesmo estado que seu anfitrião, devia partir
sem demora.
― Às corridas, pois. ― Cravou o olhar na porta e se afastou
da parede.
― O que disse, Yale?
Tinha falado em voz alta? Pelo amor de Deus.
Com tato, com muito tato, desviou o olhar para a voz.
Jamais se apressava. Apressar-se conduzia a cometer erros.
Wyn Yale, agente do Clube Falcon e consumado cavalheiro da
ponta de suas reluzentes botas até sua bem atada gravata,
jamais cometia erros. Nunca caía. Nunca tropeçava. Nunca
revelava algo, nem sequer quando era incapaz de articular os
sons necessários para pronunciar seu nome. Nesse caso,
mantinha-se em silêncio.
O orgulho não alimentava sua perfeição. Seu pai e seus
irmãos mais velhos estavam acostumados a criticar seu
orgulho. Não tinham a menor ideia.
Entretanto, aparentemente acabava de falar quando não
tinha sido sua intenção. Estava, talvez, perdendo o controle.
Uma pena. Afinal, a precisão racional era o único que restava,
além de, como não, a ditosa bola de fogo que vivia em seu
estômago.
― Que corridas?
O outro convidado estava estendido no divã, sem a
companhia de uma mulher nesse momento, talvez devido ao
colete encharcado de vinho que usava.
«Regra número três: As damas esperam que um cavalheiro
sempre mantenha a compostura.
Inclusive as cortesãs.»
A tia-avó de Wyn tinha insistido nesse fato.
― Quem corre? ― perguntou o cavalheiro bêbado com
dificuldade. ― Apostaria dez guinéus por você antes de
qualquer outro. É muito pronto, filho de...
― Não há corrida. ― Com passos bem medidos, Wyn se
aproximou do aparador e serviu uma taça de vinho. Piscou com
força para se concentrar, virou-se e se aproximou do tipo com a
taça, depois do qual o obrigou a fechar a mão ao redor do
cristal. Quente. Carne e pele humana. Que estranho que se
precavesse desse fato. Claro que tinha passado uma eternidade
da última vez que sentiu pele humana, da última vez que tocou
outra pessoa.
― Só vou me ocupar de meu cavalo.
O tipo deu um bom sorvo e o vinho caiu pela comissura
dos lábios.
― É um animal precioso. Está à venda?
― Não. ― Wyn contava com outro fiel companheiro além da
queimação de seu estômago: o lustroso puro sangue negro que
o esperava no estábulo merecia a alguém muito melhor que ele.
O homem agitou uma mão, desentendendo-se da negativa
com a alegre despreocupação etílica que Wyn estava há anos
sem experimentar. Em seu caso, não havia alegria, não.
― Dá no mesmo. Minha mulher me esfolaria se eu
gastasse tanto dinheiro.
― Muito melhor gastar em vinho e em putas, claro ―
murmurou Wyn, que voltou a cravar a vista na porta.
Cambaleou para um lado e depois para o outro.
― Não sabia que tinha tanto.
― Ultimamente não, meu amigo. ― Claro que tinha
comprado Galahad há cinco anos, antes de ficar duro.
O homem deu outro sorvo à taça e dormiu entre roncos.
Wyn passou por cima dos corpos estendidos no vão da porta e
saiu ao corredor. No armário do mordomo, procurou seu
capote. Tinha levado capote? Que mês era? Setembro.
Agarrou seu capote, que se pendurava de um gancho.
Melhor assegurar-se de que era o seu. Procurou no bolso
interior o único objeto que suspeitava que somente ele levaria a
um bacanal campestre. Seus dedos se fecharam ao redor do
cabo da faca. A pistola, é obvio, seguia em seus alforjes. Não
precisava de uma arma de fogo em semelhante reunião
amistosa de trapaceiros. Tinha-a levado consigo para a estrada,
e porque não a levar o converteria em um imbecil.
Apesar de todos seus pecados, não era um imbecil. Nem
sequer era um pouco tolo.
Saiu da casa e se afastou dos homens e das mulheres
encerrados dentro, sumidos em uma orgia que todos
desfrutavam porque não conheciam outra coisa mais
satisfatória, e atravessou o enlameado caminho. O interior do
estábulo estava cheio de palha úmida e do quente aroma dos
cavalos. Galahad se encontrava em sua própria baia porque
merecia, não porque não aceitasse ter companhia: o puro
sangue estava castrado, como seu amo nessa reunião…
embora temporalmente. Nada de mulheres enquanto
trabalhava. Nada de beber tampouco. Entretanto, essa missão
o tinha requerido. Daí o motivo que o cavalo tinha quatro olhos
nesse momento. E quatro orifícios nasais e quatro orelhas.
Wyn estendeu as mãos para os dois focinhos de Galahad,
cada um de cetim negro marcado com uma chama. Aferrou-se
a ambos os lados do rosto do animal e as duas cabeças se
converteram em uma. Como era uma criatura muito tranquila,
Galahad não protestou.
― Suporta sua companhia, meu amigo? ― Regou o pelo do
animal com seu fôlego, que cheirava a brandy. ― Depois de
tudo, é muito bonita.
Galahad o olhou com seus olhos marrom e deu-lhe um
golpezinho no peito com o focinho.
― Fará o que te peça. Que par fazemos. ― Fechou os olhos.
― Mas breve farei algo que não me pediram que faça. Depois, o
afastarão de mim. E levarão tudo, mas… ― Fez uma pausa e,
quando continuou, sua voz saiu em um sussurro: ― Mas você
será quão único lamentarei perder. ― Ficou quieto um
momento, enquanto o chão coberto de palha se movia sob seus
pés. Continuando, dispôs-se a selar e a atar seu cavalo.
Com a bolsa de viagem pendurada na garupa, Galahad o
seguiu através do estábulo, colado a seus calcanhares, como
um cão fiel. Detiveram-se diante de outra baia. O animal que
havia dentro reluzia como uma joia: o focinho afilado, os
inteligentes olhos, a poderosa cruz e o sedoso pelo pardo.
Wyn fez uma reverência.
― Milady, sua escolta chegou. ― Abriu a porta da quadra.
Lady Priscilla, um equino do melhor espécime que se
podia criar, saiu sem protestar, porque embora jovem e
destemida, era dócil. Sem dúvida alguma, docilmente se foi
com o anfitrião de Wyn depois que este a ganhou em uma
partida de cartas do marquês de McFee... de forma injusta, já
que pertencia ao tio de McFee, o duque de Yarmouth.
Nesse momento, o duque queria a sua égua de volta. E
quem melhor para fazer o trabalho que Wyn? A coroa sabia que
somente tinha que mover o dedo mindinho em sinal de que
requeria os serviços do senhor Wyn Yale, o terceiro filho de um
laird galés com poucas terras, poucos miolos e nula fortuna,
para que este se preparasse para cumpri-las. E, é obvio, o fazia
porque gostava. Em realidade, tinha gostado. Há algum tempo,
seguia fazendo-o para poder permitir-se coletes e brandy.
Entretanto, esse trabalho era diferente. Não tinha aceitado
uma tarefa tão humilhante para agradar ao desconhecido
diretor do Clube Falcon nem ao rei. Nem sequer pela bolsa
cheia de moedas que lhe pagariam. Tinha aceito essa missão
para vingar uma morte.
Uma morte por outra. Um pecado para apagar outro.
Nessa ocasião, não obstante, não poderia ocultar a
verdade a seus amigos: Leam Blackwood, Jin Seton, Constance
Read e Colin Gray, antigos membros do Clube Falcon e os
melhores amigos que um homem podia ter. Nessa ocasião, todo
mundo se inteiraria.
Da cálida terra, elevava-se uma neblina que se misturava
com a garoa. O céu estava encapotado e a garoa logo se
converteria em um toró. A manta da égua a manteria seca.
Agarrou uma manta da sela e a colocou sobre o lombo de
Galahad.
― Agora, sim, vamos às corridas, olhe por onde anda.
Pôs-se a andar pelo caminho, entre a névoa, com uma
rédea em cada mão e seguido docilmente por centenas de
guinéus na pele de cavalos. O cinzento dia ainda era jovem, e a
estrada que o separava do povoado, onde poderia encontrar
uma garrafa e a carruagem do serviço de correios de Sua
Majestade ou uma carruagem de aluguel, era somente a alguns
quilômetros. Quando por fim chegasse ao castelo de Yarmouth
dentro de dois dias, voltaria a estar sóbrio e seu traje voltaria a
ser estranho. Ali, na metade do meio nada, com a única
companhia de dois animais, pela primeira vez não tinha que
imitar sequer a perfeição. Afinal, um homem que se dispunha a
assassinar a um duque deveria ter a liberdade de desfrutar da
viagem como quisesse.
Em teoria, seu plano tinha funcionado maravilhosamente.
Em teoria.

****
É obvio, Diantha não tinha contado com o bonito
fazendeiro. E nem tinha previsto a deserção de Annie. Como
tampouco tinha previsto a chuva que encharcava a bainha de
seu vestido de viagem nem o homem com os dedos como
salsichas que se sentava no canto da carruagem do serviço de
correios de Sua Majestade. O bebê chorão que se agitava entre
os braços de sua mãe tampouco era um presente. Mas ao
menos a pequenina não lhe tinha provocado graves problemas,
salvo uma enxaqueca do tamanho de Devonshire, algo que
começou no prédio do correios quando Annie se despediu
somente com um "Boa sorte, senhorita Lucas!""» por cima do
ombro. De modo que tampouco podia jogar a culpa no bebê.
É obvio, da comodidade de Brennon Manor, Diantha não
poderia ter antecipado nada disso, muito menos a deserção de
Annie. Sua melhor amiga, Teresa Finch-Freeworth, adorava a
sua donzela, e a verdade era que para Diantha tinha sido bom.
Annie parecia a acompanhante ideal para partir da casa de
Teresa antes do tempo, respeitando as normas do decoro. Até
que Annie a abandonou.
Diantha esfregou as têmporas. A enxaqueca piorava, mas
os bebês choravam, e gostava muito de crianças em
circunstâncias normais. Sempre tinha sonhado ter filhos
próprios, e o senhor H. também gostava. Mas não tinha tempo
para pensar nisso. Nesse instante, tinha que encontrar sua
mãe e tirá-la do antro de perdição em que estava vivendo.
Por debaixo da aba de seu chapéu, atreveu-se a olhar de
esguelha ao senhor Dedos Salsichões. O homem olhava o bebê
com o cenho franzido enquanto o forte vaivém da carruagem
lhe agitava a papada.
― Está saindo seus dentes, verdade? ― perguntou-lhe
Diantha em um sussurro à mãe. ― Minha irmã Faith chorou a
pleno pulmão quando saíram os dentes.
― É que não para, senhorita. ― A mulher gemeu baixo
enquanto embalava o bebê contra seus seios muito pequenos
para servir de travesseiro.
― Pobrezinha. Minha mãe estava acostumada a nos
esfregar as gengivas com brandy. Às vezes com whisky, se meu
pai tivesse bebido todo o brandy. Tem um efeito calmante.
A mulher a olhou com expressão receosa, inclusive um
pouco escandalizada.
― Ah, sim?
― Pois sim. Havia tantos contrabandistas na costa que
não tivemos problemas para conseguir brandy durante a
guerra. ― Colocou um dedo enluvado na mãozinha do bebê e a
pequena se aferrou a ela enquanto os soluços se
entrecortavam. ― Na próxima parada, molhe um dedo em uma
taça e esfregue suas gengivas. Dormirá em seguida. ― A
boquinha da menina se abriu de novo e soltou um chiado
ensurdecedor. ― Depois, você beba o resto. ― continuou em voz
mais alta, para fazer-se ouvir. Sorriu e deu-lhe uns tapinhas no
braço da mulher.
O olhar da mulher se suavizou. O bebê seguiu chiando.
Baixou a aba de seu chapéu, dom Dedos Salsichões lhe lançou
outro olhar libidinoso. Tinha o aspecto de um salteador de
estradas, sempre e quando os salteadores de estradas tivessem
as unhas sujas e um olhar furtivo.
Nesse momento, Diantha teve claro que a deserção de
Annie só era um de seus problemas.
Os homens como esse abundariam pelo caminho até
chegar a Bristol, e certamente também haveria no navio que a
levasse a Calais. O mundo estava cheio de homens, e alguns
eram malvados.
Tampouco sabia muito do assunto, salvo que quando era
muito pequena tinham-lhe apresentado a um homem muito
desagradável chamado senhor Baker, com quem sua mãe quis
casar sua bonita irmã, Charity. Ou algo parecido. Ninguém lhe
contava nada naquela época porque era muito pequena «e
suscetível», ou isso diziam, o que significava que se metia em
confusões cada vez que podia. Nesse momento, já não tinha
ninguém em casa, de modo que não podiam lhe explicar as
coisas, embora já tinha dezenove anos. Havia uma única
exceção: Teresa, cujas histórias eram escandalosas e
emocionantes, e que tinha planejado sua missão. Uma missão
que devia ter êxito passasse o que acontecesse, mesmo que se
tratasse da deserção de sua donzela que tinha preferido fugir
com um fazendeiro de braços musculosos. Annie tinham
gostado muito dos músculos. Tinha-os mencionado antes de
abandoná-la, aparentemente a modo de justificativa.
Diantha não tinha opinião alguma a respeito dos braços
ou dos músculos dos homens, mas nesse momento via uma
falha grande em seu plano. Necessitava de um homem. Mas
não a um qualquer.
Necessitava de um homem valoroso e honrado, um que a
ajudasse sem questioná-la.
Necessitava de um herói.
A meia-irmã de Diantha, Serena, estava acostumada a ler
histórias de cavalheiros que salvavam moças em apuros, e o
barão Carlyle, seu padrasto, que além disso era um erudito,
tinha-lhe assegurado que essas histórias não eram de todo
mentira, mas sim algumas estavam apoiadas em feitos
históricos. Os heróis existiam. E sua missão era muito perigosa
para executá-la somente com ajuda feminina. De modo que
tinha que encontrar um herói.
Ao pensar friamente, parecia lógico. É obvio que o plano
que Teresa tinha esboçado não requeria que se buscasse a
ajuda de um homem. Teresa nunca tinha conhecido um herói
de verdade. Seu pai mal olhava suas mulheres, e certamente
que seus irmãos não tinham nem um cabelo de herói. Duas
semanas antes, os três tinham dado uma olhada em Diantha e
em seus olhos tinha aparecido um brilho feroz. Dado que
nenhum deles tinha reparado antes em suas visitas a Brennon
Manor, não podiam se considerar heróis.
Os heróis não só se fixavam na aparência. Os heróis se
fixavam no coração.
A mãe do bebê chorão moveu um quadril esquelético,
obrigando Diantha a colar-se ao corpulento cavalheiro que
tinha à esquerda. Sumido em seu jornal, o cavalheiro não
pareceu perceber. Jogou-lhe uma olhada e soltou um suspiro
decepcionado.
Muito velho. Um herói disposto a defender uma dama dos
perigos de salteadores devia estar em plena flor da vida. Do
contrário, não poderia brandir nenhuma espada, nenhuma
pistola com o vigor necessário. Esse homem tinha o bigode
grisalho.
A carruagem se sacudiu. O bebê chiou. A mãe soluçou em
silêncio.
― Posso segurá-la? Minha irmã já é grande e sinto falta de
ter um bebê nos braços. ― Para falar a verdade, Faith era uma
bebê muito inquieta. Entretanto, Diantha acreditava que Deus
lhe perdoaria a mentirinha. ― Assim poderá dar uma cochilada
antes da próxima parada.
― Ai, senhorita, não posso permitir...
― Claro que sim. Eu a cuidarei enquanto você descansa. ―
Rodeou o bebê com os braços e o colou contra seu corpo. A
bolsa de viagem que tinha no regaço era a almofada perfeita, e
ela tinha mais jeito que a mãe, de modo que poderia embalar à
pequena melhor. A mãe envolveu a sua filha com o manto.
― Obrigada, senhorita. Você é um anjo.
― Absolutamente. ― Essa era a pura verdade, é obvio.
Balançou à pequena, deleitando-se com seu calorzinho e
seu peso, enquanto olhava ao passageiro cujos joelhos quase
tocavam os seus.
Não era um homem. Teria treze anos como muito e, a
julgar pelas unhas enegrecidas e sua pele cinzenta, trabalhava
nas minas.
Nas bochechas do moço apareceram duas manchas.
Tocou na boina.
― Senhorita.
Diantha sorriu e o rubor se estendeu pelo sujo pescoço do
moço.
Não lhe serviria, é obvio. Não poderia encomendar a nobre
missão aos moços, embora se inundassem todos os dias nas
vísceras da terra a fim de extrair metais para os outros e,
portanto, deveriam ser considerados heróis, sempre e quando o
mundo fosse justo.
Isso a deixava com o homem que dormia no canto, o
passageiro que na última parada tinha ocupado o lugar de
Annie na carruagem.
A bainha de seu capote jorrava água no chão, ao redor de
suas reluzentes botas. Tinha os braços cruzados diante do
peito e um elegante chapéu de seda negra. Não era um homem
pequeno, mas sim, parecia bastante alto e com ombros largos,
mas dava a sensação de que ocupava seu espaço sem se
incomodar com seus companheiros de viagem. Somente podia
ver suas mãos, sem luvas, e a parte inferior do rosto.
Mãos elegantes, de dedos largos, um queixo firme e recém-
barbeado, e uma boca bem formada.
Piscou.
Deu de ombros, agachou a cabeça um pouco e olhou por
debaixo da aba do chapéu do homem.
Ficou sem fôlego.
Ergueu-se de novo no assento. Sob o peso do bebê que
chorava, o coração lhe pulsava desmedido. Tomou uma funda
baforada de ar para acalmar-se. E outra. Jogou outra olhada
no homem, com mais calma nessa ocasião.
E soube. No mais profundo de seu coração, as escassas
dúvidas que tinha se dissiparam e soube que estava destinada
a encontrar a sua mãe.
Seu plano não só funcionaria em teoria. Tinha desejado
que um cavalheiro a ajudasse em sua missão e Deus ou o
destino, ou quem quer que concedesse seus desejos às moças
esperançadas, estava-lhe proporcionando o dito homem.
Porque se alguém podia cumprir o papel de herói, era esse
cavalheiro, estava convencida disso.
Depois de tudo, já era dele.

****

Uma jovem o estava olhando.


Wyn não se surpreendeu, já que estava acostumado a esse
tipo de atenção e não costumava lhe incomodar. Entretanto, há
algum tempo tinha recebido muita, embora as mulheres da
orgia que acabava de abandonar não se pareciam em nada à
moça que o olhava do assento de frente na carruagem, com os
olhos mais azuis que tinha visto na vida. Olhos azuis com íris
enormes, como lápis-lazúlis gentil, rodeados por pestanas
longas e escuras sob sobrancelhas arqueadas. Olhos
conhecidos.
Mas uma moça desconhecida. Embora não estivesse
bêbado, lembrar-se-ia dessa coisinha tão fofa se houvesse visto
antes. O ângulo de seu delicado queixo, o traço de seus lábios
carnudos e os cachos que se sobressaíam por debaixo de seu
chapéu eram muito atraentes para esquecer. E, bêbado ou
sóbrio, Wyn nunca esquecia um detalhe, muito menos se
pertencesse a uma jovem tão bonita como essa. Ou a um
homem. Ou a um povoado. Ou ao tronco de uma árvore. Ou a
qualquer outra coisa. Por isso tinha sido tão bom em seu
trabalho nos últimos dez anos.
Viu que ela arqueava as sobrancelhas ainda mais.
― Então, por fim, despertou. ― disse a moça e então se
recordou dela. Tampouco esquecia uma voz, muito menos essa
em concreto, tão fresca e musical. ― Acreditava que nunca
fosse despertar ― seguiu ela, que aparentemente não
necessitava resposta. ― Saiba que me custou reconhecê-lo.
Tem um aspecto espantoso.
― Muito obrigado, senhorita. ― conseguiu dizer, sem
arrastar as palavras, é obvio. Não mencionaria que ele
tampouco a tinha reconhecido, porque sem dúvida alguma ela
se precaveria do motivo.
«Regra número quatro: Não ferir jamais os sentimentos de
uma dama.»
Uma moça não mudava tanto de aspecto, como tinha feito
a senhorita Lucas, em dois anos sem muito esforço e sem a
generosa ajuda da natureza, e sem ser consciente da
transformação.
A senhorita Lucas não era uma cortesã como as mulheres
que tinha abandonado de bom grado no dia anterior. Era uma
dama de linhagem, a meia-irmã de uma aristocrata que gostava
muito, que além disso estava casada com o homem que o
ajudou na pior noite de sua vida.
Beliscou-se a ponta do nariz, esfregando os olhos, e a
olhou de novo.
Uma dama de linhagem... com um bebê nos braços.
Olhou de um e do outro lado da moça. Nem o homem que
tinha à esquerda nem a mulher que tinha à direita poderiam
considerar-se nem o marido nem a donzela da enteada de um
barão e da irmã de um baronete, por mais que sua visão
estivesse rabiscada. Inclinou o pescoço para a esquerda.
Nenhum dos outros viajantes que estavam em seu assento
cumpria o papel.
― Viajo sozinha. ― aduziu ela. ― Annie me abandonou por
um fazendeiro musculoso na última parada. A verdade é que
era muito bonito, assim não a culpo. Mas poderia haver ficado
comigo até encontrar uma substituta. ― inclinou-se para
diante e sussurrou: ― Verá, não me sinto cômoda viajando
sozinha. ― Lançou lhe um olhar eloquente ao corpulento
comerciante que compartilhava seu assento e voltou a apoiar-
se no respaldo. ― Mas agora que você está aqui, já não estou
sozinha. ― Sorriu e apareceram duas covinhas em suas
bochechas de alabastro.
Wyn piscou, fazendo que a neblina se dissipasse um
momento. Recordou que a moça que conheceu na propriedade
que o conde de Savege possuía em Devon tinha essas mesmas
covinhas. Entretanto, não recordava ter sido incapaz de afastar
a vista delas. Claro que na casa dos correios só tinham gin, e o
destilado do zimbro sempre o deixava bêbado.
No final, suas palavras conseguiram penetrar o estupor
etílico.
― Sozinha? ― Cravou o olhar no bebê gritão. Era um
milagre que tivesse podido dormir. ― O pai do bebê ficou em
casa?
As covinhas se fizeram mais pronunciadas.
― Suponho que sim. Mas a verdade é que não sei e
tampouco posso perguntar à mãe, porque ela está dormindo e
me dá pena despertá-la. ― Baixou a voz. ― A verdade é que
morro de curiosidade. Deve ser duro empreender o caminho
com um bebê sem ajuda alguma. Embora... ― Franziu o cenho.
― Embora eu tampouco sou a mais adequada para falar, já que
tampouco tenho ajuda. Bom, já tenho sim. ― Seus lábios
rosados voltaram a sorrir e seu alegre olhar a percorreu da
cabeça aos pés.
― A seu serviço, senhorita. ― No reduzido espaço, em vez
de lhe fazer uma reverência, tocou a aba do chapéu.
Viu que seu sorriso se alargava.
A bola de fogo que tinha no estômago executou um baile
impaciente. Dada a presente companhia, não podia perguntar à
dama o que queria dizer. Não podia perguntar seu destino,
suas intenções, seus planos ou quem era Annie. Nem sequer
podia pronunciar seu nome. E esperava fervorosamente por
seu próprio bem que ela não decidisse proporcionar a dita
informação de forma voluntária, enquanto compartilhavam o
habitáculo com quatro desconhecidos. Entretanto, na parada
seguinte, levá-lo-ia a parte e averiguaria o necessário. Depois a
devolveria à sua família.
Era evidente que a senhorita Lucas fugiu de casa. De sorte
para ela, ele era um especialista em devolver moças que
escapavam. O especialista assalariado da Coroa, o membro do
Clube Falcon (uma organização secreta muito reduzida,
dedicada a devolver aristocratas perdidos a seus lares), com
um dom para guiar a moças como ela. Malcriadas,
voluntariosas, ingênuas e seguras de seus encantos. Jovens
capazes de conduzir todo mundo sem mais ferramenta que a
hipnótica força de seus sorrisos.
Viu-a concentrar-se de novo no bebê que tinha nos
braços. Wyn fechou os olhos e retornou à letargia
proporcionada pelo gin, mas o descontentamento o tinha
apanhado. A potranca era algo secundário ao lado da moça. O
duque de Yarmouth teria que esperar.
Claro que não havia pressa. Ninguém suspeitaria que
havia algo estranho se se atrasasse. Essa missão era
claramente um prelúdio de seu retiro obrigatório, uma
mensagem silenciosa de que a Coroa já não requeria seus
serviços. Uma reprimenda final. O chefe do Clube Falcon, o
visconde Colin Gray, tinha-o advertido: seu diretor estava
preocupado. Gray acreditava que se devia ao brandy. Mas Wyn
sabia a verdade: o diretor levava cinco anos sem confiar nele, e
não tinha nada que ver com o brandy.
Nesse momento, devolveria a senhorita Lucas à sua casa,
depois levaria o cavalo a seu dono e sua atual existência
terminaria com um escândalo ignominioso. Cruzou os braços
diante do peito. O bebê chiou. A carruagem se sacudiu. O
esquecimento do sono lhe chegou muito devagar.
3

O senhor Yale voltou a despertar quando a carruagem


entrou no pátio da casa dos correios. Foi o primeiro em sair,
apesar da chuva.
Diantha necessitava uma enorme taça de chá,
espreguiçar-se um pouco e dar um passeio vigoroso. Doíam-lhe
muito os braços e os ombros pelo peso do bebê.
A mãe da menina deu-lhe um apertão na mão.
― Senhorita, salvou-me hoje. Esta noite rezarei por você.
― Suspeito que você teria feito o mesmo por mim. ― Sorriu
e se dirigiu à porta, embora tremessem os joelhos.
O senhor Yale, que a aguardava junto à carruagem à
mortiça luz da chuvosa tarde, estendeu-lhe uma mão. Para
Diantha era ridículo sentir um repentino formigamento no
estômago, mas já que somente tinha experimentado essa
mesma sensação em três ocasiões ao longo de sua vida e
sempre ele a tinha provocado, não estranhou. Essa era a
reação que devia suscitar um verdadeiro herói em uma dama.
Colocou seus dedos enluvados sobre a palma da mão que
lhe oferecia e desceu os dois degraus. Assim que pisou no
chão, que estava cheio de atoleiros, olhou-o aos olhos.
Outro formigamento.
― Senhorita, ― disse ele em voz baixa enquanto ela cobria
a cabeça com o capuz da capa ― espero que me desculpe, mas
devo pedir-lhe que me acompanhe brevemente ao estábulo já
que devo me ocupar de meus cavalos. ― Apontou com a mão
livre os dois cavalos atados à parte posterior da carruagem. ―
Dada a ausência de Annie, acredito que entenderá que não é
certo para você entrar na casa dos correios sem uma
companhia apropriada. ― Seu olhar se desviou um instante
para a porta do estabelecimento, onde aguardava dom Dedos
Salsichões.
― Certamente, senhor. Não me importa absolutamente
acompanhá-lo ao estábulo.
― Excelente. ― O senhor Yale fez uma reverência e seus
olhos cinzas reluziram.
Esses olhos pareciam prata polida. Com esse cabelo tão
negro e seu queixo quadrado, possuía uma atitude quase
impossível, apesar de estar muito cansado. Entretanto, foram
seus olhos o que a atraíram a primeira vez que o viu, nas bodas
celebradas em Savege Park. Porque olhavam uma jovenzinha
como se estivesse pendente de cada uma de suas palavras e
como se seus desejos fossem sua prioridade. De fato, pareciam
tratar de ler sua mente, como se quisesse descobrir seus
desejos em vez de exigir que fizesse o esforço de expressá-los
com palavras.
Isso foi o que fez o senhor Yale na noite das bodas. Leu-
lhe o pensamento e a resgatou. Converteu-se em seu herói.
Observou-o desatar os cavalos da parte posterior da
carruagem e levá-los para o arco de onde se acessava o pátio
traseiro da estalagem. Junto à porta do estábulo viu um cão
muito fraco que os olhou ao passar.
― Pobrezinho, está quase ossos e, além disso, coxeia de
uma pata dianteira. Acredito que está ferido. ― Diantha tentou
dar outra olhada, mas um moço dos estábulos fechou a porta.
― Só é um vira-lata, senhorita.
― Deveriam lhe dar comida. Está esfomeado.
O senhor Yale a olhou com curiosidade antes de ocupar-se
de seus cavalos. Em vez de deixá-los em mãos do moço,
encarregou-se ele mesmo e depois retornou a seu lado.
― Obrigado por ser tão paciente, senhorita Lucas. Como
está? ― Fez uma reverência tão refinada como se estivessem
em um elegante salão.
Ela correspondeu com uma lisonja.
― Bem, senhor. Muito melhor agora.
― Viaja com bagagem?
― Sim, levo um baú de viagem e uma chapeleira. Por que?
― Nesse caso, o primeiro que devemos fazer é ordenar que
desçam ambas as coisas da carruagem.
― Oh, não acredito que seja necessário. Reataremos a
marcha breve. Somente nos deteremos para jantar e para que
troquem a parelha de cavalos, acredito.
― Suponho que você quererá jantar, verdade? ― O senhor
Yale se adiantou e a convidou a entrar ao interior da casa dos
correios.
― Pois sim, estou morta de fome! Jamais tinha imaginado
que viajar de transporte público abrisse o apetite.
― Ah, não?
― Pois não. Não tinha me ocorrido que pudesse passar
fome, assim antes de partir de Brennon Manor não ordenei a
Annie que preparasse comida fria para a viagem. ― Precedeu-o
ao interior e ao fazê-lo percebeu o calor do estabelecimento e o
aroma de carne assada e cerveja.
O botequim ocupava várias estadias contíguas, todas elas
forradas com painéis de madeira e com alegres fogos que
crepitavam em suas respectivas lareiras. Uma mescla de
camponeses, aldeãos e os viajantes da carruagem ocupava o
balcão e as mesas. Diantha sentiu que o estômago rugia.
O senhor Yale tirou-lhe a capa e a convidou a sentar-se
em uma mesa pequena. Imediatamente, apareceu um homem
trajando um avental engomado.
― O que lhe trago, senhor?
― A dama tomará o que goste, e eu quero uma cerveja,
uma taça vazia e uma garrafa de Hennessy.
― Senhorita?
― Traga-me o melhor que sirvam de janta esta noite,
obrigada. ― Sorriu. ― Que cheiro de alimento!
― É assado e o pudim de minha mulher, senhorita. Os
melhores do povoado.
― Bom, não é um povoado muito grande, ― sussurrou
Diantha quando o homem partiu ― mas, sem dúvida, vou
desfrutar muito. Eu poderia comer um cavalo. Nenhum dos
seus, é obvio. Tem animais preciosos, senhor Yale!
― Obrigado, senhorita Lucas. ― Não se sentou. ― Já volto.
― Olhou-a aos olhos sem fraquejar. ― Seria conveniente que
ficasse nesta mesa durante minha ausência.
― Tenho tanta fome que, em todo caso, só iria à cozinha.
Ele se despediu com uma reverência e desapareceu pela
porta traseira. Diantha olhou para o balcão, de onde dom
Dedos Salsichões não tirava o olho dela. Depois, desviou o
olhar para a janela para observar a chuva.
Quando o senhor Yale retornou, já tinha chegado a
comida e as bebidas que ele tinha pedido.
― Não vai comer?
― Agora não. ― Serviu-se de uma taça da garrafa e a
bebeu de um gole. ― Mas que você aproveite. ― acrescentou,
levantando a caneca de cerveja.
― Obrigada. ― Diantha começou a comer. ― O sabor é
ainda melhor que o aroma. Mal comi durante os quinze dias
que passei em Brennon Manor por culpa da emoção da viagem.
― Senhorita Lucas, permita-me o atrevimento de lhe
perguntar pelas circunstâncias que a levaram a viajar sozinha?
― A donzela de Teresa me abandonou. Pensamos que era
uma moça muito dispersa para viajar, mas não esperávamos
que desertasse tão cedo. Para falar a verdade, não esperávamos
que desertasse.
― Entendo. Teresa...
― Finch-Freeworth. Estudamos juntas durante três anos
na Academia Bailey para Senhoritas depois que meu padrasto
me enviou à dita instituição depois de despedir minha quarta
instrutora. Entretanto, a senhorita Yarley, a diretora da
Academia Bailey, era uma mulher esplêndida, de modo que
jamais lhe ocasionei problema algum. Valha-me Deus, o pudim
está gostosíssimo! É tão boa a comida em todas as casas de
correios?
― Absolutamente. Posto que a propriedade de seu
padrasto se encontra em Devonshire, devo supor que o lar da
senhorita Finch-Freeworth, Brennon Manor, se encontra no
Norte e que você acaba de abandoná-la recentemente ― disse
ele sem fazer sequer uma pausa, algo que Diantha gostou.
A noite que a resgatou em Savege Park também lidou com
a situação sem necessidade de que ela explicasse.
― Saí esta manhã muito cedo.
― E o que...? ― Fez uma pausa. ― Senhorita Lucas, por
favor, desculpe-me se lhe peço mais detalhes.
― É obvio. ― Por que não ia dar-lhe detalhes se o viu sorrir
levemente. Apenas uma ameaça de sorriso em uma das
comissuras de seus lábios. Nas três ocasiões que o senhor Yale
tinha visitado Savege Park, o lar de sua meia-irmã Serena,
Diantha o tinha visto sorrir dessa forma a sua outra meia-irmã,
Viola, e também a lady Constance Read, uma deusa dos pés à
cabeça, que além disso, era uma herdeira escocesa com quem
parecia manter uma especial amizade. Entretanto, jamais
tinha-lhe sorrido dessa forma, nem sequer na noite que a
resgatou. Nesse momento, o dito sorriso suscitou uma reação
estranha em seu interior, algo agradável, mas alarmante ao
mesmo tempo. Algo... quente.
― Já que, em circunstâncias normais, imagino que seu
padrasto teria disposto que você viajasse em sua carruagem, o
que opina ele e os pais da senhorita Finch-Freeworth do fato de
que utilize um transporte público para deslocar-se?
― Oh, não há o menor inconveniente. Meu padrasto não
sabe. Quanto aos pais de Teresa, lady Finch-Freeworth é uma
mulher maleável sem quase caráter e sir Terrence é exatamente
igual ao que façam as mulheres de sua casa. De fato, acredito
que nem sequer reparou em minha presença.
Os olhos do senhor Yale adquiriram um brilho suave que
lhe provocou um estranho nó na garganta.
― Permita-me que o duvide.
― Mas é verdade. Quando lhes mostramos a carta de meu
padrasto, nem ele nem lady Finch-Freeworth pestanejaram
sequer. Fiz um trabalho esplêndido falsificando a assinatura de
meu padrasto. A verdade é que tenho muito talento com a
pluma, assim foi certamente satisfatório.
― Suponho que foi, sim.
― O que está bebendo?
― Brandy. Diga-me, senhorita Lucas, qual é seu destino?
― Jamais vi um cavalheiro ingerir tanto brandy em tão
pouco tempo desde que morreu meu pai. Claro que meu
padrasto mal bebe e tampouco pode dizer-se que conheça
muitos outros cavalheiros, salvo os maridos de minhas irmãs e
o pároco. E, naturalmente, ao senhor H.. Mas isso mudará
uma vez que encontre a minha mãe, e me translade a Londres
no mês que vem e seja apresentada a sociedade.
O senhor Yale não replicou. Limitou-se a olhá-la com
esses olhos chapeados, um olhar de forma penetrante. Diantha
se sentiu muito observada, mas não de um modo
desrespeitoso. Sentia que a olhava com interesse. Que a olhava
de verdade. E não por sua acne e seu aspecto roliço, que
desapareceram depois de cumprir dezoito anos, e tampouco por
seus olhos, que sua mãe insistia em qualificar como seu
melhor traço. O senhor Yale parecia olhar algo mais. Parecia
olhar seu interior.
No final, disse:
― Quem é o senhor H.?
― Meu futuro esposo. Ou, pelo menos, esse é o plano.
― Entendo. Trata de livrar-se de um compromisso?
― Absolutamente. Alegrar-me-á acabar casada com o
senhor H. tanto como me alegraria acabar com qualquer outro.
Bom, talvez não com qualquer outro. Mas você me entendeu.
Ao ver que esboçava de novo esse leve sorriso, Diantha
experimentou de novo a sensação cálida nas vísceras.
― Possivelmente. ― foi sua réplica.
A porta se abriu com brutalidade, estatelando contra a
parede, e um moço gritou:
― Os passageiros da carruagem a Shrewsbury!
― Oh! ― Diantha limpou a boca com um guardanapo. ―
Devemos nos apressar, senhor Yale. Tem que ir pegar seus
cav...
― Senhorita Lucas, sente-se e acabe de jantar. ― Não se
moveu.
― Mas a carruagem do serviço de correios de Sua
Majestade parte. ― Diantha ficou em pé. ― Não podemos
entre...
O senhor Yale se levantou, e quando a olhou o fez com
uma expressão tão íntima que ela sentiu que as solas das botas
de viagem ficavam coladas ao chão. Em seguida, disse em voz
baixa:
― Senhorita Lucas, não é aconselhável que uma dama
viaje de noite em transporte público, com escolta ou sem ela. ―
Seu porte era firme, totalmente diferente à atitude indolente
que tinha demonstrado durante o trajeto.
Sentiu que sua forma de dominar a situação lhe provocava
algo incomum, da mesma maneira que o tinha provocado seu
escrutínio.
― O que quer dizer é que vê dom Dedos Salsichões como
uma ameaça.
― O que quero dizer que se for inteligente, não subirá a
outra carruagem até que amanheça e, em troca, desfrutará de
uma cômoda noite de descanso nesta estalagem respeitável.
Ela pareceu considerar, franzindo ligeiramente o cenho.
Seu olhar a percorreu novamente de cima abaixo, como um
homem que examinasse a um cavalo antes de comprá-lo. Seus
rosados lábios compuseram uma careta que não era
absolutamente desagradável, a não ser justamente o contrário,
já que acentuava a forma de coração de sua boca e ressaltava
seu lábio inferior.
― Não me convencerá de que você seria incapaz de lhe
vencer se tivesse que enfrentá-lo. ― Olhou-lhe os ombros e,
depois, as mãos.
― A questão, senhorita Lucas, não é se eu seria capaz ou
incapaz. A questão é se estiver disposto a assumir a
possibilidade de chegar a esse ponto.
― Entendo. ― O olhar da senhorita Lucas posou em sua
mão direita enquanto que se ruborizava ligeiramente. ― O que
fez com suas luvas, senhor Yale?
― Vi-me obrigado a abandoná-las esta manhã. ― Um dos
participantes da orgia tinha apagado um charuto em uma das
luvas e ele detestava esse tipo de mancha. ― Seria amável de
sentar-se? ― Apontou de novo seu jantar.
― Suponho que estou cansada e que me virá bem
descansar. ― o cenho franzido desapareceu e esses olhos azuis
a olharam. ― Vamos alugar quartos para passar a noite?
Jamais fiz isso por mim mesma.
― Será uma honra. ― respondeu Wyn, enquanto fazia uma
reverência.
A senhorita Lucas sorriu, e o gesto deixou à vista suas
covinhas. De repente, arregalou os olhos.
― Oh, minha bagagem!
― Tomei a liberdade de ordenar que a subam a um quarto
privado.
― Fez enquanto esteve fora? ― A senhorita Lucas piscou. ―
Acredito que o perdoarei por não haver me consultado antes...
de ter antecipado o tempo. Suponho que tem muita experiência
nisto de viajar.
― Tenho alguma, sim. ― Por vários continentes.
― Portanto, confiarei em sua opinião sobre a temeridade
de viajar na carruagem do serviço de correios de Sua Majestade
à noite. ― ficou séria. ― Embora desejaria prosseguir com
minha busca o quanto antes possível. ― Sentou-se, esperou
que ele a imitasse e, depois, agarrou de novo o garfo. ― Não
tenho muito tempo. Supõe-se que minha estadia em Brennon
Manor será de quatro semanas e já passaram duas.
― Que busca? Isso quer dizer que não está tratando de
evitar um pretendente rechaçado?
Viu-a franzir o cenho, um gesto que lhe indicou que sua
pergunta acabava de fazer racho na opinião que a dama tinha
de sua inteligência.
― Já lhe disse que não estou fugindo de ninguém. Mas
que trato de encontrar a alguém.
― A quem?
― A minha mãe. ― Olhou-o de forma penetrante. ― Sabe
algo sobre minha mãe?
― Só que não reside na casa de seu pai e que não se deixa
ver entre a alta sociedade.
E que estava envolta em um turbulento assunto com um
aristocrata traidor há vários anos, que provocou a fuga
apressada ao continente. Entretanto, foi Liam quem se ocupou
de assunto, já que naquele tempo ele estava ocupado
batalhando contra seus próprios demônios e não tinha tempo
para preocupar-se dos interesses de seus amigos.
A senhorita Lucas engoliu um bocado de carne assada e
Wyn observou o movimento de sua garganta, que ficava à vista
sobre o recatado decote de seu vestido. Era um movimento
normal e corrente, mas ao mesmo tempo tão feminino que
conseguiu desviar sua atenção da garrafa que tinha junto à
mão.
A irritante sede que tinha no sangue diminuiu com a
primeira taça e desapareceu por completo com a segunda.
Serviu-se de uma terceira. Jamais levava uma cigarreira, mas o
estalo contínuo e as sacudidas da última hora de trajeto na
carruagem de correios tinham levado sua irritabilidade quase
ao limite.
― Partiu faz quatro anos, alguns dias antes que eu
cumprisse quinze anos. ― tomou um gole de chá. ― Teve algo a
ver com minhas irmãs mais velhas e meu irmão Tracy, mas
não estou a par do assunto. Aparentemente, todos se
alegraram com sua partida. Não era uma boa pessoa, asseguro.
― Se você o diz, acreditarei.
Seus olhares se encontraram por um instante e o azul
intenso de seus olhos refulgiu como uma pedra preciosa.
― O caso é que meu padrasto jamais fala dela, como
tampouco o fazem os outros. É como se sumisse por arte de
magia.
― Extraordinário! ― murmurou ele.
― Verdade que sim?
Talvez o seria se sua própria história não confirmasse que
tal coisa era possível. Desde que sua mãe morreu, fazia já
quatorze anos, Wyn não tinha visto seu pai nem a seus irmãos,
nem tampouco tinha mantido correspondência com eles.
― Mas sei que não é assim ― seguiu a senhorita Lucas
atacando com ímpeto a carne assada. ― Quando partiu,
perguntei por ela. Meu pai, refiro a meu padrasto, disse-me que
partira ao Norte, para viver com parentes. ― Olhou-o, elevando
as pálpebras, já que tinha a cabeça encurvada. ― Não o fez.
Ou, ao menos, se o fez, já não está ali. Veja, meses atrás
revistei o escritório de meu pai.
― Que intrépido de sua parte.
― Pois sim. Fiz um monte de coisas depravadas em minha
vida que faziam chorar a meus instrutores, que acabavam
puxando os cabelos. Não de forma literal, é obvio. Salvo uma,
mas isso foi um acidente. Diria que fui um pouco problemática,
embora jamais roubei. Mas ela é minha mãe e meu pai se nega
a me dar informação e, a verdade, tenho direito, ou seja, de
saber algo dela. Não acha?
― Deve desejá-lo com esforço.
― Não respondeu a minha pergunta. Não sou uma cabeça
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de chorlito , senhor Yale.
― Jamais me ocorreria pensar.
― E nunca roubei as cartas. Somente as li. ― arqueou
suas delicadas sobrancelhas enquanto que aparecia um brilho
travesso em sua íris azul. ― Assim não cometi pecado algum.
De verdade.
A repentina imagem de vê-la pecar fez com que Wyn
agarrasse de novo sua taça.
― E onde está sua mãe?
A senhorita Lucas soltou o garfo e esboçou um doce
sorriso.
― Senhor Yale, que refrescante é falar com você. Meu pai
jamais me entende quando falo e o senhor H. me permite falar
e falar sem replicar sequer meus comentários. Mas você é
diferente. Você parece saber de tudo.
Sim. Wyn sabia que lhe convinha colocá-la em uma
carruagem de correios com destino ao Norte e livrar-se dela o
antes possível. O hospedeiro se aproximou da mesa,
oferecendo-lhe a oportunidade de afastar pela força a vista de
seu precioso pescoço.
― Senhor, meus dois melhores quartos estão prontos para
você e para sua irmã. Podem subir quando quiserem. Jantará
mais tarde?
― Traga-lhe um prato do assado. Adorará. ― A senhorita
Lucas levou a boca outro pedaço de carne assada.
Wyn afastou o olhar desses rosados lábios e ficou em pé.
― Minha irmã subirá imediatamente. Está cansada depois
de todo um dia de viagem.
― Mas deve comer algo...
― Jantarei em meu quarto ― interrompeu-a, apontando
para a escada.
Uma vez que chegaram ao patamar superior, o hospedeiro
lhe entregou duas chaves.
― Esta é para a dama, senhor, e esta é para você. Direi à
donzela que suba para auxiliar à dama e, depois, farei com que
lhe preparem o jantar sem demora.
― Obrigado.
― Felicite a sua esposa pelo assado e pelo pudim, estavam
deliciosos. ― A senhorita Lucas esboçou um sorriso
deslumbrante.
O hospedeiro sorriu de orelha a orelha.
― Farei senhorita.
Ela o observou enquanto se afastava pelo corredor.
― Suponho que é uma boa ideia que lhe haja dito que sou
sua irmã. Mas é evidente que não nos parecemos
absolutamente. ― Olhou-o aos olhos. Sua expressão era
inocente e sincera.
Era certo. Não se pareciam absolutamente. Não se
pareciam no essencial, em algo que transcendia a cor de olhos
ou de cabelo. A senhorita Lucas afirmava ter feito coisas
depravadas, mas seu rosto irradiava sinceridade e bondade.
Seu comportamento o demonstrava. Tinha tomado nos braços
o bebê e o tinha levado em seu regaço durante toda a tarde.
Tinha felicitado ao hospedeiro por uma comida tão simples.
Wyn não alcançava a entender como uma mãe podia
abandonar a uma filha assim, justo quando chegava à
puberdade.
― Onde se encontra sua mãe, senhorita Lucas?
― Em Calais.
Sim, era uma moça intrépida.
― Tem a intenção de cruzar o Canal para ir em sua busca?
― Sim. Parece viver, aparentemente, com um numeroso
grupo de jovens. Fez meu pai acreditar que se trata de um
convento de monjas católicas e que necessita de dinheiro para
financiar artesanatos e bordados que fazem para ganhar vida.
Isso foi o que lhe disse por carta a meu pai. Eu não sou tão tola
para acreditar nisso. Acredito que é a diretora de uma escola.
Wyn mordeu a língua.
― Uma escola?
Ela esboçou um sorriso.
― Não. Disse para ver como você reagia. A verdade, estou
muito impressionada. É obvio que eu não deveria estar a par
destes assuntos, mas Teresa Finch-Freeworth me ajudou
muito. ― Sorriu com doçura. ― Embora saiba que você jamais
revelará a surpresa que lhe provocou minha indiscrição. É um
cavalheiro dos pés à cabeça, senhor Yale.
― Por que seu padrasto não foi procurá-la?
― Porque não se importa com o que lhe aconteça. ― A
senhorita Lucas afastou o olhar.
Era uma inconveniência. Ela era uma inconveniência. Um
precioso saco de boas intenções que guardava certo
ressentimento. O ressentimento era evidente somente olhando
seus enormes olhos, embora afirmasse justamente o contrário.
E para o cúmulo devia sofrer a indignidade de suportar a nova
profissão de sua mãe, se o que dizia fosse verdade.
― Senhorita Lucas, não posso permitir que prossiga com
sua viagem.
Seu olhar voou para ele imediatamente.
― Como?
― Que não posso...
― Não, não. Escutei-o perfeitamente. É que estou atônita.
― Não sei se me sinto adulado ou insultado por sua
surpresa, senhorita.
― Ah. Claro. Peço-lhe desculpas, senhor. ― Pareceu
recompor-se e com muita rapidez, por certo.
Observou-o um instante e depois deixou escapar um
pequeno suspiro. Entretanto, não pareceu muito desiludida,
uma atitude que Wyn tinha visto em muitas jovenzinhas ao
longo dos últimos anos. Sem dúvida, para ela somente era um
jogo a mais. Talvez somente desejasse uma pequena aventura
e, a essas alturas, agradecesse muito sua intervenção.
― Suponho que terá averiguado a que hora sai a
carruagem de correios que me levará de volta à casa de minha
amiga, verdade?
― Sai amanhã às dez em ponto.
― Nesse caso, haverá tempo de sobra para tomar o café da
manhã. Eu não gosto de viajar com o estômago vazio. ― Sua
voz parecia apagada.
― É para o seu bem, senhorita Lucas.
Pareceu meditar um instante.
― Viajar de transporte público é incômodo. Talvez não
consiga chegar a Bristol. ― Deixou escapar um pequeno
suspiro que elevou seus seios. ― Bom, durma bem, senhor.
Obrigada por sua ajuda. ― estendeu-lhe a mão e Wyn lhe
entregou a chave, e depois, que ela entrou em seu quarto, Wyn
voltou para o botequim e ao que ficava da garrafa de brandy.
Diantha se apoiou na porta de seu quarto, embargada por
uma estranha sensação de vazio no estômago. Seu olhar
percorreu a pequena estadia, sem demonstrar o menor
interesse. Tinha viajado em muitas poucas ocasiões, de modo
que deveria estar emocionada pela repentina mudança de
planos. Uma noite em uma casa dos correios de verdade,
depois de ter desfrutado de um jantar delicioso em companhia
de um verdadeiro cavalheiro.
A essas alturas, sabia que se equivocou de novo. Dessa
vez não era seu plano o que tinha falhado, a não ser a ideia que
tinha dos homens.
Um verdadeiro cavalheiro não tinha por que ser um herói.
Porque acima de qualquer outra coisa, um verdadeiro
cavalheiro se esforçaria para proteger o decoro, as boas formas
e, o mais importante e desolador, o bom nome de uma dama.
Diantha não se considerava uma pánfila e sabia
perfeitamente que sua viagem podia prejudicá-la, coisa que
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uma pánfila não faria. Passaria semanas na estrada, sem uma
carabina apropriada e sem uma donzela, e seu destino seria
um bordel. Um verdadeiro cavalheiro como o senhor Yale só
podia atuar de uma forma: acompanhando-a de volta a seu lar.
Não podia ser seu herói. Não nessa ocasião. Nessa ocasião, a
condição de cavalheiro era incompatível com a de herói.
Deveria voltar para o botequim e buscar outro herói.
Certamente que havia algum entre todos esses camponeses e
vizinhos do povoado. Ou talvez deveria empreender a sós o
lance seguinte de sua viagem, com a esperança de encontrar
um herói no caminho.
Tinha-lhe sido fácil memorizar o horário das carruagens
de correios, que se pendurava na parede junto à porta
principal, enquanto comia e explicava sua busca ao senhor
Yale. A carruagem de Shrewsbury passaria às cinco e quinze da
manhã. Pegaria essa. Encontraria sua mãe e, por fim, falaria
com ela.
Diantha se despiu até ficar com roupa interior, e quando
apareceu a donzela, despachou-a depois lhe dar um penique.
Depois se deitou na cômoda cama, coberta com o edredom
mais bonito que tinha visto, e cravou a vista no teto. A pintura
branca estava rachada, igual ao que acontecia com sua teoria
sobre os cavalheiros e os heróis.
O problema era que, em sua opinião, se algum homem
podia ser um verdadeiro herói, era o senhor Yale. Embora
talvez a essas alturas já não existissem as comparações que
abraçavam a honra e a nobreza de espírito. Talvez não
existissem, como tampouco existia o amor que descreviam as
histórias antigas, esse amor entre um homem e uma mulher
que sucumbiam à devoção mais sublime e viviam felizes para
sempre. Os dois matrimônios de sua mãe demonstravam que o
amor era um mito, para não mencionar a morna relação que
mantinham lady Finch-Freeworth e sir Terrence. Suas irmãs
sim que pareciam felizes com seus maridos, mas contavam com
muito dinheiro, muitas carruagens e muitas casas. Por Deus,
Serena inclusive era condessa! Como não ia ser feliz?
Entretanto, seu irmão Tracy evitava o matrimônio, e
Diantha entendia perfeitamente seus motivos. O amor
verdadeiro era um conceito místico. Como os heróis.
Fechou os olhos e tentou não pensar nesse cavalheiro tão
bonito que ia deixar para trás e que, embora maravilhoso,
somente era um homem afinal.
4

Às onze em ponto, Wyn já quase podia ver o fundo da


garrafa. E não se devia a sua excelente visão.
O botequim seguia abarrotado, já que a estalagem era um
dos lugares preferidos pelos habitantes do povoado e os
fazendeiros para celebrar o final da colheita. Muito regozijo
para seu gosto nesse momento. Afastou o resto do brandy,
ficou em pé e caminhou por entre as mesas cheias de
vociferantes homens em direção à porta para chegar ao
estábulo. Devia comprovar o estado dos cavalos. A palha devia
estar seca. A cavalariça tinha que estar limpa, embora tivesse
que empunhar ele mesmo a pá. Tinha-o feito em incontáveis
ocasiões inclusive antes de ter cavalo próprio.
A noite era muito escura e havia só um farol para iluminar
a entrada do estábulo. Atravessou o caminho empedrado,
chapinhando com as botas, e abriu a porta. Entrou e fechou
atrás dele, bloqueando assim a gritaria procedente da
estalagem e a luz da estrada.
A um escasso metro de distância, escutou-se um suspiro
na escuridão. Um som breve e agudo.
E, continuando, a mulher se lançou sobre ele.
Tinha umas curvas perfeitas onde suas mãos a tocaram,
que se fecharam ao redor de sua cintura, e estava tremendo.
Respirava entrecortadamente contra seu queixo.
Wyn fez o que não teria feito de não houvesse bebido
quase uma garrafa inteira de brandy em menos de três horas
ou de ter utilizado todos seus sentidos nesse momento, não só
seu ofegante sentido do tato... Como por exemplo, seu sentido
do olfato, que lhe teria indicado que não tinha uma das
empregadas do botequim entre as mãos. Colou-a contra seu
corpo. Que outra coisa pretendia uma moça quando se jogava
nos braços de um homem bêbado quase a meia-noite?
Ouviu-a ofegar antes que se retesasse. Continuando, a
mulher colou o queixo no seu e sussurrou:
― Ajude-me.
Se não fosse pelo estrépito que lhe chegou do fundo do
estábulo e pelo palavrão tão vulgar procedente da mesma
direção, Wyn teria reagido de forma muito distinta nesse
momento, embora estivesse bêbado.
Não soltou a senhorita Lucas, embora seu pesado cérebro
lhe gritasse que o fizesse. Em troca, voltou-se para protegê-la
com seu corpo, colou-lhe as costas à parede e lhe sussurrou ao
ouvido:
― Abrace-me e fique quieta.
Obedeceu. Não lhe custou abraçá-la e afiançar os pés no
chão de uma vez. Sentia-a suave e, por fim, estava usando
todos seus sentidos, e como cheirava bem, não teve o menor
problema em manter-se erguido. Cobriu-lhe o cabelo com o
capuz da capa e acariciou seus cachos, tão suaves como a
seda.
Escutaram-se passos fortes.
― Onde você está, pombinha? ― perguntou uma voz rouca
que arrastava as palavras. ― Saía como uma boa garota ou me
zangarei muito quando a encontrar.
O corpo da senhorita Lucas estremeceu. Wyn inclinou a
cabeça, ocultando-a ainda mais se por acaso o homem se
acostumasse a ver na escuridão. Poderia enfrentá-lo, mas os
passos sugeriam que era um homem corpulento e Wyn sabia
que não se encontrava em seu melhor momento em forma com
quase uma garrafa de brandy no corpo e sem ter comido há
dias.
Os passos se escutaram mais perto sobre a palha antes de
deter-se.
― O que acontece aqui? ― Uma pausa. ― Ah, perdoe, bom
homem. Estava procurando a minha mulherzinha, sabe?
― Entendo, «bom homem». ― Wyn não teve o menor
problema em adotar um tom rouco. A carícia de seus lábios no
lóbulo de sua orelha tinha convertido sua garganta em um
deserto.
O homem resmungou algo e se dirigiu à porta, que abriu e
fechou com um golpe ao sair.
Ela suspirou com alívio e afrouxou os dedos com os quais
se segurava a suas costas. Entretanto, Wyn não soltou a sua
cativa. O brandy que corria por suas veias o impedia. Seus
seios se colavam a seu torso e seu aroma lhe subia à pesada
cabeça. Uma vez passado o perigo, sentia a mulher que tinha
nos braços, sentia seu corpo quente e pequeno, submetido ao
seu com tanta naturalidade. Deslizou as mãos pelas suas
costas, percorrendo a elegante curvatura de sua coluna,
sentindo as vértebras como as curvas arredondadas do leito de
um riacho, e sentiu a mulher. Uma mulher, jovem, doce, linda
e viva, cujo sangue corria por seu trêmulo corpo.
Ela suspirou mais uma vez e se revolveu entre seus braços
para empurrá-lo. Mas ainda não tinha terminado com ela.
Segurou-a com firmeza, e sentiu um zumbido nos ouvidos,
como quando o vento soprava com força, ao cobrir com as
palmas esse traseiro tão perfeito e feminino.
― Senhor Yale, ― sussurrou ela depois de ofegar ― por
favor, deve deter-se agora mesmo.
Dado que nem sequer uma garrafa de brandy podia
eliminar o que tinham conseguido nos anos de treinamento,
soltou-a e retrocedeu um passo. Não havia mais luz no
estábulo, mas seus olhos se adaptaram à escuridão e podia vê-
la. Podia cheirá-la e escutá-la, podia escutar suas rápidas
inspirações superficiais, mescladas com os bufos dos animais.
De repente, manter-se em pé se supôs ser um desafio, de
modo que se apoiou na porta de uma baia.
― Senhorita Lucas, teria a amabilidade de me dizer o que
faz no estábulo? ― perguntou, pronunciando cada palavra com
supremo cuidado.
― Escondia-me dele. Mas me encontrou. E o mesmo... o
mesmo de você. ― Sua voz soava mais aguda que antes, e mais
apressada.
― Vai ter que perdoar minha má educação, mas agora
mesmo estou um pouco...
― Bêbado.
― …indisposto.
― Teresa me disse que os homens bêbados podem
demonstrar atitudes amorosas embora não seja sua intenção.
Tinha sido sua intenção. E continuava sendo. Tinha a
sensação de seu quente traseiro nas palmas das mãos e no
torso, e a lembrança de sua pele nos lábios lhe provocava certa
tensão na virilha.
― E esse homem odioso também estava. ― Baixou a voz. ―
Chamou-me «pomba». Alguma vez escutou algo tão ridículo?
Parecia um cavalheiro, mas afinal não tem um cabelo de herói.
Wyn meneou a cabeça a fim de conseguir esclarecer-lhe
minimamente.
― Senhorita Lucas, volte para seu quarto, feche a porta
com chave e durma.
― Não quer saber por que não estou ali?
― Pode ser que esteja bêbado, mas não sou tolo. Sei por
que não está ali.
― Sabe que saí em busca de outro cavalheiro para que me
ajudasse porque você se negou?
― É possível que a conheça melhor do que você mesma se
conhece. ― Nove moças. Em dez anos, tinha encontrado e
resgatado a nove moças que fugiram. Também tinha
encontrado a dois bebês, a um amnésico, dois meninos cujo
tutor legal tinha vendido às minas, um antigo soldado que se
tornou louco e não se deu conta de que tinha abandonado a
sua família, e um rebelde escocês que não era um rebelde. Mas
nove moças. Sempre as recebia. Inclusive riam e diziam que se
davam muito bem com elas, como se compartilhassem uma
piada incrível. ― Vá-se. ― Abriu a porta para ela.
A senhorita Lucas se foi, mas não o fez com atitude
desafiante nem docilmente. Foi sem mais, e sua silhueta ficou
recortada pelo farol do pátio, uma silhueta que Wyn bebeu com
seu impreciso olhar, da curva de seus quadris até o elegante
traçado de seus ombros. Estava bêbado. Muito bêbado como
para não a olhar e não o bastante para que a imagem não o
afetasse.
Pela manhã, desculpar-se-ia como era devido por suas
rápidas mãos. Entretanto, nesse momento era incapaz. Não
podia mentir de forma convincente sob os efeitos do brandy, e
Diantha Lucas não era uma moça para que se mentisse.
Inclusive bêbado percebia.

****

Um raio de sol cravou Wyn nos olhos. Alguém chamava a


sua porta, arrancando-o de um profundo sonho.
Esfregou o rosto para despertar e se aproximou da porta.
O moço dos estábulos estava no corredor, com o cenho muito
franzido, e ao vê-lo levou uma mão à boina.
― Bom dia, senhor.
Parecia muito alterado para os destroçados nervos de
Wyn. Uma garrafa solucionaria o problema. Mas nunca bebia
antes de meio-dia. Nunca. Era a única regra a que se atava. A
única regra de entre todas as que tinha lhe ensinado sua tia-
avó, uma das quais rompeu a noite anterior, em um inusitado
arrebatamento de debilidade, razão pela qual teria que pedir
desculpas esse dia. A senhorita Lucas não lhe parecia uma
pessoa suscetível, mas era uma dama, e uma muito jovem. Por
estranho que parecesse, não a imaginava ofendida. Mas sim
um pouco... receosa.
Levou uma mão à testa.
― Que horas são?
― Quase oito, senhor.
O estômago deu-lhe um tombo pela dor perpétua. As oito
era uma hora cedo demais para sentir essa instabilidade tão
inusitada nas extremidades, sobre tudo tendo em conta que
tinha terminado a garrafa de brandy apenas nove horas antes.
― Passa algo com meus cavalos?
― Supus que gostaria de saber, senhor, que o oficial de
Winsford passou por aqui esta manhã.
― Winsford? ― O condado de seu anfitrião hedonista. Não
era um bom sinal.
― Sim, senhor. ― O moço dos estábulos assentiu com a
cabeça várias vezes, depressa, agitando a viseira de sua boina.
― Esteve perguntando por essa sua égua.
«Um péssimo sinal», pensou.
― Sério?
― Queria entrar na baia e lhe dar uma boa olhada. Mas eu
disse que esse puro sangue lhe arrancaria um bocado de pele
se o tentasse.
Apesar das circunstâncias, Wyn sorriu.
― Sabe que não o faria. Galahad é tão manso como um
cordeiro.
O moço dos estábulos lhe devolveu o sorriso.
― Como o Senhor me deu uma língua para dizer o que
achava conveniente, pareceu-me que poderia usá-la.
― E o que espera receber em troca por este uso em
particular? Porque suponho que o oficial não se encontra ao pé
da escada principal e agora estará encantado de me apontar a
escada de serviço por um preço, verdade?
O homem ficou mais direito que uma vela.
― Um momento, senhor. Não pensava pôr a mão nisso.
Somente pensei que se ia atrás da dama a toda pressa para
poder alcançá-la, convinha-lhe não ter problemas com um
oficial velho e intrometido da outra ponta do país. Bom, é que
depois de vê-la resgatar o velho spaniel que quase perdeu uma
pata no ferreiro e que coxeia tanto, e de vê-la discutir com o
cocheiro para embarcá-lo na carruagem, repetindo uma e outra
vez que ia cuidar dele até que ficasse bom... Bem, pensei que é
o tipo de dama que necessita de alguém que a cuide. ―
ruborizou-se e se acomodou a boina ainda mais. ― Eu tenho
uma moça assim, gosta de cuidar de todo mundo e não tem
ninguém que a cuide. Salvo eu, senhor, me entende.
― Entendo. ― «Por Deus, não», pensou. Que cego tinha
estado ao subestimar bobamente a tenacidade da senhorita
Lucas. Estava perdendo as faculdades, sim. ― Depressa, me
diga em que carruagem dos correios a dama se foi e onde se
encontra o oficial agora.
O oficial estava falando com a autoridade local, lhe
perguntando sobre o espinhoso assunto de recuperar um
cavalo roubado por um cavalheiro de linhagem há mais de
quarenta quilômetros dali. Wyn se apressou a vestir-se muito
agradecido por que a indisputável qualidade de Galahad lhe
conferisse o ar de um cavalheiro de linhagem, um fato que fazia
as autoridades serem cautelosas.
Uma vez nos estábulos, pôs um guinéu na mão do moço
dos estábulos.
O homem arregalou os olhos.
― Não, senhor! Não fiz para que...
― Aceite-a. ― replicou com secura ― Compre algo para sua
moça, essa que se preocupa mais pelos outros que por si
mesmo.
Empreendeu a viagem a passo rápido pela deteriorada
estrada, a um ritmo muito mais intenso do que o da carruagem
dos correios de Shrewsbury.
O cão foi o primeiro a aparecer. Coxeando pelo centro da
estrada para ele, meneava a cauda em uma amostra de boas-
vindas meio inseguro. Depois ladrou uma vez, um som de
alegria, e deu um salto sobre as três patas sãs. A única cor
discernível era o de seus olhos negros. Depois de dar meia volta
retornou por onde tinha aparecido.
Wyn conteve seu cavalo.
Envolta na garoa, a senhorita Lucas se encontrava a um
lado da estrada junto a um baú de viagem, sobre o qual
descansava em uma sombra.
― Não espere que me alegre de que você tenha aparecido
dentre todas as possibilidades. ― disse ela antes mesmo que
detivesse o cavalo, com o cão dando voltas entre eles enquanto
grunhia de prazer.
― Bom dia, senhorita Lucas. Espero que esteja bem.
― Claro que não me encontro bem. ― Tinha o cenho
franzido. ― Certeza de que se alegra disso.
― Ao contrário, senhorita. Não me alegro absolutamente.
Não parecia muito contente, pensou Diantha. Apesar do
tom moderado de sua voz, parecia muito contrariado e um
tanto perigoso no lombo de seu cavalo negro, todo vestido de
negro, com o rosto sem barbear e a gravata atada com
descuido. Diantha nunca o tinha visto com um cabelo fora de
seu lugar, o que queria dizer que ao descobrir que ela não se
encontrava na estalagem, tinha saído correndo para procurá-
la. Algo que, apesar do que jurou ao vê-lo aparecer pela curva,
provocou-lhe uma vez mais o formigamento no estômago.
Inclusive sentiu algo quente, o mesmo efeito que lhe provocou
essa mão em seu traseiro na noite anterior no estábulo.
― Pode me ajudar agora se desejar. ― Franziu mais o
cenho. ― Eu agradeceria. Mas se tenta me obrigar a voltar para
casa de minha amiga ou a retornar a meu próprio lar, negar-
me-ei.
― Senhorita Lucas, por que está a um lado da estrada com
sua bagagem?
― Porque me convém.
O senhor Yale inclinou a cabeça.
― Este tipo de reação não vai levá-la mais perto de Calais.
― E você muito menos, senhor Yale. Antes acreditava que
gostava disso em você. Mas acredito que devo trocar de opinião.
― Obrigado. ― Algo brilhou em seus olhos cinzas. ― E eu
acredito que já sei a quem recorrer quando necessitar que
alguém não me adule.
Seus lábios, que sempre a tinham atraído ao longo de sua
vida, tremeram. Por um momento, esses olhos chapeados se
cravaram nela e o formigamento de seu estômago se converteu
em um estalo de foguetes. Tinha-lhe roçado a bochecha sem
querer a noite anterior. Sua incipiente barba tinha-lhe parecido
áspera e irritante. Ainda lhe ardia a pele ali onde a havia
tocado.
― Veja, não podia deixar o cão para trás. ― explicou com
voz trêmula, embora fosse uma tolice, porque o mais normal
era que o queixo de um homem irritasse ao tato aquelas horas
da noite, já que tinham passado muitas horas desde que se
barbeara. Entretanto, não podia deixar de perguntar-se se sua
pele seria mais irritante nesse preciso momento. E queria tocá-
la. ― Mas vários passageiros do interior da carruagem se
queixaram pelo aroma do estábulo...
― Não era de estranhar.
― ... e o cão se negou a ficar em meu colo quando me
sentei no teto. Acredito que tem medo das alturas. Já viu
alguma vez algo tão ridículo como um cão com medo de altura?
― Uma ridicularia, sem dúvida.
― Está rindo de mim. Mas não podia deixá-lo abandonado
na estrada. De modo que me vi obrigada a descer antes do
tempo. Estou esperando a próxima carruagem dos correios.
― Terá que esperar até quinta-feira.
Ela revirou os olhos.
― É obvio que também li os horários na estalagem.
Somente disse...
― Para comprovar minha reação. ― Um sorriso torcido
apareceu em seus lábios.
Quem ia dizer que a boca de um cavalheiro poderia ser
tão... intrigante? Ou que ao olhá-la a faria sentir-se faminta,
embora mal tinha transcorrido uma hora desde que comeu o
lanche que lhe tinha feito a mulher do hospedeiro na
madrugada, enquanto tentava convencê-la de que não se fosse
sem ele. Diantha nunca tinha reparado antes na boca de um
cavalheiro. Reparar na do senhor Yale nesse momento parecia
uma estupidez.
Mas durante um instante, na noite anterior, sua boca lhe
havia tocado na orelha, derramando seu quente fôlego por seu
pescoço, e não havia se sentido tola. Havia se sentido
acalorada, e não só no pescoço. Mas sim por todo o corpo. A
mera lembrança a acalorou de novo.
― Eu disse para ganhar tempo. ― resmungou. ― Ainda
estou decidindo o que fazer. Vi uma fazenda a dois quilômetros
daqui. Estou pensando em caminhar até ali e pedir ajuda, mas
ainda não tenho esboçado o plano.
― Ah. ― Parecia muito sério sob a garoa, que era de uma
cor muita parecida ao de seus olhos. ― Nesse caso, não quero
alterar sua meditação. Bom dia, senhorita. ― Fez-lhe uma
reverência dos arreios e depois de saudá-la com um gesto
elegante do chapéu, recomeçou a cavalgada.
Diantha foi incapaz de conter o sorriso. Para ser um
homem que estava acostumado a ser tão elegante, era um
brincalhão incurável.
― Não vai me deixar aqui.
Ele não se voltou.
― Tem certeza?
― Muita certeza.
O cão corria atrás dos cavalos. Depois de alguns metros,
deteve-se e a olhou. Diantha começou a ofegar ao sentir que o
pânico subia pelas costas.
― Senhor Yale, deixe de brincadeiras. ― gritou-lhe. ― Sei
muito bem o que pretende.
Ele diminuiu o trote e se virou na sela para olhá-la.
― Causa-me uma pena enormemente que tenhamos que
nos separar quando seguimos sem nos compreender, senhorita
Lucas. ― Fez-lhe outra reverência. ― Mas lhe desejo muito bom
dia e que tenha sorte na fazenda. ― Atiçou os cavalos e
começou a afastar-se de novo.
Ela se aferrou as luvas molhadas e moveu os dedos dos
pés dentro das botas empapadas.
― Tinha um plano! ― gritou. ― E levo recursos suficientes.
Não embarquei nesta missão como uma tola louca. Tinha um
plano. ― O senhor Yale parecia estar muito longe para escutá-
la, assim apertou os dentes e resmungou: ― Se você for um
verdadeiro cavalheiro, minha mãe é uma santa. ― Endireitou
os ombros. ― Muito bem, desculpo-me! ― Continuando, e em
voz um pouco mais baixa, porque era incapaz de suportar a
humilhação: ― Por favor, volte.
O cavalo negro se deteve e a égua o imitou. O senhor Yale
os instou a dar meia volta e retornou. A vários passos de
distância, desmontou, deixou os cavalos a um lado da estrada
e se aproximou dela andando, com o cão colado aos
calcanhares. Estava concentrado nela como se fosse o único
que existia no mundo, algo habitual nele, e, é obvio, algo que
lhe tinha encantado até esse momento.
Deteve-se muito perto dela, tão alto e tão largo de ombros,
com o capote agitando-se em torno de suas musculosas pernas
e a suas reluzentes botas, a personificação do homem que teria
medo se o encontrasse em um caminho deserto em um dia de
chuva sem conhecê-lo de antemão. Claro que, em realidade,
não o conhecia, ao menos não o conhecia bem, somente
através de suas meias-irmãs.
E a noite anterior, quando a tocou apesar de que não
deveria havê-lo feito, afrouxaram-lhe os joelhos. Se não fosse
por suas fortes mãos que a seguravam entre seu torso e a
parede, teria caído ao chão.
― Seu plano era uma estupidez. ― Seus olhos brilhavam,
embora não pudesse ser fruto da raiva.
Um verdadeiro cavalheiro, como foi seu pai e era seu
padrasto, ocultava seu mau gênio ante as damas. Entretanto, o
brilho que viu nos olhos do senhor Yale se parecia com raiva.
Além disso, um verdadeiro cavalheiro não acariciava o traseiro
de uma dama em um estábulo às escuras.
Ficou sem fôlego.
― Meu plano não era uma estupidez.
Esses olhos cinzas não fraquejaram.
― Concordo. ― admitiu ela. ― Era. Em parte. Mas somente
porque você demorou mais do que tinha pensado em aparecer
na carruagem do serviço dos correios de Sua Majestade.
Viu-o franzir o cenho.
― Como disse?
― Disse que meu plano só falhou porque você demorou
mais do que eu tinha pensado em...
― Em aparecer. Sim. Você não tinha a menor ideia de que
eu estaria nessa carruagem.
Diantha meneou as sobrancelhas.
― Tem certeza disso?
― Bruxa. As caretas não a favorecem. E sim, estou muito
seguro pela simples razão de que nem sequer eu sabia se ia
pegar essa carruagem.
― Sério? Que inconveniente para você. Eu sempre tenho
um plano para tudo.
― Começo a me dar conta.
― Como é que acabou nesta estrada sem planejá-lo?
― Estava em uma festa campestre e os entretenimentos
se... ― deteve-se de repente. ― É obvio, isso é irrelevante. Você
não sabia que eu ia estar nessa carruagem em concreto.
― Certo. Eu não sabia que você ia estar nessa carruagem,
admito-o. Mas esperava encontrar um herói que me ajudasse.
E depois, apareceu você, e tem um ar de herói, senhor Yale.
Sempre me pareceu isso.
― Suponho que suas palavras deveriam me adular e que
deveria me prostrar de joelhos ao ver essas covinhas que tão
convenientemente acaba de fazer aparecer...
― Claro que isso pensei até ontem à noite.
Suas bonitas feições se congelaram.
― Senhorita Lucas, ― disse com voz alterada ― rogo-lhe
que me permita pedir-lhe perdão por...
― Não tem nem que mencioná-lo. Afinal, os homens
cometem tolices quando bebem muito. ― Não queria que se
desculpasse por havê-la tocado. Parecia-lhe inapropriado,
sobre tudo porque ela também tinha parte da culpa ao haver-se
refugiado em um estábulo, e tudo por sua falta de bom
julgamento. ― E me referia, é obvio, a que me parecia herói até
que me disse que não ia me ajudar.
Seus largos ombros pareceram perder parte da rigidez.
― Ela te dá e te tira. Tem por costume não adular aos
outros?
― Minhas covinhas são sinceras.
― Não me cabe a menor dúvida. Como tampouco não cabe
a menor dúvida de que você é uma dama muito problemática.
Ela piscou devagar, ocultando brevemente seus olhos
azuis. Em seguida, voltou-se e se aproximou de seu baú de
viagem. Sem dramalhões, sentou-se no baú e entrelaçou as
mãos sobre seu colo.
― Acaba de sentar-se em um atoleiro.
Ela voltou o rosto, oferecendo seu encantador perfil.
― Uma preocupação muito mundana. ― Entretanto, a
comissura de seus lábios tremia, e não pela risada.
A raiva de Wyn desapareceu. Fez-se silêncio, durante o
qual somente se escutavam os bufos dos cavalos, que estavam
pastando na erva ao lado da estrada, os gemidos do vira-lata
que tinha ao lado e a incessante chuva. A cada momento que
passava, parecia-se menos às moças malcriadas que fugiram
de suas casas com as quais tinha lutado no passado. Era uma
mescla de determinação, sinceridade e inocente sabedoria.
Além disso, jamais tinha olhado no rosto de uma moça e
desejado cumprir seus desejos. De fato, somente tinha-lhe
acontecido em uma ocasião anterior, e também experimentou a
fúria que ela sentia.
Entretanto, a senhorita Lucas não estava furiosa. Somente
queria encontrar uma maneira de percorrer um caminho em
metade da chuva.
Queria ver de novo suas covinhas. Esse desejo o golpeou
com força.
― Tem ao menos um guarda-chuva?
Ela manteve a vista afastada.
― Admito que passei por cima desse detalhe.
― Também esqueceu de perguntar ao cocheiro que a
deixou aqui onde se encontra a próxima parada?
― Pois sim. ― Torceu o gesto. ― Nossa parada foi bastante
abrupta, é verdade.
― Acredito.
Por fim o olhou.
― Sabe onde está a próxima parada?
― Sim. Está a menos de meio quilômetro mais adiante.
O rosto da senhorita Lucas se iluminou.
― Isso quer dizer que já percorreu este caminho antes?
― Algumas vezes. ― conhecia esse caminho e as estradas
que levavam ao Leste e ao Sul como a palma de sua mão, talvez
melhor.
Depois de deixar Gwynedd aos quinze anos, no princípio
não se afastou muito, não durante três anos, até que no final
chegou a Cambridge. As estradas principais, as veredas, as
colinas, as fazendas da fronteira galesa e a zona mais ocidental
de Shropshire, até a propriedade de sua tia-avó, eram seu lar
em maior escala do que nunca tinha sido a casa de seu pai.
Ela ficou em pé de um salto.
― Enfim, pois devo começar a caminhar. ― Olhou de
esguelha o baú de viagem, soltou um suspiro rápido depois de
tomar uma decisão e agarrou a chapeleira antes de pôr-se a
andar. Suas botas se afundavam no barro com cada passo,
mas ela não parecia perceber.
― Senhorita Lucas, aconselho-lhe que volte para junto de
seu baú e que leve todos os seus objetos de valor e qualquer
coisa útil e imprescindível antes de continuar.
― Enviarei alguém para buscá-lo quando chegar à casa
dos correios. ― Sua capa estava empapada e inclusive a aba do
chapéu estava murcha, enquanto que os cachos castanhos se
colavam a suas bochechas e a sua garganta, riscando delicados
saca-rolhas sobre sua pele de alabastro.
Olhou o vira-lata que meneava a cauda a seu lado e
murmurou:
― Não tem a menor ideia de quão perigosa é esta
escapada. ― Continuando, em voz mais alta, disse: ― Insisto.
Ela se deteve e se voltou para olhá-lo, com a cabeça
inclinada.
― Às vezes sua voz soa distinta. Agora mesmo, quando
disse isso, soava...
Esperou que continuasse.
Viu-a ruborizar-se.
― Soava como ontem à noite no estábulo. E como soou a
noite do baile depois das bodas de lorde e lady Blackwood,
quando me resgatou.
Ah. Claramente era propensa ao dramatismo. Recordava o
incidente, é obvio: uma moça assustada, um grupo de
jovenzinhos bagunceiros não menos bêbados que ele naquela
ocasião e um bom sermão. Ou talvez alguma ou outra palavra,
mas os moços se foram em seguida. «Resgate» era exagerar o
episódio.
― Seus objetos de valor, se não se importa. ― Apontou o
baú.
― Pergunto-me se é isso mesmo o que dizem os
salteadores de estradas às damas.
― Duvido-o.
― Sério?
― Senhorita Lucas.
― Meus objetos de valor. ― Abriu o baú e dispôs tudo na
chapeleira. ― Vamos andar? ― perguntou ela quando o viu
amarrar a chapeleira à sela de Galahad.
― A menos que tenha um tapete mágico escondido no baú.
― Se tivesse um tapete mágico, já estaria em Calais. ― A
senhorita Lucas tinha uma expressão atormentada nos olhos.
Entretanto, já era mais de meio-dia e a tensão lhe corria
pelas veias, voltavam a tremer as pernas e seu estado de ânimo
não se encontrava em melhores condições. De modo que a
deixou com seus pensamentos e caminharam em silêncio até
que a casa dos correios apareceu ante eles.
― Não é muito grande, verdade? A estalagem do povoado
onde estivemos ontem era muito cômoda.
― O botequim desta não é menos. ― Ali podiam lhe servir
whisky.
― Caminhar é um exercício estupendo, mas a verdade é
que estou... ― Esses olhos azuis se cravaram brevemente em
sua boca. ― Estou faminta.
Wyn inspirou fundo e observou sua capa molhada e a
bainha enlameada de seu vestido. Era uma jovem muito
incomum, ou talvez, apesar de sua nobre linhagem, somente
era uma moça de campo acostumada a essas caminhadas. E
com as bochechas ruborizadas e a testa úmida pelo suor,
estava linda.
Uma vez dentro da estalagem, foi direito ao balcão e pediu
comida para ela, e whisky. Do outro lado do tosco botequim,
cheio de diaristas, um cliente em concreto parecia
desconjurado. Era um homem magro, vestido de marrom e com
o chapéu molhado pela chuva ainda na cabeça, e estava
sentado no canto mais afastado, com as costas contra a
parede. Era-lhe familiar. Tinha visto esse homem enquanto ia a
caminho para recuperar lady Priscilla.
Wyn pagou a garrafa e deu-lhe outro olhar. O homem
baixou a vista.
― A carruagem dos correios de Hereford a Londres passará
logo por aqui. ― anunciou quando voltou para a mesa.
― Perfeito. Teremos tempo para comer antes? ―
perguntou-lhe ela.
Conseguiu conter um sorriso.
― Senhorita Lucas, deve reconsiderar seu plano. Embora
me surpreenda depois de ontem à noite, acredito que não
termina de compreender os perigos que encerram as estradas.
― Para isso você está aqui, é obvio. Como o esteve ontem à
noite no estábulo. ― Seus olhos reluziam com certa intenção
muito juvenil. Depois, por um instante, a confusão os
escureceu.
Wyn pouco podia fazer para aliviar seu desconforto. Suas
mãos e seus lábios ainda a recordavam, e não tinha palavras.
Seus amigos ficariam petrificados se o vissem nesse momento,
mudo por olhos azuis e pela lembrança de um doce corpo
feminino contra o seu.
O hospedeiro deixou um prato de comida diante dela. Os
olhos da senhorita Lucas reluziram.
― Como sabe que a torta de cordeiro é minha preferida,
senhor Yale?
Passava de um silêncio contemplativo a uma animação
transbordante sem problemas. E ambas as coisas faziam com
que desejasse colá-la contra seu corpo e acariciar muito mais
que um arredondado traseiro. Uma sensação muito irritante.
― Não sabia. ― conseguiu responder ― Mas temi pedir o
assado se por acaso tivesse uma decepção ao compará-lo.
― É considerado. Ou só zomba de mim. Mas outra vez fica
sem comer. ― estreitou os olhos. ― É que somente bebe?
― Quando acompanho as jovens através da campina
contra minha vontade, sim. ― Nunca, nem sequer quando o
fazia voluntariamente. Mas Diantha Lucas não era uma missão
do Clube Falcon. Aparentemente, era sua tortura pessoal.
Teve a sensação de que ela o observava enquanto comia.
No final, viu-a soltar o garfo e empurrar o prato para ele.
― Prove-o, é excelente.
― Obrigado. Confio em sua palavra.
― Parece que perdeu ao menos cinco quilogramas da
última vez que o vi. ― Olhou a garrafa de whisky. ― Meu pai
estava acostumado a beber muito. Ele tampouco comia.
― Ah. Então você e eu temos algo em comum. ― As
palavras lhe saíram sozinhas. Outro caso de comportamento
inusitado.
Ela arqueou as sobrancelhas.
― Seu pai também?
― Muito. ― respondeu Wyn.
― O meu morreu de uma úlcera estomacal.
A dor se cravou no ventre de Wyn.
― Acompanho-a no sentimento.
― Foi há doze anos. Eu tinha sete. Acredito que minha
mãe o conduziu à bebida. ― O azul de seus olhos parecia mais
intenso. ― Ajudar-me-á, senhor Yale? Por favor.
Voluntariamente?
― Não, senhorita Lucas. Não a ajudarei voluntariamente.
Eu gostaria que voltasse para casa e que encontrasse um modo
de encontrar-se com sua mãe que conte com a aprovação de
sua família.
Sua rosada boca adquiriu um ricto pensativo, muito
sensual e certamente tentador. Wyn falou de novo porque, ao
olhar essa tentadora boca que pertencia a uma moça que não
deveria pensar dessa maneira, desejou com todas suas forças
outro copo de whisky. Entretanto, não voltaria a cometer esse
erro, não enquanto ela seguisse tendo lóbulos sedosos, um
pescoço de alabastro e um traseiro que pedia a gritos que o
tocassem. Era melhor aguentar a tentação sóbrio. Tirou um
charuto do bolso do capote.
― Deve me permitir que a acompanhe a sua casa.
― Não posso. Tenho que prosseguir o caminho.
― Tem pensado recorrer a subterfúgios uma vez mais?
― Sim. Temo que se segue me pressionando, voltarei a
escapar. Entretanto, em vez de fugir na metade da noite, algo
que demonstrou ser muito inconveniente e que mereceu o
sermão da mulher do hospedeiro, certamente declararei ante
todos os pressente que me sequestrou e que me obrigou a fugir
com você. Exigirei que chamem o oficial.
― Uma fuga? ― O charuto ficou a meio caminho de sua
boca. ― Um sequestro com concretas intenções?
― Sim.
Soltou o charuto.
― Senhorita Lucas, o que sabe sobre esse tipo de fuga?
Ela golpeou o prato com o garfo.
― Veja, Teresa me contou histórias.
― Começo a fazer uma ideia.
― Com seu capote negro, suas botas e seu chapéu, é o
candidato ideal.
― Então parece que meu halo de herói desaparece a
marchas forçadas.
― Você também acha?
― Evidentemente, estou me convertendo no vilão desta
obra.
― Suponho que sim.
― A verdade é que não me incomodaria no mais mínimo. ―
Todos os oficiais eram iguais. ― Mas envolver as autoridades
garantirá sua volta para casa.
― Bom, eu não o vejo assim. Enquanto todos estão
ocupados culpando-o e você se vê obrigado a se defender,
partirei.
― É obvio, agora que sei qual será seu plano, estarei
prevenido.
― Idearei outro. Não pode ganhar, senhor Yale. Estou
decidida.
Tinha um brilho feroz nos olhos, embora parecesse um
pouco exacerbado. Não era uma menina. Seu voluptuoso corpo
e as linhas definidas de seu rosto deixavam bem claro. Muito
claro para a lucidez mental que duas taças de whisky
acabavam de lhe provocar. Quando as covinhas apareceram,
tiveram justo o efeito que ela desejava... no hipotético caso de
que ela conhecesse os homens. Algo que possivelmente não
conhecesse, ao menos não até esse ponto, por mais que tivesse
contado a senhorita Finch-Freeworth. Claro que sua mãe, que
tinha desaparecido quatro anos antes, dirigia um bordel, ou
isso parecia, embora não estivesse muito claro que a filha da
baronesa compreendesse muito bem o que queria isso dizer.
Era inocente, uma ingênua inocente com muitos arrestos,
muito pouco sentido comum e muita teimosia. O impulso que a
levou ao estábulo na noite anterior o demonstrava. Entretanto,
o brilho desses olhos azuis sugeria que sua necessidade era
sincera... que esse assunto era, de fato, muito sério para ela.
No exterior, escutou-se o estrondo de uma carruagem e de
seis cavalos, e a voz de alguém gritava por cima da animação:
― A carruagem de Hereford a Londres!
― Nega-se a trocar de ideia?
Ela assentiu com a cabeça.
― Ah, sim.
― Não posso convencê-la de maneira nenhuma? Talvez
voltar para casa e pedir ajuda a seu cunhado, o conde?
― Certamente que não. Alex despreza minha mãe e não
poderia pedir a minha meia-irmã. Serena é uma santa e ama
todo mundo, salvo a minha mãe.
― Por quê?
Ela inclinou a cabeça.
― Sabe, senhor Yale? Acredito que tenta me distrair para
que perca a carruagem dos correios. ― Recolheu seu chapéu e
ficou em pé. ― Sendo assim lhe desejo um bom dia e uma boa
viagem, embora preferisse que me acompanhasse para me
ajudar em minha busca e cumprisse os deveres de um herói.
Por desgraça, esse sonho não se cumprirá. ― E com um sorriso
triste muito desconcertante, pôs-se a andar para a porta.
Wyn a seguiu.
Agarrou-a pelo cotovelo para detê-la e se inclinou sobre
ela, momento em que seu aroma de sol e a natureza o
acariciou.
― Senhorita Lucas, permita-me ser franco ― disse em voz
baixa, com apenas uma nota rouca em seu tom. ― Pediu-me
que interprete um papel quando você não está disposta a fazer
o seu próprio. Deve admitir que, dado a sua determinação e
seus gestos, não se parece em nada a uma moça em apuros.
Ela pareceu retesar-se. Quando lhe respondeu, fê-lo em
um sussurro.
― Senhor Yale, não sou tola. Sei que o que estou fazendo é
perigoso e que me conduzirá a um castigo, talvez inclusive a
ruína. Mas... ― Seu voluptuoso lábio inferior tremeu, embora
desse a sensação de que ela queria controlá-lo. ― Mas tenho
que fazê-lo. Quando tinha quinze anos, minha mãe me
abandonou sem sequer despedir-se e sem me dar uma
explicação. Meu padrasto, meu irmão e minhas irmãs se negam
a falar dela. Embora eu gostasse de fingir que não existe, e
tentei durante anos, mas não consigo. E, dói-me tanto que não
suporto. ― Olhou-o nos olhos, com o desejo sincero pintado em
seu olhar. ― Encontrou-me por acaso. Mas agora deve permitir
que me vá e que faça meu caminho. Esqueça-se que me viu.
Dou-lhe permissão para fazê-lo sem que lhe remoa a
consciência.
Era impossível. Não podia fazer o que ela pedia.
― Não lhe permitirei ir sozinha. ― Soltou-lhe o braço, já
que tocá-la, conforme acabava de perceber, era um grande
erro. ― A ajudarei.
A transformação de seu rosto lhe provocou um enorme
vazio nos pulmões. A senhorita Lucas agarrou sua mão, com os
olhos brilhantes e totalmente abertos, e, apesar de tudo, cheios
de confiança.
― Você é um herói. E um cavalheiro.
Nesse momento, Wyn sabia que não era nenhuma dessas
duas coisas. A ânsia de vingança alimentou a impaciência por
empreender sua própria missão, uma que não tinha nada de
heroico. E o calor de sua carícia através do couro úmido lhe
penetrou sob a pele de tal modo que não precisava de muita
imaginação para tirar a luva desses magros dedos e imaginar
seu tato. Uma vez que as luvas desapareceram em sua
imaginação, seguiram outros objetos femininos. Depressa. Era
muito bonita e ele estava há muito tempo sem uma mulher.
Estava há muito tempo sem tocar a pele de outra pessoa. Salvo
a de Diantha Lucas, durante um momento muito breve.
Não, seus pensamentos eram muito pouco cavalheirescos
nesse instante.
5

Wyn afastou as mãos dela.


― Vê o homem que está atendendo no balcão atrás de
mim? Não acredita que você seja minha irmã.
― E por que não?
― Por sua falta de moral, sem dúvida.
A senhorita Lucas sorriu, deixando à vista suas covinhas.
― Suspeita que essa falta de moral o leva a tirar
conclusões depravadas?
Pelo amor de Deus! Exclamou Wyn para si. O que tinha
feito ele para merecer isso? Embora, claro, os pecados deviam
expiar-se de algum jeito.
― O homem se negava a atender a uma jovem com sua
aparência que chegou a pé a seu estabelecimento e que carece
da companhia de uma donzela e de bagagem. Vi-me obrigado a
convencê-lo de que lhe convinha atendê-la.
A senhorita Lucas esboçou um sorriso.
― Subornou-o.
― Poderia dizer-se que sim. ― As ameaças também
funcionavam e eram mais imediatas.
Ela deu uma olhada pelo botequim.
― Se contasse com uma donzela ou com uma dama de
companhia, você acha que as pessoas com as quais nos
encontremos durante a viagem chegariam a esse tipo de
conclusão?
Wyn seguiu seu olhar para um canto, onde uma mulher
dormia apoiada na parede. Uma mulher de meia idade e
vestida de forma quase desarrumada, com um cachecol de lã
em torno do pescoço. A senhorita Lucas a observava com o
cenho franzido.
Wyn tirou o chapéu sorrindo.
― Imagino que está riscando um plano agora mesmo.
Ela sorriu no ato.
― Essa senhora ia na carruagem dos correios. Estivemos
conversando, amigavelmente, antes de subir ao teto com o cão.
Disse-me que se dirigia para Stafford, mas suponho que perdeu
a oportunidade.
― E por que o supõe?
― Pelo horário. ― Apontou o pôster pendurado junto à
porta e riu baixo. Sua risada era musical, alegre e fresca. ―
Pelo amor Deus, e presume-se que você é viajado?
Wyn engoliu apesar da secura que sentia na garganta e
jogou uma olhada ao homem vestido de marrom.
― Coloquemos em marcha seu plano, senhorita.
Uma vez que estiveram diante da mulher adormecida, a
senhorita Lucas se inclinou para ela para lhe dizer:
― Senhora, desperte. Acredito que perdeu a carruagem
dos correios.
A mulher moveu o nariz e abriu os olhos, que eram
saltados.
― Ah, sim? Valha-me Deus! ― Aprumou-se de repente e
endireitou o cachecol. ― Olá, senhorita. Deu-me muita pena
que o cocheiro a expulsasse. Esse cão não incomodava
absolutamente.
― Obrigada! Apresento-lhe o senhor Yale. Estamos aqui
para ajudá-la.
― Ah, sim? Você é um anjo. Bom dia, senhor. ― O
escrutínio a que o submeteu acabou apagando o sorriso de
seus lábios.
― Diga-me, o que planeja fazer agora? ― perguntou-lhe a
senhorita Lucas. ― Tomará a próxima carruagem dos correios
para Stafford? Não passará até manhã.
― Bom, senhorita, advertiram-me de que se não chegasse
hoje, perderia o posto.
― Pois você não parece muito preocupada ― atravessou
Wyn.
― Não estou, senhor. Acontece sempre. Não posso evitar.
Fico adormecida assim. ― Estalou os dedos. ― E isso me faz
perder um trabalho atrás de outro.
― Ela ia a Stafford para trabalhar como dama de
companhia de uma anciã. ― explicou a senhorita Lucas ― Mas
me parece uma falta de consideração esperar que você faça o
trajeto em tão pouco tempo. Esperará que passe a carruagem
dos correios que vai a Londres?
― Farei, embora não tenha nem um penique porque estou
há um tempo sem trabalhar. Minha antiga senhora não tinha
bom coração e se dedicou a dizer por aí que eu não era apta
para auxiliar às damas.
A senhorita Lucas olhou Wyn com os olhos reluzentes.
― Senhora...?
― Polley, senhor. Casei-me com o senhor Polley no ano
1792 e o perdi por culpa de Napoleão em 1813.
― Senhora Polley, estaria disposta a nos ajudar e a ganhar
o dinheiro para pagar a viagem de volta a Londres?
― Fá-lo-ei sempre e quando for um trabalho honesto,
senhor. ― Olhou-os com receio.
― Minha irmã necessita uma carabina para prosseguir a
viagem, já que carece da companhia adequada. Vimo-nos
obrigados a abandonar nossa residência a toda pressa e não
pudemos planejar bem as coisas. Assim, como verá,
necessitamos a ajuda de alguém como você.
A mulher os olhou com os olhos entrecerrados.
― Deixe-me ver, senhor. Tenha você muito claro que
nunca caí de uma árvore em meus cinquenta e cinco anos de
idade, e tenho a firme suspeita de que vocês dois não são
família.
A senhorita Lucas pôs-se a rir.
― Certamente que não! Além disso, estou comprometida
com o senhor H., um cavalheiro que embora seja muito menos
bonito, admira-me muito e com o qual compartilharei uma boa
vida. Mas antes devo concluir uma tarefa. Devo resgatar a
minha mãe de um antro de perversão. Por isso que estou a
caminho. Encontro-me com o senhor Yale, um amigo da
família, foi fortuito, e ele se ofereceu amavelmente para me
ajudar.
A atitude receosa da senhora Polley não variou nem um
ápice.
― Ah, sim, senhor?
― Pareceu-me o melhor, dadas as circunstâncias.
― Asseguro-lhe que não me sequestrou nem me convenceu
a fugir com ele até Escócia, nem nenhuma tolice do estilo.
― Certamente que não estamos cometendo nenhuma tolice
do estilo. ― murmurou ele com esse sorriso torcido que
provocava em Diantha o formigamento no estômago.
― Além disso, faz apenas um instante, o senhor Yale
insistia em que eu deveria procurar uma carabina e aqui está
você, parada em uma casa dos correios e sem trabalho. Parece
obra do destino.
A senhora Polley não tirava os olhos de cima do senhor
Yale.
― Não sei se o destino terá algo a ver, mas me parece que
foi uma sorte que nos tenhamos encontrado. ― Olhou a
Diantha com seriedade. ― Você disse que este cavalheiro é
amigo de sua família?
― Um amigo íntimo, sim.
A senhora Polley mordeu uma parte interna da bochecha
enquanto refletia.
Diantha era incapaz de esperar.
― Bom, iremos todos juntos a Bristol?
A senhora Polley a olhou de novo.
― Você disse «um antro de perversão»?
― Senhora, uma vez que cheguemos a nosso destino, não
terá por que seguir a serviço da senhorita Lucas se não desejar
ver-se envolta com o dito estabelecimento.
A senhora Polley ficou em pé com a papada bem firme
uma vez que endireitava seu corpo... e que não media mais de
um metro e quarenta centímetros de altura.
― Seguirei a seu serviço o tempo que me pareça oportuno,
cavalheiro, como será o mesmo se você seguir a seu lado por
estas estradas do Senhor. É uma boa garota. ― Deu uns
tapinhas no braço de Diantha. ― E não vou permitir que um
homem que afirma ser amigo da família se aproveite dela.
Ficarei a seu lado até que me assegure de que já não me
necessita.
― Excelente. Obrigado, senhora. ― replicou Wyn enquanto
fazia uma reverência.
Diantha sorriu. Olhou-o de esguelha enquanto a senhora
Polley recolhia seus pertences, mas descobriu que ele a estava
olhando com uma expressão muito séria. Isso a sobressaltou.
Quando o senhor Yale a olhava dessa maneira, tão sério e
circunspeto, recordava o pouco que sabia dele, e essa ideia
levou consigo o pensamento de que talvez o verdadeiro senhor
Yale fosse o homem perigoso que tinha espionado durante
aquele momento na estrada e o resto fosse tão só fachada.
Ordenaram que fossem em busca do baú de viagem e uma
vez que toda a bagagem esteve preparada, Wyn se encarregou
de ajudar às senhoras a subirem na carruagem seguinte dos
correios que se dirigia ao sul. Entretanto, antes de partir,
manteve uma discreta conversa com um moço pouco falador
que estava ocupado levando sacos de grão ao estábulo. Um
moço alto cuja as roupas estavam grandes e que delatou a
fome que o corroía ao olhar o osso que o cão estava comendo.
Wyn se aproximou dele embargado por uma triste
satisfação. Tinha anos realizando seu trabalho. Sabia muito
bem como escolher seu homem.
Depois de algumas moedas e de algumas palavras, o moço
assentiu com a cabeça.
― Farei com prazer, senhor. Meu pai foi lutar contra os
franceses e não voltou. Minha mãe e eu tentamos que não
faltem sapatos nem comida a meus cinco irmãos, embora não
esteja muito bem. Levar-lhe-ei isso. ― disse, levantando o
punho com que segurava a moeda ― e partirei para Devonshire
agora mesmo. O pequeno Joe já está quase tão grande quanto
eu. Encarregar-se-á dos outros enquanto eu não estiver.
― O conteúdo dessa bolsa deve te bastar para alugar um
cavalo e para pagar o alojamento e a comida durante o trajeto,
William.
― Só necessito de um monte de feno para dormir, senhor.
― Como gostar. Fique com o que não gaste e te entregarei
a quantidade acordada quando retornar. Mas é essencial que
se apresse. E que mantenha o bico fechado. A carta que te
entreguei somente devem lê-la o barão ou os condes de Savege,
e não pode contar a ninguém o propósito de sua viagem.
― Sim, senhor. Entendido.
― Bom menino.
Wyn partiu, reconfortado pela responsabilidade e o alívio
que tinha notado nos olhos do moço. O pagamento que tinha
devotado a William seria um golpe de boa sorte para a pobre
família. O moço se prepararia para chegar a Glenhaven Hall, o
lar do barão Carlyle, que era o padrasto da senhorita Lucas. Se
não localizasse o barão, William devia prosseguir caminho até a
próxima propriedade de Savege Park, o lar da meia-irmã da
senhorita Lucas, a condessa de Savege. Se não tivesse notícias
de Alex e Serena nos próximos quinze dias, enviaria outro
mensageiro, mas nesse caso enviaria a Londres, para pôr sobre
aviso Kitty e Leam Blackwood. Kitty, a irmã do conde de
Savege, também conhecia a senhorita Lucas. Se se encontrasse
na cidade, se prepararia para ajudá-la sem duvidá-lo.
Também podia recorrer a Constance, que iria em sua
ajuda assim que lhe enviasse uma carta. Mas não queria vê-la
até ter completado sua missão. Tampouco queria ver Leam, um
homem que tinha passado seis anos de sua vida percorrendo o
Império britânico e trabalhando em segredo para a Coroa.
Constance e Leam eram o mais parecido que Wyn tinha a
uma família, seguidos por Jin Seton e Colin Gray. Ou, pelo
menos, tinham sido. Porque desde que Leam abandonou o
clube quatro anos antes, o grupo tinha mudado. O vínculo
secreto que os unia se quebrou.
Embora, a verdade, era que a mudança tinha começado
muito antes para Wyn, mais de um ano antes, em um beco de
Londres durante um chuvoso dia, quando olhou o rosto sem
vida de uma jovem destroçada e viu sua própria morte. Quando
começou a mentir às pessoas que mais lhe importavam no
mundo.
E, nesse momento, outra jovem voltava a confiar nele.
Uma jovem que tinha ido a ele por vontade própria e que lhe
tinha suplicado ajuda.
Que o Senhor ajudasse Diantha Lucas por ver um herói
onde não havia. Mas algumas jovens, supunha, estavam assim
de cegas.

****

Diantha não estava absolutamente irritada pelo fato de


que um homem a houvesse tocado de um modo tão íntimo. O
que lhe incomodava era que não a tivesse beijado antes.
Teresa lhe havia dito que os homens beijavam às mulheres
antes de tomar mais liberdades, e ela tinha refletido a respeito.
Antes que sua meia-irmã Viola se casasse, tinha-a visto beijar
de forma apaixonada seu prometido, o senhor Seton, quando
pensavam que ninguém os via. A imagem a emocionou muito.
Já que depois dos beijos Viola sorria como se estivesse
aturdida e o senhor Seton parecia muito satisfeito, Diantha
supôs que os beijos deviam ser algo desejável em vez de
temível.
Seus pais jamais se beijaram. Seu padrasto, um homem
amável, mas bastante distraído e débil, mal tinha saído de seu
escritório enquanto sua mãe vivia em Glenhaven Hall. Seu
verdadeiro pai sempre estava bêbado. Como também o senhor
Yale estava no estábulo. O que possivelmente explicasse o
motivo de que não a tivesse beijado antes de lhe tocar o
traseiro.
Soltou-a com brutalidade, sem dúvida porque não tinha
gostado de tocá-la dessa forma. Como ia gostar dela? A simples
ideia lhe parecia mortificante. Se fosse como a maioria das
moças, como as outras garotas que conheceu na Academia
Bailey, magra e delicada, talvez o senhor Yale teria gostado de
tocá-la. Talvez não teria se detido. Talvez a teria beijado.
A carruagem estralava sobre a estrada que atravessava a
campina de Shropshire. A senhora Polley dormia a seu lado.
Era uma mulher muito afável, embora não se mostrasse
agradável com o senhor Yale. Algo que não era surpreendente.
Justamente o contrário do assunto dos beijos. As elegantes
damas londrinas seguro que beijavam os homens a destro e
sinistro, razão que possivelmente fosse a causa de que a
senhora Polley desconfiasse do senhor Yale, um elegante
cavalheiro londrino.
A noite anterior, enquanto jazia na cama sem pegar olho,
Diantha tinha imaginado que o beijava, e isso fez com que se
sentisse muito acalorada, como quando ele a abraçou na
escuridão. Suspeitava que esse aquecimento era algo mau, mas
afinal ela era a indecente e rebelde filha de uma mulher
indecente e geniosa.
Sempre tinha sido insubordinada, desde que era pequena.
Sua mãe havia dito de forma incessante. Eclipsada por sua
bonita e doce irmã mais velha, Charity, sua mãe jamais tinha
lhe feito muito caso, já que em comparação ela era feia e
desobediente.
A indecência, entretanto, era algo recente.
Queria beijar o senhor Yale.
O cavalheiro viajava a cavalo junto à carruagem,
acompanhado pela égua marrom tal como fez antes. O cão
estava com ele nesse momento, embora o cocheiro era mais
amável que o do dia anterior e não se importava que de vez em
quando ele viajasse sentado no interior. Diantha não tinha
motivo algum para queixar-se. Entretanto, quando viu que o
senhor Yale franzia o cenho na seguinte parada, alarmou-se.
― Está zangado comigo por havê-lo obrigado a fazer isto ―
comentou enquanto caminhava a seu lado e ele levava os
cavalos até um bebedouro.
Já quase não chovia e o sol começava a aparecer entre as
nuvens.
― Estou zangado, mas comigo mesmo por não ter previsto
o problema que enfrentaremos.
Diantha conteve o fôlego.
― Temos problemas?
― Senhorita Lucas, ― disse ele em voz baixa ― ao longo de
minha vida incomodei a certas pessoas que a sua vez são
motivadas a me incomodar em resposta.
― A que se refere com isso de que as incomodou?
― Desgostei-as.
― Mas, como...?
― Temo que não posso alastrar os motivos nem as
circunstâncias. Por desgraça, entretanto, agora me persegue
um homem que alberga más intenções para com a minha
pessoa. Como poderá supor, é um impedimento para nossa
viagem.
Ela observou seu perfil.
― Se preocupa com minha segurança e a da senhora
Polley. Não a sua.
O senhor Yale não replicou. Sua segurança,
evidentemente, era o motivo pelo qual decidiu acompanhá-la.
― Aonde leva esta égua, senhor Yale? ― perguntou
enquanto acariciava o pescoço do animal.
O senhor Yale se voltou para ela com esse sorriso torcido
nos lábios que tanto desejava beijar.
― Senhorita Lucas, você é uma jovem muito incomum.
― Simplesmente sou curiosa.
― A égua pertence ao duque de Yarmouth, cujo herdeiro, o
marquês de McFee, perdeu-a em uma partida de cartas. O
ganhador é um cavalheiro de duvidosa venerabilidade a quem a
arrebatei recentemente. Meu encargo é levá-la de volta a seu
legítimo dono.
Diantha sentia nas mãos o calor da pelagem do animal.
― Isso é o que espera fazer comigo no final? Supõe você
que me cansarei antes de ter êxito minha missão?
― É óbvio que você não é uma égua. Mas se pertencer a
alguém, rogo-lhe que me dê um relatório da identidade de dita
pessoa a fim de evitar que me acusem de latrocínio.
― Tem o costume de não responder minhas perguntas.
― Sério?
Diantha elevou a vista. O senhor Yale já não sorria, mas
sim a observava com um olhar penetrante e a mudança em sua
expressão lhe provocou uma deliciosa tensão no estômago.
― Como propõe que evitemos este homem que o persegue?
― Ainda não decidi. Mas não permitirei que você sofra
dano algum por culpa de meus inimigos.
― Você tem inimigos? Bem, como todo mundo, suponho.
Os olhos chapeados do senhor Yale reluziram.
― Não como todo mundo, conforme parece. Você trava
amizade com todas as pessoas com as quais se encontra.
Reitero-me na ideia de que é uma jovem incomum, senhorita
Lucas.
― Nesse caso, que tipo de homem é um cavalheiro que faz
as vezes de moço dos estábulos de um duque e que persegue
um homem com más intenções, enquanto ele ajuda a uma
dama fugitiva a encontrar sua mãe? Um homem normal?
O senhor Yale deu-lhe de presente seu sorriso torcido e
depois apontou com a cabeça a porta do botequim.
― Resta um quarto de hora até que a carruagem dos
correios prossiga a viagem.
― Pedi à senhora Polley que peça um almoço frio. Vai
comer hoje, senhor?
― Vai deixar de me aporrinhar com a comida, senhorita?
― Certamente não.
― Imaginava.
Wyn a observou afastar-se para a porta, aonde o cão
estava sentado. Ao vê-la aproximar-se, o vira-lata começou a
mover o rabo. Ela se deteve e o olhou por cima do ombro.
― Gosta de você. ― disse a senhorita Lucas.
― Mas, bem, é você quem gosta dele.
Como ao resto do mundo. Seu sorriso, seus reluzentes
olhos e seu calor ganharam o afeto de todos os passageiros da
carruagem dos correios, do cocheiro e inclusive do antipático
hospedeiro que gerenciava a última casa dos correios em que
se detiveram. Independente do desejo de voltar a tocá-la, Wyn
também gostava. Não permitiria que o novo perigo que se
abatia sobre ele a ameaçasse. O homem vestido de marrom que
já tinha visto em duas ocasiões havia despertado sua
curiosidade. Se aparecesse de novo, descobriria qual era seu o
propósito.
Entretanto, a ameaça que tinha descoberto nesse mesmo
dia o preocupava muito mais. Um antigo conhecido, Duncan
Eads, tinha aparecido na estrada, por trás da carruagem a
primeira hora da manhã. Embora tivesse mantido distância,
não era um homem que se devesse perder de vista. Há meses
que Wyn fizera algo em prejuízo a si mesmo ao arrebatar uma
garota do chefe do Eads, um homem chamado Myles que
controlava uma boa parte da vadiagem londrina. Como fizera
em uma soberana bebedeira, o episódio foi bastante divulgado,
Wyn deixou em ridículo Eads e enfureceu Myles.
Sem dúvida, Eads viera atrás dele para vingar-se de tudo
aquilo. Tinha pensado em dizer-lhe que recolhesse à cauda.
― Deveríamos lhe dar um nome. ― A senhorita Lucas se
agachou para acariciar a cabeça do cão, um movimento que
esticou a capa ao redor do seu traseiro.
Wyn conteve o fôlego, embora fosse incapaz de afastar o
olhar dessas generosas curvas femininas que já havia tocado
em uma ocasião.
― Como desejar.
A senhorita Lucas lhe ofereceu um sorriso fugaz antes de
entrar no botequim.
Depois de conduzir os cavalos até uma zona com erva,
atou-os de forma que pudessem pastar a gosto. A rua principal
do povoado estava muito concorrida. Em questão de minutos,
viu passar carruagens carregados com crianças e adultos, uma
carreta e uma carruagem de certa qualidade, junto com um
bom número de pessoas caminhando. Eads não apareceu, mas
suspeitava que o veria de novo no momento mais inoportuno.
Talvez pela passagem da estrada. Eads poderia ter continuado
a viagem enquanto a carruagem de correios se detinha, a fim
de planejar uma emboscada.
O cocheiro saiu pela porta do botequim, seguido pelo resto
dos passageiros, e saudou Wyn levando a mão à boina. A
senhorita Lucas saiu de repente.
― Senhor Yale! Acabo de saber de uma notícia
maravilhosa. ― Tinha as bochechas rosadas. Fez um gesto à
senhora Polley para que se aproximasse e seguiu, baixando a
voz: ― O magistrado deste distrito abriu hoje as portas de sua
propriedade para que a visite todo aquele que queira.
Aparentemente, sir Henry é um homem muito agradável e que
gosta de celebrar grandes festas. ― Deu uma olhada para a
rua, evidentemente emocionada.
― Estou contente pelo tal sir Henry e por seus convidados.
― replicou Wyn. Isso explicava a mudança de um lugar a outro
de gente pela rua. ― Mas não entendo muito bem o que tem
que ver a generosidade desse cavalheiro com você.
― Bom, não comigo, o meu é algo mais circunstancial, se
não com você. E com o homem que o persegue.
Wyn olhou à senhora Polley, que tinha apertado os lábios.
Depois, devolveu a vista à senhorita Lucas, que o olhava com
uma expressão emocionada.
― Senhorita Lucas, se me permite, sugiro que suba de
novo a...
― Não. Não entende? Esta é a distração perfeita! ―
Agarrou-o por um braço, deixando-o em um silêncio absoluto,
já que o deixou totalmente mudo pela surpresa.
Não tinha esquecido quão voluptuoso era seu corpo nem o
calor que irradiava, embora tivesse passado toda a manhã
tratando de fazê-lo. Apesar de ter dez anos como agente secreto
da Coroa, bastava que aparecesse a senhorita Diantha Lucas
para convertê-lo de novo em um adolescente. A senhorita Lucas
tinha uma bonita figura. O adjetivo «bonita» ficava parco. Tinha
seios perfeitos, turgentes e cobertos de forma recatada por seu
vestido de viagem, algo que, entretanto, não evitava que a
imaginasse nua.
― Uma distração? ― conseguiu lhe perguntar.
― Devemos nos ocultar a plena vista. ― Seus olhos tinham
um brilho alegre e esses lábios rosados esboçaram um sorriso
que Wyn morria por saborear. ― Haverá centenas de pessoas
nesse lugar e seu... amigo não está aqui agora. ― Seu olhar se
desviou para a rua principal. ― Não saberá se foi você em outra
direção. Depois, podemos alugar uma carruagem e tomar outra
rota distinta. Não o vê? É perfeito!
― Não. ― Wyn não via a perfeição do plano, mas começava
a vigiar a idiotice de seus desejos.
― Sim.
Wyn se voltou para a acompanhante da senhorita Lucas.
― Senhora Polley, suspeito que você desaprova o plano
que acaba de me propor.
― Bom, não sei por que não pode ser efetivo. Se esse
rufião pode ocasionar algum machucado a esta agradável
senhorita, você deve encontrar uma solução. O plano de minha
senhora pode ser tão apropriado como qualquer um que você
ideasse.
― Se não subirem na carruagem dos correios e depois nos
seja impossível alugar uma carruagem, estaremos apanhados
aqui quando «meu amigo» chegar, senhorita Lucas.
Ela examinou seu rosto com atenção.
― Em realidade, você não espera que apareça. Não espera
que venha a este lugar. Acredita que se adiantou para fazer
uma emboscada em algum ponto da estrada.
Era tão assombrosa que Wyn pôs-se a rir.
Ela esboçou um sorriso que a desejou muito fresca como a
brisa primaveril. Era uma mulher clara, direta e sincera, salvo
pelo fato de haver escapado para ir em busca de sua mãe.
Entretanto, seus olhos o observaram com regozijo. A satisfação
e a emoção do plano que tinha idealizado faziam que suas íris
azuis resplandecessem sob a inconstante luz do sol. Foi
incapaz de negar-se.
«Regra número um: Se uma dama for amável, generosa e
virtuosa, um cavalheiro deve cumprir todos seus rogos. Não deve
negar-se a agradá-la.»
A regra, somada à possibilidade de alugar uma carruagem
na casa dos correios convertia seu plano em uma oportunidade
melhor que qualquer uma que pudesse ocorrer-lhe.
A senhorita Lucas olhou a um ponto situado por detrás de
Wyn.
― Olhe! Possivelmente nem sequer tenhamos que alugar
um veículo. ― Apontou uma carruagem que avançava a passo
de caracol, um cabriolé tão largo como comprido, conduzido
por um cocheiro murcho trajando um capote descolorido e
puxado por um par de cavalos tão velhos quanto ele. Na
carruagem viajavam duas damas rodeadas por metros e metros
de gaze, vestidas com um estilo que estaria na moda uns
cinquenta anos antes, protegidas por sombrinhas e luvas que
pareciam tirados de outro século.
A senhorita Lucas correu para o veículo. Wyn não pôde
escutar suas palavras exatas, mas sim escutou sua voz tão
clara e musical como de costume. As damas lhe responderam
com estranhos sorrisos. Uma delas ofereceu uma mão muito
frágil coberta por uma antiga luva de renda que a senhorita
Lucas se preparou para tomar a modo de saudação. Em
seguida, a dama levantou a outra mão para indicar à senhora
Polley e a ele que se aproximassem.
Esse foi o momento que Wyn começou a suspeitar que,
depois de ter resgatado nove jovenzinhas, por fim tinha
encontrado a forma de seu sapato.
6

― Disse às irmãs Blevins que somos recém-casados.


― Supus isso.
― Enfim, não podia lhes dizer que levamos muitos anos
casados. Acabo de fazer dezenove.
― Não poderia haver se casado sendo uma menina.
Ela se pôs a rir. Alguns raios de sol brincavam com as
mechas de cabelo castanho que escapavam de seu chapéu e
com seus olhos azuis, e por um instante pareceu muito jovem.
«Quase ingênua», tinha pensado em seu momento.
Mas já sabia a verdade.
― É obvio, não temos filhos, e não estava preparada para
inventar isso em um abrir e fechar de olhos. ― Agarrou uns
pedacinhos de carne do prato que havia na mesa e foi
alternando entre dar comida ao cão que tinha aos pés e levar a
seus tentadores lábios. ― Embora suponha que poderia havê-lo
feito, talvez não tivessem acreditado. Não nos conhecemos o
suficiente para fazer o tipo de coisas que fazem os casais que
estão casados muito tempo, como...
― Terminar as frases do outro?
Suas covinhas fizeram ato de presença e a mão de Wyn
retornou à concha de sopa ao ponche. O mordomo de sir Henry
preparava uma mescla potente, embora agradável ao paladar.
Teria sido o mesmo se servisse genebra de garrafão.
Depois de passar duas horas sentado nas cadeiras que
decoravam o prado, bebendo chá enquanto ela inventava uma
história atrás de outra de aventuras infantis (dela e dele) com
as quais deu de presente aos ouvidos das irmãs Blevins, de sir
Henry e de meia dúzia de setuagenários que não tinham pisado
em um salão londrino desde a época do Jorge II e que,
portanto, não sabiam que os recém-casados senhores Dyer
eram farsantes, Wyn tinha estado prestes de ficar em pé e
proclamar que queria anular o matrimônio. Entretanto, tinha
pedido a seu anfitrião e às encantadoras damas que os haviam
convidado que os desculpassem, enquanto sua esposa e ele
davam um passeio pelos jardins.
Levou-a direto à mesa de refrigérios.
No prado que descia com uma suave ladeira para os
pastos situados mais abaixo, as crianças jogavam bola e tênis,
enquanto que seus pais (camponeses, habitantes do povoado e
uma representação da nobreza local mais que pobre)
desfrutavam dos produtos da colheita. Todos estavam
contentes pela pausa que lhes dava a chuva e pela
generosidade anual de sir Henry. Um violino começou a tocar
uma melodia, e um numeroso grupo de moços e de moças
começou a dançar sobre a erva, em uma mescla de risadas e de
olhares tímidos: o incômodo flerte dos jovens e a inocente
paquera das jovenzinhas.
Wyn não tinha lembranças dessa época de sua vida. Tinha
passado de ser um menino a ser um homem em questão de
meses. De semanas. Não o lamentava. Tinha visto o mundo em
todo seu esplendor. Mesmo assim, deu-lhe as costas a essa
cena e tomou o conteúdo de sua taça.
O olhar da senhorita Lucas seguia cravada nos bailarinos.
― Não acredito que a senhora Polley aprove a história que
inventei.
― Eu diria que não aprova o marido que escolheu.
― Mas você é um cavalheiro excepcional.
― Um cavalheiro que acessou a acompanhá-la por toda a
Inglaterra sem uma carabina adequada, sem ser sua família e
sem contar com uma licença matrimonial, recente ou de
qualquer outra data.
― Humm. De todas as maneiras, é uma dama de
companhia ideal. Salvo por esse hábito de adormecer de
repente. ― Seu olhar voou pelo prado para o lugar onde se
encontrava a senhora Polley, recostada em um divã à sombra
de um salgueiro chorão. Franziu o cenho. ― Espero que não
esteja doente.
― Já vi isso antes. ― Nas Índias Orientais, há anos. ― O
corpo se apaga como se estivesse adormecido, embora não seja
assim. Não pode controlá-lo, mas não lhe faz mal.
A senhorita Lucas o olhou com expressão curiosa antes de
morder o lábio inferior. Wyn não afastou a vista.
No final, lhe perguntou:
― Acredita que demos um desvio a seu... amigo?
― De momento. Mas voltará para a tarefa.
― Tanto o desgostou?
― A seu chefe, que é um homem poderoso. Devemos
encontrar uma carruagem para tomar uma rota alternativa ao
sul. Sem demora.
― Enfim, eu...
― Silêncio, bruxa. Estou pensando.
― Planejando. ― Deu-lhe um pedacinho de queijo ao vira-
lata. ― Sim, eu também necessito silêncio quando estou
idealizando um plano.
― Pois agora seria um bom momento para fazê-lo. Por
exemplo, poderia criar um plano de contingência sobre o que
fazer com sua dama de companhia se nos vermos obrigados a
partir a toda pressa desta reunião se Eads aparecer.
― Chama-se senhor Eads? Quem é?
― Um escocês das Highlands, e tão forte como um touro.
― Corpulento, suponho. A senhora Polley pesa muito para
que eu a leve nos braços. Mas sem dúvida você poderia fazê-lo.
Wyn arqueou uma sobrancelha.
Ela assentiu com a cabeça.
― Poderia tomar-lhe ao ombro como faria um autêntico
vilão e levar-lhe enquanto eu corro atrás, rogando-lhe que
tenha piedade dela, como uma autêntica moça em apuros.
Ele lhe fez uma reverência.
― A ingratidão lhe senta maravilhosamente, senhorita
Lucas.
Ela se pôs-se a rir. E Wyn a olhou com o cenho
ligeiramente franzido.
A senhorita Lucas fechou seus lábios rosados. Mas parecia
balançar-se sobre as pontas dos pés, como se permanecer
imóvel lhe supusera muito esforço, e tinha as bochechas, com
essas covinhas bem à vista, ruborizadas. Wyn não podia
pensar quando ela estava tão perto. O ponche tinha detido a
ânsia que corria por suas veias, e nesse momento o envolvia
uma cômoda e conhecida frouxidão, preenchendo os limites de
sua ansiedade.
O escocês o buscaria pela estrada para o Norte em
primeiro lugar. Deveriam tomar cuidado. Mas durante esse dia,
não tinha nada que temer. Salvo a si mesmo. Ela seguia muito
perto e o licor lhe alterava o sangue.
― Senhorita Lucas, o que pensaria se lhe dissesse que
para continuar com sua missão teríamos que subtrair um meio
de transporte pertencente a uma das famílias que desfrutam da
hospitalidade de sir Henry?
― Subtrair? ― aproximou-se mais dele, uma reação que
não tinha desejado de tudo. Não de todo. ― Refere-se a roubar
uma carruagem?
Wyn se voltou uma vez mais para a terrina do ponche,
para se afastar dela e preencher a taça.
― Já...? ― Ela desviou o olhar da terrina a seu rosto. ― Já
o fez antes?
― Quando foi necessário. ― Apoiou-se na mesa. ― É
necessário agora, senhorita Lucas? Estou a suas ordens.
― Senhora Dyer. ― Seus lábios esboçaram uma careta. ―
Deveria me chamar senhora Dyer enquanto estejamos aqui. Se
por acaso alguém o escutar.
― Você é uma bruxa.
― Talvez seja. E você bebe muito.
― Como disse?
― Por que bebe tanto? Tão agradável é o seu sabor?
― Bastante, e também me calma os nervos. ― Ah. Isso era
verdade. Sempre necessitava várias taças para pronunciar
meias verdades, depois de tudo. Aparentemente, seus enormes
olhos azuis tinham conseguido arrastá-lo até dizer toda a
verdade.
Nada de mentiras com Diantha Lucas, salvo uma. Se
soubesse que tinha a intenção de devolvê-la a sua casa,
tentaria escapar de novo. Com Eads seguindo-os no rastro, e
talvez com o homem vestido de marrom, não podia permitir-se
mais atrasos.
― Enfim, eu agora mesmo estou muito nervosa, ―
confessou ela, que ergueu seus elegantes ombros ― então
talvez devesse tomar algo também.
― Não me parece muito nervosa.
― Sou uma excelente atriz. De verdade, senhor Dyer, a
estas alturas já deveria ter notado. ― Agarrou uma taça e a
levou aos lábios.
Wyn a observou cheirar o líquido e franzir o nariz, um
nariz arrebitado que apresentava duas diminutas cicatrizes
redondas, tão pequenas que não eram visíveis a menos que se
observassem muito de perto, como ele se viu obrigado a fazer
nesse momento. Havia mais cicatrizes em sua testa e em suas
bochechas, diminutas imperfeições que faziam com que a
elegância de suas feições fosse mais evidente.
Ela inteira era muito evidente, e muito sensual.
Os músicos começaram a tocar uma toada campestre.
Seus olhos, dois poços azuis à luz do entardecer, olharam-no
por cima da borda da taça.
― Terá um sabor ruim?
― Isso você tem que decidir.
― Meu padrasto e minha irmã Charity dizem que não
deveria beber álcool. Nunca fiz isso antes, por certo. Nem
sequer uma taça de vinho. ― Olhou a taça antes de voltar a
olhá-lo. ― Não vai me dizer que não beba?
― Parece-me que isso seria muito hipócrita de minha
parte.
Ela deu um sorvo. Piscou com rapidez. E deu outro sorvo.
Continuando, baixou a taça.
― Não é ruim. ― disse.
Ele meneou a cabeça.
― Ainda não me acalmou os nervos ― acrescentou a
senhorita Lucas.
― Necessita vários minutos.
Ela voltou a levar a taça aos lábios.
― Está morno. ― disse então, com os olhos arregalados ―
De fato, está quente. ― Levou uma mão enluvada à garganta
antes de colocá-la entre seus seios.
Suas pestanas se agitaram e Wyn acreditou ver algo em
seus olhos que já tinha visto antes, quando lhe deu a mão para
ajudá-la a desembarcar da carruagem: desejo feminino.
Como era um imbecil egoísta, nesse momento, e pelo bem
dela, não interpretou o papel de hipócrita e tirou-lhe a taça das
mãos. Porque queria ver esse brilho em seus olhos, queria ver
como esse olhar de desejo se concentrava nele. Queria ser, pela
primeira vez em anos, talvez pela primeira vez em sua vida,
totalmente irresponsável com uma mulher. Com uma dama.
Com essa dama em concreto.
Desejou o que sempre desejava cada vez que agarrava
uma garrafa de brandy, uma taça de whisky ou um copo de
cerveja. Desejou esquecer.

****

Diantha não sentia os lábios. Entretanto, sim via o senhor


Yale apesar da escuridão da noite e à luz mortiça da lanterna.
De fato, era incapaz de afastar o olhar de sua boca. De sua
intrigante boca. De uma boca que parecia absolutamente
deliciosa.
Mas se encontrava muito longe nesse momento. Sua boca.
E o resto de sua pessoa. Longíssimos. Partiu para o outro lado
da estrada. Recordava que lhe havia dito com bastante firmeza
que por nenhum motivo deveria segui-lo. E não o tinha feito.
Aceitou muito bem e seguia no mesmo lugar onde ele a tinha
deixado, apoiada contra a parte traseira do estábulo de sir
Henry, junto a uma fileira de árvores altas e negras.
Mas queria segui-lo. Queria estar onde ele estivesse.
Queria... Ai, queria...
Abriu os olhos, que haviam ficado vesgos. Ele estava
diante dela. A luz da lanterna o envolvia.
― Parece que usa uma coroa. ― estreitou os olhos ― Você
será um príncipe, senhor Yale?
― Sim. A partir de agora, pode me chamar Sua Alteza
Real.
Colocou-lhe uma mão no peito.
― Já me parecia isso. Acreditava que talvez fosse um
príncipe. Mas nesse caso está muito acima de mim. Eu
somente sou a irmã de um baronete. Não sou bastante
importante para dançar com você.
― Não haverá dança esta noite, assim não tem que se
preocupar com isso.
― Que alívio. Pelo amor de Deus, que tecido mais
maravilhoso! ― Acariciou a seda de seu colete com a ponta dos
dedos.
― Só o melhor para minha noite de bodas. ― Sua voz
soava rouca.
― Noite de bodas? ― Afastou-lhe a mão a toda pressa, mas
de algum modo a mão do senhor Yale se apoderou de seu
ombro, e menos mal, porque cambaleou ligeiramente e caiu
sobre a parede do estábulo, em vez de se encontrar com ar.
Recuperou o equilíbrio. ― Casou-se hoje?
― Sim, senhora Dyer. ― Soltou-a. ― Com você, segundo
todas as pessoas com quem esteve falando esta noite.
― Oh. ― Sentiu que seus lábios esboçavam um sorriso.
Sentia os lábios! Mas tinha-lhe adormecido o nariz. ― Que
alívio. Porque eu desejava expressamente... ― Agitou uma mão
no ar até que aterrissou em seu peito. ― Tocá-lo. ― Suspirou. ―
Se estivesse casado, não o faria, é obvio.
― Embora não esteja, não deveria fazê-lo.
O senhor Yale rodeou seu pulso com os dedos, uns dedos
largos e quentes, e de repente sua mão ficou suspensa no ar,
sem tocar nenhuma parte de sua pessoa. E isso sim que foi
uma decepção real. Olhou os dedos com o cenho franzido antes
de desviar a vista para seu rosto e sua intrigante boca. Sua
deliciosa boca.
― A senhora Polley ainda não despertou. ― disse o senhor
Yale com essa boca linda, e Diantha teve que piscar para vê-la
bem ― Temos que esperar que desperte antes de partir. Se
despertarmos com brutalidade, poderia assustar-se e alertar os
outros, embora pareça que os criados de sir Henry e o resto dos
convidados ou se deitaram ou estão muito bêbados para
perceber alguma coisa.
― Ah, sim. Poderia acreditar que a está sequestrando e
começar a gritar. Eu o faria. ― Assegurou-lhe.
― Duvido-o. Certamente você golpearia seu sequestrador
na cabeça com o primeiro que encontrasse e tomaria as rédeas.
― Suponho que não me permitirá conduzir. Papai nunca
me deixa conduzir, embora seja bastante boa com as rédeas
para ser uma dama. Por Deus, acredito que isso soa muito
petulante.
― É de esperar. E não, bruxa, não permitirei que conduza.
Não em seu estado.
― Que estado? ― Tomou uma profunda baforada de ar e
meneou a cabeça. ― Senhor Yale, senhor Yale, somente não
estou em estado de fazer uma coisa.
― O que? ― perguntou-lhe ele com voz risonha.
Adorava que sua voz tivesse um matiz risonho, porque
revelava muitas coisas. Dizia-lhe que ele a considerava
graciosa, e talvez que achasse prazerosa sua companhia. Os
cavalheiros não sentiam isso por ela. Oh, todos os outros sim,
mas somente porque lhes faziam se sentirem bem, e às pessoas
gostava de se sentirem bem, é obvio. Mas os jovens não
olhavam para ela. Os homens bonitos não se fixavam nela.
Justamente o contrário. Ela era a moça gorda e com acne com
quem ninguém queria dançar a menos que fosse para zombar e
rir dela, para puxar as fitas do seu cabelo, para beliscá-la até
fazê-la chorar.
Salvo ele. Ele tinha dançado com ela, com acne,
bochechas gordinhas e todo o resto.
― Encontro-me em estado perfeito, senhor Yale, para que
ponha as mãos em cima de mim. ― Fechou os olhos e deixou
que o ar noturno lhe acariciasse os lábios e as pálpebras e...
Estava acalorada. ― Estou acalorada. ― Deu um puxão no
fecho da capa. Entretanto, tinha os olhos fechados e não podia
vê-lo. Ou talvez as luvas lhe impediam de soltá-lo. Tentou tirar
as luvas, mas descobriu que não as usava. ― Onde estão
minhas luvas?
― Tirou-as faz um momento. Estão no bolso.
― Ah, estupendo. Meu pai me deu de presente... me deu
de presente Natal passado. São muito elegantes. De Londres,
sabe? Como você.
― Eu não sou de Londres, senhorita Lucas.
Agarrou-o pelas lapelas da jaqueta e colou a bochecha a
seu torso. Tão forte. Tão quente. Tão próprio do senhor Yale.
Cheirava muito bem, a linho limpo e a algo que era muito
agradável.
― Deixe de me chamar senhorita Lucas. ― Fechou os olhos
com força. ― Eu não gosto, mas sim, eu gostaria de tirar a
capa. Estou me assando.
Suas costas roçou a parede do estábulo antes que
desabotoasse a capa, e se alegrou tanto que quase se pôs a
chorar. Tirou-a com movimentos rápidos.
― Ah, obrigada, obrigada e mil obrigada!
― Com uma vez me basta. ― Seguiu-a pela maltratada
estrada, internando-se na escuridão.
Ela estendeu os braços aos lados.
― Estou bêbada, senhor Yale?
― Certamente, senhorita Lucas.
Voltou-se para olhá-lo no rosto e o frio ar noturno lhe
agitou as saias e lhe roçou o pescoço, lhe provocando uma
sensação maravilhosa.
― E você está bêbado, senhor Yale?
― Poderia dizer que não, senhorita Lucas.
― Oh. ― deteve-se em seco. O mundo girou a seu redor e a
decepção a afligiu. ― Porque se o estivesse, seguro que voltaria
pôr as mãos em cima de mim.
― Nesse caso, ambos devemos agradecer que não esteja.
Sua cabeça era um formigueiro de pensamentos. Tinha a
boca pastosa. Era incapaz de ver com claridade os montículos
de erva iluminados pelas lanternas. Estava muito escuro e um
enorme círculo negro lhe emoldurava a visão.
Olhou o edifício.
― De quem é a carruagem que vamos roubar?
― De sir Henry.
― Isso parece muito grosseiro depois de ter desfrutado de
sua hospitalidade toda a tarde.
― Mas é inevitável. A estas horas da noite, é a única
carruagem capaz de albergar seu baú de viagem e a nós três. A
menos que deseje fazer a viagem em uma carroça de feno.
Diantha se pôs a rir ao escutá-lo. Depois suspirou. Poderia
suspirar durante toda a eternidade se ele ficava diante dela.
― Quatro.
― Quatro?
― Ramsés.
― Ramsés?
Apontou a suas costas.
― Nosso cão, senhor Yale!
― Ah. ― Ele assentiu com a cabeça.
― Ou o chamava assim ou o chamava Aranha. Porque tem
os olhos negros. A diferença de você. Admiro muito seus olhos.
Deixarei meu colar.
― Seu colar?
― Como compensação.
― Não usa colar, senhorita Lucas.
― Disse-me que tirasse meus pertences de valor do baú de
viagem e isso fiz. Está na chapeleira. Temos que deixá-lo no
estábulo para pagar a sir Henry pela carruagem e pelos
cavalos. É muito valioso.
― Isso não será necessário.
― Insisto! Verá, escondi-o, de modo que quando minha
mãe roubou as joias de minha irmã, não o encontrou. ― Agitou
um dedo. ― Roubar não está bem, senhor Yale, embora tenha
se acostumado a fazê-lo no passado.
Ele tinha sua capa dobrada sobre um braço e se
encontrava a uns três metros de distância. A estrada se agitou
de um lado a outro, fazendo que tanto ele como o farol
alaranjado se sacudissem. Sentia-se fatal.
Arregalou os olhos.
― Acredito que vou vomitar.
O senhor Yale se aproximou.
No mesmo momento que ela começava a vomitar. Com
violência.
Foi espantoso.
7

Diantha despertou coberta por um suor pegajoso e com a


boca pastosa. Uma sensação muito desagradável. Ao engolir,
teve a impressão de que tinha crescido sua língua. Além das
pálpebras, o estômago e a cabeça. Gemeu e tentou respirar.
― Já está acordada? ― perguntou-lhe a senhora Polley,
que se encontrava perto dela. ― Certamente se sente como
Belzebu. O senhor Polley sentia o mesmo sempre que passava
da raia bebendo cerveja os domingos na casa do moleiro.
Diantha abriu os olhos.
― Bebia os domingos? Em um moinho? ― A estadia era
diminuta e só havia espaço para uma cama estreita, a cadeira
que ocupava o pequeno e bojudo corpo da senhora Polley e
uma penteadeira rústica. A cortina que cobria a janela era de
listas e estava aberta a fim de que entrasse a luz cinzenta. ―
Não é um pecado?
― O senhor Polley deixava as rezas para as mulheres,
senhorita, isso é o que fazem os homens de bem. ― Colocou-se
aos pés da cama. ― Esse homem, e não vou me referir a ele
como um homem de bem, quer falar com você. Mas antes de
lhe permitir a entrada, terá que se vestir.
Diantha piscou a fim de esclarecer um pouco a cabeça e o
estômago, mas foi em vão.
― Por que vai permitir que entre em meu dormitório?
Sua dama de companhia agarrou seu espartilho e suas
anáguas.
― Necessitávamos alguma explicação para oferecer a estas
pessoas amáveis sobre seu repentino desmaio, assim que disse
que você estava esperando um bebê e que não estava muito
bem. Vi muitas mulheres passarem muito mal durante a
gravidez. Já que a família acreditou com convicção, certamente
estranharia que não lhe permitisse entrar em seu dormitório.
«Pelo amor de Deus!», pensou. Não estavam em uma
estalagem. Colocou os pés no chão enquanto enterrava o rosto
nas mãos.
― Quem são estas pessoas tão amáveis, senhora Polley? ―
perguntou, sem afastar as mãos do rosto. As náuseas eram
cada vez mais desagradáveis.
A senhora Polley lhe colocou o espartilho.
― Um fazendeiro, sua esposa e uma penca de meninos. ―
Franziu o cenho. ― Esse homem conquistou a todos com sua
galanteria londrina.
Diantha levou uma mão à testa enquanto pressionava o
abdômen com a outra.
― Ah, sim?
― Esta manhã levou os quatro menores à colina para ver
as ovelhas e os trouxe de volta tão felizes e esgotados que
adormeceram ao acabar o almoço.
Passou-lhe as anáguas pela cabeça.
― Já é mais de meio-dia?
― São quase quatro, senhorita. ― A senhora Polley lhe
colocou o vestido e a instou a ficar em pé aferrando-a pelos
braços.
Diantha teve que se agarrar ao poste da cama. Pouco a
pouco começava a recordar retalhos da noite anterior. Retalhos
horríveis, vergonhosos e entristecedores. Esperava
sinceramente que as partes que não conseguia recordar fossem
algo melhores que as que sim recordava. Sentiu o gosto amargo
da bílis na garganta.
― Acredito que vou vomitar.
― É impossível que tenha algo dentro para vomitar,
senhorita.
Seu pudor? Seu orgulho? Não, é obvio que não. Tinha
arrojado ambas as coisas pela janela.
Aferrou-se ao poste da cama enquanto a senhora Polley
abotoava o vestido para depois recolher seu cabelo com a
mesma eficiência com a que trabalhava nesse tipo de encargos.
Era assombroso que tivessem deixado escapar uma pessoa tão
eficiente. Embora claro, a senhora Polley fazia bem pouco para
proteger seu pudor e seu orgulho, já que tinha passado a tarde
dormindo enquanto ela bebia uma taça de ponche atrás de
outra.
― Agora, senhorita, sairá com a cabeça bem alta. ―
Estalou a língua. ― Você não teve a culpa de que esse homem a
levasse pelo caminho da perdição.
― Ele não me levou por nenhum lugar, senhora Polley.
Bebi o ponche porque quis.
Sua dama de companhia a olhou com os olhos saltados e
entrecerrados.
― Eu sei muito bem o que aconteceu.
Pois se equivoca, pensou Diantha. Uma de suas
lembranças mais claras da noite era do senhor Yale afastando
as mãos de sua pessoa. Em várias ocasiões. Assim que a perca
foi somente dele.
Olhou a porta e teve a impressão de que o coração pulsava
ao compasso das quebras de onda de náuseas que a
assaltavam. Entretanto, não podia se esconder e tampouco
gostava de fazê-lo. A noite anterior tinha vivido o momento e se
entregou a ele com abandono. Ao menos, conforme recordava.
Não pensava passar nem um momento mais acovardada no
interior da diminuta casa de uma fazenda em algum lugar de
Shropshire, independentemente do que tivesse que enfrentar
quando saísse.
Aferrou-se ao trinco da porta e saiu.
Descobriu uma estadia grande e singela, com uma mesa
de madeira ladeada por dois bancos e uma lareira enorme
diante da qual se encontravam uma mulher usando um avental
e uma menina. Ramsés se levantou do lugar que ocupava junto
ao fogo e se aproximou dela, movendo o rabo com alegria. O
senhor Yale, que estava em frente à janela mais afastada,
voltou-se para olhá-la.
Ao vê-lo esboçar seu sorriso torcido, um gesto que não
delatou brincadeira nem tampouco um manifesto de mudança
de opinião sobre ela, parte do temor a abandonou. Saudou-o
com uma reverência e esteve a ponto de cair de bruços ao chão.
O sorriso do senhor Yale se alargou um pouco, enquanto a
saudava com uma reverência.
― Bom dia, senhora. Como se encontra?
― Não excessivamente bem. ― «Sinto-me fatal», acrescentou
para si mesma.
E também cheirava fatal. Sua pele emanava um aroma
ácido que era muito desagradável. Possivelmente seu aspecto
seria igualmente espantoso. Entretanto, a sala carecia de
espelho, algo que era de agradecer. Parecia-lhe melhor
desconhecer o aspecto que tinha.
Porque o que viam seus olhos era a perfeição. Sentiu um
nó na garganta apesar de que o senhor Yale usava seu traje
habitual: jaqueta, calças de montar e botas negras; colete de
delicado bordado e magnífica seda; e camisa branca e gravata
engomada. Não obstante, seu aspecto era diferente porque
brilhavam suas bochechas à cinzenta luz do dia que se filtrava
pela janela, e seus olhos a olhavam com uma expressão
extraordinariamente clara.
― Senhora Dyer, tenho o prazer de lhe apresentar a nossa
anfitriã, a senhora Bate. Esta é sua filha mais velha, a
senhorita Elizabeth Bate, uma magnífica cozinheira que vai se
encarregar de nos preparar o jantar desta noite.
― Como vai, senhora? ― A proprietária da casa a saudou
com uma reverência, provocando um frufrú procedente do
avental. ― É uma lástima que se encontre mau. Passei o
mesmo com meu primogênito, Tom. E com a Betsy, aqui
presente. ― Assentiu com a cabeça. ― Com o terceiro lhe
passará tudo.
― Obrigada por sua hospitalidade. ― Diantha se adiantou
um pouco e o vapor que surgia do caldeirão chegou ao nariz, o
que lhe revolveu de novo o estômago. Engoliu saliva e sorriu. ―
Não imagino o que deve ter pensado quando nos vimos
obrigados a nos deter aqui em plena noite. Você e seu marido
são muito amáveis por nos haver permitido pernoitar em sua
casa.
― O Senhor nos diz que quando damos proteção a um
desconhecido damos proteção a Ele, senhora. E o
cavalheirismo do senhor Dyer tranquilizou qualquer temor que
pudéssemos ter.
A menina fez uma reverência, ressaltando dessa forma sua
esbelta e magra figura, justamente o contrário do aspecto que
Diantha tinha a sua idade. Entretanto, havia algo no que se
pareciam muito. As bochechas e a testa de Elizabeth estavam
cobertas de um sem-fim de acne. O rubor as fazia ressaltar
ainda mais.
― Pode me chamar simplesmente Betsy, senhora. E não
sou tão boa cozinheira como disse o cavalheiro. ― Olhou ao
senhor Yale com expressão entusiasmada.
― Betsy, tenho certeza de que merece o elogio. ― Diantha
também estava segura de que a noite anterior ela tinha olhado
ao senhor Yale com o mesmo arroubo.
Já que sentia a terrível curiosidade de ver como tomava a
admiração das jovenzinhas tímidas que não tinham idade para
relacionar-se com adultos, reuniu coragem o suficiente para
olhá-lo. Entretanto, descobriu que ele não estava olhando para
Betsy. Estava olhando para ela, algo que não estava nada bem
e isso por si só, revolveu seu estômago.
― Meu Deus, Betsy! ― exclamou a senhora Bate enquanto
soltava a concha de sopa e olhava pela janela. ― Corre a fechar
a grade antes de que essa cabra escape e eu vou procurar... os
ovos. Senhora Dyer, preparei-lhe um pouco de chá. ― Olhou
para Betsy com muita pouca dissimulação e a obrigou a sair.
O senhor Yale se aproximou de um robusto aparador de
carvalho colocado contra a parede no qual se expõe um jogo de
taças e pires decorados com uma grinalda de flores rosas nos
borde.
― Pode tolerar a comida?
― Não. ― Observou-o servir uma taça e depois cruzar a
estadia para aproximar-se dela. ― Mas comerei se você o fizer.
― Eu comi com nossos anfitriões enquanto você passava o
dia dormindo. ― Ofereceu-lhe a taça.
Diantha a aceitou e a levou aos lábios.
― Acredito que teremos que... Uf! ― Cuspiu na taça o sorvo
de líquido que acabava de tomar. ― O que acreditou estar
fazendo ao me dar isto? Quer me ver vomitar outra vez?
Ele arqueou as sobrancelhas.
― Absolutamente. ― Puxou-a pela mão e a obrigou a levar
a taça outra vez aos lábios. ― Deve confiar em mim.
― Não. ― Diantha resistiu.
Sentia o gosto amargo da bílis na língua e um espasmo no
estômago. Entretanto, essa mão quente aferrava a sua com
firmeza. Aparentemente, se resistisse, obteria que ele a tocasse.
De modo que decidiu resistir. Era evidente que não tinha
aprendido lição alguma depois de sua incursão nas estradas da
indecência a noite anterior.
O senhor Yale empurrou sua mão com delicadeza. A fim
de não derramar o líquido sobre seu vestido, Diantha claudicou
e por fim levou a taça aos lábios.
― É um remédio tradicional para aliviar a ressaca. ― O
senhor Yale se manteve muito perto dela enquanto bebia.
Embora o sabor lhe pareceu repulsivo, conseguiu engolir.
― Uma superstição? ― conseguiu resmungar.
― Possui um efeito reparador.
Diantha deixou a taça vazia em sua mão.
― Parece-me incrível que você passe a vida assim. Refiro-
me a que é... incômodo. Com razão perdeu tanto peso desde a
última vez que o vi.
― Não vomito desde que era pequeno.
― Ah, não?
― Um homem sabe como beber se for preparado.
― De verdade comeu hoje?
― Sim. Gostaria de saber o tamanho das porções e no que
consistia exatamente o menu?
Diantha riu entredentes e ele sorriu em resposta.
Acompanhada por esse sorriso nem sequer sentiu o mal-estar
estomacal, seu estado fedorento nem a repentina moleza de
seus joelhos.
― Tenho fome. E como parece que vamos ter bebês depois
de tudo, acredito que deveria comer para me manter saudável.
Ele pôs-se a rir.
― Sim, é uma mulher incomum.
― Bom, meu plano não incluía afirmar que me encontro
em estado interessante. ― Nesse momento, não só sentia
frouxos os joelhos, mas também as pernas. Rodeou o senhor
Yale e se aproximou da mesa, onde tinham disposto o bule
junto com uma bandeja de bolachas. ― Não sei no que estava
pensando a senhora Polley quando inventou isso.
― Sem dúvida pensou que nossos anfitriões aceitariam
melhor essa explicação do que a bebedeira. Ou uma
enfermidade. E acredito que o fez para se obrigar a cumprir
com sua responsabilidade em todo este assunto. ― Fez uma
pausa. ― E para me obrigar.
Diantha se deteve com a mão na asa do bule.
― A você?
― O cenho franzido com o que me olhava ontem a senhora
Polley aumentava com cada taça de ponche que você bebia.
― E por que?
― Tenho a impressão de que me responsabiliza da sua
ingestão excessiva de álcool.
― Bom, mas eu sei que não foi assim. ― serviu-se de uma
taça de chá e a tomou quase de repente. Mal lhe tremiam as
mãos, toda uma façanha porque ele a estava observando e
havia um sem-fim de coisas que ambos podiam dizer e que
seriam terrivelmente incômodas. Ao menos para ela. ― Como
chegamos até aqui e onde estamos exatamente?
― Em algum lugar entre o Shrewsbury e Bishops Castle.
― Bishops Castle? Não fica ao...?
― Ao Leste? Sim. Pensei que era melhor nos manter
afastados da estrada principal por motivos de sigilo e
segurança.
― Lembro que você disse algo sobre continuar a viagem
até nos afastar o bastante para que ninguém reconhecesse a
carruagem e os cavalos de sir Henry, assim suponho que esta
família não os reconheceu. Foram muito amáveis ao nos dar
alojamento. ― Deu uma dentada a bolacha e, ao fim de um
instante, disse: ― Oh! Você deixou meu colar?
Os olhos do senhor Yale reluziram.
― Não me permitiu fazer outra coisa.
― Era o mais honorável.
― A verdade, é uma lástima que nesta busca não possa
interpretar você mesma o papel de herói.
― Não necessito. Assim você interpretou. E... ― Começou a
esmigalhar uma bolacha entre os dedos. ― Agradeço muito que
seja honrável. ― Estava morta de calor. Além de desiludida.
Por sorte, ele entendeu ao que se referia.
― Diremos que estamos em paz, certo? ― replicou o
senhor Yale em voz baixa, embora não parecesse
absolutamente morto de calor.
Em seguida, temerosa de estar rubra como um tomate,
Diantha levantou uma mão e disse com fingida
despreocupação:
― Em todo caso, deve interpretar o papel de herói porque
vamos para o Sul e Escócia está no Norte, é obvio.
― Escócia?
― O lugar no qual os vilões pegam as inocentes
jovenzinhas quando fogem de casa.
― Ah, claro. ― Afastou-se dela para aproximar-se do
aparador, onde se serviu de uma taça de licor. ― Suspeito que
o senhor H. teria algo a dizer se você acabasse na Escócia para
se casar com outro.
Ela assentiu com a cabeça.
― Por que chama meu prometido somente por sua inicial?
― Porque seu nome é muito ridículo para dizer em voz
alta.
O senhor Yale guardou silêncio.
Diantha soltou um suspiro.
― Chama-se Hinkle Highbottom. Sim, já sei que deveriam
ter detido e enforcado seus pais por lhe colocar esse nome com
semelhante sobrenome. Mas... ― apertou os lábios.
― Temo que estou sendo impertinente, mas sou incapaz de
refrear a curiosidade. Mas...?
― Mas... encaixa com ele. Não quero dizer que seja
presunçoso nem nada disso. É que... ― voltou-se para dar as
costas ao senhor Yale e se aproximou da cozinha porque
suspeitava de que se voltasse a olhá-lo, faria com o mesmo
arroubo que Betsy. ― É um bom homem e tenho certeza de que
serei muito feliz com ele.
― E o que opina ele desta missão em que embarcou?
Diantha agarrou a concha de sopa para remover o
guisado. Às vezes, ajudava à cozinheira a realizar tarefas
singelas enquanto ela entretinha Faith fazendo bolachas ou
pão. Imersa como estava nessa aventura tão maluca, a tarefa
lhe pareceu familiar. O mesmo que acontecia com esse homem.
Apesar dos momentos de claridade absoluta nos que via que
não era um homem de confiar, o senhor Yale tinha conseguido
que a fuga para encontrar sua mãe parecesse insensata.
― Não sabe nem saberá ― respondeu. ― Ninguém saberá.
Salvo você. E a senhora Polley, é obvio. Partiremos logo?
― No momento, escapamos à vigilância de Eads. Já é tarde
e ontem estive por meia-noite conduzindo. De modo que,
apesar de meu heroico papel, preciso descansar antes de nos
pormos de novo a caminho. Amanhã partiremos.
― Amanhã? ― O coração deu-lhe um tombo. ― Mas... ―
Sentiu que o pulso lhe disparava. Baixou a voz e olhou para a
janela. ― Acreditam que estamos casados.
O senhor Yale pareceu esboçar um leve sorriso. Depois de
cruzar os braços diante do peito, apoiou um ombro no
aparador.
― Se não recordar mau, foi ideia sua.
― Minha ideia era fingir diante das irmãs Blevins e de sir
Henry. Não pretendia incluir toda a população de Shropshire.
O senhor e a senhora Bate esperariam que
compartilhassem um quarto. Diantha acreditava possuir a
coragem de uma verdadeira heroína, mas semelhante
perspectiva lhe parecia impensável. Muito mais com as
lembranças desconexas da noite anterior. Em resumo: não
confiava em si mesmo, nem mesmo quando estivesse sóbria.
Quanto mais o olhava, mais ansiava sentir essa alarmante
emoção que sentiu quando a tocou no estábulo.
Nos olhos do senhor Yale viu um brilho que não soube
interpretar, um brilho feroz e de tudo desconhecido.
― Está tratando de me fazer sentir incômoda ― o acusou.
― E por que ia eu ia fazer isso?
― Porque pensa que sou uma desobediente e uma
desencaminhada. E uma indecente.
Aproximou-se dela. Diantha soltou a concha de sopa e se
voltou para enfrentá-lo. Por dentro parecia um pudim, mas não
pensava permitir que ele descobrisse, não depois de tudo o que
tinha permitido na noite anterior.
― Acredito que você é uma jovem admirável ― disse-lhe
quando se deteve, muito perto. ― Mas acertou em sua outra
hipótese.
Diantha começou a ter dificuldades para respirar e não
pôde resistir a olhar sua boca.
― Acertei?
― Ao me acreditar tão honrável para não me aproveitar de
uma dama em apuros.
Diantha ansiava estender um braço e tocar de novo seu
colete para comprovar que os duros músculos que havia
debaixo não eram fruto de sua imaginação.
― Isso acredito.
― Nesse caso, rogo-lhe que confie em que somente me
move o interesse por seu bem-estar. E, senhorita Lucas, ―
disse sustentando seu olhar sem fraquejar ― asseguro-lhe que
o dito interesse não inclui meu bem-estar.
Diantha teve a impressão de que ia sair o coração pela
boca.
― É obvio. ― conseguiu dizer com uma voz bastante
serena ― Vai dormir no chão?
Viu-o esboçar um sorriso torcido.
― Dormirei no palheiro. Em benefício de nossos anfitriões,
aduziremos que o faço pelo mal-estar que a aflige e pela
necessidade de que conte com a ajuda de uma mulher que
sabe conduzir-se nesse tipo de situações. A senhora Polley
compartilhará seu dormitório.
A voz do senhor Yale era como uma carícia. Estava
convencida de que ele não era consciente desse fato, porque do
contrário não lhe falaria assim. Provocava-lhe um
formigamento em todo o corpo.
A porta se abriu e entraram a senhora Bate e Betsy, que
os descobriram muito juntos, como se de verdade fossem um
casal de recém-casados em estado de boa esperança e não uma
jovem rebelde e indecente que ansiava beijar a um homem com
o que não estava comprometida e que acabava de lhe dizer que
não podia beijá-la.
Entretanto, Diantha era uma mulher prática e razoável,
não uma sonhadora como sua meia-irmã Serena, nenhuma
dócil cordeirinha como Charity. De modo que perguntou à
proprietária da casa se podia ajudá-la a preparar o jantar, e
começou a mover-se pela estadia, tentando não reparar no fato
de que o senhor Yale não tirava a vista de cima dela... apesar
do que lhe havia dito.
8

― É uma preciosidade, senhor. ― O moço acariciou o


focinho de Galahad.
― Você gosta de cavalos, Tom? ― Wyn segurou as rédeas
do cavalo de tração da carruagem e as passou pela argola do
4
tirante .
Os animais de sir Henry não eram exemplares jovens,
muito menos eram pangarés, e tinham percorrido o estreito
caminho para o Sudoeste com boa disposição apesar de não
brilhar a lua. Wyn lamentava o roubo. Entretanto, o colar
compensaria ao homem pela perda até que ele retornasse a
Londres e pudesse lhe enviar dinheiro. Seus recursos eram
escassos, mas bastariam. Depois, recuperaria o colar da
senhorita Lucas e o devolveria.
De fato, poderia pedir a Leam ou a Jin que o fizessem.
Nenhum dos dois se negaria, porque ele não estaria em
situação de poder recuperá-lo em pessoa.
Enquanto isso, esperava que ela não lamentasse a perda
de suas joias. Entretanto, não parecia o tipo de pessoa dada a
lamentações; de fato, parecia decidida a obter o que queria sem
titubear, tal como ele tinha tentado conseguir.
― São os melhores que vi. ― Thomas levantou uma pazada
de feno. ― É um cavalo de mulher?
― Não. Este se criou para as caçadas e pertence a um
duque.
Da mesma maneira que a senhorita Lucas pertencia a seu
pai e, depois, pertenceria ao senhor Highbottom. Menos mal
que lorde Carlyle já tinha arranjado um matrimônio para ela.
Com seus voluptuosos lábios e esses olhos cheios de desejo,
tão ardente como ingênuo, a senhorita Lucas não duraria uma
temporada social em Londres com sua virgindade intacta.
Ofereceria esse deslumbrante sorriso e essas inquisitivas mãos
a algum homem que confiasse de forma inocente, e o dito
homem não a rechaçaria. Onde ia encontrar a outro idiota
como ele?
O moço pôs os olhos arregalados.
― Caramba, que bom que conhece um duque.
― Só o conheço de ouvido. ― Pelas palavras de uma moça
com cicatrizes infectadas e sem curar nas bochechas e na
testa.
― E como é?
― Vive sozinho em uma fortaleza impenetrável.
O moço assobiou.
― Em um castelo?
― Em um castelo que nunca sai e no que nunca deixa
entrar ninguém. O duque é um ermitão. ― Um ermitão que
valorava sua potranca perdida acima de tudo, que tinha
assegurado ao diretor do Clube Falcon que não pagaria por sua
volta até vê-la e que tinha exigido que o homem que a
recuperasse a levasse diretamente. A sua fortaleza.
― Dizem que muitos desses ricos estão meio malucos.
Wyn colocou no cavalo a almofada e a correia da cilha
esquerda.
― Não só os ricos.
― A dama parece se sentir melhor esta manhã. ― Tom
esboçou um sorriso. ― Minha mãe e Betsy estão encantadas de
que uma verdadeira dama esteja ajudando com as tarefas da
casa.
― Não acredito que se importe. É uma dama incomum.
Uma moça do campo, criada na costa de Devonshire por
um padrasto que mal se relacionava com outros e por uma mãe
muito desagradável. Uma moça que, quando bebia mais da
conta, voltava-se tão carinhosa como uma gatinha e tão
brincalhona como uma cantora de ópera.
A mais velha das irmãs Bates apareceu pela porta do
estábulo.
― Tom, papai quer que vá ao redil.
― Irei depois.
A moça olhou Wyn e depois a seu irmão.
― Quer que vá agora.
O menino deixou a forca apoiada na parede e levou uma
mão à boina.
― Será melhor que vá ver as ovelhas, senhor. ― Voltou a
olhar para Galahad com admiração antes de ir.
Betsy o seguiu depois de dar de presente Wyn um tímido
sorriso. Atrás deles ia o cão, que se voltou ao chegar à porta,
brincou de correr sobre as três patas boas de volta à
carruagem e saltou à boleia. Wyn meneou a cabeça.
― Ramsés ― disse enquanto colocava o freio no cavalo. ―
Um nome régio para um vira-lata pestilento. ― O cão o olhou
enquanto segurava a cilha exterior do cavalo. ― Sabe que não é
meu cão.
O animal o olhou com esses olhos negros emoldurados
pela pelagem marrom e cinza, tal como o fez quando se deitou
no palheiro na noite anterior.
― Suspeito que não sabe. ― moveu-se para preparar o
outro cavalo. ― Mas, veja, Ramsés, agora não posso ter um cão.
― Da mesma maneira que não podia ter uma moça de olhos
azuis, sorriso precioso e mãos insistentes e que tinha tido o
incomparável prazer de tirar de cima dele.
A senhorita Lucas tinha passado a tarde anterior em uma
cadeira de madeira longe da lareira, bordando um avental. Com
o cenho franzido e mordendo o voluptuoso lábio inferior,
costurava com mãos trêmulas... já que ainda sofria os efeitos
do ponche da noite anterior, não lhe cabia a menor dúvida.
Entretanto, não tinha se queixado. Ao contrário, quando
terminou o trabalho, mostrou à filha mais velha do fazendeiro
com um sorriso. Continuando, acrescentou uma fita de renda
da touca da senhora Bate.
― Tirou a renda de um de seus vestidos ― sussurrou a
senhora Polley enquanto retirava o copo vazio da mesa. Wyn só
tinha bebido cidra, de modo que essa manhã os tremores eram
piores devido à disciplina.
― Quer dar a estas boas pessoas um pouco de valor. ―
disse para ela.
Seus olhos saltados o olharam entrecerrados.
― Um anjo que não acredita ser grande coisa, assim é
minha senhora. Merece que a tratem bem.
Wyn lhe deu toda a razão. Tinha tido muito presente essa
ideia na noite da festa de sir Henry, quando ela se colou a seu
corpo e o whisky que corria por suas veias lhe disse que a
abraçasse ainda mais. «Um pouco de valor», repetiu. Embora,
talvez, não fosse um anjo, não com sua deliciosa paquera e
com sua férrea determinação de cumprir sua missão com êxito.
E com suas inquisitivas mãos e seus seios perfeitos.
«Melhor que um anjo», pensou.
O cão o olhou com uma expressão curiosa nos olhos
azeviche.
― Sim, sou consciente de que um homem que pensa matar
um duque não tem direito em tocar a mulher nenhuma. ―
segurou a parelha, aproximou os cavalos da vara e rodeou as
rédeas duas vezes.
Uma sombra cruzou a pálida luz que procedia do pátio.
Conhecia sua sombra. Conhecia o contorno de seu pescoço e
as covinhas que apareciam em suas bochechas, e também
como revirava os olhos quando ria dele. Seria capaz de
descrever a forma de cada um de seus dedos e as tonalidades
de seu cabelo castanho claro, assim como a localização exata
das cicatrizes de seu nariz arrebitado. Era o tipo de detalhes
para os quais treinou desde uma idade muito cedo a fim de
recordar de tudo, um treinamento que tinha-lhe servido como
pérolas como agente do Clube Falcon. Talvez não estivesse
perdendo as faculdades. E conhecê-la dessa forma lhe
proporcionava uma espécie de satisfação agônica e sensual.
Ela se aproximou.
― Bom dia, senhor.
― Bom dia, senhora. Como está esta manhã?
Viu-a colocar uma mão no pescoço de um dos cavalos e
acariciá-lo, com seus magros dedos nus sobre a pele do animal,
como se não se incomodasse.
― Muito melhor. Totalmente recuperada, de fato.
Usava um singelo vestido azul com uma fita sob o peito. A
noite anterior, enquanto jazia a sós sobre a palha, tinha
passado um bom tempo imaginando o dito peito nu. Imaginou-
se tocando-a. Havia dito a si mesmo que assim se distraía da
atração que lhe provocava a garrafa que Bate tinha-lhe
devotado, uma garrafa que tinha rechaçado. Acabou-se o
whisky enquanto estivesse em companhia de Diantha Lucas.
Não confiava em si mesmo.
Nesse momento, tinha seus seios diante dele, embora
cobertos. Mesmo assim, a realidade era muito melhor que a
imaginação.
― Nesse caso, me alegro por você. ― Voltou-se para
comprovar se as rédeas estavam bem presas.
― É verdade, mas não voltarei a beber álcool. Partiremos
logo?
― Breve.
Ela olhou para a porta do estábulo.
― Os Bates são pessoas maravilhosas, muito amáveis. É
incrível que tivéssemos a boa sorte de encontrá-los. ― Ficou
junto a ele, apoiando o peso nos dedos dos pés. ― Betsy é a
mais velha, se por acaso não sabe. Um ano mais velha que
Tom. Este ano participou do concurso de assado da feira da
colheita com um único prato e ganhou. Está muito orgulhosa
desse lucro.
Wyn a olhou. Um ligeiro rubor lhe cobria as bochechas.
― Como deve ser. ― Dirigiu-se à parte traseira da
carruagem e agarrou uma corda para amarrar o baú de viagem.
Ela voltou a colocar-se a seu lado e Wyn sentiu como
agitava o ar. Sentiu-o! Era como uma brisa primaveril que com
uma suave agressão ameaçava colocar seu mundo de pernas
para acima.
― Tem quinze anos. Disse-me que gosta de um moço da
fazenda vizinha, mas que tem medo de revelar seus
sentimentos por temor que a rechace. ― Falava mais devagar
nesse momento. ― Acredito que é por algo mais que
acanhamento.
― Sério? ― Apertou a corda ao redor do baú.
― Esconde o rosto cada vez que pode.
Ah. É obvio.
― Já terá confiança com o tempo. Ainda é jovem. ―
limitou-se a dizer.
― Não acredito que tenha que ver com sua idade.
― Talvez não.
Produziu-se uma longa pausa.
― Os homens observam essas coisas?
Wyn não podia fingir ignorância sobre o assunto que ela
estava falando. Embora fosse ingênua no que se referia aos
instintos mais baixos de um homem, Diantha Lucas era muito
mais preparada do que aparentava ser.
― Sim, temo que a maioria dos homens observam essas
coisas.
Ela ficou calada um momento.
― Já sabia, claro. Perguntei-lhe para saber como... ―
quebrou sua voz. ― Para saber como...
Voltou-se para ela.
― Como faria...?
Seu queixo golpeou no seu.
Os dois se separaram de um salto. Ela levou uma mão ao
rosto. Um intenso rubor cobria suas preciosas feições. Em seu
caso, a tensão se amontoou precisamente no lugar onde menos
lhe convinha.
Com os lábios cobertos pelos dedos, a senhorita Lucas
retrocedeu um passo. Ele se agachou e enganchou a corda no
eixo traseiro, depois do qual exalou um comprido suspiro.
― Não vou insultar a dignidade de nenhum dos dois,
senhorita Lucas, ao fingir que não acaba de tentar me beijar. ―
Olhou-a por cima do ombro.
― Tenho-o feito. ― Outra vez essa ditosa careta nos lábios.
― Eu gostaria muito de beijá-lo.
Wyn apoiou o braço em um joelho e se voltou para ela.
― É que não prestou atenção ao que lhe disse ontem pela
tarde?
― Oxalá tivesse feito.
― Pois parece que não. ― replicou antes de ficar em pé.
Ela franziu o cenho e suas feições cobraram vida de novo.
― Ai, por que não? Os Bates acreditam que estamos
casados e a senhora Polley acaba de adormecer, assim não
saberá. Não estou propondo matrimônio. Somente seria um
beijo, ninguém saberia.
― Eu sim.
― Enfim, e não poderia esquecer depois disso?
― Não. ― Jamais. Por Deus, era muito bonita. Observou
seu rosto, que nesse momento apresentava uma expressão
entre a indignação e a esperança. Alguma vez poderia saciar-se
de olhá-la. ― Não percebe o que está dizendo?
― Claro. Não seja tolo. Embora suponho que não seja
tolice, a não ser cavalheirismo. Admiro muito essa qualidade
em você, é obvio, mas agora é um inconveniente.
Pôs-se a rir, porque a alternativa era colar esse
maravilhoso corpo ao dele e beijá-la até que ambos perdessem
os sentidos.
Viu-a franzir o cenho.
― Já sabe que de vez em quando tenho pequenos lapsos
de recato. Mas por que você tem que ser um cavalheiro a todas
as horas? Menos naquele estábulo, claro.
Não se comportou com cavalheirismo quando a senhorita
Lucas o abraçou, bêbada, e esteve preste de lhe dar o que
queria. Seus pensamentos tiveram muito pouco de
cavalheirescos. Como tampouco tinham tido suas fantasias da
noite anterior. Como tampouco era cavalheiresco a reação de
seu corpo nesse momento.
Foda-se, onde estavam as regras quando um homem as
necessitava?
«Regra número oito!», pensou.
― Um homem só será um cavalheiro se jamais atuar em
contrário de si mesmo. ― imitou seu tom de voz sereno. ―
Salvo, talvez, em um estábulo. ― admitiu.
Ela abriu os olhos.
― Agora estamos em um estábulo.
Que Deus o ajudasse.
― Assim é.
― Só um beijo. ― sussurrou ela ― Prometo não voltar a
incomodá-lo com o assunto.
Incomodá-lo? Não, deslumbrava-o, atormentava-o e o
torturava. Seus lábios, seus olhos, seu sedoso pescoço e seus
seios perfeitos o tentavam.
«Ao corno com as regras», pensou. Embora fosse por um
momento.
Tomou seu rosto entre as mãos, deleitando-se com a
quentura de sua pele. Pele suave. Cabelo suave. Mulher suave.
Quase gemeu pelo prazer que experimentou. Tinha os olhos
totalmente abertos. Inclinou-se sobre ela.
Seus lábios eram muito mais doces do que tinha
imaginado, carnudos e submissos. Por um breve instante,
permitiu-se cheirar seu aroma, capturar esse aroma estival a
ar fresco em metade da neblina outonal e sentir a carícia de
sua boca contra a dele.
O bastante para que seu corpo cobrasse vida e um golpe
de pânico se apoderasse dele. Pelo amor de Deus, tinha que
fazê-la sua.
Era uma sensação embriagadora.
Ela o embriagava.
Afastou-se. Viu-a inspirar fundo enquanto abria os olhos.
Continuando, viu-a sorrir e esses poços azuis reluziram.
Conteve um gemido enquanto a olhava.
«Um erro», disse-se. Uma debilidade. Um tremendo erro. No
que tinha estado pensado?
― Foi um primeiro beijo perfeito. ― murmurou ela.
― Segundo. ― Ele tinha a voz alterada.
― Segundo?
Tocou o queixo com um dedo, ali onde ela o tinha tentado
pela primeira vez. Esses lábios rosados esboçaram um sorriso
delicioso.
Deveria matar-se nesse preciso momento em vez de
esperar seu fim depois de matar o duque. Nenhum de seus
pensamentos era cavalheiresco. Nenhum de seus desejos. Viu
um pedacinho de sua rosada língua e quis senti-la sobre todo
seu corpo... sobre uma parte em concreto. Queria-a nesse
momento, sob seu corpo, sobre a palha, e ao corno com os
escrúpulos, as regras e os planos que tinham regido sua vida
esses últimos cinco anos. Esses últimos dez anos. Ou quinze.
Diantha Lucas o fazia se sentir de um modo muito pouco
cavalheiresco. Precisava estar em seu interior.
Ela nem imaginava. Apesar de suas proposições ébrias e a
sua inocente insistência, em seu rosto havia uma expressão de
satisfação total. Nem imaginava o que havia além dos beijos, o
que podia lhe fazer nesse momento.
Foi como se lhe escapasse o ar.
Tinha que recuperar o controle.
― Tem o costume de enumerar os beijos que compartilha
com os cavalheiros, senhorita Lucas? ― Palavreou. O palavrório
sem sentido ajudaria.
Porque assim imaginaria que se encontrava em um salão
de Londres, intercambiando comentários coquetes com uma
dama da alta sociedade. Em questão de semanas, ela estaria
ali, rodeada pela decência e a salvo, longe dele.
― Numerar?
― Conta-os com os dedos, por assim dizê-lo, como os
pontos de uma partida de cartas.
― Não. Por que pensa isso?
― Esse «primeiro» sugere que está esperando um segundo.
― Pois esse «primeiro» quer dizer que você foi o primeiro
homem que beijei.
Seu primeiro beijo? Impossível. Entretanto, era um
canalha por pensar sequer outra coisa.
― Seus pretendentes não...?
― Bem, é que não tive pretendentes em Devon... salvo o
senhor H. Estava cheia de acne e pesava dez quilogramas a
mais no último verão, depois de tudo. Os cavalheiros não me
achavam interessante. A você não pareci ser assim. ― Disse-o
ao descuido, como quem falava da chuva.
― Sua variedade de opiniões é muito interessante. E antes
disso, descobri que você dança muito bem.
― Lembra-se desse momento? ― A senhorita Lucas baixou
a cabeça, com a incredulidade grafada em seus preciosos
olhos. ― Recorda o episódio em Savege Park há dois anos
quando lhe disse que não deveria beber tanto? Lembra-se?
― Pois sim. Lembro-me, é obvio.
― Oh. ― Pareceu meditar na questão. ― Mas não se lembra
de ter dançado comigo no terraço, durante o baile que se
celebrou depois das bodas de lorde e lady Blackwood. Você
estava bêbado.
― Lembro-me de tudo, senhorita Lucas. É minha
maldição.
Ela não pareceu ouvir o último comentário.
― Se acu...? ― Seu olhar desceu de seus lábios até cravar-
se em seu peito. ― Lembra-se do que esses moços estavam me
dizendo?
― Lembro que você queria que deixassem de incomodá-la.
Ela acrescentou em voz baixa:
― Salvou-me.
Wyn se voltou de novo para a carruagem.
― Limitei-me a chamá-los a ordem. ― Fez um último nó na
corda e deu-lhe um puxão. ― Já está tudo pronto. Podemos ir
imediat...
A senhorita Lucas o agarrou pelo braço. Retesaram todos
os seus músculos. Não estava fazendo as coisas fáceis para ele,
mas não tinha claro se queria que o fizesse. Uma parte dele
ansiava desejar algo que não podia ter e, portanto, sofrer as
consequências. Era a parte mais tola de sua pessoa, a parte
que tinha percorrido tantas vezes o caminho do desejo e do
sofrimento que ele conhecia como a palma de sua mão, a parte
que acreditou ter deixado atrás quando fugiu de casa, e da qual
acreditou se desprender uma vez mais ao se unir ao Clube
Falcon, mas que de todas formas se aferrava a ele com força.
― Pode...? ― mordeu-se o lábio. ― Pode me dizer...? Como
se respira?
Com muita dificuldade se concentrou nesses olhos que o
olhavam tão fixamente.
― Como se respira?
― Enquanto se beija.
«Com dificuldade», pensou. Tentou acalmar sua voz.
― Suponho que como de costume.
Viu-a franzir o cenho.
― Nos momentos oportunos. ― sugeriu.
Seus lábios adotaram essa careta que ele tanto temia e
desejava.
― Talvez pelo nariz. ― acrescentou, porque sua única
salvação era seguir falando ou partir.
― De verdade? ― perguntou-lhe ela, que não parecia muito
convencida.
E dado seu cepticismo que era muito conveniente para
saciar a necessidade de sentir de novo seus lábios,
demonstrou-lhe como respirar enquanto se beijava. Ao escutar
seu ofego de surpresa, tomou-lhe a cintura entre as mãos,
colou-se a sua boca e a beijou de verdade agora. Seus lábios
estavam quentes e imóveis, mas começaram a mover-se à
medida que ele saboreava sua beleza e aspirava que ela
correspondesse.
No princípio, ela se conteve, mas depois se deixou levar.
Seus lábios se separaram para ele como se fosse algo natural,
oferecendo-lhe o fôlego quente da tentação que encerravam.
Não teria encontrado uma inocente mais sensual e disposta a
entregar-se ao prazer nem que estivesse procurado de
propósito.
Entretanto, não a tinha procurado. Não tinha procurado a
ninguém, mas ali estava, com as mãos sobre uma moça que
não podia soltar, acariciando com a língua os lábios doces e
carnudos que ela tinha separado para ele.
― Agora respire. ― sussurrou contra seus lábios antes de
inundar-se em sua boca. Ela anunciou sua rendição com um
gemido rouco. Morria por explorar esse corpo com as mãos, por
colá-la a seu corpo e lhe demonstrar como podia ser um beijo
de verdade. ― Respire.
Por Deus, cheirava maravilhosamente bem. Seria capaz de
enterrar seu rosto no pescoço e permanecer ali sem fazer mais
que inalar seu aroma. Mas temia que se desfrutasse muito
mais de Diantha Lucas, ficaria destroçado quando chegasse o
momento de entregá-la a seu pai e, depois, a seu prometido.
Destroçadíssimo. E ela não o merecia.
«Regra número nove: Um cavalheiro sempre deve antepor o
bem-estar de uma dama ao seu próprio.»
Acariciou-lhe a língua com a sua e gemeu de prazer, e em
resposta ele a instou a separar mais os lábios e procedeu a lhe
demonstrar com mais paradas de como respirar. Demonstrou-
lhe o quanto a desejava.
Pelo bem da senhorita Lucas era uma lástima que não
houvesse um cavalheiro nesse estábulo.

****

Diantha queria que continuasse, que não se detivesse


jamais.
Seu primeiro beijo não tinha sido o que ela esperava. Que
um homem tocasse em seu rosto era estranho. Não foi uma
carícia suave como quando uma mulher lhe dava um beijinho
na bochecha, a não ser um contato firme; além disso, cheirava
a couro, a cavalo e a uma colônia sutil. Mas no fim de um
momento, a experiência lhe pareceu bastante agradável.
Bastante. Fez com que seu coração pulsasse com força e que
deixasse de respirar. Alegrava-se de ter obtido a colaboração de
Betsy para que vigiasse a senhora Polley a fim de que esta não
se inteirasse do que faria.
Já não lhe parecia estranho e «alegre» era muito curto
para o que sentia.
Nunca tinha permitido que lhe tocassem na cintura, nem
sequer a suas irmãs quando se abraçavam. Dado que tanto sua
mãe como na academia para senhoritas tinha-lhe repetido até
não poder mais que era mais larga que o tronco de uma árvore,
tinha aprendido a usar vestidos soltos para ocultar a barriga.
Quando o senhor Yale a segurou pela cintura, tentou afastar-
se. Mas suas mãos eram muito grandes, fortes e firmes, e seus
lábios obtiveram que se esquecesse por completo de sua
cintura, pela singela razão de que não podia pensar. Aferrou-se
a seus braços, que possuíam uma dureza incrível, a diferença
de sua boca, que seguia aberta sobre a dela. Uma boca ardente
que estava abrasando-a. E não só lhe abrasava os lábios, a não
ser outras partes do corpo que nem sequer estava tocando, se
fosse com os lábios ou com as mãos; em especial por debaixo
do abdômen, um lugar onde sentia um delicioso calorzinho e
uma estranha sensação de necessidade. Não se parecia com o
que tinha imaginado, absolutamente. Sempre tinha suposto
que os beijos seriam uma carícia úmida e desagradável, mas se
havia algo úmido nesse momento era o lugar situado entre
suas coxas, e ele parecia achar o beijo mais que agradável.
Deslizou os dedos pela manga da jaqueta para senti-lo
mais. Seus músculos se contraíram sob a carícia e a quentura
que ela sentia cresceu.
― Respire. ― repetiu o senhor Yale, com a voz um pouco
rouca, e ela fez outro intento, mais um ofego que outra coisa,
antes que ele voltasse a lhe cobrir a boca.
Embora somente roçasse seus lábios, Diantha tinha a
sensação de que ele a tocava mais com cada beijo. Suas mãos
se deslizaram por suas costelas, muito cálidas, fortes e
seguras, e se detiveram justo por debaixo de seus seios.
«Sim», pensou. Gostava das mãos de um homem tão perto
de seus seios. Faziam-na se sentir acalorada, absolutamente
incômoda. Um pouco desenfreada, certo, já que sentia uma
deliciosa tensão nos mamilos. Aferrou-se a seus braços quando
ele a fez separar os lábios ainda mais.
Quando a acariciou com a língua, ofegou.
Isso, essa carícia era perfeita, não podia ser um beijo
normal e corrente. Diantha separou os lábios, convidando-o a
acariciá-la de novo dessa forma. Ele o fez, e o repetiu outra vez,
fazendo com que suas línguas se entrelaçassem em um baile
ardente e lento que a deixou um pouco mais desenfreada.
Aceitou sua invasão e o recebeu com prazer em seu interior.
Era uma sensação maravilhosa, indescritível, como se estivesse
lhe tocando a alma. Embora a debilitava, ansiava mais. Mais
dele. Sua pele. E desejava estar mais perto dele.
Passou suas mãos por seus ombros e se colou a ele.
Sentiu que suas mãos a seguravam com mais força, mantendo-
a separada.
De repente, o senhor Yale pôs fim ao beijo.
Diantha abriu os olhos. Com custo voltou a se concentrar.
― O segundo ― disse ela com uma voz muito
enrouquecida. Era muito bonito e sentia suas mãos ali onde
ninguém mais as tinha posto, e fazia com que a cabeça desse
voltas. ― Ou, melhor dizendo, o terceiro.
― Respirou? ― Sua voz parecia muito grave.
Ela assentiu com a cabeça. Milagrosamente, tinha
respirado enquanto ele a beijava, embora nesse momento
parecia ser incapaz de fazê-lo.
― Lamento ter pedido somente um.
Ele a soltou e retrocedeu um passo. Seus olhos chapeados
se assemelhavam ao mercúrio, pareciam tão líquidos como o
doce palpitar de sua virilha, mas tinha o cenho franzido.
― Tinha planejado? ― ele perguntou.
― É obvio. Sempre tenho um plano para...
― Para tudo.
Ao ver que o senhor Yale se voltava e se aproximava dos
cavalos, o coração deu-lhe um par de saltos. Tinha os lábios
úmidos e ainda queria senti-lo neles, também queria voltar a
sentir suas mãos no corpo.
Olhou de esguelha a porta. Não havia nem rastro de
Betsy. A senhora Polley devia seguir ainda na casa.
― Poderia me beijar outra vez?
O senhor Yale se voltou para olhá-la, mas nessa ocasião
seus olhos chapeados tinham uma expressão feroz e apertava
os dentes.
― Senhorita Lucas, não volte a me pedir isso.
― Mas eu...
― Se me pedir isso de novo, juro que a ato, coloco-a em
seu baú de viagem e a levo de volta a seu padrasto sem sequer
pensar novamente.
― Não caberia em meu baú de viagem. Está muito cheio.
― Tiraria primeiro suas coisas, é obvio. ― aproximou-se do
cavalo castanho e o fez andar. ― Quando a outra noite me disse
que sabia conduzir, estava alardeando ou era verdade?
― Nunca alardeio. É verdade. Aprendi quando era muito
jovem. ― A uma idade muito jovem conseguiu convencer o
cocheiro de Glenhaven Hall de que lhe ensinasse. Seu padrasto
sempre se queixava de como se dava bem ao convencer aos
criados de que acessassem a ajudá-la em seus amalucados
planos.
Amarrou o cavalo castanho a carruagem.
― Nesse caso, pode conduzir. Espero que não vire a
carruagem. Não me cabe a menor dúvida de que a senhora
Polley encontraria algum motivo para me dar um sermão em
vez de dar em você. ― Embora parecia brincar, seus olhos
ainda reluziam furiosos.
― Prometo não a virar. ― Observou-o atravessar a porta do
estábulo, diante de seus cavalos. ― Obrigada.
― Não tem que me dar obrigado. Galahad prefere que o
montem do que o amarre a uma carruagem para conduzi-la.
Levou os dedos aos lábios para comprovar se os notava
diferentes ao tato. Não era assim. Mas ela sim se sentia
diferente. O senhor Yale acabava de lhe ensinar a respirar e
tudo em seu interior desejava que fosse muito diferente.
― O agradecimento é pelo beijo.
Ele não se deteve ao escutar suas palavras nem lhe deu a
entender que as tinha ouvido. Mas acreditou em lhe ouvir
resmungar «bruxa» enquanto saía ao pátio.
9

Estimados compatriotas:
Trago-lhes notícias frustrantes. O homem que contratei para
que seguisse o membro do Clube Falcon que desmascararei
perdeu sua pista. Se compartilho esta informação com vocês é
porque me chegaram muitas de suas cartas e sei que estão
emocionados, de modo que é insuportável lhes manter em
semelhante incerteza. Chega-me ao coração que estejam tão
desejosos como eu de conhecer a verdade sobre este clube.
Lady Justice

****

Queridíssima dama:
Rogo-lhe... clemência! Deve cessar esta prosa tão excitante.
Quando leio a palavra «emoção», «coração» e «desejo» no mesmo
parágrafo, mal sou capaz de me manter sentado na cadeira.
Estaria disposto a levantar uma tenda de campanha diante dos
escritórios da Editora com a esperança de vê-la entrar no edifício
pelas manhãs. De fato, tentei-o! Mas, ai! O sereno me impediu
isso. De modo, milady, que me vejo obrigado a lhe suplicar que
se compadeça de minha febril imaginação e a deixe descansar.
Seu cada vez mais fervente admirador,
Peregrino
Secretário do Clube Falcon

****

Senhor:
Pode despreocupar-se das frescuras que publica Lady
Revolucionária. A habilidade do Corvo para evitar o perigo não
tem comparação. Desfazer-se-á do indesejado perseguidor sem
problemas.
Peregrino
10

Tinha que se livrar dela.


Não podia esperar a chegada de Carlyle ao ponto de
encontro que lhe tinha indicado na nota enviada através do
jovem William. Tinha que se livrar dela nesse momento, antes
de que o convidasse a tomar mais liberdade com seu corpo.
Antes que ela fizesse mais planos...
Pelo amor de Deus, era capaz de deixar louco um homem
com suas inquietas mãos, seus rosados lábios e sua faminta
boca. Se voltasse a se oferecer, ele nem sequer se incomodaria
em resistir. Nove moças em dez anos e em nenhuma vez havia
se sentido tentado. Entretanto, nesse momento a garrafa o
chamava com mais insistência do que nunca. Sem dúvida
alguma, estava perdendo as faculdades. Seus desejos não se
encontravam de tudo sob seu controle.
Entretanto, se conseguisse manter a tentação afastada,
poderia resistir. Cavalgar lhe proporcionava certo alívio. Não
obstante, quando a senhorita Lucas tomou um descanso no
manejo das rédeas e ele atou Galahad à carruagem para
ocupar o seu lugar, não entrou na carruagem para se sentar
junto à senhora Polley. Ao contrário, sentou-se a seu lado,
roçando-lhe o braço com o seu com cada buraco da estrada, e
contou anedotas destinadas a entretê-lo que lhe deram a
oportunidade de ver como se moviam esses lábios rosados e
como gesticulavam essas mãos que o obstinado. Falava com
ternura e com voz risonha, lançando olhares de soslaio. Apesar
de sua atitude extrovertida, não se encontrava cômoda; seus
olhos tinham um brilho carente de antes.
Wyn não confiava nela nem um cabelo, porque suspeitava
que podia lançar-se de novo sobre ele. De modo que tinha que
se livrar da senhorita Lucas.
A oportunidade se apresentou no meio da tarde, quando o
sol já descia pelo horizonte, roçando as colinas da fronteira
galesa, como estava acostumado a acontecer em seus sonhos.
Fazia muitos anos, asfixiado pelo sol das Índias Orientais e
durante as noites tempestuosas, tinha sonhado com esses
entardeceres, com essa terra esmeralda, com a mesma terra
que conheceu desde jovem, indo de uma fazenda a outra em
busca de trabalho, sobrevivendo graças a sua fortaleza, a um
punhado de livros e à raiva que respirava seu coração. Durante
esses anos, permitiu-se descansar de vez em quando. Cada seis
meses visitava o único lugar que tinha considerado seu lar. O
único lugar no que tinha estado a salvo. O lugar que não se
permitiu pisar em cinco anos e que tinha pensado levar a
senhorita Lucas, onde ela esperaria até que Carlyle fosse
procurá-la.
Ainda estava em tempo de reconsiderar sua decisão.
Entretanto, embora não fossem as circunstâncias que ele teria
gostado, não podia deixar escapar semelhante oportunidade. A
senhorita Lucas não parecia surpreender-se por nada e estava
decidida a continuar com sua missão. Entretanto, se
enfrentasse um perigo real, não continuaria.
Duncan Eads o ajudaria. Sem pretendê-lo. O escocês os
tinha encontrado. Nesse instante, seguia-os pela estrada,
embora não se aproximasse muito. Entretanto, não lhe
permitiria aproximar-se mais, não o bastante para ameaçá-la,
mas sim o suficiente para assustá-la de modo que estivesse
ansiosa para retornar para casa.
O homem vestido de marrom também os seguia, embora
com menos sutileza, já que estivera bem à vista durante toda a
manhã. Era um milagre que Eads não o tivesse despachado a
essas alturas.
Detiveram-se para comer o almoço pronto pela senhora
Bate e deixaram a carruagem sob as copas de alguns pinheiros
e carvalhos, em um estreito vale dominado por um moinho. O
lugar estava deserto, já que o moleiro e os trabalhadores foram
almoçar. Nesse momento, nada se movia salvo a vegetação das
colinas e as flores silvestres que enchiam o vale de cor amarela,
balançadas pela brisa outonal.
― Os pássaros gorjeiam de todas as formas imagináveis
neste lugar. ― A senhorita Lucas lhe deixou as rédeas nas
mãos e saltou da boleia. ― Em casa só escuto o contínuo
romper das ondas e os grasnidos das gaivotas. ― Abriu a
portinhola da carruagem e, como se fosse uma criada, puxou o
braço da senhora Polley para ajudá-la a descer. ― Em Savege
Park é ainda pior, porque como está em cima do escarpado...
Senhora Polley, tem que vir a Savege Park um dia destes. É
muito grandioso para meu gosto, mas minha meia-irmã é uma
condessa. Sério! Sabia que não ia acreditar, por isso não o
havia dito antes.
A senhora Polley deu-lhe uns tapinhas no braço.
― Acreditaria em qualquer coisa de você, senhorita. É um
anjo. ― Desembarcou da carruagem com dificuldade, mas de
todas formas conseguiu fulminá-lo com o olhar. ― Não é assim,
senhor?
― Certamente é. ― Um anjo em sua boca. Um anjo em
suas mãos.
Olhou a estrada. Eads apareceria logo.
― Entre os dois ou farão com que me suba à cabeça. ― As
covinhas apareceram em suas bochechas, mas não o olhou no
rosto.
A senhorita Lucas não acreditava que o elogio fosse
sincero. Muito melhor assim.
Viu-a conduzir sua acompanhante a um assento de pedra
localizado em um dos muros do moinho. O edifício tinha um
teto alto e a roda se movia ao ritmo que o riacho impunha a
sua passagem pelo vale, alagando o lugar com sua fervura. Em
questão de uma hora, o moleiro voltaria e retomaria a moenda
do grão recém-colhido que descansava no armazém. Wyn
conhecia muito bem o ritmo da temporada da colheita nessa
parte do país, tão bem como conhecia o funcionamento de uma
pistola e como utilizá-la para seu maior proveito. No momento,
parecia que estavam sozinhos e o isolamento era muito
atraente.
Desarrolhou a garrafa que Bate tinha-lhe dado pela
manhã e se assegurou de que a senhorita Lucas o visse
bebendo. Genebra branca, mal destilada, que lhe queimou a
garganta e o estômago vazio. Entretanto, servia a seu
propósito. Em questão de minutos, desapareceriam os tremores
de suas mãos e, em meia hora, ela acreditaria no que deveria
fazer para que essa farsa fosse um êxito.
Falsidades e mentiras, farsas e subterfúgios. A malha de
sua vida. Bebeu outro gole, e a paz, por fim, começou a correr
por suas veias.
Menos mal que sua tia-avó morreu, antes que averiguasse
a verdade. Jamais teria acreditado. Ou se acreditasse teria
partido seu coração.

****

Diantha o observou às escondidas. Estava acostumada a


observar às escondidas. Dado que sua mãe a tinha convencido
de que não se faria notar entre os amigos de seus pais e era
muito consciente de que as outras meninas de sua idade
zombavam dela a suas costas, tinha aprendido a observar e a
escutar sem que a vissem. Com uma exceção: Serena sempre a
tinha visto. Sua meia-irmã, a pessoa mais amável que tinha
conhecido, tinha olhos na nuca. Se algo bom tinha aprendido
na vida, foi graças a Serena. Entretanto, quando a encontrava
escutando às escondidas, o olhar carinhoso de Serena sempre
fazia com que se sentisse culpada.
Claro que sua mãe era uma pecadora, de modo que ela
levava isso no sangue.
Tirou a comida e serviu à senhora Polley uma fatia de pão
com uma fatia de queijo enquanto olhava com a extremidade
do olho como o senhor Yale que rechaçava a comida em favor
da bebida. Não o culpava. Ela também tinha perdido o apetite,
embora sem dúvida se devia a outro motivo diferente do dele.
As mariposas que sentia no estômago não deixavam de
revoar. Nem sequer tinha se distraído tagarelando sobre tolices
enquanto ele conduzia as rédeas. Essas mãos que pareciam tão
fortes tinham estado sobre ela. Em sua cintura. Quase lhe
haviam tocado os seios. Ao recordá-lo, ficou sem fôlego. E ao
recordar sua língua na boca, sentiu-se muito acalorada,
sobretudo em suas partes mais íntimas.
Era uma coquete incorrigível.
Nesse momento, viu-o recostado no assento traseiro da
carruagem aberta, com a garrafa na mão. Observava-a com as
pálpebras entrecerradas. Depois de esboçar um sorriso
indolente, levantou a garrafa para saudá-la.
Diantha sentiu um estranho impulso. Não era seu sorriso
habitual, não era esse sorriso torcido que lhe provocava o
formigamento no estômago. Esse sorriso a revolveu.
Deu uma olhada a seu redor. O cavalo castanho pastava
tranquilamente à sombra, junto às árvores. Mas Galahad tinha
a cabeça levantada e as orelhas audaciosas. Diantha olhou de
novo para seu acompanhante. Nesse momento, tinha os olhos
fechados de tudo e a mão mal segurava a garrafa. A senhora
Polley roncava, apoiada na capa dobrada que lhe tinha
emprestado, com Ramsés aconchegado a seus pés, também
esgotado.
Diantha desceu do banco e se aproximou de Galahad,
passando junto à carruagem onde dormia o senhor Yale.
Embora soubesse muito pouco de cavalos, era evidente que
esse animal parecia escutar algo que o tinha alertado. Talvez se
devesse à presença de um coelho ou que o moleiro tivesse
retornado. Galahad se voltou para olhá-la quando escutou que
se aproximava, moveu as orelhas e cravou de novo a vista à
frente.
― O que acontece? ― Diantha trocou de direção e se
dirigiu para uma esquina do moinho. A terra sob seus pés
estava úmida, à sombra das árvores que se elevavam no
extremo mais afastado do edifício. ― Deve ser muito...
Ficou gelada.
Sua primeira reação deveria ter sido gritar. Suas irmãs
teriam feito. Teriam reagido como correspondia ao se encontrar
com um malfeitor. Entretanto, Diantha só podia pensar que era
um homem enorme. Mais alto que ela uma cabeça, e embora
não fosse gordo, seus braços, seu torso e seu pescoço eram
muito largos. Inclusive a pistola com que lhe apontava parecia
grande.
― Se lhe ocorrer falar sequer, ― disse o homem com voz
grave e baixa ― dou-lhe um tiro.
Diantha fechou os lábios com força. Embora tremessem.
Todo seu corpo tremia. Se o senhor Yale a olhasse nesse
momento, ver-lhe-ia presa de uma imobilidade incomum, como
se fosse uma estátua, e iria a seu resgate. Entretanto, dormir
pela ingestão do álcool. E se começasse a correr, o homem lhe
dispararia, porque sem dúvida se tratava do escocês das
Highlands, que era mais forte que um touro.
Assentiu com a cabeça, suplicando com o olhar que lhe
concedesse uma oportunidade para falar.
― Agora vai entrar por entre essas árvores. ― Apontou com
a pistola. ― E ficará ali até que eu lhe diga que saia.
― Não. ― sussurrou.
O homem engatilhou a pistola.
O fato de que não tivesse estado engatilhada antes mitigou
o medo que a assaltou ao escutar o som metálico. Claro que
deveria ter gritado. Deveria pôr-se a correr. Era um desastre
como heroína, motivo pelo qual mataria seu herói.
― Não o farei ― repetiu o mais alto que pôde, embora o
medo tinha-lhe provocado um nó na garganta. ― É o homem
que estava seguindo o senhor Yale, verdade? O senhor Eads?
Esses olhos escuros a olharam com repentino interesse.
Tinha a pele bronzeada pelo sol, e o cabelo que se ocultava sob
o chapéu era comprido e negro. Estava barbeado e bem vestido,
e salvo por seu acento, parecia um inglês educado. Devia ser
algum tipo de cavalheiro.
Essa ideia fez com que se relaxasse um pouco.
― Não me moverei ― disse com voz trêmula.
Do lado do bosque chegou o inconfundível som de outra
pistola sendo engatilhada.
― Senhorita Lucas, faça-me o favor de ir para a
carruagem.
O senhor Eads ficou imóvel.
― Yale... ― Pronunciou o sobrenome com raiva e a modo
de ameaça ao mesmo tempo.
― Bom dia, Eads. Faria uma reverência, mas meu objetivo
não seria o mesmo. De qualquer modo, se se mover sequer,
5
mein tumhe maar daaloonga. ― Estava à sombra das árvores.
― Mas preferiria não disparar diante de uma dama. Senhorita
Lucas, seria amável?
― Não. Falou em escocês? O que acaba de dizer?
― Moça, ― disse o gigante ― diga-lhe que solte a pistola,
agora.
― Não. Suas intenções para com ele são más e não
permitirei que tenha êxito.
― Intenções más que ele procurou. ― Parecia muito
convencido. Diantha sentiu que lhe subia o coração à garganta.
― Agora lhe diga que deixe a pistola no chão.
Ela perscrutou os miolos em busca de algo para dizer.
― Enfim, quem não procurou uma rajada de má sorte
alguma vez nesta vida?
― Eads, baixe a pistola e desengatilhe. Com cuidado. ― O
senhor Yale tinha baixado a voz.
― Disse-lhe meu nome. ― O senhor Eads a olhava com
seus olhos escuros. ― Dá-me a entender que não permitirá que
sofra dano algum.
― Ah, a montanha parou para pensar. Devo admitir que é
uma surpresa.
― Acha que o Corvo é o único capaz de pensar na metade
da ação?
― O Corvo?
― Senhorita Lucas, se se afastar do homem que a aponta
com uma pistola, a situação será muito mais simples. ― O
senhor Yale falou com uma voz tão serena que Diantha soube
que não poderia estar bêbado. A brisa agitava a bainha de sua
jaqueta e a mecha de cabelo negro que lhe caía pela testa, mas
a mão que empunhava a pistola que apontava para o escocês
não tremia.
Não podia permitir o que estava acontecendo.
― Senhor Eads, tem nome? ― soltou sem pensar.
O aludido franziu o cenho.
― Refiro a um nome de batismo. ― explicou-se ― Para que
possa lhe falar como se fosse um amigo, mais ou menos.
Ele seguiu olhando-a sem pestanejar.
― O que é isto, Yale? Que truque traz entre as mãos?
― Não se pode dizer que seja um truque. Ela é assim.
Torna-se amiga das pessoas. ― parecia muito tranquilo ― É um
de seus muitos encantos.
Diantha não afastou a vista do gigante.
― Tenho a impressão de que o senhor Yale está sendo
sarcástico, mas...
― Não é assim.
― Mas eu gostaria de conhecer o nome de batismo do
homem que vai me matar. Porque, veja, senhor Eads, não vou
permitir que o mate.
O homem olhou seu vestido e, depois, o penteado.
― Nem sequer para salvar sua vida?
― Claro que não. O que valeria minha vida se permitisse
que outra pessoa morresse para que eu pudesse viver? Além
disso, agora mesmo o necessito. Veja, faz quatro anos minha
mãe fugiu de casa, abandonando-me com minha irmã mais
nova para ir viver em um bordel. ― Um bordel do qual,
percebeu de repente, não queria tirá-la. ― Estou... estou
decidida a... a encontrá-la. ― tinha desbocado seu coração. Isso
era o que queria, afinal, ver sua mãe e falar com ela. Mas não
queria, nem muito menos, retomar a miserável vida que tinha
levado com ela. De algum jeito, ao enfrentar a possibilidade de
morrer nesse momento, inundada no reluzente halo de uma
aventura tão perigosa como deliciosa, teve tudo muito claro. ―
Apesar das objeções de meu padrasto, pus-me a caminho para
encontrá-la. ― Continuou, com algo menos de convicção ―
Mas, por não estar familiarizada com esta rota, necessito de
ajuda, e o senhor Yale se comprometeu a me prestar esse favor.
Assim, como você vê... ― precaveu-se de que sua voz cobrava
força à medida que falava. ― Como vê, se o matar, ficarei
abandonada, para não mencionar que me encontrarei em uma
situação desesperada, já que somente tenho duas semanas
para encontrar a minha mãe antes que minha família descubra
meu desaparecimento e me obrigue a voltar para casa, talvez
para me encerrar durante o resto de minha vida por ter
cometido um ato tão escandaloso. De qualquer modo, tenho
que continuar. Daí que o senhor Yale e você tem que solucionar
suas diferenças de outro modo. Vamos, não podem se matar. ―
Olhou para seu companheiro de viagem antes de voltar a se
concentrar no gigante. ― Entenderam-me os dois?
Para seu mais absoluto assombro, o senhor Eads baixou a
pistola. Escutou-se um estalo metálico quando a
desengatilhou. Diantha não se atrevia nem a respirar.
― Muito rápido. ― O senhor Yale pôs-se a andar sem
deixar de apontar ao peito do escocês.
O senhor Eads tinha os dentes muito apertados quando o
olhou de esguelha.
― Maldito seja, Yale.
― Faz muito que estou amaldiçoado, meu amigo.
Diantha olhou de um a outro. Nos olhos de ambos os
homens havia uma expressão letal.
― Não pode disparar. ― apressou-se a dizer ela.
― Obrigado, senhorita Lucas. Mas se tivesse a amabilidade
de...
Escutou-se um chiado feminino, seguido de um rangido,
de um golpe seco e de uma série de latidos, antes que se
ouvisse um homem gritar:
― Por Deus!
Continuando, tudo pareceu acontecer de repente. Ramsés
rodeou o edifício às corridas, ladrando como um louco. O
senhor Yale golpeou ao senhor Eads no pulso com a culatra da
pistola. O escocês gritou, soltou a arma e lançou ao senhor
Yale um murro na cara. Um murro que não conseguiu
impactar em seu objetivo, embora a culatra da pistola do
senhor Yale sim, o golpeou na testa. Ramsés mordeu a bota do
escocês entre grunhidos. O senhor Eads levou uma mão à testa
enquanto saía de sua boca uma enxurrada de palavras
incompreensíveis, e o cão soltou seu tornozelo para retroceder
com atitude receosa.
― Nem pense em fazê-lo de novo. ― O senhor Yale agarrou
a arma do chão. ― Tem mais armas?
― Pois é claro. ― O senhor Eads franziu o cenho enquanto
pressionava a pequena brecha que tinha na testa. ― Mas não
vou tirá-las. Somente te esmurrei porque você me golpeou
antes.
― Deveria ter atirado a pistola no chão quando lhe disse
isso.
Os gemidos do pátio alcançaram proporções épicas. As
imprecações da senhora Polley não cessavam. Diantha pôs-se a
andar para o lugar, mas depois jogou a vista para trás. Ficou
sem fôlego. Seu companheiro de viagem tinha o canhão de sua
pistola contra a testa do senhor Eads.
― Quero sua palavra, Duncan.
«Duncan?», perguntou-se ela.
O escocês encolheu seus muito largos ombros.
― Maldito seja, Yale. ― Fulminou-o com o olhar. ― Tem-
na.
O senhor Yale baixou a arma.
― E já me inteirarei por que me deu isso, assim que acabe
com os problemas que me esperam. ― Atirou a pistola do outro
homem ao chão, a seus pés, como se não fosse importante. ―
Vai ou me ajude, faça o que queira. Mas não se afaste muito,
porque do contrário terá um destino muito pior do que o de
Calcutá.
Diantha o olhou boquiaberta. Quando chegou junto a ela,
precaveu-se de sua expressão e fechou a boca.
― Vai devolver a pistola? E o conhece? Sabe qual é seu
nome de batismo?
― E seu aniversário, assim como a geleia preferida de sua
mãe. Agora, senhorita Lucas, se fosse amável em obedecer de
uma vez minhas ordens, coloque-se atrás de mim e me siga.
Pois parece que sua dama de companhia atacou um homem.
Diantha o obedeceu, mais que nada porque lhe parecia
ridículo desafiar um homem que tinha vencido a alguém do
tamanho do senhor Eads com tanta facilidade, mas também
porque se sentia muito alterada e segui-lo fazia que se sentisse
mais segura. Ele fazia que se sentisse segura, apesar da
presença do escocês que nesse momento estava recolhendo a
pistola atrás deles e apesar do homem que gemia no pátio. Ao
mesmo tempo, entretanto, era evidente que ele era a causa de
seus tremores.
― Tudo isto é um pouco incomum para mim. ― sussurrou
― Naturalmente.
― É de supor, mas já acabou. ― O senhor Yale se deteve e
a olhou. ― Obrigado pela ajuda.
O senhor Yale não queria lhe agradecer, precaveu-se desse
fato pelo olhar de seus olhos chapeados, que pareciam penetrar
em seu interior e chegar até ao lugar onde tremia por uma
emoção que era terrível e maravilhosa ao mesmo tempo. Seu
olhar conseguiu acentuar o tremor.
― E?
Viu-o franzir o cenho.
― Não tem por que se preocupar mais ― acrescentou ele.
― O senhor Eads não voltará a me ameaçar ou não voltará
a ameaçar você?
― Embora o fizesse, suspeito que você se manteria firme.
Por um instante, Diantha teve a sensação de que ele
queria sorrir, mas seus olhos estavam velados.
― Por que fingiu estar bêbado?
― Equivoca-se. Não fingi. ― O senhor Yale deu a volta e
rodeou o edifício.
A senhora Polley se encontrava de pé junto a um homem
estendido no chão. Ambos estavam rodeados por partes de
baixela quebrada e pedaços de queijo que se assemelhavam a
flocos de neve. O rosto do homem estava mudado pela dor. Ao
ver o senhor Yale, o homem gemeu de novo.
― Olhe você, senhor, ― disse a senhora Polley ao senhor
Yale ― se este era o homem que nos seguia e que tanto lhe
preocupava, não é mais que um covarde.
― Talvez careça de uma coragem tão arrojado como o seu,
senhora. ― O senhor Yale se ajoelhou junto ao ombro do
desconhecido. ― Parece que sua perseguição o levou a um mau
lugar hoje, senhor.
― Quem é esta harpia? ― O desconhecido apertou os
dentes. Tinha a perna esquerda dobrada por debaixo da outra
em um ângulo que revolveu o estômago de Diantha.
― Vamos, vamos. Essa não é forma de falar com um
membro do sexo débil.
― Ela... ― O homem apertou os dentes. ― Ela me disse que
você era muito preparado, filha da p...
― Há damas presente, meu amigo. ― O senhor Yale
estalou a língua. ― Cuide de suas maneiras. Agora, diga-me, a
quem se refere com esse «ela»?
O homem fechou os olhos com a boca torcida.
O senhor Yale assentiu com a cabeça.
― Entendo. Certamente você seja muito discreto. Em seu
lugar, eu tampouco revelaria quem sou nem o que me
proponho ao nos seguir até aqui.
― O que vai fazer com ele? ― quis saber Diantha. ― É
evidente que lhe dói muito.
― Pelo galo e pela perna quebrada, não me cabe dúvida. ―
O senhor Yale olhou à senhora Polley. ― Superou-se, senhora.
― Nunca um homem se aproximou de mim às escondidas
sem sofrer as consequências ― replicou ela, indignada,
empunhando a asa de uma xícara.
― Aproximaram-se muitos homens às escondidas?
― Em meu tempo, moço, não era um despropósito. Alguns
dos supostos cavalheiros que frequentavam a casa de minha
senhora não sabiam onde pôr as mãos. ― Lançou-lhe um olhar
eloquente antes de cravar o olhar em Diantha.
Não lhe prestou atenção.
― O que vai fazer com ele?
O senhor Yale olhou para a estrada.
― Não posso fazer muito, essa é a verdade. Teria a
amabilidade de trazer a garrafa de genebra da carruagem e de
lhe dar.
O homem os olhou com os olhos arregalados.
― Não irá me matar, verdade?
O senhor Yale arqueou as sobrancelhas.
― É obvio que não. A que tipo de pessoa acredita que está
seguindo?
Entretanto, um momento antes tinha ameaçado de morte
o senhor Eads. Ou não? O coração de Diantha não conseguia
se tranquilizar. Era evidente que ele não era o que aparentava
ser, mas não determinava saber o que era real e o que não era.
Em um abrir e fechar de olhos, sua viagem tinha passado de
ser imprudente a ser muito perigosa.
― O moleiro, que voltará para o trabalho depois do almoço,
endireitará sua perna. ― disse o senhor Yale ― E tenho certeza
de que lhe convém beber antes que isso aconteça. ― olhou para
Diantha ― A garrafa?
Diantha o obedeceu prontamente e ao olhar por cima do
ombro, viu se aproximando o moleiro, um homem de aspecto
mais velho, baixinho, de cabelo escuro e pele enrugada, que
dois homens mais jovens o seguiam, todos trajando roupas
toscas. O senhor Eads tinha desaparecido. Retornou para junto
do ferido enquanto o senhor Yale e outros se aproximavam pela
estrada. O moleiro e o senhor Yale estavam falando em voz
baixa, mas ela não conseguiu entender uma só palavra. O
idioma que lhe chegava era muito peculiar, com um acento
cantado, mas também rude, com estranhas vogais e
consoantes secas.
O senhor Yale se deteve junto ao homem vestido de
marrom e voltou a se ajoelhar enquanto acariciava Ramsés
entre as orelhas, já que tinha o cão colado à coxa. Nessa
postura, as calças rodeavam seus músculos. Diantha se
precaveu com certa agitação de que nunca tinha reparado nas
coxas de um homem até esse momento. Era um dia, ou isso
parecia, de descobrimentos desconcertantes.
― Apresento-lhe o senhor Argall. ― disse o senhor Yale ao
homem de marrom enquanto fazia um gesto para o moleiro,
que tinha uma expressão séria no rosto ― Seus filhos
endireitarão sua perna e logo o levarão a sua casa, onde a
senhora Argall cuidará de você até que possa subir em uma
carroça que o leve a casa dos correios mais próxima. Não tem
que se preocupar em compensar seus anfitriões, já me
encarreguei disso. Não... ― levantou uma mão, embora o
homem nem sequer tivesse movido os lábios ― Não tem que me
agradecer. Somente tem que ser um hóspede considerado,
convém-lhe isso. Os galeses são muito generosos com sua
hospitalidade, mas não aceitam de bom grado a ingratidão. ―
fez uma pausa e baixou a voz antes de continuar: ― Da mesma
maneira que eu não aceito de bom grado que me sigam. Rogo-
lhe, senhor, que o tenha muito em conta quando voltar a ficar
em pé. ― Depois dessas palavras, endireitou-se, falou de novo
com o senhor Argall, depois deu a mão ao moleiro e se
aproximou de Diantha. ― Senhorita Lucas, ― disse em voz
baixa segurando-a pelo cotovelo e a afastava da cena de baixela
e ossos quebrados, instando-a a caminhar para Galahad ―
teria a amabilidade de distrair à senhora Polley preparando
nossa saída, enquanto eu converso com nosso amigo escocês
em privado? Afastou-se da estrada para evitar que o vejam,
algo que sem dúvida é melhor para todos.
― Farei, sempre e quando você não dispare nele e ele não
dispare em você.
― Não o farei. E ele não o fará. Não agora. Eu prometo. ―
soltou-a e montou em seu cavalo. ― Demorarei um minuto e
logo nos poremos a caminho.
Ela acariciou o sedoso pescoço de Galahad.
― O moleiro o olhava como se o conhecesse. Você o
conhece? ― perguntou-lhe Diantha.
― Os galeses são gente estranha, senhorita Lucas. Não se
deve ter em conta suas peculiaridades.
― Como é que conhece o idioma? Viveu aqui?
― Durante os primeiros dezoito anos de minha vida.
Era galés. Desconhecia por que esse fato era tão
surpreendente, mas nunca o tinha imaginado vivendo em um
lugar que não fosse Londres. O senhor Yale sempre estava
elegante, e era cavalheiresco e refinado, tanto em suas
maneiras como em sua fala. Entretanto, já o tinha visto sem se
barbear e com os olhos brilhantes pela fúria. E quando a
beijou, não teve a sensação de ser uma dama beijada por um
cavalheiro. Teve a sensação de ser uma mulher desejada por
um homem.
Tinha que averiguar mais coisas sobre ele. Era uma
necessidade que surgia de um lugar muito profundo em seu ser
e que não entendia.
― Está familiarizado com esta zona? Sua família é daqui?
― A casa de meu pai está muito mais ao Norte e ao Oeste,
na costa de Gwynedd.
― Por que estamos em Gales, senhor Yale?
― Porque a estrada nos trouxe até aqui, senhorita Lucas.
― Atiçou Galahad e entrou na trilha que se dirigia ao bosque.
Não estava lhe contando toda a verdade, pensou Diantha.
Dadas as circunstâncias, não deveria confiar nele. Entretanto,
o vazio de seus olhos cinzas a intrigava mais que todas suas
preocupações. Não era o mesmo homem que tinha visto em três
ocasiões em Savege Park, como tampouco era o mesmo homem
que tinha encontrado há dois dias na carruagem do serviço de
correios de Sua Majestade. Algo estava muito mau.
11

― Está bêbado, Wyn.


― Estou, Duncan.
Levou Galahad até a sombra de um pinheiro e desmontou.
O musculoso cavalo que estava amarrado a um ramo próximo
levantou a cabeça. Wyn se voltou para o escocês, que se
encontrava sentado no chão e com as costas apoiadas no
tronco de uma árvore. Em comparação com ele, o tronco
parecia pequeno. Eads era capaz de matar um homem com as
mãos, sem necessidade de usar uma pistola. Entretanto, já
tinham se enfrentado a murros em outra ocasião. Wyn
conhecia os pontos débeis do escocês. Embora fossem
pouquíssimos. Além disso, ele estava muito mais bêbado do
que tinha pretendido.
Porque em realidade seu plano não era se embebedar.
Somente fingi-lo. Permitir que Eads se aproximasse o bastante
para assustar à senhorita Lucas, mas não tanto como para que
fosse perigoso. Entretanto, Eads a tinha ameaçado de verdade.
A história se repetia. Orgulho. Arrogância. Uma garrafa. Uma
mulher em perigo.
― Poderia te matar agora. ― Eads parecia relaxado, mas
seus olhos estavam alerta. ― Não sou tão rápido como você,
mas o álcool seguro que afetou seus reflexos.
― Myles deve ter te prometido uma fortuna em troca de
minha cabeça. Suponho que a quer unida ao corpo, não?
A montanha o olhou com os olhos entrecerrados, mas não
respondeu.
― Não pretendia enfurecê-lo, sabe? Somente precisava
devolver uma jovem a seu lar. ― Uma jovem que Myles tinha
afastado de sua família sem permissão. Uma jovem a quem ele
tinha que salvar por ordens do diretor anônimo do Clube
Falcon. O diretor não sabia, é obvio, que no passado Wyn tinha
trabalhado para Myles. Para Myles e para... outros.
― Lembro.
― Não sabe com que frequência o faço. ― Wyn cravou o
olhar no pescoço de Galahad, ali onde uma jovem de incríveis
olhos azuis tinha colocado sua mão fazia apenas minutos,
enquanto procurava respostas que ele não podia lhe dar. Sua
vista nublou.
Eads ficou em pé. Era alguns centímetros mais alto que
Wyn, mas sua corpulência o fazia parecer muito mais alto.
― Não suporto os mentirosos.
― Ah, mas deu sua palavra! ― Wyn apoiou a testa no
pescoço do cavalo. A genebra tinha intumescido seu corpo. ― E
meus reflexos estão... ― Engatilhou a pistola que tinha sob o
braço, cujo canhão apontava diretamente ao peito do escocês.
― estão bem.
Eads assobiou entre dentes.
― Como é possível que seja tão rápido? É um demônio por
acaso?
― Tome cuidado, Duncan. Começa a demonstrar as
superstições de seus antepassados.
― E você é o homem sem antepassados, não? Ou isso
afirma.
― Por que baixou a arma depois que ela te contou sua
história? ― Afastou o canhão da pistola.
― Bêbado é imprevisível. Sóbrio, jamais me faria mal; mas
neste momento não duvidaria em me fazer isso se o atacasse.
Ou muito menos a ela. Diga-me o que essa moça significa para
você.
― Duncan, meu amigo, não pense tanto. Sabe que isso me
esgota.
― Wyn, é um imbecil presunçoso.
― É possível. ― fechou os olhos. A paisagem e o homem
que tinha diante de si começavam a se fundirem, como tinha
acontecido junto ao moinho, quando se aproximou do
assassino que ameaçava uma dama que possuía o coração de
uma heroína. Nesse momento, o medo mudou ele por completo,
correndo pelas veias. ― Diga-me o porquê ou te disparo agora
mesmo. Dispararei em um joelho para que passe um mês no
estábulo do senhor Argall, onde passará o tempo com esse tipo
da moleira débil. ― Apoiou-se em seu cavalo. A estabilidade do
animal era o único sólido que havia em sua vida. ― Pobre tipo.
― Quem é?
Wyn abriu os olhos, embora lhe pesassem as pálpebras.
Tinha a boca e a língua seca. Necessitava água, mas queria
brandy.
― Não tenho a mais remota ideia. Você o conhece?
― Não vou permitir que te capture. É meu, Yale.
― Adula-me. Por isso mesmo me parece incrivelmente
curioso que tenha prometido à dama não me fazer dano. Faça-
me o favor de satisfazer minha curiosidade e me diga o porquê
de me conceder semelhante bênção.
«Semelhante bênção», repetiu para dentro de si. Começava
a falar como ela. Dentro de pouco tempo cantaria canções
sobre cavalheiros e donzelas brincando de correr pelos
bosques. Ou não.
― Por minha irmã.
― Que irmã? ― Por um instante, viu claramente o rosto do
escocês. ― Ah, uma irmã que escolheu o mau caminho, da
mesma forma que fez a mãe da dama da qual falamos,
suponho.
O escocês apertou os dentes. Wyn sentiu um pouco de
compaixão no mais fundo de seu ser, em um lugar tão
profundo que mal escutou um eco.
― Entendo. ― desengatilhou a pistola e a devolveu ao
alforje ― Gostaria de seguir pensando em você como em uma
ameaça para mim.
― Sigo sendo uma ameaça para você.
― Uma ameaça para mim enquanto ela siga a meu lado. E
uma ameaça para ela.
Eads o olhou com expressão assassina.
― Wyn, está brincando com fogo no que diz respeito a esta
moça.
― Por desgraça, minhas brincadeiras não me levam tão
longe como imagina, Duncan. Mas lhe deu sua palavra e espero
sua cooperação.
― Estarei ali no final.
― Isso espero. Assim que a tenha devolvido sã e salva a
sua família, poderá fazer comigo o que queira. Mas... ― Voltou
a cabeça para o homem que o tinha obrigado a cruzar Bengala
de um extremo a outro. Embora procurasse um escocês
rebelde, descobriu um homem imerso em uma grande dor e
furioso como uma cobra por ter sido encontrado. ― Mas te
agradeceria muito que me permitisse ter êxito em uma última
tarefa antes de me entregar.
― Não tenho porque fazê-lo.
Wyn colocou um pé no estribo.
― Não entendo por que segue trabalhando para Myles
quando tem uma propriedade na Escócia que pode reclamar.
Por Deus, se tem inclusive um título! ― subiu à sela, e foi
consciente da hipocrisia de suas palavras apesar da
embriaguez ― Mas se de verdade não pode esperar tanto para
me matar, somente te pedirei uma coisa.
O escocês o olhou com os olhos entrecerrados.
Wyn engoliu saliva em um intento de aliviar o deserto no
que se converteu sua boca.
― Duncan, se tiver que me matar, ― disse devagar para
que o escocês o entendesse bem ― não deixe isso fácil para
mim. Alongue o momento o máximo possível, de acordo? ―
voltou-se, pressionou os flancos de Galahad com os joelhos e o
instou a abandonar a sombra do pinheiro para sair à luz da
tarde.
Dirigiu-se para o moinho que tinha trabalhado quando era
somente um moço, durante uma colheita.
O senhor Argall não o tinha reconhecido. Já não se
parecia com aquele moço que tinha carregado sacos de grão e
de farinha hora atrás de hora, semana atrás de semana,
ganhando força nos braços, uma comida quente e algumas
moedas. Um moço que estava zangado. Que tinha fugido de
casa. Mas que ainda não tinha matado a sangue frio.
Diantha tinha salvado aos dois. Em vez de se acovardar e
suplicar que a levasse de volta para casa, enfrentou o perigo
fazendo alarde de uma apaixonada sinceridade. Ao despir seu
coração ante o homem que a ameaçava com uma pistola, tinha
demonstrado uma valentia que Wyn jamais havia possuído.
Tinha suplicado a Eads que não o matasse para poder salvar a
outra pessoa. Com a certeza de que ia ajudá-la em sua missão.
Cravou o olhar à frente, em um ponto situado entre as
orelhas de seu cavalo, onde aguardava a carruagem na estrada.
Os cachos castanhos que escapavam por debaixo de seu
chapéu brilhavam à luz do sol que se filtrava entre as nuvens.
No passado, houve outra jovem que confiou nele. Chloe
Martin, a aterrada pupila do duque de Yarmouth; contou-lhe
sua história e ele prometeu ajudá-la. Como acabava de
acontecer um momento antes, aquele dia confiou em suas
extraordinárias habilidades. Em sua inteligência e em seus
reflexos. E por um trágico acidente, em vez de salvar Chloe,
acabou matando-a.
Não ajudaria a Diantha Lucas. Tinha depositado sua fé no
homem equivocado.
Depois de percorrer dezesseis quilômetros pela estrada
que continuava para o sul, atravessando os montes que os
ingleses tinham denominado «Shropshire», durante séculos e
que os galeses consideravam como deles, chegaram ao modesto
povoado de Knighton e entraram por sua íngreme rua
principal. Wyn encontrou alojamento para as damas em uma
estalagem muito limpa, ordenou que lhes servissem o jantar
em uma sala de jantar privada e se encarregou de que os
cavalos descansassem em baias cuja palha estivesse seca. Uma
vez que as damas desejaram boa-noite, a mais jovem com o
cenho franzido e a mais velha com receio, e subiram a seu
quarto, Wyn partiu para o botequim.

****

Diantha sabia que não deveria estar onde estava nem


tampouco deveria pensar no que estava pensando.
Em teoria, enquanto jazia em vela junto à senhora Polley,
que não parava de roncar, tinha-lhe parecido um plano
razoável. Bater na porta do senhor Yale, exigir que respondesse
suas perguntas sobre o senhor Eads e o homem vestido de
marrom, e depois voltar para a cama para conciliar o sono de
uma vez por todas. Não era um plano no sentido estrito da
palavra, mas lhe parecia o único remédio para acalmar seus
nervos. Devia entender a fundo o que tinha acontecido. Devia
entendê-lo. Porque com dados objetivos, uma mulher era capaz
de planejar qualquer coisa.
Levantou um punho para bater à porta e respirou fundo.
Depois voltou a respirar. Logo fechou os olhos e...
― Impressionante, senhorita Lucas.
Voltou-se para o ponto. O senhor Yale se encontrava no
extremo do curto corredor, depois de acabar de subir a escada.
O abajur situado na escada o iluminava de baixo, deixando
seus olhos na penumbra e ressaltando suas maçãs do rosto.
Tinha cruzado os braços diante do peito e tinha um ombro
apoiado na parede.
Diantha soltou o ar devagar.
― Ah, aí está.
― Perguntava-me quanto tempo mais ia passar ali diante
da porta até que encontrasse a coragem de bater. Ou o bom
tino de retornar a seu dormitório sem chamar. ― Sua voz lhe
pareceu desconhecida, muito lenta. Carente de emoção. Como
seus olhos tinham estado junto ao moinho. ― Não tanto como
tinha imaginado.
Diantha pensou que deveria aproximar-se dele a fim de
manter uma conversa em um tom leve como acostumava fazer.
Foi impossível. A inquietante imobilidade do senhor Yale
pareceu pegar seus pés ao chão.
― Queria falar com você sobre o que aconteceu hoje.
― E suponho que não podia esperar até o café da manhã,
verdade? ― Tampouco havia quentura em sua voz. Essa
quentura que sempre detectava sob suas brincadeiras.
― A senhora Polley nos acompanhará durante o café da
manhã. Acreditava que você quer mantê-la na ignorância sobre
seu encontro com o senhor Eads. Entendi mau?
O senhor Yale se aproximou dela com movimentos muito
deliberados. Diantha sentiu um golpe de medo nas costas.
Embora não entendia por que a assustava de repente, a menos
que se devesse ao brilho resistente de seus olhos na penumbra
do corredor ou ao aroma de tabaco e whisky que o
acompanhava. Entretanto, estava acostumada ao aroma depois
de ter participado de numerosas festas em Savege Park. De
modo que o medo devia proceder do incidente com as pistolas
que tinha presenciado esse dia.
Não. Não se tratava das pistolas. Eram seus olhos. A
ausência de luz. Provocavam-lhe uma sensação gélida e
abrasadora ao mesmo tempo... gélida pelo medo e abrasadora
por... não sabia o porquê.
― Entendeu-me perfeitamente. Nesse aspecto. ― Deteve-se
perto dela.
Diantha retrocedeu um passo sem ser consciente do que
fazia. Seus calcanhares se chocaram contra a porta.
― Mas, senhorita Lucas, parece que em outros aspectos
não me entende absolutamente. ― Esses olhos acerados
desceram até seus lábios, embora estivessem ocultos pelas
pestanas. Por um instante, pareceu que estava examinando
seus lábios. Depois, fez o mesmo com seus seios. ― Parece que
me entende fatal. ― estendeu um braço e colocou a palma na
parede, junto a sua cabeça.
― Eu... ― Diantha tomou uma pequena baforada de ar,
mas o gesto fez com que seus seios se elevassem... Enquanto
ele seguia olhando-os. Ele. O senhor Yale. Seu herói
cavalheiresco. O herói que lhe tinha introduzido a língua na
boca essa manhã. ― Eu... ― Sua própria língua parecia ter
esquecido o propósito de sua existência, distraída pela
lembrança de seu toque.
O senhor Yale se aproximou mais dela, inclinou a cabeça e
o aroma do whisky, somado a sua alta e intimidante presença,
afligiu-a.
― Deveria ir para o seu quarto agora mesmo. ― disse ele
com voz rouca.
― Quero que me beije outra vez. ― Esteve preste de se
engasgar com as palavras enquanto as pronunciava de forma
atropelada. ― Ou melhor dizendo, quero que me beije mais. ―
Não tinha querido dizer isso. Não o tinha planejado. Mas era
verdade. Tinha-o desejado desde que o viu sair essa manhã do
estábulo dos Bates, mas havia dito que jamais devia pedir-lhe
de novo. Entretanto, nesse momento estava se aproveitando de
sua ingestão de álcool. De sua grande ingestão de álcool, se
não será desencaminhada.
O senhor Yale voltou a olhar seu rosto, mas em realidade
seus olhos não a viam e insistiam em deter-se em qualquer
outro lugar apesar de estar a escassos centímetros de
distância.
Antes sequer de ver seu movimento, o senhor Yale a
segurou por um pulso. Diantha ofegou. Sentiu que lhe cravava
os dedos com força.
― Ah, sim? Pergunto-me por que não me surpreende o que
acaba de dizer.
― Senhor Yale, ― sussurrou ela em voz baixa, ofegando na
curta distância que os separava, ― está me machucando.
― Senhorita Lucas, o prazer e a dor estão unidos. ― seus
olhos lhe pareciam distantes e frios. ― Ninguém nunca lhe
disse? ― inclinou a cabeça.
Diantha desejou em parte poder fugir, mas por outro lado
desejava ficar nas pontas dos pés e beijar esses lábios que
tinha tão perto.
― Está muito bêbado?
Os olhos do senhor Yale percorreram seu rosto e, por um
instante, Diantha viu um certo brilho neles.
― Como uma Cuba.
Beijou-a nos lábios.
Mas não como a tinha beijado essa manhã no estábulo.
Não começou devagar e com suavidade. Foi um beijo em toda
regra. Seus lábios reclamaram os seus e lhe exigiram uma
resposta equivalente. Não podia negar que ansiava que a
beijasse dessa forma. Seus lábios não podiam negá-lo. De
modo que o beijou com a mesma voracidade que ele
demonstrava. Senti-lo tão perto avivou sua ânsia, e cada
encontro despertava mais o desejo. Seu sabor, a whisky e a
tabaco, transportou-a a outro mundo. Um mundo de homens,
pistolas, honra e perigo. Sua entrada a este mundo provocou
uma repentina debilidade.
Porque era o mundo do senhor Yale. Estava-a beijando
quando deixara muito claro que não queria fazê-lo. Entretanto,
estava-o fazendo. Porque estava bêbado, possivelmente?
A resposta carecia de importância. Dava-lhe igual estar na
metade do corredor de uma estalagem, apoiada na porta do
dormitório de um homem e que estava lhe permitindo que a
beijasse, mesmo que uma dama não deveria permitir isso.
Desejava-o.
O senhor Yale colocou uma mão no rosto, enterrando os
dedos no nascimento do cabelo da têmpora e sustentando-a
com força, e depois fez o mesmo com a outra. Aproximou-a dele
e capturou sua boca uma e outra vez com uma sucessão de
beijos cada vez mais apaixonados. A ponta de sua língua
acariciou seus lábios, percorrendo de um lado a outro, um
gesto que deixou Diantha sem fôlego. Em seguida, introduziu a
língua em sua boca e ela se derreteu.
Era como morrer e ressuscitar ao mesmo tempo. Algo
perfeito e sublime. Uma deliciosa sensação que parecia
envolvê-la. Porque a sentia nos lábios, nos seios, no ventre e
entre as coxas. Escapou-lhe um gemido sem ser consciente
disso, um suspiro que voou de seus lábios aos do senhor Yale.
― Oh, sim!
Ele se afastou e levou uma mão ao rosto. Respirava de
forma entrecortada, como ela. Viu-o pressionar os olhos com os
dedos e depois beliscar a ponta do nariz, depois meneou a
cabeça.
― Não. ― o ouviu murmurar ― Deus, não. ― Deu meia
volta e retornou aos tropicões à escada.
Diantha tocou os lábios, que estavam úmidos e muito
quentes. O coração lhe pulsava desbocado.
― Por que se deteve?
O senhor Yale se voltou para olhá-la, apoiando uma mão
na parede. Para manter o equilíbrio? Perguntou-se. Invadiu-a
uma nova quebra de onda de medo que se mesclou com o
prazer.
O senhor Yale retornou a seu lado com três pernadas,
impedindo-lhe de pensar e planejar antes que estivesse junto
dela. Depois de aferrá-la por um braço, agarrou o trinco da
porta que tinha à suas costas.
― Senhorita Lucas, quer saber o que faz um homem a
uma moça bonita que lhe suplica de forma insistente que a
beije? ― perguntou com voz desagradável.
― Não. ― Diantha mal podia respirar ― Sim... ―
acrescentou, sussurrando.
O senhor Yale a fez entrar em seu dormitório e lhe rodeou
a cintura com as mãos. Ela se apoiou em seu torso. Depois de
aferrá-la com pouca delicadeza pelo queixo, apanhou seu rosto
e a obrigou a jogar a cabeça para trás. Seus olhos eram muito
escuros e não parecia desfrutar do momento.
Quando inclinou a cabeça e a beijou, Diantha se
converteu na mulher indecente e promíscua que tinha gerado
sua mãe, porque ansiava sentir seus lábios e sua língua.
Porque ansiava introduzir a língua na boca desse homem,
embriagada como estava por sua cercania. Era todo músculo e
força, como jamais tinha imaginado. Seus braços pareciam de
ferro; suas mãos, todo-poderosas; seu peito e suas coxas,
incrivelmente musculosos. Era muito fraca para se opor a seu
assalto, embora tampouco pensava fazê-lo. Cravou-lhe os
dedos nos braços e recebeu seus beijos com ânsia. O toque de
sua língua avivou o desejo que a invadia, fazendo-a a
pressionar os seios contra seu torso. Sua pele e suas curvas
pareciam vibrar pelo desejo de senti-lo ainda mais perto.
Ansiava mais beijos. Ansiava senti-lo ainda mais.
A mão que ainda seguia em sua cintura a segurou com
força enquanto que a outra se separou de seu rosto para descer
por seu pescoço e continuar para o ombro. Sem interromper o
beijo, Diantha ofegou ao sentir que estendia os dedos sobre sua
clavícula.
― Isto é o que faz. ― sussurrou-lhe contra os lábios.
Colocou a mão sobre um seio. ― A toca como não deveria tocá-
la.
Diantha se esforçou para respirar, tomando o ar de forma
entrecortada. Não estava preparada para isso. Nem sequer
tinha imaginado. Era muito inocente. Como era possível que
essa mão sobre seu seio lhe provocasse semelhantes
sensações, como se quisesse rir e chorar ao mesmo tempo,
como se quisesse sentir o toque de sua língua outra vez por
cima de todas as coisas? Nesse instante, era consciente do
palpitante desejo que apareceu entre suas coxas. Aferrou-se
com força a seus braços e apoiou a cabeça na porta, tentando
respirar com muita dificuldade enquanto ele a acariciava. Seu
dedo polegar passou por cima de seu mamilo, sem afastar o
tecido. Pôs-se a tremer. Sua pele estremeceu, como se a
percorresse um calafrio. Era quase muito. Quase. Não entendia
o que estava lhe acontecendo, mas o desejava porque era
maravilhoso. Embora devia ser mal desejá-lo.
Levantou uma mão para cobrir a do senhor Yale.
― Senhor Yale... ― conseguiu sussurrar, ― não deve...
Ele introduziu o polegar sob o decote. Diantha gemeu.
Depois capturou seus lábios e seguiu acariciando-a, sem que
ela protestasse. Entretanto, Diantha estremeceu e disse a si
mesma que isso era o correto, porque não podia detê-lo. Era
muito forte e carecia da força de vontade necessária para pôr
um fim.
O senhor Yale pressionou seu corpo contra a porta usando
o seu, apanhando sua mão sob a roupa, diretamente sobre sua
pele. Entre seus braços, Diantha se sentia muito débil. Seu
tamanho e suas carícias lhe provocavam algo mais que simples
prazer. Deslizou as mãos até seus ombros e rodeou seu
pescoço com os braços, deleitando-se com o roce do linho e
depois com o roce de sua pele. Essa pele ardente e
maravilhosamente masculina. Com o roce de seu cabelo. O
senhor Yale interrompeu o beijo e transladou os lábios a seu
pescoço enquanto ela enterrava os dedos nesse cabelo tão
sedoso.
― Oooh! ― exclamou.
Nada podia se igualar a esse momento. Nada a tinha
preparado para o que se sentia ao acariciar um homem. Para o
que se sentia quando um homem a acariciava. Nada podia ser
melhor que isso, nem tão maravilhoso.
O senhor Yale agarrou o tecido de seu vestido e lhe deu
um puxão, despindo seus seios. Diantha descobriu nesse
momento que, efetivamente, ainda existiam coisas melhores.
Sempre tinha odiado seus seios, eram muito grandes e um
pouco caídos. Além disso, tinha barriga. Entretanto, mesmo
que a barriga tenha desaparecido, seus seios seguiam sendo
grandes e tinha umas estrias horríveis em ambos os lados.
Sempre tinha se consolado pensando que jamais ninguém os
veriam.
Entretanto, o senhor Yale podia vê-los, embora não
parecesse interessado em lhes dar uma olhada.
Estava muito ocupado tocando-os. Tocou-os sem lhe
permitir que se separasse da porta, enquanto seguia beijando-a
no pescoço. Acariciou-os e fez algo maravilhoso com seus
mamilos, tão maravilhoso que ela acreditou morrer de prazer.
Escutou-se gemer de vez em quando, mas foi incapaz de se
deter. Suas mãos o aferravam pela nuca, instando-o que
seguisse lhe beijando o pescoço porque o que sentia era
delicioso. Mas também queria que a beijasse de novo nos
lábios.
E a beijou. Mas não nos lábios.
O senhor Yale apanhou suas mãos, tirou-as de cima de
seu pescoço, sem lhe soltar e inclinou sobre seu seio e o
lambeu.
― Senhor Yale! ― Mal podia falar porque era incapaz de
respirar.
Sentiu o toque áspero de sua bochecha sobre a pele.
― Isto é o que faz um homem a uma moça que lhe suplica
que a beije, senhorita Lucas. ― Colocou-lhe as mãos a ambos
os lados do corpo, imobilizando-as sem esforço aparente. ―
Estes são os beijos que recebe. ― Lambeu-a de novo, passando
sobre um erguido mamilo que depois rodeou, e voltou a rodear
sem roçar sequer a ponta. Fê-lo de novo, evitando roçá-lo.
Diantha se removeu, afligida pelo prazer que estava
provocando com suas escandalosas carícias. No final, beijou-
lhe de novo o mamilo e ela sentiu que lhe derretiam os joelhos.
Como era possível que existisse algo tão prazeroso? E por que
ela permitia?
O senhor Yale segurava suas mãos com força. Diantha
sentiu o roçar de seus dentes sobre o mamilo.
― Oh, por favor! ― exclamou, sem saber o que estava lhe
pedindo, se a soltasse ou se estava pedindo algo mais.
Ele a beijou de novo na boca. Suas mãos seguraram suas
saias, e as subiram a toda pressa. Tão rápido o fez que Diantha
sentiu o calor de sua mão em uma coxa antes de poder
protestar sequer.
O pânico se estendeu nesse instante.
― Por favor, não. ― baixou suas saias, embora a mão do
senhor Yale lutasse com ela. ― Senhor Yale, não deve... Oh!
E então a tocou. Nesse lugar privado e que estava molhado
nesse instante. Diantha deixou de lutar. Deixou de respirar.
Deixou de existir salvo para sentir suas carícias nesse lugar.
― Mas, sim, que devo. ― replicou ele com uma voz que lhe
pareceu muito rouca.
Seus dedos a acariciaram com destreza, ali onde ela mais
o desejava. Embora a tocava por fora, Diantha o sentia no mais
fundo. O desejo tinha-lhe provocado um formigamento nos
seios e suas coxas ansiavam pressionar essa mão que a
torturava.
― Sim. ― sussurrou, estremecendo-se ― Sim ― repetiu ao
sentir que os dedos a exploravam mais a fundo. Até que a
penetrou com um deles. ― Oh, Deus! Deus! ― Fechou os olhos
e o senhor Yale a beijou nos lábios. Sua outra mão a aferrou
pela nuca. ― Não deveria fazer isto ― acrescentou, sussurrando
e sem convencimento algum, enquanto seu corpo se deleitava
com suas carícias.
― É mais do que queria? ― penetrou-a de novo e nessa
ocasião lhe introduziu todo o dedo.
Diantha ofegou, sem afastar-se de seus lábios. Sentia-o
por completo e o prazer era tão intenso que ardia em desejos de
começar a gritar.
― Sim. Não. Não sei... Oh!
A essas alturas, não tratava de impedir que a acariciasse.
O que queria era mais. Colou-se a ele. Senti-lo em seu interior
tinha-lhe provocado uma ânsia selvagem. Rodeou seus ombros
com os braços e separou os lábios para receber sua língua na
boca. Nesse instante, soube que ia tomá-la como os homens
tomavam às mulheres. O beijo se tornou voraz e suas carícias
deixaram de ser delicadas, avivando o desejo que a embargava
até convertê-lo em algo doloroso. Sentiu o desespero que o
envolvia e ansiou sentir esse mesmo desespero. Mordeu seus
lábios enquanto gemia e Diantha percebeu a vibração desse
gemido nos seios. Seus dedos ainda seguiam torturando-a.
― Diantha! ― exclamou o senhor Yale. Uma furiosa
exclamação de protesto.
Tirou a mão de debaixo de suas saias, segurou sua cabeça
com ambas as mãos e a beijou com frenesi, esmagando-a
contra a porta de forma quase brutal. A essas alturas não
podia respirar. Doía-lhe todo o corpo, que parecia estar envolto
em chamas. Tinha um chiado entupido na garganta.
Empurrou-lhe os ombros, repetiu o gesto com mais força e
depois começou a lutar.
Ele a soltou e se afastou retrocedendo um passo. Diantha
ofegou em busca de ar. Esses olhos chapeados, escurecidos na
penumbra do dormitório iluminado pela lua, percorreram-na.
Estavam vazios. Terrivelmente vazios.
Diantha cruzou os braços diante dos seios, tremendo.
Ao vê-lo estender um braço, deu um salto. O senhor Yale
piscou várias vezes enquanto se esforçava por recuperar o
fôlego. Pegou o trinco da porta e a abriu. Sem mediar palavra,
saiu e partiu pelo corredor.
Diantha ficou onde estava, não soube quanto tempo esteve
ali, gelada de frio, e tremendo na escuridão. O senhor Yale não
retornou.
Tempo depois, quando seu coração quase retomou a seu
ritmo habitual e voltava a respirar com normalidade, colocou
bem a roupa, afastou-se o cabelo do rosto e retornou a seu
dormitório, onde a senhora Polley seguia roncando. Retornou
ao que lhe era familiar, seu baú de viagem com seus pertences,
tudo aquilo que parecia normal, seguro e singelo. Justamente o
contrário do que pensava sobre o inchaço e a sensibilidade de
seus lábios; sobre o formigamento que sentia no corpo; sobre o
desejo insatisfeito porque suspeitava que havia algo mais, algo
muito maior, que o que ele lhe tinha mostrado. Justamente o
contrário do homem que a tinha feito se sentir desejada porque
estava bêbado.
12

Durante a noite começou a chover de novo. O moço dos


estábulos resmungava algo sobre palha mofada e cascos
infectados enquanto Wyn atava os cavalos de sir Henry à
carruagem. Com mãos trêmulas, segurou uma corda às bridas
de lady Priscilla e logo outra à sela de Galahad antes de tirá-los
do beco.
Dois meninos atiravam contra uma parede uma bola que
Ramsés perseguia, enquanto um galo rodeado de seu harém
rebuscava entre a terra em busca de sementes e milho, e
apesar da garoa, o povoado parecia um lugar muito ruidoso. Do
outro lado da rua, uma padaria estava cheia de clientes
madrugadores, a carreta de um fazendeiro ia cheia com sacos
de grão dirigindo-se ao moinho, e os trabalhadores e os
habitantes do povoado entravam e saíam do botequim da
estalagem em busca de sua primeira cerveja do dia. Wyn atou
Galahad ao poste reservado para tal fim e lançou uma moeda a
um menino sentado sob um arco.
― Cuide dos cavalos. ― disse na língua de seus
compatriotas, a mesma língua que não tinha utilizado durante
anos até no dia anterior.
O moço levou uma mão à boina e ficou em pé de um salto.
Wyn inspirou fundo e se dirigiu à porta da estalagem. A
senhorita Lucas apareceu nesse momento, vestida com uma
capa e um chapéu, a chapeleira em mão e com as costas muito
reta. Não o decepcionou: foi direta para ele.
― Bom dia, senhor Yale. A senhora Polley está terminando
seu chá e sairá em seguida. Mas me pareceu melhor acabar
com este assunto sem mais demora em vez de esperar que se
apresentasse uma oportunidade para falar em privado mais
tarde, de modo que aqui estou. ― Tinha o queixo em alto, sem
rastro de acanhamento ou vergonha. Entretanto, em seu olhar
se refletia certa insegurança e um ligeiro rubor lhe tingia as
bochechas.
― Senhorita Lucas, estou profundamente embaraçado pela
ofensa que lhe ocasionei ontem à noite. ― As palavras que
vinha praticando em silêncio desde que se levantou não lhe
pareceram, entretanto, fáceis de pronunciar em voz alta. ― Se
desejar, dar-lhe-ei meu sobrenome.
Ela o olhou fixamente, com os olhos totalmente
arregalados pela surpresa e com essa perfeita boca de lábios
rosados aberta. Continuando, articulou um som afogado:
― Oh. ― Foi o único que saiu de seus lábios.
― O sobrenome de meu ramo familiar é modesto, mas
respeitável. ― seguiu Wyn ― Deve ser você quem decidirá se
necessitar meu amparo.
A senhorita Lucas pestanejou várias vezes, como o rápido
bater das asas de um colibri que ficasse suspenso sobre a
infração que tinha cometido contra ela.
No final, depois de piscar uma vez mais, disse:
― Obrigada. Isso não será necessário.
Wyn engoliu saliva para se livrar da repugnante sensação
que lhe tinham provocado suas palavras. E a negativa da
senhorita Lucas.
― Tem certeza?
― Sim. Meu futuro se encontra junto ao senhor H. Faz
muito que estou pronta. E, é obvio, ele não me propôs
matrimônio porque esteve ameaçado pela ponta de uma
pistola.
― Ninguém está me apontando.
― Suspeito que se trata de sua consciência, que
certamente seja muito mais perigosa para você que qualquer
arma. De todas as formas, o único importante é que já estou
comprometida.
Permaneceram assim um momento, em silêncio, embora
teve a impressão de que ela ia acrescentar algo mais.
Entretanto, não o fez.
― Nesse caso, rogo-lhe que permita me desculpar.
― Desculpar-se? ― Voltou a abrir a boca, oferecendo-lhe
uma visão da tentação que se ocultava em seu interior. ― Mas
não queria me dar uma lição?
«Pelo amor de Deus!», exclamou Wyn.
― Não. ― respondeu em voz alta.
― Não? E por que...?
Wyn era incapaz de falar. Ela lhe provocava esse efeito,
roubava-lhe a fala, e nesse momento se alegrou.
― Não precisa que se desculpe.
O olhar da senhorita Lucas se separou dele nesse
momento, fazendo com que a queimação de seu estômago
aumentasse.
― Sabe? ― perguntou ela ― Às vezes acredito que seria
melhor ser francesa. Os franceses parecem se livrarem dos
incidentes incômodos sem sentir o menor remorso de
consciência.
― Senhorita Lucas, rogo-lhe que me perdoe...
― De verdade, não é necessário ― interrompeu-o,
enquanto que apertava a alça de couro da chapeleira, estirando
o material sobre seus nódulos.
― Por favor, permita-me...
― Não necessito...
― Mulher, deixe que me desculpe.
Ela o olhou de novo.
― Mas não precisa que se desculpe. Não era sua
intenção... ― deteve-se, e depois prosseguiu: ― Não foi culpa
sua.
Wyn a olhou fixamente.
― Perdoe que discorde, mas tem uma ideia bastante
curiosa sobre como deve ser o comportamento apropriado de
um cavalheiro.
― De verdade que não. Mas embora não compreendo os
pormenores de sua relação com o senhor Eads, parece-me
evidente que seu encontro não foi um assunto singelo e não
posso culpá-lo por beber mais da conta ontem à noite.
― É muito generosa. E se equivoca por subtrair a
importância de meu comportamento.
Ela fez um gesto.
― Enfim, carregue a culpa se assim o desejar, mas me
permita compartilhar uma parte. Não deveria havê-lo incitado.
Mas aprendi a lição e não voltarei a fazê-lo.
― Não tem do que se preocupar. Não voltarei a incomodá-
la.
Esses olhos azuis pareceram adotar outra vez uma
expressão distante.
― Não o fará?
― Não o farei. ― Entretanto, desejava fazê-lo nesse
momento. Embora doesse a cabeça e o arrependimento o
estava matando, desejava tomá-la entre suas mãos e desfrutar
do que não tinha podido quando teve a oportunidade por culpa
de sua mente embotada. ― Não voltarei a tocá-la. Juro-o por
minha honra.
O elegante arco do pescoço da senhorita Lucas se moveu
quando engoliu saliva com força.
― Disse-me que se voltasse a lhe pedir que me beijasse,
levar-me-ia para casa. Pensa me levar para casa agora?
Deveria fazê-lo. Teria que fazê-lo.
― Não recordo que me fizesse essa petição ontem à noite.
A esperança voltou a brilhar nesses enormes olhos azuis.
― Não se lembra?
Wyn negou com a cabeça. De fato, somente recordava uma
coisa com uma claridade meridiana, e era o motivo pelo que a
tinha solto no final. E certamente que não foram seus débeis
protestos.
― Suponho que é o melhor. ― repôs ela com o cenho
franzido. ― Se tentasse me levar a casa, estaria obrigada a
escapar de novo.
― Não o conseguiria.
Ela inspirou fundo com gesto decidido.
― Já mantivemos esta discussão. Acredito que devemos
chegar a um acordo do que não concordamos. De qualquer
modo, não tem sentido discuti-lo. ― em seus olhos apareceu
um brilho curioso ― De momento. ― seu espírito era
incontestável.
― Senhorita Lucas.
― Sim?
Wyn sentia uma opressão no peito e o coração batia
depressa.
― Perdoe-me.
― Se puder perdoar-se a si mesmo, estaremos em paz. ―
Seus lábios tremeram. ― De novo.
A senhora Polley saiu da estalagem.
― Chuva e mais chuva. Vamos acabar impregnados até os
ossos. ― Seguiu andando, segurando a bolsa de viagem com
seus bojudos dedos.
― Não, nada disso. ― A senhorita Lucas a olhou com um
sorriso alentador ― A carruagem tem... ― Desviou o olhar e seu
rosto se iluminou. ― Que coincidência. Conhecemos esse moço.
― Aproximou-se do menino que segurava a rédea de Galahad.
― Olá. Lembra-se de mim? Íamos na mesma carruagem há dois
dias, a carruagem do serviço dos correios de Sua Majestade
com destino a Manchester. Este cavalheiro ia sentado a seu
lado aquela tarde. Vinha para cá?
O moço tirou a boina, com manchas nas bochechas, sob a
capa de imundície.
― Bom dia, senhorita. Não, não vinha para cá. ― Falava
com soltura, mas tinha um forte acento que indicava que
estava acostumado à modulação gaélica. Seus dedos, tintos de
negro, proclamavam que trabalhava nas minas.
― Tampouco eu. Nem o cavalheiro. ― Ela começou a rir. ―
Mas aqui estamos todos. E que agradável é ver um rosto
conhecido em um lugar estranho.
O rubor do menino se acentuou.
― Aonde vai agora? Se for na mesma direção que nós,
poderíamos te levar e não teria que ir na carruagem dos
correios. Temos muito espaço em nossa carruagem.
O rosto do moço foi um poema. A senhora Polley, em
troca, estava encantada.
― Enfim, senhorita. ― Conseguiu dizer o moço com muita
dificuldade. ― Não posso fazer isso, não com minha imundície,
não posso ir na carruagem de uma dama. Mas se tiver algum
trabalho para mim... bem, estaria muito agradecido porque
fiquei sem nada aqui há dois dias.
― Há dois dias? E como comeu?
― O padeiro me atirou um pedaço de pão-duro esta
manhã. ― Seus dentes reluziram quando sorriu, embora o
cenho franzido manifestasse que era todo pele e ossos. Como
acontecia com a maioria das crianças que trabalhavam nas
minas, tinha pouca carne no corpo. Com o cenho franzido e as
sobrancelhas arqueadas, a senhorita Lucas se voltou para o
Wyn.
― Enfim, seguro que podemos encontrar algo que ele
possa se encarregar, não é verdade?
Os olhos escuros do moço brilhavam por uma esperança
um tanto receosa.
Wyn lhe falou em galés.
― Do que foge, menino?
― Por que acredita que fujo de algo, senhor?
― Porque outrora eu mesmo estive nessa situação.
O moço pareceu meditar a resposta.
― Estava em Cyfarthfa com minha irmã até que a febre a
levou. Fui viver com meu tio em Manchester com o pouco que
tinha, mas ele me mandou de volta com a carruagem dos
correios.
As minas de ferro que havia do outro lado de Black
Mountains tinham matado à irmã do moço, sem dúvida devido
a uma enfermidade, mas seu tio tinha insistido em que o
menino voltasse para esse lugar. Uma história muito habitual,
inclusive para meninos menores que esse.
― Não podia voltar, senhor. ― Sob o cabelo negro sua testa
era estreita, mas de expressão firme. ― Vendi meu assento na
carruagem dos correios por uma parte de carne-seca.
― Pode te encarregar dos cavalos, moço?
6
― Sim, senhor. Meu irmão trabalha com polias em
Merthyr Tydfil. Eu o ajudava com os animais antes que minha
irmã viesse e nos contratassem em Cyfarthfa.
― Pagarei um salário por seu trabalho e receberá comida
também. ― Voltou-se para a senhorita Lucas e disse em seu
idioma: ― Ele vem conosco.
Viu-a esboçar um sorriso.
― Esplêndido. Como se chama?
― Owen, senhorita.
― É um prazer te conhecer, Owen.
Wyn viu que o moço se movia inquieto, já que não estava
acostumado à atenção de uma dama tão bonita, sem lugar a
dúvidas.
Entretanto, Owen poderia lhe resultar muito útil. Embora
olhasse à senhorita Lucas com a devoção imediata que ela
provocava em todo aquele com quem cruzava, o moço não
descumpriria as ordens de um compatriota. Os galeses eram
muito leais. Estava seguro de que a generosidade que
demonstrava a senhorita Lucas lhe seria muito útil.
Fez um gesto a Owen para que agarrasse a bagagem e se
voltou para o estábulo. Entretanto, deteve-se.
― Valha-me Deus! ― sussurrou ela junto ao ombro de
Wyn.
― Valha-me Deus! Sim. ― conveio ele em voz baixa,
enquanto a chuva que golpeava os paralelepípedos ao outro
lado do arco amortecia suas vozes.
― É o lacaio das irmãs Blevins, verdade?
― É. ― O velho cocheiro estava à sombra do estábulo,
acariciando o pescoço de um dos cavalos de sir Henry. Sua
testa estava enrugada por um cenho pensativo.
― A coisa ficou ruim. ― A senhorita Lucas mordeu o lábio.
― Reconheceu a carruagem.
― Isso parece.
― Se está aqui, as irmãs Blevins não devem andar muito
longe.
― Segue tendo seus objetos de valor na chapeleira?
― Sim.
― Boa garota. Vá para dentro. Leve a senhora Polley com
você.
― E depois?
― Irei buscá-las dentro de três minutos. Dentro de três
minutos! Estejam preparadas para partirem a toda pressa.
Ela se voltou e levou sua dama de companhia ao interior
da estalagem. Os olhos escuros de Owen se voltaram para o
estábulo com curiosidade, mas alertas. Wyn quase sorriu,
embora esse não fosse o melhor momento para alegrar-se de
ter retornado a sua pátria, para desfrutar da mente lúcida e
ágil de outro galés.
― Owen, viu um homem grande selar um cavalo malhado
faz um momento, talvez uma hora?
― Sim, senhor.
― Onde está agora?
O moço deu de ombros.
― Não o vi após.
Eads tinha que andar por perto. Seu cavalo estava selado
em sua baia quando entrou no estábulo para preparar Galahad
e a égua. O escocês não ia se afastar nesse momento, já que
estaria pronto para segui-los assim que começassem a
cavalgar. Entretanto, sua momentânea ausência era um golpe
de boa sorte.
Agarrou a rédea de Galahad.
― Vá em busca desse cavalo. Diga ao moço dos estábulos
que o cavalheiro chamado Eads vai conduzir minha carruagem
hoje. Depois, reúna-se comigo do outro lado do cruzamento. ―
Apontou a rua principal.
― Sim, senhor. ― Com passo ligeiro, o moço se aproximou
do estábulo. Ramsés o seguiu, embora depois retornou para
junto de Wyn.
― Parece que vamos ampliar nosso grupo com dois
integrantes novos. ― disse ao cão em voz baixa.
Os olhos negros do Ramsés o olharam.
― Está pensando o mesmo que eu, é obvio. Quanta mais
gente haja para protegê-la de mim, melhor.
Tinha acreditado que tentava lhe dar uma lição. E talvez,
naquele momento, fosse certo. Talvez tentasse evitar desonrá-
la.
Entretanto, já não seria uma ameaça para a senhorita
Lucas. Já tinha abandonado a garrafa em outra ocasião. Não
foi especialmente fácil, mas naquele tempo não tinha um
motivo concreto para deixá-la, somente o desejo de demonstrar
a si mesmo que podia parar. O orgulho. Esse pecado do qual
seu pai e seus irmãos o tinham acusado tão frequentemente.
Nesse instante, tinha um motivo exemplar.
Não podia assustá-la para que voltasse para casa por
vontade própria; seu espírito aventureiro e sua confiança eram
muito fortes. Entretanto, a partir desse momento utilizaria a
oportuna aparição das irmãs Blevins para levá-la ao lugar onde
havia dito a seu padrasto que poderia recolhê-la, um lugar que
os aldeãos não revelariam sua presença às autoridades que
pudessem cruzar em seu caminho. Uma vez em marcha, a
chuva também seria sua aliada, da mesma maneira que seria a
preocupação da senhorita Lucas por seus acompanhantes.
Aceitaria se deter por um tempo se disso dependesse sua
comodidade, o suficiente para que Carlyle chegasse. Se o barão
não aparecesse, Kitty Blackwood o faria. Kitty e Leam tinham
que estar em Londres, e a missiva que tinha enviado uma hora
antes através do serviço de correios chegaria à cidade em
seguida; e Kitty apareceria.
Enquanto isso, ele recuperaria o controle. A moça de
enormes olhos azuis merecia isso.

****

Às vezes, por detrás do brilho prateado, Diantha via os


intensos e predadores olhos de uma ave de rapina. Ou talvez
somente tivessem muita, mas muita fome. Talvez não fossem
os olhos de um predador, mas sim de uma criatura que
desejava comer, mas que não tinha permissão para matar.
Depois do brilho prateado se escondiam os olhos esfomeados
de um carniceiro.
O senhor Eads tinha lhe dado um apelido... O Corvo.
Entretanto, os olhos do senhor Yale só tinham essa
expressão pela manhã, antes que começasse a beber álcool.
Nunca bebia pela manhã, embora parecesse que pelas tardes
se dava liberdade absoluta.
Esse dia não. Talvez não confiasse em si mesmo. Talvez
não confiasse nela. E certamente que não deveria fazê-lo. Tinha
lhe demonstrado que não era de confiar.
Entretanto, quando a manhã deu passagem à tarde e a
chuva começou a cair com força, seus olhos adquiriram outra
vez essa expressão faminta. Mesmo assim, suas botas
caminhavam pela estrada enlameada com passo firme. Durante
horas, caminhou assim, sem compartilhar seus arreios
nenhuma só vez. Diantha estava dolorida pela incômoda
postura que devia adotar a fim de montar em uma sela de
homem, mas ele devia estar exausto. Não obstante, seu passo
não fraquejou e sua mão seguia guiando com firmeza ao
enorme cavalo que tinha roubado do estábulo da estalagem,
onde deixaram a carruagem de sir Henry.
― A senhora Polley tornou a dormir. ― Olhou por cima de
seu ombro para Galahad, que levava sua dama de companhia e
a bagagem como se fosse uma mula de carga. Owen caminhava
junto de lady Priscilla.
O senhor Yale não respondeu.
― Segundo ela, não é necessário que viajemos para o
Oeste a fim de que as irmãs Blevins não reparem em nossa
presença. ― ela tentou de novo.
O senhor Yale seguiu em silêncio, com a vista cravada no
estreito caminho ladeado por cerca de pedra que se estendiam
para o infinito sob a manta de água. Em ambos os lados da
estrada, as colinas se elevavam em um pronunciado ângulo,
estofadas de um glorioso verde-esmeralda, enquanto que as
copas das árvores coroavam seus topos e as ovelhas pastavam
nos campos, alheias à chuva, graças a seus mantos outonais.
E toda essa paisagem estava tingida por um véu prateado.
― Suponho que tem menos preocupações que nós, já que
desconhece a ameaça que representa o senhor Eads.
Não obteve resposta.
Levava todo o dia falando consigo mesma dessa maneira.
E olhando-o. Olhando esses largos ombros cobertos pelo capote
negro, vendo como seu cabelo se enrolava sobre o pescoço da
roupa. Havia tocado nesse lugar. Ainda não acreditava.
Entretanto, recordava a sensação na ponta dos dedos nesse
preciso momento, e também a recordava no resto de seu corpo.
E, é obvio, estava o detalhe da mudança que tinha sofrido seu
semblante, que embora não fosse descortês, parecia um tanto
apagado.
Arrependia-se de havê-la beijado, de havê-la tocado, e isso
que ele não se recordava. Ela, a filha indômita e
desavergonhada de uma mãe indecente e rebelde, recordava
cada momento. E era incapaz de pensar em outra coisa.
― Conhece esta parte de Gales?
― Escutei muitas histórias a respeito durante minha
infância. ― Não parecia exausto, nem zangado nem infeliz.
Parecia... normal.
Soltou um suspiro ao escutá-lo.
― Que tipo de histórias?
― Na rua principal de Knighton, o povoado de que saímos
esta manhã, há uma torre com um relógio. Viu-o?
― Sim. ― Não o tinha visto. Somente tinha visto o
arrependimento em seu bonito rosto e o alívio que o tinha
atravessado quando ela rechaçou sua proposição de
matrimônio.
― Se um homem de Knighton deseja se divorciar de sua
mulher, pode levá-la até essa torre do centro do povoado e
vendê-la ao melhor comprador.
Ela se pôs a rir.
― Que barbaridade!
― Você acha?
― É obvio, você nunca faria isso.
― É obvio que não. ― Fez uma pausa. ― A menos que fosse
muito problemática. ― Pela primeira vez desde que falaram no
estábulo dos Bates, sua voz parecia alegre.
Embargou-a uma felicidade singela e cálida. Secou uma
gota de chuva do nariz.
― Menos mal que não vamos nos casar, porque você me
venderia na torre em poucos dias.
Ele não respondeu imediatamente. Quando o fez, foi para
dizer:
― Certamente.
Diantha engoliu saliva para aliviar o nó que tinha se
formado de repente na garganta.
― Estamos perdidos, senhor Yale?
― Não precisamente, senhorita Lucas.
Tinha-a chamado Diantha na noite anterior. E, por um
instante, tinha lhe dado medo de verdade.
― Só um pouco?
― Possivelmente. ― Outro silêncio, quebrado pelo intenso
aguaceiro que caía a seu redor e pelos roncos da senhora
Polley.
― Possivelmente perdidos?
― Sim.
― E o que vamos fazer a respeito?
Nesse momento, o senhor Yale levantou a vista, e ela se
deu conta de que tinha sentido falta de seus olhos quando não
a olhava. Percorreu com o olhar o perfil de seu queixo e o
contorno de seus lábios. A chuva se deslizava pela aba de seu
chapéu e caía sobre seu capote.
― A senhora Polley está molhada até os ossos ― continuou
ela, porque falar era muito mais fácil que observar essa boca e
desejar coisas que não podia ter ― e acredito que Owen está
andando dormindo.
― Será melhor que encontremos um lugar onde nos
escondermos durante um tempo.
― «Onde nos esconderemos»? ― Não parecia que fosse o
tipo de homem que se escondesse. De nada.
― Onde nos refugiarmos.
A chuva caía com força nesse momento, silenciando tudo
menos seu próprio ruído. Entretanto, o senhor Yale tampouco
parecia o tipo de homem que fugia ao mau tempo.
― Ah! ― disse ela ― Para me manter a salvo do senhor
Eads.
O senhor Yale guardou silêncio de novo.
― Mas me disse que tinha aceitado em permitir que você
me ajudasse com minha busca devido a uma tragédia
relacionada com sua irmã e um bordel.
― Isso foi antes que você saísse do povoado montada em
seu cavalo.
Diantha deu um puxão às rédeas e o enorme cavalo
soprou.
― Roubou...? ― Jogou a vista para trás, a sua dama de
companhia adormecida, e baixou a voz. ― Roubou o cavalo
dele?
― Era Eads ou as autoridades.
― Humm, entendo. Dada a política que têm com as
esposas problemáticas nesse povoado, melhor não averiguar o
que entendem por justiça no caso de uma carruagem e dois
cavalos roubados.
― Isso mesmo o que pensei.
― Acredito que acertou. Não teme que o entregue às
autoridades?
― Acredito que vai querer evitá-los por completo.
Diantha voltou a olhar por cima do ombro. A estrada que
tinha as suas costas estava tingida de cinza.
― Talvez devamos acelerar o passo, não acha?
― Ou nos refugiar a um lado da estrada, onde não ocorra
a Eads nos buscar.
― Talvez tenha razão. Está acabando meu tempo e tivemos
que dar mais voltas do que queria. Seria uma tolice avançar
ainda mais. A quanto tempo está Bristol daqui?
― Há vários dias a cavalo.
― Além disso, talvez o homem vestido de marrom também
tenha aliados. Eu não gostaria de me encontrar com mais
inimigos deles.
― É algo que não podemos descartar.
― Isso nos atrasaria ainda mais.
Ao ver que seus lábios esboçavam de novo o sorriso
torcido, Diantha se sentiu incapaz de afastar o olhar dele e
voltou a experimentar o formigamento no estômago.
― Por que sorri agora? Está todo o dia sem sorrir, coisa
que não estranho, é obvio. Mas o fato de que esteja sorrindo
agora não parece um bom sinal.
Ele deteve o cavalo.
― A chuva está aumentando. Mandarei Owen adiante para
que procure um lugar onde passarmos a noite.
― Uma estalagem neste caminho deserto? E saiba que não
respondeu minha pergunta.
Ele olhou para seus acompanhantes, que se aproximavam
por detrás.
― Uma estalagem seria esperar muito.
― Pois uma fazenda. ― Não ia perguntar se voltariam a
fingir que estavam casados.
Ele parecia meditar no assunto.
― Diria que descesse e que descansasse um pouco,
enquanto Owen se adianta e veja não só pelo barro e pela
possibilidade de que Eads nos alcance.
― Desmontaria se Owen ocupasse meu lugar. Ou se o
fizesse você.
O sorriso bailou nas comissuras de seus lábios.
― Pensa muito pouco em você.
― Que diabos quer dizer com isso? Somente pensei em
mim mesma desde que saí de Brennon Manor. ― Sobretudo em
seu trato com ele, porque tinha lhe suplicado que a beijasse
quando disse que não o fizesse.
Nesse momento, o senhor Yale olhou para Ramsés, que
caminhava adiante pela estreita estrada, com a pelagem
embaraçada, antes de voltar a vista para Owen e a senhora
Polley.
― Adota bichinhos perdidos. ― disse sob o clamor da
chuva.
― Necessitavam nossa ajuda e nós a sua.
― Não precisamente. ― Seus olhos pareciam relampejar
nesse momento. ― Por que o faz? Quer salvar o mundo de seus
maus, salvar uma a uma às almas desencaminhadas?
Não estava brincando. Era evidente. Sua voz tinha um
matiz desolado que impregnou muito fundo em Diantha e lhe
provocou uma sensação estranha, uma emoção muito intensa
que em nada se parecia com a da noite anterior. Essa emoção
era distinta.
― Dê-me a mão, senhor Yale.
Viu-o arregalar os olhos. Mas não se moveu.
― Por favor! ― suplicou-lhe em voz mais baixa, e quase
ficou afogada pela chuva.
Ele a obedeceu e lhe ofereceu a mão, com a palma para
cima. Diantha colocou as suas por debaixo e através das luvas
ensopadas sentiu seu calor de modo que, em seu foro interno,
cobrou vida.
― Suas mãos são fortes e grandes. Está acostumado a
fazer com elas o que deseja. Com muito pouco esforço, figuro-
me, tem efeito em outros. ― Era incapaz de seguir olhando-o
aos olhos. Colocou uma mão em cima da sua, palma contra
palma, dedos contra dedos. ― Minhas mãos são bastante
pequenas, como pode ver. Posso causar pouco efeito. Mas
sempre tento fazer o pouco que posso fazer. ― armou-se de
coragem, embora nesse instante se sentisse muito necessitada,
e elevou o olhar. Ele inspirou fundo.
― Ahnn! ― Galahad apareceu junto a eles enquanto a
senhora Polley lhes lançava um olhar eloquente da sela.
O senhor Yale afastou a mão.
― Owen, venha comigo um momento enquanto coloco-o
em dia do nosso... ― deteve-se para olhá-la ― do nosso plano. ―
Apoiou uma mão no ossudo ombro do moço enquanto se
afastavam.
A senhora Polley os observou partir com o cenho franzido.
É obvio, franziria ainda mais se suspeitasse que a mão que ele
acabava de permitir que ela segurasse penetrou debaixo de
suas saias na noite anterior.
Suspirou.
― Eu gostaria que deixasse de olhá-lo como se fosse um
malfeitor que somente quer minha perdição. Não tem essas
intenções. ― Oxalá as tivesse.
Teresa tinha-lhe contado que havia muitos deveres que os
cavalheiros esperavam de suas mulheres e das mulheres de
outros homens, das cantoras de ópera e de alguma criada
francesa. Diantha acreditava ter descoberto um dos ditos
deveres a noite anterior, colada à porta do dormitório do senhor
Yale. Queria descobrir muito mais, mas, por desgraça, isso não
entrava nos planos do cavalheiro em questão.
― Só quer me ajudar, eu asseguro.
― Não vou dizer quais são ou quais deixam de ser suas
intenções ― replicou sua dama de companhia enquanto
meneava a cabeça e seu chapéu salpicava água em todas as
direções. ― Mas devo lhe advertir, senhorita, de que os
cavalheiros com expressão sombria como a que tem este
homem só fazem as coisas que lhes convêm.
― Acaso não fazemos todos o mesmo? Logo se dará conta
de seu erro.
O senhor Yale se aproximou delas, embora chegasse
sozinho.
― Owen foi procurar um refúgio seco.
A senhora Polley estalou a língua para mostrar sua
desaprovação.
― Não há um lugar seco em vários quilômetros, senhor.
Trouxe-nos para o dilúvio universal.
― Sinto muito que sofra desconfortos, senhora. ―
Acariciou o pescoço da égua com mimo. O coração de Diantha
deu um salto. Quando o senhor Yale levantou a vista e
descobriu que o observava, estreitou as pálpebras. ― Não me
cabe dúvida de que encontraremos refúgio logo.

****

Três quartos de hora mais tarde, depois de várias colinas


verdes e um bom lance de estrada enlameada, Owen
reapareceu.
― Encontrei uma casa adiante, afastada da estrada ―
anunciou, olhando-a com um sorriso tímido. ― É um lugar
elegante, senhorita. Parece uma igreja. Mas não há ninguém.
Chamei em todas as portas e também no barraco do guarda de
entrada.
Falava em inglês por ela, de modo que lhe devolveu o
sorriso. As manchas de suas bochechas davam uma certa cor a
sua pálida pele. Até ele estava cansado. Todos estavam fartos
dessa chuva. Os dentes de Diantha tocavam castanholas e a
senhora Polley tinha uma cara má.
― Bem, se conta com um estábulo seco, poderíamos usá-lo
um tempinho, não acha, senhor Yale?
― Poderíamos. ― respondeu, observando o moço ― Bom
trabalho, Owen. Obrigado.
O moço agarrou as rédeas de Galahad.
― Só terá que seguir um pouco mais pela estrada, senhor.
― Indicou-o com uma mão.
De modo que continuaram. A menos do meio quilômetro,
ali onde a estrada virava para o Sul, começava um pequeno
atalho que se desviava para o Norte. Um atalho ladeado por
grandes carvalhos misturados com altos pinheiros que
pareciam muito cômodos nessa lustrosa parte do mundo. As
trepadeiras cobriam com majestade a casa da guarda,
construída com pedra cinza, e também a cerca de pedra que
bordeava a estrada; e algumas plantas estavam cobertas de
flores, molhadas com a chuva. O atalho estava empedrado, e
em algumas zonas a erva crescia entre as pedras.
7
Oculta depois de um bosque de vetustas árvores se
elevava sobre a casa, um edifício muito grande que, sim, tinha
certa aparência com uma Igreja, ou talvez com várias Igrejas
unidas para formar uma edificação um pouco descontrolada.
Os telhados tinham uma inclinação pronunciada e por cima
deles se elevavam torreões de pedra cinza. Entretanto, os
torreões albergavam lareiras de aspecto moderno. As janelas
tinham um tênue brilho e refletiam as árvores negras e o céu
cinza.
Um comprido edifício de planta baixa se estendia junto a
estrada até unir-se com uma estrutura que parecia um abrigo:
o estábulo e a garagem, certamente. Enormes roseiras
abraçavam os pilares do edifício. Mais à frente, perto do muro
baixo que percorria uns cinquenta metros até chegar a uma
cerca, uma corda se balançava, pendurada do ramo de um
solitário carvalho.
― É um lugar maravilhoso! ― sussurrou Diantha, embora,
é obvio, era uma tolice, já que os cascos dos cavalos faziam
tanto ruído que qualquer moço dos estábulos os escutaria, em
caso de haver algum. Olhou o senhor Yale, que observava a
casa com expressão séria.
― Owen, vá à parte traseira e se assegure de que não há
ninguém.
Owen desapareceu rapidamente.
A senhora Polley aceitou a ajuda do senhor Yale para
desmontar.
― Já chegamos, senhor. O que quer que façamos agora? ―
espreguiçou-se de forma exagerada, formando uma espécie de
bule com sua bojuda figura, com o chapéu jorrando de água. ―
Espero que esteja vazia, porque do contrário, a pobre gente que
vive aqui terá a pior impressão de sua vida ao nos ver mais
molhados que um cordeiro guisado.
― O cordeiro guisado soa a fábula agora mesmo ―
murmurou Diantha.
O senhor Yale esboçou seu sorriso torcido e se aproximou
dela.
― Gosta de assado e torta de cordeiro? ― Agarrou-a pela
cintura e a desceu do cavalo.
Assim que seus pés tocaram o chão, soltou-a, mas não se
afastou, e ela se viu na obrigação de fingir que as carícias de
suas mãos não lhe pareciam o paraíso. Tinha os joelhos e o
traseiro doloridos, mas sentia um formigamento ali onde ele a
havia tocado tão intimamente a noite anterior.
― Suponho que não haverá ninguém preparando um
guisado de cordeiro agora mesmo, verdade?
― Duvido-o. Mas já veremos como se desenvolvem os
acontecimentos antes de renunciar ao jantar de antemão. ― O
senhor Yale pôs-se a andar para a porta principal.
Diantha o seguiu.
― Acreditava que íamos descansar no estábulo. Pensa
entrar na casa?
― Sim.
Owen retornou pelo lado contrário.
― Não há ninguém, senhor.
O senhor Yale subiu os dois degraus que conduziam à
porta, que era de madeira maciça sem adornos, e ela o seguiu.
De perto, a pedra parecia ter uma tonalidade rosada.
― Mas e se voltarem de repente?
― Nesse caso, esperemos que sejam anfitriões generosos.
Além disso, Owen vigiará do barraco da guarda. Owen, o que
acha de se dedicar a seu talento e montar guarda?
― Será melhor que a mina, senhor.
― Viu? Tudo arrumado. ― Entretanto, em seus olhos havia
um estranho brilho. Diantha o seguiu enquanto subia até o
portal. Tentou abrir a porta.
― Fechada ― resmungou a senhora Polley.
Ele meteu a mão no bolso do capote e tirou um estojo de
couro não maior que uma carteira.
Diantha deu uma olhada.
― O que é isso?
― Por que sussurra? ― perguntou ele a sua vez, com o
mesmo volume. Abriu o estojo com mãos escorregadias pela
chuva e tirou duas ferramentas metálicas.
― Porque o que está fazendo me parece algo muito
clandestino.
― Não me cabe a menor dúvida de que é.
Oxalá usasse luvas, pensou Diantha. Oxalá não pudesse
ver suas habilidosas mãos, essas mãos que faziam que se
sentisse tão débil.
― O que são essas ferramentas, senhor Yale?
8
― São michas , senhorita Lucas. ― Meteu-as na
fechadura.
― Suponho que deveria me escandalizar de ver um kit de
chaves michas no bolso de seu capote.
― Mas parece que não é assim.
― Isso seria ridículo de minha parte dadas as
circunstâncias, não acha?
― Certamente. ― Escutaram-se dois estalos metálicos.
Sem tirar as michas da fechadura, o senhor Yale fez girar o
trinco. ― Empurre a porta, se for amável.
Diantha se adiantou um pouco.
― O que faz quando não conta com uma terceira mão para
fazer isto?
― Nessas condições, não entro nas casas, é obvio. ― A
porta permaneceu fechada. ― Tem uma fechadura por dentro.
― Soltou o trinco.
Os dentes de Diantha tocavam castanholas, de modo que
se envolveu melhor com a capa.
― O que fazemos agora?
― Tentá-lo com a porta traseira. Fique aqui, por favor. ―
Desceu os degraus e rodeou as roseiras, seguido de perto por
Ramsés.
Em questão de minutos, escutaram-se ruídos no interior e
as dobradiças da porta chiaram ao abrir-se. O senhor Yale
retrocedeu um passo e lhes fez uma reverência.
― Bem-vindas a Abbaty Fran Ddu, senhoras.
Diantha entrou no vestíbulo enquanto tirava o encharcado
chapéu. Era um espaço modesto e estava bem decorado com
painéis de madeira escura, um elegante candelabro de ferro e
chão de ladrilho. Podia-se sentir o cheiro de pó do ambiente,
mas não umidade.
― É um lugar moderno. E está maravilhosamente seco.
Sinto-me fatal por manchá-lo com nossas roupas molhadas.
― É um lugar muito bonito, e isso que está escondido em
metade de um vale. ― A senhora Polley deu uma olhada a seu
redor com olho crítico.
― Como sabe o nome da casa, senhor Yale?
O aludido agarrou o casaco da senhora Polley e a capa de
Diantha, e apontou a fileira de campainhas para chamar os
criados situada sobre um arco. Junto às campainhas havia um
bordado emoldurado no que se podiam ler as palavras Abbaty
Fran Ddu em seda verde e azul.
― Owen trará a bagagem e depois acenderá o fogo. Pode
ser que acima tenha uma sala de estar. ― Apontou a escada
que partia do vestíbulo.
― Oh, mas não podemos subir. Deveríamos ficar aqui.
Certamente a cozinha se encontra no final desse corredor. Não
tirou o capote.
― Tenho que me encarregar dos cavalos. Mas este lugar
está vazio. Não se preocupe. Vocês fiquem cômodas e depois, se
quiserem, investiguem o que há na cozinha. O moço não
aguentará muito mais sem jantar.
― Diria que eu tampouco ― comentou ela.
O senhor Yale voltou a lhe dar de presente esse sorriso
torcido, depois do qual lhe fez uma reverência e saiu pela porta
principal.
13

Wyn a viu mover-se pela casa com evidente admiração.


Contemplava seus descobrimentos e a seguia como se não
tivesse caminhado por essas estadias milhares de vezes no
passado. Cada porta que abria arrancava de Diantha um novo
sorriso, outro novo murmúrio de prazer.
― Tudo é lindo, embora haja muito pó. ― Passou um dedo
pelo batente de uma das janelas do Salão Oriental. ― Parece
que os donos estão bastante tempo fora.
«Cinco anos», pensou Wyn.
― Parece.
― Deveríamos usar tão somente esta estadia e tentar não
tocar em muitas coisas. E devemos deixar uma compensação
pelo uso da comida e do carvão.
― Há carvão de sobra. ― Owen deixou um balde cheio de
carvão junto à lareira. Seu aroma impregnou a estadia.
A lareira estava limpa, por sorte. Ninguém tinha habitado
essa casa há cinco anos, mas não estava de tudo desatendida.
Viu-a levantar um lençol de linho para ver o que havia
debaixo.
― Os móveis estão em excelentes condições. E tudo parece
limpo, ordenado e muito bem disposto. Acredito que é o lar de
uma mulher. Uma mulher com um gosto maravilhoso.
Pergunto-me onde estará. Em Londres, possivelmente, onde irei
dentro de pouco. Embora cruze com ela pela rua, nem sequer
saberei que é ela, e deveria lhe agradecer pela hospitalidade.
Em seguida, Diantha afastou o lençol que cobria uma
cadeira e o dobrou, levantando uma nuvem de pó. Enrugou o
nariz e passou o dorso de uma mão por ela sem ser consciente
do gesto. Carecia de maneiras de uma dama da cidade. Era
uma genuína moça de campo. Entretanto, era perspicaz na
hora de julgar os outros. Salvo a ele.
Trocara de roupa e nesse momento usava um singelo
vestido de cor verde clara que teria deixado em descoberto seus
braços e seu pescoço a não ser pelo xale. Tinha uma pele muito
branca, um pescoço elegante e uma figura preciosa. Wyn tinha
sede só em olhando-a. Desejava-a. O coração lhe pulsava muito
rápido e tinha acelerado sua respiração. Ansiava tocá-la,
explorar essa pele sedosa com as mãos e com a boca, acariciá-
la por todos lados.
Era o licor o que provocava essa ânsia.
― Quanto tempo ficaremos aqui? ― perguntou-lhe ela, que
tinha se aproximado de seu lado. ― Esta noite?
― Talvez um ou dois dias. ― Até que o jovem William
aparecesse com o barão ou Kitty chegasse de Londres. ―
Devemos nos assegurar de que Eads se encontre bem longe da
estrada antes de pormos rumo ao Leste.
― A senhora Polley estava resmungando outra vez pelo
desvio que tomamos. Mas se acomodou na cozinha. Inclusive
encontrou uma garrafa de azeite em bom estado e um pote com
farinha. Parece que adora assar. ― Sorriu e as covinhas
apareceram em suas bochechas de alabastro.
Wyn caminhou até a porta.
― Owen, me acompanhe até a casa da guarda. Ajudar-te-ei
a se instalar.
O moço correu pela estrada a seu lado.
― Senhor... ― disse enquanto lhe dava um chute em uma
pedra.
― Sim, Owen?
― Não vai falar-lhe deste lugar, verdade?
― Não vou falar dele.
― É uma dama muito boa.
― É sim.
― O senhor Guyther disse que não poderá manter o gado
nas colinas muito mais tempo.
― Não vamos ficar por semanas aqui, Owen. Somente será
alguns dias. E o senhor Guyther fará o que eu lhe diga. Como
você fará, espero. ― deteve-se e colocou uma mão em um
ombro do moço. ― Não deve dizer a ela. Se soubesse, partiria e
ficaria em perigo.
Entretanto, a essas alturas se perguntava se Diantha
partiria caso lhe contasse a verdade. Era uma mulher
imprudente, sim, mas possivelmente nesses momentos fosse
mais sensata que quando começou sua busca. Talvez, de fato,
tratasse-se de que possuísse desejos que superavam as
expectativas que a vida lhe oferecia. Desejos difíceis de
conseguir, como resgatar a sua mãe e receber as carícias de
um homem.
― Sim. ― Owen assentiu com a cabeça. ― Mas eu não
gosto, senhor.
Wyn ansiava uma taça de brandy. De whisky. Fora que
fosse.
― A mim tampouco.
A senhora Polley preparou um jantar singelo utilizando as
carnes de uma despensa muito bem sortida com carnes-secas e
embutidos. Também preparou tortas de aveia muito singelas,
na luz da cozinha. A senhorita Lucas comeu tudo com apetite.
O moço a contemplava com expressão culpada, enquanto a
senhora Polley tagarelava sobre a casa. Wyn mal prestou
atenção. À medida que avançava a noite, os nervos que
pareciam lhe aguilhoar a pele se converteram em punhaladas
difíceis de ignorar. Entretanto, todos seus esforços pareciam
inúteis. Somente era capaz de pensar no brandy e na jovem
sentada no outro extremo da estadia. Um par de desejos
impossíveis.
Partiu para o estábulo para atender os cavalos, e deu-lhe
aveia e feno procedente do monte que Owen tinha levado da
casa do Aled Guyther, o administrador da Abadia. Caminhou
pelo perímetro da propriedade, pelos jardins abandonados e as
cercas, e depois passeou junto ao canal de irrigação que
terminava no rio. Mais tarde retornou à casa da guarda. Depois
de selar Galahad, cavalgou para as colinas, onde já não
pastava o gado tal como tinha ordenado a Guyther através de
Owen: na propriedade não devia ficar nem gado nem pessoas.
Dispunha-se a falar com Guyther pessoalmente, mas trocou de
opinião e evitou a estrada que levava ao povoado e ao diminuto
botequim, assim como à singela capela com seu cemitério e a
tumba que há cinco anos não tinha visitado uma só vez.
A chuva obscurecia as colinas, de modo que retornou para
casa. O salão com suas poeirentas garrafas guardadas na
licoreira supunha ser uma grande tentação. O conteúdo das
garrafas não lhe importava. A ânsia por beber o que fosse lhe
queimava até a medula dos ossos.
Diantha o recebeu na porta do salão, emoldurada pela luz
do fogo e os roncos da senhora Polley.
― Ouvi-o entrar. Deve estar esgotado. Não tem muito bom
aspecto. ― Seus olhos pareciam cansados, mas sua expressão
era tenra.
Wyn se aproximou dela para sentir sua quentura e para
torturar-se com a momentânea ideia de que talvez obtivesse
certo consolo essa noite.
― Que bom respirar a confiança de um homem.
― De fato, acho-o muito bonito, embora deva saber, e de
qualquer forma, as elegantes damas de Londres lhe dirão a
toda hora, assim não será estranho que eu seja da mesma
opinião. Mas não sei como é capaz de manter sua aparência.
Eu pareço um desastre. Minha mãe vai ficar espantada quando
me vir. Mas você está elegante embora chegue encharcado por
culpa da chuva. ― Esses olhos azuis o olharam, totalmente
arregalados e reluzentes com um desejo que igualava ao que ele
sentia.
― Boa noite, senhorita Lucas. ― voltou-se para a escada.
― Aonde vai?
― Dormir. Sugiro-lhe que encontre um lugar cômodo e
faça o mesmo.
― Onde?
Wyn apontou para o outro extremo do corredor.
Viu-a arquear as sobrancelhas.
― Em um dormitório?
― Está acostumado a ser o lugar onde se dorme. ― E onde
se faziam outras coisas que desejava fazer com ela nesse
momento.
― Mas...
A senhora Polley espirrou, interrompendo seus roncos.
Depois, tossiu e seguiu dormindo.
O cenho da senhorita Lucas se acentuou.
― Acredito que pegou um resfriado. Sugeri-lhe que
preparasse um caldo quente com a carne-seca, mas bufou. Não
sou muito boa cozinheira. ― deu de ombros. ― Menos mal que
não estaremos muito tempo aqui e que à senhora Polley goste
de cozinhar, ou morreríamos de fome sem dúvida.
Wyn foi incapaz de resistir a seu bom humor.
― Tenho certeza de que você possuiu outros talentos.
― Oh, posso bordar um céu tormentoso e pintar um
caramanchão com aquarelas. Talentos muito úteis nas
circunstâncias atuais.
Wyn sorriu.
― A comida seria uma estimativa.
― Não me cabe dúvida de que você acredita ser assim. Eu,
ao contrário, sigo morta de fome. ― colocou uma mão sob o
peito, no estômago. ― De verdade tem a intenção de que
fiquemos aqui mais de uma noite?
― Uma noite mais, certamente. E se a senhora Polley
estiver doente, ficaremos uns dias a mais.
Diantha o olhou de forma penetrante antes de posar o
olhar em seus lábios.
― Tenho que lhe dizer algo.
Wyn assentiu com a cabeça.
― Como deseje.
― Esta manhã, quando me disse que eu salvava almas
desencaminhadas, pareceu perplexo, como se estivesse falando
de algo estranho. Entretanto, não me parece que seja tão
estranho para você. ― Seguiu olhando-o nos olhos enquanto
abraçava a cintura. ― Acredito... não, não acredito. Tenho
certeza de que você salvou muita gente.
Todos tinham sido encargos, meios para conseguir um
fim. Não como a mulher que tinha diante de si e que tinha
estado a ponto de prostrar-se de joelhos na estrada enlameada
quando lhe agarrou a mão essa manhã. Nesse momento,
olhava-o com expressão apaixonada. A paixão era um pouco
conhecido para ele. Havia-a visto muitas vezes. Mas o que
sentia por ela era diferente. Não chegava a compreendê-lo e
tampouco queria analisá-lo a fundo.
― Tenha feito ou não, é irrelevante nas circunstâncias
atuais. ― Circunstâncias nas quais lhe mentia e a desejava ao
mesmo tempo. ― Encarregue-se de que sua dama de
companhia esteja comodamente instalada e, depois, busque
um lugar onde dormir e descansar. ― Depois de agarrar uma
vela do console do vestíbulo, subiu a escada em direção ao
salão.
Uma vez na estadia, cujos móveis cobertos pelos lençóis de
linho pareciam fantasmas, aproximou-se da licoreira. O cristal
das garrafas tinha um brilho apagado na escuridão. Tremia-lhe
a mão quando a estendeu para agarrar a mais próxima.

****

Owen despertou de madrugada. Seguia chovendo. No


interior do barraco da guarda, o jovem William dormia com as
costas apoiadas em uma parede. Ramsés lhe lavou o rosto a
lambidas e o moço despertou, depois contou a Wyn o que já
temia: nem lorde Carlyle nem os condes de Savege se
encontravam em Devon. Aparentemente, tinham partido a
Londres. Tal como tinham acordado, William tinha mantido o
segredo e tinha ido em sua busca o mais rápido possível.
Wyn se amaldiçoou em silêncio. Tinha sido um imbecil ao
enviar ao moço a Devon em primeiro lugar. Entretanto, naquele
momento não lhe ocorreu que seria impossível deter Diantha.
Tinha cometido muitos erros com ela e estava a ponto de
cometer o pior de todos.
Depois de ordenar a Owen que desse comida ao moço e
lhe entregasse uma bolsa de moedas, disse-lhe que entrasse
em marcha com a primeira luz da alvorada. Depois, dirigiu-se
de novo para as colinas da propriedade de sua tia-avó. O sono
o evitava e a sede o martirizava com a mesma intensidade que
a chuva, que não tinha reflexos de deter-se. Acompanhado pelo
cão, caminhou até que amanheceu, momento no que depois de
entrar nos pastos, encontrou uma formação rochosa que
frequentava desde menino. Naquela época, converteu-a em
uma fortaleza da qual conquistava os rebanhos como se fossem
dragões dispostos a destruir o castelo de sua tia-avó.
Estava bastante seco. Acomodou-se no interior e Ramsés
se enroscou no casaco de seu capote.
Não dormiu. O espantoso formigamento que lhe percorria
o corpo não o permitiu. Em vez disso, pensou em Diantha
Lucas, em seus anseios e desejos, e pela primeira vez em sua
vida descobriu que não sabia que caminho tomar para seguir.
Quando o sol, por fim, iluminou o horizonte e ficou de pé
para limpar-se, descobriu que tinha as extremidades débeis,
que estava um pouco tonto e que tremiam suas mãos de forma
incontrolável. Seu corpo lhe pedia brandy a gritos. Nesse
momento, compreendeu qual era a estrada que devia tomar.
Pareceu-lhe bastante adequado. Soube sem o menor indício de
dúvida que viveria em um inferno durante alguns dias até que
Kitty Blackwood chegasse de Londres. Entretanto, dessa forma
conseguiria manter Diantha Lucas em um lugar particular,
faria isso. Tinha deixado que seus demônios o controlassem
durante muito tempo.

****

― Ovos! ― anunciou a senhora Polley, que assoou o


avermelhado nariz com um trapo, enquanto mostrava o tesouro
que levava na outra.
A galinha do qual lhe tinha arrebatado um ovo parecia o
mar de tranquila. Diantha sentiu um rugido no estômago.
Lambeu os lábios. Um gesto que não esteve motivado pela
presença do senhor Yale. «Assombroso», pensou.
― São muito pequenos ― apontou Owen com cepticismo.
Diantha deu de ombros.
― Estarão muito bons de todas formas. Será porque as
galinhas são pequenas?
A senhora Polley colocou a mão sob outra galinha e tirou
um segundo tesouro.
― É evidente que nenhum dos dois sabe nada sobre
galinhas.
― Não é de estranhar.
Diantha se voltou de repente e viu que o senhor Yale se
encontrava na porta do abrigo, com os braços cruzados diante
do peito e um ombro apoiado no marco. A postura fazia que a
bainha de seu capote negro roçasse o sujo chão por um lado.
Diantha ficou sem fôlego. Sem se importar que sua mente
repetisse para contentar-se (que tinha estado muito entretida
lendo, falando com Owen e ajudando à senhora Polley na
cozinha), o simples fato de vê-lo depois de tantas horas
provocou um prazer inimaginável.
Aproximou-se dele.
― Owen descobriu este abrigo e as galinhas.
Viu-o arquear uma sobrancelha negra enquanto olhava o
moço com grande seriedade.
― Ah, sim?
Owen levou uma mão à boina.
― Boa tarde, senhor.
― Não é maravilhoso? Dentro de um momento, teremos
ovos para jantar e a senhora Polley assou uma fogaça de pão.
― Embora não acredite que esse homem prove um só
bocado. ― A senhora Polley se aproximou de outra galinha e
colocou a mão debaixo em busca de outro ovo. ― Ainda não
provou nem um bocado da comida que preparei.
O senhor Yale inclinou a cabeça para dizer a Diantha em
voz baixa:
― Vejo que desci um degrau mais na estima de sua dama
de companhia.
― Por que o diz?
― Porque fala de mim em terceira pessoa.
― Mas você está fazendo o mesmo.
― Sim, mas estou falando com você, não com ela.
A senhora Polley resmungou:
― Muito refinado e elegante para comer pratos singelos.
― Ah ― exclamou ele com seu sorriso torcido. ― Chegamos
à raiz do problema.
― Sério, senhor Yale ― disse Diantha, que se pôs a rir, ―
você é muito refinado e elegante. Deveria descer algum dia
dessas alturas. ― Aproximou-se dele e se conteve para não
aspirar seu aroma de chuva e a homem. ― Deveria jantar
conosco. Acredito que a senhora Polley se sente muito
ofendida.
― Não precisa que suplique ao cavalheiro que prove minha
comida. Se não gostar, que volte para Londres e a seus
perfumados cozinheiros.
― Será uma honra para mim trocar as ofertas culinárias
de meus perfumados cozinheiros pelas suas, senhora ―
replicou ele, que ainda esboçava esse sorriso torcido, embora
pareceu tremer um pouco a voz.
― Não lhe parece que este lugar é muito curioso? ―
perguntou Diantha, apontando a seu redor. ― Não é um
galinheiro em si, de modo que suponho que não será o lar
habitual destas galinhas, mas olhe que contentes estão de
todas formas.
― É curioso, sim ― conveio ele enquanto olhava de novo
para Owen. ― Pergunto-me que outras surpresas descobrirá. ―
O moço saiu pela porta e o senhor Yale o seguiu com a vista
antes de se voltar para olhá-la.
― Encontramos uma vaca.
Ele arqueou uma sobrancelha.
― Estava comendo trevos aqui perto, sob a chuva, e
mugindo. Tristemente. Owen a levou ao estábulo com os
cavalos e está toda feliz e contente comendo feno. Deve haver
se perdido. Sem dúvida, alguém virá procurá-la e descobrirá
que irrompemos sem permissão na propriedade, e nos levarão
ante um magistrado e todos acabaremos arruinados. ― Tomou
uma funda baforada de ar e depois suspirou de forma
exagerada. ― Enfim, como poderá comprovar tivemos um dia
cheio de aventuras enquanto você estava fora.
Embora Diantha visse o brilho que apareceu nesses olhos
chapeados, a rigidez de sua postura não variou e tampouco
descruzou os braços.
― Onde esteve? ― quis saber ela.
― Por aí.
― Onde?
A senhora Polley passou junto a eles, com um bom
número de ovos no avental.
― Os cavalheiros infames gostam de guardar segredos.
Sempre disse isso.
O senhor Yale a seguiu com o olhar enquanto ela se
afastava para a casa.
― Disse?
― Pois sim, muitas vezes. Acredita que deve me advertir
constantemente. Não sei se o faz porque pensa que tenho uma
má memória ou porque imagina que ao repeti-lo tantas vezes,
me assustarei com você. ― Ao lhe tocar o braço, o senhor Yale a
olhou de novo. Nesse instante, Diantha se precaveu de que
estava tremendo, de que todo seu corpo parecia estremecer. ―
Mas... ― tentou manter o tom ligeiro. ― Mas não precisa que
repita tanto, porque já estou assustadíssima, claro.
O senhor Yale se afastou dela.
― É obvio. ― afastou-se do abrigo e caminhou pela estrada
que levava até a casa.
Embora tivesse deixado de chover, o céu ainda refletia um
cinza escuro. O senhor Yale tinha o rosto suado.
― Você está doente? ― perguntou-lhe.
― A verdade é que não me encontro de todo bem,
senhorita Lucas.
― Ai, não! Certeza que pegou um resfriado pela viagem de
ontem. É esse o motivo pelo que hoje se manteve afastado? Não
quer que nos contagiemos?
― Agrada-me assegurar que não é uma enfermidade
contagiosa ― respondeu ele com seriedade.
― Não o entendo.
O senhor Yale se deteve, voltou-se para olhá-la. Tinha
uma expressão tensa.
― É um estado temporário, e você não deve preocupar-se
absolutamente. Deixe-o estar, se não se importar.
― Está muito sério.
― Provavelmente tenha um motivo para estar.
― Supõe-se que essa é uma indireta para que abandone o
assunto, mas em compensação vou fingir que sou de tudo
obtusa. Preocupei-me muito ao não vê-lo em todo o dia.
― Sou capaz de cuidar de mim mesmo, senhorita Lucas.
― Encontramo-nos em um lugar recôndito e solitário. Por
isso me perguntava onde poderia estar.
Isso pareceu surpreendê-lo.
― Tinha medo de estar aqui? Sem mim?
― Não era medo exatamente. É um lugar muito tranquilo.
E, a verdade, depois de toda a agitação dos últimos dias, não
me importa desfrutar de um dia de tranquilidade. Somente
estava preocupada com você.
― Nesse caso, pode estar tranquila. Não voltarei a partir.
― Talvez precise dormir.
― Uma ideia excelente.
Mas não o fez. Acompanhou-a até a cozinha, onde Diantha
se dispôs a ajudar à senhora Polley com os preparativos para o
jantar enquanto Owen os entretinha com algumas histórias da
mina que puseram os cabelos de Diantha de pé.
― Quando minha irmã pegou a febre, transladaram-na à
enfermaria. Acabou com difteria. Não durou nem dois dias. ―
Deixou cair os ombros.
― Esses lugares não são dignos nem para os animais ―
protestou a senhora Polley. ― Menos mal que se encontrou com
minha senhora e agora está conosco.
Diantha cortou as verduras e quebrou os ovos em uma
terrina. Teve sorte de não fatiar um dedo com a faca e de não
derramar a comida no chão. Somente tinha olhos para o
cavalheiro. Ele também a observava. Tinha olheiras evidentes e
mantinha as mãos nos bolsos. Entretanto, parecia inquieto,
algo incomum nele.
Comeram como se se tratasse de um lanche campestre,
sem cerimônia alguma e na cozinha. Owen comeu a metade do
prato de ovos, da geleia e do pão assim que a senhora Polley
deixou tudo na mesa. Diantha serviu um prato ao senhor Yale
e ele o comeu, o que era excepcional. Depois de agradecer à
senhora Polley e despedir-se dela com uma reverência, partiu.
Diantha comeu a toda pressa o que restava no prato e foi
atrás dele. Encontrou-o no salão, contemplando o brilho do
fogo da lareira, com as mãos nos bolsos e os olhos fechados.
Abriu-os ao precaver-se de sua entrada e a olhou.
― Senhorita Lucas, perdoe minha apressada despedida.
― Está doente de verdade. ― aproximou-se, mas ele
retrocedeu.
Diantha se deteve com um nó no estômago.
― Não me encontro muito bem, é verdade ― reconheceu o
senhor Yale, que parecia apertar os dentes.
― Talvez pegou um resfriado, como a senhora Polley.
― Está se repetindo.
― Bom, é possível, porque embora antes me tivesse por
uma pessoa corajosa, talvez não seja depois de tudo. É que não
posso permitir que você sofresse uma enfermidade terrível e
complicada, porque não gosto de ficar aqui sentada, presa pela
impotência, na metade de Gales para vê-lo morrer.
O senhor Yale arqueou as sobrancelhas.
― Senhorita Lucas, tem você uma veia melodramática.
Que mantém escondida a maior parte do tempo, é verdade.
Mas quando decide mostrá-la é realmente impressionante.
Diantha retorceu suas mãos.
― Em ocasiões, é muito frustrante falar com você. Diga-me
o que lhe acontece.
Ele olhou para a janela.
― Nada que não possa solucionar alguns sorvos de
brandy. Ora, começou a chover de novo!
― Tenho a impressão de que gosta de acrescentar algo
«muito adequado» ou algo igualmente de deprimente.
― Absolutamente. O que acontece é que quando a gente
passa a noite fora sob a chuva sem dormir, é todo um luxo
encontrar-se debaixo de um teto e em uma estadia esquentada
pela lareira. ― Nesse momento sorriu, embora mal fosse um
vislumbre de sorriso, e em seus olhos apareceu uma expressão
peculiar. O olhar do predador, outra vez.
Diantha sentiu um calafrio nas costas.
― Passou a noite sob a chuva? Depois de me animar a
procurar um quarto onde dormir?
― Admito que foi um comportamento hipócrita. Se desejar,
pode colocar-me os grilhões e me entregar ao verdugo. Aí é
onde acabarei, de todas as formas. ― Acrescentou o último
comentário como se lhe acabasse de ocorrer ao fio da conversa.
― Quem se está comportando agora de forma ridícula? O
sentido comum parece havê-lo abandonado. Deveria ir dormir.
― Obrigado, ficarei aqui. Mas você pode partir se quiser.
― Acaba de escurecer.
Por um instante, Diantha vislumbrou algo em seus olhos.
Um fugaz desespero como o que viu na outra noite no corredor
da estalagem antes de que a tocasse. A noite que ele não
recordava, porque tinha bebido muito.
E então compreendeu tudo de repente. Ou acreditou havê-
lo compreendido.
― Mas não vai tomar esses sorvos de brandy ― ela disse. ―
Nem sequer vai tomar um, verdade?
O senhor Yale a olhou no rosto, mas não replicou.
― Deixou as bebidas alcoólicas, não é verdade? Deixou-as
por completo.
― Você... ― O senhor Yale guardou silêncio e pareceu
reconsiderar o que ia dizer. No final, somente disse: ― Sim.
― E por isso se encontra tão mal.
Outro silêncio antes de um:
― Sim.
O silêncio se prolongou, mas Diantha foi incapaz de dizer
todas as coisas que lhe ocorreram de repente. Sua virtude e a
honra do senhor Yale estavam enredados de forma lamentável.
― Por culpa do que aconteceu na estalagem de Knighton ―
disse por fim.
― Por isso mesmo ― reconheceu ele.
Diantha se aferrou a uma cadeira com mãos trêmulas e
acabou sentando-se nela.
― Deveria sentar-se.
― Estou muito cômodo de pé.
― Parece tão cômodo como minha irmã Charity quando
minha mãe tratou de casá-la com lorde Savege. Antes que ele
se casasse com Serena.
Os deliciosos lábios do senhor Yale esboçaram um amplo
sorriso.
― Desconheço essa história.
― Porque todos a mantêm em segredo. Acredito que foi um
dos motivos pelos quais minha mãe partiu. ― A essas alturas,
não era capaz de olhá-lo no rosto. ― Teve uma decepção
tremenda quando não se cumpriram as expectativas que tinha
depositado em Charity.
Produziu-se outro silêncio.
― E não tinha expectativas depositadas em você?
― Bom, eu carecia completamente de encantos. Charity é
muito bonita e comedida, é obvio.
― Ah!
Certamente não a compreendia. Esse cavalheiro tão
bonito, elegante e de maneiras deliciosos não podia entendê-la
mesmo que estivesse doente e se encontrasse na difícil situação
em que ela o tinha colocado por culpa de sua imprudente
busca e, de seu desavergonhado comportamento.
― Meu pai sempre dizia que deixaria a bebida ― comentou.
― O fez em uma ocasião, mas somente resistiu quinze dias. Eu
era muito pequena, mas recordo porque depois de vários dias
sem prová-lo, pediu-me que lhe levasse a garrafa de whisky.
― E o fez você?
― Neguei-me. ― Diantha deu de ombros. ― Ele era melhor
quando não bebia. Era mais simpático. Não aquele dia em
concreto, claro. Aquele dia estava furioso, e quando minha mãe
voltou para casa, encerrou-me em meu dormitório. Pouco
depois, ficou doente. Minha mãe dizia que ele cavou sua
própria tumba com a bebida.
Produziu-se outro comprido silêncio durante o qual
somente se escutavam os distantes ruídos procedentes da
cozinha e os suaves roncos de Ramsés, que dormia no tapete
situado diante da lareira.
― Esta não é a primeira vez.
Diantha ficou sem fôlego. Aparentemente, o senhor Yale ia
confiar nela. Esse homem que possuía segredos que ela nem
sequer sonhava desvelar.
― Como foi na anterior? ― quis saber. ― Ou nas
anteriores?
― Na anterior. Melhor que agora. Muito melhor.
Diantha tomou uma profunda baforada de ar e ficou em
pé.
― Embora vá contra minha opinião a respeito, acredito
que não deveria fazer isto. Não agora, quero dizer. Se prometer
não...
― Não. Cale-se.
― Que me cale?
― Mas tente guardar silêncio.
Diantha acreditou ver o indício de um sorriso em seu
rosto, mas o pobre tinha muito mau aspecto, apesar de seu
elegante traje e seu bonito rosto. Os olhos eram o pior de tudo,
como se o faminto predador procurasse algo que era incapaz de
encontrar e o desespero se apropriasse dele enquanto falavam.
― Tem você um aspecto estranho. ― Diantha deu um
passo para ele e, o senhor Yale não retrocedeu. ― Está
pensando de novo em me levar para casa. ― Certamente o fio
dos pensamentos do senhor Yale tinha sido similar ao dela.
Porque para ele seria muito mais fácil se ela deixasse de ser
sua responsabilidade. Nesse caso, poderia fazer o que
desejasse, poderia partir para onde quisesse e beber o que
quisesse sem o temor que ela se jogasse em cima dele. ― Eu o
faria se fosse você.
― Nesse caso, pode agradecer por não ser eu.
Não obstante, Diantha não estava satisfeita com isso, não
quando seu olhar parecia devorá-la, quando parecia devorar
cada um de suas características, pouco a pouco.
― No que está pensando, então?
Esses olhos cinzas se cravaram em sua boca.
― Em...
Diantha descobriu que era incapaz de respirar.
― Em...?
― Não posso deixar de pensar em... ― O olhar do senhor
Yale voltou para seus olhos. ― Não posso deixar de pensar no
porão.
Diantha se sentiu como uma idiota.
― No porão?
Viu-o tragar saliva. Precaveu-se do tenso movimento de
sua garganta por cima da gravata.
― Ontem à noite me desfiz de todas as garrafas do salão e
da biblioteca, mas...
«Oh!», exclamou Diantha para sim mesma.
― Mas há uma adega no porão, verdade?
Ele assentiu com a cabeça enquanto que estremecia de
forma visível. Diantha não compreendera de tudo até esse
instante.
Por fim o entendia.
Pôs os braços nos quadris.
― Nesse caso, também devemos nos desfazer dessas
garrafas.
― Não.
― Quer abandonar seu propósito, depois de tudo? O mais
fácil seria fazê-lo, claro está, sobretudo enquanto eu o obrigo
a...
― Não!
Seus olhares se entrelaçaram durante um longo instante.
Depois, o senhor Yale tomou uma entrecortada baforada
de ar.
― Parece que devemos descer ao porão.
― Posso ir sozinha ― ofereceu-se ela.
― Não.
― Acredito que deveria levar em conta das vezes que me
disse «não». ― Começando com o momento em que deixou de
beijá-la na estalagem de Knighton, embora depois continuasse
fazendo-o de todas as formas. Um momento que os tinha
levado até o ponto no que se encontravam.
14

Tal como aconteceram às coisas, no final o senhor Yale foi


de muito pouca ajuda, salvo pelo fato de que lhe fez companhia
e de que, pelo menos, assim ela poderia vigiá-lo e comprovar
que não caía fulminado. A adega era pequena e estava às
escuras, embora bastante afastada da cozinha, onde a senhora
Polley ficou adormecida.
O senhor Yale se apoiou na ombreira da porta,
aparentemente mais tranquilo. Entretanto, contemplava a
trilha de líquido que deixava cada garrafa no ralo com
expressão cada vez mais febril.
― Primeiro o clarete ― murmurou ele.
― Por que? É a bebida mais forte?
― Por Deus, não. Mas eu não gosto.
― Nesse caso deveríamos esvaziar essas garrafas em
último lugar. ― Olhou a garrafa de brandy que tinha mais perto
e logo desviou o olhar para as prateleiras cheias de garrafas
deitadas. ― Desarrolhar cada uma é uma tarefa pesada. Não
sei como fazem os mordomos todos os dias. Já começo a ter
bolhas nos dedos.
― Rompa o gargalo. ― Sua voz soava tensa.
Diantha não o olhou. Pedir-lhe-ia que subisse à planta
superior, mas sabia que não a obedeceria. Era um homem
muito forte. Afinal, já a tinha aguentado durante vários dias e
nesse momento estava fazendo isso. Por ela.
― Contra o que as rompo?
― Contra uma pedra. ― Sua expressão era séria.
― Fora?
― Fora.
― Está chovendo.
― Contra a parede do poço.
― O poço? Nesse caso, a água se...
― Está seco.
― Como sabe?
Olhou-a fixamente, com uma expressão um tanto velada.
― De acordo ― murmurou. ― Mas vou ter que tirar todas.
― Eu a ajudarei.
Colocou a capa enquanto ele fazia o mesmo com o próprio
capote, e fizeram várias viagens para tirar o conteúdo da adega
(cem garrafas no total) e levá-lo ao poço situado junto à porta
da cozinha.
O senhor Yale se sentou na cerca que rodeava o pátio, sob
a chuva, e a viu romper cada garrafa contra a pedra antes de
atirar seu conteúdo ao poço.
― Essa cheirava fatalmente. ― Enrugou o nariz.
― Não.
― Não pode cheirá-la dessa distância.
― Apostamos?
― Melhor que não. ― Diantha esvaziou outra garrafa e a
atirou ao poço. ― Vamos ter que compensar aos pobres donos
pelo saque de sua adega.
― Certamente.
A chuva caía brandamente sobre a reluzente pedra cinza
do poço e sobre a erva que se estendia entre eles, enquanto o
entardecer dava passagem de noite.
― Sabe que pode entrar, verdade? Posso terminar sozinha.
― Não gostaria de entrar.
Suspirou ao escutá-lo.
― Não gosta de perder de vista todas estas garrafas de
vinho, certamente.
― Não gosto de perder de vista uma moça bonita.
O coração deu-lhe um salto incômodo, uma tolice, é obvio,
porque embora se livrasse das acnes e dos quilogramas a mais,
não era bonita. Entretanto, era bem possível que ele estivesse
delirando.
― Se pode sentir o cheiro do vinho desta distância ― repôs
a fim de desentender-se dos amalucados batimentos do seu
coração, ― que mais pode cheirar?
― A você.
Outro salto, bem mais pronunciado.
― Em... sério? A que cheiro?
― A ar fresco.
Se houvesse dito algo tolo, como que cheirava a rosas,
teria sabido que sua paquera não era real. Em troca,
experimentou certo calor em alguns pontos chave, uma
sensação que não deveria gostar tanto. Fazia que se sentisse
acalorada e perdida, e já que não podia fazer nada para aliviar
a sensação, desejava que não a provocasse.
― Está falando metaforicamente, verdade?
― Não. Cheira a ar fresco de verdade.
Suas palavras a agradaram mais do que deveriam. Talvez
a senhora Polley tivesse razão e era um demônio que tinha sido
enviado para frustrá-la.
O que restava do vinho se perdeu pelo poço. Diantha
sacudiu as mãos intumescidas e o seguiu de volta à casa.
― Estou exausta.
― Eu também estou, e isso que somente olhei. ― O senhor
Yale correu a fechadura da porta principal, que se encaixou em
seu lugar.
― Como se sente?
― Não me pergunte isso.
― Por que não?
― Porque, contra o que se possa pensar, não a quero de
enfermeira. Pelo menos para mim.
«Contra o que se possa pensar?», perguntou-se ela.
― Por que não?
Ele a olhou, e Diantha teve a sensação de que seus olhos
pareciam em paz por um momento, com um tenro brilho
prateado à luz da vela.
― Bruxa. Faz muitas perguntas.
― Eu gosto quando me chama «bruxa». Que saiba que
ninguém mais o fez antes.
― Confesso que me surpreende.
― Ainda não fui apresentada a sociedade e em Glenhaven
Hall ou em Savege Park não há ninguém que me chame dessa
maneira. Salvo você. Mas nos visitou em poucas ocasiões. ―
Nesse momento, lhe ocorreu algo surpreendente: talvez não
tivesse sido sincera consigo mesma a respeito das lembranças
que tinha dele, talvez tivesse recordações de seus breves
encontros muito bem. ― Se retirará agora? ― conseguiu
perguntar apesar de sentir os ensurdecedores batimentos de
seu coração. ― Parece cansado.
― Estou, bastante. ― Fez-lhe uma reverência. ― Boa noite,
bruxa. ― Deu-se a volta e subiu a escada.
Diantha partiu à cozinha, que seguia quente pelo fogo, e
cobriu à senhora Polley com uma manta. Continuando, subiu a
escada e procurou a cama em que sua dama de companhia e
ela tinham dormido na noite anterior, com lençóis que seguiam
cheirando a mofo, mas que estavam secos. Aconchegou-se sob
as mantas de lã que cheiravam a cânfora e se deitou com seus
incômodos pensamentos, enquanto se preocupava com ele.
Quando chegou o novo dia, Diantha despertou com
renovada coragem e confiança. O sono curava todos os males e
ignorou suas ideias amalucadas. Todas as jovens se
apaixonavam pelos cavalheiros elegantes, de modo que não
podia castigar-se porque tivesse lhe acontecido o mesmo,
sobretudo porque o senhor Yale foi muito galante nestes dias.
Esse dia, recomeçariam a viagem e assim que encontrassem a
sua mãe, ele seguiria seu caminho e ela já não teria que pensar
nele a todas as horas.
Agarrou uma parte de pão da cozinha e retornou ao
vestíbulo com passo rápido. Ali o viu em pé na escada, com as
bochechas afundadas e os olhos frágeis.
― Senhorita Lucas, se fosse amável... necessito sua ajuda.
― Para estar de pé?
Ele quis esboçar um sorriso.
― Para conduzir a carruagem a fim de levar um recado.
― Um recado? ― sentia-se incapaz de formular frases
longas. O senhor Yale não se recuperou da noite para o dia.
Sentiu uma forte opressão no peito.
― Owen me disse que há um povoado perto, um que conta
com uma loja em que poderia comprar várias coisas que
necessito. Receio que não me encontro em meu melhor
momento esta manhã. Agradeceria que me prestasse sua
ajuda.
Diantha engoliu saliva para ignorar sua preocupação e o
impulso de rodeá-lo com os braços.
― Pode contar com ela, é obvio.
Viu-o apontar a porta, enquanto que, com a outra mão se
aferrava ao poste do corrimão com tanta força que tinha os
nódulos brancos.
― Depois de você.
― Mas não temos carruagem.
9
― Nas garagens há uma caleça modesta.
― Não temos um cavalo de arado.
― Galahad terá que rebaixar-se. Já o fez antes.
― Sério? ― Atravessou o pátio a seu lado em direção aos
estábulos.
― Alguma outra vez. Importa-lhe?
― Claro que não. Mas por que não envia Owen?
― Está dormindo, como deve ser. Trabalhou duro e merece
o descanso.
― É muito considerado de sua parte.
A caleça era muito modesta, sim. Tiveram que sentarem-
se muito colados, de modo que seus ombros e seus quadris se
roçavam. Diantha foi incapaz de contribuir à conversa, já que o
prazer desse contato era muito potente.
O povoado não se encontrava muito longe se seguissem a
estrada que transcorria junto ao arroio que serpenteava pelo
vale. Em realidade, não era um povoado muito grande, apenas
alguns edifícios e uma igreja de pedra de planta quadrada que,
ao lado da Abadia, parecia quase insignificante.
O senhor Yale parecia conhecer a estrada à perfeição, já
que lhe apontou uma casinha com uma grade de trepadeiras
que brilhavam sob a chuva. Desembarcou da caleça e lhe
ofereceu a mão.
Diantha a aceitou, e embora a sentiu forte, não podia dizer
que estivesse firme.
― Acredito que deveria ser eu quem o ajudasse a descer.
― Dado que é você que usa saias, acredito que devemos
nos arrumar assim.
Deu-lhe um aperto nos dedos.
― Dirá se posso ajudá-lo, verdade?
― Está me ajudando agora.
Dois homens saíram do edifício adjacente e os olharam
com muito descaramento. O senhor Yale colocou sua mão no
braço e os saudou com um gesto da cabeça.
― Bom dia, senhor ― disse um com os olhos
entrecerrados, embora os saudou com uma reverência. Era um
homem mais velho, de cara tosca e com barba, trajando como
qualquer outro habitante de Glen Village em Devon.
O senhor Yale devolveu o gesto com a cabeça antes de
abrir a porta, fazendo que soassem as campainhas.
O interior da casa cheirava a rosa, a romeiro e a sálvia.
Havia frascos marrons alinhados nas prateleiras, velas de
várias cores disseminadas pela estadia e potes cheios de ervas
secas e bonitas de flores secas. Uma mulher com uma
abundante juba grisalha coberta por uma enorme touca se
levantou de uma cadeira de balanço situada em um canto e se
aproximou deles.
― Ora, ora, senhor. Muito bom dia! ― Fez uma reverência.
― E bom dia para você também, senhorita. ― Entretanto, a
mulher não afastou o olhar do senhor Yale, algo do qual
Diantha não podia culpá-la. ― O que traz um cavalheiro e a
uma dama a minha loja em semelhante dia? ― Nesse momento,
a mulher a olhou de cima abaixo, observando-a com atenção.
Mas não com desdém, a não ser com aberta curiosidade.
― Bom dia, senhora. ― O senhor Yale tirou uma folha de
papel do bolso de seu colete. ― Teria a amabilidade de me
proporcionar estas coisas se dispuser delas?
A mulher o olhou enquanto desdobrava a folha e depois
baixou a vista. Franziu o cenho.
10
― Erva de São João... Cardo Mariano ... caiena moída...
Láud... ― Elevou a vista a toda pressa, para olhá-lo, ou essa
impressão deu a Diantha. ― Tem sorte, senhor. Tenho tudo isto
e algumas coisas a mais que talvez lhe interesse.
― Ah, albergava essa esperança.
A mulher lhe lançou um olhar penetrante antes de
desaparecer pela porta de trás da loja.
― O que é caiena moída? ― sussurrou Diantha, mas a
mulher já tinha reaparecido.
― É uma pimenta das Américas, senhorita. Secado e
moído até convertê-lo em pó.
― Uma pimenta? ― Olhou de esguelha ao senhor Yale,
mas este parecia concentrado nos saquinhos de papel que a
mulher estava preparando no mostrador. ― Para que se usa?
― Para alguns mal-estares ― respondeu a mulher,
enquanto colocava colheradas de um pó vermelho em um saco
com grande habilidade, depois do qual abriu um enorme pote e
tirou vários caules de uma planta seca com apenas uma linha
de cor púrpura nas flores murchas.
Diantha se inclinou sobre as ervas para as inspecionar.
― Isso deve ser o cardo Mariano. Mas não reconheço a
maioria das ervas que há aqui. Tem uma loja maravilhosa!
Como é que reuniu todas estas plantas?
― Um jovem cavalheiro que viveu por estas lareiras não faz
muito tempo me instruiu sobre as propriedades destas plantas.
― A mulher olhou para o senhor Yale. ― Mas não me interprete
mal, senhorita. Molly Cerwydn aprendeu a arte das ervas de
sua mãe e não houve ninguém melhor por aqui em cem anos.
Mas este cavalheiro, enfim, tinha viajando por todo o mundo,
onde havia truques curativos que eu desconhecia, como
compreenderá. Assim, ansiosa por melhorar meu trabalho,
obriguei-o a me contar o que tinha aprendido. Os habitantes do
povoado, os fazendeiros e inclusive os animais se alegraram
muito após.
― O que aconteceu ao jovem? ― Diantha acariciou a
tampa de um pote de cristal com a ponta do dedo. ― Segue
contando histórias de terras exóticas?
― Foi embora e só Deus sabe aonde. Embora seja bem
recebido quando queira voltar. Todos nos alegraremos de vê-lo
de novo.
O senhor Yale pigarreou com suavidade.
― Senhoras, se me perdoarem, vou comprovar se o cavalo
está bem. ― Deixou um punhado de moedas no mostrador e
saiu da loja.
A senhora Cerwydn envolveu os saquinhos em papel e os
atou com uma corda.
― Tome, senhorita. Agora bem... ― Olhou para Diantha
com atenção. Continuando, colocou a mão no bolso de sua saia
e tirou um frasco de cristal marrom do tamanho de sua mão.
Diantha a olhou com os olhos muito arregalados. Já tinha
visto uma garrafa assim antes, quando seu pai adoeceu. Antes
que morresse.
A herbanária lhe agarrou a mão, colocou-lhe a garrafa na
palma e assentiu com a cabeça.
― Assegure-se de que seu cavalheiro recebe os cuidados
que necessita.
Claro que ele não era seu cavalheiro.
Diantha fez uma reverência, agarrou o saco e saiu da loja.
O senhor Yale se encontrava ao outro lado da rua, com o
homem de barba. Depois, aproximou-se da carruagem, seguido
de perto por Ramsés. Quando pegou o saco que ela levava nas
mãos, precaveu-se da tensão de seu rosto.
― Voltamos para casa? ― perguntou-lhe em voz baixa.
― Voltamos para casa. ― Sua voz soava tensa.
― Do que estava falando com esse homem? ― Dom Barbas
seguia olhando-os, e Diantha viu à herbanária observando-os
da cristaleira, e também viu outro rosto aparecendo na janela
do edifício adjacente. ― Todo mundo morre de curiosidade
sobre nós.
― Gente do povoado. São assim. ― O senhor Yale agarrou
as rédeas.
― Não quer que eu conduza?
― Se for necessário, fará em seguida. ― Açulou Galahad
para que começasse a trotar.
Dom Barbas os observou afastar-se pela estrada.
― Não quer que esse homem me veja conduzindo,
verdade?
― Tanto faz o que esse homem veja. ― segurava com muita
força as rédeas.
― E por que...?
― A atividade me vem bem, senhorita Lucas. Proporciona-
me algo no que me concentrar.
Ela afastou a vista da estrada para cravá-la em seu belo
rosto, que estava mudado pela tensão.
― Tão mal se encontra?
Em seu queixo apareceu um tic nervoso.
― Tão mal me encontro
De volta na Abadia, uma vez que Galahad esteve sem
brida, o senhor Yale agarrou o frasquinho e o pacote da
herbanária, agradeceu-lhe e entrou na casa sem esperá-la. Ela
fez o mesmo, mas se dirigiu à cozinha, onde encontrou à
senhora Polley tossindo diante de um bule e de uma mesa com
massa de bolachas.
― Parece que encontrou açúcar. ― Diantha ajustou melhor
o xale de sua dama de companhia ao redor dos ombros.
― O moço o encontrou. ― A senhora Polley seguiu
amassando. ― É mais preparado que a fome. Não quero saber
em que cozinha falta agora.
― Roubou o açúcar da cozinha de alguém? ― Diantha se
sentou à mesa junto à bojuda figura de sua dama de
companhia. ― Pelo amor de Deus, mal tenho duas semanas
longe da casa de minha amiga e quebrei tantas leis que perdi a
conta. ― E isso que a senhora Polley não sabia nem a metade e
desconhecia as leis morais que tinha quebrado. Agarrou um
pedaço da massa, já que os granitos marrons do açúcar eram
muito tentadores. ― Suponho que sempre soube que não
acabaria bem. Como aconteceu com minha mãe.
― Nada disso, senhorita. Encontrá-la-á e arrumará as
coisas.
― Acredito que terá tempo de sobra para se recuperar do
resfriado, senhora Polley. Vamos ficar aqui mais tempo do que
tínhamos previsto. E se os habitantes do povoado começarem a
suspeitar aonde vão parar suas galinhas e seu açúcar, ou se
alguém vier pela vaca e reconhece a caleça em que fomos ao
povoado esta manhã, certamente acabaremos presos.
― Que é justo o que merece esse homem.
― Talvez. E o que eu mereço. Mas não você. ― Diantha
agarrou as gordinhas mãos de sua dama de companhia,
pulverizada com farinha por todos lados. ― Não quero que lhe
aconteça nada mau por minha culpa. Mas não posso partir
sem o senhor Yale. Entretanto, temo que não estará em
condições de viajar até dentro de alguns dias. Encontra-se
bastante mal e estou muito preocupada com ele.
A senhora Polley se soltou e voltou a agarrar o pau de
macarrão.
― Elizabeth Polley não é das que abandonam a sua
senhora por uma ridicularia.
Diantha olhou para o arco que conduzia ao vestíbulo e a
escada que a levaria para o lugar da casa onde ele se
encontrava. Agarrou-se ao banco para obrigar-se a permanecer
sentada.
― Temo que a situação pode acabar sendo mais incômoda
que uma simples ridicularia.
15

― Quer que a ordenhem, senhorita.


― Isso parece. ― Diantha se encontrava junto a Owen que,
como ela, tinha os cotovelos apoiados na portinhola da baia. Os
tristes mugidos da vaca ressoavam pelo estábulo. Os mamilos
da pobre criatura pareciam muito pesados. Entretanto, ela não
tinha a menor ideia do que fazer com uma vaca. A situação
talvez não fosse tão extrema. ― Suponho que não sabe
ordenhar vacas, verdade?
― Não, senhorita. Sei algo sobre ovelhas, isso sim.
― Mas não saberá ordenhá-la, ou sim?
O moço a olhou com uma estranha expressão.
Diantha cruzou os braços. O estábulo estava carregado de
umidade, já que o mau tempo persistia, como se a chuva
quisesse seguir caindo eternamente. Seu vestido e sua roupa
interior estavam úmidos, tinha o cabelo encrespado e
encaracolado, e era melhor não falar de seus sapatos.
Entretanto, somente contava com o vestido que tinha levado
durante o trajeto até a Abadia e com o que estava usando. E,
depois de três noites, estava farta de dormir sem travesseiro e
sem um bom fogo na lareira. Seu mundo inteiro parecia haver
se convertido em um úmido pântano.
― Suponho que será esperar muito que a senhora Polley
saiba ordenhar uma vaca ― murmurou.
― Isso acredito, senhorita.
― Embora ontem fez bolachas que estavam deliciosas com
tão poucos ingredientes, assim não deveríamos nos queixar.
― Pois não, senhorita.
― Além das estupendas papas de aveia e frutos secos
desta manhã, embora não levassem leite.
― Sim, estavam gostosas, senhorita.
― Disse que hoje comeremos verdura. Embora não parava
de tossir, saiu para pegá-las na horta.
― Eu gosto muito de verdura cozida, senhorita.
A vaca mugiu. Os cavalos seguiram comendo feno.
Diantha mordiscou o lábio inferior.
― Owen, quem vai ordenhar a vaca?
O moço colocou uma mão no queixo, como se fosse um
homem de grande dignidade e a acariciou como se acariciasse
a barba. Diantha conteve uma gargalhada. Entretanto,
pareceu-lhe estupendo ter vontades de rir. Não tinha visto o
senhor Yale todo o dia, embora Owen lhe havia dito que tinha
tirado Galahad pouco depois do amanhecer e a essas alturas já
tinha voltado para casa. Entretanto, se quisesse sua
companhia, já a teria procurado.
― Senhorita ― respondeu Owen, ― deveríamos perguntar
ao senhor Yale.
Ela riu entre dentes.
― Mas, Owen, ele é um cavalheiro. Residente em Londres,
nem mais nem menos. Os cavalheiros que residem em Londres
sabem dançar valsa e jogar cartas à perfeição. ― E
aparentemente, apontar a outro homem com uma pistola sem
mover um só músculo. ― Mas não sabem ordenhar vacas.
Owen deu de ombros.
― É possível. Mas alguém deve fazê-lo ou ficará doente, e
teremos que levá-la ao povoado e entregar o bolo.
Diantha sacudiu as saias com as mãos.
― Ficará doente. Embora talvez seja o mais ridículo que
tenho feito na vida, vou perguntar ao senhor Yale. ― Assim
poderia vê-lo. Necessitava uma desculpa.
Retornou à casa e subiu a escada em direção à sala de
estar, ansiosa como não tinha estado no café da manhã. Não o
encontrou ali. Abriu a próxima porta do corredor. O salão, que
era maior que a salinha, parecia muito luxuoso para utilizá-lo e
não tinha entrado na dita estadia desde o primeiro dia.
Entretanto, bateu à porta antes de abrir uma fresta.
O focinho de Ramsés apareceu e olfateou através do
espaço. Diantha abriu a porta de tudo.
A luz cinzenta do exterior entrava pelas janelas,
convertendo os lençóis de linho que cobriam os móveis e os
quadros em formas fantasmagóricas. Tudo salvo a silhueta do
homem que se encontrava de costas para ela, olhando por uma
janela de cristais empoeirados.
― Devo dizer a Owen que limpe esses cristais ― comentou
ela. ― Ou fazê-lo eu mesma, suponho. É o mínimo que posso
fazer por estas pessoas que nem sequer...
O senhor Yale se voltou para ela. Diantha sentiu um nó na
garganta. A pistola que empunhava brilhou com o movimento.
― O que... o que...? ― tentou perguntar, mas foi incapaz
de falar ao vê-lo caminhar para ela.
O coração pareceu entupir-se na garganta enquanto
cravava a vista na pistola.
― O que faz com isso? ― conseguiu sussurrar.
O senhor Yale lhe aferrou uma mão, colocou-lhe a arma
na palma e a obrigou a fechar os dedos a seu redor. O metal
era frio e pesado, mas o roce da mão do senhor Yale a desejou
muito abrasada.
― Esconde-a ― respondeu ele com voz muito tensa.
Ela assentiu com a cabeça de forma breve. O senhor Yale
introduziu a mão em um bolso da jaqueta. Em seguida, instou-
a a colocar a outra mão com a palma para cima, na qual deixou
cair algumas balas.
― E isto. Mas não as guarde juntas. ― Soltou-a. ― E
recorde em que lugar esconde tudo, senhorita Lucas.
Necessitar-lhe-ei dentro de um tempo.
― Não parece que, depois de tudo, deveria me chamar
Diantha? ― sugeriu ela com voz trêmula.
― Recorde onde esconde tudo, Diantha. E agora... ― Viu-o
respirar com dificuldade. Seus olhos luziam um brilho febril. ―
Agora, me deixe. E se por acaso for em sua busca e atuo de
forma... estranha, corra.
Isso fez com que seu coração se abalasse.
― Não o farei.
Viu-o apertar os punhos a ambos os lados do corpo.
― Diantha, suplico-lhe isso.
Partiu, mas ordenou a Owen que fosse lhe fazer
companhia. Depois, voltou para estábulo, onde a vaca seguia
com seu triste mugido. Acariciou a cabeça escura e o nariz
branco de Galahad, depois se apoiou nele e deixou que a
invadissem o medo, a confusão e um estranho e urgente
desejo. Mais tarde, retornou à casa e se dirigiu à cozinha, onde
poderia ajudar à senhora Polley.

****

O dia era uma tortura, uma constante busca de atividades


que ocupassem sua mente o bastante para distrai-lo da ânsia e
do mau funcionamento de seu corpo. O dia oferecia luz para
ler. Oferecia-lhe a faladora companhia de Owen se o moço não
estivesse ocupado fazendo alguma outra coisa. Permitia-lhe
imaginar Diantha movendo-se pela casa, convertendo-a em um
lar, da mesma forma que convertia um tronco de árvore em um
trono e às almas desencaminhadas em amigos íntimos.
Aparentemente, o dia durava muito mais horas que as que
demorava o sol em se pôr, e o obrigava a revistar os armários
da biblioteca do salão em busca de um baralho de cartas, ou
um tabuleiro de xadrez, ou algo com que pudesse entreter-se.
Cada respiração era um martírio e lhe recordava, até sumido
em um delirante atordoamento, que somente mantendo a
mente ocupada poderia sair do abismo. Da mesma forma que
superou anos antes a dor infligida por outros, sua mente
também superaria esse transe.
O dia era uma tortura.
Mas a noite era infernal.
A noite era infinita. Possuía garras que lhe cravavam nas
vísceras. Sussurrava-lhe que podia pôr fim à tortura até que
era incapaz de escutar qualquer outra coisa. A noite persistia,
hora após hora de escuridão. Visitava o estábulo, mas nem
sequer a presença de Galahad aliviava o pânico. Assim saía de
novo sob a chuva, tão tentadora com seus aromas e sua
frescura, subia até o redil e dormia entre as rochas.
Entretanto, o sono era outra forma de tortura. Sumia seu corpo
em contínuos tremores e sentia que os ossos ardiam. A agônica
dor de cabeça o deixava virtualmente cego. Mas o pior eram as
imagens das pessoas que tinha abandonado há tanto tempo e
dos lugares que tinha tanto tempo sem pisar. Na escuridão,
prostrava-se de joelhos e bebia água do rio, embora
despertasse nele uma sede impossível de saciar.
Em alguns momentos, era consciente de que ardia de
febre. De que delirava. Quando Owen chegava e Wyn se
obrigava a falar, tentando controlar o tremor de seus membros,
tinha a impressão de ver-se através de uma enorme distância.
Entretanto, não permitia que o moço ficasse muito a seu lado,
e quando partia, deixava que a escuridão o engolisse de novo.
Entretanto, a escuridão não chegava sozinha. Depois dela
e oculto até o ponto de que somente o espiava em certos
momentos, chegava o alívio.
Um alívio tão tenro e delicado como o roce do sorriso de
lábios rosados.
O alívio de que por fim... tudo tinha acabado.

****
No final do terceiro dia, Diantha não pôde suportar mais.
― Vou subir. ― Depois de limpar as mãos no pano que
usava na cintura, deu-lhe um puxão para livrar-se dele.
A senhora Polley, que estava esfregando uma caçarola,
olhou-a com o cenho franzido.
― Disse-lhe que não o fizesse. Tendo em conta que é o
mais honrável que tem feito até agora, acredito que deveria lhe
fazer caso.
― Isso não é certo, senhora Polley. ― Diantha colocou uma
taça com seu pires e um bule em uma bandeja, junto com um
prato de bolachas. Estendeu o braço para agarrar a chaleira
com a água fervendo. ― Owen disse que hoje não comeu.
A senhora Polley meneou a cabeça.
― Subirei com você.
― Não. Acabe de limpar tudo e vá para a cama. Ainda
segue tossindo e precisa descansar. ― Depois de verter a água
fervendo no bule de porcelana, colocou-lhe a tampa.
― Como também necessita você. Uma senhorita tão fina
limpando o pó e varrendo, jamais tinha visto!
― Necessito de atividade. ― Ou, melhor, necessitava uma
distração. Mas era ridículo que tentasse sequer não pensar
nele. ― Vou levar-lhe isto e, depois, irei também à cama. Boa
noite, senhora Polley.
Subiu a escada iluminada pela luz da vela que levava na
bandeja. À medida que subia, ia levantando uma nuvem de pó.
A casa era tão grande que demoraria semanas em limpá-la por
completo. Mas não tinha tanto tempo. Os quinze dias se
esgotavam e ainda não estava perto de Calais, a não ser
perdida no meio de Gales. Bateu na porta do dormitório do
senhor Yale. Não obteve resposta. Chamou de novo, com mais
força.
Quando a porta se abriu, sentiu que o coração lhe dava
um salto. Tinha as mangas da camisa arregaçadas, cujo tecido
colava aos braços pelo suor. Tinha o rosto magro, e que
marcavam muito as maçãs do rosto. O cinza de sua íris mal era
visível, dado que tinha as pupilas muito dilatadas.
― Disse-te que se mantivera afastada.
― Boa noite pra você também. ― Passou a seu lado, já que
ele se permitiu apoiar-se na ombreira da porta. Diantha
atravessou a estadia e colocou a bandeja na penteadeira,
depois se inclinou para acariciar a cabeça de Ramsés. ― Não
recordo que me dissesse isso. Disse-me que corresse se o visse
aproximar-se de mim. Mas agora não acredito que pudesse
perseguir nem a uma tartaruga. ― Agarrou o cabo da vela que
trazia para acender uma das velas que descansavam no
suporte da lareira e a usou para acender o carvão. ― Por que
tem a janela aberta? ― Aproximou-se para fechá-la. ― Vai pegar
uma pneumonia mortal.
O senhor Yale apoiou a cabeça na parede e fechou os
olhos.
― É mais possível que já esteja morto.
― Ainda não.
― Os fogos do purgatório me retém, enquanto que você,
minha Beatriz, tenta-me do Paraíso.
― Entretanto, é evidente que delira e possivelmente morra
logo se não comer.
― Preferiria que se fosse o quanto antes possível ―
murmurou ele.
O coração de Diantha pulsava com tanta força que
escutava seus batimentos no silêncio.
― Sem dúvida. ― Aproximou-se dele enquanto um
estranho formigamento lhe percorria o corpo, muito consciente
de que estava a sós no dormitório de um cavalheiro. ― Trouxe
chá e as bolachas da senhora Polley.
Ele arregalou os olhos, nos quais se refletiu a luz dourada
do fogo.
― Vai.
― Não.
Viu-o levantar as mãos, e depois a pegou pelos ombros
com força e puxou-a para aproximá-la. Suas feições lhe
pareceram muito sérias quando a olhou, inclinando a cabeça
para fazê-lo. Tinha um brilho febril nos olhos, que luziam a
expressão voraz do predador.
― Por favor ― suplicou-lhe, falando tão baixo que Diantha
mal escutou suas palavras.
Custava-lhe muito respirar. Endireitou os ombros, mas
não tratou de escapar de suas mãos.
― Por que me obrigou a esconder a pistola quando de toda
maneira tinha planejado matar-se de fome?
― É... ― respondeu ele com voz rouca. ― É... ― Era
evidente que lhe dava trabalho falar. ― Uma menina muito
difícil.
― Não sou uma menina e só trato de ajudar. Mas deve me
permitir que o ajude.
Por um instante, viu um brilho familiar em seus olhos.
Depois e como lhe custasse um enorme esforço, o senhor Yale a
soltou. Atravessou o dormitório com passos deliberados e
agarrou a bule, que tilintou ao se chocar contra a xícara
enquanto se servia do chá. As volutas de vapor subiram no ar
frio.
― Tome cuidado. Ainda deve estar muito quen... ― Deixou
a frase no ar ao ver que bebia o chá de repente e que depois se
servia outra xícara que também procedeu a beber com a
mesma rapidez. ― As bolachas também ― recordou-lhe.
― Vai ― replicou ele, embora seguiu de costas para ela.
― Não.
― Vai enquanto ainda lhe permito isso.
― Acreditava que o que lhe compramos na herbanária
eram remédios para...
― Requerem um pouco de tempo para que surtam efeito.
Diantha cravou o olhar no frasco marrom que descansava
no escritório.
― Ainda não tomou o láudano, verdade?
Ele inclinou a cabeça.
― Insensibiliza.
― Eu acredito que a insensibilidade e a vida é preferível à
sensibilidade e a morte.
― Dá no mesmo... ― apoiou-se na penteadeira com tanta
força que lhe puseram os dedos brancos.
Diantha compreendeu que estava tratando de guardar o
equilíbrio. Sentiu o entristecedor impulso de aproximar-se dele
para abraçá-lo e lhe permitir que a usasse de muleta.
― Wyn... ― sussurrou, ― acredito que deveria se sentar
antes de que caia ao chão.
― Não... em presença... em presença de uma...
― Não seja tolo. Oh!
Ao vê-lo cambalear, correu para ele e o abraçou tal como
tinha imaginado que o faria, como tinha sonhado, mas não foi
o bastante rápida nem tinha a força suficiente. Ambos
acabaram de joelhos no chão.
― Você é um tolo ― conseguiu dizer com o rosto enterrado
em seu ombro, sentindo o roce úmido da camisa que cobria
seus duros músculos. Sentiu seus tremores. Estava ardendo de
febre. ― Tolo de arremate.
Uma de suas trêmulas mãos rodeou a dele, que nesse
momento estava colocada sobre seu torso. Beijou-a no ombro
enquanto sentia que sua mão lhe esmagava os dedos. Inclinou-
se mais sobre ele e o beijou de novo. Seus lábios roçaram o fino
linho e ele tomou posse do sofrimento que o embargava.
― Certamente não recordará este momento depois ―
sussurrou enquanto que o beijava de novo no ombro. ― É um
consolo. ― Foi incapaz de deter-se. Estava possuída por um
desejo irracional, pela necessidade de estar com ele, de tocá-lo
e de saturar seus sentidos com ele.
Mas se deteve, porque nesse momento o importante não
era ela, o importante não era o que ela desejava. Wyn a
necessitava. Embora não dispusesse de dias nem de semanas
para atrasar-se tanto, por ele estava disposta a atrasar o que
precisasse.
― Vou dizer-te uma coisa ― murmurou com a bochecha
apoiada em suas amplas costas. Sentia os frenéticos
batimentos de seu coração sob a mão. ― Não pode morrer. Nem
pode seguir neste estado por mais tempo.
― Lembrar-me-ei deste momento, Diantha. ― Embora
falou em voz muito baixa, ela sentiu suas palavras pela
vibração de seu torso, uma vibração que se transladou a seu
corpo. ― Lembro de tudo.
Diantha fechou os olhos com força.
― De tudo não ― sussurrou.
― De tudo não ― repetiu ele.
― Há uma vaca que necessita que alguém a ordenhe com
urgência. E não sei o que fazer a respeito. Assim deve se
recuperar rapidamente e solucionar esse pequeno problema
para que não fique doente e morra. Ouviu? Agora é responsável
por duas vidas.
Levantou-lhe um braço. Um braço bastante pesado, mas
ele deve tê-la ajudado um pouco porque conseguiu lhe
introduzir o ombro sob a axila dele.
― Vamos. Chegaremos até essa poltrona. Está mais perto
que a cama.
― Não seria a primeira vez que durmo no chão. Tenho-o
feito muitas vezes.
― Ah, sim?
― Não é tão mau.
― Entretanto, dá-me tristeza que não dormiu nada desde
que chegamos a este lugar. Então, se não for dormir, é
preferível que fique na poltrona em vez de não dormir no chão.
De alguma forma, conseguiram chegar à poltrona. Era
uma cômoda poltrona de couro. Wyn fechou os olhos e, no final
de um momento, pareceu adormecer. Diantha o observou de
cima a baixo. Seu peito, que subia e baixava levemente com
cada respiração. As olheiras e as bochechas afundadas que
ressaltavam ainda mais suas preciosas maçãs do rosto. Sentiu
certa vergonha ao reconhecer que o simples feito de olhá-lo
provocava um ardor que não deveria experimentar.
― Não precisa que me vele.
Diantha deu um coice e entrelaçou os dedos.
― Dá-me medo que escorregue da poltrona e acabe no
chão.
― Não vou romper-me. ― Falava entredentes, que tocavam
castanholas. ― Não sou feito de cristal.
Melhor, era feito de aço. De aço temperado. Ardente como
na fundição. Deu uma olhada para a cama e sentiu que lhe
ardiam as bochechas. Velar um homem doente era um erro
dada sua inocência e sua juventude. Nunca tinha visto a cama
de um homem.
Através das cortinas do dossel, não viu manta alguma
sobre o colchão.
― É um tolo ― murmurou, depois que foi ao dormitório
que compartilhava com a senhora Polley em busca de várias
mantas e retornou.
― Pensava que tinha ido.
― Em busca disto. ― Cobriu-o com uma das mantas, que
acabou arrastando pelo chão. Entretanto, já não estava tão
assustada como no princípio e, embora tarde, não se atrevia a
tocá-lo nem sequer para agasalhá-lo melhor. ― Agora deve
comer.
― É livre para partir quando quiser ― acrescentou Wyn
com seu habitual tom de voz, que tinha escutado milhares de
vezes, embora parecia que as palavras soavam um tanto
trêmulas, como se lhe custasse um grande esforço pronunciá-
las.
― Você e o mar são graciosos, senhor Yale ― replicou ela,
que preferiu retomar ao tratamento formal. ― Mas não me
dissuadirá tão facilmente. ― Serviu-lhe outra xícara de chá,
agarrou várias bolachas e colocou nas mãos dele. A operação a
deixou sem fôlego, de modo que se afastou até a escrivaninha e
se sentou na cadeira de madeira. ― E agora, coma. E bebê.
Enquanto isso, eu lerei este livro e vigiarei para que não dê as
bolachas a Ramsés. ― Agarrou o livro que descansava na
escrivaninha. ― Blaise Pascal e os axiomas sem verificação da
geometria de Euclides. Bem, senhor Yale, você me surpreendeu
de novo. A menos que Ramsés tenha eleito o livro.
― Voltamos para senhor Yale e senhorita Lucas?
Diantha sentiu que lhe disparava o pulso. Wyn tinha os
olhos fechados e sustentava em uma mão a xícara de chá
vazia, apoiada sobre o joelho.
― Não ― respondeu enquanto soltava o livro. Depois de
abrir o frasco de láudano, aproximou-se de novo dele, agarrou
a xícara e verteu uma colherada de láudano. Depois, colocou-a
outra vez em sua mão.
Wyn a apanhou com a mão livre.
― Diantha, obrigado.
― Agradeça-me se não morrer ― sussurrou ela.
Viu-o esboçar o indício de um sorriso, mas ainda tinha
febre.
― Beba ― murmurou-lhe em voz baixa, em um intento de
dissimular o tremor de sua voz.
Esses olhos cinzas a olharam com intensidade e ao mesmo
tempo com uma grande vulnerabilidade, algo que jamais teria
imaginado em um homem como ele. No final a olhou com
confiança. Confiava nela!
Obedeceu-a. Uma vez que bebeu o láudano, Diantha levou
a xícara e a deixou na bandeja. Contemplou a preciosa peça de
porcelana grafite com florezinhas de cor azulada, folhas verdes
e a borda prateada. A xícara de uma dama. A dama que era a
proprietária de uma casa em que estavam vivendo como um
grupo de ciganos bem-educados. Perdidos no meio de Gales e
sem que ninguém soubesse.
Suas duas semanas acabariam dentro de três dias. Seu
pai enviaria uma carruagem a Brennon Manor para recolhê-la,
mas não a encontraria. Estava tão longe de Calais e de Bristol
como estava há quinze dias atrás.
O problema que queria resolver era importante para ela.
As duas estranhas semanas viajando com um homem que não
conseguia compreender, vivendo uma aventura que jamais
teria imaginado, não tinham diminuído o desejo de ver sua
mãe. A essas alturas, ansiava reunir-se com ela com mais
veemência que antes. Precisava vê-la. Precisava lhe fazer
perguntas. Necessitava respostas.
Entretanto, o desespero que deu procuração nela não
tinha nada a ver com o afã de estar de novo a caminho, a não
ser com esse homem que realmente não conhecia, embora às
vezes tivesse a impressão de conhecê-lo de toda a vida.
No final, pareceu adormecer. Diantha se dispôs há
ordenar um pouco o quarto, embora em realidade Wyn mal
tenha passado algum tempo nele. Sua jaqueta e sua gravata
estavam primorosamente dobradas sobre o capote. A seu lado,
encontravam-se as botas. Também viu uma bandeja onde
descansavam seus úteis apetrechos para barbear-se: uma
broxa branca, uma barra de sabão e uma navalha cuja folha
tinha um aspecto letal e que lhe provocou um calafrio. Não só
porque era a primeira vez que via os objetos pessoais de um
homem e nesse momento desejava algo muito escandaloso,
mas sim porque era evidente que Wyn não necessitava da
pistola se quisesse fazer-se dano ou fazer a outra pessoa.
Afastou o olhar da bandeja e começou a colocar os pacotes
de ervas na escrivaninha, olfateando-os à medida que o fazia. A
caiena moída fez que enchessem os olhos de lágrimas e acabou
espirrando, embora Wyn não se alterou.
Tirou o lençol de linho que cobria uma mesa auxiliar e
depois fez o mesmo com outro que protegia um quadro
pendurado na parede. Descobriu uma dama morena montada
em um cavalo cinza. Seus olhos, que faziam jogo com a
pelagem de seus arreios, eram sombrios. Muito sombrios para
seu gosto, de modo que voltou a cobrir o retrato. No final,
armou-se de coragem, aproximou-se da cama e abriu por
completo as cortinas. Aos pés do colchão descansava um jogo
de lençóis de linho. Fez a cama com o coração desbocado.
Quando acabou de ordenar tudo, ajoelhou-se no
empoeirado chão. Pela primeira vez em quatro anos, uniu as
mãos e inclinou a cabeça.
― Suplico-te que me permita isso, Senhor ― sussurrou,
com os olhos ainda cheios de lágrimas por culpa da caiena. ―
Suplico-te que me permita usar minha vida para fazer algo
importante.
16

Compatriotas britânicos:
Devido a circunstâncias imprevistas, meu agente em
Shropshire viu-se novamente impedido a perseguição de seu
rival do Clube Falcon. Em resumidas contas, começo a me
desesperar nesta particular missão.
Não, não cessarei em minha busca pela justiça! E sim,
perseguirei os membros deste dissipado clube até havê-los
desmascarado a todos!
Entretanto, enquanto esperava preocupada os informe de
meu agente, aprendi uma lição muito valiosa: o subterfúgio não é
meu forte. Prefiro me aproximar de frente a um homem, acusá-lo
de uma infâmia com justificação e sem recorrer a mistérios, e
escutar sua defesa com meus próprios ouvidos do que me sentar
em meu trono como uma déspota oriental que espera que seus
seguidores realizem em seu nome ações desprezíveis. Meus
métodos devem ser impecáveis para que minha vitória também o
seja.
Não mandei chamar meu agente, já tem muitos problemas
sem necessidade de que minha intervenção lhe ponha mais
trave na estrada. Entretanto, quando puder mover-se de novo,
informar-lhe-ei meu desejo de que abandone o projeto. De
momento. Porque quando este membro em concreto do Clube
Falcon volte para Londres, enfrentá-lo-ei e se verá obrigado a
responder ante vocês, povo de Grã-Bretanha, por seus excessos
criminosos.
Lady Justice

****

Minha querida dama:


Respiro enormemente aliviado. Deixe de perseguir meu
companheiro de clube, por favor. Mas me permita lhe dizer uma
coisa:
Eu já me encontro em Londres. Rogo-lhe que me persiga em
seu lugar. Se me encontrar, prometo-lhe um interrogatório muito
satisfatório.
Muito impaciente,
Peregrino
Secretário do Clube Falcon
17

Wyn não se recuperou essa noite, nem na seguinte, nem


no dia posterior. A quinzena que Dianth dispunha chegou a
seu fim tranquilamente enquanto trabalhava com o pau de
macarrão a massa das deliciosas bolachas de aveia da senhora
Polley à luz do entardecer. Olhou para Owen, que estava
ocupado com a manteigueira que tinham encontrado no abrigo
das galinhas. De algum jeito, o moço teria conseguido ordenhar
a vaca e tinha aparecido com um balde de leite que estava
muito bom. Diantha encheu a boca de água ao pensar na
manteiga. Recordou Glenhaven Hall e as bolachas com
sementes de gergelim da cozinheira. Recordou o ganso assado
com seu molho. Recordou a limonada, a gelatina de colágeno
de porco, o queijo com rangentes maçãs, a torta de carne com
batatas e também, é obvio, recordou ao homem que
descansava na planta alta.
― As tortinhas que poderíamos fazer com uma dúzia de
maçãs se as tivesse à mão... ― resmungou a senhora Polley
como se tivesse lido seu pensamento.
― Há maçãs, senhora. ― Os magros ombros do Owen
estavam inclinados para diante enquanto realizava seu
trabalho. ― No pomar, logo depois da cerca.
― Bom, e por que não o havia dito antes, menino?
Diantha quase as podia saborear.
― Amanhã pegarei algumas.
À manhã seguinte, contava com a desculpa perfeita para
escapar da casa e ir em busca do pomar. Ao entrar na cozinha
para tomar o café da manhã, descobriu que Wyn e a senhora
Polley estavam sentados à mesa, e o coração lhe subiu à
garganta. Usava somente uma camisa e o colete, as calças de
montar e as botas. Apresentava melhor aspecto. Não tinha as
bochechas vermelhas pela febre e o brilho que iluminava seus
olhos quando a olhou era o de sempre.
― Está melhor!
― Até certo ponto ― replicou ele.
Diantha esperava vê-lo sorrir. Entretanto, não o fez. Em
troca, ficou em pé.
Ela estendeu uma mão para detê-lo.
― Não! Esteve muito doente. Não deve ficar em pé só
porque eu tenha entrado.
― De fato, devo fazê-lo. ― Saudou-a com uma leve
reverência. ― Porque já saía.
«Já?», pensou ela.
― Ah! ― exclamou em voz alta.
O silêncio se impôs na cozinha. A senhora Polley
murmurou algo entredentes enquanto recolhia os pratos da
mesa.
Diantha tentou recuperar o uso da língua.
― Aonde?
Ele se deteve e depois respondeu:
― Ao salão.
Era incômodo. Antes jamais havia sentido esse
desconforto com ele, nem sequer durante a conversa que
mantiveram fora da estalagem de Knighton. Naquele tempo,
Wyn se empenhava em fazer o melhor para ela. Nesse
momento, parecia muito cauteloso.
― Bom, pois muito bem. ― Aproximou-se da mesa e o
rodeou como se passar tão perto dele não convertesse todos
seus ossos em gelatina. ― Alegro-me muito de que tenha
melhorado até o ponto de poder mover-se pela casa. Tinha-nos
muito preocupados. ― Olhou-o de esguelha. ― E, é obvio,
estávamos ansiosos por nos pôr de novo a caminho.
A senhora Polley pigarreou em claro desacordo.
― Iremos logo ― assegurou-lhe, com uma nota tão peculiar
na voz que Diantha se voltou para olhá-lo.
― Não tão rápido ― replicou ela. ― Não até que se encontre
bem de tudo. ― O coração lhe pulsava muito depressa.
― Obrigado ― disse Wyn, e partiu.
Diantha cravou o olhar na porta. Depois de um minuto, foi
incapaz de suportar a incômoda sensação que tinha no
estômago, assim como o silêncio de sua dama de companhia.
Caminhou seguindo o canal de irrigação, em direção à
cerca que lhe tinha indicado Owen, levando tão somente um
balde e seus confusos pensamentos. Seus sapatos se
afundavam ao pisar no suave musgo que crescia na margem do
canal de irrigação. A Abadia não era uma propriedade muito
diferente de Glenhaven Hall, onde sempre se mantinha
ocupada realizando tarefas singelas e passava os dias com sua
irmã mais nova e a servidão. Seu padrasto passava a vida
encerrado, ocupado com seus livros de texto e seus estudos. No
referente a seus filhos, preocupava-se muito mais por suas
filhas carnais, Serena, Viola e a pequena Faith. Diantha tinha
assumido seu papel de enteada há muito tempo. Entretanto, os
habitantes do povoado a tratavam com amabilidade e suas
visitas semanais a Savage Park sempre eram motivos de
alegria.
Londres seria diferente e sabia muito bem. Havia museus,
lugares históricos para visitar e lojas. Também veria damas
como as que às vezes visitavam Savege Park, mas em um
número muito maior. Damas de linhagem, elegantes e
sofisticadas. Magras e com cútis brancas. Lindas, como sua
amiga lady Constance Read.
O que pensaria Wyn dela com seu vestido enrugado e seus
sapatos molhados, com o cabelo emaranhado e feito um
desastre, e com suas espantosas maneiras ao tratá-lo com tão
escandalosa familiaridade? Era lógico que queria manter
distância dela.
Soltou um fundo suspiro e ao elevar a vista descobriu que
o pomar estava muito perto. No chão havia montes de maçãs e
algumas penduradas ainda nas árvores, vermelhas e verdes,
abandonadas e no ponto justo de maduras para que as
recolhessem. Agarrou uma de um ramo baixo.
Firme, doce e suculenta. Divina! Comeu-a e depois comeu
uma segunda, apoiada em um antigo tronco coberto de
líquenes, enquanto observava como as nuvens foram se
afastando.
Talvez seu padrasto não a desterrasse de Devon para
sempre depois de tudo. Talvez pudesse ir à cidade como tinha
planejado, e Serena a vestiria como uma dama, e participaria
de bailes e executaria os passos que mal tivera ocasião de
praticar em Devon. A única ocasião que realmente recordava foi
quando dançou com um bonito galés no terraço de Savege
Park.
Caminhou entre as macieiras, em busca das melhores
maçãs. Quando encheu três quartos do balde, colocou a alça
no cotovelo, agarrou uma maçã para comer pela estrada e saiu
do pomar. E então viu o homem.
O coração deu-lhe um salto. Caminhava com grandes
pernadas, aproximando-se dela.
E, nesse momento, o coração se deteve de tudo.
Tal como pensou aquele dia no moinho, o senhor Eads era
um homem enorme. Embora estivesse muito longe para
distinguir seus traços, reconheceu-o por sua musculatura.
«A pistola!», exclamou para si mesma. Devia chegar até
Wyn. Devia dizer-lhe. Devia lhe advertir. Arrojou o balde com
as maçãs no chão e pôs-se a correr. Entretanto, a cerca estava
muito longe. Perdeu um sapato e sentiu que o pé se afundava
na úmida terra. Mal podia respirar. As saias úmidas se
enredavam nas panturrilhas. Quando olhou para trás viu que
ele também corria e tinha reduzido à metade da distância que o
separava dela.
Presa do terror, seguiu correndo sem que seus pés
fizessem ruído sobre a erva. Ao chegar perto, lançou-se sobre
os degraus em busca de um pau. Aferrou-o e procurou o
seguinte. Subiu outro degrau e se agarrou ao de acima. Outro
mais...
E ele a apanhou lhe segurando pela capa. Diantha
recebeu o puxão e escorregou, caindo para trás. O senhor Eads
a apanhou, rodeando-a com os braços e colando-a a seu
imenso torso. Embora fosse inútil, lutou para escapar de seu
abraço, grunhindo e lhe golpeando os braços com os punhos
até que ele decidiu lhe aferrar também as mãos.
― É uma moça de brio ― comentou ele, imperturbável. ―
Mas não vou fazer-te dano, assim já pode ficar quietinha.
― Ficarei quietinha quando me soltar! ― Atirou-lhe um
chute em uma tíbia e ele gemeu.
Seus braços pareciam esculpidos em pedra. Entretanto,
em vez de soltá-la, sacudiu-a e deu-lhe volta no ar a fim de que
o olhasse no rosto.
― Vais deixar de lutar? ― Olhou-a com uma expressão
absolutamente ameaçadora.
Seus rasgos eram fortes e masculinos, bastante atraentes
para aquelas mulheres que preferissem homens musculosos
capazes de quebrar-lhe um ombro como se fossem bonecas,
algo que Diantha não apreciava. Ao menos não a parte da
musculatura. Preferia uma compleição mais atlética e esbelta.
Wyn não a tratava dessa maneira, mas bem a agarrava com um
firme propósito. Esperava que o senhor Eads não tivesse o
mesmo propósito que Wyn quando a abraçava dessa forma.
Retesou-se entre seus braços.
― Deixarei de lutar se você me solta.
O senhor Eads arqueou uma sobrancelha.
― Farei se prometer não começar a correr de novo.
― Seria uma completa idiota se não saísse correndo, não
acha?
Por um instante, o escocês a observou com a mesma
intensidade com que o fez no moinho.
― Vim por meu cavalo.
― Suponho que sim, mas não me cabe dúvida de que
também veio pelo senhor Yale. Entretanto e tal como já lhe
disse, não vou permitir-lhe que lhe faça mal. Terá que me atar,
me amordaçar, me encerrar no abrigo com as galinhas e,
depois, fechar a porta com chave. ― Nesse momento e embora
fosse muito tarde, mordeu-se a língua. Era ridículo lhe dar
ideias. Não obstante, tinha a cabeça embotada. Não gostava
que a estreitasse contra seu peito dessa maneira e começava a
pensar que acabaria vomitando. Supunha que a boa notícia era
o descobrimento de que nem todos os abraços eram-lhe igual
de emocionantes. ― E, agora, faça o favor de me soltar.
Por surpreendente que parecesse, obedeceu-a. Diantha
retrocedeu um passo, embora o fizesse de forma instável, e
jogou uma olhada para a casa, que se encontrava bastante
longe. Ele a olhou com os olhos entrecerrados. Depois,
separou-se dela, passou sobre a cerca e pôs-se a andar para a
casa.
Diantha passou sobre a cerca como facilmente pôde.
― O que está fazendo? Aonde vai? ― Correu atrás dele, que
caminhava com grandes pernadas. ― Prometeu-me isso!
― Só prometi te soltar.
― É certo. Mas, por favor, o rogo. Suplico-lhe! ― Agarrou-o
por um braço e puxou-o com todas suas forças. ― Por favor!
Não deve lhe fazer dano!
O escocês se deteve e Diantha acabou dando-se de bruços
com ele. Depois de afastá-la, os olhos azuis do senhor Eads a
olharam com seriedade. Tinha franzido o cenho.
― Pergunto-me, moça, por que me acha capaz de
machucar a um homem que me derrotou diante de você, em
outra ocasião, sem que você tenha testemunhado isso um sem-
fim de vezes antes.
Diantha ficou boquiaberta.
― Suponho que não tinha entendido bem até agora.
― O que lhe acontece?
― O que lhe acontece? ― «Ai, Meu Deus!», pensou. Fora dar
com a língua nos dentes. ― Não o compreendo. Ao senhor Yale
não acontece nada. É que não quero que você o surpreenda de
repente.
― Tenho entendido que nada o surpreende. ― Cruzou seus
imensos braços diante do peito. ― Moça, não sou tolo. Vai
dizer-me a verdade agora mesmo ou além de meu cavalo levarei
algo mais. ― Olhou-a de cima abaixo. Sua ameaça era muito
clara. ― Algo que deixarei diante do duque se for preciso.
― Diante do duque? ― Estaria falando do duque de Wyn?
perguntou-se.
― Sua Excelência não tomará muito bem que se
interponha em seu caminho.
O medo lhe provocou um nó na garganta e uma enorme
vontade de gritar. Entretanto, se gritasse, Wyn não viria salvá-
la. Era ela quem deveria salvá-lo.
― Senhor Eads ― disse enquanto respirava fundo para se
tranquilizar. ― Direi o que deseja saber.
A expressão do escocês se tornou satisfeita.
― Vais fazê-lo?
― Sim. ― Detestava manipular um homem dessa maneira,
mas o Senhor não podia lhe haver concedido uma mente capaz
de fazer planos temerários e esperar que a usasse para fazer o
bem de outros. ― Mas antes eu gostaria que me falasse de sua
irmã.

****

― Torre e rainha quatro. Xeque.


A luz do sol entrava pelas janelas da biblioteca e caía
sobre o tabuleiro de xadrez, iluminando o rosto de Owen, que
via através da fumaça do charuto.
Wyn estudou a disposição das peças. O aroma do tabaco
aliviava a sede que ainda o embargava, embora fizesse bem
pouco por aliviar o desejo. Cada vez que Diantha entrava em
alguma estadia, como tinha acontecido essa manhã na
cozinha, era incapaz de afastar os olhos dela. Movia-se com
uma elegância inata, com as costas reta e uma postura muito
tentadora, alheia aparentemente ao fato de que o deixava
fascinado. Embevecido! Desejava-a com ferocidade.
Sabia que semelhante desejo se devia à privação a que seu
corpo se via submetido. Embora também soubesse que
nenhuma mulher o tinha fascinado até conhecê-la.
― Esqueceu-se do outro cavalo, meu amigo. ― Jogou uma
olhada ao charuto que descansava sobre o cinzeiro. Era o
último e devia estender seu final todo o possível, como tinha
feito em mais de uma ocasião com uma taça de brandy.
Entretanto, tinha perdido essa habilidade. A essas alturas, via-
o claramente. ― Convido-te a que reconsidere.
Owen assobiou entredentes.
― É um jogo complicado, senhor.
― Dominará. Possuí uma inteligência natural. ― Deslizou
o cavalo negro pelo tabuleiro. ― Também consegue desafiar à
autoridade, um traço que a um homem pode lhe ser muito útil.
O moço meneou a cabeça e agarrou sua torre.
― A pobre vaca não se importou em voltar para casa. Mas
senhor, de verdade que não sabia que teria que ordenhá-la.
― Acreditava que soltava o leite da mesma maneira que
alguém se tira um chapéu?
― Já não, senhor. Suponho que deveria aprender a
ordenhar. ― Estudou a disposição das peças no tabuleiro. ―
Meu tio sempre diz que um homem não pode ganhar o pão só
com a cabeça.
― Humm. Ouvi-o antes. ― Tinham-lhe repetido tantas
vezes quando era pequeno, que tinha perdido a conta. ― Seu
tio se equivoca.
― Senhor?
Wyn assentiu com a cabeça.
O moço se concentrou de novo na partida. Sua mão se
aproximou do bispo branco.
Wyn pigarreou.
― Meu cavalo?
― Você é todo um cavalheiro, sim, senhor! ― Diantha
irrompeu na biblioteca como se fosse uma cascata de sol. ―
Senhor Yale, ordenhou a vaca.
Owen ficou em pé de um salto e tirou a boina.
― Bom dia, senhorita.
― Olá, Owen. Olá, Ramsés. ― inclinou-se para acariciar a
cabeça do cão com suavidade, enterrando os dedos em seu pelo
emaranhado. ― Owen, já que, por fim, brilha o sol, poderia
banhar o pobre Ramsés?
― Sim, senhorita. Agora mesmo. ― Estava muito vermelho.
― Vamos, moço. ― Apressou-se a sair da biblioteca
acompanhado pelo cão.
Diantha cravou seus olhos azuis em Wyn.
― Como você fez? Como ordenhou a vaca? ― Usava laços
no cabelo, suas bochechas estavam transbordantes de vida e
ele não podia deixar de olhá-la. Era deslumbrante.
― Suponho que como de costume ― conseguiu responder.
O rubor de suas bochechas se acentuou e nesse momento
recordou que tinha usado essas mesmas palavras em outra
ocasião, quando a ensinou a respirar.
Entretanto, Diantha recuperou a compostura em seguida.
― Não é habitual que um cavalheiro ordenhe uma vaca. A
senhora Polley acaba de me dizer que foi você, não Owen.
Pareceu-me incrível. Mas aqui estou assegurando-me que é
certo. ― Nada podia vencer a seu sorriso.
Wyn se voltou para o tabuleiro de xadrez. O motivo pelo
qual não se pôs de pé quando ela tinha entrado não estava
relacionado com uma debilidade física, mas sim pela rigidez
que aparecia em certa parte de seu corpo cada vez que ela fazia
entrada de sua presença.
― Aparentemente, tenho múltiplos talentos.
― É verdade, Wyn. Nunca conheci um cavalheiro como
você.
― Diantha, dadas as circunstâncias, não sei como
interpretar essas palavras. Porque, é obvio, admite não ter
conhecido muitos cavalheiros.
― É verdade. Meu círculo social é muito limitado. ―
Passou um dedo pelo cristal da porta de uma vitrine. ― A
senhora Polley limpou o pó. ― Abriu a porta e tirou um livro. ―
Seria um ama de chaves estupenda. Bess, a ama de chaves de
Glenhaven Hall, não fica adormecida, é obvio, mas não saberia
defender-se na cozinha. Claro que também poderia abrir uma
confeitaria. ― Olhou-o de esguelha com um sorriso nos lábios.
― E Owen poderia abrir uma escola para educar a
enrubescidos folgadões.
Wyn se permitiu um sorriso.
― Está caidinho por você.
― É um ladrão.
«Não exatamente», pensou Wyn.
― Conseguirá que nos descubram. ― Devolveu o livro a
seu lugar, agarrou outro e franziu os lábios para soprar sobre a
capa, levantando uma nuvem de pó. ― Mas, claro, também nos
convertemos em ladrões ― acrescentou enquanto passava as
páginas rapidamente com um dedo. ― Como é verdade, o
senhor Eads veio em busca de seu cavalo. ― colocou o livro
diante do peito, a modo de escudo. ― Mantivemos uma
conversa e depois partiu.
Wyn ficou de pé com muito cuidado, porque embora nesse
dia estivesse melhor, o coração lhe pulsava com inusitada
rapidez. Aproximou-se dela.
― Pergunto-me sobre o que falaram ― replicou com voz
rouca.
Diantha o olhou de cima abaixo.
― Não deveria fazer esforços. Está há dias débil, embora
dizer dessa forma é ficar muito curta de palavras.
― Por que não deveria fazer esforços? Está me distraindo
para evitar a conversa? ― deteve-se frente a ela e o perfume
que captou era familiar, embora não fosse seu aroma habitual.
― Colocou perfume.
― Sim ― reconheceu, piscando. ― Enfim, estava preste a
me dar um sermão. Continua delirando?
― Bem, diria que é muito fácil me distrair. Por que Eads
partiu sem falar antes comigo?
― Disse-lhe que seria muito fácil aproveitar-se de você em
seu estado atual. Dado que se orgulha de ser um homem de
palavra, pensou que era melhor partir e voltar quando se
encontrar melhor.
― Isso ele disse?
― Não com tantas palavras, mas sim.
É obvio. Duncan Eads era um homem honrável que tinha
escolhido um mau caminho. Tão mau como a missão que ele
mesmo tinha aceitado e que tinha acabado aproximando-o de
uma jovem inocente com lábios rosados que tinham sabor de
mel e pecado.
Afastou-se dela e retornou à mesa. Diantha atribuiria a
sua enfermidade. Que um mau raio partisse Carlyle por não
estar em casa quando deveria ter estado. Se Kitty Blackwood
não chegasse no dia seguinte, acabaria atando Diantha Lucas,
jogar-lhe-ia sobre o lombo de Galahad e ele mesmo a levaria a
Londres.
― Onde encontrou o perfume? ― Uma pergunta cuja
resposta conhecia perfeitamente.
― Se está me perguntando se Owen o roubou, não o fez.
Encontrei-o no dormitório principal. ― Devolveu o livro à vitrine
e passou os dedos pela fileira de volumes com seus lombos
dourados, depois tirou outro. ― A senhora Polley preparou
umas deliciosas tortas de aveia com leite cuja receita encontrei
ontem aqui. ― Abriu o livro e pareceu olhá-lo. Entretanto, de
repente pareceu ficar paralisada. ― Tem fome? ― Piscou várias
vezes, mas não elevou a vista. ― Refiro-me se gostaria de comer
tortas de aveia. ― À luz que entrava pelas janelas fazia seu
cabelo brilhar como o carvalho brunido. Estava rodeada por
luzes douradas.
― Sou galés, Diantha. Uma indigestão de aveia foi o que
me impulsionou a beber em excesso.
― De verdade?
― Não.
Ela inclinou a cabeça.
― Por que começou a beber em excesso?
― Para poder falar com meu pai e com meus irmãos.
Viu-a franzir o cenho.
― Bebiam todas as noites ― explicou ele sem mais, como
se fosse algo singelo. ― Se eu não o fizesse, mostravam-se...
pouco interessados em minha conversa.
― E por que não os mandou ao diabo?
Wyn arqueou uma sobrancelha e a observou fazer uma
careta com esses deliciosos lábios.
― Não disse que... «fossem-se ao diabo» porque se não me
mostrava disponível para que eles se metessem comigo,
escolhiam minha mãe como vítima.
― Oh!
― Pois sim, oh! ― Colocou a rainha branca no estojo
forrado de veludo e, como sempre, pôs a seu lado o rei negro,
tal como sua tia-avó acostumava fazer. Era muito curioso que
um gesto assim despertasse outras lembranças, como o aroma
de um perfume em uma habitação empoeirada. ― Mas isso são
águas passadas que é melhor manter no esquecimento.
Diantha se aproximou devagar da janela com um livro nas
mãos.
― Bom, este é maravilhoso. ― Tirou uma página solta do
livro, desdobrou-a e leu em voz alta: ― «Regra que todo homem
deveria seguir para converter-se em um verdadeiro cavalheiro».
Wyn fechou a tampa do estojo enquanto continha o fôlego.
Diantha se aproximou de uma cadeira e se sentou sem afastar
os olhos da página.
― Ora, devo-lhe ler tudo isso! Você vai adorar. ― Elevou a
vista.
Só atinou a assentir com a cabeça para animá-la a
continuar. O coração lhe pulsava muito devagar a essas
alturas. Não pôde resistir.
― Está escrita em ordem descendente. «Regra número dez»
― ela disse. ― «Um cavalheiro sempre deve atuar com honra e
ser honesto com outros homens, mesmo que sejam inferiores, de
sua mesma categoria ou de nível superior.» Suponho que é um
bom conselho, verdade?
― Muito bom.
― «Regra número nove: Um cavalheiro sempre deve antepor
o bem-estar de uma dama ao seu próprio.» Esta eu gosto muito.
― Sorriu, revelando suas covinhas. ― «Regra número oito: Um
homem só será um cavalheiro se jamais atuar em contrário a si
mesmo.» ― Franziu o cenho. ― Acredito que em uma ocasião
disse algo similar.
― Ah, sim? ― Deveria partir, pensou Wyn. Deveria
aproximar-se dela, e tirar-lhe a folha da mão e distraí-la com
alguma outra atividade. Deveria convencê-la a jogar xadrez. Ou
lhe dizer que queria provar as tortas de aveia. Ou levantar-se
da cadeira e beijá-la até que somente pudesse pensar em
acariciá-lo. ― Qual é a número sete?
― «Um cavalheiro jamais deve blasfemar diante de uma
dama». Ah, muito bem! As damas se ofendem com muita
facilidade. ― Suas covinhas fizeram novamente ato de
presença. ― «Regra número seis: As damas gostam de que se
reconheçam seus êxitos, mas uma dama virtuosa é imune às
adulações bobas. "As adulações devem ser justificadas, jamais
pronunciadas com o fim de adular.» Esta é tremenda, não acha?
― Às damas não gostam de lisonjas bobas.
― Não só às damas. Todas as mulheres. A regra número
dois deixa bem claro. «Um cavalheiro deve tratar uma dama com
todo respeito, consideração e reverência, seja de origens
singelas ou de linhagem, feia ou bonita, pobre como uma
camponesa ou enriquecida como uma princesa.» ― Baixou as
mãos ao regaço e esboçou um sorriso desavergonhado. ― Já
sabe que não deve adular à senhora Polley com bobagens.
― Assegurar-me-ei de não fazê-lo.
― É obvio que fará. E ela lhe jogará isso na cara. A ver,
acredito que a regra número um é minha preferida. «Se uma
dama for amável, generosa e virtuosa, um cavalheiro deve
cumprir todos seus rogos. Não deve negar-se a agradá-la.» ―
Diantha encurvou os ombros. ― Deveria cumprir esta regra
inclusive com as damas que não possuem todas essas virtudes,
porque assim se converterá em um cavalheiro imensamente
melhor. A verdade, alguém deve ter escrito estas regras
pensando em você. ― Sua voz era mais suave, menos alegre. ―
Desde a primeira à última.
Wyn sentiu que o estômago ardia.
― Não tem uma regra que anima um cavalheiro a
aproveitar-se de uma jovem inocente quando está ébrio?
― Não. Essa não está na lista. ― Esses olhos azuis se
elevaram, iluminados por um brilho esperançoso. ― Mas
poderíamos acrescentá-la.
Wyn ficou em pé e saiu da biblioteca.
Não recordava todos os detalhes daquela noite na
estalagem de Kingston. Sim, recordava havê-la tocado, mas não
o que sentiu ao fazê-lo. Apesar dos lapsos, tinha claro que foi
incapaz de usá-la tal como tinha pretendido fazer, cego pelo
desejo. A ideia era-lhe repulsiva. Era a única noite de sua vida
que não conseguia recordar com total claridade. Esse fato o
tinha torturado mais que a febre que tinha sofrido durante as
últimas duas semanas.
Nesse momento, percebeu que estava no vão da porta dos
aposentos de sua tia-avó. O chão estava coberto por uma grosa
capa de pó, em que se viam os rastros de Diantha que
chegavam até a penteadeira. Fiel a sua natureza curiosa e
aventureira, tinha estado explorando.
Agarrou o frasco de perfume, com cristal esculpido de um
intenso tom violeta que brilhava inclusive na penumbra como
se fosse uma pedra preciosa. Ele mesmo tinha comprado em
Viena. Tinha viajado até essa cidade em busca, supostamente,
de outra jovem aristocrata desaparecida por ordens do diretor.
Colin tinha-lhe dado as ordens e se pôs a caminho sem Leam,
seu companheiro, que naquela época já estava cheio de seu
trabalho. Entretanto, era consciente de que estavam-no
preparando para algo mais, de que sua missão não era como as
anteriores que tinha feito. A jovem não era a verdadeira razão
de sua viagem ao estrangeiro. A verdadeira razão, tal como
descobriu, era ele mesmo.
Ali, nas estadias secretas do Congresso de Viena, foi
examinado pelos homens que regiam a Inglaterra. Ficaram tão
impressionados que todos o aclamaram. Suas habilidades eram
muito valiosas para esbanjar em jovens fugitivas, afirmaram. A
segurança de Grã-Bretanha dependia de seus interesses no
estrangeiro. O diretor o liberaria de seu dever e começaria a
trabalhar para eles imediatamente. Auguraram-lhe um futuro
dourado. O moço que haviam vagabundeado uma e outra vez
por seu brilhante intelecto era recompensado ao chegar à idade
adulta.
Durante os três meses que passou em Viena, deixou-se
embriagar. Pelas adulações desses homens poderosos, pelo
melhor tabaco, pelo licor mais delicioso, pelas mulheres de
sangue aristocrata que nuas eram iguais as demais, mas que
lhe pareciam mais tentadoras porque estavam proibidas.
Enquanto elas lhe ofereciam seus corpos, seus maridos
falavam com orgulho de ideais, de vitórias e das pessoas de
todo o mundo que serviriam a Grã-Bretanha. Durante todo
esse tempo, não obstante, o sangue galês que corria por suas
veias, o mesmo sangue que tinha lutado durante centenas de
anos para livrar-se do jugo dos reis ingleses, dizia-lhe que as
promessas desses homens poderosos brilhavam como os
diamantes, mas fediam como os esgotos.
Fugiu com o pretexto de que sua tia-avó tinha adoecido
depois do Ano Novo e descobriu que era verdade.
Ficou com ela até que recuperou a saúde, e enquanto isso
o encorajava a não temer o orgulho de que seu pai e seus
irmãos sempre o tinham acusado. Tinha motivos para sentir-se
orgulhoso. Tinha obtido todo aquilo que se propôs com o suor
de sua testa e com sua inteligência. Sua tia lhe disse que
tomasse a decisão que lhe ditasse o coração.
Aceitou trabalhar para esses homens. O duque de
Yarmouth deu-lhe sua primeira missão: encontrar uma
traidora e assassiná-la.
Entretanto, no final percebeu que não era uma traidora.
Tratava-se de uma menina, que lhe suplicou que acreditasse
nela. E que suplicou sua ajuda.
Abriu o frasco de perfume e o aroma chegou ao nariz.
Fechou os olhos e viu de novo os olhos sérios de sua tia-avó,
tão parecidos com os de sua mãe. Cinzas, inteligentes e tenros.
Mas nem sempre eram sérios. Sua tia-avó lhe ensinou a rir.
Ensinou-lhe muitas coisas, mas quase tinha esquecido de
como sorrir. Tinha esquecido como rir até se encontrar com
certa jovenzinha leal, fiel e forte, e que adorava rir, adorava a
diversão, procurava a felicidade em cada curva da vida, que ele
teve que viver. Tinha-lhe ensinado um tipo de valentia que
também tinha esquecido.
Soltou o frasco de perfume e retornou à biblioteca.
Diantha se encontrava junto à janela, contemplando o
crepúsculo, tão quieta como uma sílfide que estivesse pronta
para sair voando a qualquer momento, mas atenta a seus
passos. Voltou-se imediatamente.
― Quando me encontrei com o senhor Eads, atirei o balde
de maçãs que tinha recolhido ― disse. ― Com o nervosismo de
conseguir que se fosse com seu cavalo, esqueci-me de recolhê-
las. E agora já está muito escuro para sair. Passei quase todo o
dia desejando comer tortas de maçã, então confesso que estou
muito desiludida.
Esses olhos azuis reluziam na penumbra com um brilho
sagaz. Não era uma jovem inocente, como ele tampouco era o
menino que seu pai castigava por rancor. Diantha era uma
mulher decidida e com um propósito em mente, e com essas
palavras, cuidadosamente escolhidas para evitar o que existia
entre eles, estava-lhe dizendo que não permitiria que lhe
impedisse de alcançar seu objetivo.
― Amanhã iremos ao pomar e poderá tentá-lo de novo ―
replicou ele. ― A última atividade que faremos antes de partir.
Viu-a pestanejar várias vezes, o único gesto que traiu sua
surpresa. Nesse momento, voltou um pouco o rosto e o olhou
de esguelha.
― Eu adoraria aprender a ordenhar a vaca.
― Ah, sim?
Viu-a esboçar o indício de um sorriso que, no final,
apareceu em toda sua glória. Wyn sentiu o impacto desse
sorriso em todo o corpo. Certamente fosse o homem mais tolo
que pisava na face da terra.
Pode apressar-se Kitty Blackwood. Porque se não
aparecesse logo e levasse Diantha, ele acabaria fazendo uma
insensatez que prejudicaria a ambos. Faria algo muito pouco
cavalheiresco.
E, para essa ocasião, nada o deteria.
18

― O meu vestido está cheirando a mofo. ― Diantha o


sustentou à luz matinal que se filtrava pela janela.
― É por culpa de toda esta chuva. ― A senhora Polley
agarrou o outro vestido de Diantha. ― E este está terrível sem
um engomado.
― Talvez possamos lavá-lo para que desapareça o mofo. ―
Diantha esfregou a mancha que havia na bainha do vestido de
musselina de listas. O vestido verde estava verdadeiramente
mal, com a prega desfeita e muita enrugada depois de ter
tratado de escapar do senhor Eads no pomar.
Suspirou. Essa noite queria parecer toda uma dama.
Talvez ter um aspecto tão elegante como a dama a quem
pertencia a casa onde se refugiaram.
― Ainda não olhamos no apartamento de cobertura!
― Não penso rebuscar nos armários dos outros.
― Senhora Polley, você golpeou um estranho na cabeça
com uma queijeira, mas se nega a dar uma olhada em um
apartamento de cobertura em busca de um ferro?
― Uma pena que rompesse essa queijeira. ― A senhora
Polley meneou a cabeça. ― Se tivesse sido um atiçador, teria
usado melhor.
Diantha conteve uma risada e caminhou pelo corredor
para dirigir-se à porta que dava ao apartamento de cobertura.
Wyn tinha saído para dar um passeio com Galahad e Owen
estava recolhendo ovos. Tinha os pés frios, mas podia
perambular em regata e anáguas sem ter que preocupar-se
com o decoro. Wyn já lhe tinha visto os seios nus, é obvio, mas
não se recordava, assim era como se não o tivesse visto.
Subiu a escada que conduzia ao apartamento de
cobertura, uma estadia cujo teto apresentava um ângulo muito
pronunciado. Como o apartamento de cobertura de Glenhaven
Hall, havia baús de viagem e móveis velhos por toda parte.
Encontrou um baú que não estava fechado com chave e ao
abri-lo o penetrante aroma das bolas de cânfora alagou tudo.
Ao ver o conteúdo, suspirou encantada. Foi tirando um vestido
atrás do outro, enquanto acariciava a musselina, a seda e a lã,
e voltou a suspirar, já que sentia falta de sua própria roupa.
Desviou o olhar a um baú próximo. Abriu-o. Sapatos,
botas, chinelos, lenços, anáguas, regatas, fitas, bolsas, ligas,
meias, xales, casacos e lenços com iniciais bordadas (todos os
objetos cheirando a cânfora) acabaram em suas mãos.
Entretanto, o aroma era forte. Podia viver um dia com o nariz
enrugado enquanto que o resto de sua pessoa não estivesse.
Agarrou um vestido e o colocou frente ao corpo. Era vários
centímetros mais curto. Ver-lhe-iam as anáguas. Embora isso
não acontecesse se também usasse as anáguas da dama.
Tomou uma respiração em sua corrida criminal, já que
estava a ponto de delinquir de novo, para meditar no assunto.
Mas não via delito algum. Devolveria os objetos em bom estado
antes de abandonar a Abadia no dia seguinte. Além disso, Wyn
não se importaria de ver seus tornozelos. Tinha ameaçado o
homem que a tinha posto em perigo com uma pistola, tinha-a
acariciado intimamente enquanto estava bêbado e tinha
caminhado sob uma chuva torrencial puxando as rédeas de
seu cavalo um dia inteiro. E o tinha visto, havia-o tocado,
quando estava somente de camisa, sem gravata. Também lhe
tinha posto na cama. A essas alturas, tinham chegado a um
ponto em que ver seus tornozelos estava permitido.
Antes de atrasar mais o momento, porque a culpa
começava a aparecer na sua espantosa cabeça, agarrou um
vestido estampado de musselina azul e um monte de roupa
interior, fechou os baús com um pé e voou escada abaixo.
Deteve-se de repente.
Wyn estava parado no corredor, com seu capote, suas
calças e suas botas, com um aspecto estupendo, olhando-a
fixamente como se estivesse paralisado com um pé para cima.
Esses olhos cinzas não demoraram para cravar-se em seus
seios.
Nesse momento, Diantha descobriu outro detalhe muito
útil: estar diante de um cavalheiro com anáguas e a regata a
plena luz do dia não era o mesmo que ser despojada de sua
roupa pelo cavalheiro em questão na escuridão. Era excitante,
algo que estava proibido às damas, a menos que fossem umas
descaradas, e não só teve a impressão de que usava menos
roupa que o devido, mas sim se sentiu nua sob seu atento
escrutínio. Todo seu corpo ardeu de paixão.
Wyn afastou o olhar e ela cobriu os seios com as roupas
que levava nas mãos.
― Bom dia, Diantha ― disse-se, de um ponto bem próximo
a seus pés descalços. ― Parece que visitou o apartamento da
cobertura.
― Sim. ― Sua língua era como papel de lixa que lhe tinha
ficado colado ao paladar. ― Em busca de roupa limpa. A minha
está um pouco danificada.
― Ah. ― Seu lento olhar subiu por seus pés, suas pernas,
além de seus quadris e da roupa que levava nos braços, até seu
rosto. Mas não acrescentou nada mais.
― Estas roupas cheiram muito a cânfora ― sussurrou ela.
― Mas suponho que posso mascarar o aroma com perfume. ―
Os nervos fizeram com que desse de ombros. Ele desviou o
olhar para um ombro e, depois, para um braço nu.
― É possível. ― Sua voz soava um pouco rouca. ―
Precisará de muito perfume, sem lugar a dúvidas.
― Suponho.
― Quantidades enormes.
― Oh. Sim.
Esse espantoso desconforto de novo, como na cozinha no
dia anterior lhe revolvia um pouco o estômago. Passou junto a
ele no estreito corredor, correu para seu dormitório e fechou a
porta ao entrar, depois se apoiou nela.
― O que a assustou, senhorita? ― A senhora Polley se
aproximou dela correndo. ― Viu um fantasma?
Só a um homem.
― Senhora Polley, eu gostaria de estar bonita hoje.
Sua dama de companhia franziu o cenho. Mas fez o que
Diantha queria.
No final, tanto fazia se à senhora Polley passasse um
quarto de hora arrumando seu cabelo ou seu vestido, que mal
chegava aos tornozelos, e estivesse somente um pouco
enrugado do baú e fosse da mesma cor que seus olhos; como
tampouco importava que as franjas de seu xale de caxemira se
agitassem com a brisa, como asas de mariposa e que seus
sapatos fossem excepcionais para uma dama. Wyn quase não a
olhou quando saíram da casa.
Owen os acompanhou e se dedicou a lançar um pau para
Ramsés e a falar das minas.
― Acredito que perder a sua irmã foi um golpe muito duro
para ele ― comentou ela quando Owen correu em paralelo ao
canal de irrigação atrás do cão. ― Fala muito das minas.
― Era sua vida até recentemente. ― Wyn caminhava a seu
lado, com as mãos entrelaçada as costas, o capote negro e a
gravata nevada tão elegante como sempre; as botas, tão
reluzentes. O sol voltava a brilhar, dourado como um pêssego
amadurecido, e a brisa que acariciava as bochechas de Diantha
era fresca, embora suas bochechas parecessem sempre
acaloradas cada vez que ele estava perto.
― Ela sempre participa das histórias que conta. Talvez
sinta falta dela.
― Talvez.
― Você fala muito pouco de sua vida.
Wyn a olhou de soslaio.
― Não tenho motivos para fazê-lo.
― Um homem que ameaça nos machucar me parece
suficiente motivo, em minha opinião.
― Já que ontem eliminou esse problema em particular sem
ajuda, não tem sentido falar mais do assunto.
― Sei que não devo perguntar por sua saúde, mas... teria
podido me ajudar?
― Tenho certeza de que já conhece a resposta a essa
pergunta.
Certo. Se tivesse sabido que se encontrava em perigo, ele
teria feito algo para defendê-la, da mesma maneira que ela
estava defendendo-o de si mesmo para não beber.
― Isso quer dizer que se sente melhor?
― Tão bem como cabe esperar.
― Quer que te devolva a pistola e as balas?
― Sim, obrigado. ― Ao chegar a cerca, estofada por
trepadeiras de grandes flores brancas, ele agarrou uma e a
ofereceu com uma reverência. ― Por me salvar da ira de
Duncan Eads.
Ela a colocou no cabelo.
― Enfim, não podia permitir que te matasse.
― É obvio. ― Mas ele já não sorria.
Durante o resto do passeio até o pomar, ele se mostrou
educadíssimo. Permaneceu a seu lado sem dizer nada que não
pudesse dizer a qualquer dama a quem acabasse de conhecer e
que não o tivesse visto preso de um sofrimento que ela mesma
tinha-lhe provocado. Ajudou-a a passar por cima da cerca com
mão firme, mas somente a sustentou o tempo necessário.
Quando encontraram seu sapato perdido, caído na terra, ele o
devolveu sem mediar palavra, como se os cavalheiros
encontrassem todos os dias sapatos de mulher cravados no
musgo que crescia junto aos canais de irrigação.
Owen encontrou o balde e pôs-se a andar para as
macieiras, mas estava mais interessado em comer maçãs que
em recolhê-las, e logo se cansou da atividade. Atravessou o
canal de irrigação, pelo qual corria água em abundância depois
das últimas chuvas, e se deixou cair na erva da costa que havia
do outro lado. Ramsés o seguiu e se deitou junto dele, com a
língua de fora.
Depois, Owen adormeceu e tudo mudou, como se um deus
tivesse aberto uma cortina que ele mesmo tinha deslocado de
antemão. Depois de aproximar-se por suas costas, sob os
ramos de uma velha árvore retorcida, Wyn disse:
― Parece que não usou o perfume depois de tudo. ― Essa
voz rouca lhe provocou um formigamento por todo o corpo.
― Não. ― voltou-se para ele. À luz que se filtrava entre os
ramos das árvores, seus olhos pareciam reluzir. ― Suponho
que devo ter um espantoso aroma de cânfora.
Na bochecha de Wyn apareceu uma ruguinha.
― Eu não diria isso. ― Tirou o charuto que tinha pego na
casa.
― Mas certeza que pensa.
― Não. Não estou pensando nisso agora. ― afastou-se dela.
Foi incapaz de não segui-lo. Nesse momento, pareceu-lhe
algo natural. Seguia-o como um pássaro que migrava ao Sul no
inverno, sem pensar.
― Ensinar-me-á a fumar?
Ele a olhou por cima do ombro, com uma sobrancelha
arqueada e um sorriso torcido.
― Se quiser...
― Sempre quis fumar um charuto, mas nunca tive a
oportunidade. Quero dizer, que nunca tive a oportunidade de
pedir a um cavalheiro que não me tomasse por uma
espevitada. Mas como contigo já não tenho esse problema...
― Não acredito que seja uma espevitada. ― Não a olhou
enquanto falava, tinha a vista cravada no charuto.
― Já disse em duas ocasiões o que não acha que sou, mas
não o que acha.
O que Wyn acreditava era que podia deitar essa moça na
erva e fazer-lhe amor durante uma semana. Seus olhos
brilhavam com o azul mais puro sob o céu outonal e suas
bochechas reluziam pelo passeio. E morria por tocá-la.
Começaria ali onde seus magros tornozelos apareciam por
debaixo da bainha do vestido, muito curto, e depois
continuaria lhe tirando as meias a fim de deslizar as mãos por
suas panturrilhas e mais acima.
― Sério?
Ela franziu o cenho.
― É muito esquivo.
― E você muito curiosa, bruxa.
Ela fez uma reverência.
― Espevitada. ― Quando suas covinhas apareceram,
sentiu a tensão na virilha, como era de esperar.
Ofereceu-lhe o charuto. Talvez se fumasse ela não sorriria
e ele não voltaria a converter-se no tolo baboso que se
converteu ao vê-la junto à porta do apartamento de cobertura,
com essas maravilhosas canelas à vista graças à regata. Em
um abrir e fechar de olhos, sua imaginação tinha visto como
seus seios se despojavam da regata, do espartilho e das
anáguas, e havia sentido seus mamilos perfeitos na língua.
― É teu. ― Rechaçou o charuto. ― Não tem outro?
― É o último que há. ― Conseguiu que sua voz parecesse
normal graças às décadas de enganos e subterfúgios. ―
Aprenda com esse ou não aprenda. Como gostar.
― Certamente não voltarei a ter outra oportunidade. ―
Diantha mordeu o carnudo lábio inferior, e de repente os anos
de prática de Wyn se foram aos diabos.
― Certamente não. ― Inclusive lhe parecia que sua voz
soava muito rouca. Diantha o olhou nos olhos, mas ele foi
incapaz de afastar o olhar de seus lábios. Uns lábios preciosos,
de um rosa escuro, que estavam entreabertos.
Por Deus, morria por saboreá-la de novo. Morria por sentir
sua língua contra a sua e escutar seus gemidos.
Ela fechou a boca, mas seus lábios não perdiam atrativo
algum dessa maneira. Imaginou o que seria necessário para
convencê-la a abri-la de novo. Se a beijasse nesse momento, o
que ela faria...?
Obrigou-se a falar.
― O charuto, senhorita Lucas?
― Obrigada, senhor Yale. ― Aceitou-o. ― O que tenho que
fazer?
Colar seu precioso corpo ao dele e render-se.
― Aspirar, mas muito levemente, e tentar não respirar de
verdade.
― Como se aspira sem...? Ah! Uf! ― Espirrou, tossiu e
tampou a boca enquanto tufos de fumaça escapavam entre
seus dedos. ― É impossível que tenha feito bem.
― Já teve o bastante?
― Não! Se tentar de novo significa que me sorrirá de novo
como acaba de fazê-lo, tentarei.
Pelo amor de Deus, tinha perdido todo vislumbre de
disciplina por culpa dessa mulher.
― Como te sorrio?
― Como se gostasse de mim. ― Pronunciou a frase sem
paquera alguma. De modo que ele respondeu com total
sinceridade.
― Gosto de você, Diantha. Esqueça-se do «como se».
Ela sorriu e voltou a meter o charuto na boca. Quando
seus lábios o rodearam e a fumaça começou a sair por entre
eles, esteve preste de tirá-lo dos seus lábios e cobri-los com sua
boca.
Era uma tortura. Certamente pior que as noites febris que
acabava de passar. Ao menos, durante essas noites tinha o
consolo de imaginar que morria.
Diantha voltou a tossir.
― Não vou vomitar ― disse ela depois de ofegar, ― se acaso
for isso com o que se preocupa.
― Não me preocupa. Ao menos não a mim.
― Por que diabos fuma estas coisas?
― Porque é o que fazem os cavalheiros. E agora, mitiga o
desejo de beber brandy.
― Oh. ― Ela pareceu aceitar a desculpa sem problemas,
tal como aceitava todos os aspectos dessa aventura, com
muitas perguntas, mas sem queixa. Salvo por um único
instante, um instante em seu dormitório que lhe parava o
coração cada vez que o recordava.
― Quero fazê-lo bem ― disse ela.
― É tenaz.
Sua boca esboçou um sorriso indeciso, e suas covinhas
pareciam não saber se fazia sua presença ou não.
― Acredito que isso já sabíamos nós dois ― acrescentou
ele antes de lhe entregar o charuto uma vez mais. Ela tentou de
novo. No final, conseguiu-o, da mesma maneira que conseguia
tudo o que se propunha, incluído ele.
Wyn observou seu rosto, marcado levemente pelas acnes
da adolescência, um rosto encantador que, era ainda mais,
graças ao espírito que brotava de seu interior. Tinha viajado
milhares de quilômetros, tinha atravessado selvas e salões
elegantes, mansões e câmaras secretas. Desde que tinha
quinze anos, mal tinha se detido uma longa temporada em um
só lugar, e durante todo esse tempo, a estrada nunca lhe tinha
pesado. Entretanto, nesse preciso momento, à vista de sua
própria casa, sob o olhar de dois olhos azuis, sentia-se perdido.
― Felicidades, senhorita Lucas. ― Tremia-lhe a voz. ― Já
pode solicitar a inscrição em qualquer clube de cavalheiros de
Londres.
― Esplêndido. ― devolveu-lhe o charuto, roçando-lhe os
dedos, antes de afastar-se. ― Veja, há ocasiões que desejo de
todo coração ser um cavalheiro. Os cavalheiros podem ter toda
espécie de aventuras... evidentemente. ― Apontou-o, enquanto
colocava um pé no ramo mais baixa da árvore e levantava os
braços. ― E inclusive se pode contar com alguns cavalheiros
para que resgatem uma moça em apuros.
Seguiu-a até o pé da árvore, e o tremor o afligiu por
completo, como os tremores que o assaltaram vários dias atrás.
Entretanto, isso era diferente. Nessa sensação não havia
sofrimento.
― Entretanto e apesar de tudo o que sabem desse tipo de
moças, alguns cavalheiros ficam um pouco surpreendidos
quando estas decidem de repente subir em uma árvore ― repôs
ele.
― Bem, um cavalheiro normal talvez. Mas um herói nunca
se deixa surpreender por acontecimentos imprevistos. ―
Diantha se apoiou em um grosso ramo e subiu até o próximo,
oferecendo-lhe uma maravilhosa vista das panturrilhas que
desejava acariciar. ― Sobretudo quando a dita moça só procura
um tesouro nessa árvore. ― apontou o ninho de um pássaro
situado na forquilha de um ramo e se estirou para vê-lo bem. ―
Vê-o?
― Vejo-o. Agora que encontrou seu tesouro, teria a
amabilidade de descer antes que me veja obrigado a ver como
rompe o pescoço por culpa de uma queda?
― Suponho que não te faria graça que morresse de forma
tão pouco dramática depois de tudo o que o tenho feito passar.
― Certo, sobre tudo por isso.
― Acredita que os pais estão longe?
― Por que? Quer roubar os ovos e levar à senhora Polley a
fim de que os cozinhe para o jantar?
― Não! ― Diantha inclinou a cabeça. ― Acredito que fala
por experiência.
― É possível que tenha razão.
Viu-a fazer uma careta.
― Quantos anos tinha? ― perguntou-lhe ela.
― Era bastante jovem para que me considerassem
inocente da maldade. ― «Inocente de sua maldade», pensou.
Ficou sem fôlego. ― Pensa descer ou vou ter que subir para te
buscar?
Ela sorriu, mostrando-lhe as covinhas.
― Não se atreveria.
Aproximou-se do tronco.
Ela desceu a toda pressa. Quando chegou no último ramo,
ofereceu-lhe uma mão e depois a outra. Qualquer dama capaz
de subir a uma árvore com semelhante presteza era capaz de
descer sem problemas. Mas queria abraçá-la. Segurou-a pela
cintura e ela permitiu que a deixasse no chão.
Sabia por que o tinha feito. Duas semanas antes, ela teria
aproveitado a oportunidade para convidá-lo que a tocasse.
Entretanto, nesse momento, somente pestanejou enquanto
seus seios subiam e baixavam mais depressa, ao ritmo de sua
acelerada respiração, e esboçou um sorriso antes de afastar-se.
Soltou-a. Ela já sabia do que era capaz e não voltaria a cometer
o erro de ficar em suas mãos. Sua rápida fuga do corredor essa
manhã demonstrava isso.
Diantha olhou de novo o ninho.
― Isso quer dizer que foi um ladrão desde sua juventude,
como Owen?
― Não.
Viu-a arquear uma sobrancelha com expressão cética.
Sorriu.
― Não de forma continuada, quero dizer. Vamos, a
senhora Polley já terá o jantar pronto e temos que ordenhar
uma vaca.
― Ovos e pão de novo. E maçãs. Estarei encantada de
trocar o menu logo. De verdade vamos amanhã?
― De verdade. ― Ou se tornaria louco. Kitty e Leam já
teriam chegado se estivessem em Londres. Talvez teria que
levá-la à cidade em pessoa. Mas já sabia que era muito esperta
e que não podia enganá-la. Quando chegassem à Inglaterra,
dir-lhe-ia qual era seu destino. Talvez ela protestasse, mas não
acreditava que o fizesse durante muito tempo. Já tinha
aprendido qual era a verdadeira natureza dos homens e nesse
momento estava receosa.
― Para ser um cavalheiro londrino, Wyn, parece muito a
gosto em um abrigo.
― É um estábulo, Diantha, e já te disse que não sou de
Londres. ― Colocou um tamborete junto à vaca vermelha e
branca.
― Não é de Londres. ― Ela tinha o balde vazio sobre um
joelho, em cima do vestido de musselina de listas. A musselina
manchada era mais adequada para as tarefas da fazenda que o
vestido azul do apartamento da cobertura, além de que não
cheirava a cânfora. ― Mas passou muito tempo na cidade, não
é verdade?
― Aqui e lá. ― Tirou-lhe o balde.
― Onde é lá?
― Acredito que esta é uma dessas ocasiões nas que insiste
em seguir perguntando e eu tenho que ser esquivo de novo. ―
Sentou-se no tamborete, pôs o balde sob os pesados mamilos
da vaca e Diantha foi incapaz de afastar o olhar.
Não lhe parecia mau olhá-lo durante tanto tempo. Parecia-
lhe o mais normal do mundo.
Lambeu os lábios.
― Acredita no destino?
― Não ― respondeu ele, que tirou o capote e o deixou em
um banco. ― Mas não me cabe a menor dúvida de que você
sim.
― Por que?
― Um plano de Mestre... ― desabotoou os punhos da
camisa e a arregaçou.
― Oh. ― Custava-lhe articular palavra. Se Deus tinha
inventado uma imagem que a fizesse tremer por inteiro, era a
de Wyn Yale tirando a roupa. Aferrou-se à porta da baia para
não cair. ― Mas tenho a sensação de que o destino está
acostumado a transtornar os planos feitos pelos homens ―
murmurou, ― de modo que é complicado.
― Com certeza que sim.
Aproximou-se mais dele. Atraía-a dessa maneira, desde o
primeiro dia. Talvez fosse pela forma em que a camisa rodeava
os ombros, ou pela força de seus braços que deixava em
descoberto a camisa arregaçada. Custava-lhe respirar com
normalidade. Claro que não era de estranhar. Wyn acabava de
pôr as mãos nos mamilos da vaca, e essas mãos também eram
fortes e habilidosas, e embora fosse uma tolice e também um
detalhe um pouco estranho, a imagem a levou a pensar nessas
mãos em seus próprios seios. E depois, por enésima vez,
pensou nos seus lábios em seus seios, em como a havia tocado
e em tudo o que lhe havia dito.
― O que me diz da reencarnação? Acredita ser possível?
― Certamente não. ― Os músculos de suas mãos e de seus
braços se retesaram, e os jorros de leite começaram a cair no
balde, provocando ligeiros tinidos. ― Vamos terminar em uma
discussão sobre as filosofias do mundo, senhorita Lucas? ―
perguntou-lhe com um sorriso zombador.
Diantha acreditava na reencarnação. Nesse preciso
momento, estava convencida de que já tinha estado nessa
situação, com ele. Mas não ordenhando uma vaca, é obvio. A
não ser realizando tarefas mundanas. Juntos e a sós. Sentia-o
no coração, e era muito desconcertante, porque não acreditava
nessas frescuras do coração. Entretanto, a reencarnação lhe
parecia um assunto totalmente diferente.
― Estive lendo ultimamente ― conseguiu dizer. ― Sempre
acreditei que a coleção de meu padrasto, confrontada por
jornais arqueológicos e demais publicações acadêmicas, era
muito incomum. Mas a biblioteca desta casa é muito curiosa.
Uma seleção incrível para uma dama, certamente.
― Talvez a dama não vivesse sozinha aqui.
― É possível que tenha razão. Ontem encontrei um livro
que versava sobre as religiões das Índias Orientais.
― Da aí vem a reencarnação.
― Antes de ontem, encontrei um livro que falava de um
homem chamado Buda que, aparentemente, estava
acostumado a passear sem camisa. Havia ilustrações. ―
Cravou o olhar nos musculosos braços de Wyn e pensou que
talvez não devesse culpar Annie por haver fugido com seu
fazendeiro. Cada vez que Wyn movia a mão, um músculo
esticava a camisa por cima do cotovelo. Semelhante efeito a
alterava muito. ― Parece que Buda fundou uma religião nova,
uma bastante interessante com algumas ideias maravilhosas.
― Tem lido o livro?
― Você não o teria feito?
Ele sorriu. Um sorriso que a acalorou, sobretudo em certa
zona de seu corpo. Queria que voltasse a tocá-la. Nesse lugar.
― A verdade é que não entendi nem a metade. ― Falava
com um fio de voz, o que era uma tolice. O leite soava mais
forte ao cair no balde. ― Faz muito bem isso.
― Pratiquei muito durante os últimos dias. Aproxime-se ou
tenho que te levar a vaca? ― Wyn se levantou do tamborete
para bater na palha, a seu lado.
A vaca voltou a cabeça e a olhou com seus enormes olhos.
― É mais fácil que fumar um charuto?
― Diria que tem mais ou menos a mesma dificuldade. É
como usar sapatos ou varrer um portal. Acredito que poderá
fazê-lo.
― Alguma vez varreu um portal?
― Em outra época, fiz de tudo. De verdade quer ordenhar
a vaca? Porque...
― De verdade! ― Agarrou um mamilo. Sentia-a cálida e
suave. Deu um puxão. ― Não sai nada.
― Não é como puxar uma campainha, bruxa. Não pode
chamar uma criada com o mamilo.
― É muito gracioso, senhor Yale.
― Isso estão dizendo por aí, senhorita Lucas.
Sua alegria desapareceu ao escutá-lo.
― Quem? Todas as damas de Londres?
― Não. ― estendeu um braço e cobriu a mão dela com a
sua, de modo que todas as damas de Londres desapareceram
sem mais.
Sua palma era grande e maravilhosamente cálida, e queria
ficar ali sentada para sempre, com suas mãos unidas. Wyn
trocou de posição os dedos, mas mal podia prestar atenção.
Estava muito perto, junto a seu ombro, tão perto como quando
a ajudou a descer da árvore e ela tinha estado em um tris de
beijá-lo.
― Então quem o diz? ― instou com voz um pouco gritante.
Wyn lhe envolveu a mão com a dele.
― Todos os cavalheiros de Londres, é obvio. Entenda desta
maneira. ― Sua voz soava rouca.
Isso queria dizer que não era imaginação dela. Ele também
sentia essa emoção que acelerava seu coração e que lhe
debilitava o corpo pela espera. Tinha que sentir.
Se não mudasse o rumo de seus pensamentos, suplicar-
lhe-ia que a beijasse dentro em pouco.
― Acha que seria muito inocente que uma pessoa
acreditasse no destino e na reencarnação? ― perguntou.
― Jamais tive a necessidade de obrigar a um homem que
professasse suas crenças mais profundas aos parâmetros de
um sistema desenhado por outras pessoas.
Sua mão, guiada pela de Wyn, captou o ritmo.
Continuando, arrependeu-se de havê-lo aprendido tão rápido,
porque ele afastou a mão.
― Mas acredita em Deus. ― A cabeça lhe dava voltas. ―
Verdade?
― Devo admitir que não estou muito convencido.
― E no que crer?
― Nas boas maneiras, na capacidade de raciocínio
humano e no inferno. ― As palavras caíram como pesadas lajes
no estábulo, que cheirava a palha.
Os dedos de Diantha se detiveram por vontade própria. A
vontade de tornar a chorar a afligira.
Com voz clara, mas baixa, ele acrescentou:
― E, de um tempo para cá, na esperança.
Diantha soltou o mamilo e se voltou para olhá-lo de frente.
Não havia nem rastro de pesar em seu rosto. O desejo
iluminava esses olhos chapeados, e algo mais que não atinava
a compreender fez que se esquecesse do pranto. Viu aparecer
um tic nervoso em seu queixo enquanto que inspirava fundo,
depois soltou o ar no silêncio que os rodeava, um silêncio
interrompido somente pelos animais e pelos alegres gorjeios
procedentes da sebe exterior.
O olhar de Wyn se cravou em sua boca, e nesse momento
teria dado qualquer coisa para beijá-la. Até mesma a vida.
Não pôde evitar, inclinou-se para diante. Ela fez o mesmo.
Seus fôlegos se mesclaram, uma intimidade para o qual não
estava preparada absolutamente.
Wyn cortou a distância que os separava. Seus lábios mal
se roçaram, foi a carícia mais inocente do mundo.
E depois deixou de sê-lo. Converteu-se em algo mais.
Agarrou-a pela nuca com uma mão, uniu seus lábios, e a
beijou como há várias noites vinha sonhando que a beijaria,
como se não houvesse nada mais que quisesse fazer salvo
beijá-la, acariciando todo seu corpo da mesma maneira que ela
o acariciava. Saboreou-a, empregou a língua para separar seus
lábios, e ela sucumbiu. Permitiu-lhe entrar em sua boca, tocá-
la como já a havia tocado antes, mas não era o mesmo. Nesse
momento, a carícia de sua boca despertou a lembrança do roce
dessas mãos sobre seu corpo, enquanto ela o abraçava
consumido pela febre, de modo que soube que era diferente.
Queria mais que beijos. Queria a ela. Doía-lhe todo o corpo pelo
desejo.
Wyn lhe acariciou a bochecha com o polegar enquanto
enterrava os outros dedos em seu cabelo; e foi sublime, foi a
carícia mais tenra que lhe tinham feito. Reverente e deliciosa
como essa parte de seu interior que o necessitava. Levantou
uma mão e lhe passou os dedos pelo antebraço. A carícia a
deixou morta de desejo. Delirante de prazer. Escutou algo que
brotava do peito de Wyn antes que ele a beijasse com mais
paixão, sugando sua língua e lhe provocando o desesperado
desejo de sentir esse corpo contra o seu, essas mãos por toda
parte. Inclinou-se ainda mais para frente.
A vaca mugiu.
Wyn se afastou e retirou a mão.
Diantha inspirou fundo e abriu os olhos. O olhar de Wyn
parecia perdido. Em seguida, algo reluziu em seus olhos
chapeados, algo enervante que fez com que lhe caísse a alma
aos pés.
Ficou de pé de um salto.
― Não... Não diga «Por Deus, não» ― conseguiu dizer. ― Por
favor.
― O que? ― Parecia confundido. ― Não ia dizer...
― Não lhe pedi isso. ― Levou-se uma mão aos lábios
úmidos. ― Não pode me colocar em meu baú de viagem e me
levar de volta para casa.
Viu-o abaixar a cabeça e passar uma mão pela nuca. As
emoções a afligiram com uma beleza agônica. Não o suportava.
Desejava-o muito. Não em suas partes femininas, cuja reação a
sua atitude e elegância começava a lhe ser familiar. O desejo se
estendia por seu peito e por suas extremidades. Sentia-se
profundamente emocionada, e sabia que era o correto, que
estava destinada a que somente ele a beijasse.
Retrocedeu um passo.
― Não diga algo espantoso nem me ameace.
Wyn levantou a cabeça e em seus olhos brilhou a fúria um
instante.
― Não vou fazê-lo. Maldita seja, Diantha...
― E não empregue essa linguagem comigo. Quebre as
regras. A número sete. ― Adiantou-se e agarrou o balde. ―
Obrigada por me ensinar a ordenhar uma vaca. Agora vou-me.
― Carregada com o balde, apressou-se a sair do estábulo
porque sabia que se não partisse, jogar-se-ia em seus braços, e
o primeiro parecia mais sensato se quisesse chegar a Calais
algum dia.
Entretanto, nesse preciso momento não queria estar em
Calais. Queria estar entre seus braços.
19

No caso de que a senhora Polley se precavesse de que seus


senhores não se falaram durante o jantar, dissimulou muito
bem. Por sorte, Owen passou todo o momento tagarelando,
como era habitual, e todos desfrutaram da refeição até que
Wyn se levantou da mesa e se despediu com grande elegância,
como também era habitual.
A senhora Polley enviou Owen para o barraco da guarda.
― Esse homem despertará amanhã bem cedo e teremos
que enfrentar outra vez à chuva, ao barro e saberá Deus a que
mais, assim é melhor que durma bem, moço.
Owen agarrou outra bolacha, levou uma mão à boina e se
despediu de Diantha com um «boa noite, senhorita», depois
assobiou para que Ramsés o seguisse.
Diantha levou seu prato à pia.
― Temos que recolher tudo antes de partir.
― Já me encarreguei disso, senhorita ― assegurou-lhe a
senhora Polley enquanto limpava a mesa.
― Obrigada, senhora Polley. Foi de grande ajuda durante
estes últimos quinze dias e me alegro muito de que decidisse
nos acompanhar.
― Bom, senhorita, não podia permitir que uma dama tão
jovem percorresse bobamente esses mundos de Deus com um
homem de avessas intenções.
«De avessas intenções», repetiu para si mesma. Se isso
significava que Wyn pretendia que ela desenvolvesse uma
enorme inclinação por seus beijos e suas carícias, nesse caso
sim, que suas intenções tinham sido avessas.
― Senhora Polley, minha viagem tem um propósito claro.
E face ao muito que lhe exige o senhor Yale, sempre tratou de
comportar-se como um cavalheiro.
― Um cavalheiro sempre é um cavalheiro ― resmungou a
senhora Polley, enquanto guardava as tortas de aveia.
Já no dormitório, a mulher ajudou Diantha a desatar o
espartilho depois que ela deixasse o manchado e enrugado
vestido sobre uma cadeira. Mal recordava como era a vida na
casa de seu padrasto, como era a vida usando roupa limpa,
como era a vida sem conhecer um galés bonito e misterioso.
Sua dama de companhia adormeceu sem dizer uma
palavra. Diantha tinha se acostumado a esse fato, e sentia falta
de suas conversas noturnas com Faith, tinha começado a falar
sozinha até que adormecia já que, de todas as formas, não
despertava à senhora Polley. Entretanto, essa noite era incapaz
de descansar. Seus lábios e suas emoções tinham tido um dia
muito estimulante e, além disso, rugia-lhe o estômago.
No final se levantou, colocou o vestido verde e o atou à
cintura com um cinto. Com o maior sigilo, desceu à cozinha.
Ao chegar ao saguão, percebeu o aroma de tabaco. Deveria
havê-lo previsto. Wyn também tresnoitava, tal como
testemunhavam as ocasiões nas que a tinha acariciado.
Entretanto, em ditas ocasiões sempre tinha estado bêbado.
Com um sem-fim de mariposas no estômago, Diantha
entrou no corredor e se dirigiu à cozinha. Encontrou-o frente à
lareira. Sobre as brasas ardia um charuto.
― Boa noite. ― Embora não se voltasse para olhá-la, Wyn
tinha reparado em sua presença. Parecia ter um sexto sentido
para perceber essas coisas.
― Pensava que o charuto que me ensinou a fumar hoje era
o último que tinha ― comentou, porque que outra coisa podia
dizer a não ser isso?
― É.
― E por que não o fuma?
Ele se voltou nesse momento e a olhou com um brilho
estranho em seus olhos chapeados. Com um brilho... ardente.
O medo a invadiu de repente.
― Não se livrou de tudo, verdade? A enfermidade.
Tornou...
― Não.
― Mas volta a ter esse olhar enfebrecido. Quer uma taça
de brandy, é isso?
― É obvio que quero uma taça de brandy. ― Passou-se
uma mão pelo cabelo e a colocou na nuca. ― Mas desejo mais a
você.
A emoção foi tão grande que Diantha sentiu um calafrio.
― Pode me ter ― comentou com voz trêmula. ― Somente de
forma temporária, é obvio ― acrescentou, porque o pânico que
se refletiu nesses olhos cinzas foi pior que o brilho febril. ― No
final, devo aceitar a proposição matrimonial do senhor H., esse
foi o plano sempre. Mas pode me ter primeiro.
― Não posso.
― De todas as formas estou comprometida. Embora já
fosse consciente desse fato quando parti da casa de Teresa.
Assim se alguém o descobre...
― Ninguém o descobrirá ― interrompeu-a com firmeza. ―
Meu trabalho consiste em me assegurar de que isso não
aconteça.
― Minha família descobrirá. ― Logo saberiam que não se
encontrava em Brennon Manor e começariam a procurá-la.
― Certos membros de sua família têm motivos de sobra
para confiar em mim. ― Parecia muito sério.
― Sabia que havia algo... que ocultava algo ― disse em voz
baixa. ― O senhor Eads te chamou «Corvo» e não sou tão tola
para não saber que esse tipo de nome especial tem certa
relevância. Mas não sei por que isso significa que minha família
confiaria em você se saísse à luz que estive contigo durante
estas últimas semanas. Em qualquer caso, são conscientes de
minha tendência a demonstrar um comportamento
inapropriado. Meu padrasto me assinala isso todos os dias.
Wyn respirava com dificuldade. Tinha os ombros rígidos.
― Dedico-me a resgatar jovens como você.
― A resgatar? As jovens como eu?
― As jovens perdidas, para ser mais concretos. As jovens
que fugiram de casa. Embora de vez em quando houve algum
menino ou alguém com amnésia, de sorte para mim. Ou um
cavalo. ― Esse último pareceu dizê-lo com ironia. ― Mas quase
sempre me atribuem casos de jovens desaparecidas.
Aparentemente, dou-me muito bem em convencer às
jovenzinhas de que façam minha vontade.
― Atribuem-lhe casos? Quem lhe atribuiu isso?
― É o único que posso te revelar. ― Voltou-se. ― E agora,
se for amável de sair desta estadia e de não retornar até
amanhã pela manhã, agradeceria de coração.
― Mas quero que me beije.
― Não tem nem ideia do que está dizendo. É uma inocente.
― Estou disposta a não sê-lo por mais tempo. Levo um
século disposta a deixar de sê-lo. Talvez leve isso no sangue, já
que minha mãe é... ― Guardou silêncio, afligida por um
repentino desespero. ― Tampouco estou te pedindo muito.
― O que não está me pedindo...? ― Era evidente que
tratava de conter-se. ― Permita-me expressá-lo os términos que
sejam singelos de compreender. Os heróis não desvirginam as
jovenzinhas inocentes.
― Pelo amor de Deus! ― golpeou as saias com as palmas
das mãos. ― Estou farta de tentar convencê-lo de que me beije
e me... enfim, todo o resto.
― Sim, bem, o problema é precisamente esse «todo o resto».
― Wyn passou uma mão pela nuca, e o gesto fez com que a
camisa lhe colasse ao torso.
Diantha esteve a ponto de jogar-se sobre ele. Apertou os
punhos.
― Meu orgulho ― «e meu autocontrole», acrescentou para si
mesma ― já não suporta tantos golpes. ― Contra seus desejos,
deu meia volta, mas, de repente, voltou-se, olhou-o de novo e
soltou: ― Quando me beijou... Essa forma de... E depois me
olha de uma maneira, às vezes... Como um lobo espreitando a
sua presa.
― É a bebida ― confessou ele em voz baixa.
Diantha engoliu saliva. O coração lhe pulsava com força.
― A bebida?
― Meu corpo anseia a embriaguez. Tenho uma ânsia no
sangue que me impulsiona a me entregar à bebida e que é
superior as minhas forças. Impulsiona-me a procurar o prazer,
a satisfação e o desafogo em todas as coisas. ― Seu olhar não a
abandonou em nenhum momento. ― Não o farei contigo.
Porque somente seria um corpo feminino.
― Oh! ― Não tinha imaginado que pudesse ser assim. ―
Uf!
― Diantha... ― disse Wyn em voz baixa, ― sabe que para
mim é linda.
― Disse que sou bonita, mas com o devido respeito, os
cavalheiros tendem infringir a regra número seis com muita
frequência. ― Doía. De forma horrível. Em realidade, não
deveria ser tão doloroso. ― E, a verdade, seria mútuo. Isso de...
de procurar simplesmente agradar e satisfação. Assim acredito
que seria o adequado. ― Conseguiu superar o nó que sentia na
boca do estômago.
― Não. ― Wyn pronunciou de novo essa palavra tão
intransigente. ― Permita-me comportar como o cavalheiro que
acha que sou.
Diantha desejou mandá-lo ao corno por ser um cavalheiro
quando menos gostaria que fosse. Entretanto, a opressão que
sentia na garganta lhe impediu de falar. De modo que se
abraçou pela cintura a fim de aliviar um pouco a espantosa
sensação que se apropriou de seu estômago, deu meia volta de
novo e tropeçou com o balde de leite que tinha deixado antes
no corredor, distraída pelo beijo. Acabou estirada no chão com
um estrépito, sobre um atoleiro de leite e com as saias
levantadas.
Wyn saiu correndo ao corredor e se ajoelhou a seu lado
com uma rapidez que Diantha teria apreciado muito se não
estivesse tão embaraçada.
― Machucou-se? ― Examinou-a de cima abaixo com o
olhar.
― Só no amor-próprio. Este não era a esplendorosa saída
que tinha previsto.
― As saídas esplendorosas são superestimadas, é verdade.
― Agarrou-a por uma mão.
Diantha pensou que poderia passar a vida sentada nesse
atoleiro de leite se ele seguisse olhando-a com tanta
intensidade.
― Quem iria pensar que essa vaca acabaria ganhando a
partida? ― murmurou. ― Suponho que a partir de agora
deverei tomar cuidado quando calçar os sapatos e passar pelo
portal.
Wyn sorriu, puxou-a para levantá-la e depois a soltou.
― Até agora pensava que este pobre vestido somente teria
que suportar indignidades como a chuva, o barro e o mofo. ―
Riu, embora fosse uma gargalhada trêmula já que ele não se
afastou. ― É evidente que estava equivocada.
― Estava equivocada ― repetiu ele em voz baixa.
Diantha elevou a vista de repente.
Wyn colocou uma mão na parede, ao lado de sua cabeça, e
se inclinou para diante.
Diantha abriu e fechou a boca enquanto procurava uma
réplica apropriada e tentava morder a língua para não suplicar.
Não voltaria a suplicar. Fechou os olhos com força para evitar a
tentação e os abriu quando sentiu o roce de seu fôlego na
bochecha e depois... Ai, Deus! Depois sentiu seus lábios. A
suave carícia lhe provocou um calafrio, e estremeceu por sua
proximidade.
Wyn se separou dela enquanto examinava seu rosto.
Esses olhos cinzas pareciam reluzir na escuridão. inclinou-se
devagar e a beijou nos lábios.
― Não me peça isso ― sussurrou-lhe com voz rouca, ―
porque, Deus me ajude, não quero levá-la para casa.
Ela negou com a cabeça.
― Mas eu...
Seus lábios a beijaram com escassa delicadeza, com um
inequívoco afã possessivo. Beijou-a com paixão, com
determinação. Beijou-a até que lhe afrouxaram os joelhos.
Entretanto, não a tocou em nenhuma outra parte do corpo.
E depois suas mãos se aferraram a sua cabeça, enterrou
os dedos em seu cabelo e começou a beijá-la nas bochechas e
no queixo.
― Desejo-te muito ― sussurrou nesse lugar sensível
situado depois do lóbulo da orelha.
Diantha teve a impressão de que estava rezando, de que
era uma súplica do fundo de sua alma. Beijou-a no pescoço e a
carícia provocou uma descarga que lhe percorreu todo o corpo.
― Não sou um bom homem ― acrescentou ele.
Permitiu-lhe que jogasse sua cabeça para trás para beijá-
la na garganta e estremeceu ao experimentar tão sublime
prazer. Como era possível que algo assim fosse tão
maravilhoso?
― Sim, é um bom homem, eu sei. ― Pegou-o pelo colete,
colou-o a seu corpo e o beijou nos lábios.
Wyn era todo músculo. Passou as mãos pelos seus braços
e essa simples exploração despertou o ânsia de sentir suas
mãos no corpo, sobretudo entre as coxas. Colocou as mãos em
seu torso e gemeu por sua dureza, pelo contraste com seu
corpo, porque era duro, masculino e justo o que desejava nesse
momento. Lutou com os dedos até que conseguiu lhe
desabotoar o primeiro botão do colete. Procurou o seguinte e a
deliciosa dor que palpitava entre suas coxas aumentou,
arrancando-lhe um gemido.
Wyn lhe imobilizou as mãos.
― Não, Diantha ― disse, mal-humorado. ― Não.
― Acabaram-se as negativas. ― Liberou uma mão e lhe
desabotoou outro botão.
― Se me despir, perderei o pouco controle que tenho.
― Graças a Deus. ― Mordeu-o no lábio inferior tal como
lhe tinha feito na estalagem e introduziu a língua entre seus
dentes para acariciar a sua. Escutou-o gemer enquanto a
abraçava e plantava as mãos no seu traseiro.
― Onde aprendeu isso? ― perguntou-lhe Wyn, que mal
podia respirar. ― Não me diga que outro lhe ensinou isso.
― Aprendi com você. Já te disse que foi o primeiro. O
único. ― Desabotoou o último botão. Enlouquecida de desejo,
acariciou-o no peito e fechou os olhos para desfrutar ainda
mais das sensações. ― Ai, Wyn! ― A emoção era tão grande que
a tensão tomou todo o seu corpo. ― Ensine-me mais coisas, por
favor. ― Colou-se a ele por completo e moveu os quadris.
Wyn baixou uma mão por sua coxa e enquanto se
inclinava para beijá-la na boca, instou-a a separar as coxas.
Em seguida, colou-se a ela e Diantha, por fim, desfrutou desse
delicioso e duro corpo.
― Oooh! ― aceitou-o entre os lábios e entre as coxas com
avidez, desejosa por descobrir o que aconteceria a seguir.
Wyn se afastou dela, segurou-lhe uma mão e a instou a
caminhar para o saguão. Diantha o seguiu dando tropeções,
jorrando leite e extasiada. A metade da escada, Wyn se deteve,
colou-a de novo a seu corpo e a beijou outra vez.
― Levar-te-ia nos braços ― disse-lhe de forma atropelada,
― mas temo que não tenho... Maldita seja! ― Elevou-a nos
braços e seguiu escada acima.
Ao chegar ao dormitório que ocupava, deixou-a de novo no
chão. Diantha o abraçou, enquanto lhe acariciava as costas e
os quadris. colou-se a ele todo o possível e deixou que
capturasse seus lábios outra vez.
Nesse momento, escutou que a porta se fechava e
interrompeu o beijo. Olhou a seu redor, reparando na
escrivaninha cheia de livros, na cama de quatro postes com
suas cortinas abertas.
― Estou no dormitório de um homem. ― No dormitório de
Wyn.
― Já esteve aqui antes. ― Mordiscou-a no lóbulo de uma
orelha, lambeu-a e Diantha esteve a ponto de desmaiar de
prazer.
― Para te velar. Não para... não para...
― Para me entregar seu corpo. ― Aferrou-a na cintura com
suas fortes mãos e colou a testa à sua. Dava-lhe trabalho
respirar. ― Diantha, diga-me para que não haja confusão
alguma.
― Para te entregar meu corpo. ― Estava aterrada, mas o
desejava com todo seu ser.
As mãos de Wyn subiram por suas costas e lhe desataram
a fita que segurava o vestido.
― Teremos que nos casar depois disto.
«Teremos?», pensou ela. Como se fosse uma obrigação?
Wyn podia compartilhar essa experiência com ela embora seus
sentimentos não fossem profundos. Entretanto, a essas alturas
e já em seu dormitório, prestes de lhe entregar sua virgindade,
compreendeu com repentina claridade que sempre que
imaginava fazendo as coisas íntimas que faziam os homens e
as mulheres, imaginava com Wyn. Sempre.
Evidentemente não era algo mútuo.
― Não posso me casar contigo, nem com... nem com o
senhor H. até que encontre a minha mãe.
A fita caiu ao chão.
― Se a fizer minha, ele não a terá.
― Não diremos. ― estremeceu, enquanto ele baixava as
mangas do vestido pelos braços.
― Um homem tem outras formas de descobrir que uma
mulher perdeu a virgindade, além da palavra dela. ― Falava
com voz rouca e com o olhar cravado em seus seios, cobertos
tão somente pelo fino linho da regata. Seus mamilos,
endurecidos e erguidos, eram claramente visíveis sob o tecido.
De repente, sentiu uma espécie de vertigem e desejou
cobrir-se de novo.
― Nesse caso, descobrirei a maneira de que pareça o que
não é. As mulheres são mais prontas que a maioria dos
homens.
― Entretanto, poucas têm sua determinação e seu arrojo.
― Agora não está se referindo a minha virgindade,
verdade?
Wyn sorriu e Diantha se precaveu do brilho febril de seu
olhar. Desejava-a. Supôs que se alguma vez se afogasse, seria
em seus olhos. Ele colocou uma mão em sua bochecha. Uma
mão forte e decidida.
O ar pareceu abandonar seus pulmões.
― Estou muito nervosa de repente. Ou talvez não seja de
repente, porque já estava antes. Não me diga que não pareço
muito nervosa como aquela noite na casa de sir Henry, porque
sei que desta vez seria mentira.
― Parece... ― Wyn engoliu saliva enquanto olhava de novo
os seios e o movimento de sua garganta fez com que Diantha
lhe secasse a boca. ― Perfeita.
Diantha acreditou derreter-se como manteiga.
Possivelmente também cheirasse como manteiga, já que estava
empapada de leite. Entretanto, Wyn não parecia se incomodar.
Rodeou-a com um braço e a colou a ele. Seus corpos se
tocaram. Inclinou a cabeça para beijá-la de novo no pescoço e
depois lhe acariciou uma orelha com o nariz.
― Não temos por que fazer isto. ― Suas mãos começaram
a subir a regata por detrás. ― Podemos parar agora, se for o
que quer. A qualquer momento.
― Se pensar que depois de quinze dias me lançando sobre
você vou parar agora, terei que reconsiderar a opinião que
merece sua inteligência. E... ― ficou sem fôlego. ― Como pode
pensar que quero que te detenha justo quando está fazendo
isso?
Wyn acabava de cobrir as nádegas com as mãos para lhe
acariciar convertendo seus joelhos em gelatina.
― Deus, é tão suave...
Diantha ficou nas pontas dos pés e o beijou na bochecha.
― Regra número cinco: Um cavalheiro respeita sempre os
desejos de uma dama.
Era uma fresca. Mas não se importava. Não quando estava
entre seus braços.
― Estava pensando justo nisso.
― No que, exatamente?
― Em ser um cavalheiro. ― Suas mãos a abandonaram
para se despojar do colete. ― Seria pouco cavalheiresco esperar
que uma dama tirasse a roupa enquanto o restante presente
está vestido.
Hipnotizada, Diantha observou como desatava a gravata,
revelando sua perfeição e masculinidade.
― O restante presente?
― Quem quer que esteja perto nesse momento. ― Seus
olhos reluziam enquanto tirava as abas da camisa da calça.
― Ah. ― Diantha o olhava sem pestanejar. ― Eu...
Wyn tomou o rosto entre as mãos e enterrou os dedos no
seu cabelo, depois se aproximou para beijá-la.
― E agora, bruxa ― murmurou contra seus lábios, ― como
bom cavalheiro que sou, devo dizer à dama que me preceda.
Diantha sentia os batimentos do coração na garganta.
― Que lhe... que te preceda? ― repetiu, com uma voz
semelhante a um grasnido. ― Acredito que sou incapaz de falar
bem. É embaraçoso.
― Entretanto, é o normal. ― Beijou-a de novo para inspirá-
la. ― Preceda-me... nas carícias.
Embargou-a em uma paixão abrasadora e sentiu que lhe
ardiam das bochechas até os dedos dos pés, mas sobretudo
nesse lugar situado entre as coxas. Jamais tinha imaginado
tocando seu corpo nu. Evidentemente, era muito inocente.
― Que te acaricie?
O resplendor dourado do fogo iluminava seus olhos
cinzas. Seus deliciosos lábios esboçaram um sorriso.
― Vamos. Agora vai ficar tímida, Lady Intrépida?
― Não! ― exclamou ela.
Banhado pela luz do fogo, Wyn era grande, muito bonito e
muito viril, com todos esses músculos e essa compleição
atlética, e seus largos ombros e seu delicioso torso, que ia se
afinando até chegar à cintura. A linha de pelo escuro que
descia desde seu umbigo e se perdia sob suas calças lhe
provocou uma nova quebra de onda de desejo. Diantha
levantou uma mão e colocou dois dedos no oco de sua
garganta. O contato lhe deu água na boca. Wyn inspirou
devagar e ela reparou no movimento de seu peito. Estendeu os
cinco dedos e desceu por sua pele.
O prazer a instou a fechar os olhos e sentiu que tinha o
lugar situado entre as coxas tão molhada como a boca. A pele
de Wyn era quente, firme e sentia os batimentos de seu coração
nas pontas dos dedos enquanto os deslocava para um mamilo.
Viu-o fechar os olhos enquanto continha o fôlego e a abraçava
com mais força.
― É possível que tenha voltado a subestimar meu
cavalheirismo ― comentou com voz tensa.
― A subestimar?
― Diantha, siga me tocando ― a instou, sem abrir os
olhos. ― Suas mãos... ― Falava com uma voz muito rouca. ―
Suplico-lhe isso.
A súplica tinha algo especial que Diantha reconheceu,
embora estivesse distraída com sua perigosa exploração.
Reconheceu o desejo que também escutou em sua voz na noite
que o abraçou. Obedeceu-o. Colocou as palmas das mãos com
os dedos estendidos em seu peito e se limitou a sentir. A
suavidade e o calor de sua pele. O contorno de seus músculos
que a deixavam lânguida pelo desejo. Os fortes batimentos de
seu coração. Suas mãos começaram a mover-se como se
soubessem o que fazer por si só. Aferraram-se os ombros,
percorreram suas clavículas, desfrutaram da aspereza de seu
queixo e se detiveram em seu cabelo. Wyn cheirava uma
maravilha. A fumaça do fogo e a homem. Diantha ficou nas
pontas dos pés e seguiu o rastro de suas mãos com os lábios.
Colocou suas mãos nas suas costas, estendeu os dedos e o
gesto fez com que se sentisse protegida, desejada e querida.
Sabia que Wyn podia protegê-la. Tinha-o sabido desde o
começo.
No final de um momento, essas mãos seguram a regata.
― Um cavalheiro não deve comprometer a modéstia de
uma dama para lhe fazer amor ― murmurou. ― Deveria te
permitir que seguisse vestida. Mas quero ver-te, bruxa. Quero
ver-te por inteiro.
Diantha se sentiu muito alarmada.
― Ah, sim?
― Durante a febre, o único pensamento que me mantinha
vivo era a possibilidade de ver seu corpo algum dia.
― Mas... ― Era impossível! Ninguém a havia visto nua,
nem sequer suas irmãs nem sua donzela. Aos quatorze anos
voltou o espelho contra a parede. Sua mãe foi quem a animou a
fazê-lo, aduzindo que assim não ficaria angustiada todos os
dias. ― Melhor se apagarmos antes a vela...
― Diantha, não me negue isso. ― Seus olhos a olhavam
com um brilho abrasador.
Fechou os olhos para não ver sua reação quando tirasse a
regata. Ele a ajudou.
O silêncio se prolongou.
― Por Deus! ― escutou-o exclamar com voz afogada.
Diantha cobriu o abdômen com uma mão.
― Sei que não... quero dizer que se pudesse...
― Se alguém pedisse a Deus que criasse à mulher perfeita,
teria que negar a petição. Porque já criou você.
Diantha abriu os olhos de repente e o viu contemplando-a,
extasiado. Depois a tocou, justo no lugar onde tinha as
horríveis estrias brancas, que se estendiam sobre seus quadris
e sobre o abdômen. A babá havia dito que essas marcas e as
que tinha nos seios assinalavam os lugares onde a pele antes
estava mais estirada, e que jamais desapareceriam. Nesse
momento, os dedos de Wyn as acariciavam com ternura.
― Minha linda e única Diantha.
Sentiu que um soluço entupia sua garganta, mas não
podia permitir-lhe sair. Isso era uma fantasia. Não deveria
chorar, embora se tratasse de lágrimas de alegria.
― Diz de verdade? Está falando a sério?
― Sim, digo-o de verdade. Por que iria mentir-te? Já te
tenho aqui, disposta. Não preciso te mentir e o que estou
fazendo é desfrutar contemplando-a e dizendo o que penso,
enquanto espero a que suas covinhas apareçam de novo.
― Agora mesmo não está olhando minhas covinhas.
― É que me distraio com muita facilidade. ― Beijou-a nos
lábios enquanto que lhe rodeava a cintura com as mãos e a
colava a ele.
Por fim estavam pele contra pele. Diantha sentiu que seus
seios se esmagavam contra seu torso e se precaveu de sua
ereção, roçando-lhe justo ali onde mais desejava que a tocasse.
― Meu Deus, Diantha. ― Wyn lhe aferrou o traseiro e se
esfregou contra ela. ― Se deseja uma prova do muito que eu
gosto, somente terá que esperar alguns minutos e acabarei te
fazendo minha aqui no chão. Não posso esperar mais.
Diantha se afastou de seus braços, embargada por uma
mescla de alívio e desejo.
― À cama!
Wyn tirou as botas enquanto caminhava e acabou
aferrando-se a um poste como se necessitasse um apoio para
guardar o equilíbrio. Diantha não sabia se sentava ou deitava-
se, e no final acabou em uma postura de cavalo sob o olhar de
Wyn.
― O que espera? ― perguntou-lhe com voz trêmula.
― Despertar de repente e voltar para a realidade ―
respondeu ele com absoluta seriedade.
Nesse momento, Diantha soltou um suspiro de gozo.
― Esta é uma realidade.
Depois de desabotoar as calças, Wyn a tirou e então foi
sua vez de contemplá-lo. Em realidade, não pôde conter-se.
Estava assustada e assombrada, e o desejo que tomou conta de
sua virilha era quase dolorosa. Nesse instante, soube sem a
menor dúvida o que aconteceria a seguir. Seu corpo o disse.
Wyn se aproximou dela e sob seu apaixonado olhar se
sentiu verdadeiramente linda.
― Morro por beijá-la ― ouviu-o murmurar. ― Em todos os
lados. ― Acariciou-a em um mamilo com um polegar,
esfregando-o uma e outra vez de uma forma maravilhosa.
Depois, inclinou-se e tomou-o entre os lábios.
― Sim! ― exclamou ela com um suspiro. ― Estava
desejando que fizesse isso desde a noite de Knighton.
― Essa noite te tratei muito mal. ― Sua língua lambeu o
sensível mamilo várias vezes. ― Toquei-te sem que me
convidasse a fazê-lo e...
― Sim, eu te convidei a fazê-lo. ― Arqueou as costas para
sentir a carícia de sua mão na cintura e levantou os quadris
em claro convite. ― Por que não me fez tua?
― Não podia ― respondeu, e suas carícias se detiveram. ―
O álcool tinha me deixado impotente.
Diantha piscou.
― Entende o que quero dizer? ― sussurrou contra sua
bochecha com voz trêmula.
― Acredito que sim. ― Diantha olhou para baixo. ― Não...
está sempre assim, verdade?
A pergunta lhe arrancou um sorriso.
― Se você estiver perto, sim. ― O sorriso desapareceu. ―
Salvo aquela noite. ― Segurou-a com força pela cintura. ―
Espero que não se sinta ofendida agora que... agora que sabe
que não tomei sua virgindade naquela noite movido pela honra,
mas sim pela impotência.
― Não te acredito.
― Diantha...
― Não acredito que o tivesse feito no caso de se encontrar
bem. Não se eu te tivesse rechaçado. ― Acariciou-o em seu
torso com as gemas dos dedos e fechou os olhos. ― O
importante ― acrescentou enquanto descia por sua cintura ― é
que esta noite não bebeu.
Wyn ofegou quando ela fechou os dedos em torno de seu
membro. Era tão duro como parecia, tão suave e tão quente
como o que ela sentia entre as coxas.
― Se eu te rechaçasse agora, deixar-me-ia partir?
― Não me rechaçará ― respondeu ele com certa aspereza,
pondo de manifesto a ânsia de que lhe tinha falado.
― Não. ― Diantha era consciente de que sua voz tremia
tanto como o seu corpo. O desejo era tão doloroso que
necessitava que ele a aliviasse. Separou os joelhos e Wyn se
colocou entre elas.
Seu corpo estava muito quente e o roce de sua pele a
deixou sem fôlego.
― Não te farei mal ― assegurou-lhe em voz baixa.
― Sei ― replicou ela com um fio de voz. ― Far-me-á isso
algum dia?
Beijou-a na testa, na comissura dos lábios, na garganta e
nos lábios.
― Nunca mais.
― Mas...
Acariciou-a com os dedos, demonstrando uma grande
habilidade. Diantha ficou petrificada. Seguiu acariciando-a com
destreza e seu corpo pareceu recordar o momento que a
penetrou com o dedo, já que a percorreu um estremecimento,
enquanto elevava os quadris. Ele a penetrou imediatamente.
Depois, ficou imóvel, respirando de forma superficial.
― Deus! ― exclamou com voz afogada e rouca. ― Está
bem?
― Sim. Isso acredito ― respondeu Diantha. Sentia-se um
pouco incômoda, como se não houvesse espaço em seu corpo
para acolhê-lo de tudo, e aturdida porque em realidade ele
houvesse conseguido. Passou-lhe uma mão em um ombro,
reparando na força masculina que possuía. Sentia-se rodeada
por completo por ele, embora em realidade ela também o estava
rodeando. Jamais tinha imaginado semelhante nível de
intimidade. Por mais que tivesse imaginado como seria esse
momento, nunca tinha pensado que pudesse ser assim. ― Não
me dói. Não muito. Não deveria doer a primeira vez?
Wyn enterrou os dedos no seu cabelo.
― Talvez tenhamos cuidado dessa parte em Knighton.
― Acreditava que não recordava do que ocorreu em
Knighton ― sussurrou ela.
Beijou-a na boca com ternura.
― Jamais poderia esquecê-lo.
― Mas ainda há mais. ― Diantha jogou a cabeça para trás,
aceitando seus beijos na garganta enquanto deslizava os pés
pelo cobertor e o sentia tão dentro, tão duro e tão unido a ela.
― Verdade?
― Muito mais. ― Seus olhos cinzas reluziam como os
diamantes. ― Deixe-me lhe ensinar isso.
― Sim.
E a ensinou. Bem melhor que em resposta a suas muitas
perguntas, como bom cavalheiro que era, instruiu-a.
Wyn se mostrou muito paciente. Mas era um grande
instrutor. E ela era uma aluna aplicada. Enquanto a tocava e
despertava em seu corpo um desejo que a sua vez avivava o
seu, Diantha aprendia que os prazeres da carne podiam
converter-se em uma tortura que levava a beira do desespero.
Entretanto, as emoções que sentia também procediam do
coração. Porque entre os beijos e as carícias, somente perdeu o
controle quando o escutou murmurar seu nome.
Nesse momento, experimentou um prazer inesperado, um
prazer que a afligiu e a embargou por completo, percorrendo-a
de cima abaixo e lhe arrancando gemido atrás de gemido, e
inclusive algum grito.
― Ai, não! ― Cravou-lhe os dedos na cintura, colando-o
ainda mais a ela e meneando para que seguisse e seguisse. ―
Beije-me para que deixe de gritar.
Wyn a beijou. Depois, aferrou-lhe um joelho e a instou a
colocar a perna em torno de seu quadril. Isso ela adorou, o fato
de que a intimidade pudesse ser ainda melhor à medida que
seus corpos se acariciavam e se roçavam. O calor se fez
abrasador enquanto ele aumentava o ritmo de suas investidas,
tão tenso que seus músculos lhe pareceram pedras. Em um
dado momento, afundou-se até o fundo nela, e a levou de novo
ao êxtase.
― Ooooh!
Wyn fechou os olhos, abraçou-a com força e ficou quieto,
salvo pela parte de seu corpo que estava enterrado nela.
― Deus! ― gemeu, e quase sem fôlego, acrescentou: ―
Diantha!
Ela estava ocupada tratando de recuperar o fôlego
também. Tinha a testa suada e os lábios úmidos. Wyn também
tinha a pele molhada. Apoiou-se nos cotovelos, inclinou a
cabeça e a beijou nos lábios enquanto que seu torso lhe roçava
os mamilos. Os beijos lhe pareceram diferentes nesse
momento, já saciados. Seu sabor era mais salgado. Wyn
passou um polegar pelo seu lábio inferior e depois seguiu lhe
acariciando a garganta e um ombro. Seu corpo estava tão
sensível que acusou o recebimento das carícias por inteiro.
Em seguida, separou-se dela, embora deixasse um braço
em torno de sua cintura. Colocou-se a seu lado no colchão,
fechou os olhos e exalou um comprido suspiro, tão trêmulo
como os erráticos batimentos do coração de Diantha.
Ela se voltou para olhá-lo e contemplou seu rosto. Suas
maçãs do rosto e seu queixo. A força desses ombros e desses
braços que a tinham rodeado. Sentia uma estranha opressão
no peito. Ao longo dos últimos dias, tinha conseguido muitos
propósitos. Entretanto, o mais simples de todo o simples fato
de respirar, resistia.
20

Wyn escutou o suave, embora um pouco entrecortada,


respiração da mulher que lhe tinha entregado seu corpo
virginal com uma paixão generosa, e o paralisou uma sensação
totalmente desconhecida. Ficou imóvel um minuto inteiro,
seguido de outro, e de outro, enquanto permitia que o frio do
quarto desterrasse o sono a fim de poder pensar, raciocinar e
compreender. Abriu os olhos e cravou o olhar no dossel,
estudando os detalhes da madeira esculpida abrigado à luz da
lua.
Via as imperfeições da nervura, o nó da terceira tábua,
uma mancha de verniz com forma de espiral que conferia
caráter ao adorno principal. Podia concentrar-se nesses
detalhes. Pensou em concentrar-se nesses detalhes. Pensava
com claridade. Com absoluta claridade. E, entretanto, sentia-se
contente.
Mais que contente. Seu corpo se sentia satisfeito como não
havia se sentido desde que tinha uso de razão. A sede não
estava escondida sob a superfície, não havia nem rastro de
ânsia em suas veias, nem um ápice da raiva que o desejo não
pudesse saciar. Não desejava nada. Mal se recordava a última
vez que sentiu algo que não fosse essa necessidade
desesperada, de modo que a paz lhe era desconhecida.
― Para falar a verdade ― murmurou a doce beleza
estendida a seu lado, ― as histórias de Teresa não me
prepararam de tudo para isto.
Voltou a cabeça, com a intenção de lhe sorrir, mas
somente atinou em olhá-la. Diantha estava de lado, com os
joelhos dobrados. Tinha as mãos debaixo da bochecha, e a
rodeavam seus cachos castanhos. Essas largas pestanas
emolduravam olhos com expressão sonolenta.
Sim, ele desejava algo. Pelo amor de Deus, com força!
― A senhorita Finch-Freeworth parece uma dama com
muitos conhecimentos.
― Nem tanto como eu acreditava. ― Diantha falava como
se estivesse a ponto de adormecer, mas esses lábios rosados
esboçavam um sorriso. Depois, abriu os olhos. ― Só mencionei
o sobrenome de Teresa no primeiro dia, antes de perceber de
que não era uma boa amiga como eu ia pregando por aí aos
quatro ventos. Como é que se lembra?
Agarrou uma manta e a cobriu com ela, permitindo-se
acariciar de novo essa pele sedosa. Fazia muito tempo que não
se permitia tocar em uma mulher dessa forma. Fazia muito
tempo que não se acreditava merecedor de um prazer tão
singelo e sincero.
― Já lhe disse, bruxa. ― Acariciou-a na bochecha, suave
como o rocio, com o dorso dos dedos. ― Tenho uma memória
infalível.
― Wyn ― sussurrou-lhe enquanto se deleitava com a
carícia, ― contar-me-á agora sobre os resgates dessas moças?
― Não me corresponde falar do assunto. Corresponde às
pessoas para quais trabalho.
Ela o olhou.
― É um espião?
― Não.
Diantha se sentou e as mantas caíram em torno de sua
cintura, deixando livre seus generosos seios, com seus mamilos
rosados e suaves.
― Mas se fosse um espião, não poderia dizer a ninguém.
Limitar-se-ia a continuar com suas destrezas secretas, embora
se contasse a outras pessoas, diriam que é um malfeitor. ―
Tinha um brilho travesso nos olhos, de modo que tentou
concentrar-se neles, mas o frio da estadia estava endurecendo
seus mamilos, e morria por saboreá-los de novo.
― Mais histórias da senhorita Finch-Freeworth? ―
conseguiu perguntar.
Ela sorriu, mostrando-lhe as covinhas, e arqueou as
sobrancelhas com gesto travesso.
― De seus irmãos.
― Ah. Havia irmãos com os quais passou parte do tempo
em Brennon Manor? ― As covinhas conseguiram que seus
olhos não descessem de seu pescoço, mas também que seu
desejo se multiplicasse. Adoraria acariciá-los com a língua
antes de percorrer outras zonas. Todas as zonas de seu corpo.
Conhecê-la-ia por completo. ― Tenho motivos para me sentir
com ciúmes?
― Dos espantosos irmãos de Teresa...? ― Fechou a boca de
repente. ― Ficaria com ciúmes?
Rodeou-a pela cintura com um braço e olhou nesses olhos
reluzentes.
― Sim. ― merecia-se muito mais que um escândalo e um
véu de viúva. Durante cinco anos, somente tinha tido um
objetivo: acabar com um duque. Nesse momento, era incapaz
de recordar o motivo.
Enterrou o rosto na curva do seu pescoço e aspirou seu
aroma. Embriagou-o, cheirava a ar fresco e a ela. Entretanto,
fazia muito mais que embriagá-lo. Diantha fazia com que se
sentisse completo.
― É minha, bruxa ― sussurrou contra sua pele. ― Minha
no bem e no mau.
Diantha não tinha experiência nesse tipo de situações,
mas temia que somente fossem palavras habituais entre
amantes. Afinal, ela mesma tinha na ponta da língua umas
palavras que não tinha a menor intenção de pronunciar porque
as acreditava unidas ao prazer que lhe tinha proporcionado a
seu corpo, um prazer indescritível e maravilhoso. E quanto à
«no bem e no mau», deu-lhe a impressão de que o dizia a
contragosto, apesar de murmurar-lhe sedutoramente contra a
garganta. De modo lhe dizer aquilo que sabia ser a verdade.
― Eu gostei do que acabamos de fazer.
― Sério? ― Os lábios de Wyn, que estavam contra seu
pescoço, esboçaram um sorriso.
― Podemos repeti-lo? Agora?
Ele beijou seu queixo antes de beijar as comissuras de sua
boca, e devagar, com ternura, acabou beijando-a nos lábios,
momento no qual se colou a ele.
― Por favor ― sussurrou. ― Se admitir que gostei muito,
podemos repeti-lo?
― Ainda não, bruxa. Um homem necessita tempo para...
Sua elegante mão se fechou em torno de seu membro e
procedeu a demonstrar, para surpresa de ambos, que Wyn
necessitava de menos tempo de que tinha acreditado em um
princípio.

****

Wyn despertou ao amanhecer, desejando-a de novo.


Despenteada e rosada, com um aspecto vulnerável
enquanto dormia, Diantha respirava de forma pausada. Não
podia despertá-la, nem sequer para saciar a cansativa sede que
voltava a assaltá-lo.
Vestiu-se e foi ao estábulo onde Galahad e Lady Priscilla o
saudaram com suaves relinchos. Owen, que se encontrava
sentado no tamborete junto à vaca, levou a mão à boina.
― Bom dia, senhor.
― Vamos hoje. Se preferir ficar aqui, deixarei a potranca a
seus cuidados e direi ao senhor Guyther que tem autoridade
sobre ela.
O menino ficou boquiaberto.
― Eu gostaria muito, senhor.
― É um animal muito valioso. ― Owen tinha um talento
natural com os cavalos. Ele não demoraria muito em voltar e
Guyther fiscalizaria a situação. ― Tem certeza de que quer
assumir a responsabilidade?
― Sim, senhor!
Tirou a manta de Galahad e o selou.
― Quando terminar de ordenhar a vaca, vá ao povoado e
peça à senhora Cerwyn mais ervas das quais me preparou
recentemente. Espere que tenha o pacote pronto e volte.
Wyn cavalgou até a casa de Guyther. O administrador o
recebeu muito melhor que em seu anterior encontro no
povoado. Os galeses eram gente desconfiada e sábia, e os
habitantes de Abbaty Fran Ddu não entendiam por que não
voltou quando sua tia-avó adoeceu aquela última vez, nem por
que não assistiu ao funeral. Sabiam que estava em Londres.
Desconheciam, é obvio, que entre a última vez que o viram e a
enfermidade que acabou com sua tia, ele tinha matado uma
moça (a quem em realidade tratava de ajudar), e que a tinha
matado porque tinha atuado de forma impulsiva, muito
orgulhoso de suas habilidades, muito crédulo e muito bêbado.
Desconheciam que não suportava a ideia de ter que contar isso
à mulher que lhe tinha ensinado como ser um bom homem.
Tampouco entendiam por que tinha demorado cinco anos em
retornar. Claro que em dez dias se acostumaram com sua
presença. Além disso, sentiam curiosidade pelos motivos que o
tinham levado ali e pela dama que o acompanhava. Guyther
deixara isso bem claro.
Falou com o administrador a respeito da propriedade e
depois voltou para a casa enquanto a neblina se limpava,
deixando uma manhã plúmbea. Owen já tinha partido, de
modo que Wyn se ocupou de Galahad e depois partiu ao fundo
do estábulo. Deu-lhe uma bola de feno recém-cortado e o
calorzinho do sol. Como se voltasse a ser um moço, tirou a
jaqueta, deitou-se de costas, usou um braço a modo de
travesseiro e escutou os sons dos animais e do arroio na
distância, os gorjeios dos pássaros e o dia ao despontar.
Escutou que Diantha se aproximava antes sequer de vê-la,
seus passos eram leves.
― Vi que voltava com Galahad. Não... Não se levante! ―
deixou-se cair de joelhos junto dele, enquanto a luz do sol se
derramava sobre seu cabelo. ― Surpreendeu-me que saísse
para cavalgar quando vamos pôr-nos em marcha hoje.
― Supus que estivesse dormindo. ― Agarrou-lhe uma mão
e a levou aos lábios. Colocou-lhe a outra sobre seu peito e o
instou a deitar-se de novo no feno.
― Não podia dormir. ― Tinha uma expressão muito
decidida nesses olhos azuis e as covinhas bem à vista. Subiu-
lhe em cima. ― Estava sonhando com o que fizemos ontem à
noite e no final acabei por despertar.
Pôs-se a rir ao escutá-la.
― Tomou o café da manhã, bruxa?
Diantha se sentou escarranchado sobre seus quadris, com
as saias ao redor das coxas.
― Não quero comer.
― É uma novidade.
― Quero que me faça outra vez amor. Agora. Em um
estábulo, o mesmo lugar onde me beijou pela primeira vez. ―
Seu sorriso o deixou tonto.
― Sua dama de companhia...
― A senhora Polley não despertou e ainda não vi Owen. ―
Esfregou sua virilha contra seu membro por cima das calças.
Wyn a segurou pelos quadris e gemeu quando Diantha
começou a lhe acariciar com a mão. Depois de um instante, ela
se apoiou em seus ombros, inclinou-se para frente e começou a
esfregar-se contra ele, movendo os quadris para frente e para
trás.
― Faz com que isto seja maravilhoso ― sussurrou ela,
quase com acanhamento, com as pálpebras entrecerradas.
Wyn colocou uma mão na sua nuca e a instou a inclinar-
se mais. Seus lábios eram tão doces essa manhã como foram
na noite anterior. De fato, eram-no ainda mais.
― A ideia é que seja assim, bruxa ― murmurou enquanto
que enterrava os dedos no seu cabelo.
Esses olhos azuis se arregalaram.
― Alguma vez te atribuiu o mérito de nada bom?
― Atribuir o mérito do prazer durante o sexo seria um
excesso de arrogância do qual nem sequer eu sou capaz.
― Não é um homem muito orgulhoso, embora suponha
que você acredite que sim. E se o sexo é tão prazeroso de forma
natural, por que tantas mulheres casadas vão pela vida
insatisfeitas e com o rosto avinagrada?
Wyn se pôs a rir e a beijou, e durante um tempo não
houve pressa, somente a quentura de seus lábios e de seu
corpo entre suas mãos, enquanto cravava os dedos nos seus
ombros. Quando a escutou gemer de desejo e o aprisionou
entre suas coxas, esfregando-se contra ele em busca do prazer,
não entendeu a necessidade de atrasar mais o que ambos
queriam. Introduziu a língua em sua boca para saboreá-la. Os
dedos de Diantha puxaram sua camisa e seu colete com
impaciência.
― Ai, por favor, tire isso ― pediu-lhe com um fundo
suspiro enquanto que se colava a ele. ― Quero te tocar.
― Há um dormitório a menos de vinte metros.
― Estou reescrevendo a regra número um. ― Desabotoou
seu colete e o tirou. ― «Não lhe negue nada, embora não seja
especialmente virtuosa.»
― Vejo-me obrigado a sucumbir, porque é boa de coração e
generosa até não poder mais, Diantha Lucas. ― Ela se levantou
de seu regaço enquanto ele tirava o colete, mas o brilho
travesso de seus olhos cinzas distraiu Diantha. ― E, é obvio, eu
sou cúmplice de sua perda de virtude ― acrescentou.
― Só porque te obriguei. ― Tocou-o e a emoção do contato
a percorreu por inteiro. Tocá-lo não era um sonho. Transcendia
o sublime.
― Ninguém me obriga a fazer algo que não deseje. ―
Agarrou-lhe as abas da sua camisa.
― Admita ao menos que estive te aporrinhando. ― Ajudou-
o com a camisa, já que queria uma desculpa para poder lhe
percorrer as costas, para sentir a força que se ocultava sob sua
pele e para deleitar-se com as emoções que a afligiam. ― É
verdade que se outros não aderem a meus desejos ao princípio,
estou acostumado a convencê-los de uma maneira o... ― Seus
dedos se detiveram ao chegar a sua espinha dorsal. ― O que...?
― Não me toque! ― Wyn se voltou a toda pressa e lhe
segurou o pulso com uma força brutal.
Uma fileira de cicatrizes circulares subia da base de suas
costas pela coluna, todas do tamanho do polegar de um
homem, com uma textura dura e rugosa.
― Por que não? ― A voz lhe saiu rouca.
Wyn afrouxou o aperto.
― Diantha, perdoe-me. ― Inspirou fundo.
― São muito antigas. Ainda seguem doendo?
― Não.
― Parecem queimaduras. ― Eram cicatrizes brutais. ―
Feitas a propósito.
― Certamente.
― Com um atiçador?
― Nada tão dramático. Somente com charutos, era a forma
de castigo preferida de meu pai e de meu irmão mais velho.
― Por que lhe fizeram isso?
Ele cravou a vista no chão.
― Porque lia livros que eles não liam. ― Soltou uma
gargalhada amarga. ― Porque lia livros, sem mais.
― Porque lia livros? Por Deus, que maldade.
― Diantha ― sussurrou, ― são água passada. Foi há vinte
anos.
― Se de verdade fosse água passada, por que não posso te
tocar aí?
Seus olhos chapeados se cravaram nela e observaram seu
semblante. Rodeou sua cintura com um braço e a colou a ele.
Beijou-a, e não foi um beijo destinado a distraí-la, mas sim
esteve motivado por algo diferente, por algo mais. Depois de um
instante, limitou-se a abraçá-la enquanto seus corações
pulsavam ao uníssono e ela jurou que não pediria nada mais à
vida.
― Deixe-me lhe tocar ― suplicou-lhe, sussurrando.
Wyn apoiou os lábios em sua testa e ficou quieto,
enquanto ela o rodeava com os braços e colocava as mãos por
debaixo da camisa.
― Um. Dois. Três. ― Seus dedos exploraram a pele
danificada sobre a coluna, onde a dor deve ter agônico. ―
Quatro. Cinco. Seis.
― Sete. ― Acariciou-a na bochecha com a sua. ― A
primeira vez, estava lendo um livro sobre as sete maravilhas do
mundo antigo. Depois disso, eles achavam graça ao tentar
reduzir meus esforços a estrada já conhecida. Tinham que
demonstrar sua pontaria apesar do whisky consumido.
― Quais são as sete maravilhas do mundo antigo?
― A maioria já não existe. Eram magníficas estruturas
erigidas pelo homem. Disse a meu pai e a meu irmão que
queria visitar a grande pirâmide de Giza algum dia. ― Guardou
silêncio um momento. ― Acredito que tinha seis anos naquela
época.
― Era precoce. ― Deslizou a mão por suas largas costas
por debaixo da camisa. ― Muito inteligente para eles.
― Mais inteligente do que me convinha. ― Seus polegares
acariciaram os lados de seus seios, livres do espartilho.
― Eu gosto que seja inteligente, senhor Yale.
― E eu gosto quando se senta em meu regaço, bruxa.
Diantha o beijou no ombro, afastando o tecido para poder
lhe roçar a pele com os lábios.
― Vais fazer amor comigo agora?
― Permitirá que faça isso em uma cama em vez de um
monte de feno mofado?
― Eu gosto do feno mofado. ― Mordiscou-o no queixo sem
barbear. Tocá-lo e vê-lo dessa maneira, quando não estava
polido à perfeição, provocava-lhe batimentos deliciosos no
coração, embora um pouco estranhos. ― Claro que suponho
que deveria me render à vasta experiência do elegante
cavalheiro londrino.
― O elegante cavalheiro londrino tomando um descanso
em um monte de feno. ― Acariciou-a no mamilo com o polegar.
Ela estremeceu e jogou a cabeça para trás. O sol brilhava
com força através da portinhola do estábulo. Em algum lugar
não muito longínquo, os latidos de um cão se misturavam com
os gorjeios dos pássaros.
― Tem experiência fazendo amor em montes de feno,
senhor Yale?
― Terá uma grande decepção se lhe responder que não,
senhorita Lucas?
― Está sendo esquivo.
― Um velho costume. ― Seu polegar penetrou por debaixo
do corpete. ― Terei que remediar isso. ― Acariciou-a.
Ela ficou sem fôlego, necessitada de seus beijos.
Os latidos do Ramsés adquiriram um matiz frenético. As
mãos de Wyn se detiveram.
― Diantha...
Ela o beijou de novo nos lábios.
― Temos que ir esta manhã? ― Acariciou-o no torso com
as mãos. ― Tenho a intenção de chegar a Calais o quanto antes
possível, mas eu gosto deste lugar. Será difícil partir, sobretudo
agora que brilha o sol. ― Sorriu contra seu queixo. ― Alegro-me
de nos havermos perdido neste lugar.
― Diantha. ― Agarrou-a pela cintura e a afastou dele, ―
levante-se. E faça algo com seu cabelo e com seu vestido.
― O que?
― Por favor. Agora. Vem alguém.
― Alguém... Aqui?
Agarrou-a pela mão e ela ficou em pé. Wyn a ajudou a
tirar fibras de feno das saias antes de recolher seu colete e sua
jaqueta. Nesse momento, ela escutou os cascos dos cavalos e o
estalo continuado das rodas da carruagem sobre a estrada de
pedras.
― Ai, não. Acha que os donos retornaram? Se tivéssemos
ido há uma hora...
Ele a observou.
― Volte para casa pelo atalho que rodeia o abrigo. Que a
senhora Polley a ajude a se vestir como é devido.
Ela assentiu, mas se aproximou da porta.
― Antes quero dar uma olhada.
― Não precisa. ― Ele ficou onde estava.
― Mas morro para ver se é uma grande dama...
A carruagem se deteve diante da casa, uma enorme e
reluzente carruagem de viagem puxada por quatro cavalos da
mesma cor. O lacaio que estava sentado na boleia junto ao
11
cocheiro vestia um libré azul.
― Tem um brasão na porta ― sussurrou. ― Nossa anfitriã
é uma aristocrata!
Wyn não se moveu e tinha uma expressão muito séria, de
modo que a inquietação se apoderou de Diantha. Olhou a
carruagem uma vez mais.
― E... tem rodas azuis. Que estranho, mas acredito...
acredito que reconheço a carruagem.
― Suspeito que já a viu em Savege Park. ― Por fim ele
ficou a seu lado. ― Pertence aos condes de Blackwood.
Nesse momento, viram que lady Katherine Blackwood
descia da carruagem com a ajuda de seu lacaio, tão elegante e
tão bonita como de costume. A cunhada de Serena e a mulher
do melhor amigo de Wyn.
Depois de instantes de confusão, a emoção de Diantha se
transformou em estupefação. Escapou-lhe um ofego, seguido
de um gemido de pura dor. Quando por fim olhou para Wyn,
seu rosto era uma máscara impenetrável.
― Volte para a casa, Diantha. Eu levarei lady Blackwood à
sala de estar. Por favor, reúna-se conosco quando puder.
Embora, mal compreendesse o que estava passando e só
tinha suspeitas, Diantha partiu sem dizer uma palavra, porque
era incapaz de falar o que queria sem gritar. Ou sem chorar. E
tal como lhe tinha acontecido com todos aqueles que lhe
tinham feito mal no passado, as crianças da vizinhança, suas
companheiras de classe ou sua mãe, negava-se a chorar diante
dele.
21

Wyn abotoou a jaqueta enquanto caminhava para a porta


principal da casa e Leam descia da carruagem atrás de sua
esposa. O conde de Blackwood era um homem alto, ágil e forte.
Sua expressão carrancuda era intimidante.
― Milady ― disse Wyn enquanto aceitava a mão que lhe
tinha estendido a condessa, ― você está linda apesar dos
desconfortos da viagem.
― Não foi tão incômodo depois de tudo. A carruagem tem
uma suspensão magnífica. ― Sorriu enquanto seus olhos
escuros o examinavam, depois os cravou na casa. ― Onde ela
está? Viemos em vão ou conseguiu retê-la durante todo este
tempo?
«Não o suficiente», pensou.
― Está lá dentro. Tínhamos planejado dar seguimento a
viagem hoje mesmo.
― Nesse caso, chegamos bem a tempo. ― O sorriso de Kitty
o desarmou por completo. ― Wyn, tem bom aspecto. E sua casa
é linda, aqui, escondida neste vale como se fosse um
monastério. O que significa Abbaty Fran Ddu?
― Abadia dos Corvos Negros.
O conde pigarreou.
Kitty estava a par da existência do Clube Falcon, mas não
sabia de tudo, como por exemplo os nomes chave que o diretor
tinha atribuído há anos a seus cinco agentes. Naquele tempo,
Wyn só compartilhou a informação com sua tia-avó, e ambos
deram umas boas risadas pela coincidência. Pareceu-lhes
adequado. Como se fosse obra do destino.
Wyn apontou a porta principal.
― Entremos. Ordenarei que preparem um refrigério,
embora seja modesto. A Abadia conta com uma servidão muito
reduzida nesse momento.
― É obvio, a farsa ― comentou Kitty. ― Os espiões
recorrem a qualquer mutreta com o prazer de manter às damas
à margem de suas atividades.
― Não somos espiões ― contradisse-a seu marido. ― Yale,
em que confusão se colocou?
― Eu também me alegro de ver-te, Blackwood. Senti
saudades de seu semblante carrancudo. Vejo que a mecha
branca está maior da última vez que te vi. Certeza que é por
culpa de seu mau humor.
― Constance me disse que Gray o mandou para procurar
um cavalo há um mês ― replicou o conde com um leve acento
escocês que deixava claro que não estava muito contente. ―
Um fogoso cavalo?
― Leam, de verdade é necessário isto? ― Kitty tomou seu
marido pelo braço. ― Wyn, sério, a curiosidade está me
matando. A Leam também, porque do contrário não estaríamos
aqui. Sua nota, que por certo recebemos pouco depois que
chegamos à casa de Londres, era muito concisa. Chegamos à
cidade na quarta-feira.
― Obrigado por vir tão rápido, milady ― disse Wyn, que
olhava para Leam. ― Milorde...
― Nem pense em me olhar com essa sobrancelha
arqueada...
― Como também não pense me chamar «moço» ou te
estripo, Leam.
― Não está armado, Wyn.
― Isso parece. Mas levo facas e pistolas escondidas. O que
leva você?
― Isso é o que mais me preocupa, o que leva escondido ―
atravessou Kitty com um brilho malicioso nos olhos. ― É obvio
que viemos o quanto antes possível, pelo bem de Diantha, tal
como desejava que fizéssemos. E agora nos acompanhe ao
interior desta linda mansão. As rosas estão em plena floração!
É um jardim divino. Por que não nos convidou antes a este
lugar?
Porque não tinha pisado aqui desde que conheceu Kitty. E
antes de conhecê-la, durante os anos que trabalhou junto a
Leam para o Clube Falcon, a casa pertencia a sua tia-avó, a
mulher que o salvou, que lhe ofereceu um refúgio, um lar, e
que lhe ensinou tudo o que mais apreciava e valorava.
Pertencia à mulher que lhe ensinou a ser o contrário do que
mais desprezava: seu pai e seus irmãos.
A senhora Polley os recebeu no vestíbulo.
― Milorde, milady, apresento-lhes à senhora Polley, que se
encontra a serviço da senhorita Lucas e que prepara umas
bolachas de aveia excelentes. Senhora Polley, seria amável de
levar a sala de estar um refrigério para os condes de
Blackwood?
A senhora Polley arregalou os olhos, mas partiu a toda
pressa depois de saudar com uma reverência.
Leam olhou a seu redor ao entrar na sala de estar.
― Yale, acredito que a senhora Polley não te tem muito
carinho ― comentou.
― Se você soubesse...
― Imaginava. ― O acento escocês tinha desaparecido e
nesse momento só apreciava o aristocrata educado em
Cambridge e em Edimburgo.
― O que tem que saber, Wyn? ― Kitty se aproximou da
janela para dar uma olhada ao exterior.
Leam se acomodou em uma poltrona.
― Tenho que seguir esperando muito mais ou me levanto e
eu mesmo procuro o whisky?
― Melhor esperar sentado ― respondeu Wyn. ― Temo que
não há licor nesta casa. E, por certo, somente são nove da
manhã. Doem-lhe as articulações, velho?
― Bebeu tudo antes que eu chegasse, Yale?
Wyn se voltou para Kitty.
― Por que não o deixou em Londres?
Ela se pôs a rir.
― Negou-se. Disse que não poderia deixar uma mulher
casada e uma virgem em mãos de um espião galés enquanto
viajavam pelos desertos a caminho de Londres.
― Obrigado pelo voto de confiança, meu amigo.
Um brilho estranho iluminou os olhos de Leam.
― Então, não há whisky?
Kitty inclinou a cabeça.
― Wyn, ela segue sendo virgem? Essa foi a bagunça do
qual a resgatou? Era esse tipo de confusão no que as jovens
impetuosas acabam se envolvendo de vez em quando?
Leam começou a tamborilar com os dedos sobre o braço
da poltrona enquanto contemplava sua mulher com expressão
pensativa.
― Não ― respondeu Diantha do vão da porta. ― Não é esse
tipo de confusão. ― Entrou na sala de estar, aproximou-se de
Kitty e a saudou com uma reverência. ― Bom dia, lady
Blackwood. Milorde.
― Quantas vezes tenho que te dizer que me chame Kitty?
― protestou a condessa enquanto a tomava pela mão. ― Somos
família. Por isso, precisamente, o senhor Yale nos pediu ajuda.
― Sinto muito que tenha tido que fazer uma viagem tão
longa por minha culpa. ― Diantha se colocou de forma que
dava as costas a Wyn. Estava muito pálida. ― Trouxe pouca
bagagem e estarei pronta para partir assim que decidam,
embora suponha que antes quererá descansar da viagem.
― De fato, ontem à noite nos detivemos em uma estalagem
que está apenas a cinco quilômetros daqui e dormi
estupendamente. ― Kitty olhou Wyn, e depois olhou de novo
para Diantha. ― Que tal se primeiro tomássemos um pouco de
chá?
― Como queira, Kitty ― respondeu Diantha com voz
apagada, embora olhasse Wyn de soslaio muito dissimula,
antes de baixar o olhar.
A condessa tomou Diantha pelo braço.
― Mas antes, eu adoraria dar um passeio, se não se
importa em me acompanhar.
― Será um prazer. Os jardins estão descuidados há um
tempo, mas a estrada está espaçosa de matagais.
A moça que se sentara em seu baú de viagem à margem
da estrada tinha desaparecido e em seu lugar se encontrava
uma dama educada e fantasmal.
― Cavalheiros ― disse Kitty, ― retornaremos em breve. ― E
partiram.
Leam esfregou o queixo.
― Voltou a fazê-lo, verdade?
Wyn tinha fixo a vista na porta.
― O que tornei a fazer?
― Conquistou o coração de uma jovenzinha para obter seu
objetivo.
Wyn se voltou devagar.
― Assombra-me que um homem que passou anos fingindo
ser um viúvo pesaroso, quando não o era absolutamente, para
granjear a confiança das mulheres me critique a respeito.
Leam franziu o cenho. A luz que se filtrava pelas janelas
ressaltava a mecha de cabelo branco.
― Wyn...
― Leam, se voltar a me chamar por meu nome de batismo
outra vez, vai engolir sem mastigar as tortas de aveia e leite da
senhora Polley.
O conde sorriu, mas seguiu observando-o com atenção. Os
anos de amizade e companheirismo eram evidentes em seu
olhar.
― Perdeu a navalha de barbear pela estrada?
― E você perdeu o senso comum para me fazer essa
pergunta?
― É que vejo diante de mim um desconhecido sem se
barbear e sem gravata que fala de senso comum e que não tem
nenhuma gota de álcool na casa. ― Arqueou as sobrancelhas. ―
O que andou fazendo?
Wyn levou as mãos as costas.
― Pode me felicitar, Blackwood.
Leam o olhou, assombrado. Demorou um tempo em falar.
― É interessante que ela não pareça muito contente a
respeito.
― Porque sua presença a surpreendeu. Está desiludida
porque derrotei seus planos. ― Aproximou-se da porta. ―
Obrigado por vir. Com Kitty ela não terá escapatória.
― É assombroso que conseguisse escapar de você. Mas
bem inaudito.
― Ah sim? É uma mulher de recursos e eu não me
encontrava em meu melhor momento. ― Nesse instante, via-o
com claridade. A preocupação de seus amigos estava
justificada. A bebida cobrava seu preço. Era um milagre que
não tivesse cometido mais erros semelhantes ao de Chloe
Martin. ― Se não fosse por isso, não teria pedido ajuda.
― Por que está tão certo de que conosco não terá
escapatória?
Wyn contava com a habilidade de analisar perfeitamente
os outros para antecipar-se a suas reações. Com Diantha tinha
cometido erros sem precedentes. Claro que o álcool o havia
atordoado e a essas alturas a conhecia melhor. Preocupava-se
muito pelo bem-estar de sua família para lhes provocar um
motivo de inquietação escapando de novo.
Caminhou até a janela e contemplou o jardim.
― Suspeito que inventou uma história para que explique a
lorde Carlyle o fato de que sua enteada chegue a Londres com
vocês.
― Antes de partir de Londres, Kitty enviou uma nota a
lady Savege. Serena dirá a Carlyle que nos pediu o favor de que
nos desviemos até Brennon Manor de caminho a Londres para
recolher à senhorita Lucas, assim lhe economizamos a viagem
dos criados de lorde Carlyle.
― Ah.
― Kitty pensou que era melhor contar a Serena da fuga de
sua meia-irmã, embora não o motivo. A história de Serena com
lady Carlyle não é muito alegre.
― E o barão não achará estranho? ― perguntou-lhe Wyn.
― É pouco possível que o barão repare nesse tipo de
detalhes ― respondeu Blackwood. ― É um pai negligente.
― Segui-los-ei até Londres assim que resolva certos
assuntos que tenho pendentes aqui.
Wyn saiu ao jardim e viu que as damas passeavam entre
as sebes tomadas pelo braço.
Quando Diantha o viu, afastou a mão do braço de Kitty.
― Eu gostaria de falar em privado com você, senhor Yale.
Ele fez uma reverência.
― Como deseje.
― Estou desejando provar as bolachas da senhora Polley ―
comentou Kitty, cujo olhar voava de um a outro. ― Deixar-lhes-
ei para que falem. ― E partiu.
― Kitty disse que lhes enviou uma nota há mais de quinze
dias. ― Diantha falava com voz tensa. Sua postura também era
rígida. Encontravam-se à sombra do grande carvalho que se
inclinava sobre o pátio.
― Enviei um mensageiro a Londres na manhã que saímos
de Knighton.
― De Knighton? ― Piscou várias vezes. ― Agora entendo.
― Certamente não tudo.
― Sei que o senhor Eads estava nos seguindo de verdade.
Mas não foi fortuito que acabássemos neste lugar, verdade?
― Precisava te levar a algum lugar do qual não pudesse
escapar e onde não houvesse outros viajantes que pudessem
nos reconhecer. Este lugar me pareceu o melhor.
― Não se perdeu em nenhum momento.
― Há cinco anos, herdei esta propriedade depois da morte
de minha tia-avó. A Abadia me pertence.
― É tua? ― Arregalou os olhos. ― Quando Kitty e lorde
Blackwood chegaram, deu-me a impressão de que conhecia
muito bem a propriedade, mas... ― Tomou uma profunda
baforada de ar e deu-lhe as costas com brutalidade. ― As
pessoas do povoado devem te conhecer.
― Poderia dizer-se que alguns me viram crescer. Desde
que fiz sete anos, esta casa se converteu em meu lar durante os
meses do verão.
― Mas todos pareciam...
― Ordenei-lhes que não revelassem a verdade.
Esses olhos azuis se encheram de lágrimas.
― Então, tudo o que... ― Franziu o cenho. ― A biblioteca.
Todos esses livros inapropriados para uma dama. E... As regras
para converter-se em um cavalheiro?
― Minha tia-avó me ditou e eu as escrevi quando era
pequeno, para as ter presente quando me convertesse em um
homem. Como comprovará, minha tia não teve tanto êxito
como esperava. Porque me atenho às regras somente quando
convém.
― Já basta! Está distorcendo tudo.
― Diantha, já te disse que não sou um bom homem.
― Sabe o que acredito? ― Olhou-o jogando faíscas pelos
olhos. ― Acredito que você gosta de fingir que as regras são
muito importantes para você a fim de justificar sua existência
desonesta e clandestina. Entretanto, é um erro. Essas regras
estabelecem princípios decentes e honestos, mas você não
deseja regras que rejam sua vida, da mesma forma que eu
tampouco quero regras em minha vida, e por isso atira pela
amurada tudo o que significam e depois se sente com o direito
a dizer que não é um bom homem. ― Meneou a cabeça. ―
Minha mãe estava acostumada a fazer isso com meus irmãos, e
também a mim. Pegava as coisas boas e as retorcia até que
parecessem más.
― E por que trata de resgatá-la?
Por um instante, Diantha ficou lívida.
― Porque está metida em uma confusão. ― Algo brilhou
nas profundidades de seus olhos azuis.
Wyn não tinha visto esse brilho jamais quando falava com
ele, somente quando se dirigia aos outros. Um brilho
desonesto. Sua mente começou a trabalhar a passos forçados.
Diantha estava lhe ocultando algo. O fato de que não percebera
antes demonstrava o muito que ela o transtornava. Tinha-a
visto inventar histórias para obter com que os outros fizessem
sua vontade e, entretanto, sua arrogância e o desejo que sentia
por ela tinham-lhe impedido de ver que também podia fazer o
mesmo com ele. Desde o primeiro dia.
Estava-lhe ocultando algo.
― Diantha...
― Riu de mim. ― afastou-se dele. ― Riu de mim desde o
começo.
― Não, não o fiz.
― Aonde pensava me levar hoje? A Devon?
«A Calais», pensou.
― A Londres ― disse, em contrário. Mas pensava levá-la a
Calais. Tinha perdido o senso comum no que se referia a ela.
Apesar de sua experiência com pessoas desaparecidas, tinha
estado prestes a levá-la a Calais a fim de que localizasse sua
mãe com o endereço escrito em uma velha carta como única
pista. Tinha estado prestes a levá-la a Calais porque o único
que desejava nesse momento era perder-se com ela, deixar
para trás a vida que tinha levado e começar de novo.
Entretanto, a chegada de uma carruagem procedente de
Londres o havia devolvido à realidade, tinha-lhe feito recordar a
responsabilidade que carregava sobre os ombros. ― Sua meia-
irmã e lorde Savege se encontram na cidade, esperando que
chegue de Brennon Manor. Seu padrasto também.
― Como sabe?
― Enviei um mensageiro a Devon.
O rosto de Diantha perdeu de novo a cor.
― Quando?
― Pouco depois que encontrássemos à senhora Polley.
Diantha parecia ter problemas para respirar com
normalidade.
― Riu de mim desde o começo, sim. Por que não me
contou isso?
― Quando te disse que minha intenção era de acompanhá-
la para casa, fugiu de mim e acabou jogada na estrada com um
cão como único amparo. Não podia permitir que voltasse a
fazê-lo. Entretanto, comecei a suspeitar que não permitiria que
sua família sofresse por seu desaparecimento.
― Entendo. ― E acrescentou com um fio de voz: ― Deveria
haver-me dito quando... ― afastou o olhar. ― Há dias.
Deveria haver-lhe dito, sim. Desconhecia por que não o
tinha feito. Talvez porque temia perdê-la quando não se
encontrava bastante bem para ir atrás dela. Mas a essas
alturas nada podia fazer para mudar as coisas. Diantha se
sentia traída, e com razão.
― Estive muito tempo afastado da Abadia e tenho
assuntos para atender. Vou segui-los até Londres e a visitarei
logo que fale com seu padrasto.
― Suponho que dadas as circunstâncias não tem
alternativa ― replicou ela com voz firme. ― Um cavalheiro
jamais dá marcha ré, aconteça o que acontecer. As regras de
sua tia são mais importantes para você do que acredita.
― As regras têm pouco a ver com isto. De minha parte e
pela tua.
― Pela minha? ― Olhou-o furiosa. ― Bom, sim. Se o
matrimônio se apoiasse na luxúria, alegrar-me-ia muito casar
contigo, porque isso é o que sinto por você. Mas depois de ter
visto os dois matrimônios de minha mãe, aprendi que essa
instituição é uma farsa se não houver sinceridade e respeito. ―
quebrou-lhe a voz. ― Como pôde me mentir durante tantos
dias? Depois de que... ― voltou-se com brutalidade e pôs-se a
andar para a casa. Depois, deteve-se. ― Por que fez amor
comigo ontem à noite, depois de haver se distanciado durante
tanto tempo?
Porque ansiava abraçá-la e desfrutar da frescura de sua
beleza todos os dias, respondeu para si mesmo.
― Você sabe ― respondeu, em troca.
Viu-a conter o ar.
― Sabe onde escondi a pistola e as balas? Na gaveta de
sua escrivaninha, em seu dormitório. Vê? Embora você não
confie em si mesmo, eu sim confiava. ― Diantha enquadrou os
ombros e se afastou com rapidez para a casa.
22

Minha querida lady Justice:


Tal é a admiração que sinto por você que não posso ocultar-
lhe as notícias: perdi outro membro do Clube Falcon. Já que você
se converteu em uma perita em rastrear meus companheiros de
clube, pergunto-me se poderia convencê-la de que procurasse a
esta e a trouxesse de volta ao rebanho. É difícil não vê-la:
caminha encurvada, usa bengala e é míope. Não tenho a menor
ideia de onde se colocou. Talvez suas habilidades detetivescas
nos ajudem a resolver a situação.
Com toda minha gratidão e meu crescente afeto,
Peregrino
Secretário do Clube Falcon

****

A Peregrino, que feio:


12
É você um mequetrefe. Não tinha a menor ideia de que
um de seus membros fosse uma dama. Não sou uma cabeça de
13
chorlito , dom pássaro e decidiu descrever uma mulher de
aspecto desagradável para que minha missão pareça ridícula.
Mas seu intento com golpe de mestre o delata: não teria
mencionado a uma dama se houvesse uma em seu clube. A
nenhum cavalheiro sequer teria passado isso pela cabeça.
Ponto para lady Justice.
Você é um arrogante e se aborrece muito por isso, daí que
queira zombar de mim para entreter-se. A riqueza indolente
corrompe tão rápido como o poder absoluto. Você, senhor
Peregrino, está corrompido.
Lady Justice

****

Minha querida dama:


Corromper-me com você seria como viver o Céu na Terra.
Diga a data, a hora e o lugar. Eu levarei uma rosa vermelha e
meu ardor.
Aos seus pés,
Peregrino

****

Querido Peregrino:
Não me perdi. Estou em Londres. Não me viu ainda porque
estou zangada contigo por abusar do Corvo com essa missão tão
insultante. Irei ver-te, por desgraça para mim, já que agora não
sinto muita simpatia por sua pessoa.
Com carinho,
Pardal
P. S.: Que diabos te acontece? Tornou-se um idiota com sua
correspondência pública com lady Justice. Acredito que está
caidinho por ela. Será um golpe que essa circunstância acabe
sendo um problema, se a dama terminar sendo um ancião de
setenta anos.
23

As donzelas e os criados trajados com o negro e dourado


da residência londrina dos condes de Savege atendiam às três
damas que tomavam chá, pensando que se tratava de uma
reunião de amigas íntimas muito queridas.
Entretanto, era um conclave de mentirosas exímias.
― Meu pai não tem por que saber a verdade ― disse lady
Savege em voz baixa. ― Diremos que Diantha e Wyn retomaram
sua amizade aqui na cidade assim que chegaram e que lhe
declarou seu amor imediatamente.
― Isso será o melhor ― replicou a condessa de Blackwood
também em voz baixa.
Diantha se voltou, dando-lhes as costas à janela através
do qual contemplava a rua. Kitty estava sentada frente a
Serena, com a bandeja do chá entre ambas. Suas cabeças, uma
loira e outra castanha, estavam muito juntas.
― Vais mentir a papai sobre meu paradeiro? ― Olhou
assombrada para ambas as aristocratas, embora o assombro se
converteu logo em resignação. Afinal, já tinha aprendido que
um elegante cavalheiro londrino era capaz de mentir sem
pestanejar sequer. Por que não iriam fazê-lo também as damas
elegantes? ― Mas minha intenção sempre foi a de contar-lhe
tudo depois. Somente ocultei a verdade antes de fazê-lo para
poder levá-lo a êxito.
― Sim, querida. ― Serena inclinou a cabeça. ― Mas agora
que já acabou, devemos idear um plano alternativo.
No fundo, não tinha acabado. Ela não tinha conseguido
finalizar seu plano. Estava tão perto de falar com sua mãe
como quando estivera ao partir de Devon. Entretanto, Kitty não
tinha contado a Serena toda a verdade sobre sua errante
viagem. Havia-lhe dito, em troca, que tinha fugido de Brennon
Manor por simples aventura. Talvez essa fosse uma mentira
prudente. Serena e a mãe de Diantha não se davam bem
quando viviam em Glenhaven Hall.
― Acreditava que eu era a única que mentia a papai para
ter êxito em meus imprudentes planos ― disse no final.
Kitty agarrou a bule.
― Ninguém mais precisa estar a par de sua viagem.
Somente nós três, Alex e Leam. Wyn me assegurou que a
senhora Polley também guardará silêncio. ― Olhou para
Diantha com interesse. Embora não tinham falado de Wyn
durante a viagem até Londres, Kitty devia sentir curiosidade
sobre os detalhes do tempo que tinham passado na Abadia.
Diantha retornou para junto da janela a tentou
concentrar-se nas árvores e não no meio-fio pelo qual esperava
ver aparecer um puro sangue negro com um cavaleiro trajando
com um capote também negro. A janela da sala estava
orientada para um jardim quadrado de planta situado em
metade de uma praça, no centro de Londres. Tinham chegado
na noite anterior e, desde o momento, mal tinha visto a cidade,
embora tampouco gostasse de sair. Sentia-se abatida, não
como uma jovem emocionada por embarcar-se em sua
apresentação a sociedade. Muito menos como uma mulher a
ponto de comprometer-se.
Escutou o frufru das saias de Serena quando se
aproximou dela e depois sentiu a mão de sua irmã em um
braço.
― Diantha, é uma das pessoas que mais aprecio neste
mundo. Kitty e Viola opinam o mesmo. ― Sua irmã falava com
uma serenidade que Diantha sempre tinha admirado. ― Não
consigo entender por que escapou de casa de Teresa quando
são tão amigas, nem tampouco por que se mostra tão reticente
com o cortejo do senhor Yale. De todas formas, já não há como
voltar atrás.
― Sigo gostando muito de Teresa. ― Sua amiga se
assombraria muito quando descobrisse até onde a tinha levado
seu plano. ― E sou consciente da honra que supõe ser a
proposta do senhor Yale. Sei que sou muito afortunada. Mas eu
não gosto que tenha me pedido em matrimônio só porque se
sente obrigado. ― Não pensava admitir até que ponto devia
sentir-se obrigado.
― Muitos cavalheiros propõem matrimônio às damas por
motivos menos honoráveis. ― Kitty seguiu desfrutando do chá.
― E Wyn não é o tipo de homem que toma rápido este tipo de
aliança.
Serena franziu o cenho.
― Teme que alguém acredite que o manipulou para lhe
obrigar a te pedir matrimônio? Ninguém sabe como chegamos
até aqui. Nem sequer Tracy. ― Serena não possuía uma beleza
clássica. Era muito alta, tinha os ombros muito largos e seu
cabelo loiro não era tão dourado como os de Charity nem como
os de Tracy. Sua mãe sempre havia dito que Serena jamais se
casaria com um bom partido, ou melhor, dizia que jamais se
casaria, mas tinha casado. Tinha encontrado um partido
excepcional que tinha acabado com seu celibato e a tinha
convertido em condessa. Serena estava muito contente. Alex
era muito solícito com ela, e quando a olhava seus olhos
brilhavam com orgulho e com algo mais que Diantha jamais
tinha visto nos olhos dos dois maridos de sua mãe. Afeto real e
desejo.
De repente, ocorreu-lhe que até esse momento não tinha
sabido identificar o que significava este olhar nos olhos de um
homem. A essas alturas, já sabia o que era. Wyn tinha-lhe
assegurado que gostava dela. Havia-lhe dito que a desejava.
Entretanto, tinha-lhe mentido no mais importante.
― Obrigada. ― O que outra coisa podia dizer? Que não se
importava o que pensasse a alta sociedade se soubesse que
tinha manipulado Wyn para que se casasse com ela? Que
embora no princípio todo parecesse uma aventura muito
natural, em realidade, sim, o tinha manipulado e tinha-lhe
mentido e no final tinham que se casar? Inspirou fundo para
armar-se de coragem.
Serena deu-lhe um aperto na mão.
― E agora devemos ir à costureira a fim de que quando o
senhor Yale chegue, esteja preparada para se misturar com a
alta sociedade com a mesma elegância que ele.
― Não acredito que isso seja possível. ― E se fosse, ele não
a reconheceria. Estava confundida e doída, e nem a roupa
elegante nem os convites aos eventos sociais que se
amontoavam no console da entrada conseguiriam aliviá-la.

****

Ao dia seguinte, Tracy chegou do campo e apareceu na


casa enquanto Serena dormia uma sesta com o bebê. Diantha
colocou um vestido de passeio com um delicado babado e um
elegante casaco de veludo, e seu irmão a levou às compras em
14
seu faeton . Londres parecia estar estruturada por um sem-
fim de ruas e de edifícios, de cavalos, carretas, carruagens,
vendedores e malandros que corriam de um lado para o outro.
Talvez tivesse desfrutado mais da experiência se não ficasse a
todo momento perguntando-se se um certo galés teria
caminhado por essa calçada alguma vez e se teria olhado as
cristaleiras das lojas que ela visitava.
― Está muito bonita, Di ― disse-lhe Tracy com um sorriso
enquanto caminhava de braço dado com o seu. ― Muito mais
bonita do que antes com todas as espinhas. Não tanto como
Chare, é obvio...
― Charity é linda. ― Olhou a cristaleira de uma loja no que
estava exposta uma grande variedade de charutos que
pareciam zombar dela. ― Eu somente conto com meus olhos.
Isso é o que me dizia mamãe.
― Bem, faz muito que ela não te vê e nunca gostou de seu
caráter. ― Piscou um olho, mas seus olhos azuis, tão claros e
brilhantes como os de Charity, deixaram entrever o desconforto
que sempre estava presente quando falavam de sua mãe.
― Quero falar com ela, Tracy. ― Ali estava. A dor que lhe
provocava a desonestidade.
Enquanto viajava com Wyn tinha-lhe parecido fácil ocultar
a verdade que descobriu no moinho. Nesse momento e apesar
de tudo o que tinha acreditado sobre seus pais e seus irmãos,
perguntou-se se ele teria simpatizado com ela se houvesse
confessado por que precisava falar com sua mãe.
Tracy ficou muito sério.
― Vai ser difícil. Melhor dizendo que será impossível, tendo
em conta que não sabemos onde está. ― Deu-lhe uns tapinhas
em uma mão e, depois, saudou com uma inclinação de cabeça
a alguns cavalheiros que caminhavam em direção contrária
deles.
Um deles levou a mão à aba de sua cartola e piscou um
olho para Diantha.
― Tracy, é bem-visto que os cavalheiros da cidade sorriam
às damas com as quais se cruzam pela rua?
― Não a todas. Acabo de te dizer que está muito bonita.
Acostumar-se-á com o tempo. Todas as jovens o fazem ―
assegurou-lhe com um sorriso.
Diantha tinha visto muitas dessas jovens durante o
passeio. Também havia visto muitas damas bonitas, muitas
damas elegantes, e jovenzinhas vestidas de forma impecável
cujas expressões delatavam sua inocência. Entretanto, todas
estavam na cidade com um propósito em mente: encontrar
marido. Um marido como Wyn. Esse era o tipo de mulher com
quem ele deveria se casar. Não com uma espevitada como ela.
― Não gostava de meu caráter, é verdade ― ela murmurou.
― Sempre dizia que não tinha remédio. Que era uma
desobediente.
Tracy a olhou, depois devolveu a vista à frente e pigarreou.
― Bom, Di. Não há motivo para falar outra vez de...
― Charity era obediente.
― Veja, que conste que amo Chare tanto como amo você,
mas ela também tem seus próprios problemas, asseguro-lhe
isso.
― Suponho que o abandono da mamãe pouco antes de ela
se casar deve ter sido muito doloroso.
― Falando de bodas. ― O bom humor de seu irmão
reapareceu. ― Embora eu não gostaria que se aproximasse de
nenhum destes descarados, alguns de meus amigos são tipos
decentes. Seria estupendo que se casasse com alguém com
quem eu me desse bem. ― Por um momento pareceu pensativo.
― O que quero dizer é que diferente do que nossa mãe disse,
você sempre me fez bem. Sempre. Mesmo quando era um traste
que passava o dia correndo entre os pés de papai e o mantinha
afastado da poltrona que tanto gostava, porque não parava de
te perseguir quando você deveria ter passado o dia no quarto
infantil.
― Ele fazia isso?
― Lembro uma vez que lhe escondeu a garrafa de brandy.
― Riu entredentes. ― Tinha entre cinco ou seis anos. Quando
descobriu que tinha desaparecido, subiu pelas paredes.
Pensava que tinha sido outra vez um criado que tinha a mão
folgada. Mas quando descobriu que foi você, pôs-se a rir e a
levou ao lago para dar um passeio em barco.
Sempre tinha sido uma espevitada.
― Não me recordo.
― Sempre estava fazendo traquinagens. Inclusive com
Carlyle. Desde o primeiro dia que mãe a levou a Glenhaven Hall
com Charity. Nunca duvidou em dizer a um homem o que quer.
― Olhou-a com o cenho franzido. ― Di, estou decidido a
arranjar um bom matrimônio para você. Esse é o motivo pelo
que tanto Carlyle como eu a trouxemos para Londres, é obvio.
E por isso Serena vai acompanhá-la para que conheça damas
de linhagem. As damas sabem quem são os homens mais
decentes, o tipo de homem que jamais feriria os sentimentos de
uma jovenzinha.
Diantha pensou que deveria lhe falar da proposta de
matrimônio de Wyn, mas descobriu que era incapaz de
articular uma palavra.
― É que já sofreu bastante porque mamãe partiu da forma
que foi. ― A voz do Tracy era muito séria. ― Merece ser feliz.
Acordamos um magnífico dote que atrairá aos caças fortunas
habituais, mas que me parta um raio se não entregá-la a um
homem que seja adequado para você.
Na fazenda dos Bates, Wyn tinha-lhe assegurado que não
era o homem adequado para ela. Mas talvez o que tivesse
tentado lhe dizer, com muito tato e sutileza, era que ela não era
a mulher adequada para ele.
Uma hora mais tarde, Tracy se encontrava no salão, com o
rosto lívido enquanto olhava para Diantha.
― Não permitirei ― disse com uma firmeza pouco habitual
nele.
― Vamos, Lucas ― replicou o conde de Savege, que estava
junto ao aparador. ― Yale é um pretendente adequado para sua
irmã e eles já acordaram. ― Serviu-se uma taça de uma
licoreira e se aproximou de Tracy. Era centímetros mais alto.
Um homem atraente e forte, com porte seguro e autoritário,
que a habitual simpatia de Tracy era incapaz de igualar. O
conde lhe ofereceu a taça. ― Não há por que romper o acordo
que eles chegaram.
Serena franziu o cenho.
― Tracy, tem algum motivo de peso para não lhes dar sua
aprovação?
Tracy soltou a taça na mesa.
― Não necessito motivo algum ― respondeu com firmeza e
com o cenho franzido. ― O que quero é o melhor para minha
irmã, e Yale não é. Temo que é minha última palavra. Vou
dizer-te uma coisa, Savege, em muitos assuntos referentes a
minha família interveio e quase sempre para o bem. Mas desta
vez a decisão é minha e não vou consentir que se meta em
meus assuntos. ― Voltou-se para a Diantha. ― Eu sinto, Di.
Não poderá se casar sem meu consentimento até cumprir os
vinte e cinco anos, mas não penso lhe dar consentimento para
escolher Yale. ― Fez uma tensa reverência e partiu.
Diantha cravou a vista na porta com um nó nas vísceras.
― Há anos que não o via tão irritado ― disse Serena. ―
Que diabos acontece com o Wyn?
― Nada que eu saiba ― respondeu Alex. ― Diantha?
Ela negou com a cabeça.
― Devemos dizer a verdade a Tracy ― disse Serena depois
de suspirar.
― Não. ― Diantha retorceu as mãos, que tinha no regaço.
Tracy acabava de dar a Wyn uma saída para evitar a
responsabilidade que o atava a ela.
― Isso de seu irmão é uma simples bravata ― assegurou-
lhe Alex, ― mas se desejar, conseguirei fazê-lo entrar em razão.
― Não o desejo. Prefiro deixar as coisas assim.
Serena ficou em pé.
― Então, esquecemos todo este assunto e pronto? Eu não
gosto. Diantha, está cometendo um erro.
― Por que demora tanto Wyn em vir à cidade? ―
perguntou Alex a Diantha, que decidiu responder com a
verdade.
― Talvez deseja atrasar o inevitável.
Serena meneou a cabeça.
― Wyn não é assim. Não escutou o que lhe dissemos Kitty
e eu no outro dia?
― Sim. Mas suponho que depois de ter passado quinze
dias viajando com ele, conheço melhor seus desejos a respeito
que vocês. ― Ficou em pé e descobriu que tremiam suas
pernas. ― Fez todo o possível para me convencer de que
retornasse a Brennon Manor. Na verdade, somente lhe faltou
me atar e me trazer de volta para casa a força. Ajudou-me
porque se sentiu obrigado e me pediu em matrimônio porque
era o mais honrável, mas não quer este matrimônio e eu não
quero forçá-lo. A decisão de Tracy pode parecer incoerente, mas
obrigá-lo a que mude de opinião talvez seja um erro. ― Inspirou
fundo. ― Espero que ambos entendam. Tenho certeza de que o
senhor Yale se alegrará quando souber. ― Saiu do salão e
partiu para seu dormitório. Uma vez ali, aproximou-se da
janela e, com a vista cravada na rua, perguntou-se por que
Wyn demorava tanto em chegar a Londres.

****

Wyn não chegou no dia seguinte, nem ao longo dos


próximos quinze dias. Serena acompanhou Diantha a uma
multidão de salões onde conheceu outras jovens e a muitos
cavalheiros cujas adulações deixaram bem claro que nenhum
deles punha em prática a regra número seis.
Kitty e sua boa amiga, lady Emily Vale, mostraram-lhe
aquelas partes de Londres não dedicadas às reuniões sociais.
― Não entendo os cavalheiros ― confessou Diantha
enquanto contemplava o retrato de um grisalho soprador de
cristal veneziano, que pendurava na parede de um museu.
― Os homens são irracionais ― afirmou lady Emily, que se
encontrava a seu lado, como se fosse uma verdade universal.
15
― C’est vrai! ― exclamou madame Roche, a dama de
companhia de lady Emily. Depois, colocou melhor o xale de
renda que usava em torno dos ombros e fez uma careta com
seus lábios vermelhos. Tinha o rosto empoado. ― Os
cavalheiros nem sempre dizem a verdade. Às vezes é
trambique. ― Afastou-se para um quadro no que apreciava
uma paisagem invernal que Kitty parecia interessada.
Diantha observou lady Emily. Seu perfil clássico, sua pele
clara, seus cachos loiro platinado seguros por singelas
forquilhas em um penteado despretensioso. Proclamava-se
uma intelectual e uma solteirona, embora não tivesse mais de
vinte e três anos. Vestia-se com simplicidade, face à riqueza de
seus pais, e exigia que a chamassem Cleópatra. Além disso,
sua dama de companhia era a mulher mais elegante que
Diantha já tinha visto na vida.
― Cleópatra, você também pensa que os homens são
irracionais?
― Sim. Quase todos são meninos que habitam o corpo de
um adulto, propensos a encetar-se em jogos tolos, à
indulgência excessiva e à crueldade ocasional com seus amigos
ou com os desconhecidos por igual.
― Meninos pequenos... ― Diantha tomou uma profunda
baforada de ar. ― Recorda as bodas de lady Katherine e de
lorde Blackwood em Savege Park?
Emily afastou seus olhos verdes do quadro.
― Sim. ― Tinha o costume de olhar às pessoas com uma
expressão que parecia pensativa, sempre com o cenho franzido
por cima de seus óculos de aros dourados.
― A noite das bodas, minha irmã celebrou um baile. Eu
não tinha completado dezesseis, mas coloquei meu vestido
mais bonito e participei da festa. Foi esplêndida. A música, as
damas e os cavalheiros da cidade todos tão elegantes. Ninguém
reparou em mim, é obvio, e no final acabei saindo ao terraço.
― Oxalá a tivesse acompanhado. O baile não me apaixona,
mas Kitty é uma grande amiga minha, assim suponho que
aquela noite estive dançando.
― Aquela noite eu ansiava dançar com todas minhas
forças.
― Que curioso.
Diantha esboçou um sorriso fugaz.
― O terraço estava vazio, assim comecei a dançar sozinha.
Depois, saiu um grupo de jovens cavalheiros. Conhecia-os
quase todos há anos. Eram moços que viviam perto de minha
casa, assim que lhes perguntei se queriam dançar. Sei que
uma dama não deve fazer algo tão atrevido, mas estava tão
emocionada pela música e pelas bodas que saltei... as regras.
― Algum deles deu-lhe o prazer?
― Disseram-me que jamais dançariam comigo, mesmo que
fosse a única mulher em vários quilômetros da redonda.
Disseram-me que com meu vestido branco, minhas espinhas e
minhas curvas parecia uma ovelha, e fizeram alguns gestos
grosseiros. A verdade é que não deveria haver dado
importância. ― Entretanto, pouco antes de que sua mãe se
fosse de casa, esta havia-lhe dito que estava tão gorda como
uma ovelha. ― Mas comecei a chorar diante deles, enquanto
riam de mim.
― Que desagradáveis. Surpreende-me que lady Savege os
convidasse.
Diantha deu de ombros.
― Até então sempre se comportaram com educação. Mas
naquela noite estavam bêbados.
― Senhorita Lucas, um homem que perde a compostura
quando está ébrio não é um homem digno quando está sóbrio.
Entretanto, é certo que quando ingerem licores fortes se
convertem em idiotas e descarados.
― Todos eles?
Lady Emily arqueou suas finas sobrancelhas.
― Conhece alguma exceção?
― Aquela noite, depois que esses moços me dissessem
coisas tão horríveis... ― começou Diantha, que enrolou correia
da bola de mão nos dedos, ― o senhor Yale me resgatou.
Acredito que o conhece.
― Um pouco.
― Ele também tinha bebido. Mas me ajudou. ― Tinha
escutado tudo da sombra de uma árvore que se elevava junto
ao terraço, de onde tinha passado desapercebido para os
outros até que se aproximou. ― Disse-lhe que partissem e eles
o obedeceram. Depois, fez o ornamento de um grande
cavalheirismo. ― Convidou-a a dançar e se converteu,
irremediavelmente, em meu herói.
Lady Emily pareceu refletir a respeito.
― Talvez um homem deva possuir um coração cruel para
demonstrar crueldade quando bebe.
― Você o viu? ― Não deveria se importar. Depois da
terminante negativa de Tracy, tudo era indiferente. Entretanto,
o medo começava a afetá-la porque o fantasma do senhor Eads
sempre estava rondando seus pensamentos. ― Ultimamente,
quero dizer. Aqui na cidade.
― Não. E você?
― Vi-o há várias semanas. Ajudou-me a solucionar um
problema que se apresentou. Perdi minha donzela enquanto
viajava e ele me ajudou. Encarregou-se de contratar uma dama
de companhia e depois me levou... ― A um lugar mágico de que
desejava não haver partido. ― Levou-me a minha família.
Lady Emily voltou a olhar o quadro.
― Senhorita Lucas, não me cabe a menor dúvida. Veja, há
alguns anos também me ajudou a superar uma situação difícil.
Tinha problemas para convencer meus pais de que não
desejava me casar com o homem que eles tinham eleito. O
senhor Yale fingiu me cortejar para que assim meus pais
esquecessem seu candidato.
― Ele o fez? E você...? Você...?
― O que?
Diantha não podia perguntar o que desejava. Afinal, Emily
era uma aristocrata quatro anos mais velha que ela e uma
intelectual. Não havia modo de saber se ainda era virgem. Em
seu caso, tinham bastado alguns dias com Wyn para lhe
entregar alegremente sua virgindade.
― O que quero dizer é que deve ter se sentido muito
satisfeita com o cortejo de um homem como o senhor Yale,
embora fosse fingido.
Os olhos verdes de lady Emily a olharam com um brilho
curioso.
― Meus pais não insistiram em seu empenho de me casar
com seu amigo.
― E não queriam que se casasse com o senhor Yale?
― Sim. Mas ele os enfeitiçou a tal ponto que depois,
quando o cortejo chegou a seu fim, nem sequer o culparam.
― Oh! Culparam a você.
Lady Emily sorriu, mas seu olhar seguiu cravado em
Diantha como se estivesse analisando-a. O sol que entrava pela
janela se refletia em seu cabelo. Lady Emily era uma mulher
rica, mas não era tão sofisticada nem tão rica como sua amiga
Kitty. Quase sempre tinha um livro na mão e inclusive nesse
momento levava o catálogo da exposição da galeria de arte.
Além disso, Diantha jamais a tinha escutado mexericar até
esse momento.
― E o senhor Yale... ― tentou perguntar de novo. ― Quero
dizer, suponho que a admirava muito.
― Foi muito agradável comigo. Mas não, não acredito que
me admirasse pela forma a que você se refere. Acredito que se
sentia responsável por mim, embora nunca entendi por que, o
que de novo nos leva ao início da conversação sobre a
irracionalidade do sexo masculino e desta forma fechamos o
círculo. ― Abriu o catálogo. ― Senhorita Lucas, esgotou-me a
paciência para seguir falando de homens. Espero que não se
importe se começarmos a falar de outro assunto mais
edificante.
Diantha já sabia que, em realidade, Wyn a tinha
considerado uma responsabilidade. Entretanto, acabava de
encontrar a prova. Dedicava-se a resgatar jovenzinhas. Tal
como tinha tratado de lhe explicar, isso tinha feito, nem mais
nem menos.

****
Wyn viajou até o Yarmouth, avançando para o Nordeste
tão rápido como podia a potranca. Era uma loucura. Porque se
encontrava realmente mal. Os remédios de Molly Cerwydn o
aliviavam em parte, mas sem a parte do corpo de Diantha, a
ânsia o embargava de novo. Se Duncan aparecesse em algum
ponto da estrada, era um homem morto.
Entretanto, sabia que Duncan não apareceria. Apesar das
palavras de Diantha sobre a venerabilidade do escocês, se
Duncan tivesse querido aproximar-se dele, já teria feito na
Abadia, aproveitando sua debilidade. Os homens de ação não
se guiavam pela conveniência das jovenzinhas.
Cavalgou até chegar à costa e ver o castelo que se elevava
no escarpado, sobre o mar, construído com arenito, com suas
ameias e sua imponente majestade medieval. O guarda da
entrada o convidou a entrar no pátio central e dali lhe indicou
como chegar ao salão para que esperasse Sua Excelência.
Wyn recusou. Deixou a potranca nas mãos de um moço
dos estábulos e sem olhar para trás, saiu do castelo e cavalgou
até o anoitecer para pôr toda a distância possível entre o duque
e ele. Não poderia cumprir a promessa que tinha feito a uma
mulher viva se se aferrasse à promessa que fez a uma jovem
que matou. Devia esquecer os remorsos daquele erro. Diantha
tinha deixado claro com seu afinco e sua compaixão. Tinha
posto sua vida de pernas pro ar, mas já que não iria enforcá-lo
por matar um membro da aristocracia, poderia fazer o que
quisesse dessa vida, começando com sua propriedade. A
Abadia era muito próspera e rentável. Até esse momento, não
tinha vivido de suas rendas porque se sentia culpado.
Entretanto, merecia que a atendesse como era devido e devia
prepará-la para sua nova proprietária.
Durante sua ausência, a senhora Polley tinha ido ao
povoado e granjeou a antipatia do povo do lugar. Um
sentimento mútuo. Entretanto, as comidas que preparava
compensavam o distanciamento com as pessoas com as quais
tinha conhecido desde a infância em opinião de Wyn. Além
disso, dirigia os criados que haviam retornado com grande
eficiência, embora resmungasse muito.
― Senhora Polley, agradeço-lhe que ficou na Abadia.
― Um cavalheiro não deveria estar na cozinha, senhor.
― Há quinze dias não lhe parecia tão diferente.
Ela franziu o cenho e o expulsou de seus domínios.
Enquanto Wyn preparava a bagagem para partir para Londres,
chegaram duas cartas.

****

Londres

Estimado senhor Yale:


Recebi a sua carta e a tenho lido com grande interesse,
junto com as outras duas que também chegaram ao longo destas
duas semanas solicitando a mão de minha enteada. Por
desgraça, não posso lhe prometer nada. Em três ocasiões
prévias, tentei orquestrar o futuro matrimonial de minhas filhas,
e meus esforços sempre foram infrutíferos. As três estão
casadas com homens que eu não escolhi. Por sorte, aprecio a
todos. De modo que deixarei que seja Diantha quem decida com
quem compartilhar sua felicidade conjugal. No final, sempre
prevalecerá a opinião feminina.
Desejo-lhe toda a sorte do mundo. Tenha em conta que sir
Tracy Lucas é seu tutor legal e que é a ele a quem deve solicitar
a mão da senhorita Lucas, não a mim.
Atentamente,
Charles Carlyle,
Barão

A outra carta, escrita em um papel singelo, procedia de


um remetente inesperado: lady Emily Vale. Vinte minutos
depois, Wyn tinha selado Galahad e ia rumo a Londres.
24

― Ah. Beleza e engenho em uma pequena estadia. Alegro-


me de estar de volta a Londres.
Lady Constance Read, que se encontrava de pé junto a um
arquivo, voltou-se com seus brilhantes olhos azuis totalmente
arregalados.
― Wyn! Voltou! ― estendeu-lhe a mão e ele se inclinou
sobre ela. O sorriso que tinha convertido a homens inteligentes
em idiotas exímios apareceu em seu rosto.
― Se soubesse que seria a primeira dama que iria ver ao
voltar para a cidade, teria retornado antes. ― A primeira visita
o tinha decepcionado. O mordomo dos Savege tinha-lhe
informado que Diantha não retornaria em várias horas. De
modo que tinha ido ao Despacho Secreto para averiguar de
tudo quanto pudesse.
Constance deu-lhe um aperto na mão e pôs-se a rir.
― É um descarado, mas esconde um pinguinho de ouro,
como sempre. ― Olhou-o de cima abaixo. ― Tem muito bom
aspecto. Onde esteve?
Fez-lhe uma reverência antes de responder.
― Honra-me, senhora.
― E...? ― Ela se voltou de novo para o arquivo. Já que era
a filha de um duque, Constance era recebida em todas as
casas. Utilizava sua popularidade para seu trabalho no Clube
Falcon. ― Onde...?
― Fui ver um homem para lhe levar um cavalo. Mas
suponho que já sabe.
― Ainda estou com ciúmes porque Colin te atribuiu essa
missão. Lady Priscilla é tão bonita como dizem?
― Ainda mais. Nosso augusto secretário a teria enviado,
certamente, se tivesse acreditado que você gostasse de jogar
cartas, beber brandy e se deitar com jovenzinhas com pouca
roupa.
― Entendo. Mas a recuperou sem problemas e sem muitas
distrações, aparentemente. ― Lançou-lhe um olhar que deixava
entrever certo interesse.
Não conseguiu enganá-lo. Lady Constance, uma mulher
loira, voluptuosa e com uma fortuna, era a fantasia de
qualquer homem. Mas fazia anos que Wyn tinha averiguado o
motivo que a tinha levado a unir-se ao Clube Falcon e pelo que
seguia nele, depois de que seu primo Leam o deixasse, e não
desejava se aprofundar na questão.
― Tão ciumenta ficou, Con? ― Aproximou-se da
escrivaninha que havia na singela sala pintada de branco. O
Escritório Secreto contava com muito poucos móveis e parecia
muito normal. Entretanto, dentro dos arquivos que se
alinhavam junto às paredes guardavam todas as cartas de
todos os informantes do Império Britânico que tinham chegado
com êxito a Londres. A maioria das correspondências nunca
haviam lido. ― Você teria gostado de realizar a missão em
pessoa ou está ocupada com assuntos mais interessantes?
― Ora, não é nada. ― Rebuscou no arquivo que tinha
diante dela. ― Somente que esteve fora por muito tempo. Não
deveria ter demorado um mês em recuperar à égua e em
devolvê-la ao duque. ― Olhou os papéis que tinha diante de si,
mas não estava prestando atenção. ― De verdade, Wyn...
― Querida Constance, por que não deixa esses papéis e
me pergunta o que quer me perguntar? Assim poderemos nos
esquecer do assunto e falar de coisas mais agradáveis.
Ela franziu seus carnudos lábios e o observou com
atenção.
― Não foi a Yarmouth diretamente desde aquela festa
campestre.
― Deixe-me te dizer que fica muito bonita quando está
zangada. Acredito que vou ter que te zangar mais
frequentemente.
― Como acredita que me inteirei desse rodeio tão inusitado
que deu?
Wyn se apoiou na escrivaninha antes de responder:
― Sou tão ignorante como qualquer um. A menos, claro,
que esse qualquer um seja Colin Gray. ― Cruzou os braços. ―
O que esteve tramando?
Ela o olhou aos olhos um bom momento. Continuando,
sentou-se na única cadeira do escritório e levou uma mão à
testa com gesto contrariado.
― Não posso dizer-lhe isso se o fizesse, depois teria que te
matar, e isso me arruinaria o vestido. É que há muitas
manchas de sangue.
Wyn estalou a língua ao escutá-la.
― É um vestido muito bonito para sofrer desse modo,
certo.
Constance baixou a mão e o olhou com expressão séria.
― Wyn, estava preocupada com você. Sigo preocupada.
Estava muito tempo sem se pôr em contato conosco, embora
estivesse na cidade. Nem sequer com Leam. Vai ficar em
Londres uma temporada?
Seus amigos acreditavam que estava teimando em
destruir-se, e talvez fosse verdade a última vez que se viram.
Mas já não.
― Que saiba que Colin está preste de me expulsar do
clube.
― Não acredito. Quando viu que não voltava
imediatamente, negou-se a enviar alguém para procurá-lo.
Disse-me que já apareceria quando gostasse e que deveria
confiar em você. Ele confia cegamente em você.
― Não enviou ninguém para me procurar porque quer
saber se lady Justice conhece minha identidade ou não.
― Já soube disso?
― Estou na cidade pelo menos há três horas, querida.
Ela deu de ombros.
― Pense o que quiser dos motivos de Colin. Mas
certamente imagina que isso tem sido um trunfo desde que
Leam voltou para a cidade há duas semanas. Acredito que é
por sua culpa, mas não me contou nada.
― O poeta é pura angústia dramática quando quer impor
suas noções de retidão moral aos outros.
A gargalhada melodiosa de Constance alagou a estadia.
Mas, de repente, seu bom humor desapareceu.
― Por que desapareceu por tanto tempo, Wyn? Leam se
zangou contigo por algum motivo em particular?
― Se quer saber o que opina seu primo sobre este assunto,
recomendo-te que pergunte a ele, querida. Agora, embora esteja
encantado de voltar a desfrutar de sua companhia, tenho que
ter êxito em uma tarefa esta tarde e só disponho de algumas
horas para isso.
Constance ficou em pé e se aproximou dele, envolvendo-o
com seu aroma de rosas brancas. Roçou-lhe o braço com os
seios.
― Me alegro de voltar a ver-te ― disse em voz baixa.
― Constance, sua doce sedução não vai conseguir que eu
dê com a língua nos dentes ― repôs sem olhá-la. ― Este jogo é
melhor para mim que a você. ― A menos que tivesse em frente
de uma moça com covinhas. Seus amigos não o reconheceriam
porque, de fato, tornou-se irreconhecível; embora sua mente o
guiasse como de costume, já não se deixava reger por ela. E...
gostava que fosse assim.
― Não tem coração. ― Constance apoiou a bochecha no
seu ombro. ― Adoro-te.
― Sou todo teu.
― Nunca foi ― replicou ela com voz doce. ― E acredito que
nunca será.
Wyn se voltou para olhá-la.
― O que se supõe que quer me dizer com isso? ―
perguntou com voz rouca enquanto aquele coração que ele
deveria estar perdendo, pulsava a um ritmo frenético.
― Só que Colin te deixou uma carta para que leia. Mas é
melhor que ele te explique. ― dirigiu-se à porta. ― Se voltar a
partir de Londres sem me dizer juro-te que enviarei a alguém
para te buscar. Ou talvez eu vá em pessoa. Colin me confinou a
trabalhos na cidade, mas se voltar a me enfurecer desta forma,
converter-me-ei em uma caçadora vagabunda como você, e
como foram meu primo e Jin. Juro-lhe isso.
― Seu juramento é minha vontade. Agora, vá-se, querida
dama.
A porta se fechou com um estalo metálico. Travou a
fechadura e se aproximou da pasta que se encontrava em cima
do arquivo. Na parte exterior, um secretário tinha escrito
«Davina Lucas Carlyle, baronesa». Abriu-a e procedeu a ler o
relatório.

****

― Inventou isso tudo? ― Diantha estava sentada detrás de


um vaso de barro em um canto de um enorme salão de baile a
transbordar de convidados, que iam e vinham da escada de
entrada para além das portas do terraço. As alegres notas que
tocava a orquestra flutuavam no ar, e os murmúrios, as
risadas e as conversações se misturavam com os eflúvios dos
perfumes, as colônias, o champanha e a cera de velas que ia se
consumindo.
Teresa estava sentada a seu lado, em outra cadeira de
brocado dourado, com seus lustrosos cachos curtos recolhidos
por uma rede para cabelo, branca de pérolas da mesma cor que
seu níveo vestido. Sua amiga assentiu com a cabeça e fez um
gesto sério.
Diantha não dava crédito.
― Supus que o tinha adornado um pouco. ― E tinha
descoberto até que ponto ficou curta em suas hipóteses. ―
Mas... tudo?
Teresa tinha os olhos totalmente arregalados e pareciam
dois preciosos lírios de água.
― Tudo não ― precisou ela. ― Annie me contou histórias
de suas escapadas românticas com os criados e os moços dos
estábulos. ― Retorcia os dedos sobre o regaço. ― Eu somente te
contei as escapadas como se fossem minhas.
Diantha tinha o estômago revolto. Mas não pelo
arrependimento.
― Mas por que o fez?
― Por que não me escreveu para me dizer onde estava? ―
replicou Teresa. ― Depois que Annie voltou para Brennon
Manor, o sentimento de culpa estava me matando por lhe haver
ajudado a partir. Teria enviado meus irmãos para te buscar,
mas se foram de caça com meu pai. E não podia dizer a minha
mãe, é obvio, tê-la-ia mandado à tumba. Mas, sobre tudo,
sabia que nunca voltaria a falar comigo se te delatasse.
Obrigou-me a prometer que não o faria!
Diantha olhou para sua amiga fixamente.
― Se me tivesse traído, não teria te perdoado de qualquer
jeito. ― Estendeu o braço e agarrou a mão de Teresa. ― Sinto
muito não te haver escrito. Estive... ocupada. ― Ocupada
deitando-se nos braços de um homem que tinha estado
mentindo desde o começo, tal como fez sua mãe durante anos,
e tal como tinha feito Teresa. Claro que talvez estivesse
predisposta a considerar essas mentiras como traições.
Os olhos Teresa se encheram de lágrimas.
― Acredito que vou chorar do alívio. Di, me alegro muito
de que esteja bem.
― Querida, não chore aqui. E por favor, perdoe-me ―
sussurrou, sabendo que também deveria pedir perdão à outra
pessoa, a um homem que se preocupou tanto por ela como
Teresa.
― Está aqui, sã e salva. Perdoo-te. ― Os trêmulos lábios de
Teresa conseguiram esboçar um sorriso. ― E agora vai me
contar sua aventura? Não foi a Calais, ou isso suponho, porque
sua mãe não retornou ao redil familiar.
― Não fui a Calais. Fui a... Ai, é uma história muito longa.
Melhor te contar depois. ― Ou alguma vez. Como contar a
Teresa o que tinha passado? ― Fale-me de como está na
cidade. É maravilhoso?
― Minha mãe só fala de me encontrar um marido o quanto
antes possível, dia e noite. ― Franziu o cenho. ― Mas minha tia
Hortênsia está a três dias me acompanhando por toda Londres
e ainda não me apresentaram a um só cavalheiro com quem eu
gostasse de fazer as coisas que Annie faz com o filho do
ferreiro.
Diantha sentiu que lhe ardiam as bochechas. Uma reação
que não lhe acontecia antes, quando Teresa lhe contava suas
histórias. Mas já sabia o que era compartilhar essa intimidade
com um homem. Tudo tinha mudado.
― A verdade ― sussurrou Teresa, ― é que beijei um
cavalheiro.
― Sério? Depois que parti de Brennon Manor?
Teresa assentiu com a cabeça.
― Ele veio ver meus irmãos antes que saíssem a caçar e eu
me sentia muito culpada por haver mentido sobre tudo isso,
assim deixei que me beijasse.
― E o que achou? ― Emocionante. Delicioso.
― Desagradável. ― Teresa franziu o cenho, meio oculto por
seus cachos acobreados. ― Tinha os lábios úmidos e me disse
que eu tinha seios muito grandes.
― E que tem a ver os seios muito grandes?
― Disse-me que isso era o que mais gostava em mim e que
queria tocá-los.
― Parece-me um idiota. ― A sensação das carícias de Wyn
se gravou a fogo em sua pele. Não podia esquecê-la, embora
desconhecesse o que sentia por ele. ― Mas agora já sabe que
não é um cavalheiro e que não deve permitir que a corteje. ―
Era uma hipócrita de cabo a rabo. Mas Wyn sim era um
cavalheiro. Também era um homem, e lhe havia dito que
necessitava de seu corpo.
Teresa suspirou.
― Tranquila. ― Diantha deu-lhe uns tapinhas na mão. ―
Conseguiremos que lhe apresentem o cavalheiro mais lindo que
estiver neste baile e seus seios o deslumbrarão.
O suspiro de Teresa se converteu em uma risada tola,
justo o que Diantha pretendia. Esquadrinhou o salão de baile
através da frondosa palmeira. O lugar estava a transbordar de
cavalheiros e de damas elegantes.
― Certamente que há muitos solteiros adequados.
― É o baile mais esperado da temporada social. A tia
Hortênsia disse que lady Beaufetheringstone o decorou todo em
ouro para celebrar a coroação do novo rei e em negro para
simbolizar o luto pela morte do antigo. Mas se rumoreja que as
braçadeiras de luto negros não são em honra ao antigo rei, mas
sim por essa farsa de julgamento que o novo rei tem feito com à
rainha por sua infidelidade. É obvio, todo mundo diz que a
rainha é inocente.
― Ah, claro. ― Não se tinha informado. No caso de ter
ouvido algo, não tinha prestado atenção. Cada dia se fazia mais
difícil estar pendente das fofocas. Tinham passado mais duas
semanas e Wyn ainda não tinha aparecido por Londres. Ou
tinha-lhe mentido sobre sua intenção de casar-se com ela ou o
senhor Eads o tinha encontrado. Isso formou um nó no seu
estômago.
― Di, não tem bom aspecto. ― Teresa a obrigou a ficar de
pé. ― Vamos em busca de um copo de limonada. ― Saiu de
detrás do vaso de barro, mas se deteve de repente, de modo
que Diantha deu de encontro com suas costas.
― Ai! ― Diantha se esforçou por manter o equilíbrio. ― Eu
sinto... ― Olhou por cima do ombro de Teresa e ficou sem
fôlego quando seus pulmões decidiram sair pela boca. Quase se
afogou.
Teresa tinha os olhos arregalados.
― É ele! ― Ela pronunciou com um tom de voz que sugeria
que estava reverenciando a um deus.
Entretanto, o homem que se encontrava sozinho junto às
portas francesas, com a vista cravada em Teresa, não era um
deus. Era um escocês muito musculoso, com olhos azuis,
expressão receosa e com tendência de manusear às damas
quando queria que fizessem sua vontade.
Era incrível que o senhor Eads pudesse ter tão boa
aparência quando se arrumava. Usava o comprido cabelo negro
recolhido em um rabo de cavalo e vestia um fraque negro sobre
o kilt de seu clã, meias três-quartos e reluzentes sapatos.
Entretanto, seguia sendo muito grande, seguia sendo um
assassino e... se se encontrava em Londres, talvez Wyn
também estivesse na cidade. A ideia lhe provocou alegria e dor
em partes iguais.
― Te, vem comigo ― sussurrou, mas a música afogou suas
palavras e Teresa não lhe prestava atenção.
O senhor Eads e sua amiga se olhavam como se não
houvesse quatrocentas pessoas a seu redor.
Entretanto, a expressão do escocês não era receosa nesse
momento. Mas demonstrava estupefação como a de Teresa.
Com um movimento muito elegante, como se fosse um
cavalheiro de verdade, fez uma reverência. Teresa cambaleou
para diante.
Diantha a agarrou pelo braço e a obrigou a misturar-se
com os convidados até chegar ao centro da multidão.
― Que diabos quis dizer com isso de que é ele? ― Deteve
sua amiga junto à pista de baile.
― O que? ― Teresa piscou.
― Disse «É ele». Conhece esse homem?
― Fez-me uma reverência. ― Parecia aturdida. ― Deve
gostar de meus seios.
― Não seja tola. Todos os homens gostam dos seios.
Teresa pareceu recuperar o senso comum.
― Um momento. Acaba de dizer que esta noite conheceria
um lindo cavalheiro que admiraria meus seios. ― Voltou a
cabeça para olhar para as portas do terraço. O senhor Eads
seguia olhando-a fixamente. Soltou um suspiro de prazer.
― A um cavalheiro. ― Não a um assassino. Diantha
enterrou as mãos em suas saias. ― Veja... Ai, Por Deus. ―
destoava-lhe o coração. Não podia voltar a mentir, muito menos
nessas circunstâncias. Nunca mais. ― Tenho que te dizer...
― Di, se tentar que me afaste dele, não se incomode. ―
Teresa tinha uma expressão muito composta nesse momento.
― Se afastar dele? Mas se acaba de vê-lo. Olhaste-o uma
só vez.
― Espera um momento! Você partiu para viver uma
aventura épica para salvar a sua mãe, mas não posso gostar de
um cavalheiro que me chama a atenção? ― Teresa entrelaçou
os dedos diante do corpo. ― É uma hipócrita integral, Diantha
Lucas.
― Sou-o.
― Admite-o?
― Pois claro que o admito. Mas, Te, de verdade que não
deve ter em conta a esse cavalheiro. Veja, conheço-o. Muito
pouco. E não acredito que...
― Oh! ― Os olhos de Teresa se encheram de lágrimas uma
vez mais. ― Apresente-me a ele.
― Que a apresente a quem, querida menina? ― A dama
que se aproximou ia coberta com metros e metros de tule,
combinando com o teto e as paredes. Na cabeça usava um
turbante com uma pluma dourada de avestruz e um enorme
alfinete com pedras preciosas, e nas mãos, embainhadas em
luvas das cores de um pavão, luzia um leque oriental pintado
com o rosto de um cavalheiro. ― Vamos, a quem quer
conhecer, querida? Esse moço gorducho aí não merece seus
suspiros... é um terceiro primo e um jogador contumaz. Mas
qualquer outro cavalheiro presente esta noite será merecedor
da adoração de uma moça com tão exuberantes atributos.
Teresa olhou além de lady B.
― Está junto às portas do terraço, milady. Um cavalheiro
muito alto e musculoso com comprido cabelos ― disse com a
respiração alterada.
Sua anfitriã estalou a língua.
― Querida menina, é o conde de Eads e um bruto morto
de fome. Mal aparece na sociedade desde que voltou das Índias
Orientais há quase sete anos. Pergunto-me o que está fazendo
aqui, claro que bem pode estar buscando maridos a suas
incontáveis irmã. Meias-irmãs. O pobre tem pelo menos sete.
Mas, sim, é verdade que tem umas pernas estupendas.
Teresa e lady Beaufetheringstone assentiram com a
cabeça para expressar que estavam de acordo.
― Não vou apresentá-la a ele querida. ― Lady
Beaufetheringstone franziu os lábios. ― É muito jovem e
inocente para que lhe jogar na boca do lobo... de momento. ―
Agarrou a Teresa pelo braço. ― Vamos, menina. Apresentar-
lhe-ei a outros cavalheiros mais adequados. Essa cabeça de
chorlito da Hortênsia Piffle só te encontrará um marido
satisfatório quando as rãs criarem cabelo. São duas gotas de
água, sua mãe e ela...
Diantha as viu afastar-se. Não se preocupava com Teresa.
Se uma das anfitriãs mais renomadas da alta sociedade tomava
a sua amiga sob a asa, somente podia redundar em benefício
de Teresa. Além disso, sua cabeça e seu coração estavam
ocupados com outra pessoa.
O que sabia Wyn sobre o senhor Eads, de lorde Eads em
realidade, que não lhe tinha contado? Doeu-lhe. E não queria
que lhe doesse, não por culpa de um homem que
aparentemente a tinha abandonado a sua sorte.
Por que não tinha ido vê-la? Perguntou-se.
Deu a volta e pôs-se a andar às cegas para as portas
francesas. Tinha que falar com lorde Eads. Devia assegurar-se
de que Wyn estava a salvo, embora não a quisesse. Deu-se
conta desse fato um pouco tarde. Quando já não tinha
esperança. Perdoá-lo-ia se aparecesse em Londres. Perdoaria
tudo. E lhe suplicaria que a perdoasse também.
Seu irmão apareceu diante dela com um sorriso de orelha
a orelha.
― Por fim te encontro, irmãzinha. Está muito bonita esta
noite. Musgrove e Halstead levam toda a noite me pedindo que
a apresente.
Saudou os amigos de Tracy, sorriu ao escutar suas
adulações e lhes prometeu uma dança, mas mal lhes prestou
atenção. Afligida por uma debilidade mesclada com um trágico
desejo, deixou que seus olhos vagassem pelo salão de baile e,
através de um oco entre os convidados, encontrou-se com o
olhar de lady Emily Vale. Obrigou-se a esboçar um sorriso que
não sentia.
Os olhos verdes de Emily mantiveram a expressão séria
enquanto dirigia seu olhar pela pista de baile até chegar à
porta do salão. Diantha desviou a vista para ali e o coração
ameaçou sair pela garganta.
Porque o senhor Wyn Yale era o dono de dito órgão. E
mesmo que estivesse ordenhando uma vaca de mangas de
camisa arregaçadas sentado em um tamborete ou em um salão
de baile com traje ornamentado e tão bonito que a deixava sem
fôlego, Diantha era consciente de que podia fazer o que
quisesse com esse desbocado órgão, porque estava a sua
inteira mercê.
25

Diantha reluzia sob as velas dos candelabros, vestida não


do branco virginal, mas sim de dourado, como a luz que se
refletia em seu cabelo. As capas de suas saias refulgiam graças
à habilidade de alguma costureira e se agitavam em torno de
seus pés quando os bailarinos passavam frente a ela. Parecia
alheia ao resto dos convidados, e também parecia alheia ao fato
de que o estava contemplando com esses lábios rosados
separados, enquanto um suave rubor se estendia por suas
bochechas, por seu pescoço e pela curva de seus seios.
Wyn se aproximou dela e se arrependeu de não ter vindo
diretamente a Londres, e neste momento compreendeu, de
repente, por que não o tinha feito. Porque quando a via era
incapaz de pensar, e muito temia que, já que não pensava,
podia fazer algo inesperado. Podia lhe fazer algo inesperado.
Diantha se aproximou dele com o cenho franzido.
― Lorde Eads está aqui.
― Boa noite, senhorita Lucas. ― Fez-lhe uma reverência
sem deixar de sorrir. Deslumbrava-o até estando zangada.
― Ouviste o que disse? Lorde Eads...
― É obvio que te ouvi. Estou justo diante de você. ― Mas
não o bastante perto. Seu aroma de sol de verão o envolvia
enquanto contemplava como essas mãos, que o tinham
explorado com total confiança, aferravam suas saias.
― Sei que me ouviu. Estava me limitando a enfatizar que
lorde Eads está aqui. E esta é a terceira vez que o digo.
― Entendo-o.
― Veja, enfatizo-o desta forma tão ridícula em um esforço
por me concentrar na irritação e não me preocupar com o fato
de que está na mesma estadia que você. O que faz aqui?
― Observando como deslumbra a esses cavalheiros
juntamente quando acaba de passar sem olhá-los sequer. Não,
não se volte agora. Talvez não gostem que os veja lambendo as
feridas.
Diantha soltou o ar com brutalidade.
― E logo sou eu quem diz coisas sem sentido.
― Quais são, Diantha? Seu irmão eu conheço, mas aos
outros não. O senhor H. se encontra entre eles?
― Tracy acaba de me apresentar a eles. ― Seus olhos
adquiriram um repentino brilho. ― Mas todos os dias me
rodeiam centenas de admiradores então me são difícil recordar
seus nomes. ― Fez um gesto no ar. ― Limito-me a chamá-los
George.
― E esse sistema funciona?
― Funciona?
― Que os põe em seu lugar tal como tenta fazer comigo.
― Ouviu que disse três vezes que lorde Eads está aqui?
― Acredito recordar que mencionou, sim.
Viu-a retorcer a bolsa de baile entre os dedos.
― E por que não se preocupa tanto como a mim? ― Seu
tom de voz se alterou e sua preocupação parecia genuína.
O sorriso de Wyn desapareceu.
― Diantha, há anos que conheço Duncan Eads. Se de
verdade quisesse me fazer dano, teria feito em Gales.
Viu-a piscar várias vezes enquanto respirava de forma
superficial, fazendo com que seus seios se elevassem e
esticassem a borda de seu corpete. Não havia nem rastro de
suas covinhas.
― É uma pessoa desonesta.
― Fui.
― Não deveria ter acreditado em você.
― Não deveria. Mas o fez e agora ambos devemos superá-
lo.
Diantha ficou lívida e o olhou com gesto interrogante.
Entretanto, o brilho que viu neles o instou a contrariá-la de
novo. Tinha muito claro que ansiava essa ternura e esse desejo
que foram a sua força de vontade e de sua perseverança.
Ansiava elevá-la nos braços, tirá-la do salão de baile e fazê-la
sua de novo. Ansiava tê-la entre seus braços, perder-se nela até
descobrir todos os segredos que ocultava e até que ela
conhecesse todas as verdades de sua vida. Todas as canalhices
que tinha cometido e todos seus desejos heroicos.
Depois, viu-a fechar os olhos.
― Tenho que te dizer algo.
― Sou todo ouvido. Como sempre.
― Parece que o senhor H. não se importa com minha
virtude ou a falta dela. Acredita que uma dama de caráter forte
deve viver certas aventuras de índole amorosa, tal como tem
feito ele.
O ciúme o invadiu, ciúmes abrasadores, que era justo o
que ela pretendia, a muito bruxa.
Carlyle não tinha mencionado Highbottom em sua carta,
mas talvez ele tivesse falado com Tracy Lucas. Entretanto, essa
paquera era algo novo nela e ansiava saber por que o estava
empregando.
― Um livre pensador, certamente ― replicou entredentes.
― Não sei com segurança. Deveria haver perguntado, mas
tive uma quinzena muito ocupada desde que cheguei à cidade.
Wyn tentou interpretar sua expressão.
― Eu acabo de chegar.
― Estou contente por isso. ― Sorriu de forma educada,
como se não se importasse, embora houvesse certa tensão em
seus gestos que o comoveu.
― Fui a Yarmouth, Diantha.
― A Yarmouth? ― perguntou ela, tratando de dissimular a
surpresa. ― E como está o duque?
― Não o vi. Deixei ali lady Priscilla e vim a Londres o mais
rápido que pude.
― Ah. ― Diantha franziu o cenho, fez uma careta com seus
deliciosos lábios e sua fachada caiu. ― Não acha que pode
aparecer por aqui, tão bonito e elegante com seu traje londrino,
e que eu vou me esquecer de tudo. Acredito que ainda estou
zangada contigo.
― Diantha...
― Eu gostaria que não me chamasse assim. Para todos
estes cavalheiros sou a senhorita Lucas e, sem dúvida, teria
sido melhor que para você também tivesse seguido sendo.
― Esses cavalheiros, muito temo, não a viram bêbada
como uma cuba.
― É obvio que não.
― Nem tampouco lhe viram rezar ajoelhada em um chão
empoeirado.
Ela o olhou assombrada.
― Viu-me? Não queria que me visse.
― Por quem estava rezando, bruxa? Estava suplicando que
eu morresse logo para que pudesse retomar sua busca?
Diantha não respondeu imediatamente. A seu redor, a
música seguia e os bailarinos giravam na pista de baile.
― Rezava para me manter forte. Para ser o que você
necessitava.
Wyn sentiu que o coração lhe dava um salto, algo
desconcertante. Entretanto, esse desconcerto o tinha
acompanhado desde que se encontrou com Diantha Lucas em
uma carruagem do serviço de correios de Sua Majestade.
― É impossível melhorar o que já é perfeito.
Esses olhos azuis reluziram. E esse brilho a converteu na
mulher que tinha visto subir a uma árvore, na mulher que
tinha beijado pela primeira vez em um estábulo, na mulher que
tinha mudado sua vida embora ele resistisse a todo o
momento.
― Tem bom aspecto ― comentou.
― Encontro-me bem. Agora. ― Melhor que nunca.
― Quero dizer que está muito bem. Que está... ― Esses
olhos azuis percorreram seus ombros e seu torso, e voltou a
ficar rubra, ― bem.
― Amanhã irei vê-la. Quero te fazer uma pergunta.
― Uma pergunta?
― Sim. Mas agora não é o melhor momento. Seu irmão
está me lançando olhadas assassinas. ― E se o escrutínio de
Diantha continuava, teria que fazer um grande esforço para
não levá-la a algum lugar discreto a fim de que o escrutínio se
convertesse em algo muito mais satisfatório.
Viu-a franzir o cenho.
― Não entendo o que lhe acontece.
― Talvez não gostasse que a tivesse afastado de seus
amigos. Retirar-me-ei agora e deixarei o campo livre a seus
ansiosos admiradores. De momento.
― Mas... ― Diantha lhe colocou uma mão em seu braço, e
o contato lhe provocou um repentino aquecimento. ― O que
acontece com lorde Eads? Você me disse a verdade?
Wyn lhe segurou os dedos, cobertos por uma luva graças a
Deus, e depois de inclinar-se para ela sussurrou:
― Bruxa, como volta a me tocar de forma inapropriada, ou
de qualquer outra forma, em um abarrotado salão de baile, não
me considerarei responsável pelo que possa chegar a te fazer
diante dos olhos de centenas de pessoas.
Viu-a engolir saliva com delicadeza enquanto afastava a
mão de seu braço.
― Por favor, diga-me a verdade sobre ele. Quero ajudar na
medida do possível.
― Disse-lhe a verdade. Não acredito que represente uma
ameaça para mim.
― Mas não sabe com segurança.
― O fato de que esteja vivo é uma evidência irrefutável.
― Talvez somente esteja esperando uma oportunidade.
― Poderia havê-lo feito em incontáveis ocasiões durante o
trajeto de ida e volta a Yarmouth. ― Apesar do olhar furioso do
irmão de Diantha, Wyn se aproximou mais a ela e lhe disse em
voz baixa, fazendo-se escutar por cima da música e das vozes:
― Diantha, não tem por que preocupar-se a respeito.
― Temo que não possa evitá-lo. Este assunto me deixa
tensa. Ao ver que não vinha a Londres imediatamente, imaginei
todo tipo de... todo tipo de... ― Voltou o rosto.
Wyn sentiu uma opressão no peito. Não queria confundi-la
nem inquietá-la. O que queria era vê-la esboçar seu
deslumbrante sorriso, queria escutar sua risada e ansiava
desfrutar de seu voluptuoso corpo a maior brevidade.
Nesse momento, viu-a separar os lábios, assombrada,
enquanto exclamava:
― Pelo amor de Deus!
Embora devesse seguir seu olhar para ver o que lhe tinha
chamado à atenção, Wyn foi incapaz de afastar os olhos desses
lábios rosados e entreabertos. Nesse momento, um suspiro
escapou dos seus lábios e ele imaginou que lhe roçava a pele.
Quase podia saboreá-la, quase podia sentir esse corpo entre
suas mãos, quase podia sentir as carícias dessas mãos sobre
sua pele. A lembrança dessas maravilhosas mãos apagou todo
o resto, salvo o desejo de tê-la sob seu corpo.
― São as irmãs Blevins! ― ouviu-a exclamar.
Wyn afastou os olhos dela. Duas damas fantasmagóricas
ancoradas em outro século fizeram sua aparição, vestidas com
rendas amareladas e joias deslustradas.
― Jamais me teria ocorrido que nos pudéssemos encontrar
aqui. ― Diantha colocou a mão no peito de forma impulsiva e a
Wyn somente lhe ocorreu uma solução para atalhar suas
urgentes necessidades.
― Senhora Dyer, gostaria de dançar? ― Agarrou-lhe uma
mão, com a outra lhe aferrou a cintura e a levou a pista de
baile.
Diantha teria se posto a rir a não ser pela preocupação
que sentia. Entretanto, a felicidade que começava a estender-se
por seu interior demonstrou ser mais forte. Wyn tinha ido a
Londres, não se encontrava em perigo e estava dançando com
ela.
Seus braços eram fortes e seu propósito, tal como
descobriu depois de minutos, firme. Com uma grande soltura,
cruzou a pista de baile sorteando aos demais casais a fim de
afastar-se das irmãs Blevins. Em realidade, não estavam
dançando. Estavam fugindo.
― Senhor Dyer, vamos chamar a atenção. ― A alegria era
incontentável. ― As damas do comitê organizador do Almack’s
não me concederam ainda permissão para dançar a valsa.
― Lady B é uma anfitriã muito mais liberal que essas
damas. ― Guiou-a pela pista de baile e, depois, internaram-se
entre os grupos de convidados que não dançavam, no momento
em que lhe colocou a mão em seu braço. ― Das provas a
liberto.
Uma das portas francesas estava aberta e por ela entrava
o ar fresco. Instou-a a sair ao terraço, puxou-a pela mão e
juntos caminharam até um jardim. A lua crescente brilhava no
céu e o relento lhe provocou um calafrio enquanto rodeavam
uma fonte ladeada por altas roseiras. Era um lugar de
carregada ornamentação, já que contava com robustas
estátuas, sebes altas e curvas por todos lados.
― O que vamos fazer?
― É um jardim escuro ― respondeu Wyn em voz baixa. ―
Imagine ― Diantha engoliu saliva.
Diantha era incapaz de pensar, somente podia sentir o
roce da mão que rodeava a sua.
― Diga-me.
― Vamos pôr mãos à obra para gerar essas crianças que
as irmãs Blevins nos animaram a ter. ― Instou-a a dobrar a
esquina de um caramanchão e se deteve de repente.
Entretanto, soltou-a.
Diantha conteve um grito indignado.
― Não está falando a sério.
― Um estábulo é uma coisa. Um baile que participa
metade da alta sociedade, outra muito distinta. ― Wyn estava
muito perto dela e seus olhos brilhavam no jogo de luzes e
sombras projetadas pelas trepadeiras. ― Necessitamos de um
plano.
Diantha engoliu saliva.
― Para encontrar um estábulo?
― Um plano para lutar com as irmãs Blevins ― respondeu
com uma nota paciente na voz.
Diantha mal conseguiu escutá-lo devido aos
ensurdecedores batimentos de seu coração. Wyn percorreu seu
pescoço e seus ombros com o olhar, que acabou posando sobre
seus lábios como se tivesse a intenção de beijá-la. Isso a deixou
sem fôlego. Desejava-a. Apesar de estar rodeada por todas as
elegantes damas londrinas, Wyn a desejava de verdade.
― Direi que tenho uma repentina enxaqueca e pedirei a
Serena que me leve de volta para casa ― conseguiu dizer com
muita dificuldade.
― Isso bastará até que me ocorra uma solução a longo
prazo.
― Não estamos no salão de baile. ― Diantha não pôde
resistir. ― Se te toco de forma inapropriada aqui, também me
fará algo do que não será responsável?
― Cometi um erro ao dizer isso ― confessou ele com voz
rouca. ― Devo ser responsável. Contigo, sempre.
Diantha colocou a mão no seu peito, e os rápidos e fortes
batimentos de seu coração lhe provocaram uma quebra de
onda de desejo. Deslizou os dedos até chegar a sua cintura
enquanto ele se retesava.
― Sempre tão cavalheiresco ― murmurou.
― Agora mesmo, nem tanto.
Diantha baixou a mão um pouco mais.
― Por que me arrastou até um jardim escuro para nos
ocultar?
― Porque vou deixar que faça o que quer fazer, sem te
deter.
Diantha passou a mão pela parte frontal de suas calças. O
fato de que tivesse uma ereção só por havê-la olhado e ter
dançado com ela provocou uma sensação abrasadora. Fechou
os olhos enquanto rodeava seu membro. Wyn lhe aferrou os
braços e se inclinou para diante até que suas bochechas se
roçaram. À medida que ela o acariciava, seu corpo respondia e
inclusive conseguiu lhe arrancar um gemido rouco de puro
prazer. Em resposta, a ela lhe escapou outro. Tocá-lo era
maravilhoso.
― Oh, Wyn! ― exclamou. ― Não acha que deveríamos pôr
mãos à obra agora mesmo para gerar essas crianças?
A boca de Wyn estava muito perto da sua. Estava muito
tenso. Agarrou-lhe a mão que o acariciava e a pressionou
contra seu membro um instante que a Diantha pareceu eterno.
Depois, afastou-a, soltou o ar com brutalidade e se afastou
dela. O desejo obscurecia seu olhar.
― Senhorita Lucas, irei vê-la amanhã.
― Wyn...
― Diantha, retorne agora mesmo ao salão de baile, procure
a sua meia-irmã e parta...
― Fará amor aqui mesmo e me abandonará para que a
metade da alta sociedade descubra tal como faria um canalha
como Deus manda? ― replicou ela com um sorriso
esperançado.
― Algo assim, salvo a parte do abandono. Vai. Agora
mesmo. ― A tensão apareceu em seu queixo e em seus ombros,
embora tivesse uma expressão risonha.
― Eu gosto assim. Eu gosto... sem o brandy ― acrescentou
em voz baixa.
Já não tinha a aura sombria, e o desespero do caçador
que empanava seus olhos durante sua estadia em Shropshire,
já não rondava as profundidades chapeadas de seus olhos.
Antes de chegar a Knighton, vislumbrou em várias ocasiões o
verdadeiro homem que se escondia atrás do álcool, e essas
breves espionagens despertaram seu desejo por ele. A essas
alturas, converteu-se por completo nesse homem, de modo que
o desejo que sentia por ele era enlouquecedor. Necessitava-o.
Porque Wyn fazia com que se sentisse desejada. Fazia com que
se sentisse amada, e não pelo efeito do álcool nem por
exigências da responsabilidade, mas sim por si mesmo. Deixou
uma chuva de beijos sobre seu queixo enquanto introduzia as
mãos sob sua jaqueta a fim de reclamar os duros contornos de
seu corpo.
― Diantha, pelo amor de Deus! ― gemeu Wyn, que lhe
aferrou o traseiro e a colou a ele para que sentisse quão
excitado estava. ― Falava a sério. Não posso suportá-lo mais. ―
Beijou-a com ardor na testa, nas bochechas e nos olhos. ― E
agora vai. ― Separou-a dela com brutalidade.
Diantha era incapaz de mover-se. Tinha o coração
desbocado, sentia-se muito acalorada. Muito viva.
Ele parecia de pedra. De uma pedra ardente.
― Vai!
Diantha engoliu saliva.
― Que tenha boa noite, senhor Yale. Esperarei ansiosa sua
visita. Parece-lhe bem pela manhã?
16
― A primeira hora .
Diantha partiu. Correndo. Temia muito que se não
corresse, arrojar-se-ia de novo a seus braços e o obrigaria que
lhe fizesse amor à luz da lua. Entretanto, não queria forçá-lo a
fazer de novo algo contrário a sua natureza. Wyn tinha sofrido
por ela e respeitaria a honra que o impulsionava, comportando-
se como uma verdadeira dama, embora fosse muito tarde.
Encontrou-se com seu irmão na porta do terraço.
― Tracy, tenho uma terrível enxaqueca. Leva-me para
casa?
Seu irmão inspecionou o jardim com o cenho franzido,
mas depois a agradou.
26

Duncan saiu de detrás de uma carruagem no final da


longa fila de veículos estacionados junto à calçada. Em um
lugar próximo, três criados jogavam dados, à luz que arrojava a
mansão Beaufetheringstone, e os cocheiros se encarregavam
17
dos arneses dos cavalos junto às carruagens. Era uma noite
típica de Mayfair, salvo pelo assassino escocês que se
aproximava de Wyn e pela leveza de seus próprios passos, que
não se alteraram nem sequer para sair discretamente de um
salão de baile repleto de conhecidos.
― Está um pouco emperiquitado para andar escapulindo-
se entre as sombras, não acha Eads?
― Está um pouco despreocupado para ser um homem
marcado, não, Yale?
― Marcado? Certamente que não se confunde com outro
tipo que está te caçando, meu amigo?
A tênue luz da lâmpada de gás que tinha por cima deles,
mal pôde ver o sorriso do escocês.
― Caramba, sim que tem nervos de aço. Nem sequer
perguntou por que estou aqui.
― Obrigado. ― Colocou a mão no bolso interior, tirou uma
charuteira e a ofereceu ao escocês, que negou com a cabeça.
Wyn guardou a charuteira. Não queria fumar. Somente queria
à mulher com olhos brilhantes que tinha tido entre seus braços
durante muito pouco tempo, depois de lhe assegurar, que esse
homem não era uma ameaça para ele. ― Mas a verdade é que
sim, estou perguntando isso. Por que me segue?
― Porque Yarmouth ainda me paga.
Em momentos como esse, Wyn podia sentir as cicatrizes
de sua coluna e a faca que levava na manga mais do que
acreditava fisicamente possível.
― Não trabalha para Myles? ― O fato de que não tivesse
averiguado esse detalhe várias semanas antes, demonstrava o
baixo que tinha caído antes de se encontrar com Diantha na
estrada, um poço de que começava a sair pouco a pouco.
Duncan estreitou os olhos.
― Não te disse que estava trabalhando para o duque?
― Quem?
― A moça.
― Se se referir à senhorita Lucas ― conseguiu dizer com
uma indiferença notável, ― não o fez. Mas me surpreende que
você lhe proporcionasse esta informação. Esta noite?
― Em sua casa quando fui pegar meu cavalo.
Duncan o observou com atenção. Wyn não gostou do
escrutínio e nem de descobrir que Diantha tinha-lhe ocultado
outro segredo. Sem dúvida alguma, quis protegê-lo, e
compreendeu por que se preocupou ao ver que demorava tanto
em aparecer na cidade.
― Vou deixar de rodeios desnecessários e perguntar
unicamente por que Yarmouth segue pagando-te para que seja
minha sombra quando já lhe entreguei o que queria.
― O cavalo não lhe importa um nada, imbecil. Quer a
você.
Wyn beliscou a ponta do nariz.
― Duncan, não me diga que vai me matar nesta esquina
agora mesmo. Esta noite não. ― Não até que tivesse contado a
Diantha o que tinha averiguado durante as investigações dessa
tarde. Não até que a tivesse posto em dia da situação de sua
mãe e do estado de seu próprio coração.
Claro que se ia morrer em breve, talvez fosse melhor não
lhe contar esse último.
Não lhe tremiam as mãos, não depois de tantos meses de
insegurança. Mas as tinha frias. Não podia ter chegado a esse
ponto da vida para que a arrebatassem.
― Não quer que lhe mate ― resmungou Duncan. ―
Somente que te dê uma mensagem.
― Ah. ― Wyn inspirou fundo sem fazer ruído. ― Boas
notícias. O que diz a mensagem?
Duncan ficou sério.
― Quer que vá vê-lo.
― Para nos encontrar em pessoa, suponho.
O escocês assentiu com a cabeça.
― E se digo não fazer o gosto de Sua Excelência?
A expressão do Duncan era impenetrável.
― Irá pela moça.
Nesse momento, ficou gelado por completo, à exceção da
queimação de seu estômago. Não teve que perguntar a que
moça se referia nem a que se referia o duque com sua ameaça.
No moinho, Duncan adivinhou que Diantha era mais que um
trabalho para ele, e Wyn tinha visto como o duque de
Yarmouth tratava às moças há muito tempo.
Ficou paralisado, incapaz de respirar.
― Maldita seja sua imagem Eads. Filho de puta!
Duncan meneou a cabeça.
― Disse-lhe que não lhe faria mal.
― Não teria que lhe haver dito nada sobre ela. Não faz
parte disto. ― Era impossível que as coisas tivessem acabado
dessa maneira.
― Negou-se a afrouxar o ouro que me prometeu. Exigiu
saber o motivo pelo qual não o tinha levado a rastros a
Yarmouth há um mês.
― Isso quer dizer que contratou a alguém para ameaçá-la.
― A cabeça lhe dava voltas. ― Aparece para me avisar, não
porque ele o tenha mandado. É o mínimo que podia fazer,
maldito seja. Quem?
― Ele tem um homem na casa de Savege.
― Um criado. Um varredor, talvez, ou o menino de recado
de uma das lojas. ― Wyn faria o mesmo se quisesse entrar na
casa de um aristocrata. ― Deve ser fácil encontrá-lo e se for
novo entre o pessoal.
Duncan meneou a cabeça de novo.
― Está decidido. Yale, esse homem te odeia.
― Por que não me mata sem mais? Por que insistir em ver-
me? ― Wyn conseguiu tomar uma baforada de ar, embora com
muita dificuldade. Pôs-se a andar para os estábulos, onde se
encontrava Galahad. Entretanto, deteve-se ao chegar à porta e
olhou por cima do ombro. Um halo de luz rodeava o corpo do
escocês. ― Duncan, a próxima vez que nos vejamos melhor que
seja no inferno, é melhor que saia correndo quando me vir.

****

Wyn se dirigiu ao Brooks’s. O visconde de Gray estava


acostumado a estar no clube de cavalheiros quase todas as
noites. Já que estava solteiro e contava com um amplo círculo
de amizades políticas e de conhecidos, Colin cultivava a
aparência de um cavalheiro indolente, embora em realidade
observasse, estudava e riscava a estratégia do seguinte projeto
do Clube Falcon.
Ainda era cedo e os assíduos se concentravam na sala
comum, desfrutando da conversa, dos jogos de cartas, do
jantar e da bebida. O aroma de tabaco, misturado com colônia,
flutuava no ar, mas para Wyn o aroma do brandy era muito
mais forte.
Não viu o visconde por nenhuma parte. Talvez estivesse
entre os inumeráveis convidados do baile de lady
Beaufetheringstone. Entretanto, nem sequer Gray poderia
ajudá-lo. Ela não devia permanecer em perigo. Ir a Yarmouth e
entregar-se ao duque só parecia uma solução parcial. Não
podia confiar na palavra do duque de que não faria mal a
Diantha se ele se entregasse, já que o aristocrata suspeitava
que fosse importante para ele. Wyn tinha contrariado a muitos
homens em seu desempenho como agente da Coroa. Mas
somente tinha ameaçado de morte a um.
Ele voltou-se para a saída. Tracy Lucas se encontrava ali,
seguido por seus acompanhantes do baile.
― Senhor Yale.
― Sir Tracy. É um prazer. ― Wyn lhe fez uma reverência
embora a impaciência o corroía. Esse era o único cavalheiro de
toda Londres que não poderia despachar sem mais. ―
Cavalheiros. ― Saudou com um gesto de cabeça os outros.
― Eu gostaria de falar em privado com você, senhor. ―
Lucas lhe fez um gesto para que se distanciasse dos outros.
― É obvio.
Não tinha tempo para isso. Entretanto, o desespero corria
por suas veias e teve a desenquadrada ideia de que se Lucas
fosse um homem razoável, poderia contar com sua ajuda,
poderia lhe dizer que levasse Diantha no meio da noite, que a
levasse ao campo. O duque não esperaria isso. Talvez lhe desse
mais tempo para encontrar uma solução mais efetiva contra o
perigo no que a tinha posto, uma solução que não implicasse
em sua viagem a Yarmouth para acelerar o fim de sua vida.
Lucas se afastou apenas alguns passos antes de começar
a falar.
― Tenho entendido que esteve fora da cidade.
― Sim. Em minha propriedade até este dia.
― Nesse caso pode ser que não saiba, mas Carlyle me
disse que pediu a mão de minha irmã, e a julgar de como a
estava olhando esta noite, acredito que é melhor que saiba
algo: ela não... Enfim, melhor não andar pelos arbustos: ela
não está procurando alguém como você.
Wyn ficou petrificado. O aroma de uma garrafa de vinho
recém-desarrolhada em uma mesa próxima e o ruído do líquido
ao ser vertido nas taças lhe era muito familiares.
― Senhor, devo lhe pedir que tenha a amabilidade de
explicar-se.
― E a isso vou explicar. ― O irmão de Diantha franziu
ainda mais o cenho. ― Por que precisamente tenho que lhe
dizer o que penso. Se de verdade a quisesse, com o que acabo
de dizer ser-lhe-ia razão para que me esbofeteasse com sua
luva. Você nem sequer piscou. É um personagem muito frio,
Yale, como na noite do banquete de bodas de Blackwood,
quando deixou minha irmã chorando no terraço de Savege
Park.
«Em Savege Park?», perguntou-se.
Lucas assentiu com a cabeça enquanto que o olhava com
expressão cada vez mais segura.
― Vi como a deixou sozinha, na escuridão, com o rosto
todo avermelhado e chorosa. Nem sequer tinha dezesseis anos,
pelo amor de Deus. Menos mal que deixou de zombar dela
quando o fez. Quase saí para lhe dar um murro, mas não podia
abandonar à dama com quem estava dançando uma peça.
Entretanto, minha irmã passou o resto da noite com os olhos
vermelhos, seu descarado.
Wyn por fim encontrou a voz para falar.
― Lucas...
― Não penso em morder a língua, senhor, por muito que
Savege lhe abra as portas de sua casa. Não confio em você. Não
confio desde aquela noite. E vi o rosto de minha irmã enquanto
falavam esta noite, como se quisesse voltar a chorar de novo.
Depois, perdi-os de vista, e mais tarde minha irmã entrou
correndo do jardim de lady B, mais agitada que nunca. Maldito
seja sua imagem, Yale, não está bem tratar a uma dama dessa
maneira.
― Interpretou mal o assunto, senhor.
Lucas empurrou seu peito.
― Não acredito, e não penso permitir que volte a zombar
dela. Já lhe basta o mal que passou com minha mãe... com
nossa mãe... ― deteve-se de repente. ― O assunto é que
necessita meu consentimento para casar-se e não penso dar-
lhe.
― O que ela deseja não importa?
― É uma moça impetuosa. Mas é boa, e faria qualquer
coisa por alguém de que goste. Se por acaso não sabe, é leal até
o fim. ― Falava com voz rouca e Wyn se deu conta de que tinha
muito afeto a sua irmã. ― Merece algo mais que um tipo que
impôs suas atenções há tantos anos a uma moça tímida e feia.
Agora que tem melhor aspecto, não vou consenti-lo.
Aparentemente, Lucas não tinha visto os moços no terraço
na noite do baile em Savege Park. Mas era o mesmo. Nesse
momento, ela se encontrava em um perigo muito maior que
antes, e agora ele era o verdadeiro culpado.
― Entendo ― repôs, enquanto seus pensamentos se
fundiam com uma claridade muito peculiar até encontrar a
resposta adequada em que encaixasse todas as peças. ― Tem
ideias próprias. Embora certamente você já soubesse.
― E se souber! É teimosa e imprudente, sempre o foi. Mas
isso não quer dizer que tenha que conformar-se com um tipo
como você.
― Lucas ― Wyn baixou a voz, ― sua irmã deseja uma só
coisa e você, acredito, é o único homem capaz de lhe conceder
esse desejo.
Sir Tracy arregalou os olhos.
― O que quer di...?
― Sabe onde se encontra lady Carlyle neste momento.
Verdade?
Lucas ficou boquiaberto antes de ruborizar-se pela raiva.
― Mas bem! Acredito que não...
― Parece-me que sim sabe. Tenho motivos para acreditar
que sua mãe está em Londres há pouco tempo e que lhe enviou
uma nota pedindo ajuda econômica para um negócio. ― No
Escritório Secreto, essa tarde tinha lido um sem-fim de cartas
18
antes de chegar à última que completava o dossiê redigido
pelo informante, no que se identificava à baronesa como uma
das pessoas que procuravam investidores para fundar uma
rede de prostituição de luxo. O informante tinha descrito que a
baronesa parecia uma ávida fumante de ópio, que tinha se
aliado com seu sócio, um financista, para alimentar seu vício;
mas que salvo por isso, vivia de forma modesta e que não
supunha ser um motivo de preocupação para o governo nesse
momento. Suspeitava-se que tanto ela como seu sócio, queriam
transladar seus negócios de novo à França. ― A viu?
― Sim. Uma só vez ― admitiu Lucas com voz rouca. ― Mas
como sabe você dela a menos que esteja relacionado com todo
esse assunto?
― Não tenho nada a ver. Nem sequer sei seu paradeiro
exato na cidade, razão pela qual necessito de sua ajuda.
― Minha ajuda? De todas as...
― Cale-se, Lucas. E preste atenção.
Lucas arqueou as sobrancelhas sob os alvoroçados cachos
loiros.
― Sua irmã deseja ver sua mãe. É seu desejo mais
prezado.
Sir Tracy franziu o cenho e replicou:
― Disse-me isso no outro dia. Havia-me dito em algumas
outras ocasiões antes ― acrescentou a contragosto. ― Mas ela
não o entende.
― Entende muito bem. E você deve permitir o encontro.
Deve arrumar esse encontro entre elas em um lugar seguro, a
fim de que sua irmã não corra perigo. Pode fazê-lo antes que
sua mãe parta ao continente?
― Não. ― Adotou uma expressão teimosa. ― Se souber no
que se converteu minha mãe, também sabe que uma moça
como minha irmã não deve expor-se a essa classe de negócios.
― Sua irmã já não é uma menina. É uma mulher. E já
sabe qual é o negócio de sua mãe.
Lucas deixou cair os ombros.
― É...
― É teimosa e imprudente, mas também tem muitos
recursos e é muito inteligente. ― E bonita e generosa, e o
deixava louco de desejo, e com as seguintes palavras que
pronunciou, estava renunciando a ela: ― Amanhã irei vê-la e
pedirei sua mão, e se me aceita...
Lucas ficou boquiaberto.
― Voc...
― A menos que me prometa que a levará para ver lady
Carlyle antes que esta parta de Londres.
Sir Tracy franziu o cenho.
― E se prometo?
― Assegurar-me-ei de que depois de minha visita amanhã,
esteja tão convencida como você de que não sou o homem
adequado para ela. Convencida de tudo. ― Sentia um vazio
enorme no estômago, o coração pulsava descompassado e seus
pulmões não sabiam nem como funcionar. Se isso era o que se
sentia ao ser um verdadeiro herói, o heroísmo podia ir-se ao
corno.
Lucas o olhou com expressão receosa.
― E suponho que você também irá à entrevista. Para
assegurar-se de que cumpro minha promessa.
― Sou um homem de honra, Lucas. Conceder-lhe-ei o
benefício de acreditar que você também seja.
― Bonitas palavras, Yale. Mas não sou uma virgem
inocente que deve enrolar.
Wyn nunca tinha imaginado que aprender tão bem as
lições de sua tia-avó o levaria a esse ponto.
― Pois acredite nisto: não poderia participar do encontro
embora quisesse. Devo abandonar a cidade amanhã pela
manhã e desconheço quando voltarei.
Entretanto, pouco depois de sua saída, o homem que
Yarmouth tinha na casa de Savege saberia sem lugar a dúvidas
que Diantha era para ele pouco mais que um mero jogo.
Inclusive antes que ele chegasse a Yarmouth, Diantha estaria a
salvo.
― Não. ― Lucas negou com a cabeça. ― É teimosa.
Somente tem que ver como é com minha mãe! Se ela quiser
você, não o soltará, goste ou não.
― Não depois disto. Eu lhe asseguro.
Lucas meditou o assunto. Olhou-o com os olhos
entrecerrados.
― De forma permanente? Nada de fazer as pazes no dia
seguinte?
― Nem à semana seguinte, nem no mês que vem. Dou-lhe
minha palavra. De cavalheiro.
Com uma retorcida sensação de alívio, viu que Lucas
assentia com a cabeça, com gesto hesitante no princípio, mas
depois com mais convencimento.
― De acordo ― disse sir Tracy no final. ― Tenho sua
palavra de honra, Yale?
― Tem-na.
Da mesma maneira que uma dama de olhos azuis tinha o
resto de sua pessoa.

****

Wyn se afastou do Lucas e dos aromas do vinho e da


indignação, mas foi incapaz de desterrar a sensação de
profunda perda que o embargava. Dirigiu-se a Dover Street.
Era muito possível que morresse ao chegar ao castelo do
duque, de modo que queria deixar todos seus assuntos em
ordem.
As letras douradas e o trinco com forma de falcão da porta
do número 14 ½ reluziam à luz da lua. Wyn puxou a
campainha e se abriu uma portinha, pelo que apareceu um
gigante com cara de menino.
― Boa noite, senhor.
― Há alguém em casa ou sou o único pássaro no ninho
esta noite, Grimm?
― Milorde está lá dentro.
― Grimm, tenho uma missão para você. Está livre durante
os próximos dias?
O capanga do Clube Falcon assentiu com um gesto sério
da cabeça. Wyn deu-lhe a direção da casa de Savege, ordenou-
lhe que fizesse guarda até que ele chegasse no dia seguinte e
que surrupiasse dos lojistas e dos criados tudo o que pudesse a
respeito de qualquer um que acabasse de entrar de serviço da
casa. Grimm colocou seu chapéu.
― Pode contar com Joseph Grimm, senhor. Ninguém fará
mal à dama esta noite.
Depois de afastar-se da porta fechada, Wyn encontrou o
secretário do Clube Falcon na entrada da sala de estar.
― Bem-vindo a casa, Yale.
Wyn aceitou a mão que lhe estendia o visconde Colin
Gray. O aperto do aristocrata era como ele: poderoso, firme e
seguro. Há dez anos, Colin o encontrou em Cambridge,
superando seus professores em todas as disciplinas, frustrado
e inquieto como um animal enjaulado alimentado com carne de
matadouro quando em realidade ansiava sair de caça. Colin o
levou para essa casa, para que o ajudasse a fundar uma
agência e a realizar um trabalho pelo que rara vez lhe agradecia
e que nunca festejavam. Ansioso por aproveitar sua
inteligência, por demonstrar a seu pai e a seus irmãos que se
equivocavam, Wyn aproveitou a oportunidade sem pensar
sequer.
― Encomendei uma missão a Grimm. ― Soltou a mão do
visconde e entrou na sala de estar, uma estadia singela
decorada com painéis de madeira, com uma elegância discreta,
em que somente cabiam cinco pessoas. Os cinco membros
originários do clube, dos quais somente restavam Constance e
ele, além de Gray. Embora não por muito tempo.
O visconde se aproximou do aparador.
― O que te sirvo?
― Nada, obrigado.
Cerrando os olhos azuis de Gray mal acusaram esse fato
tão incomum. Serviu-se de uma taça e se sentou em uma
poltrona.
― O que o traz por aqui esta noite, Yale? Somente os
serviços do Grimm?
― A cunhada de Alex Savege, Diantha Lucas, está sob a
vigilância de um valentão, um tipo muito perigoso. Necessito
que Grimm a mantenha a salvo até que possa lhe avisar de que
já passou o perigo.
Gray assentiu com a cabeça.
― Então era Diantha Lucas, não?
― A que se refere?
O visconde ficou em pé e abriu uma caixa que havia sobre
o suporte da lareira. De seu interior tirou uma folha de papel
dobrada que entregou a Wyn.
A letra que enchia a folha demonstrava uma caligrafia
firme e feminina.

****

À atenção do secretário do Clube Falcon


14 ½ Dover Street, Londres

Senhor:
Apesar das dificuldades que meu agente teve que enfrentar
enquanto seguia o membro de seu clube ao qual chamam de
Corvo, conheço a identidade do dito homem. Não vou dizê-lo
nesta missiva se por acaso a interceptam alguns olhos
indiscretos.
Direi pessoalmente, em vez de fazê-lo de maneira pública
para que os cidadãos britânicos se inteirem, já que é seu direito,
porque em Shropshire, junto ao Corvo viajava uma jovem de
linhagem. Não me interessa expor uma pessoa inocente à
censura da sociedade, somente descobrir injustiças. Não desejo
manchar o nome da dama, mas temo que se revelar a identidade
do membro de seu clube, a dama não escapará ilesa. De modo
que tenho as mãos atadas.
Senti-me com a necessidade de lhe informar este fato, não
só para que saiba que ainda tenho a intenção de que seu clube
fique exposto ao escrutínio público e de que suas contas sejam
inspecionadas, mas sim para que saiba que minhas intenções
são sinceras. Acredito que você sabe pouco de honra e muito
menos de educação. Mas talvez seu amigo, o Corvo, seja outro
tipo de homem. Confio em que seja assim.
L. J.

****

Wyn dobrou a folha de papel.


― Nesse caso, não preciso que andemos pelos arbustos. É
evidente que já não tenho capacidade de ficar aqui, mas sigo
necessitando que Grimm a vigie.
Gray guardou a carta na caixa e retornou a seu assento.
― Será sua única missão até que disponha do contrário. ―
Agarrou a taça uma vez mais. ― Mas não é necessário que
deixe o serviço.
― Vai me expulsar do clube. Sei tão bem como você.
Deixe-me livre de uma vez, tal como quer fazê-lo há meses. ― A
urgência que corria por suas veias precisava dar como
resolvido esse assunto.
― O diretor não tem intenção de te liberar do serviço. É
um membro valioso desta organização.
― Por favor... O duque de Yarmouth é uma pústula no
rosto do reino e lady Priscilla foi uma reprimenda. ― desbocou-
se o coração. ― Embora tampouco me importou muito, já que
me deu a oportunidade de passar uma temporada em
Manchester, em um pavilhão de caça diminuto, com um monte
de rameiras sem sentido da moda, com dois dedos de testa e
sem gosto pelas mulheres. ― E a oportunidade de encontrar-se
com uma dama muito decidida em uma carruagem do serviço
de correios de Sua Majestade sob a chuva.
― É obvio que quer abandonar o clube por vontade
própria, é outra questão ― disse Gray, como se ele não tivesse
falado.
Wyn cravou o olhar na taça que o visconde tinha na mão.
― Alguma vez você brinca, verdade?
― Poucas vezes. ― o rosto de Gray seguia sendo uma
máscara impassível. O queixo quadrado, o nariz orgulhoso e o
olhar sério eram a personificação do poderio britânico. ― De
verdade quer brincar neste momento?
O fogo crepitou na lareira e na rua, ao outro lado das
janelas reforçadas com chumbo do quartel geral do Clube
Falcon, escutou-se o estalo continuado de uma carruagem ao
passar.
― O diretor não te encomendou esta missão como um
castigo, Wyn. Yarmouth pediu expressamente que fosse você.
Wyn ficou sem fôlego. Deveria havê-lo imaginado, mas não
tinha sentido.
― Realizou um serviço admirável para a Inglaterra. Mais
que admirável. E cometeu pouquíssimos erros.
― Colin, sabe muito bem quantos erros cometi.
― Um. ― Os olhos escuros do visconde reluziram. ―
Porque este assunto de lady Justice não pode ser considerado
um erro. Essa mulher está vigiando este edifício há quase três
anos. Blackwood e Seton não pisaram aqui em todo esse
tempo, e Constance entra envolta em uma capa, com o capuz
colocado, depois de chegar em uma carruagem sem brasão.
Não me cabe a menor dúvida de que lady Justice também
conhece minha identidade e de que somente está esperando o
momento oportuno para revelar a todo o império. Mas até que
chegue esse dia, seguirei trabalhando. Como você deveria fazer.
Gray sabia. Não toda a história, mas sim sabia da morte
de Chloe. O diretor sabia muito mais, mas ainda o queria entre
seus agentes. Entretanto, isso já não significava nada para ele,
não importava seus louvores ou seus grandes planos para seu
futuro. O único importante era a segurança de uma moça de
olhos azuis.
― Colin, agradeço-lhe isso. ― Fez uma reverência e saiu do
clube pela última vez.

****

Seu apartamento estava igual como tinha deixado salvo


por dois detalhes: antes que seu criado fosse para sua casa
para passar a noite, sempre lhe limpava as botas. Além disso,
na mesinha situada junto à lareira, como de costume, havia
uma licoreira com brandy e uma só taça.
Wyn tirou o casaco e afrouxou a gravata ao aproximar-se
da mesa. A licoreira de cristal reluzia a tênue luz da lamparina.
Com mãos muito mais firmes do que tinham estado em meses,
levantou o pesado plugue e o intenso aroma do licor o
envolveu. Cheirava muito bem. Mas não tão bem como ela.
Nem sequer se aproximava.
Levantou a licoreira e se serviu de uma taça de brandy.
Fez girar o licor, deleitando-se com o conhecido peso da taça na
mão, com a cálida e reconfortante espera, com a segurança de
que essa taça, essa licoreira, dar-lhe-ia paz.
Levou a taça aos lábios e bebeu o brandy de um gole.
Tinha gosto de azeite para as lâmpadas e uma longínqua
lembrança de salvação. Entretanto, já conhecia o verdadeiro
sabor da salvação, e não se encontrava no conteúdo dessa
taça.
A esperança que tinha visto essa noite nos olhos azuis,
face à consternação e à preocupação, indicou-lhe que não
voltaria atrás de qualquer jeito. Acreditava que ele era um bom
homem, um homem merecedor de seu fiel coração. De modo
que, embora fosse a tarefa mais difícil que jamais enfrentou,
demonstrar-lhe-ia pela manhã que não o era.
27

Diantha, não tinha dormido bem por culpa da emoção,


despertou com profundas olheiras. A donzela insistiu que
colocasse rodelas de pepino e ela acessou, embora como Wyn a
tinha visto muito pior, não se preocupava com isso.
Entretanto, sorriu enquanto a donzela a penteava com
esmero e lhe abotoava um vestido amarelo-claro de musselina
com pequenos casulos de rosa bordados nas saias. No espelho,
via-se como uma dama londrina, salvo pelo brilho emocionado
que tinha nos olhos e que, depois de ter passado quase três
semanas na cidade, sabia que não era absolutamente
sofisticado.
Ao corno com a sofisticação! Wyn viria vê-la, pedir-lhe-ia
formalmente em matrimônio e de alguma forma convenceriam
Tracy para que não se comportasse como um imbecil.
Serena e Alex tinham voltado para casa quase ao
amanhecer e não desceram para tomar o café da manhã.
Diantha bicou de sua comida, mas não tinha apetite salvo no
referente ao homem em que estava a ponto de ver.
O relógio marcava dez e meia enquanto ela descosturava
outro ponto mau dado em seu bastidor, esforçando-se por
ignorar os roncos da donzela sentada em um canto, quando a
porta se abriu e um criado anunciou:
― O senhor Yale.
O anúncio lhe provocou um sobressalto e temeu que o
coração lhe saísse pela boca.
Viu-o entrar com o chapéu e a bengala em uma mão.
Depois de dar uma olhada à sala de estar, saudou-a com uma
elegante reverencia.
― Bom dia, senhorita.
Diantha foi incapaz de esperar que ele atravessasse a
estadia para aproximar-se dela. Ficou em pé e caminhou até
ele.
― Ontem à noite me esqueci de perguntar, como está a
senhora Polley, Owen e Ramsés. Sinto saudades deles. Parece
que há séculos não os vejo.
― Uma bruxa sensível. ― Wyn sorriu, mas o gesto não lhe
iluminou os olhos. A prata parecia um tanto deslustrada essa
manhã. Mas bem parecia ter os olhos velados. ― Estão tão bem
como cabe que estejam tendo em conta que se encontram
isolados na metade de um nada. ― Arrojou o chapéu e a
bengala a uma poltrona e tomou assento no adjacente,
cruzando-se de pernas e colocando um braço sobre os joelhos.
Apesar da pose relaxada, seu porte masculino fez que o
coração de Diantha se desbocasse. Usava uma jaqueta negra
de corte impecável, calças da mesma cor e uma camisa branca,
com gravata. O colete, entretanto, era de seda cor vinho tinto.
― Tem muito bom aspecto ― comentou ela ao ver que ele
não falava e que, em troca, limitava-se a inspecionar a estadia
com um leve interesse, posando o olhar na donzela no canto e
depois na porta que seguia aberta, junto à que aguardava o
criado. ― Pois um nada parece haver lhe feito muito bem
durante estas últimas semanas.
― A vida rural e bucólica é um magnífico reconstituinte ―
murmurou ele, que por fim a olhou. ― Esses olhos cinzas se
cravaram em seu corpete. ― Entretanto, prefiro muito mais a
vida da cidade.
Diantha tentou rir.
― Não sei se estaria de acordo com você. Londres é
interessante, mas está abarrotada. Acredito que prefiro o
campo. ― No campo, não a tinha olhado assim, de forma
penetrante, mas como se não a visse. Diantha olhou para a
donzela e depois o olhou de novo para lhe dizer em voz baixa: ―
Deixa de me olhar o seio. Está me pondo nervosa.
― Diantha, seus nervos são meus melhores amigos. Vi-me
obrigado a conquistá-los em mais de uma ocasião antes de
chegar ao importante.
Suas palavras fizeram que sentisse um nó na garganta.
― Wyn?
Ele olhou para a porta.
― Sua família está levantada?
― Ainda não, mas...
Viu-o dar tapinhas no braço da poltrona.
― Nesse caso, recomendo-lhe que se apresse a sentar-se
aqui, senhorita Lucas.
― Nessa poltrona? No que está sentado? ― Ansiava beijá-
lo. Ansiava rodeá-lo com as pernas e braços e lhe permitir que
a levasse ao paraíso como tinha feito na Abadia. Entretanto,
nesse momento algo não estava bem. Tinha os olhos
entrecerrados e os tinha cravado de novo nela.
― Vamos. Agora vai se pôr te suscetível? Não teria
imaginado isso de você, bruxa. Mas algumas jovens se fazem de
duronas até que tenham o anel no dedo, sem se importar o que
tiveram que passar antes, suponho. ― afastou a vista e a
cravou na janela enquanto que fazia um lânguido gesto com
uma mão.
Diantha sentiu uma repentina debilidade nos joelhos e se
viu obrigada a aferrar-se ao respaldo de uma cadeira.
― Wyn, o que aconteceu?
Quando voltou a olhá-la e a prestar-lhe atenção, Diantha
reparou que sua expressão voltava a ser a do predador de
Knighton. Nesse momento, ficou em pé e, depois de cambalear
levemente, fez-lhe uma reverência.
― Senhorita Lucas, você solicitou minha presença esta
manhã, assim aqui me tem. ― Seus lábios esboçaram um
sorriso lascivo. ― Suponho que depois de presenciar quão
disposta estava ontem à noite, hoje me recompensaria pela
espera.
Diantha se afastou com um nó nas vísceras, imaginando
que talvez fosse um sonho e despertaria a qualquer momento.
Entretanto, os sonhos que tinha tido essa noite tinham sido
maravilhosos e a situação em que se encontrava era espantosa.
A donzela no canto, que a essas alturas despertara,
contemplava a cena com os olhos exageradamente arregalados.
― Veio...? ― Diantha tentou falar apesar do nó que sentia
na garganta. ― Veio para me propor matrimônio?
Wyn se pôs a rir.
― Isso disse. Por que não fazê-lo? ― Seus olhos pareciam
incapazes de deter-se em um lugar, e voltaram a posar em seu
seio. ― Diantha Lucas, é uma mulher muito bonita. Qualquer
homem se alegraria muito de tê-la todas as noites em sua
cama.
Diantha levou as mãos ao abdômen e sentiu que o rosto
lhe ardia de vergonha.
― Está bêbado.
― É possível. ― Arqueou as sobrancelhas e assentiu com a
cabeça. ― De fato, é mais que provável.
― Eu... pensava que tinha a intenção de... ― Doía-lhe.
Doía-lhe na boca do estômago, e era uma dor muito mais
intensa que o que lhe tinham provocado suas anteriores
mentiras. Tentou perseverar, comportar-se como a dama que
sabia que deveria ser. Deveria pedir-lhe que partisse e que
voltasse quando estivesse sóbrio. Deveria lhe dizer que partisse
e que não voltasse jamais. Mas não podia. Amava-o. Por Deus,
amava-o! ― Nem... nem sequer é meio-dia ― conseguiu dizer.
― Disse aos cavalheiros que estavam ontem à noite no
clube que era uma garota inteligente. Uma dama capaz de
acompanhar a passagem do tempo e digna de admiração. ―
Assentiu e fingiu estar assombrado.
― Esteve falando de mim? Em seu clube? Bêbado e depois
de que...? ― Um soluço lhe entupiu a garganta. Entretanto, não
podia chorar. Não ia chorar.
― Não foi exatamente em meu clube, para ser mais sincero
― murmurou Wyn enquanto esboçava outro sorriso. ― Mas
bem era um... convento... isso, um convento francês. Sim, era.
― Piscou-lhe um olho.
Diantha soltou um soluço desesperado.
― Vamos, vamos, querida. Acaso um homem a que lhe
negou a satisfação de seu desejo não pode buscá-lo em outro
lugar antes de ir dormir? ― deu de ombros.
Diantha pressionou os olhos com as pontas dos dedos e
descobriu que, apesar de seus esforços, estava chorando.
― Isto não pode estar acontecendo.
Repreendeu-se por apaixonar-se dele. Havia se dito que
não era uma dama bastante elegante para mantê-lo
interessado. Tinha sofrido suas mentiras e também tinha
sofrido por todas as mentiras que tinha ideado dela. E,
aparentemente, torturou-se e se angustiou todos esses dias em
vão. Por fim se dava conta da verdade. Embora fosse muito
tarde.
― Vamos, não chore bruxa ― escutou-o dizer do outro
extremo da estadia. ― É normal que um homem beba mais da
conta quando está com seus amigos. Se quiser, deixarei de
fazê-lo uma vez que pronunciemos os votos. Somente beberei
os domingos, isso sim. Vamos, acha bem essa promessa? ―
Sua voz parecia um tanto rouca.
Entretanto, a essas alturas as lágrimas impediam de vê-lo
com claridade.
― Chorarei se quiser ― disse-lhe enquanto procurava seu
lenço. ― E você ficará aí plantado, me vendo chorar, senhor
Wyn Yale ― acrescentou, tratando-o com fria formalidade. ―
Deve-me isso.
― Em realidade, o único que te devo é um anel.
Diantha levantou a cabeça imediatamente e limpou as
frias lágrimas que lhe umedeciam as bochechas.
― Prometeu-me atuar com honra, isso é o que me deve.
Mas está claro que falhou.
Wyn ficou em pé nesse momento com expressão
inescrutável, sem deixar de olhá-la.
― Para uma mulher é fácil falar de venerabilidade.
― Não é. Sabe o que cheguei a pensar de você? Que não
podia existir um homem mais cavalheiresco e honrável. Mas
me equivoquei. ― Conteve um soluço com valentia.
Para Wyn, a cena era uma tortura.
― Deve-me sua pessoa, mas está claro que não é isso o
que está me oferecendo. Não desejo me casar com você. Já não.
Jamais.
Tinha-o conseguido, pensou Wyn, animado pela claridade
mental que lhe tinha outorgado uma noite acordado durante a
qual se convenceu de que devia afastá-la dele. Observou como
Diantha se esforçava por conter as lágrimas enquanto ardia em
desejos de lhe contar a verdade. Entretanto, não tinha ido para
isso. Tinha ido cortar os laços que tão rapidamente e com tanta
imprudência tinham surgido entre eles na estrada. Tinha ido
convencer ao espião do duque de que não havia nada entre
eles. Nada que pudesse motivar a Yarmouth a utilizá-la para
fazer dano a ele. Não podia permitir que outra jovem sofresse
por sua culpa. Muito menos em se tratava de sua bela Diantha.
Não obstante, devia assegurar-se de algo mais antes de
continuar com a charada até o final.
― Vamos, bruxa. Não se zangue. ― Conseguiu pronunciar
as palavras devagar, como se lhe desse trabalho falar. ― Afinal,
tampouco se encontra em estado de boa esperança. ― Apontou
em direção a sua cintura, depois piscou várias vezes e fingiu
que devia esforçar-se para manter a vista enfocada. ― Verdade?
― Não. ― Diantha levou um punho ao peito e seus
preciosos olhos o olharam jogando faíscas. ― Sabe uma coisa?
Não acredito no amor. Pelo menos, não no amor entre um
homem e uma mulher. Assim não me quebrou o coração. Mas
se acreditasse nele, parece-me que teria sido você o homem
pelo qual teria me apaixonado. Entretanto, acabo de comprovar
que meu cepticismo está justificado, porque você... você não
merece. Não nos merece.
Diantha se equivocava, pensou Wyn. Embora não
estivesse seguro de outra coisa, tinha a ciência certa que se
equivocava, porque se sentia embargado pela violenta
necessidade de desterrar a tristeza que empanava esses olhos
azuis. Ele sim acreditava no tipo de amor que ela descrevia
porque ela... enfim, porque ela o tinha conquistado por
completo. Esteve a ponto de falar, as palavras se amontoavam
na ponta da língua, respiradas pela ânsia desesperada de
retirar tudo o que havia dito e de lhe contar a verdade.
Entretanto, apertou os dentes e a observou afastar-se para a
porta com uma mão nos lábios.
Sir Tracy se encontrava no vão da porta. Depois dele,
revoavam três criados que não tentavam dissimular seu
interesse. Wyn teria aplaudido a perfeita execução de seu plano
se tivesse ânimo para fazê-lo. A servidão completa se inteiraria
da cena assim que ele abandonasse a casa. No final de
algumas horas, as notícias chegariam para ouvidos do duque
de Yarmouth. E Diantha estaria a salvo.
― Yale ― resmungou Lucas, que tinha o rosto vermelho, ―
tornou a fazê-lo.
― Tracy! ― exclamou Diantha, arregalando os olhos. ― O
que escutou?
― Não precisava escutar. ― Seu irmão franziu o cenho. ―
Suas lágrimas falam por si só. Entende agora por que não
queria esta união para você? Por que não queria este
indiferente cavalheiro? Sobe a seu quarto. Falarei contigo
depois de havê-lo acompanhado à porta.
― Não precisa que a desterre à torre do campanário, meu
amigo. ― Wyn agarrou o chapéu e a bengala, depois caminhou
tranquilamente até a porta. ― Já estava saindo.
― A partir deste momento, não será bem recebido nesta
casa ― resmungou Lucas. ― Agradecer-te-ia que deixasse isso
muito presente.
― A seu serviço, senhor. Senhorita... ― Fez uma torpe
reverência, colocou o chapéu, embora ficasse um pouco
torcido, e saiu à rua em busca de seu cavalo, que o levaria a
um futuro sem ela. A um futuro que começava a esperar que
fosse breve.

****

Diantha se abraçou pela cintura, totalmente intumescida.


Mal estava consciente de que Tracy despachava os criados e
fechava a porta da sala de estar.
― Irmãzinha, não permita que esse canalha...
― As coisas que disse... ― Coisas que ferira. Se fosse
qualquer outra pessoa, teria suspeitado que tratava de lhe
fazer dano.
― Vem, sente-se ― disse Tracy enquanto a conduzia até o
sofá. ― Beba um pouco de chá.
Diantha lhe rodeou um pulso, fazendo com que o chá se
derramasse sobre suas saias.
― Tracy, como costumam comportar-se homens quando
estão bêbados?
― De forma vulgar. Alguns se comportam como brutos.
Outros, como imbecis. E há outros que se somem no silêncio,
como nosso pai.
― Como nosso pai. ― Como acontecia a seu pai, Wyn tinha
sido incapaz de resistir a tentação da garrafa. Ela seria a
culpada? Ter-lhe-ia convidado a levantar a taça ao tocá-lo no
jardim, como fizera aquela noite na estalagem, e ao lhe suplicar
que a acariciasse quando ele tentava comportar-se como um
cavalheiro?
Não. Era impossível. Manteve-se afastado do álcool por ela
desde que partiram de Knighton. Tinha-o feito por ela. Tinha
deixado de beber para garantir sua segurança. Seu pai tinha
sido um homem bom, mas débil, desiludido pelas críticas e as
objeções de sua mulher. Mas Wyn era um homem forte.
Por que o tinha feito?
Talvez porque... porque ela não o merecia?
Isso não era verdade. A voz de sua mãe já não lhe
recordava constantemente seus defeitos. E, pelo amor de Deus,
por que tinha se empenhado em ouvir de novo sua voz? Acaso
tinha imaginado que falar com sua mãe mudaria as coisas?
Quem tinha mudado era ela. Tinha deixado de ser a menina
que sua mãe deixou para trás há quatro anos.
― Di? ― Tracy lhe aproximou de novo a taça de chá.
Ela ficou em pé e correu para a janela. Diante da casa
havia um menino, um moço dos estábulos, segurando as
rédeas de Galahad. O enorme animal estava muito atento a seu
dono, que se encontrava a poucos passos, junto de uma
carruagem fechada puxada por quatro magníficos malhados. A
portinhola da carruagem, adornada com um brasão, estava
aberta, embora nada se via do interior, salvo as sombras.
― Diantha... ― Tracy se aproximou dela. ― Se está
pensando que Yale é como nosso pai, equivoca-te. Pai fez tudo
o que pôde por nós antes de morrer.
Sir Reginald Lucas foi um bêbado silencioso, que não
gritava, nem se entregava ao desenfreio. Ao contrário, sempre
estava exausto e triste. Wyn fazia ornamento de um grande
comedimento, era a verdade. De uma grande disciplina.
Durante a viagem na estrada, jamais tinha gritado nem tinha
protagonizado número algum. Além disso, nunca tinha sido
cruel com ela. A única vez que se sentiu ameaçada foi na noite
de Knighton, quando se precaveu da escuridão que rondava
seus olhos e do desespero de suas carícias. Mas depois lhe
assegurou que não pretendia assustá-la. Comportou-se assim
estimulado pelo desejo.
Nesse momento, viu que um braço musculoso surgia da
carruagem e agarrava Wyn por um ombro. Ele escapou da dita
mão, depois subiu ao veículo, que arrancou imediatamente.
Diantha a seguiu com o olhar até que dobrou a esquina.
― Não me diga que esperas que retorne ― comentou Tracy,
que estava detrás dela. ― Porque embora o faça, negar-lhe-ei a
entrada.
Na rua, o menino estirou um braço para acariciar o
pescoço negro de Galahad e o puro sangue se inclinou,
contente com a carícia.
― Irmãzinha, tenho notícias que a farão esquecer desse
descarado. ― Tracy trocou o peso do corpo de um pé ao outro
antes de cravar a vista na rua. ― É sobre nossa mãe. É que...
está aqui, em Londres.
Em um primeiro momento que foi incapaz de respirar,
Diantha refletiu sobre a cruel ironia de descobrir que amava
um homem que tinha perdido poucos minutos antes de
descobrir que podia ver de novo à mãe que jamais a tinha
amado. Francamente, era quase insuportável.
― Em Londres? ― repetiu com um fio de voz. ― Mas
pensava que estava na França. Quero dizer, que papai disse
algo a respeito.
― Bom, essa é a questão. Que não sei se nosso padrasto
está a par de sua presença em Londres. ― Tracy esfregou o
queixo. ― Se mamãe o houvesse dito, ele teria alertado às
autoridades.
― Às autoridades!? O que quer dizer? Supõe-se que não
deve pisar na Inglaterra?
Tracy a olhou com os olhos de par em par.
― Pensava que sabia.
― O que?
― O problema que teve com a lei há quatro anos.
― Com a lei? ― perguntou Diantha, boquiaberta. ― Tracy,
mamãe está no exílio? Por isso partiu?
― Por isso e porque Carlyle lhe disse que não pensava
mantê-la mais ― respondeu seu irmão com tensão. ― Não
depois do contrabando.
― Contrabando? Mamãe? Por que não me contou isso tudo
antes?
Tracy meneou a cabeça.
― Todo mundo sabe.
― Menos eu, porque não tinham me contado isso!
― Supunha que Serena tinha feito, ou que tinha lido no
periódico e não gostava de falar do assunto.
Diantha se deixou cair na poltrona que Wyn tinha
ocupado poucos minutos antes.
― Não sabia ― sussurrou. ― Não desejava me inteirar. ―
Aparentemente, era um dia de dolorosos descobrimentos.
A baronesa tinha repetido até não poder mais que Diantha
era uma menina desobediente, que não era o bastante decorosa
nem o bastante bonita. Não obstante, a pior crueldade que lhe
tinha infligido sua mãe, a crueldade que somente a ama de
chaves conhecia e Teresa, tinha descoberto fazia tão somente
dois anos e nem sequer tinha tido a coragem de contar a Wyn,
apesar de tudo o que lhe contou sobre si mesmo. Queria ir a
Calais para falar com ela precisamente para olhá-la na cara,
para lhe dizer que estava a par da mentira e que tinha
conseguido superar. Entretanto, não teria teimado em falar
com ela se tivesse sabido que sua família teria podido sair
prejudicada ao restabelecer o contato com sua mãe. Jamais
tinha perguntado a ninguém o motivo pelo qual a baronesa
partira. Jamais.
Wyn não era o único que tinha mentido. Ela tinha mentido
a si mesmo. Uma e outra vez.
― Ai, Tracy! ― Cobriu-se o rosto com as mãos. ― Nada
disto saiu como eu planejava.
― Bom, não é o momento para tratar desse assunto. De
todas formas, parte esta mesma noite para França e não
acredito que vá retornar no futuro. Então quer vê-la ou não?
Diantha assentiu com a cabeça. Tinha a boca seca.
― Muito bem ― disse seu irmão com tensão. ― Será
melhor que me encarregue de arrumar tudo. Voltarei para
pegar você antes do jantar. Mas, me escute bem. Não diga a
Serena. Isto ficará entre você e eu, de acordo?
Diantha olhou para o rosto de seu irmão e viu
insegurança e debilidade. Afinal, era filho de sir Reginald. Não
se parecia com Wyn, por mais que ela tentasse compreendê-lo.
― Não o direi.
28

A carruagem com o brasão aristocrático que tinha visto na


rua atormentou Diantha durante o resto do dia. No salão,
depois de sair para dar um passeio pelo parque com as
crianças, perambulou e tentou convencer-se de que não se
dirigia à janela, mas uma vez ali colou o nariz ao cristal e
esquadrinhou a rua. O moço dos estábulos estava sentado em
alguns degraus, duas casas mais abaixo.
― Serena, acredito que deixei as luvas na carruagem.
Serena estava ocupada escrevendo uma carta.
― Peça ao John que vá buscá-los.
― Oh, seguro que está tirando o brilho da prata ou algo
assim. ― dirigiu-se à porta a toda pressa. ― Irei eu. ―
Atravessou o corredor correndo. O criado se encontrava no
vestíbulo. Olhou-o com um sorriso deslumbrante antes de levar
um dedo aos lábios. ― Não me afastarei muito, John ―
sussurrou-lhe antes de sair pela porta.
John ficou nos degraus, observando-a enquanto corria
pela calçada.
O menino elevou a vista. Tinha uma reluzente moeda
entre os dedos. Ficou de pé de um salto e tirou a boina.
― Bom dia, senhorita. ― Mal teria oito ou nove anos, e
estava tão bem asseado e vestido como todos os criados da
casa de Serena.
Olhou-o com um sorriso.
― Por que brinca com essa moeda?
O menino adotou uma expressão ansiosa.
― Ah, não quero tirar-lhe isso ― tranquilizou-o. ― É que te
vi brincando e me perguntei como se chamava esse jogo. Eu
adoro os jogos de mãos. ― E as mentiras, como a que tinha
contado a Serena quando disse que iria a casa de lady Emily
essa tarde de modo que pudesse fazer uma visita secreta a sua
indecente mãe.
O menino relaxou e voltou a fazer girar a moeda entre
seus dedos.
― Veja, senhorita, este jogo é bom para os que chamam
«agilidade» ― disse assentindo sabendo do que falava.
Ela recolheu as saias e se sentou nos degraus.
― Ensina-me?
O menino estendeu a mão e a moeda começou a saltar de
um dedo a outro como se tivesse vida própria, passando por
cima de seus nódulos três vezes antes de que caísse ao chão
com um tinido. O menino franziu o cenho.
― Ainda não peguei o truque.
― Tenho certeza de que logo pegará. Acaba de aprendê-lo?
― O cavalheiro que veio à casa de milorde esta manhã me
ensinou isso antes de me deixar ao cargo de seu cavalo. ―
Olhou a moeda com expressão inquieta uma vez mais.
― Não parece que esteja muito contente com ela. Não é o
bastante para cuidar de um cavalo?
O menino franziu tanto o cenho que lhe enrugou a testa.
― Oh, não, senhorita, é mais que suficiente. É que quando
o cavalheiro se foi, deixou aqui o seu cavalo. É um bom cavalo,
senhorita, do contrário não me preocuparia.
― Não voltou para recolhê-lo? ― Muito a seu pesar,
começou a retorcer os dedos em seu regaço.
― Não, senhorita. Levei-o aos estábulos e deixei que o
velho Pomley se encarregasse dele. É um animal muito bom
para tê-lo muito tempo esperando, sobre tudo porque o
cavalheiro disse que somente demoraria um quarto de hora.
«Um quarto de hora.» Tempo de sobra para lhe propor
matrimônio, uma proposição que ela rechaçou, antes de meter-
se em uma carruagem com brasão e partir. Sem seu cavalo.
O pânico lhe formou um nó no estômago.
― Humm, pareceu-me ver o cavalo antes. Sim, que é
bonito.
― E forte. Poderia ser de corridas, mas não tem o
temperamento necessário para a pista. Ou isso disse o
cavalheiro. ― O moço meneou a cabeça com gesto pesaroso.
― Importar-se-ia de me ensinar isso.
O menino ficou em pé de um salto. Diantha o seguiu pelo
beco que levava aos estábulos com os nervos tão a flor de pele
que nem se incomodou de esquivar-se dos atoleiros que havia
pela estrada, até chegar ao lugar que o encarregado tinha
atribuído a Galahad. O cavalo, que comia de um balde de
aveia, voltou a cabeça para olhá-la.
Sentiu uma repentina impotência. Wyn não deixaria
Galahad dessa maneira em circunstâncias normais. Claro que
talvez estivesse muito bêbado para que se importasse. Ou
talvez os homens da carruagem eram amigos deles e o tinham
levado para seguir bebendo ou para visitar outro «convento
francês» para desfrutar.
Levou as mãos às bochechas. Não. Nem sequer nessas
circunstâncias. Essa negligência não era típica dele. Negava-se
a acreditar. Embora devia fazê-lo. Não tinha motivos para não
acreditar, salvo a ingênua esperança que tinha albergado em
seu coração desde o preciso momento que o viu na carruagem
do serviço de correios de Sua Majestade. Era uma imbecil
completa.
No final, Wyn após passada a bebedeira recuperaria
Galahad, e ela teria que resignar-se a encontrar-se com ele em
eventos sociais de vez em quando. Mas depois do encontro
dessa noite com sua mãe, em seu futuro não haveria mais
planos impulsivos. Essa parte de sua vida devia desaparecer.
Dela devia ressurgir uma mulher nova, mais triste, mas
também mais sábia graças ao que tinha aprendido a respeito
dela mesma e a respeito de um homem.

****

Quando Tracy por fim veio procurá-la às sete e meia,


Diantha tinha os nervos à flor de pele. Percorreram em silêncio
as ruas iluminadas pelas luzes e cheias de carruagens. No
final, apearam em uma estreita rua secundária. A menos de
cem metros de distância, os mastros dos navios se elevavam
para o céu, e as carretas carregadas de mercadorias se moviam
de um lado para outro, envoltas na bruma que subia do chão à
medida que a noite ia esfriando.
― As docas ― disse seu irmão. ― O navio de nossa mãe
parte em uma hora dali.
― De noite?
Seu irmão deu de ombros como se quisesse negar que sua
mãe era uma criminosa que escapava ao amparo da noite.
Através das portas que davam à rua chegava o ruído de risadas
e de música. Os homens entravam e saíam dos edifícios,
homens de aspecto rude, caras curtidas e roupa molhada.
Marinheiros supôs ela. Uma mulher tirou o capuz de sua capa
ao entrar em um estabelecimento, e a cor gritante de seu
cabelo e de suas bochechas era grotesco à luz das tochas. Era
um mundo muito afastado de Devon, inclusive muito afastado
da estrada que percorreu de Shropshire e Gales. Diantha não
sentia esse desconforto ao entrar em um mundo estranho, em
um mundo perigoso, desde que subiu na carruagem do serviço
de correios de Sua Majestade, pouco antes que desejasse que
aparecesse um herói e obteve a um galés de cabelo escuro.
Sem deixar de olhar a direita e a esquerda, Tracy a
conduziu a uma porta. Abriu-a um homem calvo de meia
idade, trajado com um colete vermelho no qual tinha os
polegares enganchados.
― Ora, ora ― disse o homem com um sorriso. ― Mas que
pombinha mais bonita.
― Minha irmã não é teu assunto, Baker ― gritou-lhe
Tracy. ― Se disser a minha mãe que saía, estarei encantado em
não dizer a Savege que se encontra na cidade.
O senhor Baker agarrou o queixo com gesto pensativo.
― Bem, senhor, sua mãe pode ser que esteja um pouco
indisposta para receber vistas.
― Melhor que não esteja. Disse-lhe esta tarde que
viríamos.
O senhor Baker apontou a escada.
― Vocês vieram mesmo. ― Olhou para Diantha. ― Mas não
acredito que a esta dama goste da delicada sensibilidade de
sua mãe.
Tracy ficou vermelho. Voltou-se para ela.
― Subirei e lhe direi que estamos aqui.
Ela assentiu com a cabeça e viu como seu irmão subia a
escada.
O senhor Baker a percorreu com um olhar lento, da
cabeça até os pés. O homem alargou o sorriso. Ela fechou mais
a capa e se aproximou da estreita janela que havia junto à
porta. Pela rua, envolta na bruma, passou uma carreta,
seguida de uma desmantelada carruagem de aluguel, vários
cavaleiros e outros transeuntes, enquanto ela sentia as mãos
cada vez mais frias e úmidas. Fechou os olhos e depois das
pálpebras viu uma carruagem com um brasão e um cavalo
negro sem cavaleiro.
Abriu os olhos de repente. Necessitava de um plano, algo
que a distraísse para não pensar em Wyn a toda as horas.
Formou-se um nó na garganta. A menos de vinte metros
dela, um homem passou sob a luz de um farol. Um homem
muito musculoso trajado com um capote e um chapéu, mas
cujo cabelo negro, queixo quadrado e tamanho eram
inconfundíveis.
Pegou o trinco da porta.
― Um momento, senhorita ― disse o senhor Baker. ―
Aonde acredita que vai?
― Não tenho tempo. ― O coração lhe trovejou enquanto
que suas mãos escorregavam sobre o trinco.
― Seu irmão descerá em seguida com sua mãe.
― Diga... lhes diga que voltarei em seguida. ― Abriu a
porta.
Agarrou-a pelo braço.
― Um momento, senhorita.
Lorde Eads desapareceu depois de um grupo de pessoas
que havia rua acima. Voltou-se.
― Não. Diga a meu irmão que não posso vê-la. Que mudei
de opinião. Vejo que uma carruagem de aluguel ficou livre
agora mesmo. Dir-lhe-ei que me leve de volta à casa de minha
amiga, onde se supunha que ia estar esta noite. Não posso ver
minha mãe agora. ― O coração lhe saía pela boca.
― Não voltará a ter outra oportunidade. Sua mãe e eu
viajaremos em uma hora.
― Eu... sei. Sei. ― soltou-se e abriu a porta
completamente.
Internou-se no tráfico enquanto a assaltava o fedor de
peixe e a sedimentos de animais. Seus sentidos, por fim,
tinham voltado à vida depois de horas de intumescimento. As
saias lhe entorpeciam a caminhada, de modo que as largas
costas do escocês desapareceram de sua vista.
Dois homens lhe assobiaram de um portal.
― Olá, beleza! Venha para cá. Dar-lhe-emos uma boa
queda. ― Um dos homens se lançou sobre ela e a agarrou pelo
braço.
― Não! ― debateu-se. ― Solte-me!
Lorde Eads se deteve e se voltou, e quase saiu o coração
de Diantha pela boca.
Em um abrir e fechar de olhos, o escocês estava sobre eles
e afastou seu perseguidor de um empurrão.
― Sua mãe não te ensinou a tratar a uma dama,
desgraçado? ― Cravou seu olhar em chama nela enquanto o
malfeitor retrocedia. ― E você, ninguém lhe disse que não deve
brincar de correr pelas ruas de noite, moça?
― Não, vivi sempre na escuridão. Mas agora você deve
retificar essa situação. ― Presa dos tremores, agarrou-se a seu
forte braço. ― Onde ele está? Você lhe fez mal? Tem que me
dizer isso porque do contrário morrerei. E não estou sendo
melodramática. Não tenho palavras para descrever o que sinto
no peito. É a pior sensação que experimentei na vida. Levo todo
o dia tentando fingir que não a sinto, mas é inútil. Tem-lhe
feito mal? Se não... Ai, Deus, por favor, que não o tenha feito...
Mas onde ele está?
Viu-o franzir o cenho.
― Não lhe fiz mal, moça. Mas tampouco sei onde está.
― Preciso saber a verdade ― rogou-lhe. ― Se souber que
somente está embebedando-se com seus amigos em outra
parte, terei que aceitar. Mas esta manhã partiu de um modo
muito estranho, em uma carruagem com um brasão na
portinhola e quatro malhados mais espetaculares que vi na
vida, e deixou para trás seu cavalo. Não é típico dele, e me dou
conta de que...
― Disse quatro malhados?
O coração de Diantha deu um salto.
― Reconhece-os?
― Sim, moça. ― Tinha o cenho muito franzido.
― Sabe...? ― ficou sem respiração. ― O duque?
Ele assentiu com a cabeça.
Cravou-lhe os dedos no braço.
― Rogo-te: diga-me onde posso encontrá-lo.
― Não posso. ― Negou com a cabeça. ― Cortar-me-ia o
pescoço.
― O duque?
Olhou-a como se fosse tola.
― Diga-me aonde o duque o levou! Rogo-te.
O escocês guardou silêncio um momento, um silêncio
durante o qual os ruídos da rua ressoaram a seu redor, no
beco meio iluminado pelas tochas. No final, viu-o assentir com
a cabeça.
― Irei ver o que se pode fazer e logo a informarei.
― Não. ― Agarrou-o por braço. ― Tem que me levar com
você.
― Não, moça.
― Não vou aceitar um não por resposta. Não me separarei
de você.
O escocês olhou a seu redor.
― O que fazia aqui sozinha?
― Procurava a verdade. De novo. Mas tem que me levar até
ele. Quero ajudá-lo. Preciso ajudá-lo. Se fosse uma de suas
irmãs entenderia, verdade?
O escocês a olhou desde sua enorme estatura. Pela
segunda vez em muitos anos, Diantha rezou.

****

Apesar de que estava muito tempo trabalhando para o


governo e, brevemente para um mandão de baixos recursos
como Myles, Wyn se surpreendeu ao descobrir que um
aristocrata tinha uma masmorra, na cidade, no escuro porão
de uma casa medieval, onde nesse momento se encontrava
acorrentado a uma parede com grilhões nos pulsos. Dado seu
estado atual, também custava a convencer-se de que tinha
tomado a decisão correta ao subir na carruagem ducal por
vontade própria. Tinham-lhe tirado a faca. De fato, tinha
entregue sem opor resistência. Tinha a cabeça intumescida e o
coração destroçado pela farsa que tinha interpretado diante de
Diantha; tanto era assim não tinha pensado no que fazia
quando a portinhola da carruagem se abriu e um dos capangas
do duque gritou: «Entra ou te dou um tiro no coração.» Já que
não gostava de morrer sangrado na calçada diante da casa de
Diantha, tinha aceitado. Afinal, um homem merecia certo
orgulho e a bruxinha merecia algo melhor.
Um guarda que dormia em um canto com a perna solta e
roncava tinha as chaves penduradas no cinturão. Wyn tinha
tentado enrolá-lo, inclusive tentou suborná-lo, para conseguir
as chaves. Também executou um repentino movimento com os
braços quando o homem se aproximou, mas isso somente lhe
valeu hematomas nos pulsos e uma ferida tão larga como
Piccadilly em uma lateral do rosto. Talvez não fosse tão longa,
mas tinha sangrado bastante. Sentia-se um pouco tonto e
tinha a boca como a sola de um sapato. Embora tinha certeza
de que se tivesse se apresentado em Yarmouth, a essas alturas
também estaria acorrentado. Pelo menos, dessa forma tinha
economizado Galahad da viagem.
Pigarreou.
― Esteve me seguindo por muito tempo antes de me
recolher?
O guarda despertou sobressaltado e esfregou os olhos.
― Desde ontem à noite.
― Só desde ontem de noite?
Recebeu um grunhido por resposta.
― Ah. O duque só deve confiar em vocês para as tarefas
sujas. Que humilhante para você.
Outro grunhido, nesse momento de aborrecimento.
― O que disse?
― Rufus estava perseguindo fantasmas ― resmungou o
homem. ― Disse a Chopper que a moça não era nada. Não para
um tipo tão presumido como você.
Wyn deu um salto o coração.
― Admito que não terminei de entender. Seu companheiro,
Rufus, falhou com você, Chopper, e talvez com o duque, em
uma tarefa que tinha que haver me capturando, é isso?
O gigante assentiu com a cabeça, fervendo de indignação.
― E agora, quem te largou aqui mais contente que
castanholas e me deixou aqui encarcerado? ― Franziu o cenho.
― Suponho que Rufus.
O homem assentiu com a cabeça, mas voltou a guardar
silêncio.
Com isso Wyn deduziu com bastante satisfação que
Rufus, o empregado do duque que tinha estado dentro da casa
de Savege vigiando, tinha recebido o pagamento e tinha
deixado o serviço do duque horas atrás. Rufus tinha engolido o
estratagema de Wyn e Yarmouth o tinha despachado. Diantha
estava a salvo.
Escutaram-se passos na escada e entrou outro homem.
― Ah, voltou logo ― disse Wyn. ― Já que desapareceu tão
rápido depois desse encantador passeio na carruagem,
começava sentir saudades de você.
Esse tipo não era tão grande como o outro guarda, embora
tivesse muitas cicatrizes. Tinha ganho combates brutais. Se
Wyn tivesse as mãos livres, talvez pudesse derrotá-lo sozinho.
Inclusive a ambos, sempre que contasse com sua faca.
― Quer vê-lo.
Levaram-no escada acima, atravessando um pequeno
patamar, depois o guarda de menor tamanho abriu uma porta
situada na planta alta. O fedor de decomposição lhe assaltou
as fossas nasais. Mal iluminada, a estadia era uma fortaleza,
com janelas muradas, tapeçarias flamencas e uma enorme
cama com dossel, cujas cortinas estavam adornadas com
cordões dourados e borlas. Em uma mesa junto à cama havia
uma bandeja de prata com pratos cheios de comida que
ninguém havia tocado. Na cadeira situada junto à mesa se
sentava, encurvada, uma mulher magra de idade indefinida,
oculta por uma capa negra e um véu. A mulher não elevou a
vista quando os guardas insistiram que Wyn se aproximasse
dos pés da cama, mas ficou em pé para recolher as cortinas.
O fedor da morte o sacudiu com força. Das sombras, o
espectro de um homem com uma larga juba grisalha, muito
espessa apesar das circunstâncias, olhava-o com olhos
enormes e afundados pela escuridão. Tinha o rosto cheio de
pústulas vermelhas tão grandes como uma moeda de seis
peniques, e algo umedecia sua camisa de dormir, tingindo-a de
rosa, sob a bata de veludo.
No castelo de Yarmouth, Wyn tinha visto o retrato de um
duque, era o retrato de um homem de meia idade, alto, magro,
de feições aristocrática, com um queixo pequeno, os olhos
redondos e os ombros estreitos, que ressaltavam mais ainda,
pela pose indolente em que apoiava um cotovelo no busto de
um imperador morto há séculos. Calígula, certamente.
O monstro que havia diante de Wyn se parecia muito
pouco ao aristocrata do retrato.
― Excelência, far-lhe-ia uma reverência, mas estes
cavalheiros me ataram muito forte. Ah... Um momento... ―
Inclinou a cabeça com gesto pensativo. ― Não, não faria mesmo
se pudesse. ― deu de ombros e os grilhões se cravaram nos
pulsos.
O duque assentiu com a cabeça e a mulher afastou ainda
mais as cortinas. Um par de pistolas de duelo descansava aos
pés da cama, muito bem dispostas sobre o cobertor de cetim,
embora ainda estivessem em seu estojo.
Wyn sentiu um nó na garganta.
― Ora ― comentou como se nada estivesse ocorrendo, ―
quer resolver este assunto de um modo cavalheiresco. ―
«Curioso», pensou. Yarmouth não parecia capaz de levantar a
mão sequer, muito menos de empunhar uma arma.
― A se... segunda... ― A voz do ancião soou rouca, por
falta de uso, mas também pela enfermidade.
Talvez fosse sífilis, a julgar pelas pústulas. Se fosse assim,
a criatura sumida nessa cama estava sofrendo há bastante
tempo.
Wyn arqueou uma sobrancelha.
― A segunda?
― A segunda... é... ― A gravata de Yarmouth estremeceu.
― .. se por acaso falhar com a primeira.
Isso sim que não tinha esperado. Nos olhos do duque viu a
loucura. Loucura, sim, que talvez já o afligisse quando violou e
torturou a sua jovem pupila, Chloe Martin, uma moça que mal
tinha dezesseis anos quando Wyn a encontrou, enquanto fugia
de seu tutor legal depois de escapar dele. Loucura causada
pela enfermidade ou talvez somente aumentada por esta.
― Dada a hospitalidade que me ofereceram hoje, suponho
que não vai pagar-me por este assassinato, como aconteceu na
última vez ― repôs com voz lacônica. ― Assim que lhe peço que
me relate os seus propósitos, Excelência. Se puder.
― Quero que me... mate.
― Se me derem uma dessas pistolas, dispararei ao homem
que tenho a minha esquerda no joelho. Se me derem a outra,
dispararei a este outro tipo da mesma maneira. É obvio que
seria uma tolice não fazê-lo.
Um brilho selvagem iluminou os olhos de Yarmouth.
― Contratei-o para... matar... a uma...
― Espiã francesa. Certo. E como me acreditava muito
preparado, aceitei com gosto a proposição, claro que isso foi
antes que descobrisse que a suposta espiã era tão francesa
como você e como eu, e que em realidade se tratava de uma
moça com quem tinha praticado suas fantasias depravadas até
deixá-la tão ferida que mal podia correr. Entretanto, encontrou
a coragem de fugir de você. A vontade humana é incrível, não
acha?
Dedos cheios de feridas se aferraram à roupa de cama.
― Mate-me!
― Para lhe dar o prazer? E matar dois pássaros de um só
tiro? Acabar com sua mísera existência, ao mesmo tempo em
que me condena a uma morte segura por desafiá-lo há cinco
anos? Por tentar desafiá-lo, em realidade.
― Sua carta... Ju... jurou... ― O duque sacudiu a cabeça,
preso de tremores incontroláveis.
― Jurei que o mataria da próxima vez que o visse ―
conveio Wyn. ― Por me haver estendido uma armadilha para
acabar matando-a. Por me mentir. Por... ― Já não pôde conter
a raiva por mais tempo. ― Estava sob seu amparo. Era uma
menina. Que foi entregue para que a protegesse depois da
morte de seus pais. Em troca, fez-lhe mal. ― Tinha os punhos
apertados e os grilhões se cravavam na sua pele.
― A vaidade... jogou-lhe um mau passo. ― Esboçou um
sorriso retorcido. ― Matou-a.
Por acidente. Uma mensagem enviada ao duque, já que
Chloe se ofereceu como isca voluntária para atrair Yarmouth,
enquanto Wyn esperava escondido em um beco a meia-noite,
com mão firme, mas a cabeça cheia de brandy. E Chloe saiu
pela porta em primeiro lugar... desviando do plano original.
Como o duque tinha rido. Suas gargalhadas ressoaram
por esse beco escuro do inferno, enquanto se afastava sem ter
sofrido dano algum.
Semanas mais tarde, depois de sair do esquecimento em
que tinha se afundado naquela noite, depois que Jin o ajudou a
enterrar o corpo, Wyn mandou uma carta ao duque. Depois de
cinco anos esperando uma oportunidade para acessar a
fortaleza impenetrável de sua Excelência, lady Priscilla tinha-
lhe proporcionado essa oportunidade para cumprir a promessa
que tinha feito a Chloe Martin, enquanto a moça jazia
moribunda em seus braços.
― O cavalo era outra mentira, verdade? Lady Priscilla era
seu álibi para me obrigar a fazer sua vontade mais uma vez.
Quer morrer e acabar com seu sofrimento, mas não tem a
coragem de fazê-lo sozinho. Já que tentei desafiá-lo há cinco
anos, vou ter a honra de apertar o gatilho uma vez mais, não?
Observou o rosto gasto de Yarmouth, com uma claridade
que nascia tanto da raiva como da satisfação, e reconheceu
nesse momento seus próprios pecados. Não deveria haver feito
mal a Diantha. Decidida como estava, inclusive ansiosa, a
confiar nele nessa manhã, talvez tivesse aceitado a obedecê-lo
se tivesse lhe explicado o perigo que corria. Talvez tivesse feito
caso pela primeira vez e o teria ajudado, mantendo-se a salvo.
― Não há maior honra que o fato de que lhe confiem a
segurança e a felicidade de uma mulher ― disse em voz baixa.
Um ofego apenas perceptível, quase um suspiro, brotou da
mulher coberta pelo véu que seguia na cadeira. Mas Wyn não
afastou o olhar do duque.
― Você é um homem retorcido, Excelência. Merece padecer
esta miséria até que a loucura o consuma por completo. Porque
me nego a ajudá-lo. ― Não quando, por fim, tinha descoberto a
tragédia da mentira. Não quando, por fim, tinha saboreado a
vida.
― Rebelou-se contra mim. ― As palavras foram
pronunciadas em voz baixa, apenas um ofego procedente dos
lábios de Yarmouth. ― A querida Chloe... lutava... cada vez
mais. ― A boca adotou uma careta de prazer, e seus olhos
reluziram.
Wyn deu-lhe as costas.
― Tire-me daqui ― ele disse ao guarda.
Chopper olhou para cama, envolta na escuridão.
Wyn não soube se o duque deu sua permissão ou se seus
guardas já não suportavam estarem na presença de seu chefe,
tal como acontecia com ele. Empurraram-no para a escada, e
enquanto o levavam para seu destino incerto, pensou em
Diantha... a salvo. Inclusive sorriu.
Não lhe tinha feito conta. Se tivesse contado tudo, não lhe
teria permitido escondê-la para garantir sua segurança... não
de novo, não depois da Abadia. Teria insistido em ajudá-lo e a
essas alturas estaria ali, prisioneira do duque, como ele. Em
troca, estava a salvo em casa de Savege, com Grimm montando
guarda para estarem mais seguros.
Chegaram ao patamar que havia pouco acima do porão
justo quando a porta se abria e entrava o escocês que a noite
anterior lhe assegurou que já não trabalhava para o duque de
Yarmouth.
E atrás de Duncan, apareceu Diantha.
Com os olhos totalmente arregalados, algumas mechas
foram do chapéu torcido, duas manchas ali onde deveriam
estar suas covinhas, amordaçada com um pedaço de tecido e
os pulsos atados com uma corda, olhou-o e seu corpo ficou
flácido.
Duncan a colou a seu lado.
― O que acontece aqui? ― Chopper franziu o cenho. ―
Trouxe sua pombinha aqui, Donnan?
― Parece-se com uma mulher dessas, imbecil?
O homem começou a babar.
― Vai deixar que nos divirtamos um pouco, amigo?
Duncan cravou o olhar em Wyn.
― Não, moços. A moça está aqui para o prazer de sua
Excelência.
29

Diantha sentiu um impulso. Sabia que o propósito da


mentira era desconcertar os rufiões do duque a fim de que
baixassem a guarda, mas a mera ideia era-lhe repugnante.
Engoliu saliva para livrar-se do amargor da bílis na medida que
permitia o pedaço de tecido arrancado de suas anáguas que
tinha metido na boca, e se recuperava do fingido desmaio.
Começou a lutar para endireitar-se entre os braços de lorde
Eads, tentando a todo momento não olhar para Wyn. Se o
olhasse de verdade, acabaria desmaiando a sério.
Grilhões de ferro. Sangue! Ardia de desejo de arrancar os
olhos desses rufiões com suas próprias mãos.
Conseguiu entreabrir as pálpebras e gemeu, depois
meneou a cabeça a fim de interpretar o papel que lorde Eads
tinha-lhe atribuído na carruagem de aluguel onde tinham
percorrido as ruas a toda pressa para chegar a essa casa.
― Maldito seja, Eads. ― A voz de Wyn mal parecia
humana.
O rufião mais corpulento a olhou de cima abaixo, como se
ela fosse o jantar.
Entretanto, o outro pareceu recear.
― Veja, Donnan. ― Meneou a cabeça. ― O duque não
está...
E, nesse momento, produziu-se um estalo de violência
masculina no pequeno patamar entre os dois estreitos lances
de escada. Wyn se lançou com todas suas forças sobre o
homem que tinha a sua esquerda, conseguindo desestabilizá-
lo, já que se encontrava a beira de um degrau. O tipo tratou de
manter o equilíbrio agitando os braços. Lorde Eads protegeu
com seu corpo Diantha, colocando-se entre ela e o rufião
corpulento que nesse momento se lançava para Wyn. Diantha
tratou de manter o equilíbrio enquanto tirava as cordas dos
pulsos e tirava o tecido da boca. Lorde Eads se lançou sobre
seu oponente enquanto que o outro recuperava o equilíbrio e
atacava Wyn. Diantha gritou. Escutou-se o tinido dos grilhões e
com um ágil movimento, Wyn saltou sobre a corrente e a
utilizou para rodear o pescoço do malfeitor. O oponente de
lorde Eads gritou e caiu contra a parede, levando as mãos ao
pescoço. O sangue emanava de entre seus dedos. No final, seu
enorme corpo acabou enfraquecido no chão. O outro rufião
também gritou e depois ofegou. Já não tinha a corrente em
torno dos ombros, a não ser em torno do pescoço.
― Não o mate! ― chiou Diantha.
― Não vou matar ― disse Wyn com voz áspera, pouco
antes de que o tipo caísse pela escada entre o tinido dos
grilhões. Depois, voltou-se para eles e seus olhos chapeados
olharam para lorde Eads jogando faíscas. ― Mas a ele vou
matar.
Diantha se afastou da porta.
― Lorde Eads não...
No piso superior, envolto nas sombras, escutou-se uma
portada. Os homens elevaram a vista. Quando seus olhares se
encontraram, os olhos azuis lançaram um desafio aos cinzas.
― Permita-me ― disse lorde Eads.
Wyn assentiu com a cabeça e se ajoelhou junto ao rufião
que seguia sangrando. Os grilhões tilintaram de novo. Lorde
Eads se apressou a subir a escada.
Diantha deu um passo à frente.
― Mas, o que ele vai...?
Wyn a agarrou pelo pulso e puxou-a para a porta. As suas
costas ficaram os grilhões, presos em torno das mãos do rufião
menor. A névoa tinha feito ato de aparição e tinha convertido o
beco traseiro da casa do duque em uma resplandecente e
misteriosa estrada que parecia tirado de um conto de fadas.
Wyn puxava-a, cravando os dedos no seu pulso, enquanto
Diantha se esforçava para manter o passo. Não protestou.
Jamais tinha visto nos olhos de Wyn uma expressão tão furiosa
como a que apresentara pouco antes. Tampouco tinha visto um
homem morrer antes.
Seus rápidos passos reverberavam de forma horripilante
na passagem do beco que levava para o estábulo. Essa
vizinhança não se parecia absolutamente à rua próxima as
docas onde a tinha levado Tracy. Era uma zona muito mais
respeitável a julgar pela rápida olhada que tinha dado,
enquanto descia da carruagem de aluguel. Naquele momento,
desconhecia o que iram encontrar no interior da residência do
duque. Desconhecia se encontrariam Wyn vivo ou... ou...
Tropeçou. Wyn a agarrou pelos ombros, endireitou-a e na
fantasmagórica escuridão, seus fôlegos se condensaram ao
encontrarem-se. De algum lugar próximo, chegou-lhes o som
dos cascos dos cavalos e o estalo contínuo das rodas de uma
carruagem.
― Veio a cavalo? Em carruagem?
Ela negou com a cabeça.
― Lorde Eads despachou à carruagem de aluguel.
Wyn a segurou de novo pelo pulso e a instou a seguir
caminhando. A névoa se moveu diante deles, revelando parte
de um edifício de pedra com uma enorme porta de madeira.
Wyn a deteve, abriu a porta, que chiou com o movimento, e
empurrou-a para o interior.
Era um lugar escuro e quente. O aroma dos cavalos e do
feno flutuava no ar. Um aroma singelo, familiar.
Wyn a soltou a fim de fechar a porta e Diantha se deixou
cair contra a parede, tremendo. Os passos de Wyn se
afastaram à medida que entrava na escuridão. Entretanto,
tinha certeza de que não a abandonaria por mais furioso que
estivesse. Estava muito segura. Nesse momento, enquanto
tomava o ar a baforadas para encher seus pulmões e seu corpo
se recuperava do impacto do que tinha presenciado, a ira e o
desconsolo voltaram a embargá-la.
Wyn retornou. O primeiro que ela viu foi o branco de sua
camisa e de sua gravata. Depois, distinguiu-o por inteiro. E se
precaveu de que tinha sangue no rosto. A ira desapareceu.
Estendeu o braço.
― Por que lhe...?
Ele agarrou seu pulso, colocou-a contra a parede e se
apoderou de seus lábios.
Diantha bebeu seu fôlego, alimentou-se de sua ira e
deixou que o alívio levasse a profunda dor que sentia no mais
profundo de si.
Estava cometendo um erro. Amava-o, mas não podia
permitir que lhe fizesse mal de novo. Depois de anos confiando
cegamente em sua mãe, tinha aprendido quando devia
renunciar ao amor a fim de não acabar ferida. Afastou seu
rosto de Wyn, lutando para respirar já que se encontrava
apanhada entre a parede e seu duro corpo.
― Defenda-se ― desafiou-a Wyn, enquanto que lhe
mordiscava o lábio inferior, arrancando-lhe um gemido. ―
Defenda-se do que fez esta noite. Defenda-se do fato de haver
se envolvido de forma voluntária e imprudente em um assunto
que não te concernia.
― Salvamos-lhe a vida ― recordou-lhe. Wyn lhe acariciou
os lábios, mas ela não opôs resistência. Sentia o corpo mais
vivo que nunca pelo desejo. O roce dessas mãos ásperas e
decididas era como um sonho. ― Tinham-lhe posto grilhões!
Wyn lhe acariciou uma bochecha com a mão e enterrou os
dedos no seu cabelo. O movimento a despojou do chapéu, já
que a instou a elevar o queixo. Precaveu-se de que tinha os
pulsos vermelhos. Ofegou ao ver as feridas e ele apanhou seus
lábios de novo. Beijou-a com paixão e ferocidade, sem lhe
permitir que respirasse, e ela se aferrou a seus ombros até que
fraquejaram suas pernas. Somente se afastou para tomar ar.
Enquanto isso, Wyn deixou um rio de beijos em seu queixo,
enquanto lhe acariciava o pescoço com uma mão e abria sua
capa. Diantha tentou afastá-lo com um débil empurrão.
― Wyn, eu...
― Diantha, você é minha ― afirmou contra seu pescoço.
Não houve palavras mais bonitas com que lhe declarasse
seu afeto ou o alívio que sentia. Somente o mesmo afã
possessivo que demonstrou aquela noite na estalagem. Afastou
a mão de seu ombro para lhe cobrir um seio, um gesto que
arrancou a ambos um gemido na escuridão. Em seguida,
introduziu uma coxa entre as suas, e ela permitiu. Seu corpo o
desejava, mas seu coração estava desolado.
― Não. Não posso fazê-lo. Não depois que ontem à noite
esteve com... com uma mulher de má reputação.
Wyn enterrou os dedos no seu cabelo, tirando-lhe as
forquilhas e mantendo-a imobilizada.
― Ontem à noite não estive com mulher alguma, salvo
contigo, em sonhos.
― Não esteve com uma mulher?
― Como poderia estar com outra se somente desejo você?
― Mas esta manhã disse...
― Menti. Menti. ― Recalcou as duas palavras com beijos
que a colaram ainda mais a ele. ― Menti para que me
rechaçasse e o obtive. Mas agora te desejo. ― Deu-lhe um
puxão a uma das mangas de seu vestido. O corpete cedeu,
despindo um seio que ele acariciou com o polegar depois de
introduzi-lo sob o tecido para lhe tocar o mamilo. Diantha
sentiu com as palmas das mãos o gemido prazeroso que
percorreu seu torso. ― E vou fazer-te minha. ― Com um ágil
movimento, elevou-a nos braços. ― Agora mesmo. Em um
estábulo, porque tenho a impressão de que o necessita. ―
Deram três passos, a porta do estábulo se fechou atrás deles e
a apoiou na parede antes sequer de que seus pés tocassem de
novo o chão.
Diantha ofegou em busca de ar.
― Não quero ― protestou. Entretanto, as carícias de Wyn a
faziam gemer de desejo enquanto lhe afastava a jaqueta dos
ombros. Tinha que tocá-lo, embora fosse pela última vez,
decidiu enquanto a ira se misturava com o desejo e o
desespero. ― Não quero. ― estendeu os dedos sobre seu
musculoso torso e se derreteu por completo.
Wyn colou seus quadris aos seus.
― Necessito-te, Diantha. ― Suas mãos subiram por sua
cintura e seguiram até seus seios. ― Desejo-te.
― Suponho que deveria me sentir adulada por que me
considera na mesma categoria que o brandy. ― Deu um puxão
no seu colete enquanto beijava seu queixo e tirava as abas da
camisa de debaixo da calça a fim de tocar sua pele. A fim de
tocar a ardente e musculosa perfeição desse homem. ― Não me
casarei contigo. Se voltar a me pedir isso.
― Dirá que sim. ― Deitou-a no chão, sobre a palha limpa,
e a cobriu com seu corpo.
Diantha arqueou as costas para senti-lo ainda mais.
Sentiu que lhe levantava as saias pelas pernas e depois pelas
coxas.
― Deixa-me louco ― disse ele com voz rouca.
Sob as capas e capas de tecido, segurou-lhe as nádegas.
― Oh, Deus! ― exclamou ela.
Enquanto a acariciava entre as coxas, Wyn tomou um
mamilo entre os lábios. Gemeu enquanto a tocava. Diantha se
entregou por completo. O desejo que a embargava era enorme e
desesperado, e chegou ao êxtase antes que fosse consciente do
que acontecia. Wyn não foi muito delicado. Aparentemente,
gostava de tocá-la assim e se isso o agradava, a ela também.
Porque ansiava agradá-lo. Porque o amava tal como era.
― Mais ― suplicou, sussurrando. ― Mais não... não quero
que me penetre. Não quero... Oh! ― Seu corpo se arqueou sob
suas carícias. Estendeu um braço para apoiar a mão na parede
com os olhos entrecerrados.
Wyn pensou que sua beleza era deliciosa à medida que o
prazer aumentava.
― Não vamos nos casar ― disse ela ― e não quero que me
deixe grávida. Então não... ― O resto da frase se perdeu com
um gemido que expressava sua rendição assim que a penetrou
com um dedo.
― Que não a toque? ― Enlouquecido por seu ardor e sua
beleza, Wyn começou a desabotoar as calças com a outra mão.
― Que não te toque assim? ― Cada vez que movia o dedo com o
que a penetrava, seus seios subiam e baixavam sobre o
corpete, deixando à vista uma tentadora aréola rosada.
Inclinou-se para tomar o mamilo na boca. ― Minha Diantha. ―
Sugou o mamilo, arrancando-lhe um gemido e fazendo com que
seus quadris procurassem sua mão com mais ânsia. Não podia
esperar mais.
Aferrou-se aos quadris e a colocou sob seu corpo, roçando
seu membro, enquanto a beijava no pescoço, dando um festim
com sua sedosa pele e com seus seios. Diantha deu-lhe um
empurrão com uma mão enquanto que com a outra o atingiu
ainda mais. Depois deslizou a mão por seu braço.
― Eu te disse...
― Disse «mais».
Tinha que fazê-la sua. Introduziu as mãos sob suas saias
e beijou seus seios, depois foi descendo por sua cintura,
afastando as capas de seda e renda.
― O que faz?
― Vou fazê-la minha em um estábulo. ― Separou-lhe as
coxas.
Diantha tentou baixar as saias.
― Eu disse que não quero que me faça amor.
Ele segurou seus pulsos.
― Só porque teme que a deixe grávida?
Esses olhos azuis o olhavam totalmente arregalados,
velados pela paixão.
― Sim... sim ― respondeu, ofegando.
― Diga-me a verdade ― instou-a enquanto acariciava seu
sexo.
Diantha fechou os olhos e gemeu, e depois Wyn se dispôs
a fazer o que tinha desejado fazer desde que passou a noite em
um palheiro, fantasiando com ela.
Seu aroma e seu sabor eram doces. Estava
maravilhosamente molhada. Saboreou-a e a acariciou com a
língua. Escutou-a ofegar, mas não lhe impediu de seguir. Ao
contrário, viu-a fechar os punhos sobre a palha. Usou os lábios
e os dentes para torturá-la até que a escutou gritar seu nome.
Entretanto, ansiava mais. Era incapaz de saciar-se. Penetrou-a
com os dedos.
― Oh, já basta! ― exclamou Diantha enquanto arqueava as
costas. Tinha os nódulos brancos pela tensão, os olhos
fechados e a cabeça arremessada para trás. ― Quero que...
que... Ooooh! ― Gritou enquanto seu corpo estremecia ao
compasso das carícias de sua língua. Os gemidos continuaram
e acabou ofegando em busca de ar, até que no final lhe
suplicou entre soluços: ― Necessito-te.
Wyn voltou a colocar-se sobre ela, entre suas coxas.
― Peça-me isso ― Seus olhos azuis se abriram.
― Por favor! ― Diantha arqueou os quadris e o estreitou
com as coxas. ― Se quiser, suplico-lhe isso.
― Uma dama só precisa pedir uma vez. ― Penetrou-a uma
e outra e outra vez e depois se deteve, fundo até o fundo dela.
Diantha gemeu, colocou-lhe as mãos nas costas e ele,
desesperado como estava por encontrar o alívio, fê-la sua sobre
a palha, o colchão sobre o qual lhe oferecia o presente de seu
corpo. Levantou-lhe os quadris para aumentar o prazer que lhe
proporcionava, mas em um dado momento somente pôde
seguir movendo-se por instinto, enterrando nela tudo o que
podia, entre suas deliciosas coxas, nesse corpo que Diantha lhe
oferecia.
― Wyn! ― ouviu-a gritar, e empurrou enquanto ela se
estremecia a seu redor.
Derramou-se nela sem controle e contra o senso comum,
para que ninguém duvidasse jamais de que era sua. Nem ele
nem ela voltariam a duvidar. Nesse momento, resmungou um
juramento, ou talvez fosse uma oração para poder ser
merecedor do coração dessa mulher.
Enquanto tomava uma funda baforada de ar, inclinou a
cabeça para lhe beijar o pescoço, os seios e o oco da garganta.
Diantha se colou a ele e foi incapaz de sair dela. Estava
esgotado, mas se encontrava exatamente onde desejava estar.
Com os olhos fechados, Diantha lhe permitiu que seguisse
acariciando-a.
― Não sabia que pudesse fazer-se assim. Com a boca de
um homem ― comentou entre ofego.
― Esperava que não soubesse, foda-se.
― Um cavalheiro não deve usar palavras desse escalão
diante de uma dama ― murmurou ela. ― Regra número sete.
― Se falas da «boca de um homem» no geral, preocupa-me,
como poderei compreender.
Esses olhos azuis se abriram.
― Nenhum outro homem me tocou como você. Sabe.
― Sei. ― Beijou-a nos lábios com delicadeza, já que os
tinha inchados por seus beijos.
Ela fez uma tentativa de colocar a mão no seu queixo e
depois lhe acariciou o cabelo. Seus dedos roçaram com cuidado
a ferida que tinha na têmpora. Já não lhe doía, somente sentia
o prazer da carícia.
Diantha foi a primeira em afastar-se. Viu-a fechar os olhos
enquanto lhe tirava um cacho úmido do rosto. Entretanto, essa
mulher calada e saciada não era a única faceta de seu caráter.
Já que estava zangada, sabia que a tranquilidade duraria
pouco, e devia levá-la a um lugar onde estivesse a salvo.
Separou-se dela e abotoou as calças enquanto ela cobria
as pernas com as saias e fechava o vestido, ocultando de novo
seus lindos seios. A escuridão era quase completa. A seu redor,
escutava-se a respiração dos cavalos e ao longe, a voz de um
19
sereno que gritava a hora.
Wyn observou Diantha.
― Como obteve que o escocês fizesse o queria?
Viu-a piscar, mas seguiu ocupada tirando-se as fibras de
palha das enrugadas saias.
― Como convenceu a Eads de que a trouxesse a esse
lugar?
Diantha ficou em pé no desnivelado interior da baia e
sacudiu as saias.
― Obrigando.
― Obrigando?
Ela o olhou com os olhos reluzentes e Wyn acrescentou:
― Diantha, obrigado por me salvar a vida. Por preocupar-
se o bastante por minha ébria pele, para arriscar sua vida
apesar de... apesar de que te menti. Outra vez! ― sua voz se
quebrou. ― Obrigado ― instou Wyn, tomando-a pelos ombros.
― Obrigado, maldita seja. Isso é o que queria ouvir?
Diantha escapou de suas mãos e saiu da baia. Seguiu-a,
observando seus movimentos na escuridão. Movimentos tão
elegantes e bonitos que a ira que o embargava desapareceu.
Viu-a inclinar-se para recolher a capa do chão e o contorno de
seu corpo o deixou sem fôlego. Jamais se cansaria de observá-
la.
― Que intenções tinha lorde Eads quando subiu para ver o
duque? ― tremia-lhe a voz, mas Wyn reconheceu sua
determinação, sua coragem.
― Não sei ― respondeu enquanto que lhe roçava um
ombro.
Ela se voltou e ele viu que uma solitária lágrima se
deslizava por uma de suas bochechas.
― Não me toque. Não quero nada disto. ― afastou-se dele e
interpôs a capa que tinha nas mãos entre eles. ― Por que não
me disse simplesmente que não desejava se casar comigo? Por
que teve que cair de novo na bebida? Tanto medo tinha de que
eu não quisesse te liberar da responsabilidade que tinha
contraído? Tanto medo tinha de que ansiasse sua atenção? ― A
dor velava seus olhos. ― Bem, porque quero que saiba que não
me conhece absolutamente. Assim suponho que, a menos que
lhe diga isso claramente, não vai se inteirar. Não te necessito.
O senhor H. está disposto a converter-se em meu marido.
Embora apareça grávida depois deste... deste...
― O nosso amor é real ― interrompeu-a Wyn, que se
aproximou dela de novo.
Diantha sentiu um repentino nó na garganta que lhe
impediu de falar. Wyn era muito alto, a largura de seus ombros
e de seu torso esticava sua camisa, outorgando-lhe um aspecto
de intimidade que não aliviava absolutamente a seriedade de
sua contração. Rodeou-a pela cintura com um braço e depois
lhe colocou uma mão no queixo, obrigando-a a olhá-lo.
― O nosso amor é real.
Estava muito bonito com a fúria relampejando em seus
olhos chapeados enquanto a contemplava como se quisesse
gravar a fogo seu rosto na memória.
― Isto não é real ― sussurrou ela. Obrigou-se a não
abraçá-lo como desejava, deixou os braços caídos a ambos os
lados do corpo. ― Detesto o que estou sentindo agora mesmo. ―
Sentia-se inadequada. Ferida. E o pior era o desejo. Um desejo
enorme e doloroso.
― Diantha, vai se casar comigo. ― Wyn engoliu saliva com
dificuldade. ― Case-se comigo.
Diantha o empurrou, embargada por uma terrível
confusão.
― Esta manhã fingiu que tinha estado com uma prostituta
para que rechaçasse sua proposição e agora insiste em que me
case contigo? ― Escapou de suas mãos. ― Está louco.
Wyn passou uma mão pelo cabelo e esfregou a nuca.
― Sim, tem-me louco. Ontem à noite estive a ponto de
levantar a taça outra vez em um desesperado intento de te
afastar.
― Que esteve a ponto?
― Sabe o que teria acontecido com você se não tivéssemos
dominado os homens do duque? Advertiu-te Eads ou se lançou
de cabeça a me resgatar de novo sem pesar nas
consequências?
― Sempre peso as consequências de meus atos ― soltou-
lhe. ― Sempre. E o fiz para te ajudar!
― Não necessito que me ajude desta forma!
Diantha mal podia respirar.
― Não te embebedou ontem à noite, nem tampouco estava
bêbado esta manhã? Fingiu estar para que eu te rechaçasse?
― Sim.
Embora não tivesse acreditado ser possível, o sofrimento
que Wyn lhe infligia aumentou.
― É um bruto.
― Fiz para protegê-la de Yarmouth, que ameaçou te fazer
dano para vingar-se de mim.
Diantha sentiu que o coração lhe dava um salto.
Wyn seguiu, baixando a voz:
― Sabia que se te informasse de suas ameaças, faria
algum plano desatinado e imprudente para me salvar, algo que
fez apesar de meu erro, porque sua tenacidade raia a
insensatez. Entretanto, meu erro foi ainda mais insensato e em
parte esperava, acredito, que me desmascarasse. Não obstante,
você não tem a culpa de nada e te peço que me desculpe.
Tinha feito tudo para protegê-la? Perguntou-se Diantha.
Wyn tinha se entregado a um vilão para que ela estivesse à
salva? E para o cúmulo ainda lhe pedia perdão?
O coração pulsava a um ritmo frenético e mal era capaz de
confiar em seus pensamentos. Tinha-o obrigado a resgatá-la
uma e outra vez. Wyn jamais tinha-lhe falhado e jamais o faria,
embora no processo acabasse ferido uma e outra vez. Insistira
em casar-se com ela, embora isso somente lhe reportara um
sofrimento maior. Era desobediente, uma tola e uma
desobediente. Tudo o que tinha tratado de fazer para ajudá-lo
tinha acabado vinculando-o ainda mais a ela, embora essa não
fosse a intenção de Wyn.
― Diantha, já acabou tudo e agora deve se casar comigo.
Não suportava lhe fazer isso.
― Mas é que não entende por que não posso fazê-lo? Acaso
está cego?
― Isso parece. ― Inspirou fundo, fazendo que seu peito se
alargasse. ― Nem sequer sei o que estou dizendo. Quando
estou contigo, quando penso em você... me nubla a razão. Pelo
amor de Deus, se acabo de te fazer amor a pouco mais de
duzentos metros da casa onde me mantiveram prisioneiro e em
um estábulo, sem sequer tirar as botas. Quinze anos
aperfeiçoando todos e cada um de meus movimentos para
arrojar tudo pela amurada somente em vê-la. Nem sequer me
reconheço.
― Acha que eu não me arrependo de que as coisas tenham
saído assim? Acha que não me arrependo de haver te pedido
ajuda? ― Abraçou-se a cintura. ― E é pior do que imagina,
porque tudo foi em vão. Minha mãe não está em Calais, a não
ser em Londres. Tracy me levou para vê-la esta noite, mas... já
não me importava. ― A crueldade que tinha cometido sua mãe
já não lhe importava, e tinha isso muito claro. ― Já não queria
vê-la. Não necessitava.
Só necessitava a ele.
― Diantha... ― Wyn se aproximou dela para abraçá-la e a
beijou.
Adorava seus beijos, adorava seus abraços e o adorava.
Amava-o tanto que até lhe doía. Adorava tudo relacionado a ele
salvo o fato de havê-lo obrigado a ser um homem que não era.
Entretanto, ofereceu-lhe os lábios e lhe permitiu que a beijasse
porque essa seria a última vez. O último beijo. Era-lhe
assombroso que tivesse sonhado, embora fosse por um
instante, que sua história pudesse ter outro final. Wyn era seu
herói e sempre seria, mas ela não era a heroína que ele
necessitava.
― Perdoe-me por me haver enfurecido ― sussurrou ele
com voz rouca contra seus lábios. Seus olhos chapeados a
observavam. Tinha o cenho franzido. ― Não me arrependo de
nada. De nada.
A porta do estábulo se abriu com um rangido. Wyn a levou
a ocultar-se nas sombras enquanto que lhe indicava que
guardasse silêncio lhe colocando um dedo sobre os lábios.
Acompanhado pela oscilante luz de um farol, apareceu o
rosto enrugado de um homem que caminhava com uma
evidente claudicação e que levava uma brida no ombro. O
recém-chegado levantou o farol e arqueou as sobrancelhas.
Wyn o saudou com uma reverência.
― Obrigado por nos permitir usar o estábulo, bom homem.
― Levou-se a mão à aba de um imaginário chapéu, agarrou
Diantha pela mão e a instou a sair do estábulo.
Depois deles, abandonado sobre a fragrante palha, ficou
seu coração feito pedaços.
30

― Onde acha que sua família está esta noite?


― Em casa de Emily Vale.
Não disse nada mais, mas Wyn a agarrou pela mão com
força enquanto caminhavam. Sumidos na calma criada pela
névoa, saíram em uma rua e, guiado unicamente pelos sons,
identificou uma carruagem de aluguel. Meteu-a em seu interior
e depois se sentou na boleia junto ao cocheiro. O trajeto foi
longo e lento, e quando Wyn abriu a portinhola e lhe estendeu
uma mão para ajudá-la a descer, saltou com gestos rígidos
diante da casa de lady Emily.
Um criado os acompanhou até uma sala de estar, em que
apareceu a dama.
― Senhorita Lucas. ― Aproximou-se dela com um sorriso
enquanto a luz das velas lhe arrancava reflexos aos aros
metálico de seus óculos e seu cabelo loiro platinado, mas salvo
por esses detalhes, era a personificação da sobriedade em
vestido azul-escuro e o eterno livro que levava em uma mão. ―
Senhor Yale. ― Saudou-o com um gesto de cabeça, mas sem o
menor rastro de prazer.
― Boa noite, lady Cleópatra. ― Wyn lhe fez uma
reverência.
― Nada de lady. Cleópatra somente. Era uma rainha, seu
cretino.
― Como sempre, dobro-me ante a magnitude de sua
sapiência.
Diantha não podia suportar.
― Cleópatra...
Emily lhe tocou o braço.
― Não, senhorita Lucas. Não é necessário que você me
explique por que apareceram em minha casa na metade da
noite com aspecto de que tivessem atravessado meio Londres a
pé. Quero que o senhor Yale tenha essa honra.
― Certamente, que sim ― repôs ele. ― Mas não lhe darei o
gosto. ― Pôs-se a andar para a porta. Uma vez ali, voltou-se,
com um sorriso torcido nos lábios. ― Com isto estamos em paz.
― Por fim. ― O sorriso de lady Emily mal era perceptível. ―
Embora me pergunte por que espera tão pouco de mim depois
de me fazer esperar quase quatro anos para poder lhe devolver
o favor.
― Equivoca-se, milady. ― Olhou para Diantha. Fez uma
reverência. ― Boa noite, senhorita Lucas. ― E partiu.
Diantha cravou o olhar na porta e recordou a história que
contou Emily a respeito de como Wyn a tinha ajudado em uma
situação difícil alguns anos antes, não porque quisesse
conseguir algo, mas sim porque ele era assim.
Entretanto, sabia que havia algo mais. Conhecia a história
da mãe de Wyn, e tinha lido as regras de sua tia-avó.
― Não deve pensar mal dele ― disse em voz baixa. ― Não
queria me devolver em casa em um estado tão lamentável e
tampouco quer que minha família se inteire das confusões nos
quais me coloquei. ― Voltou-se para sua anfitriã. ― Acredito
que deveria escrever uma nota a meu irmão, se for possível.
― De fato, sir Tracy lhe mandou uma mensagem há menos
de um quarto de hora. Estava lhe escrevendo uma resposta
para enviar à casa de lady Savege. ― Emily agarrou o braço de
Diantha. ― Vamos. Será melhor que tome um banho e lhe
busquemos roupa limpa. Enquanto Clarice lhe escova o cabelo,
poderá ler a carta de seu irmão e lhe responder se desejar.
― Peço-lhe desculpas, e agradeço muito sua ajuda. Disse a
Serena que viria aqui esta noite.
― Que conveniente! Comentarei em minha nota que
estamos tão encantadas em nossa mútua companhia que
nenhuma suportava a ideia de abandoná-la até manhã. ―
Conduziu Diantha para a porta. ― Mas, senhorita Lucas,
independente da aventura que viveu esta noite, devo insistir em
um ponto.
― É obvio.
― Se disser uma só palavra sobre a presença desse
vaidoso em minha casa, ver-me-ei obrigada a forçá-la a dormir
na carvoaria.
Diantha foi incapaz de reprimir o sorriso.
― Vaidoso? Usa sempre jaquetas negras e só o vi uma vez
com um colete de outra cor.
― Ora, por Deus, pois vai ter que dormir na carvoaria. ―
Subiram a escada. ― Admito que me sinto um pouco
decepcionada, já que a tinha por uma pessoa sensata. Mas
tenho entendido que algumas damas depositam seu afeto nos
lugares mais surpreendentes.

****

Diantha retornou para casa pela manhã sem o menor


desejo de escutar mais recriminações de seu irmão. A carta que
lhe escreveu a noite anterior estava cheia de recriminações e a
avisava de que iria vê-la cedo. De modo que Diantha solicitou a
companhia de um criado e se dirigiu a pé a casa de Teresa.
― Viu a lorde Eads depois do baile, Te?
― Não. ― Teresa estava bordando um pano de linho com
fio de seda e movimentos precisos. ― Mas quando o fizer, farei
que o seja para que se case comigo.
Diantha duvidava muito de que lorde Eads voltasse a
aparecer na alta sociedade. Somente tinha participado desse
baile por Wyn. Cravou o olhar no dia chuvoso antes de inspirar
fundo e voltar-se para sua amiga.
― Vim, Te, porque tenho que te dizer algo.
Teresa soltou o bordado.
― Soube assim que entrou. Aconteceu algo. ― Trocou de
lugar e se sentou no sofá junto à Diantha.
― Estou apaixonada por um cavalheiro. O senhor Yale.
Talvez o visse no baile, é muito bonito e muito elegante, salvo
quando eu o incito a não sê-lo. Mas mesmo nesses momentos,
desalinhado, enfebrecido, sem barbear e até furioso, é perfeito.
― Furioso? ― Teresa revirou os olhos. ― Sem barbear? ―
Seus preciosos lábios fizeram uma careta assombrada. ―
Diantha!
― Comprometeu-me e acredita que tem que casar-se
comigo. Mas estou arruinando sua vida e não posso aceitar
porque desejo o melhor para ele. Supõe-se que isso é o amor, e
eu desejo amar dessa forma.
― Eu... eu... ― Teresa tomou as mãos de Diantha entre as
suas. ― Sim, claro.
Ficaram sentadas dessa maneira um bom momento,
enquanto Teresa a apoiava em seu ombro para lhe oferecer
consolo. No final, disse:
― Di, poderia me explicar isso de que a comprometeu?
Diantha soltou uma gargalhada, embora se sentisse fatal.
― Foi minha última transgressão. Agora devo deixar de me
comportar de forma imprudente e me converter em uma dama
da qual minha família se sinta orgulhosa.
― Não acha que se orgulhariam se se casasse com um
cavalheiro como o senhor Yale? Sobretudo tendo em conta
que...
― Tendo em conta que lhe entreguei minha virgindade?
Não. Tracy me proibiu de me casar com ele. De todas formas,
tanto faz que esteja arruinada.
― Sempre disse que não se importaria ― comentou Teresa
em voz muito baixa.
― Te, poderia se alegrar por mim, embora seja para fazer
borrão desta nova Diantha?
Teresa suspirou.
― Eu gostava bastante de seu antigo eu. Esta nova
Diantha talvez não seja de meu agrado. ― Deu-lhe um aperto
na mão. ― Mas certamente que te amarei por mais formal e
aborrecida que se torne. ― Acariciou-a no dorso da mão. ― Que
saiba que o senhor Yale se sente muito infeliz por sua negativa
de permitir que faça o que dita a honra. Seguro que irá ver-te.
― Esse é o problema. Que o fará. ― Olhou-se as mãos. ―
Não posso estar em casa quando o fizer.
― Pode ser que vá uma e outra vez até que a veja.
― Nesse caso, tenho que partir de Londres. ― Diantha
ficou em pé inspirada por um novo objetivo que tentava
desterrar a dor de seu coração. ― Riscarei um novo plano.
― Um novo plano? Ai, não, Di...
― É brilhante, Te. ― Deu-lhe um aperto nas mãos a sua
amiga. ― Este plano me levará para muito longe de Londres, e
se o senhor Yale for a casa para tentar me convencer de que me
case com ele, não estarei ali para sucumbir.
― Parece-me um plano muito mau.
Diantha apertou os dentes, obrigou-se a sorrir e se dirigiu
à porta.
― Ajuda-me a fazer a bagagem? Tenho muitas coisas que
preparar. John, o criado, ajudará a encontrar a parada mais
próxima da carruagem do serviço de correios de Sua Majestade
ou onde tomar uma carruagem de correios, não me cabe a
menor dúvida. É um homem muito simpático. E pedirei à
cozinheira que prepare um almoço para comer ao ar livre.
Sempre é muito amável. ― Estendeu uma mão para o trinco. ―
Tenho que escrever uma carta para Serena, a fim de que não se
preocupe comigo. E tenho que...
Teresa ficou de pé de um salto.
― Não pode ir, Diantha!
Voltou-se para sua amiga.
― Tem que me ajudar, Te. ― Tremia-lhe a voz. ― Não
suporto a ideia de voltar a ser uma carga para ele, de que lhe
façam mal por minha culpa. Se ficar, sei que é isso o que
acontecerá. É o que faço sempre.
O lábio inferior de Teresa tremia enquanto a olhava com
expressão persuasiva. Entretanto, assentiu com a cabeça.
Diantha abriu a porta e se deteve.
― E uma coisa mais, Te.
― O que? ― Teresa mal foi capaz de pronunciar a sílaba.
― No final, vou ter que me conformar com o senhor H..
― Ai! ― jogou-se sobre Diantha e a abraçou com força.
31

Corvo:
Quando concluir o julgamento pela suposta infidelidade da
rainha (e se falhar em contrário a proposta da lei parlamentar
como espero que aconteça), Sua Majestade tem a intenção de
partir da Inglaterra. De forma discreta, está procurando alguém
de confiança capaz de protegê-la em caso de que o rei insista em
prejudicá-la de algum jeito. A rainha o tem presente desde que
deslumbrou os ministros em Viena, e aqueles que lhe são mais
leais o recomendaram. O rei descobriu e, já que deseja que siga
a seu serviço e não o abandone em favor da rainha, deseja te
recompensar por sua longa trajetória no Clube. Nosso diretor
recomendou que o nomeie cavalheiro.
Peregrino

****

Yale:
O duque morreu. Morreu em sua cama, asfixiado pelas
mãos da velha criada.
D. E.
32

Enquanto entrava, arrastando os pés com o passo


cansado de um homem muito idoso, o barão Carlyle examinou
o cartão de visita de Wyn.
― A que se deve esta visita, senhor?
Wyn fez uma reverência.
― Lamento que não seja uma visita de prazer, milorde.
Carlyle o olhou com fixidez.
― Escreveu-me para pedir a mão de minha filha. Agora me
lembro. ― Assentiu com a cabeça. ― Excelente propriedade a
sua. Tem ganhos invejáveis. Mas como já lhe respondi, meus
desejos quanto a seus pretendentes não têm a menor
importância para Diantha, para minha consternação, ela fará o
que mais lhe agrade. Temo que não possa ajudá-lo a convencê-
la. Pensa por si mesmo, como todas minhas filhas. ― Meneou a
cabeça com gesto pesaroso.
― Não vim para que me ajude a convencer sua filha de que
me aceite, milorde. ― Estaria encantado de ocupar-se dessa
tarefa sozinho.
Ao seu devido tempo. Diantha o aceitaria com alguns
estímulos que a deixariam sem fôlego e fervorosa. E se Tracy
Lucas o olhasse mal mesmo que fosse uma só vez, Wyn
responderia com um olhar muito eloquente por cima do canhão
de sua pistola. Já estava farto de fazer o que ditavam outros
homens. Seu futuro, e o de Diantha, estava somente em suas
mãos.
O barão meneou a cabeça.
― Não perca o coração por ela, senhor Yale. Embora agora
esteja muito bonita vestida com um vestido bem ornamentado,
minha quarta filha segue sendo uma moça rebelde. A um
cavalheiro educado como você irá melhor uma esposa que
saiba comportar-se como uma dama.
― Agradeço-lhe o conselho, senhor. ― Não podia estar
mais em desacordo. Diantha era para ele e sempre o seria. A
seu lado, tratar de controlá-lo tudo era uma quimera, e isso era
o que queria. Não queria apagar seu fogo, não queria vê-la
deprimida, tal como a deixou na casa de lady Emily. Queria
que se lançasse de cabeça ao perigo, obrigando-o a gritar e a
resgatá-la e a lhe fazer amor tão frequentemente como fosse
possível. Tinha sido um tolo ao afastá-la de seu lado e tinha
piorado as coisas quando, furioso e apavorado, não lhe contou
toda a verdade na noite anterior. Não voltaria a cometer esse
erro. ― Vim falar com você de outro assunto: sua esposa.
Carlyle franziu o cenho.
― Lady Carlyle esteve em Londres e se pôs em contato com
seu enteado. Pediu-lhe dinheiro para financiar um bordel de
altos gabarito.
O barão ficou branco.
― Em Londres?
― Não, na França. Não me agrada pô-lo em dia destes
detalhes, milorde. Mas pelo bem de sua enteada, acredito que
deve sabê-lo.
Carlyle passou uma mão pelo rosto com gesto distraído
antes de aproximar-se do aparador.
20
― Clarete , senhor Yale?
― Não, obrigado. Devo me colocar a caminho. ― Para
encontrar uma dama de olhos azuis e lhe fazer a proposição de
matrimônio mais convincente que um homem já tivesse feito.
Entretanto, assaltava-o uma pequena dúvida. ― Mas primeiro,
milorde, importar-se-ia de falar do senhor Highbottom? Tenho
entendido que pretende a mão da senhorita Lucas.
― Quem? ― Carlyle franziu o cenho.
― O senhor Hinkle Highbottom.
― Hinkle e Highbottom? Os que pretendem a mão de
minha filha?
― São dois?
― Alfred Hinkle e Oswald Highbottom. ― Carlyle se
aproximou de uma mesa lotada de livros e agarrou dois
exemplares muito pesados. ― Duas das mentes arqueológicas
mais claras deste século, embora suponha que os jovens como
você não se interessam por essas coisas.
O coração começou a lhe pulsar deslocado ao escutá-lo.
― Se não se importar, milorde, esse tal senhor
Highbottom...
― O professor Highbottom. Catedrático do Christ Church
College em Oxford durante mais de quarenta anos.
Wyn o olhou sem compreender, muito a seu pesar.
― A senhorita Lucas conhece o professor?
― Desde que era uma menina. Highbottom estava
entregue a seus estudos. Nunca formou uma família própria, é
obvio. Mas se deslumbrou com Diantha quando veio viver em
Glenhaven Hall. ― O indício de um sorriso apareceu em seus
lábios. ― Brincava com ela sobre seus joelhos até que o
reumatismo pôde com ele.
― Nesse caso, o professor Highbottom não tem a mão
prometida de sua filha nem ela tem interesse em casar-se com
ele?
― Como disse, não tenho o menor controle sobre a decisão
de minha filha. ― Carlyle franziu o cenho. ― Mas se se
comprometesse com um homem que tem mais de sessenta
anos, encarregar-me-ia de romper essa aliança sem demora.
Perdoe-me, mas não explica como...
― Milorde! ― um criado apareceu na porta.
― O que acontece, Bernard? Não vê que estou ocupado?
― O criado de lady Savege pediu que lhe desse isto sem
perda de tempo, milorde. ― Cruzou a estadia a toda pressa com
o envelope na mão.
Carlyle despediu o criado antes de abrir a missiva, depois
meteu a mão em um bolso e tirou seus óculos.
― Perdoe-me, senhor Yale, mas se mi... ― Arregalou os
olhos. Lutou um momento com os óculos antes de conseguir
colocá-los novamente.
― Milorde. ― Wyn lhe fez uma reverência, um pouco tonto
e com o urgente desejo de encontrar uma dama de olhos azuis
e beijá-la até que admitisse todas as mentiras que lhe tinha
contado. ― O deixarei com seus assuntos.
― Pelo amor de Deus! ― exclamou Carlyle. ― Veja, senhor?
― disse em voz mais alta enquanto tirava os óculos e os usava
para golpear a carta. ― Está melhor sem a moça. Problemática,
tola... ― calou-se, mas tinha os olhos cheios de lágrimas e
deixou que Wyn lhe tirasse a carta dos dedos. Carlyle levou
uma mão à testa. ― Disse a Tracy e a Serena que aconteceria
isto se a trouxessem para a cidade. Disse-lhes que a deixassem
em Devon, onde todo mundo a conhece e não pode meter-se em
problemas graves. Agora... ― Meneou a cabeça e deixou cair os
ombros. ― Menina tola. Acontecerá algo mau na estrada. E
acabará como... como sua mãe.
Wyn pôs-se a andar para a porta.
― Não enquanto eu viva.
33

― Senhorita Finch-Freeworth, não me cabe a menor


dúvida de que você conhece o propósito de minha visita.
A jovem sentada frente a ele piscou de forma muito
expressiva. Seus olhos esverdeados se desviaram brevemente
para a donzela, sentada no outro extremo da sala de estar.
Depois, negou com a cabeça.
Wyn baixou a voz para lhe dizer:
― Deve me dizer aonde foi a senhorita Lucas desta vez?
De novo, obteve uma silenciosa negativa por resposta.
Wyn tratou de não apertar os dentes para seguir falando.
― Não sabe ou não me pensa me dizer.
A jovem cravou o olhar em seu regaço.
― Sei que você era sua confidente antes de que
embarcasse em sua última viagem ― comentou ele. ― Sei tudo
sobre sua última viagem, de fato. Tudo.
A senhorita Finch-Freeworth levantou a cabeça, com os
olhos totalmente arregalados.
― Ela não me disse. Não... não me di...
― Gosta de ocultar a verdade, mas você não tem por que
imitar esse vício tão pernicioso, senhorita Finch-Freeworth.
Esteve com ela hoje antes de que abandonasse Savege House?
― Sim ― respondeu ela, hesitante. ― E sua donzela
também.
― Diga-me aonde foi, rogo-te.
― Não posso ― replicou a jovem depois de soltar o ar com
brutalidade. ― Prometi que guardaria o segredo sob a ameaça
de que se não fizesse acabaria com nossa amizade. E desejo tê-
la como minha melhor amiga durante o resto de minha vida.
― Senhorita, desculpe minha franqueza, mas se não me
pôr a par de seu paradeiro, talvez dentro de pouco tempo fique
sem sua melhor amiga. As estradas são perigosas para uma
jovem de linhagem que viaja sozinha, e me seria impossível
inspecionar todas as carruagens do serviço de correios de Sua
Majestade que saem hoje de Londres a fim de lhe evitar o
perigo, não acha? Deve me dizer aonde se dirige.
― Senhor Yale, se a conhecesse tão bem como afirma
conhecê-la, saberia que Diantha faz amigos seja lá aonde for.
Encontrará quem a ajude durante a viagem. Não me cabe
dúvida de que já o fez.
«Viagem? Pelo amor de Deus!», pensou Wyn, que se
inclinou para diante e aferrou as mãos aos joelhos para evitar
dessa maneira sacudir à moça a fim de fazê-la entrar em razão.
― Diga-me somente seu destino, então.
― Não posso. Mas sim posso lhe dizer que não
empreendeu a viagem sozinha.
― Outra de suas leais donzelas? ― resmungou ele.
A jovem teve o recato de ruborizar-se.
― A donzela de Diantha chegou hoje procedente do campo.
A verdade é que se trata de uma pessoa peculiar. Entretanto,
começou a trabalhar imediatamente, protestando e
resmungando porque as coisas tinham acabado como tinham
acabado porque «esse homem» estava há dias sem entrar em
contato com ela. Suponho que se referia a lorde Carlyle. Em
todo caso, a mulher sabia muito bem o que convinha a
Diantha, já que lhe preparou a bagagem com a roupa de
viagem e todo o necessário. Então não tem por que preocupar-
se. Acredito que a senhora Polley cuidará perfeitamente de
Diantha.
Pela primeira vez desde uma hora atrás, Wyn foi capaz de
respirar com liberdade. Enquanto a boa mulher permanecesse
acordada, Diantha estaria a salvo. Não obstante, se a senhora
Polley dormisse...
― Senhorita Finch-Freeworth, não sei o que mais lhe dizer
para convencê-la de que compartilhe comigo o plano da
senhorita Lucas. Se algo chegar a lhe acontecer, não poderia
me perdoar por isso.
A jovem se removeu, incômoda.
― Disse-me que você se sentia responsável por ela, embora
não tinha por que. Por isso partiu. Não quer lhe arruinar a
vida.
«Não, por Deus!», exclamou para si mesmo. Havia errado
com ela mil vezes, cometendo erro detrás de erro. Mas a
encontraria e jamais cometeria outro erro enquanto vivesse,
prometeu-se. Seria perfeito de novo, mas somente para ela.
Todos os dias. Todos os minutos de cada dia.
― A senhorita Lucas é uma pessoa admirável, pela
amabilidade que demonstra para com os outros com seus
arrojados planos... ― inclinou-se para diante. ― Por seu
empenho em casar-se com o senhor H....
A senhorita Finch-Freeworth o olhou boquiaberta.
― Falou-lhe do senhor H.?
― Sim. Mas até hoje desconhecia um detalhe crucial de
sua existência que o converte, quando menos, em um marido
inapropriado para ela.
A jovem inspirou fundo várias vezes. Era uma moça
bonita, cuja beleza intensificava o brilho inteligente de seus
olhos. Uma inteligência que Wyn dependia nesse momento.
Viu-a assentir com a cabeça.
― Sim ― disse a jovem.
O coração começou a lhe pulsar com força.
― Sim?
― Sim, o senhor H. é imaginário. ― Assentiu de novo,
como se acabasse de liberar uma luta interna. ― Sua mãe...
Sabe você algo da mãe de Diantha?
― Um pouco.
― Lady Carlyle foi muito cruel com Diantha. Dizia-lhe que
nunca atrairia um marido por seu caráter extrovertido e sua
natureza rebelde. Convenceu minha amiga de que seu caráter
era inadequado e de que, portanto, jamais se casaria. Até tal
ponto estava convencida disso que quando falou com a
senhorita Yarley, ela assegurou-lhe na Academia Bailey para
Senhoritas que algum dia se casaria com um bom homem,
Diantha riu dela em seu rosto. Riu em seu rosto! E inventou o
senhor H..
― Ela o inventou.
― Senhor Yale, você me olha estranhamente. Mas lhe
asseguro que o senhor H. é muito melhor que a maioria dos
homens reais. Possuí maneiras estranhas e veste-se muito
bem, embora não use o último grito da moda. Seus ganhos são
substanciais, adequados para manter uma esposa e vários
filhos. Sua casa é espaçosa e bem mobiliada, mas não
ostentosa. Conduz uma carruagem puxada por dois cavalos
bem treinados, caça de vez em quando e gosta de ler em voz
alta pelas noites junto ao fogo. Assim é o marido ideal.
Wyn sentia uma terrível opressão no peito. Deveria estar
convencendo-a de que lhe contasse o plano de Diantha, mas
não pôde resistir.
― Como... como a trata?
― É muito cavalheiresco e educado. Mas, a verdade,
sempre me pareceu um pouco aborrecido. E acredito que
Diantha opina o mesmo. Além disso, não é bonito.
Wyn arqueou as sobrancelhas.
A senhorita Finch-Freeworth assentiu com a cabeça.
― Qualquer um pensaria que se uma mulher inventasse
um pretendente, imaginaria um muito bonito, verdade? O
senhor H. é alto e tem todo o cabelo, mas... bem... tem um
problema com sinais.
― Tem sinais?
― Muitos. Enormes e verrugosos. No pescoço. Alguns
também no rosto. ― Apontou um lugar próximo aos lábios com
um dedo, e depois tocou a testa e uma lateral do nariz. ―
Entende-me? ― acrescentou, em voz baixa.
Wyn só atinou a assentir com a cabeça, já que tinha um
nó na garganta.
― Foi sua mãe quem... ― disse a senhorita Finch-
Freeworth.
Ele a instou de que seguisse falando com um gesto da
mão.
A jovem prosseguiu com seu relato, mas não elevou a
vista.
― Sua mãe não só lhe disse que seu caráter era
inadequado. ― Fez uma pausa. ― Dizia-lhe, muito
frequentemente, que se fosse bonita, poderia manipular um
homem até conseguir que se casasse com ela apesar a suas
terríveis maneiras. E...
― E?
― Lady Carlyle lhe aplicava todos os dias um creme,
embora ela aceitasse a contragosto. Dizia que talvez a ajudasse
a melhorar sua aparência física e assim conseguiria apanhar a
um homem com quem casar-se antes de que a conhecesse a
fundo e saísse correndo. ― Apertou os dentes. ― Há dois anos,
o pote de creme se acabou e Diantha perguntou à ama de
chaves se sabia onde podia comprar outro. E sabe o que
aconteceu? Descobriu que era a própria lady Carlyle quem
elaborava o creme. Era gordura de porco misturado com
perfume. ― Seus olhos se encheram de lágrimas. ― Era
gordura, senhor Yale! Sua própria mãe lhe fez algo assim
porque... porque...
Wyn tentou respirar com normalidade.
― Porque não podia controlá-la.
A senhorita Finch-Freeworth entrelaçou as mãos sobre o
regaço.
― Diantha não é tola, senhor Yale.
― Não.
― O senhor H. é um nome chave.
― Entendo.
― Fruto da convicção de que nunca seria bastante boa
para que um homem quisesse casar-se com ela.
― Senhorita Finch-Freeworth, eu não desejo controlá-la. ―
«Jamais tentarei fazê-lo de novo», prometeu-se. ― Somente
quero o melhor para ela. Quero tudo para ela.
As pestanas ruivas da senhorita Finch-Freeworth se
agitaram.
― Ah, sim?
― Se a senhorita Lucas deseja prosseguir sua viagem,
prometo não detê-la. Mas deve ao menos lhe conceder a
oportunidade de que possa escolher algo diferente.
A jovem o olhou com gesto reflexivo. E, depois, assentiu
com a cabeça.
34

Peregrino:
Temo que esteja ocupado com outro assunto neste preciso
momento e, por desgraça, devo rechaçar seu convite para jantar.
Entretanto, devido a este urgente assunto, vejo-me obrigado a
responder sem demora a essência de sua mensagem. Em
resumidas contas, embora agradeça a magnanimidade de Sua
Majestade, não a quero. Se o diretor e ele de verdade querem me
agradecer, rogo-lhes uma só coisa: clemência pelo único ato de
vilania que cometerei em breve.
Ao serviço do rei e do reino,
Corvo

****

Corvo:
Sua Majestade promete clemência. O diretor a garante.
Peregrino
P. S.: Tente que não o matem.
35

A carruagem dos correios de Sua Majestade com destino a


Cardiff e que seguia a rota de Swindon estava mais lotada que
as carruagens que Diantha tinha tomado para ir de
Manchester a Shrewsbury e balançava muito mais. Entretanto,
o cocheiro, um londrino que resmungava frequentemente pelo
tráfico e a chuva, era muito simpático.
Naturalmente, à senhora Polley essas coisas não
importavam porque estava dormindo. O casal sentado junto à
Diantha a entreteve com as histórias das viagens que tinham
realizado enquanto degustavam umas tortilhas que tinham
uma pinta estupenda, embora essas não compartilhavam, por
desgraça.
O estômago de Diantha rugia. Estava a ponto de anoitecer
e tinha passado muito tempo desde que degustou o almoço que
a cozinheira tinha-lhe feito a toda pressa para que levasse. Os
criados de Serena não estavam contentes com sua saída.
Entretanto, tinham-lhe prometido guardar silêncio até que
voltasse para casa o lacaio que iria acompanhá-la e a senhora
Polley até a casa do correios. Depois, se lhes perguntassem,
contariam tudo a seu senhor e confrontariam as
consequências.
Cravou a vista no guichê molhado pela chuva e a tristeza
lhe provocou um nó na garganta, obtendo que esquecesse a
fome. Apesar a sua promessa de não ocasionar problemas aos
outros, tinha posto em uma situação comprometedora os
servos de Serena e Alex. A senhora Polley era um encanto de
pessoa, e insistia em repetir que não necessitava do trabalho
na Abadia, embora Diantha suspeitava que era mentira.
Limpou uma lágrima da bochecha. Nesse momento, tinha
uma meta, um novo plano com que poderia ajudar aos outros
sem exigir sacrifícios de ninguém, e isso a manteria afastada de
sua família durante um tempo. As histórias que lhe tinha
contado Owen sobre os espantosos alojamentos onde dormiam
as crianças nas minas de Monmouthshire a tinham torturado
por semanas. Com o dinheiro de sua mesada mensal, que devia
ser uma fortuna para esses meninos, poderia ajudar a alguns,
sobretudo os doentes, como tinha sido o caso da irmã de Owen.
Quando gastasse tudo, voltaria para Glenhaven Hall. Afinal,
seu padrasto tinha tolerado a sua mãe durante anos. Também
toleraria uma filha indecente se lhe prometesse ser boa e
manter-se-ia quieta.
Outra lágrima escorregou por sua bochecha, e nesse
momento soube que estava enganando a si mesma. Entretanto,
não via outra solução.
A carruagem se sacudiu de forma muito violenta e
Diantha foi jogada sobre o ombro da passageira que viajava a
seu lado.
― Valha-me Deus! ― exclamou a mulher, aferrando-se a
sua bolsa de viagem.
― Que demônios aconteceu? ― exigiu saber seu marido.
A senhora Polley despertou de repente e o resto dos
passageiros se endireitou em seus assentos. A carruagem se
sacolejou de novo e se escutou um disparo. A carruagem se
inclinou para um lado, lançando uns sobre os outros de novo.
A mulher chiou:
― São salteadores de estradas!
Diantha colou o rosto ao guichê. Através da chuva que
obscurecia tudo, somente vislumbrou as silhuetas das árvores,
mas a carruagem estava diminuindo a velocidade.
― Vão roubar-nos! ― exclamou a mulher a suas costas.
― Mildred, mantenha a cabeça fria ou acabarão matando a
todos.
Com o coração na garganta, Diantha deu uns tapinhas na
mão de Mildred e devolveu o olhar preocupado da senhora
Polley enquanto meneava a cabeça. Escutaram vozes
amortecidas procedentes da parte superior da carruagem e
outras que procediam da parte dianteira. Mildred tomou ar,
fazendo que seu peito se alargasse, disposta a gritar de novo.
― Não se deixe levar pelo pânico! ― aconselhou-lhe
Diantha com a voz mais calma de que foi capaz. ― Quererão
nosso dinheiro e outros objetos de valor. Se dermos depressa,
partirão. ― Desconhecia de onde procediam suas palavras, mas
outros passageiros pareceram acalmar-se.
Mildred aferrou a mão a seu marido e este lhe disse:
― Querida, faça o que disse a jovem.
O homem sentado junto à senhora Polley assentiu com a
cabeça. Esta última também relaxou e deixou de segurar a
bolsa de viagem com tanta força como fizera até então.
Diantha chegou a uma firme conclusão. Isso era o que
fazia bem. Consolar às pessoas. Embora fora uma dama
desastrosa, uma decepção como filha e uma irmã problemática,
era capaz de consolar às pessoas que necessitavam de consolo,
ao menos era alguma coisa. Talvez conseguisse encher o vazio
que sentia no coração, embora fosse em parte.
O problema do dito plano, é obvio, era que seu coração
não estava vazio. Encontrava-se muito cheio, embora afastado
do dono de seu afeto com quem compartilharia essa plenitude.
A carruagem se deteve com uma última sacudida. Diantha
sentiu um nó no estômago.
― Recordem, não se deixem levar pelo pânico ― disse em
voz baixa.
A portinhola da carruagem se abriu e apareceu um
homem que os apontava com uma pistola.
Mildred chiou. Seu marido soltou uma espécie de gemido.
A senhora Polley franziu o cenho e cruzou os braços enquanto
soprava.
O salteador de estradas lhes fez uma elegante reverência.
A chuva repicava sobre a capa de seu capote negro e de seu
chapéu da mesma cor. Seus olhos chapeados reluziam.
― Damas e cavalheiros, não estou aqui em busca de suas
joias nem de seu dinheiro ― anunciou com a voz mais rouca e
maravilhosa que Diantha tinha escutado na vida. Em seguida,
cravou o olhar nela. ― Vim por esta jovem.
Diantha sentiu que sua boca, seu coração e sua alma
sorriam ao mesmo tempo. Wyn lhe estendeu uma mão e ela fez
gesto de aceitá-la.
Mildred a agarrou pelo braço.
― Não pode ir com ele! Vai abusar de você!
A senhora Polley atirou um golpe em Mildred com a bolsa
de viagem.
― Deixe que o homem abuse de quem quiser.
Diantha escapou da mão da mulher, aceitou a mão de
Wyn e ao roçá-lo seu corpo fez algo mais que sorrir: riu de
alegria. Wyn a ajudou a descer da carruagem e a afastou do
veículo. A chuva seguia caindo a seu redor enquanto Diantha
percorria com o olhar a firme linha de seu queixo e a preciosa
curva de seus lábios antes de cravar em seus olhos. O que viu
neles converteu suas pernas em gelatina.
― Aterrorizou a toda essa gente ― conseguiu murmurar. ―
Uma mulher desmaiou.
― O que, ora. ― Sua voz era tenra. ― A vi abrir um olho
com dissimulação.
― Suponho que algumas mulheres sentem debilidade
pelos vilões. ― Elevou o queixo. ― Eu, é obvio, prefiro os heróis
cavalheirescos.
― Isso já havia dito, sim.
― Muito bem. Vou lhe perguntar por que veio quando
deixei bem claro que não queria que o fizesse?
― Vim para te dizer que decidi mudar meu sobrenome
para Highbottom. ― Esboçou um sorriso torcido. ― Hinkle
Highbottom. O que acha?
Diantha conteve o fôlego. Tinha-a pegado. Tinha-a
resgatado. E estava tremendo de forma incontrolável.
― Sempre... sempre me pareceu ele, sim.
Wyn inclinou a cabeça e a olhou com uma expressão
maravilhosa.
― Por que o inventou?
― Porque acreditava que nenhum outro homem me queria.
Sob o atento olhar dos passageiros, Wyn a aproximou dele
e a beijou. Primeiro com ternura e depois com paixão, e
Diantha se agarrou a ele para desfrutar de seu abraço.
Wyn se afastou dela.
― Eu te amo. Além disso, penso te fazer minha sem mais
demora. Desta vez não vou permitir que faça as coisas a seu
modo e...
― Antes tampouco me permitiu isso. Levou-me a seu
esconderijo e me reteve ali contra minha vontade.
Alguém ofegou no interior da carruagem.
― Certo ― admitiu ele. ― Mas desta vez, bruxa, fará o que
eu te diga. Sem truques. Nem de minha parte nem da tua.
Diantha sorriu e Wyn lhe olhou as bochechas. Primeiro
uma e depois a outra. Entretanto, ela precisava deixar as
coisas claras.
― Enfim, que saiba que não estava fugindo. Ia para
Monmouthshire para cuidar das crianças que trabalham nas
minas.
― Uma missão elogiável, mas não será hoje. Hoje poremos
rumo ao Norte, para a fronteira.
― Ao norte? A Escócia!?
Ele assentiu com a cabeça e seu sorriso fez que o coração
de Diantha desse um salto.
Entretanto, acabou franzindo o cenho.
― Não chegaremos em um dia.
― Faremos paradas pela estrada.
― Minha família está a par deste plano? Porque é um
plano, verdade? Ou é uma solução definitiva que tomou depois
que consegui te ludibriar?
― Não estão. Sim, que é um plano. E não, não é uma
solução definitiva. Embora isso deveria ser mais que evidente
depois do número de vezes que solicitei sua mão em
matrimônio.
― Minha família não sabe?
― Vou casar-me contigo, Diantha Lucas, aprovem os
outros ou não. Do outro lado da fronteira, somente necessito o
beneplácito de um ferreiro e de sua bigorna. E, é obvio, seu
consentimento. ― Acariciou-a no queixo enquanto percorria
seu rosto com o olhar. ― Dar-me-á isso?
Uma felicidade indescritível se apoderou dela.
― Sim, sim, sim! ― Colocou-lhe uma mão no peito e os
rápidos batimentos de seu coração aceleraram o seu. ― E
depois, o que?
― Depois a levarei a Monmouthshire para salvar meninos
se isso for o que deseja.
Diantha era incapaz de falar, somente atinou a olhar esses
preciosos olhos enquanto tentava convencer-se de que tudo era
real.
Entretanto, havia algo que certamente era. Olhou de
esguelha os passageiros da carruagem de correios e ao cocheiro
sentado na boleia, que estava indignadíssimo por ter detido o
veículo com uma pistola. O lacaio que o ajudava estava
contando notas promissórias.
― Não vai se colocar em uma confusão terrível por isso?
― Tenho amigos nas altas esferas. Nas mais altas. E tenho
pensado em lhe contar tudo sobre eles assim que consigamos
ficar a sós.
― Tudo?
― Até o mais sórdido detalhe.
― Sórdido? De verdade?
― Bom, nem tanto. ― Sorriu. ― Mas sei que de vez em
quando você gosta de dramas e queria que este dia fosse muito
especial para você.
― Wyn ― sussurrou ela, ― tenho que te perguntar uma
coisa.
― O que queira, bruxa.
― Por que deixou de beber depois de Knighton? Não foi
precisamente para não me tocar, porque o fez mesmo depois.
― Deixei de beber porque não queria passar outro
momento em sua companhia sem ser plenamente consciente
de sua pessoa e aos detalhes. Queria despertar do pesadelo e te
encontrar a meu lado. Desejava-te e queria me converter em
um homem merecedor de seu amor.
Diantha ficou sem fôlego.
― Mas eu pensava que era.
― E essa é uma das muitas razões... ― Deixou a frase no
ar e seus olhos adquiriram um brilho especialmente prateado,
como a água de um rio sob o sol. ― Diantha, estou apaixonado
por você. O que sinto transcende a razão. Transcende minha
experiência.
― Ooooh!
― Já estava apaixonado por você na Abadia. Sabia desde
muito antes. E meu amor por você aumentou ontem pela
manhã quando me rechaçou porque me acreditou indigno até
para mim mesmo. Deveria haver-lhe dito antes. Deveria haver-
lhe dito imediatamente. Amo-te.
― Embora o deixe louco?
― Porque me deixa louco.
Diantha era incapaz de falar. Era incapaz de controlar o
tremor de seus lábios.
Ele a abraçou pela cintura, colou-a a seu corpo e lhe
acariciou uma bochecha.
― E você me ama.
Diantha exalou um suspiro e Wyn desejou escutá-la
suspirar assim, entre seus braços, durante o resto de sua vida.
― Suponho que devo admiti-lo ― replicou ela.
― Quando sentir vontade.
― E se não gostar até que tenhamos trinta anos de
casados? ― Suas covinhas apareceram de novo. ― Poderá
esperar até então?
― Não terei que fazê-lo. ― Estreitou-a com mais força entre
seus braços. ― Negar-me-ei a me casar contigo até que me
satisfaça a esse respeito.
― Uma decisão muito pouco cavalheiresca de sua parte.
― Por favor, recorde que agora mesmo interpreto o papel
de vilão. ― Fez um gesto para a carruagem.
― Ah, sim. ― Diantha revirou os olhos e suspirou de novo,
fazendo um alarde de fingida reticência. ― Suponho que eu
também te amo, depois de tudo.
― Supõe?
― Suponho. ― Suas bochechas estavam ruborizadas e
tinha inclinado a cabeça enquanto brincava com um botão de
sua jaqueta. ― Em realidade, suponho que te amo desde que
me convidou a dançar no terraço. Suponho que sempre sonhei
que você me amava, mas nunca pensei que o amor fosse real
até que compreendi que não suportava a ideia de passar um só
dia sem você. Suponho que te amo mais do que jamais
acreditei que se podia amar a outra pessoa e que o amor que
tenho dentro de mim é tão grande que transborda e borbulha e
me faz desejar compartilhá-lo com todo mundo, e é por isso
que me dirigia a Monmouthshire, porque seria impossível
conter esse amor e você o tinha rechaçado.
― Diantha? ― sussurrou ele com uma sugestão em sua
voz que lhe derreteu o coração. Quando o olhou, viu-o tão
bonito como sempre, mas com os olhos cheios de lágrimas. ―
Não a mereço.
― Bem, nisso se equivoca. Porque tenho certeza do
contrário. Sou muito problemática, sabe?
― Isso me disseram.
― E às vezes sou um pouco rebelde.
― Às vezes?
― E de vez em quando embarco em algum plano
desatinado e imprudente.
― Incrível.
Diantha franziu o cenho.
― Não pode dizê-lo a sério.
― Seu desatinado plano nos uniu.
― O outro era melhor.
Wyn esboçou um sorriso torcido.
― Outro, a que se refere?
― Tinha pensado em ir a Monmouthshire porque era o
lugar mais próximo da Abadia que me ocorreu. Pensei que
talvez pudesse te visitar e... bem, esmurrar sua porta até que
me permitisse entrar.
― Sabe que teria permitido isso sem duvidar.
― O único que sei é que os dias que passei ali foram os
mais felizes de minha vida.
― Felizes? Somente tinha uma criada resmungona, um
menu limitado e um doente irascível que atender.
― Tinha a você. Para mim somente. ― Introduziu os braços
sob seu capote e o abraçou pela cintura enquanto colava o
rosto a seu torso. ― Era como um sonho, salvo a parte do poço
pestilento. ― Não podia deixar de sorrir. ― De verdade vai
sequestrar-me agora e me levar ao outro lado da fronteira para
se casar comigo?
― Sim.
― Talvez pudesse abusar de mim durante a viagem e
assim já não serei adequada para nenhum outro homem.
Várias vezes, se for possível. Acha bom?
― Sim. Mas tecnicamente já nos ocupamos disso.
Entretanto, parece-me perfeito.
― Embora proteste como deve fazer uma moça em apuros?
― Embora proteste, se o desejar.
― É um vilão. ― Ficou nas pontas dos pés e o beijou nessa
deliciosa boca. E, como acontecia sempre que o fazia, devolveu-
lhe o beijo. ― Meu vilão ― acrescentou em voz baixa.
Epílogo

A luz do sol pintava a estrada que transcorria em paralelo


ao canal de irrigação e as colinas que se elevavam a ambos os
lados com seus gloriosos tons dourados e verdes. As ovelhas
pastavam nas ladeiras e a brisa soprava com suavidade pelo
vale. Um cão correu para eles, deixou um pau junto à água, e
Diantha se soltou da mão de Wyn e se aproximou dele.
― Ramsés, que tolo é. Deveria trazer-me a haste aos meus
pés. ― inclinou-se para recolher o pau, e a elegância de seus
movimentos excitou Wyn como sempre com todo que se
relacionava a ela.
Em uma ocasião, sonhou tomando-a na erva e lhe fazendo
amor, sem mais companhia para seu prazer que o céu
espaçoso e os gorjeios dos pássaros. Os criados tinham o dia
livre e Owen tinha ido ao povoado para praticar seu novo ofício
na ferraria.
Wyn observou sua esposa e o desejo aumentou. A ideia de
fazer realidade seu sonho era muito prometedor.
Entretanto, antes tinha que encarregar-se de um assunto.
Tirou a carta que tinha no bolso e abriu o selo.
****

Corvo:
A batalha real chegou a uma conclusão antecipada e recebi
uma carta do capitão da corte da rainha em que me informa que
Sua Majestade a Rainha deseja que vá imediatamente ficar a
seu lado. Se se negar, Sua Majestade o Rei promete uma
baronia. O diretor espera sua resposta.
Peregrino

P. S.: Pardal me pede que te transmita seu afeto, mas que


fique entre nós: acredito que está furiosa pelo fato de não ter
podido planejar e organizar suas bodas. Cuidado com a sereia
sentimental que conta com a inteligência de um homem: nunca é
de tudo sincera.

****

Diantha tirou-lhe a carta das mãos.


― De lorde Gray? ― Leu-a enquanto seus cachos lhe
roçavam os pulsos e lhe ocultavam os olhos.
Com ternura, Wyn os afastou enquanto tentava agarrar o
papel sem que se desse conta. Ela se afastou para evitar que o
tirasse e seguiu lendo enquanto andava pela estrada. Deteve-se
de repente e se voltou para ele com os olhos arregalados.
― Uma baronia! Não tinha me comentado isso.
― Não era certeza até hoje. ― Agarrou o pau e o atirou, de
modo que Ramsés saiu correndo atrás dele.
― E também a rainha! Que emocionante! ― Levantou a
vista quando ele se aproximou. ― O que quer fazer? A corte da
rainha é uma grande responsabilidade ou um título nobiliário e
o prestígio?
Wyn a agarrou pela cintura e a colou a seu corpo, tirando-
lhe o papel das mãos.
― Só tenho um desejo, bruxa.
Os olhos de Diantha brilhavam.
― E qual é?
Soltou a carta, que voou guiada pela brisa e acabou na
água do canal de irrigação, afastando-se com a corrente.
Abraçou-a com mais força.
― Este. ― Beijou-a na boca e bebeu da embriagadora
beleza que era seu sabor, seu aroma e seu desejo por ele.
Quando se afastou, Diantha tinha as bochechas vermelhas e os
lábios rosados.
― Tenho um plano ― murmurou ela enquanto jogava os
braços no seu pescoço e o olhava com as covinhas bem à vista.
Voltou a beijá-la nos lábios e sentiu seus seios contra o
torso enquanto seus quadris e suas coxas o acolhiam, de modo
que calculou com celeridade a distância que os separava do
chão.
― Sério?
― Conto-te: rechaças ambas as coisas e ficamos aqui o
resto de nossa vida, como os humildes senhores Yale, com um
cão de nome renomado em honra a um faraó. E com qualquer
pessoa que possa chegar depois, é obvio.
Voltou a beijá-la, porque nunca se cansaria de beijá-la.
― Um plano excelente.
― De verdade? ― Seus lábios esboçaram um sorriso
enquanto ele a beijava.
― Sim. ― Abriu as mãos em suas costas. ― Encaixa-se
com meus desejos à perfeição. Sobre tudo agora mesmo.
― Por que agora mesmo?
― Porque desta forma resolvemos um assunto que para
mim não tem a menor importância e assim podemos nos
concentrar em outros misteres. Veja, eu também tenho um
plano. ― Agarrou-a pelo traseiro e a colou a ele.
― Eu gosto de seu plano. ― Diantha lhe introduziu as
mãos por debaixo do colete. ― Mas desconhecia que tivesse o
costume de fazer planos.
― Pois sim. ― Colou os lábios à curva de seu ombro. ―
Muitos planos. ― instou-a a lhe rodear o quadril com uma
perna enquanto a brisa lhe agitava as saias.
― Mostre-me seus planos, senhor Yale. ― colou-se mais a
ele, e seus olhos eram um milagre de desejo e de amor. ― E eu
lhe mostrarei os meus.
Nota da autora
Enquanto me documentava para este livro, entrei nas
mentes e nos corações das pessoas que padeciam, ou tinham
padecido, com a dependência do álcool; além de entrar em
minhas próprias experiências e lembranças, como me acontece
em todos meus livros. Na atualidade, há um sem-fim de teorias
sobre o alcoolismo, assim como uma infinidade de tratamentos
disponíveis. Entretanto, há um fato que se mantém inalterável:
a desintoxicação pode ser mortal. Há uma multidão de fatores
que contribui para a gravidade dos sintomas da síndrome de
abstinência, e ditos sintomas não são previsíveis. O láudano
21
(um opiáceo) que Wyn tomou baixou sua tensão arterial e
acaba lhe salvando a vida. Não obstante, a síndrome de
abstinência que Wyn sofre é muito leve em comparação com
outros. A desintoxicação alcoólica sempre deve realizar-se sob a
supervisão de um médico.
Pela ajuda prestada na hora de me documentar no
alcoolismo e sua desintoxicação, agradeço a Marcia
Abercrombie, a Sarah Avery, a Laureie LaBean, a Mary Brophy
Marcus e ao doutor Ashwan Patkar do programa de vícios do
Duke University Medical Center, que nos ofereceu seu tempo e
seus conselhos de forma muito generosa. Também agradeço a
todas as pessoas com as quais falei e que preferem permanecer
no anonimato.
Também quero lhe agradecer ao Mandakini Dubey por
haver me ajudado a traduzir a um hindi reconhecível a ameaça
que Wyn faz ao Duncan (que Diantha adivinhou ao pensar que
se tratava de um «Te matarei»). (...)
Uma última nota literária: a febril referência de Wyn ao
purgatório, ao paraíso e a Beatriz é da divina comédia, de
Dante Alighieri. O poema de amor do poeta florentino da Idade
Média sobre a inalcançável Beatrice ficou imortalizado em seu
Purgatório, Paraíso e em outros poemas.
Notas
[←1]
-Nêmisis -Segundo a Mitologia Grega, deusa da vingança e da justiça
equitativa. Quem impõe ou aplica retaliações, penas iguais àquelas recebidas
[←2]
Chorlito é um pássaro pequeno e multicolorido.
[←3]
Pânfila - Etimologia (origem da palavra pânfilo). Relaciona-se com o do latim
Pamphilus , significa ingenua, que se deixa enganar facilmente, que tarda em
entender as coisas,
[←4]
Tirante - Cada uma das correias com que se atrelam os animais a uma
carruagem
[←5]
Eu vou te matar.
[←6]
Polia - Roda que gira em torno de um eixo e que tem na periferia uma ranhura,
dentro da qual trabalha uma correia de transmissão de movimento
[←7]
Vestusos - Que provém de um tempo antigo; remoto
[←8]
Michas – são ferramentas pequenas para abrir portas, cadeados e portas de
automoveis.
[←9]
Caleça - Carruagem de tração animal (cavalo) montada sobre quatro rodas,
tendo à frente um assento de encosto móvel e atrás uma capota conversível;
caleche.
[←10]
Cardo mariano- O cardo mariano, de nome científico Silybum marianum, é
uma planta medicinal também conhecida como cardo-de-santa-maria, cardo-
leiteiro, cardo-santo, cardo-branco e outras denominações
[←11]
Libré (do francês livrée: liberada, isto é veste entregue a um servo ou criado, do
latim vestis libera ou vestis concessa) é um tipo de capa sem mangas, com
aberturas nas cavas, por onde passam os braços e na frente, onde é presa
apenas no colarinho, deixando aparecer a veste inferior, na sua parte do peito.
[←12]
Mequetrefe - Insignificante; que não tem valor, patife, intrometido; quem se
intromete em assuntos que não lhe dizem respeito.
[←13]
Chorlito – pássaro pequeno, cuja cabeça é menor que o corpo.
[←14]
Faeton – carruagem alta, de quatro rodas, leve e aberta, com assentos
paralelos dois a dois, de frente uns para os outros.
[←15]
C’est vrai - Isso é verdade.
[←16]
As horas são contadas assim a partir do nascer do sol as seis horas, então se
compreende como primeira hora = 6da manhã/ 7 da manhã.
[←17]
Arnês - Equipamento completo de um cavalo de sela ou de tiro.
TIRO - Ação de puxar carros por cavalgadura: cavalo de tiro. Calabre ou
tirante com que se une o boi ou a besta tanto à charrua como à carruagem.
[←18]
Dossiê - Coleção de documentos relativos a um processo, a um indivíduo ou a
qualquer assunto.
[←19]
Um homem contratado para passar de hora em hora gritando as horas
noturnas.
[←20]
Clarete – vinho Bordeaux no século 13 e 14
[←21]
- Tensão arterial, reação das artérias à pressão do sangue.

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