Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
com um canalha
(O Clube do Falcão 03)
Katharine Ashe
Para Idaho e Atlas, meus fiéis companheiros
de escrita que me aquecem os pés
e se deitam felizes e contentes ao sol
que entra pela janela de meu estúdio, como se isso fosse o único
que necesitam
na vida. Para eles, porque me fazem
brincar ainda que tontamente pense que deveria estar
trabalhando. E porque todos os dias
me recordam que o amor pode ser incondicional. Obrigada por
converter-me
em um ser humano melhor.
Sinopses
Lady Justice
****
****
Peregrino:
Envie o Corvo em busca de Lady Priscilla.
O Diretor
****
Senhor:
Vou ser-lhe franco. Está cometendo um erro. Não há na
Inglaterra um homem mais inteligente nem mais perspicaz.
Enviarei o Corvo atrás da besta e obedecerá sem pigarrear. Mas
tenha por certeza que o terá perdido depois deste insulto.
Com todos meus respeitos,
Peregrino
2
****
É obvio, Diantha não tinha contado com o bonito
fazendeiro. E nem tinha previsto a deserção de Annie. Como
tampouco tinha previsto a chuva que encharcava a bainha de
seu vestido de viagem nem o homem com os dedos como
salsichas que se sentava no canto da carruagem do serviço de
correios de Sua Majestade. O bebê chorão que se agitava entre
os braços de sua mãe tampouco era um presente. Mas ao
menos a pequenina não lhe tinha provocado graves problemas,
salvo uma enxaqueca do tamanho de Devonshire, algo que
começou no prédio do correios quando Annie se despediu
somente com um "Boa sorte, senhorita Lucas!""» por cima do
ombro. De modo que tampouco podia jogar a culpa no bebê.
É obvio, da comodidade de Brennon Manor, Diantha não
poderia ter antecipado nada disso, muito menos a deserção de
Annie. Sua melhor amiga, Teresa Finch-Freeworth, adorava a
sua donzela, e a verdade era que para Diantha tinha sido bom.
Annie parecia a acompanhante ideal para partir da casa de
Teresa antes do tempo, respeitando as normas do decoro. Até
que Annie a abandonou.
Diantha esfregou as têmporas. A enxaqueca piorava, mas
os bebês choravam, e gostava muito de crianças em
circunstâncias normais. Sempre tinha sonhado ter filhos
próprios, e o senhor H. também gostava. Mas não tinha tempo
para pensar nisso. Nesse instante, tinha que encontrar sua
mãe e tirá-la do antro de perdição em que estava vivendo.
Por debaixo da aba de seu chapéu, atreveu-se a olhar de
esguelha ao senhor Dedos Salsichões. O homem olhava o bebê
com o cenho franzido enquanto o forte vaivém da carruagem
lhe agitava a papada.
― Está saindo seus dentes, verdade? ― perguntou-lhe
Diantha em um sussurro à mãe. ― Minha irmã Faith chorou a
pleno pulmão quando saíram os dentes.
― É que não para, senhorita. ― A mulher gemeu baixo
enquanto embalava o bebê contra seus seios muito pequenos
para servir de travesseiro.
― Pobrezinha. Minha mãe estava acostumada a nos
esfregar as gengivas com brandy. Às vezes com whisky, se meu
pai tivesse bebido todo o brandy. Tem um efeito calmante.
A mulher a olhou com expressão receosa, inclusive um
pouco escandalizada.
― Ah, sim?
― Pois sim. Havia tantos contrabandistas na costa que
não tivemos problemas para conseguir brandy durante a
guerra. ― Colocou um dedo enluvado na mãozinha do bebê e a
pequena se aferrou a ela enquanto os soluços se
entrecortavam. ― Na próxima parada, molhe um dedo em uma
taça e esfregue suas gengivas. Dormirá em seguida. ― A
boquinha da menina se abriu de novo e soltou um chiado
ensurdecedor. ― Depois, você beba o resto. ― continuou em voz
mais alta, para fazer-se ouvir. Sorriu e deu-lhe uns tapinhas no
braço da mulher.
O olhar da mulher se suavizou. O bebê seguiu chiando.
Baixou a aba de seu chapéu, dom Dedos Salsichões lhe lançou
outro olhar libidinoso. Tinha o aspecto de um salteador de
estradas, sempre e quando os salteadores de estradas tivessem
as unhas sujas e um olhar furtivo.
Nesse momento, Diantha teve claro que a deserção de
Annie só era um de seus problemas.
Os homens como esse abundariam pelo caminho até
chegar a Bristol, e certamente também haveria no navio que a
levasse a Calais. O mundo estava cheio de homens, e alguns
eram malvados.
Tampouco sabia muito do assunto, salvo que quando era
muito pequena tinham-lhe apresentado a um homem muito
desagradável chamado senhor Baker, com quem sua mãe quis
casar sua bonita irmã, Charity. Ou algo parecido. Ninguém lhe
contava nada naquela época porque era muito pequena «e
suscetível», ou isso diziam, o que significava que se metia em
confusões cada vez que podia. Nesse momento, já não tinha
ninguém em casa, de modo que não podiam lhe explicar as
coisas, embora já tinha dezenove anos. Havia uma única
exceção: Teresa, cujas histórias eram escandalosas e
emocionantes, e que tinha planejado sua missão. Uma missão
que devia ter êxito passasse o que acontecesse, mesmo que se
tratasse da deserção de sua donzela que tinha preferido fugir
com um fazendeiro de braços musculosos. Annie tinham
gostado muito dos músculos. Tinha-os mencionado antes de
abandoná-la, aparentemente a modo de justificativa.
Diantha não tinha opinião alguma a respeito dos braços
ou dos músculos dos homens, mas nesse momento via uma
falha grande em seu plano. Necessitava de um homem. Mas
não a um qualquer.
Necessitava de um homem valoroso e honrado, um que a
ajudasse sem questioná-la.
Necessitava de um herói.
A meia-irmã de Diantha, Serena, estava acostumada a ler
histórias de cavalheiros que salvavam moças em apuros, e o
barão Carlyle, seu padrasto, que além disso era um erudito,
tinha-lhe assegurado que essas histórias não eram de todo
mentira, mas sim algumas estavam apoiadas em feitos
históricos. Os heróis existiam. E sua missão era muito perigosa
para executá-la somente com ajuda feminina. De modo que
tinha que encontrar um herói.
Ao pensar friamente, parecia lógico. É obvio que o plano
que Teresa tinha esboçado não requeria que se buscasse a
ajuda de um homem. Teresa nunca tinha conhecido um herói
de verdade. Seu pai mal olhava suas mulheres, e certamente
que seus irmãos não tinham nem um cabelo de herói. Duas
semanas antes, os três tinham dado uma olhada em Diantha e
em seus olhos tinha aparecido um brilho feroz. Dado que
nenhum deles tinha reparado antes em suas visitas a Brennon
Manor, não podiam se considerar heróis.
Os heróis não só se fixavam na aparência. Os heróis se
fixavam no coração.
A mãe do bebê chorão moveu um quadril esquelético,
obrigando Diantha a colar-se ao corpulento cavalheiro que
tinha à esquerda. Sumido em seu jornal, o cavalheiro não
pareceu perceber. Jogou-lhe uma olhada e soltou um suspiro
decepcionado.
Muito velho. Um herói disposto a defender uma dama dos
perigos de salteadores devia estar em plena flor da vida. Do
contrário, não poderia brandir nenhuma espada, nenhuma
pistola com o vigor necessário. Esse homem tinha o bigode
grisalho.
A carruagem se sacudiu. O bebê chiou. A mãe soluçou em
silêncio.
― Posso segurá-la? Minha irmã já é grande e sinto falta de
ter um bebê nos braços. ― Para falar a verdade, Faith era uma
bebê muito inquieta. Entretanto, Diantha acreditava que Deus
lhe perdoaria a mentirinha. ― Assim poderá dar uma cochilada
antes da próxima parada.
― Ai, senhorita, não posso permitir...
― Claro que sim. Eu a cuidarei enquanto você descansa. ―
Rodeou o bebê com os braços e o colou contra seu corpo. A
bolsa de viagem que tinha no regaço era a almofada perfeita, e
ela tinha mais jeito que a mãe, de modo que poderia embalar à
pequena melhor. A mãe envolveu a sua filha com o manto.
― Obrigada, senhorita. Você é um anjo.
― Absolutamente. ― Essa era a pura verdade, é obvio.
Balançou à pequena, deleitando-se com seu calorzinho e
seu peso, enquanto olhava ao passageiro cujos joelhos quase
tocavam os seus.
Não era um homem. Teria treze anos como muito e, a
julgar pelas unhas enegrecidas e sua pele cinzenta, trabalhava
nas minas.
Nas bochechas do moço apareceram duas manchas.
Tocou na boina.
― Senhorita.
Diantha sorriu e o rubor se estendeu pelo sujo pescoço do
moço.
Não lhe serviria, é obvio. Não poderia encomendar a nobre
missão aos moços, embora se inundassem todos os dias nas
vísceras da terra a fim de extrair metais para os outros e,
portanto, deveriam ser considerados heróis, sempre e quando o
mundo fosse justo.
Isso a deixava com o homem que dormia no canto, o
passageiro que na última parada tinha ocupado o lugar de
Annie na carruagem.
A bainha de seu capote jorrava água no chão, ao redor de
suas reluzentes botas. Tinha os braços cruzados diante do
peito e um elegante chapéu de seda negra. Não era um homem
pequeno, mas sim, parecia bastante alto e com ombros largos,
mas dava a sensação de que ocupava seu espaço sem se
incomodar com seus companheiros de viagem. Somente podia
ver suas mãos, sem luvas, e a parte inferior do rosto.
Mãos elegantes, de dedos largos, um queixo firme e recém-
barbeado, e uma boca bem formada.
Piscou.
Deu de ombros, agachou a cabeça um pouco e olhou por
debaixo da aba do chapéu do homem.
Ficou sem fôlego.
Ergueu-se de novo no assento. Sob o peso do bebê que
chorava, o coração lhe pulsava desmedido. Tomou uma funda
baforada de ar para acalmar-se. E outra. Jogou outra olhada
no homem, com mais calma nessa ocasião.
E soube. No mais profundo de seu coração, as escassas
dúvidas que tinha se dissiparam e soube que estava destinada
a encontrar a sua mãe.
Seu plano não só funcionaria em teoria. Tinha desejado
que um cavalheiro a ajudasse em sua missão e Deus ou o
destino, ou quem quer que concedesse seus desejos às moças
esperançadas, estava-lhe proporcionando o dito homem.
Porque se alguém podia cumprir o papel de herói, era esse
cavalheiro, estava convencida disso.
Depois de tudo, já era dele.
****
****
****
****
****
Estimados compatriotas:
Trago-lhes notícias frustrantes. O homem que contratei para
que seguisse o membro do Clube Falcon que desmascararei
perdeu sua pista. Se compartilho esta informação com vocês é
porque me chegaram muitas de suas cartas e sei que estão
emocionados, de modo que é insuportável lhes manter em
semelhante incerteza. Chega-me ao coração que estejam tão
desejosos como eu de conhecer a verdade sobre este clube.
Lady Justice
****
Queridíssima dama:
Rogo-lhe... clemência! Deve cessar esta prosa tão excitante.
Quando leio a palavra «emoção», «coração» e «desejo» no mesmo
parágrafo, mal sou capaz de me manter sentado na cadeira.
Estaria disposto a levantar uma tenda de campanha diante dos
escritórios da Editora com a esperança de vê-la entrar no edifício
pelas manhãs. De fato, tentei-o! Mas, ai! O sereno me impediu
isso. De modo, milady, que me vejo obrigado a lhe suplicar que
se compadeça de minha febril imaginação e a deixe descansar.
Seu cada vez mais fervente admirador,
Peregrino
Secretário do Clube Falcon
****
Senhor:
Pode despreocupar-se das frescuras que publica Lady
Revolucionária. A habilidade do Corvo para evitar o perigo não
tem comparação. Desfazer-se-á do indesejado perseguidor sem
problemas.
Peregrino
10
****
****
****
****
****
****
****
****
No final do terceiro dia, Diantha não pôde suportar mais.
― Vou subir. ― Depois de limpar as mãos no pano que
usava na cintura, deu-lhe um puxão para livrar-se dele.
A senhora Polley, que estava esfregando uma caçarola,
olhou-a com o cenho franzido.
― Disse-lhe que não o fizesse. Tendo em conta que é o
mais honrável que tem feito até agora, acredito que deveria lhe
fazer caso.
― Isso não é certo, senhora Polley. ― Diantha colocou uma
taça com seu pires e um bule em uma bandeja, junto com um
prato de bolachas. Estendeu o braço para agarrar a chaleira
com a água fervendo. ― Owen disse que hoje não comeu.
A senhora Polley meneou a cabeça.
― Subirei com você.
― Não. Acabe de limpar tudo e vá para a cama. Ainda
segue tossindo e precisa descansar. ― Depois de verter a água
fervendo no bule de porcelana, colocou-lhe a tampa.
― Como também necessita você. Uma senhorita tão fina
limpando o pó e varrendo, jamais tinha visto!
― Necessito de atividade. ― Ou, melhor, necessitava uma
distração. Mas era ridículo que tentasse sequer não pensar
nele. ― Vou levar-lhe isto e, depois, irei também à cama. Boa
noite, senhora Polley.
Subiu a escada iluminada pela luz da vela que levava na
bandeja. À medida que subia, ia levantando uma nuvem de pó.
A casa era tão grande que demoraria semanas em limpá-la por
completo. Mas não tinha tanto tempo. Os quinze dias se
esgotavam e ainda não estava perto de Calais, a não ser
perdida no meio de Gales. Bateu na porta do dormitório do
senhor Yale. Não obteve resposta. Chamou de novo, com mais
força.
Quando a porta se abriu, sentiu que o coração lhe dava
um salto. Tinha as mangas da camisa arregaçadas, cujo tecido
colava aos braços pelo suor. Tinha o rosto magro, e que
marcavam muito as maçãs do rosto. O cinza de sua íris mal era
visível, dado que tinha as pupilas muito dilatadas.
― Disse-te que se mantivera afastada.
― Boa noite pra você também. ― Passou a seu lado, já que
ele se permitiu apoiar-se na ombreira da porta. Diantha
atravessou a estadia e colocou a bandeja na penteadeira,
depois se inclinou para acariciar a cabeça de Ramsés. ― Não
recordo que me dissesse isso. Disse-me que corresse se o visse
aproximar-se de mim. Mas agora não acredito que pudesse
perseguir nem a uma tartaruga. ― Agarrou o cabo da vela que
trazia para acender uma das velas que descansavam no
suporte da lareira e a usou para acender o carvão. ― Por que
tem a janela aberta? ― Aproximou-se para fechá-la. ― Vai pegar
uma pneumonia mortal.
O senhor Yale apoiou a cabeça na parede e fechou os
olhos.
― É mais possível que já esteja morto.
― Ainda não.
― Os fogos do purgatório me retém, enquanto que você,
minha Beatriz, tenta-me do Paraíso.
― Entretanto, é evidente que delira e possivelmente morra
logo se não comer.
― Preferiria que se fosse o quanto antes possível ―
murmurou ele.
O coração de Diantha pulsava com tanta força que
escutava seus batimentos no silêncio.
― Sem dúvida. ― Aproximou-se dele enquanto um
estranho formigamento lhe percorria o corpo, muito consciente
de que estava a sós no dormitório de um cavalheiro. ― Trouxe
chá e as bolachas da senhora Polley.
Ele arregalou os olhos, nos quais se refletiu a luz dourada
do fogo.
― Vai.
― Não.
Viu-o levantar as mãos, e depois a pegou pelos ombros
com força e puxou-a para aproximá-la. Suas feições lhe
pareceram muito sérias quando a olhou, inclinando a cabeça
para fazê-lo. Tinha um brilho febril nos olhos, que luziam a
expressão voraz do predador.
― Por favor ― suplicou-lhe, falando tão baixo que Diantha
mal escutou suas palavras.
Custava-lhe muito respirar. Endireitou os ombros, mas
não tratou de escapar de suas mãos.
― Por que me obrigou a esconder a pistola quando de toda
maneira tinha planejado matar-se de fome?
― É... ― respondeu ele com voz rouca. ― É... ― Era
evidente que lhe dava trabalho falar. ― Uma menina muito
difícil.
― Não sou uma menina e só trato de ajudar. Mas deve me
permitir que o ajude.
Por um instante, viu um brilho familiar em seus olhos.
Depois e como lhe custasse um enorme esforço, o senhor Yale a
soltou. Atravessou o dormitório com passos deliberados e
agarrou a bule, que tilintou ao se chocar contra a xícara
enquanto se servia do chá. As volutas de vapor subiram no ar
frio.
― Tome cuidado. Ainda deve estar muito quen... ― Deixou
a frase no ar ao ver que bebia o chá de repente e que depois se
servia outra xícara que também procedeu a beber com a
mesma rapidez. ― As bolachas também ― recordou-lhe.
― Vai ― replicou ele, embora seguiu de costas para ela.
― Não.
― Vai enquanto ainda lhe permito isso.
― Acreditava que o que lhe compramos na herbanária
eram remédios para...
― Requerem um pouco de tempo para que surtam efeito.
Diantha cravou o olhar no frasco marrom que descansava
no escritório.
― Ainda não tomou o láudano, verdade?
Ele inclinou a cabeça.
― Insensibiliza.
― Eu acredito que a insensibilidade e a vida é preferível à
sensibilidade e a morte.
― Dá no mesmo... ― apoiou-se na penteadeira com tanta
força que lhe puseram os dedos brancos.
Diantha compreendeu que estava tratando de guardar o
equilíbrio. Sentiu o entristecedor impulso de aproximar-se dele
para abraçá-lo e lhe permitir que a usasse de muleta.
― Wyn... ― sussurrou, ― acredito que deveria se sentar
antes de que caia ao chão.
― Não... em presença... em presença de uma...
― Não seja tolo. Oh!
Ao vê-lo cambalear, correu para ele e o abraçou tal como
tinha imaginado que o faria, como tinha sonhado, mas não foi
o bastante rápida nem tinha a força suficiente. Ambos
acabaram de joelhos no chão.
― Você é um tolo ― conseguiu dizer com o rosto enterrado
em seu ombro, sentindo o roce úmido da camisa que cobria
seus duros músculos. Sentiu seus tremores. Estava ardendo de
febre. ― Tolo de arremate.
Uma de suas trêmulas mãos rodeou a dele, que nesse
momento estava colocada sobre seu torso. Beijou-a no ombro
enquanto sentia que sua mão lhe esmagava os dedos. Inclinou-
se mais sobre ele e o beijou de novo. Seus lábios roçaram o fino
linho e ele tomou posse do sofrimento que o embargava.
― Certamente não recordará este momento depois ―
sussurrou enquanto que o beijava de novo no ombro. ― É um
consolo. ― Foi incapaz de deter-se. Estava possuída por um
desejo irracional, pela necessidade de estar com ele, de tocá-lo
e de saturar seus sentidos com ele.
Mas se deteve, porque nesse momento o importante não
era ela, o importante não era o que ela desejava. Wyn a
necessitava. Embora não dispusesse de dias nem de semanas
para atrasar-se tanto, por ele estava disposta a atrasar o que
precisasse.
― Vou dizer-te uma coisa ― murmurou com a bochecha
apoiada em suas amplas costas. Sentia os frenéticos
batimentos de seu coração sob a mão. ― Não pode morrer. Nem
pode seguir neste estado por mais tempo.
― Lembrar-me-ei deste momento, Diantha. ― Embora
falou em voz muito baixa, ela sentiu suas palavras pela
vibração de seu torso, uma vibração que se transladou a seu
corpo. ― Lembro de tudo.
Diantha fechou os olhos com força.
― De tudo não ― sussurrou.
― De tudo não ― repetiu ele.
― Há uma vaca que necessita que alguém a ordenhe com
urgência. E não sei o que fazer a respeito. Assim deve se
recuperar rapidamente e solucionar esse pequeno problema
para que não fique doente e morra. Ouviu? Agora é responsável
por duas vidas.
Levantou-lhe um braço. Um braço bastante pesado, mas
ele deve tê-la ajudado um pouco porque conseguiu lhe
introduzir o ombro sob a axila dele.
― Vamos. Chegaremos até essa poltrona. Está mais perto
que a cama.
― Não seria a primeira vez que durmo no chão. Tenho-o
feito muitas vezes.
― Ah, sim?
― Não é tão mau.
― Entretanto, dá-me tristeza que não dormiu nada desde
que chegamos a este lugar. Então, se não for dormir, é
preferível que fique na poltrona em vez de não dormir no chão.
De alguma forma, conseguiram chegar à poltrona. Era
uma cômoda poltrona de couro. Wyn fechou os olhos e, no final
de um momento, pareceu adormecer. Diantha o observou de
cima a baixo. Seu peito, que subia e baixava levemente com
cada respiração. As olheiras e as bochechas afundadas que
ressaltavam ainda mais suas preciosas maçãs do rosto. Sentiu
certa vergonha ao reconhecer que o simples feito de olhá-lo
provocava um ardor que não deveria experimentar.
― Não precisa que me vele.
Diantha deu um coice e entrelaçou os dedos.
― Dá-me medo que escorregue da poltrona e acabe no
chão.
― Não vou romper-me. ― Falava entredentes, que tocavam
castanholas. ― Não sou feito de cristal.
Melhor, era feito de aço. De aço temperado. Ardente como
na fundição. Deu uma olhada para a cama e sentiu que lhe
ardiam as bochechas. Velar um homem doente era um erro
dada sua inocência e sua juventude. Nunca tinha visto a cama
de um homem.
Através das cortinas do dossel, não viu manta alguma
sobre o colchão.
― É um tolo ― murmurou, depois que foi ao dormitório
que compartilhava com a senhora Polley em busca de várias
mantas e retornou.
― Pensava que tinha ido.
― Em busca disto. ― Cobriu-o com uma das mantas, que
acabou arrastando pelo chão. Entretanto, já não estava tão
assustada como no princípio e, embora tarde, não se atrevia a
tocá-lo nem sequer para agasalhá-lo melhor. ― Agora deve
comer.
― É livre para partir quando quiser ― acrescentou Wyn
com seu habitual tom de voz, que tinha escutado milhares de
vezes, embora parecia que as palavras soavam um tanto
trêmulas, como se lhe custasse um grande esforço pronunciá-
las.
― Você e o mar são graciosos, senhor Yale ― replicou ela,
que preferiu retomar ao tratamento formal. ― Mas não me
dissuadirá tão facilmente. ― Serviu-lhe outra xícara de chá,
agarrou várias bolachas e colocou nas mãos dele. A operação a
deixou sem fôlego, de modo que se afastou até a escrivaninha e
se sentou na cadeira de madeira. ― E agora, coma. E bebê.
Enquanto isso, eu lerei este livro e vigiarei para que não dê as
bolachas a Ramsés. ― Agarrou o livro que descansava na
escrivaninha. ― Blaise Pascal e os axiomas sem verificação da
geometria de Euclides. Bem, senhor Yale, você me surpreendeu
de novo. A menos que Ramsés tenha eleito o livro.
― Voltamos para senhor Yale e senhorita Lucas?
Diantha sentiu que lhe disparava o pulso. Wyn tinha os
olhos fechados e sustentava em uma mão a xícara de chá
vazia, apoiada sobre o joelho.
― Não ― respondeu enquanto soltava o livro. Depois de
abrir o frasco de láudano, aproximou-se de novo dele, agarrou
a xícara e verteu uma colherada de láudano. Depois, colocou-a
outra vez em sua mão.
Wyn a apanhou com a mão livre.
― Diantha, obrigado.
― Agradeça-me se não morrer ― sussurrou ela.
Viu-o esboçar o indício de um sorriso, mas ainda tinha
febre.
― Beba ― murmurou-lhe em voz baixa, em um intento de
dissimular o tremor de sua voz.
Esses olhos cinzas a olharam com intensidade e ao mesmo
tempo com uma grande vulnerabilidade, algo que jamais teria
imaginado em um homem como ele. No final a olhou com
confiança. Confiava nela!
Obedeceu-a. Uma vez que bebeu o láudano, Diantha levou
a xícara e a deixou na bandeja. Contemplou a preciosa peça de
porcelana grafite com florezinhas de cor azulada, folhas verdes
e a borda prateada. A xícara de uma dama. A dama que era a
proprietária de uma casa em que estavam vivendo como um
grupo de ciganos bem-educados. Perdidos no meio de Gales e
sem que ninguém soubesse.
Suas duas semanas acabariam dentro de três dias. Seu
pai enviaria uma carruagem a Brennon Manor para recolhê-la,
mas não a encontraria. Estava tão longe de Calais e de Bristol
como estava há quinze dias atrás.
O problema que queria resolver era importante para ela.
As duas estranhas semanas viajando com um homem que não
conseguia compreender, vivendo uma aventura que jamais
teria imaginado, não tinham diminuído o desejo de ver sua
mãe. A essas alturas, ansiava reunir-se com ela com mais
veemência que antes. Precisava vê-la. Precisava lhe fazer
perguntas. Necessitava respostas.
Entretanto, o desespero que deu procuração nela não
tinha nada a ver com o afã de estar de novo a caminho, a não
ser com esse homem que realmente não conhecia, embora às
vezes tivesse a impressão de conhecê-lo de toda a vida.
No final, pareceu adormecer. Diantha se dispôs há
ordenar um pouco o quarto, embora em realidade Wyn mal
tenha passado algum tempo nele. Sua jaqueta e sua gravata
estavam primorosamente dobradas sobre o capote. A seu lado,
encontravam-se as botas. Também viu uma bandeja onde
descansavam seus úteis apetrechos para barbear-se: uma
broxa branca, uma barra de sabão e uma navalha cuja folha
tinha um aspecto letal e que lhe provocou um calafrio. Não só
porque era a primeira vez que via os objetos pessoais de um
homem e nesse momento desejava algo muito escandaloso,
mas sim porque era evidente que Wyn não necessitava da
pistola se quisesse fazer-se dano ou fazer a outra pessoa.
Afastou o olhar da bandeja e começou a colocar os pacotes
de ervas na escrivaninha, olfateando-os à medida que o fazia. A
caiena moída fez que enchessem os olhos de lágrimas e acabou
espirrando, embora Wyn não se alterou.
Tirou o lençol de linho que cobria uma mesa auxiliar e
depois fez o mesmo com outro que protegia um quadro
pendurado na parede. Descobriu uma dama morena montada
em um cavalo cinza. Seus olhos, que faziam jogo com a
pelagem de seus arreios, eram sombrios. Muito sombrios para
seu gosto, de modo que voltou a cobrir o retrato. No final,
armou-se de coragem, aproximou-se da cama e abriu por
completo as cortinas. Aos pés do colchão descansava um jogo
de lençóis de linho. Fez a cama com o coração desbocado.
Quando acabou de ordenar tudo, ajoelhou-se no
empoeirado chão. Pela primeira vez em quatro anos, uniu as
mãos e inclinou a cabeça.
― Suplico-te que me permita isso, Senhor ― sussurrou,
com os olhos ainda cheios de lágrimas por culpa da caiena. ―
Suplico-te que me permita usar minha vida para fazer algo
importante.
16
Compatriotas britânicos:
Devido a circunstâncias imprevistas, meu agente em
Shropshire viu-se novamente impedido a perseguição de seu
rival do Clube Falcon. Em resumidas contas, começo a me
desesperar nesta particular missão.
Não, não cessarei em minha busca pela justiça! E sim,
perseguirei os membros deste dissipado clube até havê-los
desmascarado a todos!
Entretanto, enquanto esperava preocupada os informe de
meu agente, aprendi uma lição muito valiosa: o subterfúgio não é
meu forte. Prefiro me aproximar de frente a um homem, acusá-lo
de uma infâmia com justificação e sem recorrer a mistérios, e
escutar sua defesa com meus próprios ouvidos do que me sentar
em meu trono como uma déspota oriental que espera que seus
seguidores realizem em seu nome ações desprezíveis. Meus
métodos devem ser impecáveis para que minha vitória também o
seja.
Não mandei chamar meu agente, já tem muitos problemas
sem necessidade de que minha intervenção lhe ponha mais
trave na estrada. Entretanto, quando puder mover-se de novo,
informar-lhe-ei meu desejo de que abandone o projeto. De
momento. Porque quando este membro em concreto do Clube
Falcon volte para Londres, enfrentá-lo-ei e se verá obrigado a
responder ante vocês, povo de Grã-Bretanha, por seus excessos
criminosos.
Lady Justice
****
****
****
****
****
****
Querido Peregrino:
Não me perdi. Estou em Londres. Não me viu ainda porque
estou zangada contigo por abusar do Corvo com essa missão tão
insultante. Irei ver-te, por desgraça para mim, já que agora não
sinto muita simpatia por sua pessoa.
Com carinho,
Pardal
P. S.: Que diabos te acontece? Tornou-se um idiota com sua
correspondência pública com lady Justice. Acredito que está
caidinho por ela. Será um golpe que essa circunstância acabe
sendo um problema, se a dama terminar sendo um ancião de
setenta anos.
23
****
****
****
Wyn viajou até o Yarmouth, avançando para o Nordeste
tão rápido como podia a potranca. Era uma loucura. Porque se
encontrava realmente mal. Os remédios de Molly Cerwydn o
aliviavam em parte, mas sem a parte do corpo de Diantha, a
ânsia o embargava de novo. Se Duncan aparecesse em algum
ponto da estrada, era um homem morto.
Entretanto, sabia que Duncan não apareceria. Apesar das
palavras de Diantha sobre a venerabilidade do escocês, se
Duncan tivesse querido aproximar-se dele, já teria feito na
Abadia, aproveitando sua debilidade. Os homens de ação não
se guiavam pela conveniência das jovenzinhas.
Cavalgou até chegar à costa e ver o castelo que se elevava
no escarpado, sobre o mar, construído com arenito, com suas
ameias e sua imponente majestade medieval. O guarda da
entrada o convidou a entrar no pátio central e dali lhe indicou
como chegar ao salão para que esperasse Sua Excelência.
Wyn recusou. Deixou a potranca nas mãos de um moço
dos estábulos e sem olhar para trás, saiu do castelo e cavalgou
até o anoitecer para pôr toda a distância possível entre o duque
e ele. Não poderia cumprir a promessa que tinha feito a uma
mulher viva se se aferrasse à promessa que fez a uma jovem
que matou. Devia esquecer os remorsos daquele erro. Diantha
tinha deixado claro com seu afinco e sua compaixão. Tinha
posto sua vida de pernas pro ar, mas já que não iria enforcá-lo
por matar um membro da aristocracia, poderia fazer o que
quisesse dessa vida, começando com sua propriedade. A
Abadia era muito próspera e rentável. Até esse momento, não
tinha vivido de suas rendas porque se sentia culpado.
Entretanto, merecia que a atendesse como era devido e devia
prepará-la para sua nova proprietária.
Durante sua ausência, a senhora Polley tinha ido ao
povoado e granjeou a antipatia do povo do lugar. Um
sentimento mútuo. Entretanto, as comidas que preparava
compensavam o distanciamento com as pessoas com as quais
tinha conhecido desde a infância em opinião de Wyn. Além
disso, dirigia os criados que haviam retornado com grande
eficiência, embora resmungasse muito.
― Senhora Polley, agradeço-lhe que ficou na Abadia.
― Um cavalheiro não deveria estar na cozinha, senhor.
― Há quinze dias não lhe parecia tão diferente.
Ela franziu o cenho e o expulsou de seus domínios.
Enquanto Wyn preparava a bagagem para partir para Londres,
chegaram duas cartas.
****
Londres
****
****
****
****
Senhor:
Apesar das dificuldades que meu agente teve que enfrentar
enquanto seguia o membro de seu clube ao qual chamam de
Corvo, conheço a identidade do dito homem. Não vou dizê-lo
nesta missiva se por acaso a interceptam alguns olhos
indiscretos.
Direi pessoalmente, em vez de fazê-lo de maneira pública
para que os cidadãos britânicos se inteirem, já que é seu direito,
porque em Shropshire, junto ao Corvo viajava uma jovem de
linhagem. Não me interessa expor uma pessoa inocente à
censura da sociedade, somente descobrir injustiças. Não desejo
manchar o nome da dama, mas temo que se revelar a identidade
do membro de seu clube, a dama não escapará ilesa. De modo
que tenho as mãos atadas.
Senti-me com a necessidade de lhe informar este fato, não
só para que saiba que ainda tenho a intenção de que seu clube
fique exposto ao escrutínio público e de que suas contas sejam
inspecionadas, mas sim para que saiba que minhas intenções
são sinceras. Acredito que você sabe pouco de honra e muito
menos de educação. Mas talvez seu amigo, o Corvo, seja outro
tipo de homem. Confio em que seja assim.
L. J.
****
****
****
****
****
****
Corvo:
Quando concluir o julgamento pela suposta infidelidade da
rainha (e se falhar em contrário a proposta da lei parlamentar
como espero que aconteça), Sua Majestade tem a intenção de
partir da Inglaterra. De forma discreta, está procurando alguém
de confiança capaz de protegê-la em caso de que o rei insista em
prejudicá-la de algum jeito. A rainha o tem presente desde que
deslumbrou os ministros em Viena, e aqueles que lhe são mais
leais o recomendaram. O rei descobriu e, já que deseja que siga
a seu serviço e não o abandone em favor da rainha, deseja te
recompensar por sua longa trajetória no Clube. Nosso diretor
recomendou que o nomeie cavalheiro.
Peregrino
****
Yale:
O duque morreu. Morreu em sua cama, asfixiado pelas
mãos da velha criada.
D. E.
32
Peregrino:
Temo que esteja ocupado com outro assunto neste preciso
momento e, por desgraça, devo rechaçar seu convite para jantar.
Entretanto, devido a este urgente assunto, vejo-me obrigado a
responder sem demora a essência de sua mensagem. Em
resumidas contas, embora agradeça a magnanimidade de Sua
Majestade, não a quero. Se o diretor e ele de verdade querem me
agradecer, rogo-lhes uma só coisa: clemência pelo único ato de
vilania que cometerei em breve.
Ao serviço do rei e do reino,
Corvo
****
Corvo:
Sua Majestade promete clemência. O diretor a garante.
Peregrino
P. S.: Tente que não o matem.
35
Corvo:
A batalha real chegou a uma conclusão antecipada e recebi
uma carta do capitão da corte da rainha em que me informa que
Sua Majestade a Rainha deseja que vá imediatamente ficar a
seu lado. Se se negar, Sua Majestade o Rei promete uma
baronia. O diretor espera sua resposta.
Peregrino
****