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Valerie King – Você Como Recompensa!

Copyright © 2003 by Valerie King


Originalmente publicado em 2003 pela Kensington Publishing Corp.
PUBLICADO SOB ACORDO COM KENSINGTON PUBLISHING CORP.
NY, NY - USA Todos os direitos reservados.

Todos os personagens desta obra são fictícios. Qualquer semelhança com pessoas vivas ou
mortas terá sido mera coincidência.

Título original: A Rogue’s Wager

Tradução: Nancy Alves - Editora e Publisher: Janice Florido - Editora: Fernanda Cardoso -
Editoras de Arte: Ana Suely S. Dobón, Mônica Maldonado - Paginação: Dany Editora
Ltda. Ilustração de Capa: Hankins + Tegenborg, Ltd.
EDITORA NOVA CULTURAL LTDA.
Rua Paes Leme, 524 – 10º andar, CEP 05424-010 – São Paulo, Brasil
Copyright para a língua portuguesa: 2004
EDITORA NOVA CULTURAL LTDA.

Digitalização: Afrodite
Revisão: Rosana Prado

Resumo:

Inglaterra, 1817

Uma aposta pôs em risco sua honra... e seu coração!

Lorde Daniel Connought só podia ter perdido o senso do ridículo! Afinal, que outro
motivo haveria para justificar o beijo escandaloso que ele dera na encantadora
Harriet Godwyne? Desde que partira, ele não tirara aquela mulher da cabeça,
tampouco conseguira esquecer o sabor de seus lábios...
Harriet sabia que o sedutor Daniel não tinha a menor intenção de assumir
compromissos com uma mulher. Por isso, queria se manter longe dele o máximo que
pudesse. Mas a cada momento seus caminhos se cruzavam... Até que uma aposta
colocou fim àquele jogo de esconde-esconde. Será que valeria a pena para ambos
aceitar a aposta e pôr o coração em risco?
Capítulo I

Kent, Inglaterra, 1817

Harriet Godwyne, que se encontrava no pomar de cerejeiras de seu tio, ouviu o som
distante de patas de cavalo. Olhou com certo interesse na direção de onde vinha o trotar,
mas sem preocupação alguma, e viu quando um cavaleiro emergiu de um pequeno bosque
distante, seguindo, a toda velocidade, num cavalo branco, em sua direção.
Ele estava na parte sul do pomar, que levava à depressão do terreno mais próxima
da casa. E Harriet imaginou o que poderia estar motivando aquele homem, um nobre, com
certeza, a galopar daquela forma. Chegou até a pensar na possibilidade de estar
acontecendo algum incêndio nas redondezas de Shalham Park.
No entanto, quando a identidade do cavaleiro clareou em sua mente despreparada,
um medo absurdo se apossou de seu coração. Sabia, sem sombra de dúvida, quais eram as
intenções daquele que se aproximava e que ela própria era o alvo daquela cavalgada louca.
Deu alguns passos para trás e começou a correr de volta para dentro do pomar,
procurando abrigo entre as árvores, arrebanhando as saias e, por fim, iniciando uma fuga
alucinada. Não entendia sua reação de imediato, mas sabia que aquele era o conde
Connought, e não queria encontrar-se com ele ali, completamente desprotegida.
Percebeu quando o galope terminou e virou-se para ver, com horror, que Daniel
Connought apeava e passava as rédeas por um tronco próximo a um arbusto. Harriet sabia
muito bem o que ele pretendia fazer e, por isso, não hesitou em correr ainda mais em
direção à residência de seu tio. Entretanto, um riacho, um bosque e dois acres de campos
arados e jardins bem cuidados a separavam da salvação.
Ainda assim, continuou correndo, muito mais ainda quando ouviu Daniel chamá-la.
– Harriet! Harriet Godwyne! Por que está fugindo de mim? Oh, Harriet!
Ela reconhecia o tom brincalhão e a risada que seguiu suas palavras. Sim, estava em
perigo. Daniel podia ser insuportável quando queria, mas Harriet duvidava que sua atual
conduta se devesse ao fato de, na noite anterior, em casa de sua amiga Jane Eave, ela ter
dito coisas que não devia e ido além do que podia falar.
Mas chamara-o de canalha, e depois rira muito, o que poderia ter dado a impressão
de que ainda quisesse flertar com ele. Porém, logo que se deu conta de seu erro, em
especial por perceber que um brilho novo e diferente se estampara nos olhos dele, afastara-
se o mais rápido possível. Chegara mesmo a quase correr por dentro da casa, passando pela
elegante sala de jantar de lady Eave, batendo em algumas das cadeiras, em sua pressa. E
fugira com suas primas, Margaret, Elizabeth e Mary, que se apressaram em acompanhá-la
de volta a Shalham Park.
E agora, ali estava Harriet, escapando de Daniel no pomar de cerejeiras, com
poucas chances de se livrar dele.
De repente, uma mão forte a segurou pelo cotovelo, obrigando-a a parar.
– Mas por que tem sempre de ser grosseiro, Daniel? – Harriet protestou de pronto,
enquanto ele a fazia voltar-se para encará-lo.
O chapéu que Daniel usava antes caíra durante a corrida e, naquele suave dia de
julho, seus cabelos de um castanho denso, escuro, estavam revoltos, caindo-lhe sobre parte
da testa.
– Não sou grosseiro. – Sorriu. – Nem canalha, como você mesma disse ontem à
noite e em muitas outras ocasiões. Lembro muito bem. E ontem, quando me chamou assim
outra vez e depois riu... Bem, fiquei encantado e imaginei que pudesse estar me fazendo
algum tipo de convite. Portanto, aqui estou.
– Eu tinha bebido um pouco, como deve recordar também. Aquele champanhe
estava delicioso! Agora, por favor, queira me soltar, sim? Por que tem sempre de bancar o
biltre?
– Porque sim.
– Você é a mais abominável das criaturas! Sempre sucumbe a sua natureza animal,
cafajeste! Além do mais, sabe muito bem que não deve me perseguir como acabou de
fazer, porque minha resposta será a mesma. Solte-me, já pedi!
– Faz muitas perguntas, sabia? – Daniel a trouxe mais para junto de si.
Harriet colocou as mãos abertas contra o tórax dele e prendeu a respiração. Daniel
era sempre ainda mais belo quando sorria. Se tudo tivesse sido diferente... Se ele não
tivesse beijado Margaret tantos anos antes!
– O que propõe hoje? – perguntou, altiva. – Pode começar com seus argumentos
costumeiros, e saiba que vou responder a todos eles como sempre fiz.
– Não tenho a menor intenção de agir assim, minha linda. De que me adiantou
argumentar por tanto tempo, não é mesmo? Jamais fui bem-sucedido em meus objetivos.
Portanto, hoje pretendo apenas beijá-la, mesmo que seja sem sua permissão. E começo a
achar que já devia ter feito isso há muitos anos.
– Não pode me beijar! – Harriet ficou assustada. – Não permito que o faça! Nem
sonhe em fazer tal cosia!
Daniel olhou ao redor, parecendo divertir-se com a situação.
– Onde estão seus cavaleiros para protegê-la contra mim, senhorita? Não veio
ninguém por aqui, a não ser aquele pássaro, que nos observa com curiosidade. O que acha
que ele pode estar pensando?
Harriet voltou o rosto para ver a ave, que movia a cabeça para um lado, depois para
outro, como se tentasse compreender o que via.
– Deve achar que você enlouqueceu! Na verdade, não quero saber de pássaro
algum! Você me deixa furiosa!
– E você vem me atormentando por todos esses anos com seus lábios rosados,
lindos, querendo ser beijados. É uma moça grosseira, Harriet, embora acuse a mim disso.
Porque é bruta comigo. Eu devia tê-la beijado antes e arrastado para nosso leito nupcial,
sem dar a mínima para sua opinião.
– Que falta de cavalheirismo! – Ela se debatia e, apesar disso, não conseguia afastar
da mente a imagem do leito de Daniel e de como era adorável beijá-lo.
– Saiba, meu anjo, que não me importo nem um pouco com o que é cavalheiresco
ou não, esta manhã. Não a soltarei antes de conseguir meu beijo, pois fiz uma aposta com
Laurence e Charles Badlesmere de que conseguiria beijá-la antes do meio-dia, e ainda não
passamos meia hora das nove. Pois então: os deuses estão sorrindo para mim, não acha?
Harriet parou de se debater. De repente, uma idéia lhe ocorreu, e quis saber:
– Como foi que me encontrou aqui?
– Margaret me ajudou. Não hesitou em me dizer que você estava caminhando pelo
pomar.
– Pois minha prima terá de se ver comigo! – Mais uma vez, debateu-se. – Olhe,
estou avisando! Não vai conseguir seu beijo! Não me importo que tenha apostado com seus
amigos. Não...
Harriet não conseguiu continuar, pois os lábios de Daniel já cobriam nos seus.
Enrijeceu, como um animal preso numa armadilha. Sentia-se ultrajada com aquilo, mas
não conseguia se mover. Estava furiosa, mas Daniel continuava beijando-a com carinho.
Devia afastar-se, gritar com ele, dar-lhe os piores nomes que conhecia, e, no entanto...
Tinha se esquecido de como era beijá-lo. E lembrava-se agora de que era maravilhoso.
Como podia um simples beijo transformá-la daquela forma?
– Harriet...
– Eu tinha esquecido...
E Daniel voltou a tomar-lhe a boca, agora com maior paixão, apertando-a contra si.
Ele fora seu primeiro grande amor e, naqueles anos todos, nenhum outro estivera
em seu coração como Daniel. E, naquele instante, era como se todos os sentimentos
ressurgissem, fortes, vibrantes, jamais esquecidos de fato, tomando conta de todo seu ser e
tirando-a da realidade.
– Espero que sempre se lembre de mim, Harriet.
– Como eu poderia esquecê-lo?
– Diga-me que ainda há uma chance.
No entanto, tão rápido quanto as boas recordações tinham retomado, voltaram
também outras, mais dolorosas, de pura traição, dizendo-lhe que, no passado, Daniel
beijara sua prima menos de doze horas depois de ter se ajoelhado a sua frente, jurando
amor eterno e pedindo-a em casamento.
Daniel beijara Margaret e alardeara o fato, ou, pelo menos, assim parecera a
Harriet, visto que todos sabiam. Jane, Laurence, Charles, até mesmo lorde Frith. Todos.
Jamais poderia confiar em Daniel de novo. Uma fúria repentina a tomou, fazendo-a
debater-se. E Daniel não mais a segurou, tomando a sorrir.
– Finge ser indiferente, querida. Pois não senti nada de desinteresse na forma como
correspondeu a mim.
– Não, não há desinteresse. Também não sou indiferente. Tenho fortes sentimentos
por você, sim. Ódio! Raiva! Desprezo! Tem o caráter de um verme, Daniel Connought! E,
pelo que vejo, não mudou em nada!
– Não? Bem, suponho que não mesmo, pois jamais acreditei que beijar sua prima
fosse um pecado terrível. Também não modifiquei minha natureza. Sou ainda o mesmo
homem pelo qual você se apaixonou.
– E é nesse ponto que somos diferentes. Porque sempre encarei aquele beijo como
uma grande ofensa contra mim e contra minha prima também.
– Contra Margaret? Por quê?
– E se eu lhe disser que ela o amava naquela época e que chorou noite após noite
por sua causa? O que me diz a isso?
Na realidade, isso jamais acontecera, mas Harriet queria saber se, alguma vez,
Daniel se preocupara com as conseqüências de seu ato.
– Não acredito. Está me dizendo que sua prima me ama? – Isso faria alguma
diferença na conduta?
– Se eu achasse que estava arriscando o coração de Margaret. – Daniel não mais a
encarava. Parecia pensativo.
Harriet o fitava, desconfiada. Não podia crer que ele não tivesse sentimentos. Por
que Margaret teria mais valor para Daniel do que ela própria? Não entendia a forma como
ele raciocinava, e todo o sofrimento pelo qual passara sete anos antes retomava, ferindo-a
ainda mais.
Quando tomou a encará-la, ainda sério, Daniel indagou:
– Diga-me. Margaret me ama? Porque eu seria capaz de apostar toda minha fortuna
como nunca me amou.
Harriet assentiu muito de leve e esclareceu.
– É claro que ela nunca o amou. Sempre o conheceu muito bem. Para ser franca, até
me preveniu muitas vezes quanto a seu caráter, e agora queria muito tê-la ouvido, pois
haveria me poupado muita tristeza. Mas aprendi minha lição, enquanto você me parece
incapaz de fazer o mesmo. Brincou com minha prima e me feriu, e ainda demonstra não
entender a profundidade do que fez a nós duas.
– Está enganada. Sei muito bem que agi como um tolo, e já me desculpei mais de
uma vez com você. Todavia, não é o que farei hoje.. Estou farto de suas acusações, ainda
mais porque reconheci que agi mal, e você foi incapaz de me perdoar. Tem um coração de
gelo, Harriet!
– Prefiro isso a não saber o significado da palavra honra.
Daniel arregalou os olhos, ofendido.
– Se você fosse um homem, eu a desafiaria a um duelo por me dizer isso.
– E, se fosse homem, eu aceitaria!
Daniel afastou-se alguns passos, pegou o chapéu e tirou algumas folhas secas que
se grudavam nele, recolocando-o sobre os cabelos.
– Tenha um bom dia, srta. Godwyne. – Irritado, afastou-se em direção à montaria.
– Eu desprezo você! – Harriet gritou ainda, mas ele limitou-se a erguer a mão e
acenar, sem se voltar para vê-la.
Harriet observou-o e, como uma criança frustrada, bateu com os pés no chão.
Detestava-o! Detestava sentir-se tão irritada quando Daniel lhe falava. Detestava-o porque
ele beijara Margaret.
Mas detestava-o ainda mais porque, com alguns beijos, Daniel a fizera voltar ao
passado e mostrara-lhe que seria muito fácil apaixonar-se outra vez.

Daniel seguiu até seu cavalo, pensativo. Sua mais recente aposta, a princípio apenas
uma brincadeira sem maiores conseqüências, tivera um resultado desagradável.
Achara que seria divertido perseguir Harriet naquele pomar e depois beijá-la, numa
espécie de leve vingança pelo que ela vinha fazendo naqueles anos todos. Os beijos tinham
sido surpreendentes, deliciosos, pois Harriet retribuíra. O prazer daquela vingança, no
entanto, não durara muito, porque as acusações se fizeram presentes.
Harriet deixara claro, naqueles sete anos, qual era sua opinião sobre o caráter de
Daniel. E ele nunca achara que ela tivesse razão em pensar assim. Sim, beijara Margaret,
mas isso fora um engano, um erro de juventude pelo qual pagara caro. O pior de tudo era
estar preso a um juramento de segredo no que se referia ao motivo pelo qual lhe roubara
aquele beijo, e o preço de revelar tal segredo seria muito maior do que poderia pagar sem
trair toda a linhagem Connought, passada e futura.
Ainda assim, alguma coisa dentro dele se revoltava por saber que Harriet não o
considerava merecedor de sua mão e de seu amor devido ao que houvera. Mesmo que
pudesse, duvidava que pudesse revelar-lhe as circunstâncias que o tinham levado àquela
atitude. Pelo menos agora não o faria. Em sua opinião, a teimosia dela e sua incapacidade
de perdoá-lo eram falhas bem maiores do que sua própria fraqueza, que fora o que o levara
a beijar Margaret.
E, ao montar seu animal, sentia uma raiva intensa por perceber que Harriet
continuava empedernida sobre um assunto que tinha ficado desgastado demais.
Capítulo II

Vindo da direção dos estábulos, Daniel entrou pelo portal de Kingsland, lar de seus
ancestrais e agora seu também.
Mesmo tendo ganhado a aposta e sabendo que logo poderia triunfar diante de
Laurence e Charles, seu temperamento ainda estava inflamado.
Entrou, passando pelo hall e seguindo até a sala de bilhar, onde deixara os amigos
havia pouco mais de uma hora. Pôde ouvir as batidas das pesadas bolas sobre a mesa antes
mesmo de adentrar a sala. Cavalgara em grande velocidade do pomar até seus estábulos, e
ainda sentia a pressão que lhe apertava as têmporas, no nervosismo que o consumia.
Quando atravessou a soleira, Laurence endireitou a coluna e, ainda segurando o
taco, fitou Charles, que tinha o olhar fixo no amigo que acabava de chegar. Os dois
encararam Daniel por alguns segundos, calados, e então cada um deles retirou uma nota de
dez libras da carteira, lançando-a sobre o feltro verde.
– Ainda nem lhes disse se consegui ou não. – Daniel sentia na atitude dos amigos
um motivo a mais para se exasperar.
Laurence voltou a preparar sua jogada.
– Depois que você saiu, chegamos à conclusão de que, se retomasse parecendo
indiferente ou atônito, saberíamos de imediato que falhara em seu objetivo. Por outro lado,
se chegasse muito alegre ou exasperado, sem dúvida conseguira beijar nossa querida
Harriet. E, se quiser compreender nossas deduções, basta mirar-se no espelho.
– Qualquer um pode constatar que está irritado – completou Charles.
Daniel sentou-se numa poltrona junto à porta e olhou primeiro para um, depois para
o outro amigo. Charles levou-lhe as duas notas, que ele dobrou e enfiou no bolso,
imaginando como aqueles camaradas de tantos anos conheciam-no mais do que ele
próprio.
Estiveram lado a lado em Cambridge, eram inseparáveis, e havia muito se
empenhavam em maquinações de juventude de toda sorte. Laurence fora muitíssimo
repreendido por três vezes durante o curso, e Charles escapara de semelhante destino por
bem pouco. Isso lhe dera fama de sagaz, já que estivera metido nas mesmas encrencas que
Laurence.
Na verdade, a única vez em que temera ser expulso da escola fora quando trouxera
três bodes para dentro de seus aposentos, na faculdade, com o agravante de estar em
absoluta embriaguez. Acordara sentindo um cheiro horrível no quarto, que lhe fazia
lembrar os estábulos de sua propriedade rural, onde crescera, e vira, desconcertado, que os
animais acabavam de comer um belo e quase novo terno que deixara sobre uma cadeira.
O fato de Charles quase sempre conseguir escapar à punição devia-se em parte a
sua aparência, pois se parecia com um anjo, com seus cabelos claros, encaracolados.
Possuía belíssimos olhos azuis, adorava zombar dos amigos e pregar-lhes peças, e era
muito leal.
Laurence Douglas, por sua vez, era bem diferente, com sua cabeleira ruiva,
ondulada, pele muito clara e marcada por sardas, e seus intensos olhos castanhos.
Costumava meter-se em complicações e armar muitas delas também. Seu coração,
entretanto, era do tamanho do mundo. Não havia amigo melhor do que Laurence Douglas.
E, para Daniel, também não existia amizade melhor do que a de Charles.
– Harriet sempre consegue me deixar furioso. – Afundou ainda mais na poltrona. –
Bem que ela merece uma boa lição!
– Ele ainda está apaixonado, Laurence.
– E eu não sei disso? – O jovem se mantinha atento à bola que queria encaçapar.
O barulho das bolas encheu o ambiente mais uma vez. Charles fez uma careta de
desagrado, e Laurence ensaiou alguns passos de dança, feliz com o resultado.
– Deve-me mais cinco, amigão. E aí? Mais uma partida?
– Claro! – Charles aceitou. – Pretendo ganhar todo meu dinheiro de volta, embora
ache que o demônio deve estar a seu lado esta manhã.
– Parem com isso! – Daniel se levantou. Voltando-se para Charles, perguntou,
aborrecido: – Posso saber o que quer dizer quando afirma que ainda estou apaixonado por
Harriet? E você, Laurence, por que concordou com ele no ato?
Os dois o encararam como se tivessem ouvido uma grande bobagem.
– Não vêem que estou muito zangado com ela? – Daniel insistia. – E parem de me
olhar com essas expressões de idiotas!
– Pode nos xingar à vontade. – Laurence passou giz no taco. – A verdade é que
ainda a ama, sim, e acho até que sempre vai amar.
– Pare de dizer tolices!
Mesmo enquanto protestava, Daniel sabia que dizia muito mais do que acreditava,
mas era a única coisa que podia fazer no momento. Estava ainda bravo demais com o que
ouvira de Harriet para entender direito o que sentia. Não se conformava por ela tê-lo
acusado de não saber o que significava honra.
O que nunca soubera era o que fazer com Harriet. Ainda a amava? Lembrava-se
muito bem dos beijos que lhe dera e da forma como se sentira. Devia ainda estar
apaixonado. Mas não queria admitir para si mesmo essa sua fraqueza.
– Ela devia era ter se casado com Frith e dado seis ou sete filhos a ele! Ele sempre a
quis, afinal. Mesmo naquela noite... – interrompeu-se, sem poder terminar a frase.
Frith era um dos motivos pelos quais terminara seu noivado quase antes mesmo de
ele começar. Ainda agora, não admitia que fora tão tolo por ter beijado Margaret, e tudo
por causa da aposta a que Frith o induzira.
– É, as intenções dele sempre foram muito claras. – Charles recolocou as bolas
todas sobre o feltro.
– Mas imagino por que ela não se casou com o sujeito. Frith não se afasta dela, tem
passado esses anos todos a seu lado, e parece que Harriet acabou formando uma espécie de
ligação com ele. Dizem que Frith já lhe propôs casamento mais de três vezes...
– Decerto, muito mais – Daniel opinou, ainda mais aborrecido. – Pelo menos, uma
vez por ano, nos últimos sete. Que idiota!
– Ah, isso ele é mesmo. – Charles lançando as bolas em movimento com a primeira
tacada.
– Bela jogada! – Laurence elogiou-o, entrando no jogo.
– Parece-me que há certa ironia em suas palavras. – Charles arqueou uma
sobrancelha. – Porém, hoje vou relevar. Posso ter jogado bem, mas acho que foi pura sorte.
Não estou muito inspirado por causa do brandy de sir Edgar, que bebi ontem à noite. Ainda
sinto a cabeça um tanto oca...
– Alguém devia avisar Harriet – Daniel comentou, pensativo.
– Sobre o quê? – disseram os dois, em uníssono.
– Frith, é lógico.
Laurence assentiu, mas Charles meneou a cabeça, dizendo:
– Parece-me que disse há pouco que ela devia ter se casado com ele e lhe dado
vários filhos.
Daniel o encarou, resmungando:
– Ora, deixe-me em paz!
Charles riu e, passando por trás de Laurence, esbarrou de propósito em seu taco,
estragando-lhe a jogada.
– Ora, seu... Por que não cresce, hein?
Daniel respirou fundo e, afastando-se deles, foi até a janela de canto, para ver a
parte sul de sua propriedade.
Era uma paisagem adorável, avaliou, observando o vale e, depois dele, as
montanhas que se erguiam na distância. Estava ali desde a morte do pai, nove anos atrás.
Sua mãe tomara a se casar com um cavalheiro distinto, e, no momento, vivia com ele em
Bath. Deixara o título de condessa, mas estava feliz sendo apenas a sra. Willes.
O três irmãos de Daniel serviam o Exército, e suas duas irmãs mais velhas estavam
bem casadas, morando em lindas propriedades no interior do país, cuidando de suas
crianças. Suzanne tinha oito filhos, e Charlotte, sete, estando grávida do oitavo.
Pensar nas irmãs fez com que Daniel se lembrasse de Harriet.
Nos últimos tempos, sempre que pensava nela, avaliava o fato de Harriet se manter
solteira.
Falara a sério ao dizer que ela deveria estar casada, pois Harriet sempre lhe
parecera do tipo que ficava feliz numa casa, com marido e filhos. Isso se conseguisse se
casar com a pessoa certa. E Frith não era esse alguém, óbvio. Tivera oportunidade de
conhecer bem o caráter dele.
Sim, Harriet precisava ser avisada quanto ao barão Frith, mas não por ele. Evidente
que não daria ouvidos a suas admoestações. Imaginava se Harriet saberia que, por trás dos
modos finos e elegantes de Frith, existia um homem sem nobreza, um miserável
interesseiro e egoísta. O que ela diria, por exemplo, se soubesse que Frith fora o verdadeiro
autor daquele beijo que dera em Margaret?
Porém, não podia expor o caráter de Frith a Harriet sem revelar a natureza da aposta
que acontecera naquele fatídico dia, sete anos atrás. Um arrepio subiu-lhe pela espinha ao
rememorar os fatos que levaram ao rompimento de seu noivado.
Tudo acontecera em Ruckings Hall, residência da família de Laurence, onde um
grupo de convidados se reunia para o fim de semana.
O dia em que propusera casamento a Harriet fora o mais feliz de sua vida, pois
estavam ambos completa e perdidamente apaixonados. Após as damas terem se recolhido
aos seus aposentos, Daniel permanecia acordado, feliz, ansioso, pois iria se casar com a
mulher que amava, antes mesmo do fim do mês seguinte. Nada poderia perturbar sua
felicidade.
O sr. Douglas tinha uma adega refinada, onde mantinha excelentes vinhos,
champanhe, e um brandy formidável. E o casamento vindouro de Daniel tinha sido
brindado por todos os homens presentes, muitas vezes seguidas, com todos
cumprimentando-o e desejando-lhe toda a sorte do mundo.
Lorde Frith fora mais efusivo que os demais em seus cumprimentos, enquanto,
como Daniel descobriria depois, se mantinha sóbrio, apenas observando os outros ficarem
mais e mais alegres.
De alguma forma que não recordava bem, Daniel acabou na sala de bilhar, não para
jogar, mas para conversar e rir muito em companhia de Charles, Laurence e Frith. Jamais
rira tanto, e ainda havia muito brandy para animá-los mais e mais. Quem poderia culpá-lo
por beber, visto que estava tão feliz, e Harriet, que era tida como modelo de perfeição,
seria logo sua esposa?
Não conseguia recordar ao certo como Frith acabou desafiando-o numa aposta que
envolvia parte de Kingsland contra um belo cavalo que o barão trouxera da Arábia, um
magnífico garanhão negro que Daniel admirava fazia meses.
Tudo o que Daniel teria de fazer para ganhar a aposta seria roubar um beijo de
Margaret, prima de Harriet, antes da meia-noite do dia seguinte. Um beijo apenas, e Daniel
seria o novo dono de Veludo Negro.
O brandy falou por ele, e Daniel acabou por concordar com a aposta. Assinou seu
nome nela, pois Frith insistiu em que tudo fosse feito de forma correta, no papel.
E assim, na manhã seguinte, ainda com dor de cabeça e náuseas, e bebendo apenas
chá, Daniel recebeu o papel que assinou e que continha os termos do combinado feito
durante a carraspana.
Lendo tudo, horrorizado, notou que havia um parágrafo dizendo que a aposta
deveria ser mantida em absoluto sigilo. Ninguém, além de seus dois amigos do peito e
Frith, sabiam daquilo, nem deveria saber, ou Daniel seria obrigado a abrir mão de sua
propriedade de família.
Desesperado, ele procurou por Frith e pediu-lhe para voltar atrás, por Harriet e
porque se achara bêbado demais ao assiná-lo. Imaginara que Frith iria rir e esquecer tudo e,
como cavalheiro, compreender que, não fosse pelo álcool em excesso, Daniel jamais teria
concordado com tamanho absurdo.
Mas Frith recusou-se a ouvi-lo, e insistiu, dizendo que Harriet não se importaria
com um simples beijo, ainda mais com a reputação de Daniel.
Só então Daniel começou a desconfiar do caráter de Frith. E convenceu-se por
inteiro quando, depois de pedir, implorar, ainda não conseguiu convencer o barão. Por fim,
Frith mostrou-se impaciente e disse que, como verdadeiro cavalheiro, após ter aceitado
aquela aposta, devia ir até o fim, ou, arrependendo-se, pagar com a propriedade que fora de
seus ancestrais.
Daniel chegou a pensar em abrir mão da propriedade, mas ela estava com os
Connought por sete gerações. Era grande, produtiva, muito melhor do que a do barão.
Costumava ser usada, inclusive, para a caça, tão extensa era. Se tivesse de considerar
apenas a si mesmo, Daniel não hesitaria em cedê-la a Frith. Não queria trair Harriet. Não
tinha intenção de ir até o fim com aquele descalabro.
Contudo, não podia trair a memória de seu pai e de seu avô. Além do mais, era seu
dever manter suas terras e pensar nos herdeiros que teria no futuro.
Assim, resignado, acabou imaginando que um beijo rápido, sem conseqüências,
poderia pôr fim a seu tormento. Conseguiria, até, fazer com que Margaret imaginasse
aquele beijinho rápido como uma espécie de voto de sorte para o futuro casamento da
prima.
Fosse como fosse, sua decisão era a de manter o beijo no nível mais inocente
possível. Conhecia Margaret havia anos, pois a propriedade da família dela, Shalham Park,
fazia divisa com a sua, ao sul.
O grande problema veio quando, ao tocar de leve os lábios de Margaret, ela o
surpreendeu, passando os braços por seu pescoço e correspondendo com ardor. Até aquele
momento, Daniel nunca compreendera por que Margaret agira assim. A não ser que, como
Harriet comentara naquela manhã, estivesse apaixonada por ele.
No entanto, depois do beijo, Margaret ficou tão corada quanto um tomate. Depois,
deu uma risada tensa e falou que imaginara que tudo não passava de uma grande
brincadeira. Só naquele momento os dois perceberam que a srta. Arabella Orlestone
permanecia a certa distância, também no jardim, boquiaberta, depois de ver tudo o que se
passara.
Daniel pensara em pedir a Margaret que nada dissesse sobre o ocorrido, mas isso de
nada adiantaria quando tinham uma testemunha ocular. E tudo se transformou bem
depressa num terrível escândalo. Ele pediu a Margaret que o desculpasse, e ela fez o
mesmo.
– Eu não devia ter pensado tanto na propriedade. – Daniel comentou, aborrecido.
– Como assim?
– Não, nada, nada. Droga! Que grande tolo eu fui!
– Não ama Harriet?
– Harriet? Minha querida Margaret, eu a amo como um louco!
– Mas é claro que sim... E não se preocupe. Vou contar tudo a Harriet. Direi que
você me pediu um beijo inocente, para dar-lhe sorte em seu casamento. Espero que
Arabella não tenha corrido para contar tudo primeiro à minha prima, mas ela não é o
protótipo da discrição, você sabe.
E ali Daniel ficou, vendo Margaret correr de volta à casa, sentindo um aperto
terrível no peito, uma sensação de medo e angústia que deixou seus sentidos abalados.
E só pôde murmurar:
– Meu Deus, o que foi que eu fiz?
E afastou-se dali, pretendendo caminhar um pouco e pensar muito no que poderia
dizer para explicar tudo a Harriet.
Quando, por fim, retornou a Ruckings, ficou aturdido ao descobrir que não só
Harriet se fora da propriedade, decidindo voltar com Margaret para Shalham Park, como
também deixara para ele uma breve carta, desfazendo seu compromisso.
Todas as tentativas para reconquistá-la depois falharam. E Frith mostrava-se
satisfeito com isso. Harriet estava certa de que, só pelo fato de Daniel ter beijado outra
moça horas depois de ficar noivo dela, isso provava que não tinha caráter algum, que não
passava de um grande cretino. Desde então, não se passara um único dia sem que Daniel
desejasse entregar a propriedade descrita na aposta a Frith, para que ele pudesse liberá-lo
de sua palavra e, assim, conseguisse explicar a Harriet tudo o que estava por trás daquele
beijo malfadado.
No entanto, algo em seu peito o mantinha tão irascível em relação a Harriet. Era
como se não conseguisse confiar numa mulher que não era capaz de perdoá-lo, mesmo
tendo ele feito de tudo para convencê-la de que fora um estúpido e se arrependera.
E, sete anos passados, ao contemplar os acontecimentos que o tinham assombrado
desde aquela época, Daniel ainda não chegava a uma conclusão satisfatória. Harriet já
devia ter se casado, como dissera. Assim, ele não mais teria o direito de deixar-se
consumir, sonhando com ela.
Frith, por sua vez, após três dias daquele rompimento, viera entregar-lhe o garanhão
e mostrara-se muito feliz, mesmo com a perda. E Daniel passara a entender tudo. Nada
percebera antes porque seu modo de agir sempre fora aberto, limpo. Não tinha o costume
de usar de tramas e subterfúgios para manipular as pessoas e alcançar seus intentos. Assim,
não vira que estava sendo vítima de uma sórdida armação.
Frith orquestrara seu plano à perfeição. Diante de um jovem honrado e muito
apaixonado, bastara-lhe forçar um pouco mais a bebedeira e depois levá-lo a um acordo do
qual mal se lembraria no dia seguinte, que destruiria seu noivado, abrindo caminho para o
barão.
Tudo dera certo, com exceção de um detalhe: Harriet não se atirara nos braços de
Frith depois de romper com Daniel. E ainda não aceitara o pedido de casamento de Frith.
Pelo menos nesse aspecto, Daniel podia sentir-se satisfeito.
Tornou a olhar para a mesa de bilhar, ao redor da qual Charles acabava de fazer
uma careta.
– Mais uma partida? – Laurence ficou contente com a nova vitória.
– Claro que sim! Este giz é especial. Comprei de um sujeito chamado Carr, que
jurou que vai melhorar meu jogo.
– É mesmo? Como?
– Não sei, Laurence. Acho que ele amacia a ponta do taco melhor que os outros.
Acha que pode funcionar?
– Por que não tenta, Charles? Tem usado o giz daqui até agora. Vai ver esse seu
especial tem algum poder oculto. Afinal, nada de pior poderia lhe acontecer, não é? Já
perdeu todas, mesmo.
– É isso. Muito bem, vejamos o que de tão interessante tem este giz! – Mirou o taco
e desferiu o próximo golpe. De fato, a bola que almejava caiu na caçapa, fazendo-o
gargalhar, feliz: – Nossa! Que beleza!
– Nossa, vou querer desse giz também! – Laurence estendeu-lhe a mão.
Charles esquivou-se, rápido.
– De jeito nenhum! Pelo menos, não até que eu tenha recuperado meu dinheiro.
– Está bem. – Laurence fitou Daniel. – Ainda pensativo, meu amigo? Sabe,
enquanto esteve olhando pela janela, uma idéia me ocorreu. Por que não se vinga de
Harriet por tudo o que ela lhe fez por causa daquele beijo? Talvez assim você consiga se
ver livre dela, dessa espécie de prisão em que ela o mantém.
Daniel deu de ombros. O tema o incomodava ainda, muito embora ele se renovasse
a cada verão, quando Harriet vinha passar o mês de julho em casa das primas. Por algum
motivo, talvez porque as mesmas pessoas estivessem juntas ano após ano, a tensão crescia,
como acontecera pela manhã.
– Vingança? Não acha que Harriet está certa em me condenar? Afinal, aos olhos
dela, tudo o que fiz foi mostrar-lhe que não a amava de fato.
– Pelo amor de Deus! Você quase virou padre por causa dela! Que outra prova uma
garota poderia ter dos sentimentos de um homem? Harriet já deveria tê-lo perdoado, lhe
dado uma segunda chance. Olhe, tenho ponderado muito sobre isso, sabia? E acho que
deve se vingar da teimosia dela. Só assim conseguir a paz de espírito para seguir avante,
casar-se com outra, ter uma dúzia de filhos e ser feliz.
Daniel deu risada.
– E pensar que quem está me dizendo isso é um solteiro convicto!
– Eu não me importaria em me casar, se encontrasse a mulher certa.
Charles e Daniel riram diante da afirmação do amigo, ainda mais porque sabiam
que ele amava Margaret desde sempre.
O jogo continuou, com mais algumas boas tacadas de Charles, e Daniel conjeturava
sobre o que Laurence sugerira. Talvez o amigo tivesse razão, sim.
– É possível que esteja certo, Laurence. Tem alguma sugestão para mim?
Charles preparou-se para uma jogada final, e Laurence, mesmo concentrado na
atitude do parceiro, dirigiu-se a Daniel:
– O que acha de uma nova aposta, já que todos nós gostamos tanto de fazê-las?
Uma na qual seu objetivo seja reconquistar o coração de Harriet, digamos dentro de sete
dias. Não com o propósito de se casar com ela, lógico, mas só para provar a verdade do
que todos acreditam ser os sentimentos dela em relação a você. Depois, poderá mandá-la
para o inferno, assim que tiver certeza de que ela o ama.
– E que prova seria aceita?
– Vejamos... Que ela aceitasse um pedido de casamento seu, caso você pensasse em
fazê-lo.
Por alguma razão, aquilo agradou Daniel de imediato.
– Sei, sei. E se eu tivesse sucesso, o que ganharia? O que pretende me oferecer?
Charles, calado, preparava ainda seu último lance.
– Meu caro amigo, se você conseguir, prometo que eu mesmo pediria a mão de
Margaret.
As bolas bateram sobre a mesa verde.
– Mas que grande droga! – Charles gritou. – Você me fez perder a jogada! Não
pode estar falando a sério! Pediria Margaret em casamento? – Encarava Laurence,
incrédulo.
– Estaria disposto a apostar isso? – Daniel insistiu, surpreso.
Laurence respirou fundo e, olhando fixo para a mesa de bilhar, respondeu, muito
sério:
– Estaria, sim. Deus sabe que eu deveria ter tido coragem de fazê-lo nesses anos
todos.
– Isso é o que eu chamo de surpresa!
– Concordo, Daniel. Talvez eu tenha oferecido minha parte na aposta porque
imagino que você não conseguirá nada com Harriet.
Daniel meneou a cabeça, sorridente. Laurence sabia apostar como ninguém.
– O que espera de mim, caso eu perca?
Laurence apoiou o taco no chão. De soslaio, via que Charles empurrava devagar
uma das bolas para atrapalhar sua tacada. O amigo gostava de trapacear, mas apenas no
bilhar.
– Charles! – repreendeu-o, fazendo com que o outro tivesse um sobressalto.
– Ei, você tem olhos na nuca! – reclamou, amuado.
– Não preciso ver quando faz algo de errado.
– Está bem.
– Bem, Daniel, nós dois já deveríamos estar casados. Temos propriedades e bens
para deixar para nossos herdeiros. Margaret será ótima para mim, se me aceitar. Mas, se
não conseguir convencer Harriet a se casar com você, sugiro isso como condição para
nossa aposta: você terá de propor casamento a Arabella. Aposto que ela se casaria sem
pestanejar. E será tão boa quanto qualquer outra para ocupar o lugar da futura condessa
Connought.
– Laurence, essa aposta é a mais absurda que já o ouvi fazer, meu amigo!
– Por quê? Arabella não é feia, é aceitável. Será uma boa esposa. Deixemos o
acordo seguir e ver aonde o destino nos levará. Estamos sozinhos, precisamos de esposas, e
poderá ser divertido. Além do mais, se você vencer a aposta, nem terá de se casar.
– E quanto a Harriet? Disse que tenho de pedir a mão dela.
– Não, não. A beleza do que estou propondo é o seguinte: eu não falei que terá de
desposá-la, apenas fazê-la dizer que o aceitaria se lhe propusesse casamento. Sua
recompensa será rir diante dela enquanto, ao mesmo tempo, me verá humilhado pedindo a
Margaret que se case comigo. Imagino que a idéia seja bem tentadora, não?
– De fato. – Daniel sorria, sentindo um conhecido aperto de excitação no peito,
diante da aventura.
Haveria algum inglês que não gostasse de uma boa aposta, imaginou.
Bem afastado da mesa, para não levantar suspeitas no amigo, Charles comentou:
– Não vai dar certo. O coração de Harriet é frio como uma barra de gelo.
– Talvez tenha razão, Charles. – Laurence coçou o queixo. – Não podemos esperar
que nosso amigo faça um milagre, não é?
– Estão tentando me manipular de forma bizarra – Daniel observou, sorrindo.
– Mesmo? Ora, e por que não? – Laurence rebateu.
Uma semana para conseguir seduzi-la, convencê-la. Daria certo? Como saber, dada
a teimosia de Harriet? Mas o fato era que Daniel nunca antes se propusera, com abnegação,
a fazê-lo. E tinha de confessar que se animara com a sugestão. Conhecera uma vida livre
anos antes, e sabia que havia certa arte na sedução de uma mulher, e tinha habilidade para
tanto.
– Muito bem – disse, por fim. – Concordo. Daqui a uma semana deverei fazer com
que Harriet diga que aceitaria casar-se comigo, caso eu a pedisse. Ali, Charles, coloque
essa bola de volta na mesa!
Charles grunhiu, flagrado, e quando os dois amigos o encararam, recolocou a bola
em seu lugar correto. Em seguida, passou seu giz mágico mais uma vez na ponta do taco.
Laurence e Daniel deram-se as mãos, para selar o pacto.
– Tem até a meia-noite da próxima sexta-feira, Daniel.
– Fechado!
Charles fez sua jogada e, depois de um berro eufórico, avisou:
– Olhe só, Laurence! Você me deve minhas dez libras!
– Cinco! Temos jogado a cinco libras por partida!
– Ah, está bem.
Assim, por mais uma hora, os três continuaram se divertindo. E quando perdeu pela
terceira vez para Laurence, Daniel começou a compreender a loucura que acabara de
cometer. Como conseguiria fazer com que Harriet concordasse em se casar com ele dentro
de uma semana?
– Quase esqueci! – Laurence parecia ter lido seus pensamentos. – Sabe quem está
vindo para Kent, para se hospedar na Taverna Bell?
– Não. Quem?
– Frith.
Daniel olhou para o amigo, abismado.
– Sabia disso o tempo todo e me fez concordar com a aposta?
– Ah, mas seria de estranhar se ele não parecesse, meu caro! Além do mais, sei bem
que você adora um desafio. Será muito interessante ver com que facilidade consegue tirar
Harriet de perto daquele sujeito.
Mesmo querendo dar uns tapas no amigo, Daniel teve de contentar-se em vencê-lo
pelo menos uma vez no bilhar.
Capítulo III

– Firth? Mas tão cedo? – Harriet estava ainda muito irritada, mas a novidade a
deixava mais calma.
– Sim. – Margaret deu mais uma longa pincelada na tela que pintava. – Ele veio até
aqui enquanto você caminhava pelo pomar, mas, como tinha um compromisso em Bell,
não pôde esperar por sua volta.
Jane, que regava um vaso próximo, entrou na conversa:
– Daniel também esteve aqui. Perguntou por você e, quando lhe dissemos que fora
ao pomar, afirmou que iria encontrá-la. Foi o que fez, não? – Sua expressão era de pura
inocência, mas Harriet não se deixou enganar.
– É, ele foi atrás de mim. – Tirando as luvas, aproximou-se de Margaret.
– Falou com ele? – sua prima quis saber, apoiando o pincel na paleta.
– Sim.
– Você me parece mais corada do que o normal... Esqueceu-se de levar o guarda-
sol?
– Pare com isso, Margaret!
– E vejo que está brava, também! Deve mesmo ter falado com Daniel. – Margaret
voltou a dar atenção ao que fazia.
Harriet olhou para a pintura e franziu a testa.
– Mas o que é isso? Um camelo? Ou um elefante?
– É isso o que vê? Um elefante? Pois saiba que estou pintando os recifes! Será que
não tem visão artística nenhuma, Harriet?
– Bem, agora que me disse do que se trata, acho que consigo ver um pouco, sim.
– São os recifes num dia nublado, na realidade. – Margaret olhava com orgulho
para sua obra. – Sabe, nunca fui muito boa com as tintas, e nem sei por que continuo
tentando pintar, mas acho que não está tão ruim assim.
– Continua porque lhe dá prazer, ora! – Harriet tocou o ombro dela com carinho.
Eram, além de primas, muito boas amigas. No entanto, as duas eram diferentes por
demais. Margaret tinha cabelos ruivos, encaracolados, brilhantes. Os de Harriet eram
castanho-claros, sedosos, macios. Quanto aos olhos, os de Margaret eram muito azuis, e os
de Harriet, castanho-escuros. O que tinham em comum era a beleza e a suavidade da pele
claríssima.
E a maior diferença entre ambas estava no temperamento.
Margaret era bem mais reservada, discreta.
– Poderiam parar de falar dos dotes artísticos de Margaret? – Jane protestou. –
Quero saber o que você e Daniel conversaram, Harriet. Ele parecia tão ansioso por lhe
falar!
Jane deixou de lado o jarro de água e encarou Harriet com seus intensos olhos
azuis. Sua aparência era de fragilidade e doçura. O traço mais marcante em sua
personalidade era o otimismo.
– Já que quer tanto saber, ele me beijou.
A revelação de Harriet espantou as moças.
– Oh, que maravilha! – Jane bateu palmas.
Margaret fitou Harriet.
– Ele a beijou?
– Sim. Fiquei atônita e...
– Encantada – Margaret sugeriu, maliciosa.
– Não, furiosa! Por que não ficaria, afinal?
Margaret e Jane entreolharam-se, cúmplices.
– Porque não há um homem mais bonito do que Daniel em todo o condado, ora! –
Jane sorria. – Ah, como eu gostaria de ser beijada por Daniel.
– Mas que coisa mais escandalosa para se dizer!
– Bobagem, Harriet. Todas as garotas querem ser beijadas. Mas, diga-me, você
gostou?
Harriet sentiu o rosto se aquecer de repente. Lembrava-se muito bem da delícia dos
beijos dele. E, sem querer que nenhuma das duas percebessem o que se passava em seu
íntimo, falou depressa:
– Daniel foi muito grosseiro, beijando-me quando eu lhe dizia para que não o
fizesse. Nós... discutimos. – Sem que esperasse, lágrimas vieram-lhe aos olhos..
Margaret se ergueu e foi abraçá-la, enquanto Jane mordia o lábio, consternada.
– Eu disse coisas horríveis a ele... – Harriet lamentava-se. – Nem podem imaginar!
Reconheço que tenho um temperamento terrível, e Daniel consegue me tirar do sério. Mas
hoje, acho que ele passou dos limites.
– Por tê-la beijado?
– Não, Jane. É algo bem pior. Daniel fez uma aposta com Laurence e Charles.
Disse-lhes que conseguiria me beijar antes do meio-dia!
As duas entreabriram os lábios, aturdidas.
– Mas esses homens são uns monstros! Será que não têm noção do que é
apropriado?
– Não, Margaret, não têm! São todos uns grosseirões!
– A meu ver, são criaturas muito estranhas – Jane opinou.
– São, sim. – Harriet meneou a cabeça.
– E me parece também que nós, mulheres, nunca deixamos muito claro o que
esperamos de um cavalheiro. Assim, quando têm oportunidade, eles se comportam como
cretinos, sem noção alguma do que fazem. E desse modo os casamentos acabam sendo tão
monótonos, tão estranhos...
– Ora, está falando como uma filósofa. Mas acho que tem razão. Sempre achei que
tem muito bom senso. Desse modo, o que sugere que Harriet faça em relação a Daniel?
– Creio que lorde Connought é um cavalheiro bem diferente. É inteligente, e não
acredito que pudesse ser levado a fazer algo de errado por más influências.
– Sabe, ainda acho que você deveria ter se casado com ele há alguns anos. –
Margaret tornou a pegar seu pincel.
– Sabe muito bem que eu não poderia fazê-lo. Não depois de ele ter nos usado de
forma tão... Cruel.
– Não acha estranho que nenhuma de nós tenha se casado, nem mesmo ficado
noiva, nesses sete anos? Estou começando a ficar preocupada com isso. Jane ainda está em
idade de escolher um marido, mas nós....
– Não diga bobagens! – Jane protestou, voltando a regar as plantas do salão. – Uma
mulher não deve deixar de pensar em se casar, a não ser que já não possa ter filhos. Minha
mãe mesma comentou, ontem à noite, que vocês duas estão em uma idade excelente para
se casarem. Na verdade, imagino que ela estava querendo dizer que vão passar logo da
idade, mas... Bem, vocês sabem como mamãe é...
As três riram, lembrando-se da altiva e autoritária lady Eave.
– Sabem, acabo de ter uma idéia. – Jane deixou o jarro sobre uma mesa. – É um
tanto ridícula e frívola, mas...
– Diga-nos logo! Você sempre tem idéias interessantes, Jane.
– Bem – disse ela, aproximando-se de Margaret. – Sempre achei, Harriet, que você
devia ter se casado com Daniel, e espero que não repita mais uma vez o quanto ele foi vil e
canalha por haver beijado Margaret. E Margaret devia ter se casado com Laurence. Eles
são bem-nascidos, bonitos, elegantes. Além do mais, Margaret, com a cor de seus cabelos e
dos dele, que lindos anjinhos ruivos vocês produziriam!
– Que conversa absurda!
– Calma, deixe-me concluir. Quero propor uma aposta, como os rapazes vivem
fazendo, prestem atenção. É um plano no qual, se Harriet falhar, você não terá de se casar
com Laurence, mas ela será obrigada a desposar Daniel.
– Do que você está falando?! Por que eu não deveria me casar com Laurence? Isso
não faz sentido!
– Estou falando de uma aposta entre você, Margaret, e Harriet, na qual uma das
duas teria de desposar, ou pelo menos estar noiva antes do fim do verão.
– Parece-me, Jane, que, seja lá o que for que tem em mente, visa apenas beneficiar
Daniel e um de seus amigos, e não a nós!
– Depende de como vocês encaram a situação, Harriet. Que castigo maior
poderíamos dar a Laurence do que fazê-lo casar-se com Margaret?
Harriet começou a rir, mas Margaret ficou tão irritada diante da possibilidade de te
Laurence por marido que mal conseguia respirar.
– Você deve estar louca, Jane! E não quero saber de mais detalhes dessa sua
estratégia fora de propósito!
– Margaret, se... Digamos... Ao fim de uma semana nossa querida Harriet falhar em
sua tarefa, seja qual for a tarefa que vamos lhe dar, terá de se casar com lorde Connought!
Harriet já não ria.
– É melhor encerrarmos esta conversa por aqui.
Porém, Margaret se interessou.
– Talvez seja interessante ouvir o que Jane tem a dizer, afinal. Prossiga.
– Muito bem, vou colocar em poucas palavras. Haverá uma aposta entre vocês
duas. Os termos são os seguintes: se Harriet falhar, terá de se casar com Daniel. Se tiver
sucesso, Margaret é quem deverá desposar Laurence.
– Duvido que Laurence fosse querer casar-se comigo.
– Pois sou capaz de jurar que ele iria, sim. Não que eu ache que Laurence a ama,
mas não creio que seja avesso à idéia. Bem, mas o que proponho é o seguinte: Harriet
deverá conseguir, no espaço de uma semana, três coisas que pertençam a Daniel. Isso seria
na próxima quarta-feira à meia-noite.
– De que se trata? – Harriet quis saber.
– Deixe-me ver. O relógio do avô dele.
– Jamais conseguirei isso!
– Pode usar dos artifícios que preferir. Poderá devolver-lhe o relógio depois, mas
Daniel não deverá saber que seu propósito era reunir seus pertences, ou a aposta estará
perdida.
Harriet conjeturava. Sabia o quanto Daniel gostava do tal relógio; jamais se
separaria dele. No entanto, começava a arder em seu coração uma chama de excitação e
apego ao perigo que teria de enfrentar. Se fosse muito esperta, iria conseguir.
– O que mais precisarei pegar, Jane?
– Seu chicote de montaria.
Isso seria ainda mais fácil, Harriet decidiu.
– E o que mais?
– Aquele alfinete de gravata de esmeralda que ele possui, que usa em bailes, festas
elegantes, reuniões.
Que complicação! Podia ser que Daniel nem viesse a usar a jóia na semana por vir.
Mas como Jane dissera que ela poderia usar quaisquer artifícios.
Olhou para a prima, indagando:
– O que acha da proposta de Jane, Margaret? Vamos aceita-la ou não?
Margaret ponderou por segundos, e assentiu:
– Aceitemos. Será interessante, mesmo que, ao fim, eu me veja na terrível situação
de ter de me casar com Laurence. Mesmo porque, acho que ele irá gargalhar diante da
sugestão.
– Pode ser, mas seria um grande tolo se o fizesse. – Harriet sorriu-lhe..
– Estamos combinadas, então? Porque, seja qual for o fim dessa aposta, acredito
que serei dama de honra de uma das duas.
Harriet e Margaret riram.
– Muito bem, vamos selar o acordo – Jane prosseguiu.Vamos dar-nos as mãos.
E assim, as três validaram o pacto que acabavam de fazer.

Capítulo IV
Na sexta pela manhã, ainda bem cedo, lorde Connought, diante de seu espelho,
fazia a barba. Pensava na aposta que fizera e no que o levara a aceitá-la.
Meneou a cabeça, inconformado por ter se deixado levar. Como poderia, dentro de
apenas sete dias, amolecer o coração de Harriet e fazê-la dizer que aceitaria um pedido seu
de casamento?
Passou o pincel ensaboado pelo rosto mais uma vez, para uma barba mais bem-
feita. Fosse o que fosse que sentira por ela durante tanto tempo, de nada adiantaram suas
tentativas para que Harriet melhorasse sua opinião a seu respeito.
E agora se metera em outra aposta. Como podia ser bem-sucedido, se falhara tão
miseravelmente no passado? Pegou a navalha, colocando-a num ângulo conhecido, junto à
face.
A tarefa que tinha diante de si parecia-lhe impossível de ser realizada, ainda mais
após o que se passara na véspera, no pomar. Depois das coisas que ela lhe dissera. Pelo
menos, o piquenique em casa de Laurence poderia dar-lhe uma oportunidade para
começar...
Mas o quê, para ser exato?
– Droga! Mil vezes droga!
– O que houve, senhor? – acudiu seu criado particular, entrando apressado no
quarto.
– Nada. Acabei de me cortar.

Harriet observava o tom rosado de seus lábios em seu reflexo. Permanecia ali,
sentada, mirando-se, embora sua criada, Pansy, tivesse terminado de penteá-la fazia mais
de cinco minutos.
Pegou a caixinha com pó-de-arroz e espalhou um pouco sobre o nariz e as faces.
Pensava. Daniel ainda a amaria? Teria ainda sobre ele alguma influência, suficiente para
conseguir tomar-lhe um alfinete de gravata, um relógio de família e um chicote de
montaria?
Lembrou-se dos beijos no pomar e estremeceu. Imaginava se era fato aquela leve
percepção que tivera de que Daniel, por um breve momento, ficara atônito, do mesmo
modo que ela ficara. Talvez Margaret e Jane tivessem razão. Ele ainda poderia estar
apaixonado.
Não importava, todavia. Tomara sua decisão sete anos antes, e não a mudaria.
Tinha uma aposta a vencer, e o piquenique de desse dia forneceria a oportunidade
ideal para começar seu assalto.
Porém, como conseguir aqueles três objetos?
De repente, a caixa de pó caiu sobre seu colo, erguendo uma nuvem perfumada no
ar. Harriet levantou-se depressa, abanando-se e tossindo..
– Pansy! Venha rápido!
A criada apareceu de imediato e, vendo o que se passava, começou a rir. E Harriet
só não deu risada também porque começou a espirrar sem cessar.

Naquela mesma tarde, Harriet estava sentada ao lado de lorde Frith, na bela libré de
propriedade dele, segurando seu guarda-sol com graça e sorrindo. Seguiam para o
piquenique em casa do sr. Douglas, e vinham conversando sobre assuntos amenos.
Harriet assentia para o que Frith dizia, embora não estivesse ouvindo uma só
palavra. Desde que se sentara, sua atenção toda se voltara para o objetivo que se propusera
para aquela tarde: conseguir o relógio de Daniel.
Sabia que ele não estaria usando seu alfinete com a esmeralda, que era reservado
para ocasiões mais formais. Também sabia que não levaria seu chicote, pois seguiria com
Charles Badlesmere, na charrete dele.
O problema era como conseguir o relógio. Podia usar de quaisquer artifícios,
repetia para si mesma.
– Claro, claro – respondeu, percebendo que Frith acabara de lhe fazer uma
pergunta..
Mas ele desviou o olhar da estrada para encará-la e indagar:
– Minha querida srta. Godwyne, não ouviu o que eu dizia?
– Ouvi sim.
– Nesse caso, poderia dizer-me sobre o que conversávamos?
– Sua propriedade em Lincolnshire?
– Sim, mas o quê, em particular?
Harriet lembrou-se de uma coisa ou outra.
– Os cuidados que tem com ela? Sua... Governanta?
– E o que sobre ela?
– Que precisa de uma boa ajudante já há algum tempo.
– Não, não.
– O senhor estaria falando de casamento outra vez?
– De fato, minha cara. Mas você acabou com minhas esperanças.
– Peço-lhe desculpas. Não foi minha intenção. Mas é que tenho de fazer algo muito
importante ainda hoje, e não sei como conseguir o que almejo.
– Então, devo ter escolhido um péssimo momento.
Harriet encarou-o. Frith era elegante, bonito, alto. Seus olhos eram tão escuros que,
mesmo sendo castanhos, pareciam pretos. Era agradável, charmoso, de bom temperamento,
muito paciente. E seu pretendente havia anos.
E, nesse longo período, dedicara-se apenas a ela. Talvez, pensava Harriet, fosse
bom aceitar-lhe o pedido de casamento, que sempre se repetia. Já estava com vinte e cinco
anos, idade mais do que ideal para o enlace. Afinal, a maioria das moças se casava bem
antes disso. E, se vencesse aquela aposta, até mesmo Margaret estaria casada, e ela não.
Olhou para Frith uma vez mais. Poderia casar-se com ele? Viu-o sorrir.
– Sabe de uma coisa, srta. Godwyne? Está me parecendo um coelhinho assustado.
Posso saber por quê? Não me diga que a idéia de se tornar minha esposa provocou-lhe tal
expressão.
– Temo que sim.
– Oh! Obrigado pela franqueza.
– Não, não! Peço desculpas! Se lhe serve de algum consolo, eu estava pensando em
outras coisas, e não no senhor.
– Quer dizer que posso ainda ter esperanças? Bem, bem, não precisa responder. Já
tive minha porção de rejeição por hoje. Por enquanto, vamos apenas nos divertir no
piquenique.
Harriet ficou mais aliviada. Lorde Frith era muito gentil.
– Bem, pelo menos, agora não está mais me parecendo assustada. Veja! Lá está
Harry Eave, com sua nova libré, correndo como um louco e deixando sua pobre irmã
desesperada.
Estavam se aproximando de um cruzamento, e o outro veículo vinha veloz pela
estrada vizinha. Harriet teve de rir, ouvindo os gritos de Jane, que se agarrava ao banco da
libré:
– Pare, Harry, ou vamos colidir com lorde Frith e Harriet!
– Bobagem! – E Harry continuou a instigar os animais.
Frith puxou as rédeas, refreando seus cavalos. Harry passou pelo cruzamento em
alta velocidade, e a última imagem que Frith e Harriet tiveram dos dois irmãos, que se
distanciaram em segundos, foi o de Jane tirando o chapéu e batendo com ele na cabeça do
irmão, furiosa.
Rindo, Frith fez os animais retomarem a marcha. Harriet também ria, e decidiu
esquecer-se de Daniel e passar um dia feliz. Afinal, um piquenique era sempre muito
divertido. Quem poderia se importunar tendo amigos ao redor, boa comida e um delicioso
dia de verão?

Capítulo V
– Pelo que me consta, há uma aposta sendo feita aqui, neste exato dia – disse o sr.
Douglas, deixando Harriet alarmada.
Ela o encarou, vendo o brilho malicioso em seus olhos muito azuis. Ele lhe tinha
oferecido seu braço, já que mostrava sem reservas sua preferência por Harriet desde que se
tinham conhecido, quando ela contava apenas dezesseis anos. E agora a conduzia até a sala
de jogos, de onde queria mostrar-lhe o movimento das abelhas nas colméias que cultivava.
O sr. Douglas era um exemplo de inglês: um cavalheiro, um excelente cavaleiro e
adorador dos detalhes da jardinagem.
– Uma aposta? – Harriet se fingiu de inocente.
E, quando chegaram junto à imensa janela, olhou para as colméias, tentando desviar
a atenção dele.
– Como deve saber, minha querida, sua prima não consegue guardar um segredo.
Pelo menos, não de mim.
– Isso porque o senhor é muito perspicaz e sabe fazê-la falar mais do que deveria...
– Harriet sorriu.
– Ah, isso é verdade! – concordou o sr. Douglas sem falsa modéstia.
– E o senhor sabe dos detalhes da aposta?
– Claro que sim. Na verdade, sei sobre as duas.
– Duas? O que quer dizer? Seu filho e os amigos estão preparando alguma
traquinagem?
– Talvez. – Parecia muito satisfeito consigo mesmo nesse momento.
– Como sempre, posso ver que pretende apenas me atormentar, senhor.
– Como pode dizer algo tão cruel, minha cara srta. Godwyne?
Harriet o fitou, sorrindo largo.
– Olhe, não adianta tentar me enganar, porque posso ver a verdade em seu
semblante. O senhor é um traquinas! Não sei como sua esposa permite que fique
torturando senhoritas inocentes como eu!
O sr. Douglas soltou uma gargalhada satisfeita, alegre. Harriet conhecia-o bem.
Sabia que, mesmo tendo escutado o que a língua solta de Margaret lhe revelara, manter-se-
ia calado, tanto quanto em relação à outra aposta que mencionara. Ainda mais porque seu
silêncio o divertiria muito.
– Veja, minha cara. Aquele não seria Frith? Imaginei que ele tivesse chegado com
você...
De fato, Frith encaminhava-se pelo jardim até o local onde o piquenique estava
sendo realizado.
– Ele me trouxe, mas me deixou diante da porta principal, dizendo que queria ver
alguns de seus animais que estão em seus estábulos, sr. Douglas.
O anfitrião esboçou um sorriso, mas sem muito humor agora.
Resmungou algo que Harriet não compreendeu.
Em seguida, acrescentou, de forma mais clara:
– Esse rapaz não me deixa muito à vontade.
Sua opinião parecia ser partilhada por algumas abelhas, que atacaram Frith,
fazendo-o apressar o passo para escapar de possíveis ferroadas.
– Suas abelhas estão muito ocupadas este ano, fazendo o melhor mel da região? –
Harriet desejava deixar de lado a tensão que sentiu no ar.
– Ah, sim, estão, sim! – O aborrecimento passageiro de Eliot Douglas deu lugar a
um novo entusiasmo.
Nos jardins diante deles podiam-se ver as colméias bem-tratadas em meio a
inúmeras flores. A propriedade não era tão grande e luxuosa quanto muitas das que havia
naquele vale, mas Harriet achava-a muito linda e plena de um aconchego difícil de se
encontrar.
– Ali vem Daniel. Repare, Harriet, que ele parece andar como um soldado. Sempre
imaginei que invejasse os irmãos, visto que os três serviram em Waterloo. São todos da
mesma linhagem, suponho.
– Todos muito parecidos.
– Sim. E todos casados, com exceção dele.
– Mas Daniel está à espera da garota certa! E ouso dizer que ela logo aparecerá.
Diria que, ainda este verão, Daniel já chegou à idade em que um homem precisa de uma
companheira. Pode ser que nem saiba disso ainda, mas já percebi seu jeito.
Harriet viu Daniel passar pelo mesmo local por onde Frith seguira havia pouco.
Pensava no que dissera Eliot. Um homem chegaria, de fato, a uma idade em que desejaria
se casar mais do que tudo? Notou que muitas abelhas voavam ao redor dele, mas Daniel as
ignorou, como qualquer homem sensato faria. Mas parou de repente e voltou-se,
chamando:
– Charles! Onde você havia se metido? – E retomou por onde viera.
Harriet continuou a observá-lo. Viu-o tirar o chapéu e passar a mão pelos cabelos
fartos. Notou-lhe, como tantas vezes antes, os intensos olhos azuis, as feições severas,
inteligentes. E todo ele era muito, muito mais interessante do que os outros rapazes que
Harriet conhecia. Sempre apreciara seu porte atlético, sua estatura, seu jeito especial de se
mover, de ser.
Ouvia o sr. Douglas falando, mas não sabia do que se tratava, tão envolta se via em
conjecturas. Lembrava-se apenas de que ele falara que Daniel queria uma esposa.
De repente, sentiu seu peito se apertar. Sorriu de leve, lembrando-se dos beijos que
Daniel lhe dera na véspera. Podia ainda sentir a força dos braços dele ao seu redor e a
segurança que tal abraço lhe conferira. E seu coração acelerou.
Quando Daniel e Charles se reuniram no jardim, os dois continuaram seguindo de
volta aos estábulos. E a risada do sr. Douglas se intensificou.
– Do que o senhor está rindo? – Harriet quis saber.
– De você. – Ofereceu-lhe o braço de novo. – E agora quero vê-la colocar seu arado
em movimento e revolver a terra. Tem olhos observadores, minha cara, e isso me agrada
muito.
Harriet sabia que o sr. Douglas se referia à aposta.
– Era apenas disso que ria?
– Caríssima, lhe direi apenas uma coisa: se permitir que alguma outra moça se case
com Daniel, vou considerá-la para sempre como a criatura mais tola que conheço!

Seguindo Charles até depois dos estábulos, Daniel por fim pôde constatar que o
evento que seu amigo lhe prometera iria dar-lhe muita diversão. Não conseguiu deixar de
rir ao ver Harry Eave quase batendo em alguns dos arbustos mais próximos, já que tão mal
dirigia sua libré. Querendo mostrar a Nancy Douglas o quanto era hábil no manejo do
veículo, ele conseguira enganchar o chicote num ramo mais alto e agora estava sendo
arrastado.
Rindo muito, Charles comentava:
– Bem, pelo menos o palhaço teve o bom senso de soltar o chicote antes de cair!
– Onde está Nancy?
– Ela, sabendo que veria alguma estultice, voltou para dentro de casa com Alison e
Sophia, embora as duas irmãs de Harry estivessem rindo muito do desastre que ele quase
provocou para si mesmo. Sabe de uma coisa? Acho que Alison está a cada dia mais bonita.
Um dia, será tão linda quanto Jane.
Daniel retornou aos jardins com o amigo, perguntando:
– Está se interessando por Alison?
– Meu Deus! De modo algum! Tenho apenas notado que muitas moças estão
ficando mais e mais belas. Na realidade, encontramo-nos cercados de beldades, Daniel.
Não vejo mulheres assim tão lindas desde que Harriet chegou, sete anos atrás, e nos deixou
pasmos com sua formosura. Lembra-se de como todos nós ficamos boquiabertos na
primeira vez em que a vimos?
– Se me lembro...
Daniel recordava, e muito bem, aquele dia de julho, quente, agradável, em que
Harriet usava um lindo vestido cor-de-rosa que evidenciava seus cabelos e seu rosto
maravilhoso.
Seus pensamentos foram interrompidos por uma voz feminina. Avistou Horatia
Douglas em uma janela chamando por Alison. Mais linda do que nunca, a jovem, de belos
olhos azuis e cabelos cor de ouro, sorriu para eles.
– Está vendo o que digo? – Charles suspirou. – As duas irmãs de Laurence estão
lindíssimas!
– É verdade. E por falar nisso, Arabella já chegou. Ou terá mudado seus planos de
passar o mês com Horatia?
– Por quê? Está interessado nela?
– Sabe muito bem que não. Mas imaginei se uma dama que poderia, talvez, vir a
tomar-se minha esposa já teria chegado a Kent.
– Ainda não, meu amigo. Laurence disse que ela deve estar por chegar. Aposto que
vai tentar fazer uma chegada triunfal.
– Não há dúvidas quanto a isso.
Arabella, sendo muito bonita, era criatura de uma vaidade absoluta, que adorava
aparecer. Em qualquer outra moça, tal atitude poderia até afastar as pessoas, mas Arabella
era alegre, cheia de vida, o que suplantava seus modos esnobes.
Charles e Daniel continuaram seguindo pelos jardins e colméias até o lago. Foi lá
que ele avistou Harriet acabando de soltar uma flecha contra um alvo colocado a boa
distância. Frith, que se achava por perto, sorria, cumprimentando-a pela proeza, mas ela se
mostrava atenta apenas ao local onde a flecha se fixara.
Analisando-a, Daniel notou, mais uma vez, que havia, e sempre houvera, uma
determinação inata em Harriet, como se ela sempre estivesse disposta a conseguir um
objetivo que almejava.
Era óbvio, por exemplo, que não gostara do resultado de sua flechada. E Daniel
sorriu de leve, vendo Frith elogiá-la tanto, em vão. O pobre rapaz não sabia o quanto
Harriet apreciava atingir seus alvos bem no centro.
E, como se pudesse ler seus pensamentos, ela se virou, ainda com o arco em mãos.
Olhou para Daniel com seriedade e assentiu de leve num cumprimento discreto.
Daniel curvou-se, mas ela se concentrou em seu esporte favorito outra vez. O sol se
achava por trás dela, e Daniel pôde ver-lhe os contornos do corpo bem delineados no
tecido fino do vestido. E a visão logo acendeu seu desejo, como sempre acontecia quando
se tratava de Harriet. Os beijos do dia anterior voltaram-lhe à memória, para atiçá-lo ainda
mais, pois percebera muito bem o quanto ela se deliciara com cada instante em que estivera
presa em seus braços.
– Harriet sempre ficou bem nesse tom de azul, não? – Charles comentou, logo a seu
lado. – Não me canso de admirar a beleza de Harriet.
– Parece-me que você está emocionado demais com a beleza de todas as mulheres
esta tarde, meu caro.
– E como não ficar?
– Já que tem tanto interesse em Harriet, por que nunca a cortejou?
– Sabe que não sei? Creio que nunca pensei muito a respeito, mas... Imagino que
jamais nos imaginei como um casal de fato. Ela é muito passional, para mim. Além do
mais, você não me perdoaria se eu a tivesse cortejado, certo?
– Nem tanto. Seria bom se eu me livrasse dela.
– Duvido. – Charles ainda observava Harriet e, quando Margaret se aproximou dela
e de Frith, disse: – Já notou que os cabelos de Margaret parecem rosados ao sol?
– É verdade.
– Posso saber do que estão falando? – Era Laurence quem se aproximava.
– Sobre os cabelos rosados de Margaret – explicou-lhe Daniel.
—Ei! É verdade! Vejam só. Os cabelos dela, ao sol, ficam... cor-de-rosa!
– Pois então. Estará se casando com uma garota de cabelos cor-de-rosa no fim de
agosto, meu amigo.
– Está cheio de graça esta tarde, pelo que vejo, Daniel. Vi como Harriet o olhou há
pouco. Mau começo para quem pretende conseguir alguma aquiescência em relação a um
matrimônio, ainda mais até sexta-feira próxima.
– Jane não devia vestir-se de marrom.
– Por que não, Charles? Essa cor combina com as sardas que ela tem no nariz –
Laurence opinou. – E elas lhe conferem um ar tão alegre, tão jovial, que nenhuma cor
poderia atrapalhar.
– Lady Eave escolhe mal os vestidos que Jane usa.
Nesse aspecto, porém, os três rapazes concordavam. Viraram-se ao mesmo tempo
para ver lady Eave, que se sentara junto à mãe de Laurence, no jardim. E, como não tinha
gosto algum para moda, a senhora usava um enorme chapéu laranja que combinava com o
tom mais escuro de seu vestido. Como tinha tendência a ganhar muito peso, as cores
berrantes de que gostava nunca lhe caíam bem.
– Ela me parece uma abóbora gigante.
– É verdade, Laurence! – Charles ficou boquiaberto.
E, como a senhora em questão lhes fizesse um breve aceno naquele instante, Daniel
forçou um sorriso e respondeu ao cumprimento um tanto sem graça. E tomou a fitar
Harriet.
– Pelo jeito, Frith continua grudado nela – observou, mordaz. – Por isso, terei de
começar minha carga mesmo em presença dele. A não ser que um de vocês me fizesse o
favor de tentar afastá-lo.
Laurence e Charles trocaram um olhar cúmplice.
– Acha que devemos tomar a tarefa mais fácil para ele, Charles?
– Daniel não vai, mesmo, conseguir nada com Harriet, por isso não vejo por que
não dar-lhe uma mãozinha, Laurence. Imagino que Frith não se oporia a uma partida de
bilhar se achasse que poderia ganhar algumas libras.
Daniel meneou a cabeça, vendo os amigos se afastarem para instigar Frith ao jogo.
Mesmo hesitando em abandonar seu posto ao lado de Harriet, o barão acabou cedendo,
quando ela disse:
– Vá jogar um pouco. Acho que conseguirei acertar melhor o alvo sem você me
olhando.
– Obrigado mais uma vez pela franqueza, srta. Godwyne – murmurou.
– Não se ofenda, sim? O que eu quis dizer é que você me distrai, nada mais.

Frith apenas assentiu, diante do sorriso suave que ela lhe dava, e seguiu com os
outros para dentro da casa.
Daniel sentiu que o caminho ficara livre. Não sabia ainda como ganhar a aposta,
mas precisava fazer algo, dar um primeiro passo nesse sentido. Não podia deixar que suas
dúvidas quanto às possibilidades que tinha o desviassem de sua meta.

Capítulo VI
Poucos minutos depois, Daniel se aproximava de Harriet. E ela logo percebeu que
ele tinha algo em mente, embora não soubesse dizer ao certo o quê.
Lembrava-se do que o sr. Eliot Douglas dissera da aposta entre os rapazes, e estava
convencida de que o afastamento de Frith por Charles e Laurence fazia parte dela.
Mas, como também ela vinha planejando uma forma de conseguir pelo menos um
dos artigos estipulados por Jane para cumprir sua parte no acordo que fizera, ficou
satisfeita por vê-lo tão perto, fossem quais fossem seus motivos. De longe, Jane e Margaret
acompanhavam a cena, fazendo-lhe breves sinais, desejando-lhe sucesso, para depois
afastarem-se e experimentar um ponche que a sra. Douglas dizia ser especial.
Daniel olhou para as moças, que se afastavam, e comentou:
– Sabe, Harriet, devia dizer a Jane para não mais vestir-se de marrom.
– Eu já lhe disse, mas lady Eave adora essa cor e insiste para que ela a use.
– É uma pena. Talvez fosse interessante se lady Eave passasse mais tempo com a
sra. Weaver e aprendesse a vestir a filha igual a ela. A propósito, ainda não a vi hoje.
– Ficou em Shalham. Falou que tinha alguns afazeres que não podiam ser adiados.
Mas concordo com você, Lady Eave não tem o menor gosto para roupas. E a pobre Jane
usa marrom apenas para agradá-la. Acha que minha amiga está errada em agir assim?
– Não. Acho até muito devotado de sua parte.
– Jane é uma boa garota. Boa demais, às vezes. E há gente que diz que eu deveria
me esforçar para imitá-la...
Daniel encarou-a, parecendo descrente.
– Eu não diria isso. Você é uma jovem alegre, que diz o que pensa. E há muitos
que, como eu, preferem uma moça espirituosa a uma submissa e sem graça.
Harriet calou-se por instantes, ponderando sobre o que ouvira. Daniel a estaria
elogiando? Fosse como fosse, o momento pareceu-lhe oportuno para começar sua
campanha.
– Parece estar de muito bom humor, hoje.
– Estou, sim. Porém, como deve lembrar, ganhei uma aposta ontem, o que muito
me alegra.
A referência a tê-la beijado poderia ter enfurecido Harriet, mas ela preferiu levar
adiante seu plano.
– Bem, se está assim tão feliz, gostaria de envolver-se num concurso? Sei que se
diz um perito com o arco e a flecha. Gostaria de testar sua habilidade comigo? Quem
vencesse, claro, poderia escolher o que quisesse fazer com o outro.
– E deve achar que já venceu, imagino.
– Evidente!
– Como homem e cavalheiro, suponho que eu não deva recusar. Mas devo avisá-la
que não vai vencer, porque sinto que estou com sorte.
– Também estou. Mas o que vai querer, se ganhar? Tenho uma nota de dez libras
em minha bolsa. Também poderia cortar uma mecha de meus cabelos, ou... – Sorriu.
– Não sei bem aonde quer chegar, mas posso imaginar que esteja se referindo a um
beijo?
Harriet assentiu, sabendo que seria fácil manipulá-lo com algo sensual.
– Já roubou um de mim ontem, como deve recordar. Embora eu não consiga
compreender por que ainda poderia querer outro beijo depois de tantos anos. Meus beijos
não poderiam ter o menor efeito sobre você.
– Homens que desconhecem o sentido da honra continuam beijando sempre.
Harriet encarou-o, irritada, mas tentando controlar-se. Não sabia o que dizer. Daniel
se referia à discussão que haviam tido e, embora querendo muito defender-se, preferiu
nada comentar.
– Lamento, Harriet. Eu não devia ter sido tão grosseiro. Imagino que estivesse
tentando forçá-la a agredir-me com suas palavras outra vez, o que foi de muito mau gosto.
Ainda mais porque está sendo tão civilizada comigo.
– Sempre tento ser civilizada – ela respondeu, por entre os dentes.
– De fato. E é, com certeza. Para ser franco, você jamais foi rude comigo a não ser
que eu fizesse por merecer, e ontem eu, sem dúvida, mereci o que ouvi. Não devia tê-la
provocado. Pode me perdoar?
Daniel pareceu-lhe tão sincero que Harriet pôde apenas assentir.
– Quanto à oferta do beijo, vou aceitá-la. Afinal, seus beijos sempre me afetam
muito.
As últimas palavras dele foram ditas bem junto ao ouvido de Harriet, o que a
arrepiou. E, mesmo tendo Daniel se afastado depressa, sua respiração se acelerou, traindo-
a. Olhou-o nos olhos, sentindo-se, por uma fração de segundo, muito fraca. Mas o tom
jovial dele desanuviou a tensão em que se encontrava.
– E quanto a você? Se vencer, o que irá querer de mim? Posso dar-lhe um beijo
também, se preferir.
Harriet não conseguia deixar de olhá-lo. Era como se a proximidade entre ambos
produzisse um magnetismo fatal, ao qual ela não conseguia escapar. Um outro beijo?
Suspirou.
Quase aquiesceu, esquecendo-se da aposta que fizera. Mas a brisa suave que
soprava a fez arrepiar-se de novo e retomar à realidade. Deu-lhe as costas. Quem sabe, se
não o visse, poderia manter a mente bem clara e raciocinar direito.
No lago, Harry Eave, em pé num pequeno bote, fazia a embarcação balançar, e
Nancy Douglas gritava, apavorada diante da perspectiva de cair dentro d'água e molhar seu
belíssimo vestido.
Harriet riu, mas lembrou-se de que fora bem assim, anos antes, entre ela e Daniel:
uma distração que a capturara por completo. Sucumbira ao poder de sedução dele, e Daniel
logo em seguida beijara Margaret e partira seu coração.
– Seu relógio – disse, por fim, tornando a encará-lo, agora mais fortalecida pelo que
as memórias evocavam. – Sempre o admirei. O que me diz? Pode dispor de seu relógio?
– Meu relógio?
– Ah, tem medo de perder.
– De modo algum, imagine! Muito bem, se é isso o que deseja, meu relógio por um
beijo.
– Está com ele?
Daniel tirou a peça do bolso e apresentou-a. Harriet ficou excitada. Sim, adorava
uma boa aposta, reconheceu.
– Estamos combinados, então?
– Pelo menos, quanto à natureza do que vamos querer, sim. Quanto ao desafio...
Quero algo que prove, de fato, sua habilidade. Poderíamos combinar quatro partidas, o que
me diz? Assim, acumularíamos pontos. O que acha de dez flechas por vez?
Hora após hora. No fim da tarde, depois dos cinco desafios, e só então, haverá um
vencedor.
– Gosto de sua idéia. Ainda mais porque acho que minha habilidade com o arco e
flecha vai melhorando conforme atiro.
– Muito bem. Uma tarde inteira de flechadas. E meu relógio contra seus lábios.
Maravilhoso!
Harriet prendeu a respiração. Na exaltação do momento, esquecera-se de quanto ele
podia ser canalha. Ao mesmo tempo, temia perder o desafio. Daniel a beijaria? Sim, lógico
que o faria. E ela permitiria, porque seria uma questão de honra, de palavra dada.
Enquanto combinavam os pontos a serem marcados a cada rodada, Harriet se deu
conta de como seu relacionamento com Daniel tornou-se mais fácil depois da aposta que
fizera com Margaret e Jane. E mais uma vez lembrou-se de que também ele estava
envolvido numa outra aposta.
Haviam discutido na véspera, e Harriet tinha suas dúvidas quanto à bondade que
poderia esperar de Daniel. Se existia uma outra aposta e ela estava envolvida, a atitude dele
naquele momento poderia ser questionável, mesmo digna de uma repreensão.
Tudo combinado, acertaram que haveria cinco pontos para o centro do alvo, dois
para a região intermediária e um para o círculo mais externo. Uma penalidade seria
cobrada caso o alvo não fosse acertado: a perda de dez pontos. Uma vez a cada hora,
tomariam dos arcos, fariam seus disparos, alternando cinco e cinco, e depois os repetindo
para um total de cinqüenta. Harriet não duvidava de que seus braços e costas, bem como
seus dedos frágeis, logo começariam a doer.
Quando todos ficaram sabendo sobre o desafio, embora o prêmio final fosse
revelado como apenas uma nota de dez libras, o piquenique ficou muito mais animado.
Frith, que já perdera quarenta libras no bilhar para Laurence e Charles, portou-se como um
bom cachorrinho de estimação, mantendo-se sempre ao lado de Harriet. Ajudava-a com as
flechas, como os dois amigos faziam com Daniel.
Após duas horas, quando a terceira rodada de disparos ia começar, Harriet
percebeu, divertida, que tanto Charles quanto Laurence já estavam bem altos, tendo bebido
muita cerveja. Daniel teria sorte se eles conseguissem entregar-lhe as flechas.
A terceira rodada começou com a pontuação dos dois lados bem próxima. Harriet
estava na frente, com sessenta e oito a sessenta e cinco. E já estendia o arco quando Daniel
lhe disse, sussurrando:
– Espere, Harriet, só um instante.
Ela baixou o arco, surpresa com a interrupção, imaginando o que poderia estar
havendo. Olhou para ele, vendo-o olhar em outra direção. E testemunhou a chegada de
Arabella Orlestone.
– Mas o que estou perdendo? – ela exclamou, sorrindo para todos. – Parece que
cheguei num momento muito interessante. Está havendo um concurso de arco e flecha?
As roupas de Arabella eram sempre deslumbrantes, mas nessa tarde ela estava
fabulosa. Seu vestido era vermelho-cereja, e lhe caía muito bem. Seu sorriso encantador
parecia ainda mais belo. Tudo nela era perfeito: sua pele de seda, seus olhos brilhantes, as
jóias magníficas, a roupa elegantíssima. Tudo! Evan Douglas e Harry Eave apressaram-se
em recebê-la, explicando-lhe tudo sobre o desafio entre Harriet e Daniel.
– Que excitante! – Arabella ficou ainda mais animada.
Harriet não gostou daquela interrupção, nem da vinda de Arabella, nem de seu jeito
fútil. E detestou quando Daniel deu a mão a ela e pediu-lhe para que tocasse seu arco, na
intenção de dar-lhe boa sorte. Irritadíssima, Harriet deu-lhes as costas, achando-os
ridículos.
E rememorou o que lhe dissera o sr. Eliot Douglas: se permitisse que alguma outra
moça se casasse com Daniel, seria a criatura mais estúpida que ele conhecia.
Imaginar que Daniel poderia pensar em se casar com Arabella colocou-a em alerta.
Estudou-os, vendo a jovem tocando o arco que ele segurava.
Indignada, Harriet ergueu o seu, sem querer esperar mais. Mas seus braços
tremiam. Atirou, mesmo assim, acertando o círculo externo do alvo e ganhando apenas um
ponto. Seus três disparos seguintes não foram muito melhores, mas, por fim, conseguiu
acertar o centro no último disparo dos cinco.
Sua pontuação foi de setenta e nove e, como o arco de Daniel tinha sido tocado pela
deusa Arabella, acabou sendo ultrapassada em oito pontos nessa rodada.
No segundo grupo de cinco disparos, entretanto, Harriet saiu-se muito bem e
acabou com uma pontuação de cento e um contra cento e três de Daniel.
Quando Laurence e Charles já começavam a gaguejar devido ao excesso de cerveja,
e o almoço foi providencialmente servido.

Capítulo VII
A mesa farta era longa, e a comida, apetitosa. De acordo com sua própria
preferência, a sra. Douglas serviu champanhe, coquetel de pêssego, uma receita sua que as
senhoras adoravam, e cerveja.
Foi uma refeição deliciosa, na qual não faltaram pratos saborosos e carnes muito
bem assadas. Ao fim, a sra. Douglas propôs que outra rodada da disputa entre Harriet e
Daniel fosse feita para que depois, junto com o chá especial que só ela sabia preparar, as
sobremesas fossem servidas.
Harriet preparou-se mais uma vez, sentindo que, depois daquele almoço
maravilhoso, suas forças haviam sido renovadas para, com certeza, vencer o desafio.
Porém, não atirou muito bem e, depois de cinco disparos, conseguiu apenas cento e
dezesseis pontos.
Foi a vez de Daniel se preparar para disparar suas primeiras cinco flechas. Também
não foi muito bem e conseguiu ficar apenas cinco pontos adiante de Harriet. Mais uma
rodada de cinco disparos e a quarta seqüência estava cumprida. Harriet agora tinha cento e
trinta e quatro pontos contra cento e quarenta de Daniel.
– Nossa, com este calor todo, eu mesma já teria desmaiado se estivesse fazendo
aqueles disparos – comentou lady Eave, com o rosto bem vermelho, em contraste com o
vestido laranja.
Harriet deixou o arco e foi sentar-se à sombra de um caramanchão, permitindo que
Frith fosse buscar-lhe uma xícara de chá e um prato de doces. Sorriu, vendo a velocidade
com que ele cumpria a tarefa e notou, mais uma vez, que o barão sempre se esforçava por
agradá-la em tudo, muito embora seu declarado amor nunca a tivesse animado a ir até o
altar. Nem ela mesma entendia o porquê.
Agradeceu-lhe e serviu-se de um dos docinhos, para depois beber um gole de chá.
Mas seus pensamentos concentravam-se no desafio e em Daniel. Ainda tinha dez disparos
pela frente. Garantiria o relógio com eles ou teria de beijar Daniel uma vez mais?
Deixou a xícara sobre o pires, em seu colo e ergueu os olhos para ver que Daniel
flertava sem reservas com Arabella. E notou que a jovem só tinha olhos para ele, e sorria,
insinuando-se. Não poderia ser mais clara em sua intenção de seduzi-lo. E nada havia, na
atitude de Daniel, que demonstrasse estar ele aborrecido com tal comportamento. Muito ao
contrário.
Harriet continuou a observá-los. Não se lembrava de ter estado em companhia de
Daniel durante todo um dia tão agradável. Na certa, a preocupação de terem de vencer o
desafio os mantivera longe de uma discussão. Contudo, ele estava muito mais atento e
gentil para com ela do que costumava ser. Era até para se suspeitar, avaliou.
Daniel já não usava o paletó devido ao calor, e por isso a largura de seus ombros
fortes se tornou bem visível através da camisa de cambraia de linho. Mais uma vez, Harriet
teve de admitir que não havia ali um homem tão atraente quanto ele. Afinal, por que
Arabella não se interessaria?
Quando Frith perguntou-lhe se tinha gostado da torta de cerejas, Harriet forçou um
sorriso e assentiu. Só pensava na possibilidade de ganhar o desafio e ficar com o relógio de
Daniel, mas tentava ouvir o que seu leal admirador dizia. E o barão falava sobre a beleza
do cavalo que vendera a Daniel alguns anos antes.
– Um belo garanhão! Tinha pensado em cruzá-lo com minhas melhores éguas. Não
existia animal melhor em Newmarket, no ano em que o comprei. Daniel ficou com ele por
algum tempo, depois o vendeu a um comerciante de cavalos irlandês.
Harriet franziu a testa.
– Não entendo, Frith. Se gostava tanto assim do animal, por que vendeu-o a Daniel?
Frith deu de ombros.
– Um momento de loucura, talvez. Daniel tinha algo que eu queria, por isso
concordei em fazermos negócio.
– Então não foi, de fato, uma venda?
– Não. Por quê? Foi isso o que ele lhe disse?
– Não. Nunca discutimos sobre o assunto. Sempre achei que Daniel tinha comprado
o cavalo de você. E posso saber o que de tão superior ele possuía para oferecer em troca do
garanhão?
Frith mordeu o lábio e forçou um sorriso.
– Bem, digamos que entrei num acordo com lorde Connought que ainda não se
mostrou benéfico ou lucrativo para mim, como cheguei a imaginar que poderia ser. Foi um
lance de sorte. Ou de azar, não sei bem.
Como o barão não parecia disposto a fornecer maiores detalhes, Harriet ficou sem
entender muito bem. Mas Frith mostrou-se ainda mais solícito e agradável.
– Contudo, tenho esperança de ainda receber retorno por meu valioso investimento.
E, para surpresa de Harriet, tomou-lhe a mão e levou-a aos lábios, dando-lhe um
beijo suave.
Ela apenas riu, retirando a mão.
– Está se fazendo de galanteador hoje?
– Não, senhorita. Estou apenas tentando. E parece-me que não estou conseguindo.
Por que sempre ri quando beijo sua mão?
– Costumo fazer isso?
– Todas as vezes.
– Nesse caso, acho que devo melhorar meu comportamento. – Naquele momento,
Harriet viu Daniel oferecer o braço a Arabella, levando-a consigo em direção aos alvos. –
Parece-me que o conde está disposto a recomeçar.
– Pelo visto, sim. – E Frith a acompanhou.
Harriet sentia que havia um significado maior por trás das palavras do barão, mas
não entendeu o que poderia ser. Viu que Daniel pegava uma flecha, colocando-a contra a
corda do arco. E seu coração encheu-se de ansiedade, querendo acabar logo com aquilo,
vencer aquele jogo.
O quinto e último lance trouxe todos para perto de Harriet e Daniel, ainda mais
porque os dois estavam com pontuação bem semelhante. E logo, todos formavam um
semicírculo em torno dos competidores.
Harriet pegou o arco e a primeira das dez últimas flechas.
Fez mira, mas sentia a pulsação disparada. Sentia-se ansiosa demais para conseguir
um bom disparo, mas de nada adiantava esperar. Disparou sua flecha e acertou a linha
intermediária, recebendo aplausos e vivas de todos. Mas eram apenas dois pontos.
Pegou outra flecha, mas Margaret gritou:
– Nesta última rodada, Harriet, por que vocês dois não se alternam?
A sugestão foi bem-recebida pelos espectadores.
– Excelente idéia! – Harriet apoiou, cedendo sua vez a Daniel.
Talvez assim, seu coração se acalmasse um pouco.
Ele tomou posição, olhou para Harriet e piscou. Ela pensou compreender. Daniel
queria vencer e queria o beijo. Viu-o erguer os braços com o arco e, com calma e
concentração, mirar e acertar.
Harriet soube que Daniel acertara mesmo antes de ouvir os aplausos entusiasmados.
Agora ficara atrás dele em nove pontos. Ganharia o relógio nesse dia ou perderia um beijo?
O que preferia? Bem, não havia como pensar nisso naquele momento, não quando tinha de
mirar e acertar outra vez.
Fez o disparo e, ouvindo o murmúrio de decepção de todos, entendeu que errara
feio.
Daniel aproximou-se para segredar-lhe:
– Algo errado?
Embaraçada e frustrada, Harriet respondeu apenas:
– Idiota que sou, fiquei me lembrando da natureza de nosso desafio e da
possibilidade de perder!
Seus olhares se cruzaram, e ela pôde ver um estranho brilho nas pupilas dele.
– Espero que perca de fato. – E Daniel retomou seu arco e flecha e tornou a fazer
mira.
Mas vacilou, baixou o arco e deu risada. E Harriet entendeu. Agora, era o pulso
dele que batia de uma forma estranha, que não lhe permitia concentração suficiente.
O disparo se seguiu e todos gemeram de frustração mais uma vez. Daniel errara por
completo o alvo.
Harriet respirou fundo, e o ritmo cardíaco pareceu se acalmar. Mirou, atirou e
ganhou cinco pontos. Daniel também acertou. Por fim, ainda tinha nove pontos adiante
dela.
No sexto disparo, Harriet foi perfeita. Daniel, entretanto, acertou o círculo
intermediário e ganhou apenas dois pontos. Isso dava um ganho a ela de três pontos.
Harriet exalou um suspiro, pensando no relógio que queria ganhar. Fez mira,
disparou e acertou o centro, ganhando mais cinco pontos e os aplausos de todos.
Daniel sorriu-lhe, tomou posição, atirou e também conseguiu mais cinco pontos, em
seu disparo irretocável.
Por quanto tempo Harriet conseguiria sustentar seu placar? Tentou acalmar-se e
conseguiu mais cinco pontos. Daniel a seguiu e acertou o círculo intermediário outra vez.
Estavam agora com cento e cinqüenta e seis a cento e cinqüenta e nove pontos, com ele
ainda na dianteira.
Três pontos apenas de diferença!
Harriet imaginava que apenas um milagre poderia ajudá-la, mas tudo o que tinha a
fazer era recordar sua aposta e o relógio que tinha de conseguir. Assim, seu coração se
apaziguou. Soltou a flecha e ganhou mais cinco pontos. Todos aplaudiram, porque estava
conseguindo acertar sempre o centro do alvo. Nem ela mesma acreditava em sua
performance.
Daniel disparou mais uma vez e também conseguiu mais cinco pontos. Ainda
liderava por três. Voltou-se para olhar para a audiência, sorrindo, e sugeriu:
– Quem vai ficar a meu lado contra uma oponente tão formidável?
Ninguém ergueu a voz em sua defesa, nem mesmo Arabella.
Ele riu, e todos o imitaram.
Os dois últimos disparos chegaram. Harriet preparou-se, respirou fundo,
concentrou-se e atirou. Gritos e aplausos se seguiram, pois ela conseguira seu oitavo
disparo perfeito numa série de dez! Poderia começar a comemorar, mas tudo o que Daniel
tinha de fazer para vencer seria ser irrepreensível também, uma última vez.
Harriet tentava respirar direito, mas não conseguia. Viu-o preparar-se com
exasperante tranqüilidade e, por fim, soltar a corda.
Os aplausos quase fizeram Harriet acreditar que ele acertara o centro, mas, ao fitar
o alvo, constatou que a flecha se localizara no círculo intermediário mais uma vez. Engoliu
em seco.
Daniel aproximou-se e murmurou:
– Parece que o jogo começa agora...
– É, mas meu coração está batendo tanto que acho que vou errar o alvo.
– Por quê? Pensando no beijo?
Harriet achou a observação bastante cafajeste.
– Não. Mas já que o mencionou... – E, encarando-o, deixou que pensasse o que bem
entendesse.
– Está tentando me fazer errar?
– Bem, foi você quem falou primeiro.
– Verdade. Servi-me de meu próprio veneno.
– Vamos atirar, então?
Ele fez que sim. Harriet colocou mais uma flecha contra o arco e, embora seus
ombros doessem, como imaginara que fosse acontecer, sentia-se calma e confiante. Mirou
e, sem hesitação, fez o disparo. Mais uma vez, acertou em cheio e ouviu os aplausos e
gritos de parabéns.
Daniel fez-lhe uma breve mesura e tomou a sorrir. Em seguida, posicionou sua
flecha no arco e disparou.
Mesmo sem olhar, Harriet soube qual foi o resultado quando Margaret e Jane
correram até Harriet, pulando, felizes. Daniel acertara o círculo do meio outra vez.
‘Eu ganhei o relógio!’ E estava a caminho de vencer a aposta. Acalmou-se e aceitou
os cumprimentos de Daniel. Ele lhe tomou a mão e, escondido em sua palma, colocou o
relógio, que passava a ela de forma oculta. Feliz, Harriet disfarçou e guardou-o no fundo
bolso da saia.
– Excelente, Harriet. Talvez, da próxima vez, eu possa vencer e receber um prêmio
bem melhor do que o que acabei de pagar. – E Daniel se afastou, enquanto outras pessoas
vinham cumprimentá-la.
Minutos mais tarde, quando os convidados começaram a se dispersar, com alguns
seguindo para tomar mais um copo de bebida, em especial os homens, Harriet começou a
guardar o arco em seu estojo e notou que Daniel tomava a se aproximar.
– Esteve magnífica, sobretudo no fim do desafio – elogiou. – Ninguém poderia tê-la
vencido.
– A não ser você. Mas o que lhe deu para me provocar com aquela história do
beijo? Sabia que nada havia para eu fazer a não ser responder à altura.
– E é isso o que sempre espero de você, embora deva admitir que esqueci de mim
mesmo naquele instante. Tolice minha querer beijá-la. Uma grande tolice. Mas sempre foi
assim conosco, não? Nós nos beijamos... – Daniel se interrompeu, pois um criado chegava
com uma bandeja e, sobre ela, um bilhete.
– Ora, quem se importaria em me mandar um recado por escrito? – Harriet
estranhou, pegando a pequena carta e rompendo o lacre para lê-la.
– Posso saber do que se trata? Ficou pálida de repente.
– Meus pais chegaram a Shalham. O recado é de minha mãe. Diz que papai está
muito doente. Preciso vê-los agora mesmo. – Dirigiu-se ao criado, que aguardava a
resposta. – Por favor, informe ao sr. Weaver que preciso voltar agora mesmo para
Shalham.
– Pois não, senhorita.
– Mas... Não entendo, Harriet. Se seu pai está assim tão mal, como pôde viajar até
tão longe, já que devem ter vindo de Hertfordshire?
– É, de fato, vieram. Mamãe me mandou uma carta na semana passada dizendo que
estavam em casa e que ficariam lá pelo resto do verão. Acredito que você esteja certo, a
não ser que tenha havido algum imprevisto que os haja forçado a vir. E, se for esse o
caso...
– Não diga mais nada. Não adianta ficar fazendo conjecturas. Deve ir vê-los sem
demora. Permita-me acompanhá-la até Shalham.
– Não, não é necessário, Daniel. – Harriet percebeu que estava tremendo ao passar
os olhos pelos convidados do piquenique.
– Por quem procura?
– Por Frith. Tenho de lhe contar o que aconteceu.
– Eu o vi entrando na casa há pouco, mas devo dizer que sou tão capaz quanto ele
de levá-la até Shalham.
– Sim, eu sei disso, Daniel. Não me leve a mal. Mas o barão foi tão gentil em me
acompanhar até aqui que me sinto na obrigação de permitir que me acompanhe de volta à
casa de minha tia.
Harriet imaginava ter lhe dado um bom motivo, embora o brilho de raiva ainda
estivesse nos olhos de Daniel. E, quando ele a pegou pelo braço, disse, por entre os dentes:
– Faria melhor se me deixasse acompanhá-la. Frith não é tudo o que parece ser.
Harriet encarou-o, surpresa.
– O que quer dizer com isso?
– Olhe, por muito tempo achei que você devia ser avisada contra esse sujeito. Não
sabe quem ele é.
– E você sabe? – Começava a se aborrecer por Daniel estar criticando seu maior
pretendente.
– Sim, eu sei.
– Poderia esclarecer a situação para mim, então? Embora eu sinta que não pode. Sei
muito bem que existe uma grande animosidade entre vocês dois e devo dizer que vim a
conhecer Frith muito bem nestes últimos sete anos. Ele é um cavalheiro em todos os
sentidos da palavra. Jamais agiria com uma dama da forma como você age comigo!
– O quê? Então pensa assim? Que, por discutirmos quase sempre, eu não sou um
cavalheiro? Harriet, sempre foi mimada, isso sim! Será que tem uma perspectiva assim tão
estreita do mundo, do amor? É isso? Acha que o amor tem de ser ordeiro, calmo, passivo?
Pois olhe, creio que jamais a conheci. Estou começando a conhecê-la agora. E devo dizer-
lhe que você nada conhece do mundo!
Harriet sentia lágrimas de zanga encherem seus olhos.
– Preciso ir ver meu pai, lorde Connought. Se me der licença...
Daniel engoliu em seco. Parecia, de repente, compreender que exagerara.
– Harriet, escute... Desculpe-me. Não devia ter tocado no assunto neste momento.
Por favor, me perdoe. É claro que deve ir ver seu pai. Eu vou encontrar Frith para você.
– Não. Ele já está vindo para cá.
– Mais uma vez, aceite minhas desculpas. Falei o que não devia em hora errada. –
Inclinou-se de leve e afastou-se.
Harriet olhava-o, sem entender seu comportamento desse dia. Mas, quando Daniel
se aproximou de Arabella, uma nova sensação preencheu seu peito, algo que ela não queria
sentir nesse momento. Uma vontade enorme de voar sobre aquela belezinha irritante.
Deixou de olhá-los para seguir em direção a Frith. Quando se encontraram, no meio
do gramado, ela lhe mostrou o bilhete.
– Vamos, então, Harriet. Direto aos estábulos.
E, minutos depois, seguiam para Shalham Park.

Capítulo VIII

Assim que chegou a Shalham, Harriet deu adeus a lorde Frith e entrou correndo na
casa. Deixou o casaco e as luvas com o mordomo, e seguiu apressada para a sala de estar.
Sentia-se um pouco tonta, visto que sua imaginação se aguçara no caminho desde
Ruckings. Pensara em todo tipo de doença que poderia acometer seu pai.
Encontrou-o sentado numa poltrona, fazendo uma careta de dor conforme se
ajeitava em uma posição mais confortável. Harriet percebeu logo que ele tinha um dos pés
enfaixado, e teria ido cumprimentá-lo de imediato, não estivesse sua mãe mais próxima.
– Harriet, meu amor! – E abriu os braços para receber a filha. – Não vá me dizer
que deixou a festa na propriedade da sra. Douglas de forma tão precipitada! Não
esperávamos que chegasse tão depressa!
– Mas seu bilhete me pareceu tão desesperado, mamãe. – Soltou-se dela para seguir
até o pai, que lhe sorria com afeição. – Como está, querido? Sua doença é grave?
– É a gota, meu amor, apenas isso. Pedi a sua mãe para não escrever aquele recado
absurdo, porque era isso o que eu temia, que você deixasse seus amigos de imediato, e sem
necessidade. – Olhou aborrecido para a esposa.
Harriet, atônita, também a fitou.
– A gota, mamãe? Um mero dedo inchado e a senhora me escreveu um bilhete
daqueles! Mais parecia que papai estava às portas da morte!
– Bem, se você tivesse ouvido os gemidos dele desde que deixamos Hertfordshire,
não estranharia tanto assim minha aflição. Cheguei a achar que Howard estivesse
morrendo de tanto sofrimento. Como poderia imaginar que se tratava apenas da gota?
Assim que chegamos aqui, sua tia mandou buscar o médico da família, e devo dizer que ela
tem muita sorte por possuir um tão bom assim tão perto de casa. Enquanto seu pai estava
sendo examinado, mandei avisarem-na e, como ainda não sabia o que Howard tinha, fiquei
muito tensa. Pelo jeito, ao escrever a nota, deixei que meus próprios temores tomassem
conta de minhas palavras, e peço-lhe desculpas por isso. Quando o médico me avisou do
que se tratava, já era tarde. O criado já partira com o bilhete.
A sra. Godwyne deu alguns passos pela sala, depois voltou-se para a filha de novo.
– É lógico que o tratamento será bem simples. Howard deverá fazer o que venho
lhe implorando que faça há mais de um ano. Terá de parar de beber sua costumeira garrafa
de vinho todas as noites.
Harriet voltou-se para o pai, para recriminá-lo:
– Papai! O senhor bebe uma garrafa inteira de vinho sozinho?
– Ora, agora vou ter de suportar suas reclamações também? Afinal, o que é uma
garrafa de vinho acompanhando um jantar?
– Às vezes, são duas – Eugênia Godwyne esclareceu, muito séria.
– Se contratasse uma nova cozinheira, eu não precisaria empurrar cada garfada de
comida garganta abaixo com um copo de vinho. O último assado que comi estava tão seco
que parava a cada centímetro até chegar ao meu estômago!
Harriet não sabia ao certo o que dizer.
– Vocês vieram de tão longe só para tratarem da gota de papai? Para consultarem o
dr. Mersham?
– Não, de forma alguma. Há tempos quero visitar minha irmã, ainda mais no verão.
Afinal, ela fala tanto de seus jardins. A gota foi apenas um incômodo que insistiu em nos
acompanhar.
Harriet sorriu. Ao perceber a animosidade entre seus pais, apressou-se a perguntar:
– John veio com vocês? E Mariane?
Os irmãos gêmeos de Harriet tinham apenas dezoito anos.
– Não. – Howard meneou a cabeça.
– Ambos estavam presos a compromissos. John está em Margate, em férias com
seu amigo, o sr. Lymbridge, e Mariane não quis deixar Hertfordshire, já que anda
freqüentando o grupo de amigos do sr. Hawking, que tanto aprecia. Agora se encontra em
companhia de Isabella Brabourne. Lembra-se dela?
– Sim, claro, mas estou surpresa. O sr. Hawking não é doze anos mais velho que
Mariane?
– É, e acho que isso é bem promissor, pois, como você deve saber, ele ganha três
mil libras por ano e tem uma propriedade deslumbrante. Mas Howard não me parece
apreciar a situação, porque só reclama.
– Evidente! O sujeito até usa um monóculo! Muito pretensioso para meu gosto.
Aposto que deve até tomar banho em água de rosas, como fazia o tolo Brummell.
Harriet reprimiu um sorriso. Recordava-se de sua adolescência e tentava encontrar
detalhes nela que a fizessem ver seus pais assim tão implicantes um com o outro. Mas não
vivera em seu lar paterno por muitos anos, pois residia em Londres com sua prima, a viúva
Farthingloe, recebendo uma pensão mensal. E agora começava a achar que alguma coisa
acontecera para atrapalhar a aparente felicidade conjugal daqueles dois.
– Sente-se, Harriet – sua mãe pediu. – Vamos conversar um pouco.
Ela a obedeceu.
– Ah, assim está bem melhor! Diga-me, está gostando de Kent?
– Esta região é muito linda no verão. – Harriet ainda sentia que algo estranho
pairava no ar, mas não conseguia entender o quê. – Os pomares estão cheios de frutas.
– Kent sempre foi o grande jardim da Inglaterra. – Howard sorriu..
– Mamãe, está tudo bem em Paddlesworth? – Harriet se referia a sua própria casa
com certa reserva.
– Sem dúvida. Por que não estaria, meu amor? A não ser por nossa cozinheira.
Afinal, seu pai não gosta nada dela. Mas a coitadinha anda, de fato, muito incomodada
com seus freqüentes ataques de alergia. Isso sempre acontece no verão. Ela fica pior
quando começa o período de colheita do feno.
– Então, está tudo bem por lá.
– Sim.
Harriet ainda não entendia a chegada abrupta de seus pais a Shalham.
– Preciso de uma almofada para minhas costas, Eugênia querida – Howard fez outra
careta de dor. – Poderia providenciar uma, sim?
Eugênia o ignorou.
– Minhas rosas nunca ficaram tão grandes e perfumadas quanto neste ano. Nosso
jardineiro diz que é por causa das misturas que coloca como adubo, mas acho que foi
devido às fortes chuvas da primavera. Foram intensas, mas na medida certa.
– Uma almofada, Eugênia! – insistiu o sr. Godwyne, agora aborrecido.
Harriet moveu-se na intenção de apanhá-la, mas sua mãe a deteve, meneando a
cabeça.
– Quanto aos brócolis, acho que perdemos boa parte deles para aqueles vermes
nojentos que logo se transformarão em borboletas. Mas...
– Sra. Godwyne, quer me dar uma almofada?
Só aí Eugênia voltou-se para o marido.
– Quer que eu, por favor, faça o quê, sr. Godwyne?
– Uma almofada para minhas costas! Já lhe pedi três vezes!
– Não vim de tão longe para servi-lo. Por que insistiu em vir se estava se sentindo
tão mal? Teria sido melhor se ficasse em casa, torturando a governanta com suas
exigências freqüentes!
– Uma almofada! Agora!
Eugênia cerrou um pouco os olhos e, colocando a mão às costas, pegou uma
almofada, que arremessou contra o marido, atingindo-o no peito.
Harriet prendeu a respiração diante da cena, e arregalou os olhos quando o pai
devolveu a almofada com mais força ainda contra a cabeça de Eugênia. O golpe soltou
algumas mechas de seus cabelos grisalhos, e ela se levantou, indignada, começando um
discurso longo e enraivecido, falando do terrível egoísmo de seu marido e falando até do
fato de ele ter insistido em acompanhá-la naquela viagem, mesmo estando doente, só para
incomodá-la, pois ela queria ter vindo sozinha, pelo menos uma única vez em sua
miserável vida.
Eugênia ainda vociferava quando Harriet decidiu deixá-los. Encontrou a tia no
saguão, que trazia sua cesta de costura e um frasco de láudano.
– Bem, parece que minha irmã está em um de seus piores dias – comentou,
sorrindo. – Meus criados terão muito do que rir quando se juntarem à mesa esta noite para
seu jantar. Cheguei a ouvir Eugênia da residência da governanta!
– Tia, estou tão aflita! O que está acontecendo com meus pais? Nunca os vi
brigando assim...
– Não? – comentou a sra. Ann Weaver. – Não sei como nunca notou. Bem, mas
acho que eles sempre foram mais cuidadosos quando você estava por perto. As cartas que
Mariane me escreve sempre falam das discussões. Venha querida, não deve ser ingênua a
ponto de crer que seus pais são muito diferentes de todos nós.
Harriet franziu a testa, lembrando-se do que Daniel lhe dissera antes de deixar o
piquenique. Seria possível que ela fosse tão ingênua de fato? Que nada soubesse sobre o
mundo?
– Acho que não estou entendendo, tia. Nunca vi a senhora discutindo com titio.
– E eu me recordo de uma noite, há muitos anos, quando falávamos sobre a idade
mais adequada para que Margaret começasse a freqüentar a sociedade. Acabei atirando um
relógio muito caro e delicado contra a cabeça de meu marido. Uma ocasião bastante triste
aquela, eu diria.
– A senhora o feriu?
– De modo nenhum, querida! Ele ficou com um galo por quatro dias e usou uma
atadura, mas tenho certeza de que foi apenas para me espicaçar. Quando falei que foi uma
ocasião triste, não foi por Eduard, mas pela perda de valioso relógio. O pobrezinho caiu ao
chão e quebrou-se em mil pedaços. Ah, que lástima! Agora, se me permite, acho que um
pouco de láudano poderá acabar com a refrega daqueles dois. Meu cunhado deve estar
sentindo muita dor, e Howard se casou com a mulher menos solidária do mundo. Adoro
minha irmã, mas sei que Eugênia tem um coração de pedra.
– E eles vieram para visitá-la. Se continuarem a brigar assim, como conseguirá
suportá-los?
Ann olhou-a por longos momentos, antes de dizer:
– Anjinho, eles não vieram para me visitar. Na realidade, mandei chamá-los por sua
causa. Pedi que Eugênia viesse, mas Howard insistiu em não ficar em Paddlesworth.
Afinal, ele detesta que o deixem de fora de qualquer coisa que tenha a aparência de uma
festa.
Harriet ficou ainda mais surpresa.
– Mandou chamá-los? Por quê?
– Não gosto de tocar no assunto, mas você acabou fazendo uma pequena confusão,
e seus pais estão aqui para ajudá-la.
Um ruído terrível de algo se quebrando veio da sala de estar, e Harriet, ainda
atordoada, concluiu que seus pais não eram os tipos de gente que poderia ajudá-la em
alguma coisa, em especial naquele momento.
– Não sei do que está falando, tia. A que confusão se refere?
Ann suspirou, compreensiva.
– Como eu suspeitava. Meu bebê, não faz a menor idéia, não é? Tem havido
rumores, nas últimas três semanas, de que Arabella Orlestone está para ficar noiva de
Daniel. É, pode me olhar assim, com todo esse espanto. Foi por isso mesmo que pedi para
Eugênia vir.
Harriet estava boquiaberta. Sabia que Arabella se interessava por Daniel, mas, em
sua opinião, pouca coisa no comportamento dele deixava ver que logo estaria propondo
casamento à jovem, ainda mais quando ficava andando pelos campos, entrando em
pomares e beijando outras.
– Creio que está enganada, titia. Deve ser um boato. Além do mais, mesmo se fosse
verdade, de que adiantaria a presença de meus pais aqui se lorde Connought pedisse a mão
de Arabella?

– Não sei ao certo, mas como você ainda o ama... Não, não! Nem tente protestar
quanto a isso. Tenho visto vocês dois juntos há anos e sei do que falo. Seja como for, achei
que devia tomar uma atitude. Arabella é uma boa garota, mas não quero vê-la instalada em
Kingsland. Oh, ela seria uma vizinha detestável! Quanto à possibilidade de ser um boato,
Laurence Douglas me informou ainda ontem que Arabella e Daniel iam ficar noivos.
E dizendo isso, a sra. Ann Weaver deixou Harriet no saguão, seguindo para a sala,
onde acabou por acalmar os ânimos do casal.
Perplexa, Harriet pensava. Laurence acreditava que Daniel ia pedir Arabella em
casamento. Era uma estranha sensação a que tinha no momento, como se o chão lhe
faltasse, como se a base de sua vida estivesse fraca.
Enfiou a mãos nos bolsos da saia e sentiu o relógio de Daniel num deles. Ele e
Arabella juntos?
De repente, foi acometida pelo pânico. Pegou as luvas e o casaco que o mordomo
deixara num banco próximo e subiu correndo para seu quarto. Sentou-se na cama e
manteve-se em silêncio por muito, muito tempo.

Capítulo IX

No sábado pela manhã, Harriet acordou com a estranha sensação de que algo estava
errado. Permaneceu deitada, olhando para o teto, onde um trabalho meticuloso em gesso
formava um belo alto relevo.
O que estaria lhe provocando aquela estranha ansiedade?
Tinha o relógio de Daniel. Seus pais se encontravam em casa de sua tia e, embora
ela os quisesse em qualquer outro lugar, menos ali, por suas constantes discussões, o
convite que Ann lhes fizera deixava claro que permaneceriam ainda por vários dias.
De repente, o motivo para seu estado ficou claro, fazendo-a sentar-se de imediato.
– Daniel e Arabella! – murmurou para si mesma. E uma sensação horrível de
náusea a atingiu.
Será que ele ia, de fato, propor casamento a Arabella, indagava-se, angustiada.
Seria por isso que os olhos de Arabella brilhavam tanto durante o piquenique? Tudo passou
a fazer sentido. Arabella estava feliz. Feliz!
No entanto, Daniel continuara flertando com ela durante o desafio de arco e flecha.
Não se enganava quanto a isso.
Ele dissera-lhe que seus beijos sempre o afetavam, e Harriet acreditara.
Cerrou as pálpebras, lembrando-se das palavras de Eliot Douglas, quando o
bondoso senhor dissera-lhe que, naquele verão, Daniel chegara à idade em que um homem
começava a procurar uma esposa.
Sim, depois de tantos anos, Daniel poderia ter decidido se casar e escolhera a fútil e
linda Arabella Orlestone.
Cruzou os braços, aborrecida. Se assim fosse, concluiu, ele bem que a merecia!
Daniel conhecia o temperamento de Arabella. Ela acabaria com ele no primeiro ano de
casados.
Devia estar contente por saber que Daniel logo receberia uma boa punição por sua
atitude, e também por tê-la tratado tão mal nos últimos sete anos, mas não conseguia. E
não lhe saía da cabeça o que Daniel lhe falara na véspera, indagando-lhe se aquela era, de
fato, a opinião que tinha a seu respeito, se não o considerava um cavalheiro porque
discutiam muito. Dizendo-lhe que ela era ingênua, que nada sabia das coisas do mundo.
Levantou-se, passando a caminhar pelo aposento. Parecia-lhe caminhar sobre
brasas. Não, não era ingênua e não tinha uma visão errada de coisa alguma. Muito embora
até sua tia lhe tivesse dito algo parecido. Recusava-se a acreditar que pudesse ter se
enganado tanto.
Amor e casamento deviam ser santificados e encher o coração das pessoas de
alegria. Daniel a traíra ao beijar Margaret.
Como podia, então, considerá-la uma tola? Devia admirá-la por seus princípios.
Voltou-se para sua cama, notando-a toda revirada. Devia ter dormido mal, embora
nem tivesse se dado conta. Seu sono fora inquieto, angustiado, sem dúvida.
Relembrou o que se passara nos últimos sete anos, e ainda não considerava sua
decisão de romper o noivado com Daniel como um ato impensado. Fizera o que qualquer
pessoa, nada mais. Mas a impressão que mais ficava em seu coração era a de não gostar de
Arabella Orlestone.
Tocou a sineta, chamando a criada. Não queria mais pensar. Tentou concentrar-se
na vitória do dia anterior e no prêmio que queria receber, e que conseguira: o relógio de
Daniel. Quanto àquilo, não tinha arrependimentos, nem frustrações, nem ansiedade. Estava
satisfeita.
Sorriu, imaginando que, fosse o que fosse que Arabella ou Daniel pensassem sobre
a vida, o amor e o casamento, não deveria se incomodar com tais assuntos nessa ocasião.
Queria só divertir-se. Por isso passou a cantarolar enquanto a empregada a ajudava a
vestir-se e depois a pentear-se.
Desceu a escadaria sentindo o peso do relógio de Daniel bater contra sua perna,
dentro do bolso do alegre vestido de flores amarelas.
Encontrou Margaret na sala de jantar, tomando seu desjejum e lendo um livro.
Quando viu a prima, Margaret ergueu a capa do volume, mostrando que se tratava dos
sermões de Fordyce.
– Quem consegue ler isto e não sentir vontade de morrer? – reclamou, colocando o
volume de lado.
Harriet riu e serviu-se de chá.
– Onde estão todos, Margaret?
– Mamãe foi levar uma sopa especial para uma vizinha adoentada. Meu irmão e
minhas irmãs já terminaram o café da manhã, e seus pais... Bem, acredito que titio tenha
pedido a refeição no quarto e titia ainda esteja dormindo.
– E tio Eduard?
– Como sempre, trancafiado em seu escritório, estudando alguma coisa.
Harriet tomou a sorrir. Seu tio era um devorador de livros, e passava a maior parte
do dia em seu gabinete, lendo sobre uma quantidade enorme de temas. Revirando o livro
que Margaret deixara sobre a mesa, indagou:
– Onde conseguiu isto? É de titio?
– Não. Papai jamais me daria isso para ler, já que pensa que nós, mulheres, não
temos inteligência suficiente para entender de certos assuntos.
– Ora! Não me diga que foi lady Eave quem o deu a você ontem!
Margaret assentiu, contrariada.
– Ela deve achar que tenho muito do que melhorar.
– Olhe, não gosto de falar mal de ninguém, mas essa senhora é, de fato,
insuportável.
– E eu não sei? Pobre Jane por ter uma mãe assim.
– Concordo. E aquele vestido laranja de ontem? Que coisa horrível!
Margaret baixou a voz e inclinou-se em direção à prima, para segredar-lhe:
– Laurence disse que ela parecia uma abóbora!
As duas riram, cúmplices. Logo depois, Harriet serviu-se de torradas e manteiga,
ovos mexidos e presunto. Enquanto fazia seu prato, ouviu passos apressados que se
aproximavam da sala. Philip, seu primo de apenas doze anos, entrou, muito alegre,
ofegante, segurando um chapéu feminino amassado.
– Não contem para Constance que estive aqui! – E seguiu para o jardim, fechando a
porta atrás de si.
Margaret e Harriet se entreolharam, dando de ombros, como se nada pudessem
fazer a respeito. Mais passos se seguiram, e Constance, dois anos mais velha que Philip,
apareceu, muito irritada.
– Onde está aquele infeliz com meu chapéu?
– Foi para o jardim – Margaret falou, sem vacilar, vendo a menina seguir para lá,
enfurecida.
Segundos depois, puderam ouvi-la desferindo impropérios para o irmão.
– Mas você, hein? – Harriet repreendeu a prima.
– Philip devia ter um irmão que o atormentasse tanto quanto ele atormenta
Constance. Ele é terrível! Bem, todos os meninos são assim, uns monstrinhos. E pensar
que, quando crescem, fazem com que nos apaixonemos por eles. Devem todos ter sido
pequenas feras na infância.
Harriet acomodou-se à mesa, comentando:
– John não foi muito diferente. Mas agora já é um homem e não está mais
interessado em torturar Mariane. E, como não vivi em casa por muitos anos, nunca soube
muito bem o quanto brigavam.
– E onde estão eles agora?
– John está se preparando para entrar em Cambridge e, no momento, se diverte com
os amigos. Mariane preferiu ficar em Hertfordshire para continuar a receber as atenções do
sr. Hawking.
– Nós o conhecemos?
– Muito pouco. Minha mãe fica sonhando com a fortuna dele, mas meu pai o acha
um esnobe.
– Mas se é Mariane quem terá de viver com o homem... Aposto que ela não se
importa nem com seu dinheiro, nem com seu esnobismo.
– É, parece que isso vai acabar em casamento.
– Logo vamos saber. Sua irmã escreve com freqüência para minha mãe.
– Ela sempre adorou tia Ann. Aliás, quem não gosta dela? Titia é um doce.
– Sim. Nunca se aborrece, a não ser com papai, quando ele fica trancado no
escritório por dias seguidos.
Quando terminou a refeição, e depois de conversar um pouco sobre moda com a
prima, Harriet se lembrou do relógio que trazia no bolso.
– Que som é esse? – perguntou, fingindo ter ouvido algo. Margaret olhou para a
janela, tentando escutar também. – Não ouvi nada. Apenas um dos rapazes do estábulo
chamando a criada. Chego a achar que estão apaixonados.
– Não, não. Refiro-me a esse som parecido com sinos de igreja.
– Não estou escutando.
– Pois está enganada. – Harriet levantou-se e enfiou a mão no bolso, aproximando-
se de Margaret. – Eu ouço sinos que anunciam um casamento. O seu casamento, Margaret!
E segurou a corrente do relógio, fazendo-o balançar diante da prima.
Margaret segurou-o, rápida.
– Você conseguiu! E não disse nada ontem! Como é astuta!
– Nem tanto. Para ser franca, por causa da gota de papai e do temperamento de
mamãe, acabei me esquecendo do relógio e só fui me lembrar dele quando tirei o vestido,
ontem à noite.
– Então venceu a aposta. Nunca imaginei que Daniel fosse entregá-lo a você.
– Nem eu. – Harriet sentou-se junto dela, pensativa. – E isso me faz imaginar o
motivo que ele teria para tê-lo entregado.
– Quem pode saber, não é? Olhe, não gosto de tocar no assunto, já que você me
parece tão feliz por sua vitória de ontem, mas acho que devo lembrá-la de que tem apenas
mais cinco dias. Hoje, domingo, segunda, terça e quarta até meia-noite, para conseguir o
chicote de montaria e o alfinete de gravata.
Harriet respirou fundo. Ao enumerar os dias, Margaret a fizera ver que lhe restava
muito pouco tempo. Fora tola ao concordar com os termos daquela aposta, mas não se
sentia amedrontada em prosseguir com ela.
Margaret, percebendo que Harriet ponderava e adivinhando sobre o quê, devolveu-
lhe o relógio, indagando, com malícia:
– E agora? Está ouvindo os sinos do casamento de quem?
Harriet tomou a enfiar a jóia no bolso e respondeu, sem perder a altivez:
– Não deixarei que estrague minha alegria por ter conseguido isto, mocinha. Foi um
desafio difícil o de ontem, e estou orgulhosa de minha vitória.
– Sim, mas tenho certeza de que está insegura.
Uma criada apareceu à soleira, e Margaret virou-se logo.
– O que foi, Sheldwick?
– Um recado, senhorita, de lorde Connought. E ele espera uma resposta.
– Obrigada. – Margaret estendeu a mão para receber o papel. Abriu-o e leu o
conteúdo. – Um convite para um lanche. Jane também está sendo convidada. Mas acha que
devemos aceitar?
Harriet percebeu que a prima a provocava.
– Você é uma garota terrível, sabia? Sabe, estou ouvindo aqueles sinos outra vez.
Seus sinos agora!
– Bobagem. Você apenas teve sorte ontem, nada mais. – Margaret ficou de pé e
dirigiu-se a Sheldwick. – Vou enviar um bilhete para milorde. Dê um refresco ao criado de
Daniel enquanto o escrevo.
– Pois não, senhorita.

Capítulo X

Em High Street, uma das ruas principais de Kenningford, uma série de adoráveis
chalés do século XV apareceu depois da dobra do caminho.
O dia estava idílico, prometendo um sol ameno à tarde, e as três moças passaram a
caminhar mais depressa diante das lojinhas que enchiam os olhos de qualquer beldade com
menos de trinta anos. Harriet seguia no meio de suas duas melhores amigas, e comentava.
– Vou me esquecer, pelo menos por enquanto, de que uma tarefa ainda mais difícil
me aguarda. E pretendo ver se o chapéu que venho namorando já há algum tempo ainda
não foi vendido. Se não foi, acho que o comprarei hoje.
– Começo a compreender seu desejo.
– Mesmo, Margaret? – Harriet indagou, sem entender. – Claro. Você trocou seu
vestido amarelo por esse azul e, pelo que me lembro, o chapéu em questão tem fitas azuis.
Harriet deu risada.
– É verdade. Daniel me disse que fico bem de azul e, corno tenho apenas cinco dias
para conseguir meu intento.
– Deus! – Jane suspirou. – Cinco dias! O que pretende fazer em tão curto período?
– Ah, nem tente me amedrontar também!
Jane riu, pensando na aposta.
E, passada uma hora, após Harriet ter adquirido o belo chapéu, as três seguiram
para a Taverna Bell, onde Daniel marcara o lanche.
O coração de Harriet disparava conforme subiam as escadas para o andar superior,
onde ficava o salão reservado. Mas, quando entrou no recinto, viu que os cavalheiros ainda
não tinham chegado. Esperando por elas, apenas um dos criados do conde, que logo fez
uma mesura e se desculpou por seu patrão.
– Então eles não virão? – Jane indagou, incrédula.
– Virão, sim, senhoritas, mas o conde me pediu para avisá-las de que o atraso é
devido ao sr. Badlesmere. No último momento, seu cavalo perdeu uma ferradura, e tiveram
todos de retomar a Kingsland para o reparo. Vim para oferecer-lhes uma limonada ou um
ponche, se preferirem, enquanto aguardam pelos cavalheiros.
Harriet respirou fundo, um tanto aborrecida. Viera tão ansiosa para começar sua
campanha e conseguir o chicote de montaria de Daniel que o fato de ter de esperar era-lhe
incômodo. Tirou o chapéu, irritada porque sabia que, com ele, chamaria a atenção do
conde, ganhando, dessa forma, certa vantagem sobre Daniel.
Deixou o chapéu sobre uma mesa junto à porta e pediu uma limonada. E, assim,
que o criado se foi para fazer o pedido, as duas amigas voltaram-se para ela, rindo.
– Devia ver sua expressão! – Margaret comentou.
– É verdade, Harriet. Acho que nunca vi uma pessoa mudar de humor tão depressa!
– Será que podem parar de rir de mim? O fato é que vim tão bem preparada para a
batalha! Conseguem imaginar minha decepção por o general inimigo não se encontrar no
campo?
– Cinco dias! – Margaret cantarolou, chacoalhando as mãos.
– Cale-se! – Harriet protestou, voltando-se para a janela.

Daniel bateu de leve com seu chicote de montaria sobre o flanco de seu cavalo,
sentindo a alegria de ver que o animal reagia com uma velocidade ainda maior em seus
passos largos.
– Vamos logo! – gritava para seus companheiros. – Ou as moças acabarão deixando
a taverna, exasperadas conosco!
Fosse o que fosse que acontecesse nesse dia, se iria conseguir ou não ganhar mais
espaço no coração de Harriet, aquela cavalgada dava-lhe um prazer enorme, como sempre
acontecia quando passava pelos campos em alta velocidade, sentindo o sol do verão em
suas costas e o vento batendo contra o rosto, trazendo o aroma das flores espalhadas aqui e
ali.
Ouvia seus companheiros acompanhando-o e sorriu, satisfeito. Em momentos
assim, reconhecia que sua vida não poderia ser melhor.

Na taverna, Harriet andava de um lado para o outro, irritada. Já estava no segundo


copo de limonada e os rapazes ainda não tinham chegado.
Imaginava quanto mais teria de permanecer ali, aguardando com suas amigas. Mas,
conforme caminhava, sentia o peso do relógio em seu bolso, e isso a fazia lembrar-se de
que não estava tão distante assim de alcançar seu intento.
Ainda se perguntava como poderia conseguir o chicote de montaria. Esperava
apenas que Daniel não desconfiasse quando mostrasse interesse por ter outro de seus
pertences. E que não interpretasse isso como uma espécie de investida amorosa.
O tropel a levou de novo até a vidraça.
– Ah, por fim, chegaram! – exclamou, chamando as duas para observarem os
rapazes desmontando e entregando os animais aos cuidados dos garotos encarregados dos
estábulos.
– Por que a maioria dos homens parece estar mais animada quando acabam de
cavalgar? Já reparei que nunca se mostram tão alegres quando estão, por exemplo,
dançando.
– Talvez porque você dance mal, Margaret – Jane provocou, como de hábito.
– Está bem, pode zombar, Jane. O fato é que não sou mesmo muito hábil em
dançar.
Harriet sorria, mas seu olhar estava fixo nos cavalheiros. Eles pareciam, mesmo,
estar em seu melhor estado. Em especial Daniel, cuja aparência atlética evidenciava-se em
momentos como aquele.
Ele ergueu o olhar e, vendo-se observado, inclinou-se, fazendo uma mesura
exagerada, que chegou a beirar o ridículo.
Harriet não pôde deixar de achar graça. Seu coração se acelerava, naquele
reconhecimento antigo de que, quando via Daniel sorrir, não conseguia mais raciocinar
direito.
Quando os rapazes entraram na parte de baixo da taverna, elas se afastaram da
janela.
– Harriet, você está tão corada! Sente-se bem? – Margaret piscou, maliciosa.

Daniel chegou ao salão antes dos amigos. Sentira o cheiro apetitoso de comida no
andar de baixo, e seu estômago protestou. Mais uma vez, os simples deleites da existência
apelavam a todos os seus sentidos: uma boa cerveja gelada, comida saborosa e a
companhia de belas garotas eram o paraíso.
– Como sabíamos que vocês viriam cavalgando para não demorarem demais para
nossa reunião, – Harriet começou – pedimos cerveja antecipadamente.
E apontou para a mesa de canto, onde o taverneiro acabara de colocar algumas
canecas cheias.
Os rapazes se serviram, e o conde propôs um brinde.
– Vamos lá, senhoritas, peguem seus copos de limonada! Brindemos a deliciosos
lanches de verão, a galopes pelos campos em flor e à companhia de moças adoráveis!
E, enquanto todos bebiam, Daniel se perguntava, observando Harriet pela borda do
copo, como poderia fazê-la apaixonar-se em tão pouco tempo. E ela estava maravilhosa!
Uma mulher linda em todos os sentidos.
Quando Harriet sentiu-se observada e sorriu-lhe, Daniel experimentou um aperto no
peito. Irritou-se consigo mesmo. Quando iria se livrar daquele amor absurdo por ela?
E agora Harriet não era mais uma garotinha recém saída do colégio, mas uma
mulher segura de si que passara muitos anos em Londres, e tinha suas próprias opiniões, e
sabia o que queria. Sendo sincero, Harriet sempre soubera muito bem o que queria.
Rejeitara-o sete anos antes por causa de uma aposta, e agora, metido em outra, Daniel se
arriscava a ser rejeitado uma vez mais.
Quando baixou a caneca, respirou fundo, lembrando-se do que seus irmãos
costumavam dizer no início de uma nova campanha militar. ‘Coragem, rapazes!’ E era
disso que precisava. Tinha de começar sua campanha de imediato.
E, enquanto os criados da taverna começavam a trazer os pratos que serviriam de
lanche, foi até Harriet, vendo que ela o encarava com ar especulativo.
– Parece muito satisfeito consigo mesmo, milorde.
– Na verdade, não comigo – Daniel a corrigiu –, mas com este dia maravilhoso.
E fez um gesto largo, mostrando o céu muito claro através da janela.
– É. O firmamento está uma beleza, mesmo.
O conde assentiu, sempre a fitá-la. Nunca conseguia olhar para Harriet assim de tão
perto sem lembrar-se de como era beijá-la. Quando, havia sete anos, começara a cortejá-la,
como o fizeram inúmeros outros jovens. Mas ela demonstrara interesse apenas nele, e seus
pretendentes foram se afastando, um após o apenas quinze dias depois que Daniel a
conhecera.
Daniel jamais fizera questão de esconder sua preferência por ela, e fora-lhe óbvio,
desde o primeiro dia, que Harriet estava interessada também. E o namoro começou suave,
até aquela ocasião, no jardim de Ruckings Hall, quando a tomou nos braços e a beijou com
paixão.
Harriet não hesitara, nem por um segundo, correspondendo ao beijo, aceitando seu
abraço, derretendo-se contra seu corpo. E a aposta absurda com Frith acontecera naquela
mesma noite. No dia seguinte, Daniel beijara Margaret a fim de poder vencer. E perdeu
Harriet.
Mas ali estava ela, diante dele, ainda solteira e mais bela do que nunca. E ali estava
ele; metido em outra aposta. E teria de fazê-la apaixonar-se outra vez, dentro de cinco dias!
Que tipo de armas poderia usar para conseguir tal proeza?
Deu um passo à frente e, inclinando-se para junto dela, segredou-lhe:
– Alguma vez já se perguntou como poderia ter sido?
Ouviu um suspiro preso entre os lábios de Harriet e a viu se afastar devagar,
ficando contra a janela. Harriet ergueu os belos olhos para ele, e uma suave lufada de vento
varreu o ambiente.
– É claro que sim – confessou, demonstrando em seu semblante o quanto isso lhe
custava.
– Perdoe-me, Harriet. Não pretendia magoá-la com minhas palavras. Mas é que, por
algum motivo, quando a vi agora, eu me lembrei de quando a cortejava no passado e o
quanto isso me era caro.
Daniel esperava que Harriet lhe pedisse para parar de dizer tais coisas, mas ela
ficou intrigada. E, como não conseguia adivinhar o que lhe ia no íntimo, seguiu em frente:
– O que acha que poderíamos dizer um ao outro se este fosse o primeiro dia em que
nos víssemos?
Um sorriso muito suave apareceu nos lábios dela, e Daniel imaginou se Harriet
seria capaz de responder a tal pergunta. E surpreendeu-se ao ouvi-la:
– Eu imaginaria que seria difícil dizer-lhe o que quer que fosse, pelo menos no
princípio, mas ficaria observando-o o tempo todo, embora esperasse que você não notasse
meu interesse.
– Seria assim?
– Recordo que, quando o conheci, senti como se estivesse com sede, mas não
conseguisse beber o suficiente para me saciar.
Daniel engoliu em seco e desejou que estivessem a sós, e não em meio a amigos,
para poder falar com ela sem restrições, segurá-la em seus braços, beijá-la com ardor.
Lançou um olhar à mesa, onde todos já estavam acomodados, imaginando se
conseguiria roubar um beijo dela sem que notassem, mas isso seria impossível. Por isso,
voltou a encará-la, insistindo:
– Foi assim que se sentiu naquela época?
– Sim.
– Mas nunca me disse.
– Esperava que eu lhe revelasse tanto assim num primeiro encontro? Como uma
moça poderia expor seus sentimentos dessa forma, Daniel?
– E depois? Nunca mencionou nada, nem mesmo quando nosso namoro ficou mais
sério.
– Acho que estava ocupada demais matando minha sede – explicou-lhe. – Afinal,
nós nos beijávamos tanto! E nem estávamos noivos.
– Um tanto chocante, reconheço.
– E quanto a você? Se este fosse nosso primeiro encontro, o que acha que me diria?
– Bem, creio que iria lhe dizer o quanto gosto de seus cabelos. Sabia que eles
brilham ao sol? – Tomou uma mecha e esfregou-a de leve entre os dedos.
– Quer dizer que começaria flertando comigo?
– É isso o que parece quando falo de seus cabelos?
– É.
– E você não gostaria que eu continuasse flertando?
Outro sorriso suave apareceu nos lábios dela.
– Gostaria, sim.
Daniel constatou que era justo daquele sorriso que sentira mais falta nos últimos
sete anos.
– Sendo assim, fico feliz.
– Seu criado parece esperar instruções – Harriet interrompeu a conversa, fazendo
um pequeno gesto com a cabeça.
Daniel se virou, vendo que o rapaz estava no aguardo, no alto da escada, e sentiu-se
frustrado. Afinal, estava fazendo um bom progresso. Mesmo assim, falou para Harriet:
– O lanche está pronto e devemos comer, mas preferia tanto ficar conversando aqui
com você! – Oferecendo-lhe o braço, animou-se. – Bem, mas como estou faminto, e sei
que Charles e Laurence também estão, não devemos deixá-los esperando, certo?
Seguiram os dois para a mesa e, ao sentar-se, Harriet imaginava o que, de fato,
estaria acontecendo entre ela e Daniel.
O que sabia com certeza era que, não estivesse tão interessada em seu chicote de
montaria e seu alfinete de gravata, jamais teria permitido que a conversa tomasse um rumo
tão íntimo. Afinal, desde que romperam o compromisso, ela sempre tivera dificuldade em
mantê-lo longe.
Porém, por causa da aposta que fizera com Margaret e Jane, baixara muito a
guarda. E tomava muito cuidado porque sabia que, se não o fizesse, correria grande perigo
de perder seu coração mais uma vez para Daniel.
O taverneiro, sabendo que o conde viria com seus amigos para um bom lanche,
mandara preparar iguarias dignas de um príncipe.
A familiaridade entre os convidados se devia ao fato de muitos deles terem sido
criados juntos. Margaret e Laurence tagarelavam, Daniel provocava Jane fazendo todos se
lembrarem de quando tivera de socorrê-la, pois ela não conseguia descer de uma árvore
quando criança, e bem mais tarde, quando a ajudara a sair de um barco, no meio do lago
em casa de Laurence, pois Jane se esquecera de levar os remos.
Charles, por sua vez, fazia todos rirem ao falar sobre um baile ocorrido em casa dos
Michaelmas, quando Laurence bebera muito e acabara dançando com lady Eave e quase
fazendo-a cair sobre um canteiro de flores artificiais.
O vinho começou a ser servido e as risadas aumentavam, junto com a alegria geral.
Harriet não conseguia parar de rir quando Laurence imitava muitas das pessoas que todos
ali conheciam, acentuando seus detalhes mais engraçados. Notou, por várias vezes, que o
olhar de Daniel não a deixava, mas desviava o seu, sabendo que não devia deixar-se levar
por um flerte sem maior relevância.
Depois de uma deliciosa torta de maçã e de um excelente vinho Madeira, Harriet
sugeriu que os cavalheiros acompanhassem as damas até Shalham Park, visto que a
distância era pequena. E todos eles concordaram sem hesitação.
No caminho, que fizeram a pé, com os moços levando suas montarias pelas rédeas,
Harriet percebeu que Daniel diminuía mais e mais os passos, para poder afastar-se com ela
do grupo.
Seus pensamentos, de repente, voltaram-se para Arabella, e muitas dúvidas a
assaltaram.
– Está tão quieta... – ele comentou, após alguns minutos de caminhada feita em
absoluto silêncio.
Harriet dirigiu-lhe um sorriso, um tanto embaraçada.
– Talvez seja o calor. É sempre um momento de preguiça este do meio da tarde, não
acha?
– Poderia dormir, então?
– Não sei. Duvido, mas seria bom me recostar em uma poltrona e ler um bom livro.
– Sempre gostou de ler, não é?
Harriet fitou o chicotinho de montaria que Daniel segurava junto com as rédeas.
‘Como fazer para consegui-lo?’, imaginou, pela centésima vez.
– Será que um dia conseguirá me perdoar? – Daniel insistiu. Ela o encarou, de
repente.
– Pelo quê?
– Por ter beijado Margaret.
– Eu já lhe disse que o perdoei.
Daniel estacou e, com sua mão livre, segurou-a pelo braço.
– Isso é mentira, Harriet. Se tivesse me perdoado de fato, já seríamos marido e
mulher há anos.
A pulsação de Harriet se acelerou, e ela não sabia se atribuía o fato ao toque da mão
firme ou ao magnetismo dele.
– Daniel...
Tudo a seu redor parecia desaparecer, com exceção do rosto dele. Viu quando
Daniel estudou sua boca. Estaria ele querendo beijá-la? Encontravam-se a certa distância
da cidade, e uma pequena curva os separava da visão de seus amigos.
– Por que você tem de ser tão linda? – Daniel se mostrava aflito. E soltou-a tão de
repente quanto a segurara, voltando a andar.
Para Harriet, o primeiro passo pareceu ser um grande sacrifício. Daniel a pusera
atônita apenas por segurá-la e olhá-la daquela forma. Que homem perigoso ele era!
Por fim, recomeçou a caminhar e alcançou-o, mas ainda não conseguia falar. Seus
sentidos estavam tomados. E Daniel era o único homem que conseguia deixá-la assim.
As lágrimas ameaçavam aflorar. Era por isso que ainda não se casara,
compreendeu. Porque recusava-se a desposar qualquer um que não conseguisse fazer o
chão faltar sob seus pés só por tocá-la ou olhá-la. ‘Oh, poderia detestar Daniel por isso!’
– Jamais me perdoará, Harriet.
– Está enganado. Já o perdoei, mas isso não quer dizer que voltei a confiar em você.
Mais uma vez, ele parou para encará-la.
– Harriet, será que não consegui mostrar-lhe quem sou nesses anos todos? Não
compreende como o fato de tê-la conhecido, de ter me apaixonado por você mudou por
completo o curso de minha vida? Eu era apenas um rapaz sem maiores responsabilidades,
quando nos conhecemos. Vivia sem objetivos, não vou negar. Esbaldava-me em farras, em
noitadas. Gastava o que recebia e acabava até devendo dinheiro aos outros, mas tudo isso
mudou, e sabe muito bem disso!
Harriet sabia que ele dizia a verdade. Todos comentavam como lorde Connought se
modificara desde que começara a cortejá-la, mas, mesmo assim...
– Acredito, Daniel. Sua reputação atual apenas confirma o que diz, mas aquele
beijo...
– Sempre isso! Não significou nada, Harriet! Foi apenas... – Por um longo
momento, Daniel lutou consigo mesmo – Uma grande tolice. Por que não crê em mim?
– Sempre achei que havia algo envolvendo aquele beijo que estava muito, muito
errado, secreto, talvez, ou mesmo mesquinho, enganoso. E ainda estremeço ao me lembrar.
– Nunca lhe falara tão abertamente sobre o tema antes. – Pode negar o que digo?
Mais uma vez, Daniel guardou um longo silêncio, até que, por fim, disse:
– Não, não posso negar nada. Havia algo de ruim, sim, naquele beijo, mas fiz uma
promessa a mim mesmo de que aquilo seria a última atitude tola que eu tomaria.
‘Céus, ele admitiu a verdade!’ Não se lembrava de outro momento em que o tivesse
feito.
– Daniel, por que não me conta tudo?
– Porque não há mais nada a falar, a não ser o que eu já lhe disse.
– Mas por que fez aquilo?
– Porque eu era um cafajeste na época, e costumava agir sem pesar as
conseqüências. Talvez você tenha tido razão esse tempo todo, ao me culpar. – E riu,
amargo.
– Por que ri?
– Porque acabei de recordar que, se hoje servisse como medida para minha
existência, eu teria de logo, logo ficar noivo de Arabella.
Ela arregalou os olhos.
– Então é fato!
– Não aprova esse noivado? – Daniel indagou, alerta.
– Como acha que posso aprová-lo? Arabella tem apenas um motivo para casar-se
com você: ganhar um título. Ou acha que o ama?
– Talvez Arabella ache que me ama. Mas a realidade é que é uma moça bem-
nascida, tem um bom dote, e eu poderia encontrar senhoritas muito piores. Até você pode
concordar nesse aspecto. Além do mais, devo me casar, e ela tem muitos pontos a seu
favor, em especial sua grande beleza. Eu não me importaria em vê-la todas as manhãs à
mesa de meu desjejum.
Harriet estava aturdida demais para articular a fala. Ainda não acreditava que aquilo
que não passara de um mero boato no dia anterior tivesse, de repente, se transformado
numa verdade sórdida.
– Peço-lhe que não se apresse, Daniel. Estou convencida de que Arabella não o fará
feliz.
Daniel ergueu os ombros, num gesto de resignação.
– Não me importo muito com a felicidade, Harriet. Você poderia ter me feito feliz.
Qualquer outra poderá servir como esposa, e assim seria melhor se o amor não fizesse
parte do trato. Para ser franco, quanto mais penso a respeito, mais acredito que Arabella
seja a garota ideal para o que pretendo. O que me faz lembrar de algo que venho querendo
perguntar-lhe há muito.
– E o que seria?
– Pretende casar-se com Frith?
– O quê?
– Bem, tenho me indagado isso muitas vezes.
– Pois me surpreende com essa pergunta.
– Por quê? Somos amigos há anos, e você nunca hesitou em mostrar sua opinião
sobre o caráter de Arabella. Portanto, o que pergunto é muito apropriado. Ou será que
estou enganado?
– Talvez um pouco. Ocorre que não quero que ninguém caia nas garras de Arabella
porque ela é apenas ambiciosa.
– Entendo... Seja como for, ainda não me respondeu. Pretende ou não se casar com
Frith?
– Por que insiste nisso?
– Tenho meus motivos.
– Posso saber quais são?
– Avisá-la, mais uma vez, dos perigos de uma união com o barão. Frith não é nem
de longe o que eu poderia desejar para você.
Harriet ponderou por instantes, depois voltou a caminhar. Daniel imitou-a,
esperando que lhe dissesse algo, mas ela não sabia o quê. Não se sentia confortável em
discutir tal assunto com ele.
– Você começou a falar disso ontem, mas sempre achei que Frith fosse um
cavalheiro, ele é tão gentil comigo.
– Tenho certeza de que o barão tenta parecer assim, mas imploro que me dê
ouvidos, Harriet. Não deve confiar nesse sujeito.
– E em você? Devo confiar? – Mas logo Harriet viu que o ofendeu. – Desculpe-me,
eu não devia ter sido tão rude, ainda mais agora, que parecemos conseguir falar de forma
civilizada um com o outro. Deus, não era isso o que eu queria! Não queria começar a
discutir com você, não neste dia esplêndido, e não depois de momentos tão agradáveis com
nossos amigos, na taverna.
– Não se preocupe com isso. Já estou acostumado à opinião que faz de mim. Mas
poderia, pelo menos, confiar no que lhe digo quanto a Frith.
– Sinto muito, Daniel. Juro. Mas vamos mudar de assunto, está bem? O que acha de
fazermos uma aposta até chegarmos aos muros de Shalham?
– Olhe, você me deixa confuso, sabia? O que tem em mente?
– Um jogo de palavras. Você escolhe uma letra, qualquer uma, e eu escolho outra.
Depois, teremos de descobrir coisas a nosso redor que comecem com essas letras. Quem
conseguir mais palavras, ganha. O que me diz?
– E o que o vencedor leva?
Ela fingiu pensar por instantes, tentando parecer que a idéia tinha acabado de lhe
ocorrer.
– Não sei... A não ser que... O que me diz de termos de entregar algo pessoal?
Posso dar-lhe uma mecha de meus cabelos, já que disse que eles brilham ao sol. Ou uma
fita, meu chapéu... Qualquer coisa que você escolher.
– Bem, seu chapéu é lindo. Parece-me tê-lo visto numa loja ainda ontem. Ou dois
dias atrás, não estou bem lembrado.
Ela achou graça.
– É verdade. Mas como foi que notou?
– Porque, quando o vi lá, imaginei que ficaria muito bem em você.
– Não!
– Sim. Sempre gostei de vê-la usando azul, já esqueceu?
– Acho que sim – Harriet mentiu. – Mas voltemos a nossa aposta.
– Certo. Devo escolher algo, então. Vejamos... Tem certeza de que é isso o que
quer? Posso escolher o que preferir?
– Claro!
– Muito bem. Se eu vencer, vou querer... Sua echarpe.
Harriet entreabriu os lábios. Sua avó bordara com tanto carinho aquela echarpe,
fazendo suas iniciais, HLG, com belíssimas letras góticas, além das miúdas violetas para
combinar. Adorava aquela peça.
– Vamos lá, moça! – Daniel brincou. – Vai vacilar pensando num pedacinho de
pano, depois de ter ganhado o relógio de prata que pertenceu a meu avô?
– Tem razão. Mas quero que saiba que adoro minha echarpe.
– Eu sei bem disso – Daniel disse isso com voz suave, terna, o que a fez estremecer.
Harriet já se havia esquecido do quanto Daniel podia ser gentil e compreensivo.
– Muito bem. Pode ficar com minha echarpe, se vencer. Mas, se eu for a vencedora,
ganharei... Vejamos... Seu chicote de montaria!
– Meu chicote? Mas para quê?
– Isso não importa. Além do mais, o meu já está ficando velho, e o seu me parece
estar em ótimo estado.
– É, de fato está quase novo.
– Viu? Estamos combinados. Não irá se importar em me entregar um pedaço de
couro quando acaba de exigir minha adorada echarpe, que foi presente de minha avó,
bordada por ela mesma.
– Muito bem, então. Será dessa forma.
– Excelente! E agora que concordamos com os prêmios, que letra escolhe?
– Está permitindo que eu escolha antes que você?
– Sem dúvida. Estou me sentindo por demais generosa hoje.
– Certo. Então, escolho a letra ‘A’. E você?
Harriet observou ao redor, murmurando:
– Quero a letra ‘G’.
Nenhum dos dois conhecia nomes científicos, o que poderia ajudá-los muito, e a
distância até os portões de Shalham era pouca.
Harriet raciocinava rápido, fazendo sua lista: grama, galhos, gerânios, gardênias.
Mas foi Daniel quem acabou vencendo, com árvore, azaléias, alamandas, arbustos e
andorinhas. Harriet entregou-lhe sua echarpe, achando-se a pessoa mais idiota da face da
terra.
– Achei que me sairia bem melhor. – queixou-se, amuada.
E era verdade. Além do mais, tanto estava em risco que seu estado de espírito não
podia ser pior. Porém, quando Daniel pegou a echarpe, tomou-lhe também a mão e beijou-
a com carinho, fazendo-a esquecer-se da aposta e concluir que tudo valera a pena.
E, ao passarem pelos portões de Shalham, ela ainda não conseguia controlar a
emoção que tomara conta de todo seu corpo com apenas aquele breve e suave toque dos
lábios dele.
Margaret logo apareceu à soleira, visto que ela e os demais haviam chegado bem
antes, e acenou-lhes, parecendo animada. E, sem esperar, saiu correndo para encontrá-los.
– Nem vão conseguir imaginar! – exclamou, com o rosto afogueado. – A mãe de
Jane nos convidou para uma recepção, esta noite! Não é uma maravilha? Eu gostei tanto de
nosso lanche desta tarde que não queria que ele terminasse, e agora poderemos continuar
juntos!
Lady Eave, mesmo sem ter gosto algum para moda, era uma boa anfitriã e, como
tinha um modo muito peculiar de receber, sempre havia muita vivacidade em suas
recepções, o que agradava Harriet por demais.
Olhou para Daniel, que sorria para Margaret, e não pôde deixar de pensar que,
naquela noite, poderia conseguir o almejado alfinete de gravata que ele sempre usava em
ocasiões mais formais, ou então, a promessa de obter o chicote de montaria que falhara em
conseguir nessa tarde.

Capítulo XI

– E como foi tudo com Harriet? – Laurence quis saber.


Daniel guiou seu cavalo ao longo do riacho, em sua propriedade, tendo os amigos
logo atrás de si.
– Tudo bem. Discutimos bem pouco, e ouso imaginar que isso seja um grande
progresso.
– Entretanto, é quase nada para fazer com que ela concorde em se casar com você.
Daniel fitou Laurence.
– Evidente que é, mas não vou me desesperar. Se é isso o que pretende com suas
observações, meu caro amigo. Mal comecei minha campanha para conquistá-la.
– Você só dispõe de cinco dias!
– E posso muito bem reconquistar o coração de Harriet nesse meio tempo.
– É. Tão simples quanto colocar ferraduras num cavalo que nunca as usou antes –
Charles comentou, parecendo absorto, mas prestando muita atenção ao que se dizia.
E Laurence soltou uma gargalhada ao ouvi-lo.
Daniel sabia que havia verdade no que Charles acabara de dizer, mas não queria
que os amigos soubessem de sua insegurança. E um pensamento animador lhe ocorreu.
– Charles, entendo que tenha direito de falar assim comigo, mas, por favor, não me
deixe ainda mais abatido. – E, retirando a echarpe de Harriet de seu bolso, lançou-a ao
rosto do amigo.
– Mas o que é isso? – Laurence interessou-se. – A echarpe que a avó de Harriet
bordou para ela em seu nono aniversário? Harriet sempre fala a respeito! Como a
conseguiu?
Daniel sorria, cheio de malícia.
– Numa pequena aposta que venci. Como vê, Laurence, minha situação não está tão
ruim assim.
Daniel se aproximou de Charles e tirou-lhe a echarpe antes que o desastrado colega
a deixasse cair na água.
– Não acredito nessa história de aposta! Quero saber como conseguiu essa echarpe!
– Eu já lhe disse que foi apostando, Charles. Que intenção teria eu de mentir?
– Entendi, mas quero saber como a convenceu a dar-lhe uma peça tão valiosa.
Daniel levou seu animal por uma inclinação que conhecia muito bem, e os dois o
seguiram. E, enquanto subiam pelo terreno, ele lhes explicou os detalhes do que houvera.
Charles não pareceu muito satisfeito, e Daniel indagou:
– Em que está pensando?
– Você perdeu seu relógio para ela no desafio de arco e flecha. O que iria ter de
entregar se perdesse desta vez?
– Nada de grande valor. Meu chicote de montaria. Por quê? Posso ver que alguma
coisa o perturba.
– Não posso garantir, mas acho que Harriet vem se comportando de maneira
estranha com você. Parece até gentil. O que acha disso?
Daniel deu de ombros.
– Não faço idéia, nem me importo muito. Tenho apenas um interesse: ganhar a
aposta que fiz com vocês. Se ela está disposta a me tratar bem, não vou reclamar. Ou acha
que há algo de sinistro no comportamento dela?
– Não sei ao certo. Mas pode ter certeza de que começarei a observá-la melhor.
Daniel meneou a cabeça e voltou sua atenção para a estrada que atingiam. No
entanto, as suspeitas de Charles começavam a incomodá-lo também. Haveria alguma outra
intenção por trás dos modos de Harriet? Se assim fosse, o que poderia ser?
Mas o fato era que Charles tinha razão quando dizia que ela estava por demais
gentil.
Pensando melhor no assunto, notava que, de fato, ela vinha agindo de forma
estranha nos últimos dois dias. Seria possível que os beijos que lhe dera no pomar a
tivessem deixado, de algum modo, mais... suave? Haveria alguma coisa no coração de
Harriet que ainda a deixava vulnerável? Fosse o que fosse, sentia-se encorajado e
desconfiado ao mesmo tempo.
Mas o mais importante no momento era como conquistá-la nos próximos dias.
– Por que não dá um baile? – Charles sugeriu. – As garotas adoram bailes. E, pelo
que sei, mais pares se formam numa festa do que em lanches como o de hoje. O que me diz
de segunda à noite? Domingo está próximo demais para se fazerem todos os preparativos,
e terça não daria tempo suficiente para que você conseguisse... Sabe o quê. Segunda à
noite, portanto, seria excelente.
Daniel encarou-o:
– Pretende me ajudar?
– Claro, meu amigo. Como se você não precisasse de toda ajuda que consiga reunir!
– Não sei... Temo que isso só vá sobrecarregar minha governanta e meu mordomo.
Eles acabariam abandonando o emprego. Não faz idéia de quanto trabalho envolve dar um
baile, Charles.
– É, acho que tem razão.
– Que não seja um baile, então – Laurence, que permanecera quieto até então,
interveio. – Dê uma festa para trinta pessoas, no máximo. Embora dê trabalho para seus
criados, não estamos falando de uma casa como Ruckings, mas de uma mansão. Tem
criados suficientes para prepararem uma boa reunião em pouco tempo.
Daniel ponderou por instantes, avaliando que uma festa podia mesmo ser muito
bem administrada por sua eficiente governanta. E sabia que Charles também tinha razão,
que uma festividade, mesmo pequena, poderia ter dança, e isso atrairia o interesse das
moças. Seria uma ocasião excelente para ganhar o coração de Harriet, ainda mais porque
teriam o encontro dessa noite em casa de lady Eave e mais alguma estratégia que lhe
caberia preparar para o domingo.
– Muito bem, amigos. Estou convencido de que dois dias serão suficientes para
meus criados cuidarem essa tal festa. E com um pequeno baile também. Diga-me,
Laurence, sugeriu à lady Eave, no piquenique de ontem, que uma reunião hoje seria
oportuna?
– Mas é claro que sim! – Laurence confessou, num sorriso.
– Sempre adorei ver você em ação.
– E lady Eave não vacilou nem por um instante?
Laurence fez que não. Daniel voltou-se para Charles.
– E você? Não disse nada a ela sobre nossa aposta, disse?
– De modo algum! Por quem me toma? Não sou tagarela como Laurence!
Laurence, calado, olhava para o céu, como se quisesse disfarçar algo.
– Mas que coisa, Laurence! – Daniel protestou. – Não tem um pingo de discrição?
Não sei como conseguiu manter aquela aposta com Frith em segredo por tanto tempo!
– As apostas estavam feitas, ora! – Laurence defendeu-se.
– E eu não diria nada a ninguém. Quanto ao que apostamos, estão muitíssimo
enganados! Eu não disse nada para lady Eave.
– Mas para seu pai, sim, não é? E o sr. Douglas deve ter contado a sua mãe, que
contou a lady Eave. E agora toda a vizinhança já deve estar sabendo!
– Quanto a isso, creio que tem razão, Daniel.
– Pois olhe, você é pior do que essas senhoras que vivem de mexericos nos últimos
bancos das igrejas. Sempre falando o que não deve sobre quem não deveria!
– Ora, nem vou me importar por estar furioso por tão pouco. Além do mais, tanto
minha mãe quanto lady Eave sempre acharam que Harriet era a mulher certa para você.
Mamãe até comentou que você estava sendo um verdadeiro cavalheiro ontem no
piquenique. Muito charmoso, muito gentil com Harriet.
– Lógico! Todos notaram, não é? Menos vocês dois, porque estavam bêbados de
cair.
– É, bebi demais, mesmo. – Charles coçou a cabeça. – Mas não faz mal. Basta
dizermos o que pretende fazer agora para reconquistar Harriet.
Daniel estreitou os lábios e nada respondeu, preferindo continuar calado até
chegarem a sua casa.
Tornara a pensar em Harriet e na maneira diferente como o vinha tratando. Talvez
ela não estivesse mais tão ofendida quanto imaginava. No entanto, havia um modo de
descobrir a verdade, e seria quando se encontrassem na reunião em residência de lady
Eave.

Ao entrar na sala de estar de lady Eave, Harriet surpreendeu-se mais uma vez com o
fato de que a anfitriã, embora sem gosto algum para moda, sabia, e muito bem, decorar sua
casa e prepará-la para uma adorável recepção.
O imóvel, na verdade, fora um castelo em tempos muito antigos, e ainda
conservava todo o charme e a imponência de quando imperava na região como lar de
nobres dominadores.
Sir Edgar e Jane estavam ali e saudaram os convidados com graça e refinamento.
– Ele já me parece aborrecido – Margaret comentou sobre o pai da amiga.
A aproximação de lady Eave naquele momento impediu Harriet de dar sua opinião.
Contudo, ao cumprimentarem o anfitrião, tornou-se óbvio para elas que sir Edgar gostaria
de estar em qualquer outro lugar no mundo, menos ali.
Passaram, então, para a sala contígua, onde havia assentos para todos em torno de
uma mesa coberta de fina toalha bordada. E, olhando para cima, para o teto alto e cheio de
vigas de carvalho, Harriet notou, com admiração, o pesado lustre de ferro, ornamentado de
imensas velas amarelas.
– Acha que vamos receber a visita de nosso fantasma hoje, srta. Godwyne? – Lady
Eave esboçava um sorriso divertido.
– Não sei, milady, mas duvido que isso aconteça com tanta luz. Afinal, na
claridade, seu fantasma não conseguiria assustar muita gente.
Lady Eave riu com vontade e, olhando ao redor, acrescentou:
– Tem razão, minha cara. Sempre achei que um cômodo tem de ser bem iluminado.
Quando me casei com Edgar, eu lhe disse como deveria ser. ‘Luz’, falei para ele. ‘Quero
muita luz!’ E assim tem sido até estes dias.
Harriet sorria, notando o vestido vermelho e roxo que sua anfitriã usava. Nem
ousava imaginar como Laurence a descreveria quando tivesse oportunidade.
– Sabe, eu sempre imaginei se mais de um fantasma não moraria aqui. – Margaret
sabia das histórias que se contava a respeito do castelo.
– Não sei lhe dizer, querida, embora Jane insista que viu uma jovem andando pelos
jardins perto da torre. Também não sei por que um fantasma iria caminhar pelos jardins.
Parece-me tão sem sentido. Afinal, por ali revoam tantos pássaros, que o chão está sempre
coberto com sujeira deles.
– Pode ser, mamãe – Jane se aproximava –, mas esquece-se de que um espírito não
se deixa afetar por esses detalhes. Já eu acredito que a donzela em questão tenha sido noiva
em algum momento da história e acabou por morrer ali, no jardim, bem onde os pássaros
gostam de voar.
– Ah, você tem lido esses romances mundanos de novo, não é? – sir Edgar
repreendeu a filha.
– Mas é claro que sim, papai. – Jane não tinha o menor medo da expressão firme no
rosto dele. – Sabe que esse tipo de leitura é meu passatempo favorito!
Sir Edgar achou graça, deixando de lado o aborrecimento.
– Sua danadinha. – murmurou, agradando-a, e depois se dirigiu a Harriet. – Srta.
Godwyne, imaginei que seus pais viessem a nossa reunião.
– Papai ainda não está bem para sair de casa, sir. Tem sentido muitas dores no pé
direito. E mamãe preferiu ficar em Shalham, fazendo-lhe companhia.
– Sempre achei que Eugênia era mesmo muito devotada a Howard.
Harriet sorriu, lembrando-se de que, mesmo com as brigas, as almofadas
arremessadas e tudo o mais, sua mãe sempre fazia de tudo para ver o marido confortável.
Nessa noite, poderia tê-lo deixado por algumas horas, para aproveitar a reunião, mas
insistira, mesmo que com amargor, em ficar em sua companhia.
– E onde estão seus pais, srta. Weaver? E suas irmãs? – Edgar insistiu.
– Achamos necessário vir em duas carruagens, sir, visto que mamãe detesta viagens
desconfortáveis. E como tinha de fazer uma visita de caridade antes de vir para cá. Os
senhores devem conhecer a sra. Jenkins, que vive na aldeia de Alding Lees. Pois então, ela
anda muito doente, e minha mãe foi levar-lhe uma cesta de comida antes de vir para a
recepção. Minha irmã Elizabeth a acompanhou, levando-lhe algumas rosas. Mas deverão
chegar em breve.
– A sra. Weaver sempre foi tão bondosa para com os pobres! – Lady Eave sorriu.
– É verdade, milady. Acho que mamãe é uma das melhores pessoas que já conheci.
Diversas vozes se fizeram ouvir então, e ficou claro que muitos outros convidados
entravam no hall. Harriet levantou-se para cumprimentar os recém-chegados e viu seu tio e
tia chegando à sala, bem como Elizabeth e Mary, lorde Connought, Charles Bad1esmere, o
sr. e a sra. Douglas, Laurence, seu irmão Evan e suas irmãs Horatia e Nancy, Arabella
Orlestone e, por fim, lorde Frith. Este veio de imediato para junto dela e logo entabulou
conversa.
As garotas mais jovens logo se reuniram ao piano, rindo e falando muito, contando
umas às outras as novidades que tinham. Logo iriam começar a tocar para todos, e também
acertavam a ordem em que o fariam.
– Um vestido bastante brilhante, esse que lady Eave está usando – lorde Frith disse
a Harriet.
– Sim, ela gosta mesmo de cores fortes.
– Bem, pode-se dizer qualquer coisa quanto a seu fraco refinamento para as roupas,
mas, quanto a sua hospitalidade, não há o que criticar, não é mesmo?
– Sem dúvida.
Desde a chegada de seus convidados, lady Eave não mais parou de dar ordens aos
criados, avaliar detalhes, administrar a reunião da melhor maneira possível. A bebida que
preparou estava excelente, e a comida ainda mais. Assim, a noite foi passando, com
conversação animada, músicas suaves tocadas pelas meninas e muita alegria.
Enquanto conversava com Margaret e apreciava um dos patês preparados
pessoalmente por lady Eave, Harriet observou Daniel falando com a sra. Douglas. Viu
quando ele foi buscar um banco para ela e pôde ouvir quando a mãe de Laurence dizia:
– Quanta gentileza sua! Pôde ver que eu estava trocando de pé com freqüência,
imagino. Sabe, tenho um pouco de reumatismo em meu joelho esquerdo, e isso até me
atrapalhou muito no cuidado com os jardins. Obrigada, Daniel.
– Não precisa agradecer, senhora. Quer que lhe traga um copo de vinho? Ou prefere
champanhe? Ele é suave, como prefiro.
– Ah, também prefiro os suaves! Por favor, traga-me uma taça, então.
Margaret aproximou-se de Harriet, sorridente.
– Vejo que está observando sua presa.
– Como?
– É... Imaginando como conseguir a esmeralda, suponho.
– Ele a está usando? – Harriet se divertira tanto até aquele momento que acabara
por esquecer a aposta.
– Mas é claro que está!
Harriet olhou de imediato para a gravata de Daniel, vendo a jóia. E seu coração
começou a bater descompassado.
– Parece-me muito calma esta noite, minha cara. Já não se lembra do quanto falta
para perder sua aposta? Daqui a três horas será meia-noite, e isso lhe dará apenas quatro
dias.
– Você gosta mesmo de me atormentar, não é, Margaret?
– Só um pouquinho.
Mary, irmã de Margaret, terminou de tocar uma sonata e levantou-se do piano.
Ficou toda sorrisos quando recebeu os aplausos de todos os convivas.
Logo em seguida, lady Eave sugeriu que os jovens dançassem, se quisessem, e logo
os pares começaram a se formar. Evan Douglas pediu para dançar com Alison Eave
enquanto o irmão dela, Harry, estendeu a mão para Elizabeth. Charles convidou Jane a
acompanhá-lo, e Harriet surpreendeu-se quando Daniel veio até ela e a tirou. Aceitou logo,
imaginando que a sorte estava a seu lado, esperando conseguir um bom modo de ficar com
aquele alfinete de gravata.
E, quando já se colocavam na pista, no meio do salão, indagou:
– Esse seu alfinete de gravata é uma jóia de família, Daniel?
– Não, não é, mas gosto muito dele. Ganhei-o de minha mãe em meu décimo
aniversário.
– Entendo.
Menos animada, ela se colocava na posição pedida pela dança. Mesmo devolvendo
o alfinete a Daniel assim que a aposta estivesse ganha, não conseguia imaginar como o
faria separar-se de algo com tamanho valor sentimental.
Deu-se início a uma série de flertes entre os presentes. Daniel se comportava como
um verdadeiro cavalheiro, e Harriet lembrava-se de que fora assim também sete anos antes,
quando ele começara a fazer-lhe a corte.
A música terminou, e ela não quis aceitar outra contradança. De repente, porém,
uma idéia lhe ocorreu com relação à jóia que precisava pegar. ‘Mas Daniel morderia a
isca?’, avaliava, com preocupação.
Disse a ele que estava com calor por causa dos movimentos e esperou que a
convidasse para irem até o terraço. Lá, poderia fazê-lo aceitar outro desafio, tendo o
alfinete de gravata como prêmio, se conseguisse vencê-lo.
Prendeu a respiração e esperou, imaginando parecer a mais inocente das criaturas.
– O que está armando, Harriet Godwyne? – ele lhe perguntou, de repente. E sorria
daquela maneira que fazia as pernas dela bambearem.
E, quando Harriet entreabriu os lábios para dar sua explicação, Daniel foi mais
rápido, adiantando-se:
– Não faz mal. Quem sou eu para querer saber o motivo que leva uma garota a
querer sair para o terraço numa suave noite de verão? – E a conduziu para a porta.

Capítulo XII
Conforme caminhava junto de Daniel pelo terraço rodeado pelas amuradas, Harriet
ouvia os sapos coaxarem, nos baixios do castelo. Sorriu.
– Sempre achei que eles tentam manter o ritmo de uma melodia que escutaram, mas
não conseguem.
– Não conseguem? – indagou ele, brincando, fazendo-a rir ainda mais. E, ao
oferecer-lhe o braço, viu que ela não hesitou em aceitá-lo.
Mais uma vez, Harriet percebeu que aquela aposta a colocava muito próxima de
Daniel. Nos últimos anos, jamais permitira que ficassem assim tão perto, ainda mais num
passeio noturno, a sós.
A música da festa ia ficando mais e mais fraca e distante, até que, quando
alcançaram o contorno da torre, já não podia ser ouvida. Bem abaixo ficava um lago, onde
se viam cisnes negros flutuando em sua absoluta delicadeza, apesar de já ser noite. O céu
estava deslumbrante, e a temperatura, amena.
Harriet estranhou a quietude de Daniel e a sua própria. Era como se ambos
estivessem perdidos em pensamentos, mas usufruindo, ainda assim, da companhia mútua.
Olhou-o, vendo-o sorrindo muito de leve em reflexo a suas próprias idéias, e indagou-se
quais poderiam ser.
Estavam bem distantes do salão em que os convidados se reuniam. Daniel queria
Harriet para si, algo que desejava fazia muito tempo. Não porque tivesse uma aposta a
vencer, mas porque, em especial nessa ocasião, ela estava muito linda.
Ao chegar à recepção, seu olhar fora direto para Harriet, achando-a magnífica no
vestido cor de pêssego. Avistou-a no meio da sala, e as paredes do castelo tinham-lhe dado
a impressão de vê-la como uma dama antiga, da época medieval, numa era de
cavalheirismo e romance que os séculos em que vivia tinham deixado para trás.
Sua vontade no momento era poder segredar poesias aos ouvidos dela, sussurrar-lhe
palavras doces, roubar-lhe beijos. ‘Mas e quanto a ela?’, indagava-se, ainda inseguro. O
que Harriet poderia estar desejando naquele momento? Fora ela mesma quem sugerira a
saída para o terraço, mesmo que de forma muito discreta. Poderia ousar mais do que levá-
la para longe de todos?
Fitou-a, vendo-a observar os cisnes, lá embaixo, e, quando ela se voltou para vê-lo
também, tentou sorrir.
– Tenho sua aprovação esta noite, srta. Godwyne?
– Está sendo tão formal.
Os olhos de Daniel baixaram até os lábios dela, e um desejo intenso apoderou-se de
seu corpo. Harriet sempre o afetara assim.
– Só estava a provocá-la. Nós dois não precisamos de formalidades. Precisamos?
– Não, milorde, claro que não.
Daniel achou graça. Harriet tornou a olhar para os cisnes, perguntando:
– Qual dos dois acha que chegará ao ninho primeiro: o macho ou a fêmea?
Ele analisou as aves por instantes, para responder:
– A fêmea. Ele vai ceder-lhe caminho.
– Não, não. Acho que o macho vai chegar antes.
– Quer apostar?
Harriet o encarou, com olhos brilhantes. Parecia ansiosa e, mesmo sem entender
por que, Daniel não se importou.
– Por que não? Esta tarde quis me vencer para ganhar meu chicote de montaria. Por
que não tentamos outra vez? Se quiser, lógico. Se o macho chegar primeiro, você ganha
meu chicote, e se for a fêmea, ganho um beijo seu. Mas deve decidir depressa, porque eles
já estão próximos.
– Um beijo... – Ela ponderava, olhando ainda para o casal de cisnes. – Mas não
quero o chicote agora. Prefiro algo diferente. O que me diz de seu alfinete de gravata? – E
tornou a encará-lo, desafiadora.
– Minha jóia contra seu beijo? – ponderou, intrigado. – Sim. A não ser que ache
que meu beijo não vale tanto. – Naquele momento, porém, ele achava justo o contrário. –
Feito – murmurou.
– Arriscará sua jóia?
– Sim.
– Daniel, nem sei o que dizer. Você me surpreende e... – Harriet interrompeu-se,
pois ele a tomava nos braços. – O que está fazendo? Solte-me, por favor. Não...
– Não ganhei a aposta? Ganhei, sim.
Ele fez um ligeiro sinal de cabeça em direção ao lago. Harriet voltou-se para ver o
que Daniel já tinha visto. A fêmea se ajeitava com cuidado sobre os ovos, enquanto o
macho ainda vinha vindo.
– Oh... Eu queria tanto sua esmeralda... – Harriet queixou-se.
– Não mais do que eu queria isto. – E baixou a cabeça, beijando-a e surpreendendo-
se com a afeição com que ela recebeu seus lábios.
No entanto, Harriet se sentia de repente desesperada. Não devia estar beijando
Daniel. Conhecia sua própria fraqueza no que se referia a ele. Beijá-lo suscitavam-lhe
promessas que não podiam ser cumpridas, desejos que não podiam ser saciados.
Porém, o fato era que adorava aquele beijo, como sempre adorara todos os beijos
dele, e se entregava com paixão. Esquecia o passado e o futuro, querendo apenas viver
aquele momento com a maior intensidade possível.
E o que começara como um beijo delicado tomou-se um envolvimento apaixonado,
faminto. Algo que nenhum dos dois queria que terminasse, mas que chegou a seu fim
quando Daniel afastou-se alguns centímetros para afirmar:
– Sei que não me é indiferente, mesmo depois de tanto tempo.
– Não, não lhe sou indiferente. Como poderia ser? – Harriet respirou fundo.
Ele a apertou mais contra si, felicíssimo pelo que acabara de ouvir.
– Faz idéia do quanto é linda? – E tomou a beijá-la. E, entre beijos, sussurrava
sobre os lábios dela: – Jamais ganhei uma aposta com tanto prazer antes. Harriet, o que
diria se eu lhe pedisse de novo para se casar comigo?
Ela sentiu uma estranha tensão em Daniel. Algo que a perturbou.
– Não. Sabe muito bem que não posso me casar com você.
– Então por que me beija dessa forma?
Harriet não sabia o que dizer. Se lhe falasse sobre sua prima, não estaria dizendo
toda a verdade. Já tinham tocado naquele assunto doloroso tantas vezes que não sentia a
menor vontade de retomá-lo.
– É por causa de Margaret? – Daniel insistia. Ao vê-la assentir, acrescentou, aflito:
– Harriet, não consegue ver que fomos feitos um para o outro?
– Não. – Triste, baixou os cílios. – Agora, é melhor entrarmos.
– Espere. Quero que saiba de uma coisa.
– Do que se trata?
– Acha que gostei de beijar sua prima?
– O quê? – Harriet tentou retirar suas mãos das dele, mas Daniel as segurou com
firmeza. – Como pode me perguntar algo tão... tão cruel? Não entendeu até agora o quanto
me doeu saber que você a tinha beijado? Agora quer que eu imagine se gostou ou não?
– Quero apenas que me diga. Porque deve achar que adorei ter Margaret nos braços.
Se não for por isso, jamais conseguirei entender por que teima em não me aceitar mais. Já
lhe pedi perdão tantas vezes, e você não cede. Não aceita o que está em seu coração. Não
quer mais se casar comigo! Por quê?! Será possível que tem um coração de pedra? Ou que
não o tem de forma alguma?
– Não quero discutir com você. E acho que já foi longe demais!
Harriet puxou as mãos e, soltando-se, voltou depressa pelo terraço em direção ao
salão. Sabia agora que havia mais de um motivo pelo qual se recusava a perdoar Daniel.
Ele era um grande insensível.

Daniel permaneceu ali, no silêncio noturno, por quase meia hora depois que Harriet
se foi. Não acreditava que deixara tudo escapar de suas mãos outra vez, mas sabia que não
tivera culpa alguma pela seqüência dos acontecimentos.
Harriet era teimosa demais. Queria ver a expressão dela quando anunciasse seu
casamento com Arabella. Sim, porque, mesmo protestando sempre, mesmo sendo cabeça-
dura ao extremo, Daniel sabia que Harriet ainda o amava.. Nenhuma mulher
corresponderia a seus beijos daquela forma se não estivesse apaixonada.
Quando decidiu voltar ao salão, vários casais dançavam, inclusive Frith e Harriet.
Passou, então, o olhar ao redor e, ao ver Arabella, sorriu e fez-lhe uma mesura. Sabia ser
cruel também, decidiu. E iria pedir a Arabella que lhe concedesse a dança seguinte.
Laurence aproximou-se dele para comentar:
– Já notou o vestido de nossa anfitriã, meu amigo? Não lhe parece um imenso
tomate apodrecido na ponta?
Daniel fitou lady Eave e, sem sorrir, afirmou:
– É, suponho que sim.
– É, vejo que está aborrecido. É, deve estar mesmo. Notei como Harriet se
comportou quando voltou de seu passeio com você.
Daniel meneou a cabeça e revelou, ainda sério.
– Nós discutimos.
– Mas o que foi que disse a ela? Nunca a vi tão exaltada.
– Se quer mesmo saber, fui um total idiota. Não sei o que me deu, mas fiquei
zangado por Harriet continuar a ser tão empedernida e perguntei-lhe se achava que eu tinha
gostado de beijar Margaret.
– Sim, foi um grande tolo, mesmo.
– Eu sei.
– Bem, a parte boa nisso tudo é que não terei de pedir Margaret em casamento, por
isso não acho que tenha sido assim tão ruim você meter os pés pelas mãos com Harriet.
A música terminou, e Arabella, sem vacilar, começou a se dirigir a Daniel.
Laurence sussurrou-lhe:
– Aí vem sua noiva.
Daniel olhou-o, carrancudo, mas não teve tempo de dizer-lhe nada, porque Arabella
já estava próxima demais. Tomou-lhe a mão, beijando-lhe os dedos e levando-a para o
centro do salão. De relance, viu Harriet conversando e sorrindo para Evan Douglas. E,
mesmo sem querer, teve vontade de dar uns bons tapas no rapaz.

Harriet acordou com dor de cabeça, na manhã seguinte. Lembrava-se do que


conversara com Daniel e mal podia acreditar que tivessem, uma vez mais, discutido.
Perguntar-lhe se achava que ele tinha gostado de beijar Margaret fora o fim.
Sentou-se na cama, sentindo mais dor ainda. O rosto dele surgiu diante de seus
olhos, irritando-a. Daniel mostrava-se zangado, como sempre ficava quando falavam desse
assunto. Mas não achava que ele tivesse o menor direito de se sentir assim, pois fora ele
quem agira errado.
E seu coração se apertou muito ao lembrar-se dos beijos que trocaram na véspera.
Seria possível que Daniel a amasse? Ele não dissera isso, mas sua atitude parecia mostrar
que sim, pois chegara a indagar o que ela diria se a pedisse mais uma vez em casamento.
Recostou-se nos travesseiros e sentiu as lágrimas aparecerem em seus olhos. Daniel
a amava. E uma grande melancolia a invadiu. Por que aceitara aquela aposta ridícula com
Margaret e Jane, afinal? Não fosse por ela, nunca teria permitido que Daniel a afastasse da
festa.
E ele lhe dissera que tinham sido feitos um para o outro.
Poderia aceitá-lo, casar-se com Daniel, apesar do que houvera no passado? Vivia
em casa de sua prima viúva fazia muitos anos, sempre dormindo sozinha, sempre se
sentindo solitária, como naquele momento. Caso se casasse, teria um leito que partilharia
com. seu marido. Teria filhos, uma casa, um lar... Felicidade.
Nunca pensara muito a sério no assunto, mas parecia estar no fundo de sua
consciência que deveria já estar casada, senão com Daniel, com qualquer outro. Já tivera
muitos pretendentes. Frith a pedira em casamento por sete vezes! Mas ela o mantinha à
espera. Por quê? Talvez porque achasse que, um dia, precisaria dele. Se nunca mais
conseguisse se apaixonar, teria o barão.
Estremeceu diante de tamanha crueldade, mas sabia que era verdade. Cobriu o rosto
com as mãos, sentindo remorso por sua atitude com o pobre Frith. Afinal, ele já poderia ter
se casado havia muito tempo se não o tivesse prendido assim.
Ficou de pé, querendo parar de pensar. Foi até a janela, vendo que, no jardim lá
embaixo, Philip se aproximava de Elizabeth e Mary, por trás. Ele tirou algo do bolso, que
pareceu a Harriet ser um pequeno animal, e jogou-o nas costas de Mary.
A garota começou a gritar e a pular, desesperada, enquanto Philip gargalhava,
quase caindo no chão. Elizabeth o admoestava, mas tinha de socorrer Mary. Logo, um dos
ratinhos brancos de estimação de Philip escapou pela barra da saia de Mary e escondeu-se
na grama.
Philip era impossível! Meninos podiam ser assim. E cavalheiros também, avaliou.
Lembrava-se de Margaret ter lhe dito algo semelhante no dia anterior sobre meninos serem
verdadeiros monstros que cresciam e depois faziam com que as moças se apaixonassem
por eles.
Mas podiam ser mais do que maldosos. Recordava que Daniel fora gentilíssimo
com a sra. Douglas, buscando-lhe um banquinho e uma taça de champanhe. Sim, ele podia
ser compreensivo e generoso quando queria. E o conde era assim mesmo quando não
queria impressionar alguém.
Na realidade, Daniel sempre agia como bem entendia, sem esperar a atenção ou o
reconhecimento dos demais. Tinha um bom caráter, o que não justificava o beijo que dera
em Margaret quando eram noivos.
Afastou-se da vidraça sabendo que, por mais que avaliasse o caráter de Daniel, por
mais que ele lhe pedisse perdão, por mais que se mostrasse um homem interessante, nada
poderia apagar o fato de que, no passado, beijara Margaret.
Tinha de deixar de pensar nisso e dedicar-se à aposta que fizera. Ainda necessitava
conseguir dois itens pertencentes a Daniel, e sabia muito bem o que devia fazer. Podia
conseguir as duas coisas, ganhar a aposta e depois deixar Kent assim que possível. Seguiria
para Brighton e passaria o resto do verão por lá, onde tinha muitos amigos. Daniel nunca
dera grande atenção ao lugar, e lá Harriet ficaria mais contente, pois ele não estaria por
perto para perturbá-la.
Pensou mais uma vez em como fazer para conseguir as duas peças, e foi então que
teve uma idéia.
E assim, uma hora mais tarde, montava em seu cavalo preferido rumo à propriedade
do conde Connought.
Capítulo XIII

A imponente mansão dava-lhe a impressão de estar se aproximando de algo


perigoso, mas, ao mesmo tempo, tentador. A construção de quatro andares era imensa e
maravilhosa.
– Bom dia, Mollash! – Harriet saudou assim que o mordomo abriu a porta.
Mesmo temendo a recepção do conde Connought, já que viera sem avisá-lo, achava
que seria melhor portar-se com ousadia.
– Bom dia, srta. Godwyne.
– Vim para ver lorde Connought.
– Pois não, senhorita. Queira entrar, sim?
Ela entrou em Kingsland com graça e rapidez, tentando afastar seus temores. Mas,
como seu propósito ali pesava-lhe na consciência, imaginava que devia mostrar-se alegre
para disfarçar o que na verdade sentia.
– Por favor, Mollash, diga ao conde que meu assunto com ele é urgente.
Harriet conhecia o mordomo muito bem e sabia que ele a respeitava sobremaneira.
Podia ter vindo em horário pouco apropriado, quando Daniel devia estar se preparando
para ir à igreja, mas sabia que Mollash a atenderia de pronto.
– Gostaria de aguardar na sala, senhorita?
– Não, obrigada. Ficarei aqui no hall, mesmo.
O mordomo voltou minutos depois, pedindo-lhe que o seguisse, pois seu patrão a
atenderia sem demora. E foi conduzida até a saleta em que Daniel costumava tomar o
desjejum.
Encontrou-o tomando uma xícara de café. Daniel se levantou, olhando-a, muito
sério. Parecia desconfiado, mas satisfeito com sua visita.
– Bom dia – ele a saudou, enquanto o mordomo se retirava.
– Bom dia. – Harriet deu alguns passos até a janela, que se abria para uma bela
paisagem. – Tem uma linda vista daqui. Sabe, de todas as vezes em que estive em
Kingsland, acho que nunca entrei neste cômodo.
– Acredito que seja porque nunca veio até aqui pela manhã. Não costumo abrir esta
saleta quando dou alguma recepção noturna.
– Estou perturbando-o de alguma forma?
Ele sorriu de leve.
– Sempre me perturba.
Aquelas não eram as palavras que Harriet esperava ouvir.
– Que coisa estranha para se dizer, milorde. Bem, mas eu achei que poderia
convencê-lo a me acompanhar numa cavalgada, numa espécie de pedido de desculpas por
ter ficado tão aborrecida com você ontem à noite.
Harriet notou que Daniel avaliava o convite e, por sua expressão, concluiu que
devia estar se perguntando qual era o verdadeiro motivo de sua vinda. Por isso, disse:
– Deve estar querendo saber por que estou aqui, já que nem sequer trouxe minhas
primas, ou uma criada. Mas é que eu queria falar em particular com você. Não faz idéia de
quanto nossa discussão me incomodou. Quero conversar de novo, ainda mais porque
percebi que também gostaria que falássemos mais a respeito, Daniel. Compreende, não é?
Refiro-me àquele assunto.
Ele franziu um pouco as sobrancelhas.
– Se é o que deseja, é claro que concordo, Harriet. Vou cavalgar com você.
Gostaria de tomar alguma coisa antes? Café, chá? Comer algo?
– Aceito uma xícara de café.
– Ótimo. – Indicou a cadeira próxima. – Eu estava terminando quando chegou, mas,
se vamos cavalgar e depois devo seguir direto para a igreja, deverei me vestir de forma
mais apropriada.
Daniel viu-a servir-se, parecendo muito à vontade. Estava intrigado e pediu licença
para trocar de roupa.
Sua mente divagava, tentando imaginar por que, de fato, Harriet viera a Kingsland.
Evidente que devia haver algo por trás daquela aparência inocente dela. Mas não conseguia
imaginar o que poderia ser.
Bem, não importava, de fato. O importante era que ela estava ali e que ainda tinha
nos lábios a sensação dos beijos que lhe dera. Sim, discutiram, mas a beijara, e Harriet
correspondera. Isso era o que valia mais.
Queria Harriet como jamais quisera outra mulher em sua vida. E sentia que ela lhe
pertencia de alguma forma inexplicável. Mesmo que um dos dois cometesse o terrível erro
de se casar com outra pessoa, ainda assim Daniel achava que o elo entre ambos
permaneceria forte demais. O problema era fazer com que ela enxergasse isso também.
E, enquanto se trocava, conjeturava que poderia começar a procurar convencê-la
ainda naquele dia. No entanto, se não conseguisse fazê-lo até à meia-noite de quarta-feira,
seria obrigado, por seu código de honra, a desposar Arabella.

Meia hora depois, os dois se encaminhavam para os cavalos. E Harriet percebera,


com o coração apertado, que Daniel não trouxera seu chicote de montaria. Sua esperança
era de que o objeto estivesse pendurado na sela.
– Muito bem. Queria falar sobre nossa discussão de ontem, não é?
– Nossa discussão. – Ela parecia absorta, voltada para outras idéias.
– Harriet, esqueceu-se já do que me disse? Não quer mais conversar sobre o que
discutimos? Para ser sincero, eu preferiria que conversássemos sobre nossos beijos.
Ela ergueu os olhos para vê-lo, sentindo a respiração se acelerar.
– Não devia dizer tal coisa! – Mas ainda não estava muito atenta à conversação. Sua
preocupação era o chicote.
– Para lhe ser franco, esperava falar-lhe hoje, sim, e pedir-lhe desculpas pelo
ocorrido de ontem. Acho que fui um tanto rude.
– Foi mesmo. – Harriet tinha quase certeza de que nunca o vira pendurar o chicote
na sela.
E, se não costumava prendê-lo na sela, onde o deixava?
– Laurence tem dois pequenos chifres nas têmporas. Falei para ele ontem que se
parece um pouco com o demônio, e Laurence riu. O que me diz disso?
– O quê? Bem... Creio que não deveria tecer tais comentários diante de uma dama.
– O que poderia fazer, caso ele não usasse o chicote? Como fazer para tirá-lo dele?
Quando Daniel começou a rir, Harriet parou de andar, atônita.
– O que houve? – E, de repente, sua mente clareou. – Disse que Laurence tem dois
chifres?
– Harriet, nunca a vi tão distraída! Tem certeza de que quer cavalgar?
– Claro! Lógico que quero!
Chegaram à porta do estábulo, e ela passou a mão pela testa, queixando-se do calor.
Daniel fitou o céu, um tanto cinzento. A temperatura era agradável, na realidade, até um
tanto fresca. Mas Harriet não esperou que ele dissesse o que quer que fosse. Entrou
apressada, passando por seu próprio cavalo, que fora levado para lá ao chegar, e indo direto
até o animal preparado para Daniel, olhando, curiosa, para a sela. Pouco se importava se
seu comportamento pudesse parecer estranho. Tinha uma aposta a vencer.
Daniel a seguiu, calado. Harriet não viu o chicote na sela, mas avistou muitas outras
penduradas em armações de madeira. No interior dos estábulos, vários rapazes cuidavam
dos animais.
– Ora, você tem tantas selas! – Harriet tentava sorrir. E, observando ao redor,
constatou, feliz, que numa espécie de alavanca havia sido pendurado o objeto de seu
desejo: o chicotinho de montaria. – Qual é sua favorita?
– A que já está em meu cavalo – afirmou, sério. E, vendo que ela parecia aflita,
indagou: – Posso saber o que está se passando com você?
– Bem, acho que estou me sentindo... Digamos... Com uma espécie de dor de
cabeça. Nem sei se deveríamos cavalgar.
– Você é quem sabe, mas não acha que eu deveria acompanhá-la de volta a
Shalham Park. Afinal, não está se sentindo bem.
– É muito gentil de sua parte, mas não é necessário. Posso cortar caminho pelo
pasto sul de sua propriedade. Se me permitir, é evidente.
– Certo. Venha. Vou levá-la até seu cavalo.
– Não precisa! – Harriet se afastou depressa em direção à saída, fingindo apoiar-se
nas vigas de sustentação do teto.
Ao fazê-lo, esbarrou de propósito naquela em que estava pendurado o chicote, que
caiu. Rápida, Harriet se voltou, ocultando o objeto sob a saia. Depois, fingiu ajeitar as
botas de montaria e pegou-o, enfiando no bolso.
Daniel veio até ela, preocupado.
– Harriet, o que está havendo? – Segurou-a pelo cotovelo.
– Vamos voltar para minha casa, e eu chamarei um médico.
– Não! Não! Fiquei um pouquinho tonta, mas isso não é nada. Aliás, tenho isso
sempre. Quero apenas ir embora o quanto antes.
Daniel assentiu, mas não parecia convencido de que ela estivesse, de fato, tão bem.
Acompanhou-a até o cavalo e ajudou-a a montar.
– Jura que não quer que eu a acompanhe? Não seria problema algum para mim. Os
rapazes podem preparar a charrete num instante.
– Você é um doce, Daniel, mas não é preciso que se aflija com isso. Tenho de ir.
– Mas, Harriet... Bem, nada, nada. Posso ver que já decidiu voltar sozinha. Até
mais, então.
Ela viu algo de diferente na expressão de Daniel, mas, como queria muito sair de
uma vez por todas, despediu-se e apertou as pernas em torno do animal, fazendo-o sair a
galope.
Mais adiante, poderia correr ainda mais, mas, por enquanto, tinha de manter a
velocidade baixa para que Daniel de nada desconfiasse. Na ocasião propícia, encontraria
um meio de devolver o chicote com uma desculpa qualquer.

Só depois de vê-la desaparecer na estrada, Daniel permitiu-se rir. Mal conseguira


conter-se na presença dela. Quando Harriet montou no garanhão, viu seu chicote enfiado
num dos bolsos de sua saia, e, sem entender o que estava acontecendo, preferiu calar-se.
Quer dizer que Harriet arranjara aquela vista matinal apenas para roubar-lhe o
chicote de montaria... Esperava apenas que ela não acabasse deixando o objeto cair ao
cavalgar de volta para Shalham, perdendo-o de vez.
Mas o que Harriet poderia querer com seu chicote de montaria? O que poderia
querer com o relógio que fora de seu avô? E, lembrando-se da noite anterior, qual o
interesse dela em seu alfinete de gravata?
Ao voltar à mansão, ouviu vozes no hall e reconheceu a de Laurence de pronto.
– Ah, olá, meu amigo! Vim a tempo de tomar uma xícara de café? A propósito,
com quem ia cavalgar?
– Com Harriet. – Daniel fez-lhe um sinal para que o seguisse à saleta. – Pode me
olhar como quiser. Era ela, sim. Harriet veio e se foi bem depressa, pelo lado sul, por isso
não a viu.
– Harriet veio convidá-lo para cavalgar?
– Não diria isso. Parece que cavalgar era apenas um pretexto. O que queria era
roubar algo de mim.
Laurence arregalou os olhos.
– Roubar?
Daniel achou graça e, sentando-se, ofereceu a outra cadeira ao colega. E, servindo-
lhe café, relatou em poucas palavras o que houvera desde que Harriet chegara. Laurence
quase chorou de tanto rir.
– E ela fingiu que estava tonta?
Daniel fez que sim.
– Uma atuação e tanto, Laurence! E cheguei a acreditar. Só compreendi que tudo
não passava de fingimento quando vi a ponta do chicote saindo de seu bolso.
– Bem, ela sempre foi terrível, mas depois que você beijou Margaret, tomou-se uma
verdadeira santa. Sabe, acho que o problema com Harriet é que ela não se aceita como é.
Uma mulher elegante, graciosa, mas, por baixo de tudo isso, há uma garota que adora
pregar peças nos outros e se diverte quando consegue. Como quando era pequena.
– É assim que a vê?
– Sim. Por esse motivo sempre achei que vocês dois combinavam.
– Talvez. Diga-me agora, por que também veio tão cedo? Não pretende roubar-me
algo, suponho.
Laurence ainda ria.
– Não, não. Minha mãe me mandou convidá-lo. Ela fará uma festa para as crianças,
esta noite. Disse que você foi tão gentil com ela ontem à noite que faz questão absoluta de
sua presença. Posso saber o que fez para agradá-la tanto?
– Não lembro. Em dado momento, fui buscar um banquinho para que se sentasse.
Será que sua mãe se referia a isso?
– Ah, ela teria achado essa atitude maravilhosa, pode apostar. Não costuma
reclamar, mas sente fortes dores no joelho.
– Fiquei feliz por ajudá-la. E pode dizer-lhe que agradeço o convite e que pode
contar comigo. A que horas?
– Às cinco. Não se esqueça de que a reunião é para nossos queridos irmãos
menores.
Daniel gargalhou, sem saber se era uma vantagem ou uma desvantagem ser o filho
caçula.

Capítulo XIV

Na propriedade dos Douglas, havia um grande lago. Tão grande, na verdade, que
fora construído um embarcadouro junto a uma das margens. Ali ficavam os barcos que
eram usados quando, em alguma festividade ou piquenique, se queria chegar até a ilhota ao
centro.
E era na pequena ilha que a sra. Douglas decidira dar a festa para os membros mais
jovens das famílias conhecidas. Naquele começo de noite, a movimentação de
embarcações e convidados era grande, e Harriet sorria, vendo os barquinhos indo e vindo,
levando as pessoas à ilhota. E ela estava assim, nesse estado de alegria constante, desde
que conseguira ir até a mansão de Daniel e subtrair-lhe o chicote de montaria.
Quando embarcou para ir também à ilha, sentiu-se mais excitada. Até o movimento
da embarcação, quando mais pronunciado, punha-a mais atenta, mais vivaz. Queria, tão só,
experimentar emoções intensas. Imaginava que, mesmo se acabasse caindo na água, não
deixaria que isso abalasse seu estado de espírito. Seria até divertido.
Chamou por Charles e Nancy, que entraram também no barco, pedindo ao rapaz:
– Pegue os remos! Depressa! Vamos ver se conseguimos chegar à ilha antes
daquele outro grupo.
Daniel, que entrava na embarcação vizinha, olhou para ela e sorriu-lhe.
– Ah, não vão, não! – gritou ele, tomando, por sua vez, os remos. Acompanhando-o
estavam Arabella e Alison.
Charles apressou-se, e logo colocou o barco em movimento, com experiência e
braços fortes.
– Mais depressa, Charles! – Harriet o instigava, com Nancy, que se sentara a seu
lado.
E, olhando para a direita, viu que Daniel também se empenhava em remar, apoiado
pelos gritinhos entusiasmados de Arabella e Alison.
Charles se esforçou bastante, mas o barco de Daniel acabou tocando as docas da
ilha em primeiro lugar. Harriet e Nancy ficaram amuadas, mas não por muito tempo. Para
Harriet, não passara de uma competição sem maior importância, pois não havia nada em
jogo, como um alfinete de gravata, por exemplo. Por isso, cumprimentou tanto Charles por
seu esforço quanto Daniel por ter vencido a corrida.
Em seguida, Nancy e Alison juntaram-se, permanecendo no cais para receber sua
melhor amiga, Elizabeth, que vinha chegando. Quanto a Arabella, colou-se a Daniel,
falando e sorrindo para ele sem parar.
– Olhe, se você não me levar para longe dessa criatura agora mesmo, acho que vou
arrancar as orelhas dela – Harriet segredou a Charles.
Ele achou graça, ofereceu-lhe o braço e a conduziu na direção em que as mesas e
cadeiras tinham sido arranjadas para o jantar que daria início à festividade.
– Não estou vendo Frith, Harriet.
– A sra. Douglas disse que o barão não pôde aceitar seu convite. Ao que tudo
indica, um compromisso o deteria em Toinbridge Wells, e só poderia retomar amanhã pela
manhã.
– Mas que bom!
– Por que diz isso?
– Ah, lamento, mas não pude evitar, Harriet querida. O barão fala demais e, para ser
sincero, jamais gostei muito de seu jeito. Foi muito maldoso com Daniel, certa vez. Acho
que minha antipatia por ele vem daí. Jamais o perdoarei pelo que fez.
Harriet encarou-o, surpresa.
– Como assim, Charles?
O jovem pigarreou, sabendo que falara demais.
– Acho que eu não deveria ter tocado no assunto. Foi algo entre cavalheiros. É
melhor esquecermos.
Harriet suspirou. Sabia que esses tais “algo entre cavalheiros” eram sempre
guardados a sete chaves e que de nada adiantaria insistir com Charles para que se abrisse.
Na ilha, havia muitas mesas, uma banda que tocava para recepcionar os convivas e
inúmeros arranjos de flores, que ornamentavam o lugar à perfeição.
Quando todos já tinham chegado, Charles deixou Harriet com Laurence, que a
levou para seu lugar. De onde se encontrava, Harriet podia ver toda a residência dos
Douglas, muito elegante em seu estilo Tudor, cercada por belíssimos jardins.
Fora num deles que Daniel a beijara pela primeira vez. Aquele verão fora
maravilhoso, avaliou, saboreando as delícias que lhe eram servidas.
Naquela época, seu coração era inocente. Ela era uma garota cheia de vida, de
ilusões. O amor a tomara por inteiro, com toda a força, e acabara de forma abrupta e
dolorosa. E não fora por falta de avisos, pois muitas de suas amigas e a própria prima a
tinham alertado quanto à reputação que Daniel trazia consigo.

Mas ele fora seu primeiro amor. Na verdade, como os fatos viriam a provar, seu
único e grande amor.
Olhou para ele, sentado ao lado de Arabella e ouvindo com atenção alguma coisa
que a moça lhe dizia. Era como se os dois estivessem destinados um ao outro, conjeturou,
com um aperto no peito.
Daniel demonstrava interesse por Arabella, e seria até possível acreditar nos
rumores que se referiam a um provável noivado dos dois. Mesmo ressentida, Harriet sabia
que não tinha o direito de protestar, pois rompera com Daniel muitos anos antes.
A seu lado, Laurence comia com apetite, calado, e ela desviou o olhar para a praia
que se abria numa das extremidades da ilha. Sentia grande dificuldade em parar de pensar
em Daniel e Arabella juntos, e tinha vontade de apertar o pescoço da rival.
– Posso saber em que pensa? – ouviu Laurence perguntar, de repente. Ele parara de
comer, e estava prestes a tomar um gole de champanhe. – Porque está com uma expressão
tão estranha?
– Eu estava me lembrando – Harriet murmurou, com o olhar mais uma vez voltado
para os jardins da casa dos Douglas.
– Ele ainda te ama. Sabe disso, não?
– Também ainda o amo.
Laurence a encarou, surpreso com a revelação.
– É mesmo? Então, por que não lhe diz?
– Ele sabe.
O rapaz voltou-se tanto para ela que quase derrubou a taça que acabava de deixar
sobre a mesa. Parecia estar aflito.
– Harriet, vocês dois são o casal mais insano que já conheci. Ainda continua
acusando-o por causa daquele beijo idiota? Foi apenas um grande engano!
– Não. Foi a atitude de um cafajeste.
– Você não entende... – Laurence gostaria de poder dizer mais, mas calou-se.
– O que tenho para entender? Daniel gosta de ter a atenção das mulheres, nada
mais.
– É... Deve estar certa. – Suspirou. – Que bela noite, não?
Harriet ficou confusa. Poderia jurar que havia algo de estranho na maneira como
Laurence lhe falava. E o mais esquisito era que tinha a sensação de que ele lhe ocultava
algo.
– Por que você nunca se casou, Laurence? Tem a mesma idade de Daniel. A
propósito, por que nenhum de vocês se casou?
– Bem, só posso responder por mim mesmo. O fato é que a garota que amo sempre
amou outro sujeito e, ao que parece, ninguém mais parece bom o suficiente nem para ela,
nem para mim.
Harriet esperou, querendo um esclarecimento sobre aquela afirmação, mas
Laurence nada mais disse. Suas palavras poderiam estar se referindo a ela própria, mas
Harriet não acreditava ser isso possível. Laurence jamais demonstrara o menor interesse
por sua pessoa, nunca a olhara de forma diferente, jamais lhe sorrira de modo especial.
E ela começou a relembrar, a tentar visualizá-lo em todos os anos em que o
conhecia, tentando estabelecer algum laço que esclarecesse o que acabara de escutar.
Queria poder lembrar-se de algum olhar ou gesto dele que indicasse a qual garota se
referira.

A banda começou a tocar uma alegre melodia irlandesa, e Evan Douglas levantou-
se depressa, tirando Sophia Eave para dançar. Mas, antes de levá-la para o centro do
palanque, pediu a Charles que o imitasse, escolhendo uma moça para também dançarem.
Charles agiu de imediato, dando a mão a Arabella, e logo em seguida Harry Eave e
Elizabeth também formavam um par. Daniel convidou Mary, que tinha apenas quinze
anos, e Laurence voltou-se para Harriet:
– Dar-me-ia a honra?
– Mas claro!
A dança começou tranqüila, mas logo transformou-se, devido a sua rapidez e
simplicidade, em batidas de um casal contra o outro, risadas e muitas brincadeiras. A
música já não importava tanto, mas sim a alegria de estarem ali reunidos.
Assim, a noite foi prosseguindo, a festa ficando mais e mais animada, com mais e
mais champanhe e efusividade. Todos dançaram até não mais poder, em especial os
rapazes, pois havia apenas cinco deles e dez moças.
Em dado momento, todos sentaram-se, cansados, bebendo um pouco mais. Minutos
depois, Harriet sugeriu a Charles que entrasse em outra competição com Daniel, e ele
concordou de pronto, dizendo que, agora, ninguém conseguiria vencê-lo.
– Eu sabia que você poderia vencer. No entanto, um dos remos não era muito bom
– Harriet comentou, tentando animá-lo ainda mais.
– É isso! Um deles era velho.
– Então, pode deixar que vou cuidar dos acertos para esta nova corrida de barcos.
– Excelente!
Pouco depois, Harriet murmurava para Daniel:
– O que acha de uma nova disputa?
– Mais uma? Parece-me que está exagerando, Harriet.
– Ora... Achei que nada o deixasse aturdido.
– É, mas estou, sim. E mais ainda porque, mesmo tendo estado adoentada pela
manhã, você demonstrou grande vigor dançando sem parar, muito embora apenas uma
contradança comigo.
Harriet teve de rir. Lembrar-se de seu pequeno triunfo a excitava.
– Tenho excelente saúde, milorde. E, quando cheguei a Shalham, já estava ótima.
Até poderíamos ter cavalgado juntos, pois meu mal-estar foi passageiro.
– Que bom para você.
Harriet teve a impressão de que Daniel estava sendo irônico, e a idéia de que
poderia estar desconfiado a intrigou. Mas como ainda precisava ganhar aquele alfinete de
gravata.
– Então, o que me diz dessa nova competição?
– Não sei. Quais são as regras? – E, divertido, Daniel apontou para o alfinete de
gravata que trazia ao peito. Harriet deu risada.
– Isso mesmo.
– Parece determinada a ficar com minha jóia.
– Se eu puder...
– Muito bem, mas há apenas uma coisa que quero de você esta noite, e não é uma
de suas echarpes.
Harriet julgou ter compreendido de que se tratava, e mais uma vez concordou.
– Feito!
Porém, Daniel tomou-a pelo braço com suavidade, levando-a para um lugar mais
reservado, onde lhe disse:
– Está concordando com tanta facilidade num outro beijo. Estou chocado.
Harriet o encarou, experimentando mais uma vez aquela sensação deliciosa e
perturbadora que a atingia sempre que Daniel a tocava. Por um momento, não conseguiu
falar, ficando a sua mercê.
– Harriet, está precisando de seu lenço? – Era Jane quem a chamava, mostrando-lhe
a elegante peça longa de seda pintada a mão.
– Não, obrigada, querida. Mas pode usá-lo se quiser.
Jane envolveu-se de pronto na delicada peça e deu-lhes as costas. Harriet tornou a
fitar Daniel, sabendo que agora conseguiria responder-lhe:
– Não fiz objeção a seus termos porque estou certa de que não vencerá. Eu e
Charles estaremos num barco, na volta pelo lago, e você em outro, com uma dama que
escolher.
– Quer dizer que Charles já concordou com a aposta.
– Óbvio que sim! Ele não tem dúvida de que poderá vencê-lo agora, e eu também
não tenho.
– Muito bem, deixe-o tentar. Mas posso lhe garantir que logo, logo estará me
devendo outro beijo. – E Daniel se afastou, à procura por Mary Weaver, mais uma vez
encantando a adolescente com suas atenções.
No entanto, Harriet logo desconfiou daquela escolha. Por que ele iria querer Mary a
seu lado no barco? Foi quando a resposta pareceu luzir em sua mente. Mary era miúda,
magrinha, e a embarcação de Daniel ficaria bem mais leve, portanto, bem mais rápido e
fácil de ser impelido pela água.
Assim, com um gemido de frustração, Harriet retornou para junto de Charles, não
mais tão certa de que a aposta estava ganha.
Pouco depois, sentada diante do amigo, Harriet gritava, animando-o a remar com
mais e mais vigor. Foi uma concorrência acirrada, com os dois barcos seguindo quase lado
a lado, na mesma velocidade, por todo o percurso de volta às docas.
Mas, no meio do lago, Charles conseguiu uma certa vantagem, o que fez o coração
de Harriet bater bem mais depressa.
O alfinete com a esmeralda logo estaria em seu poder, e a aposta com sua amiga e a
prima estaria ganha! Poderia seguir para Brighton e esquecer seu amor por Daniel.
– Estamos voando como o vento! – gritou deslumbrada para Charles, que remava
com energia redobrada.
Mary Weaver, por sua vez, entrara de fato na disputa, incitando Daniel a remar
também, brincando de piratas, gritando que o "navio" corsário os alcançava e que
precisavam de mais ímpeto para salvar as próprias vidas.
Daniel ria. Talvez por se divertir com o que Mary dizia, ou por sua maior robustez
em relação a Charles, mas o fato era que sua embarcação avançou mais e começou a
aproximar-se daquele ocupado por Harriet e seu amigo.
Harriet notou que Charles se esforçava o quanto podia, mas os barcos estavam
próximos, flutuando, graciosos e velozes, sobre a superfície. E ela queria tanto aquela
esmeralda. Precisava tanto dela.
Contudo, sua preocupação de nada adiantou. Daniel conseguiu, por fim, ultrapassá-
los e vencer Charles uma segunda vez. Ela perdera a esmeralda de novo e, o que era ainda
pior, devia outro beijo ao conde.
Os convidados e anfitriões gritavam, animados, nas margens, saudando os
vencedores e consolando os perdedores. Quando tomaram a aportar, Daniel exultava.
Olhou para Harriet com um sorriso malicioso nos lábios. E, sabendo que um homem como
ele pouco esperaria para receber seu prêmio, Harriet seguiu, resoluta, passando por todos
em direção aos jardins dos Douglas.
– Imagino que irá querer seu beijo agora – disse, quando notou que Daniel vinha
logo. – Pois acho que o momento não poderia ser mais apropriado, pois todos ficaram para
trás. Além do mais, prefiro pagar logo o que devo, embora não queira que você se
aproveite de forma alguma.
– Ora, mas esse seu comentário não poderia ser mais romântico! – Gargalhou com
ironia. – E imaginar que cheguei a achar que poderia não querer meu beijo, srta. Godwyne.
Mas aqui está você, tão ansiosa por estar em meus braços.
– Pretendo apenas cumprir o que prometi, nada mais.
– E tudo apenas por um alfinete de gravata com uma esmeralda... Bem, mas eu
sabia que você manteria sua promessa.
Sem esperar por mais nada, Daniel a enlaçou, puxando-a contra si.
– Não podemos ser vistos daqui, Harriet. E, uma vez que ganhei a competição, este
beijo contra algo que também aprecio muito e que me é muito valioso, pretendo, sim, me
aproveitar o quanto puder.
Harriet estava dividida entre a irritação pelo que ele dizia e a sensação de abandono
que a invadia.
– Mas mostra o que você é – falou, com certa dificuldade. – Peço-lhe que me beije
logo e termine depressa com isso!
– Primeiro quero que me diga por que quer tanto meu alfinete de gravata. Esta é a
segunda vez que o pede como pagamento numa aposta.
– Decerto porque gosto muito de esmeraldas.
– Bobagem. O que pretende, Harriet? Não costuma ser tão gentil comigo, nem tão
atenciosa, como tem sido nos últimos dias. Se fosse outra mulher, eu julgaria que estava
flertando comigo.
Harriet jamais poderia revelar-lhe a verdade da aposta que fizera com Margaret e
Jane. Por isso preferiu tentar uma saída.
– Talvez eu esteja flertando com você, para fazê-lo provar de seu próprio veneno.
Prender seu coração, e, quando disser que me ama, eu sairia para beijar. Digamos...
Laurence.
Ele pareceu pensar, mas logo sorriu.
– Gostaria de ver isso. Quem sabe ficasse tão enciumado que chamasse Laurence
para uma luta, um duelo! E, como nós dois atiramos muito bem, poderíamos morrer
ambos, e você choraria por mim. Choraria por mim, Harriet?
– Eu nunca poderia chorar por alguém tão tolo!
– Ah, choraria, sim! Lamentaria noite e dia por ter me perdido. Admita! – Daniel
passou os lábios por sua testa, num carinho que a fez estremecer.
– Pare com isso e beije-me logo!
– Não tenho pressa. Terá de se acostumar com meus carinhos. Aliás, eu já lhe disse
o quanto gosto da cor de seus cabelos?
– Sim, mais de uma vez. E o fez ontem, na taverna.
Ele beijou-lhe de leve a têmpora.
– Pronto! – Harriet tentou soltar-se.
– Não, não, não! Isso nem foi um beijo, e você bem sabe disso.
– Muito bem, mas posso saber por que adora me atormentar?
– Porque sei que não me é indiferente e que deseja este beijo tanto quanto eu. Posso
sentir seu coração batendo apressado.
– Não, não pode!
– Posso, sim. Vejo sua pulsação bem aqui, na base de seu pescoço. – Daniel olhou
para o local a que se referia e, com calma, beijou-o.
Ele jamais a beijara assim, forçando de leve sua cabeça para trás. Harriet foi tomada
de uma paixão tão intensa que mal conseguia respirar.
E o conde continuou beijando-lhe o pescoço com doçura por algum tempo, pondo-a
fora da realidade. Só então apertou-a mais contra si e beijou-a na boca, com um desejo
insano.
Harriet deixou-se mais uma vez levar pela luxúria e correspondeu sem reservas.
Mesmo assim, quando Daniel terminou, entreabriu os lábios e, sem dar-se por vencida,
indagou, rouca:
– Pronto? Acabou de cobrar o que eu devia?
Ele assentiu, completando:
– Por enquanto, sim. Consegue andar?
– Creio que consigo, embora deva confessar que minhas pernas estão fracas.
– Aceitarei essa observação como um elogio. E agora quero fazer-lhe um pergunta
bem simples. Se gosta tanto assim de estar em meus braços e de me beijar, não acha que
seria bem melhor se fôssemos casados e estivéssemos em nossa cama?
Harriet sentiu o rosto se aquecer, mas não pôde mentir.
– Acho que eu morreria...
Daniel esboçou um largo sorriso, envolvido por aquelas palavras.
– Minha Harriet querida, você me encantou desde o primeiro instante em que a vi.
Por favor, case-se comigo. Eu lhe imploro! Diga que sim.
Ela ponderou por instantes e engoliu em seco.
– Não. Será que não consegue ver, Daniel? Eu jamais poderia confiar em você.
– Não poderia confiar em si mesma – ele rebateu.
– O que quer dizer com isso?
– Que, quando se entrega, perde a sensação da realidade, deixa de querer controlar
sua vida, seu destino. Confesse, Harriet. O amor que sente por mim a apavora.
Ela o encarava, incapaz de acreditar no que ouvia. Estava atônita consigo mesma,
com tudo que fora capaz de fazer nos últimos dias.
Mesmo sua vontade de entrar numa aposta com Margaret e Jane tinha sido tão
imprópria que ainda a assustava. Seria possível que não se conhecesse?
Uma lembrança a invadiu. Algo que acontecera havia muitos anos, que ocorrera
antes mesmo de ter conhecido Daniel e que deixara enterrado em seu subconsciente até o
momento.

Fora num mês de agosto, bem quente, mas não tanto que conseguisse aquecer as
águas do riacho que corria na parte sul de Paddlesworth. Harriet tinha dezesseis anos e
entrara na água, tirando as meias e andando pelas pedras da margem, deixando-se afundar
até os joelhos e, depois, a cintura. Adorara fazer algo que era considerado escandaloso para
as jovens da época, mesmo estando sozinha.
Pensara na ocasião: ‘Como seria a vida se pudesse ser vivida de forma livre, sem
restrições, sem esse sentido idiota do que é ou deixa de ser impróprio?’

A recordação se foi, e ela viu Daniel ainda a sua frente. Sentia-se estranha. E, em
um átimo de segundo, seguindo apenas seus impulsos, segurou-o pela lapela do paletó e
deu-lhe um beijo longo, faminto.
Com a mesma ferocidade com que o agarrara soltou-o, olhando-o, aturdida, e
murmurando.
– Eu não devia ter feito isto! – E saiu correndo por entre os arbustos do jardim, sem
dar chance a Daniel para uma reação.
– Harriet!
Mas, como uma criança, ela tapou os ouvidos e continuou a correr.
Daniel observava-a de longe, vendo-a se distanciar. Estava pasmo diante do que
Harriet fizera, sem saber o que pensar, o que deduzir. Porém, não conseguia segui-la
tampouco. Meneando a cabeça, deu meia-volta e retomou ao lago.
Ela o beijara. Harriet o beijara! Fora um beijo inesperado, repentino, que ainda
queimava, ardia em seus lábios.
Admirava a audácia dela. Por que Harriet agira assim? Imaginara, talvez, que em
troca daquele beijo poderia conseguir seu alfinete de gravata?
Não. Harriet podia ser muitas coisas: teimosa, voluntariosa, manipuladora até,
quando queria, mas naquele momento Daniel sentiu que ela quisera apenas beijá-lo, nada
mais. E ele adorara!
Mesmo que sua mente parecesse lhe dizer para tomar cuidado, para evitar entregar
seu coração a ela, já não era capaz de se deter. Quem sabe, no futuro, fosse mais
cuidadoso. Talvez depois. Talvez nunca.

Capítulo XV

Ao retomar para Shalham Park naquela noite, Harriet foi logo em busca de seus
pais para saber como o pai estava.
Uma das criadas informou-lhe que o casal devia se encontrar na sala que se abria
para o salão de bilhar, mas que não tinha muita certeza, porque havia levado um bule de
chá para lá, a pedido da sra. Godwyne, mas isso fazia mais de duas horas.
Harriet seguiu para a parte mais a leste da enorme residência. Sentia-se um tanto
inquieta, como se tivesse feito algo de errado, mas, mesmo pensando muito a respeito, não
conseguia imaginar o que poderia ser que a perturbava tanto assim.
Sentia-se cansada, reconhecia, o que podia ser a causa de sua sensação. Afinal,
depois de tanto dançar e da competição contra Daniel, para não mencionar os beijos que
trocara com ele, uma jovem tinha de ser feita de aço para não sentir-se estranha, exausta.
Ao se aproximar das portas duplas da grande sala de bilhar que precedia o recinto
em que seus pais deveriam estar, ouviu uma risada baixa, reconhecendo de imediato a
presença de sua mãe. E seu coração se aqueceu com esse som.
Se existia uma coisa que seu pai sempre conseguia fazer era provocar risadas em
Eugênia. E logo em seguida ele mesmo riu, mostrando que a recíproca era verdadeira.
Talvez formassem um casal perfeito, afinal, analisou, sorridente. Tinham chegado a
Shalham brigando devido ao problema de saúde de Howard, quando Harriet até duvidou
que fossem felizes. E agora via que sempre fora ingênua demais sobre o que constituía a
verdadeira felicidade de um casal.
Estava mais próxima da entrada e ouviu mais risadas. Tocou uma das folhas da
porta, que se achava entreaberta, e forçou-a um pouco para abri-la, mas viu que Eugênia
beijava seu pai, e se deteve. A sra. Godwyne estava sentada no colo do marido, bem
afastada de seu pé doente, com os braços em volta de seu pescoço.
A cena foi tão forte para Harriet que ela deu alguns passos atrás, sendo, porém,
ouvida.
– Filha? – Eugênia a chamou. – Vamos, entre!
Ela assim o fez, mas sabia que seu rosto estava corado devido ao embaraço.
– O que pensava? – Eugênia sorria. – Que nunca beijei seu pai? Vamos, entre e
conte-nos como foi sua noite.
Ao mesmo tempo, ela ficou de pé e sentou-se numa poltrona próxima. O cômodo
era pequeno e aconchegante, e havia uma bandeja com um bule de chá e xícaras logo ao
lado.
– Gostou da refeição, meu bem? Todos seus amigos estavam lá?
– Sim, a comida estava excelente e todos compareceram à festa, mamãe. Com
exceção de lorde Frith, que teve de ir a Toinbridge Wells. Mas ele voltará amanhã.
– Portanto, a tempo para o baile que Daniel irá patrocinar.
– Suponho que sim.
– Que bom! – Eugênia olhou pela janela, para a noite densa lá fora. – Um vento
forte soprou há algumas horas. Imaginamos que pudesse ter atrapalhado as festividades.
Harriet sentou-se junto da mãe.
– É, de fato. Atrapalhou nossa dança, e a maioria das moças não gostou de ter os
cabelos desfeitos. Porém, acabamos dançando ainda debaixo de uma cobertura.
– Então, dançaram na grama?
Harriet sorriu e explicou à mãe como fora divertido dançar as rápidas músicas
irlandesas no gramado, com encontros e colisões involuntários entre os pares. Laurence até
dissera que tinham acabado de inventar um novo estilo.
– Mas que interessante, filha! E ninguém se machucou, não houve tornozelos
torcidos, por exemplo?
– Não, não. Mas acho que foi por pura sorte.
A conversa continuou, alegre e despreocupada, por quase meia hora. Até mesmo
Howard achava graça quando Harriet contava alguma passagem da reunião que acabara
sendo mais divertida.
Por fim, quando lhes dissera tudo, ou quase, pois omitiu seu encontro com Daniel,
dirigiu-se ao pai para perguntar:
– E o senhor? Como está seu pé? Melhor? Não tem doído tanto?
– Só um pouquinho, querida. Acho que amanhã conseguirei andar, embora
mancando um pouco. Ah, mas como sinto falta de meu vinho.
– E vai continuar sentindo – afirmou Eugênia, muito séria.
O casal trocou algumas respostas mais firmes, e Harriet percebeu que o momento
era propício para se retirar.
– Bem, meus queridos, estou cansada e vou me recolher.
– Sim, querida! – A mãe sorriu-lhe. – Aliás, acordou tão cedo para cavalgar até
Kingsland.
Harriet arregalou os olhos.
– Sabia que fui até lá hoje?
– Anjinho, estamos no interior, onde as notícias voam com o vento. Não vai
conseguir dar um passo sequer sem que toda a vizinhança saiba.
Harriet fez uma breve mesura e se virou para sair, quando ouviu a voz de Howard.
– Então, pretende de fato ficar com ele, não?
Entendendo de imediato que o pai se referia a Daniel, voltou-se ainda uma vez para
responder.
– Não. Claro que não, papai.
– Ainda o culpa, depois de sete anos, por causa daquele beijo em Margaret?
– Imagino que o assunto seja mais sério do que pensa.
O sr. Godwyne ergueu a mão, chamando-a, e, quando Harriet já estava a seu
alcance, acariciou-lhe os dedos finos, aconselhando:
– Escute, amor. Eu já a conheço há muito tempo, e muito bem. E conheço Daniel
por quase o mesmo número de anos. E gosto dele. Sempre achei que acabaria servindo o
Exército, como seus irmãos, que são todos muito bons rapazes. E lhe darei minha opinião
agora sobre esse seu caso com o conde, quer você queira, quer não. Daniel é o homem
certo para você. Frith jamais seria um marido do qual sentisse orgulho, filha, mas Daniel,
sim. Bem, acho que já falei o que queria. Agora, se quiser ir para a cama.
Harriet se espantou muitíssimo com o que ouviu do pai. Inclinou-se e beijou-o no
rosto, depois fez o mesmo com sua mãe e, em silêncio, dirigiu-se à porta. De lá ainda os
olhou e depois se foi.
Mais tarde, aconchegada entre as cobertas de sua cama, não conseguia adormecer.
Pensava nas brigas de seus pais, no carinho que presenciara entre eles, no conselho que
Howard lhe dera sobre Daniel.
E os beijos que dera e recebera dele, na festa, permaneciam em sua boca,
queimando-a, enchendo-a de desejo e impedindo que dormisse. Ficou horas acordada,
ouvindo os sons da casa, revirando-se no leito, cobrindo-se e descobrindo-se. Quando, por
fim, pegou no sono, já era madrugada.
Na manhã seguinte, contudo, ao despertar, a primeira coisa que veio à mente de
Harriet foi a aposta que fizera com Jane e Margaret. Afinal, teria tempo mais do que
suficiente para pensar em amor, casamento e felicidade. No momento, tinha de concentrar
sua atenção em conseguir aquele alfinete de gravata.

O baile na casa de lorde Connought prometia ser um grande evento. Harriet já tinha
dançado com vários rapazes: Frith, Charles, Evan, Harry e até com o sr. Eave. No entanto,
não conseguira nem um momento a sós com Daniel. Nem mesmo uma contradança.
Chegara a Kingsland havia três horas e ainda não pudera trocar mais que um
cumprimento com ele. Como anfitrião, Daniel se esmerava em dar atenção a todos, mas
Harriet sentia que havia algo mais, diferente, em seu comportamento distante. Chegara a
notar que, ao aproximar-se dele, Daniel sempre conseguia uma boa desculpa para se
afastar. Isso já acontecera três vezes, em suas contas.
Na primeira vez, ele dissera que precisava falar com lady Eave naquele mesmo
instante, pois a senhora fora ignorada, mesmo que não de propósito, por todos os presentes,
desde que chegara. Na segunda ocasião, Daniel a colocou nos braços de Harry para que
dançasse com ele. E na última, quando se aproximara do grupo em que ele se encontrava,
vira que, segundos depois, o conde se afastava dizendo que era preciso ir falar com outros
convidados que acabavam de chegar.
Daniel a evitava, concluiu, aborrecida. Mas por quê? Pior do que tudo era a
estranha sensação de medo, quase pânico, que a assaltara desde a manhã, e que se devia,
sem sombra de dúvida, àquela aposta infeliz que fizera com Jane e Margaret.
Sim, já tinha o relógio de Daniel e seu chicote de montaria, mas parecia-lhe
impossível conseguir o alfinete de gravata.
Não poderia sugerir outra competição para não correr o risco de parecer ridícula,
ou, quem sabe, de Daniel vir a desconfiar e descobrir por que vinha se comportando
daquela maneira. Em resumo, tinha menos de três dias para conseguir algo que lhe parecia
impossível.
Andou pelo salão, onde alguns casais dançavam valsa, e viu quando Daniel levava
sua prima, Mary, para o centro. Não pôde deixar de sorrir, apesar de sua frustração. Mary
era tão miúda, e Daniel tinha o porte tão atlético, que parecia que ele rodava com uma
criança.
Aos quinze anos, Mary era inexperiente e olhava-o, encantada, a cabeça muito
voltada para cima, para poder vê-lo. Era óbvio que a graça com que dançavam era devida
apenas à habilidade dele. Um verdadeiro cavalheiro, Harriet analisou, observando-os, e
nada poderia ser melhor para Mary do que ter sua presença e carinho no ano em que se
colocava como debutante na sociedade.
Quando, um dia, a jovenzinha estivesse num dos salões de Londres, Mary iria se
sentir segura, pois quando ainda muito jovem e inexperiente dançara com nada menos do
que o conde Connought.
Colocando-se a um canto, de onde podia estudar o salão por inteiro e vendo os
convivas dançando e conversando animados, Harriet sentiu-se menos inquieta. Pôs-se a
apreciar detalhes da mansão de Daniel, como já fizera tantas vezes antes.
Sempre achara belíssimo o salão de baile de Kingsland, muito bem decorado. Era
um ambiente bem iluminado, elegante, com fileiras de janelas em ambos os lados maiores,
que podiam ser abertas caso a atmosfera reinante necessitasse. A governanta, muito
eficiente, ornamentara o recinto com flores e folhagens, tornando-o fresco e agradável para
aquela noite tão quente. E o efeito era intenso, delicioso.
No entanto, o grupo de convidados dessa ocasião não era grande, e as mesmas
pessoas, amigas e familiares, que compareceram à festa da ilha, na véspera, estavam
presentes dessa vez também.
– Adorável, não, srta. Godwyne?
Harriet voltou-se para ver Arabella, que a observava com seus intensos olhos
verdes. Tinha de admitir que Arabella era linda. Uma beleza morena que despertava muitas
paixões, com certeza. Porém, havia algo em sua expressão, uma espécie de ambição
disfarçada, ou uma falsidade mal encoberta, que deixava Harriet tensa.
– É verdade. – Forçou-se a sorrir. – A governanta de Kingsland, a sra. Billings, tem
um gosto excepcional e uma capacidade incrível para deixar todos encantados.
– De fato. Adorei a colocação das plantas aqui dentro. Uma idéia genial que fez o
clima ameno, suave. Porém, eu me referia à arquitetura desta mansão quando fiz meu
comentário. Kingsland não tem igual em toda a Inglaterra.
Harriet não concordava. Sabia que havia casas parecidas com aquela, e até outras
muito mais ricas e belas.
– A propriedade do conde é muito linda, sim – disse apenas.
Arabella riu, completando:
– Acho que só eu a acho mais incrível do que as outras. – E desculpando-se,
afastou-se em direção a Daniel, já que a valsa acabara de terminar e ele levava Mary para
sua mãe.
Laurence veio ter com Harriet e pediu-lhe a próxima contradança.
– Sophia pisou tanto em meus pés que estou precisando desesperadamente de uma
nova parceira. E você, Harriet, sempre dançou muito bem!
– Ora, ora, está me elogiando demais, Laurence! Posso saber o que quer com isso?
A música começou e ele ergueu seu braço, convidando-a.
Harriet aceitou-o, com um sorriso.
– Não estou querendo nada, minha cara. Se pudesse ver os ferimentos em meus pés,
saberia do que estou falando.
Harriet deu risada, seguindo-o no ritmo da dança.
– Pobre Sophia. Ela pratica tanto, mas parece que não consegue ter a graça de Jane,
nem a agilidade de Alison.
O silêncio de Laurence era incomum e a fez erguer os olhos para saber por que não
lhe respondia com uma de suas animadas tiradas. E estranhou o fato de vê-lo muito sério,
olhando para um dos cantos do salão, onde lorde Frith conversava com Margaret.
– Ela está deslumbrante de azul, não acha, Laurence?
– É... Suponho que sim.
– E aquele arranjo de flores em seus cabelos ficou divino. São dos jardins de
Shalham, eu acho.
Laurence continuava atento ao local onde se achavam Margaret e Frith.
– Deve ter deixado algum arbusto sem flor alguma. – ele afirmou, distraído.
Harriet se virou também na direção em que ele olhava. Lembrava-se muito bem do
que Laurence lhe dissera na noite anterior, sobre o fato de amar uma mulher que amava
outro e que, por isso, lhe era inacessíve1.
– Você está apaixonado por ela! – Harriet sorria, sabendo, por instinto, que era
verdade.
Laurence prendeu a respiração por segundos, errando os passos da dança,
corrigindo-se, porém, de imediato. Em seus lábios, um esgar de derrota.
– Já que adivinhou, espero que mantenha discrição.
– Não sei... Talvez sim, talvez não... – Harriet raciocinava rápido, adorando
atormentá-lo.
– Não ousaria contar a Margaret!
– Eu poderia guardar segredo, mas isso teria um preço.
Laurence encarou-a, perplexo.
– Como assim?
– Algo muito simples. Quero dançar uma valsa hoje com Daniel, mas tenho a
impressão de que ele resolveu me evitar.
– Mesmo? Bem, isso me parece estranho, a não ser que...
– Sim?
– Ora, não faço idéia. Nem poderia.
Harriet ficou desconfiada, mas resolveu não insistir. Preferiu pedir-lhe:
– Vai me ajudar, então?
– Como? Ali, claro que sim. Imagino que terei de fazê-lo, não é? – Havia
divertimento no olhar dele, mas que a levou a crer que Laurence não se importaria muito se
Margaret soubesse de seu interesse.
Quando a dança terminou, ficou a observá-lo e viu-o seguir direto para Daniel. E
teria dado qualquer coisa para descobrir o que os dois falaram.
Daniel ouviu-o e, de repente, deu risada. No entanto, Laurence tomou-o pelo braço,
levando-o para um canto.
– Não me diga que decidiu casar-se, de fato, com Arabella – O amigo parecia
irritado, o que não era de seu feitio.
– Do que está falando, Laurence?
– Sei que já dançou com ela, mas Harriet acaba de me dizer que você a está
evitando.
– Estou? Ela lhe falou isso?
– Sim. Quero saber se está fazendo essa grosseria de propósito.
Daniel deu de ombros.
– Talvez esteja.
– Daniel, posso saber por que resolveu agir assim? Devo imaginar que tenha, de
fato, gostado da possibilidade de casar-se com Arabella?
– Tenho meus motivos, amigo.
Laurence ponderou por instantes, observou ao redor e voltou-se para indagar:
– Quer desfazer nossa aposta?
– Sim. – Daniel sentia-se inquieto. – Diga-me, por que acha que Harriet quer dançar
comigo?
– Não sei, droga! No entanto, achei que poderia ser um bom sinal. Ela quer dançar
uma valsa com você, e não uma dança menos romântica.
– Uma valsa.
– É, foi o que me disse.
– Foi Harriet quem o mandou falar comigo?
– Exato, mas, na realidade, a danadinha está me chantageando, digamos assim. Ela
descobriu algo a meu respeito que não quero que seja revelado, e jurou que acabaria com
meu segredo se eu não conseguisse que você a tirasse para dançar. Olhe, companheiro,
tenho a impressão de que bastaria que desse um leve empurrãozinho para que Harriet se
jogasse em seus braços. O que está esperando? Já ganhou a aposta!
Daniel encarou o amigo e sorriu de leve.
– Não sei, não. Para ser franco, acho que Harriet também está fazendo seu jogo.
– Será? Bem, seja como for, tudo me parece funcionar às mil maravilhas para você.
– Imagino que sim. Contudo, não estou gostando nada disso e pretendo pressioná-la
um pouquinho mais. Mas diga-me, o que foi que nossa amiguinha descobriu e que decidiu
usar contra você?
Laurence voltou o olhar em direção a Margaret, que ainda conversava com lorde
Frith. Suas palavras saíram baixas e repletas de preocupação.
– Harriet descobriu que estou apaixonado por sua prima. O problema é que não
quero que Margaret saiba, por enquanto, por isso, peço-lhe, meu amigo, se puder dançar
com ela, faça-me esse favor. O quanto antes, sim?
– Certo. – Daniel bem sabia que não conseguiria fugir de Harriet a noite inteira.
Além do mais, não o agradava ter de casar-se com Arabella, mesmo sendo ela a
beldade que era.
Harriet viu Daniel se afastar de Laurence e vir até ela, cruzando o salão na intenção
de convidá-la para a próxima valsa. E aceitou-o de imediato, embora não conseguisse
imaginar o que o amigo teria dito que surtira efeito tão imediato.
– Então, pareceu-lhe que eu a estava negligenciando. – Daniel observou, tomando-a
nos braços e encarando-a com um sorriso.
– Um pouco, sim. Mas perguntava-me se, por acaso, o teria ofendido de alguma
forma.
– De forma alguma, posso lhe garantir.
Como fizera com Mary, Daniel a levava pelo salão em reviravoltas precisas e
graciosas. E Harriet sentiu, de repente, uma apreensão que a perturbou.
– Gosto tanto de valsas. E você sabe dançar muito bem, milorde.
Todavia, Daniel não parecia tão satisfeito quanto ela. Olhou-a, sério.
– Você anda me deixando curioso, sabia? Se não achasse que o que diz é bem
dirigido, diria que está tentando me adular. Mas nada há em sua atitude agora que indique
falta de sinceridade, como não houve ontem, quando nós dois nos falamos, no jardim em
casa de Laurence.
Harriet tinha de tomar cuidado. Sua intenção fora começar uma conversação em
que os assuntos fossem triviais, para depois poder entrar na questão que lhe interessava: o
alfinete de gravata. Mas ainda não tinham dado uma volta inteira pelo salão e já se via
envolvida no tema de seu relacionamento com Daniel, que lhe era bem difícil de tratar.
A honestidade dele a forçou a rememorar o que acontecera entre ambos nos jardins
dos Douglas. Não podia, em hipótese alguma, revelar a Daniel nenhum detalhe sobre a
aposta que fizera, que a obrigara a ter de reaproximar-se dele. Também não queria revelar-
lhe que gostava de sua companhia, nem considerava a idéia de explicar-lhe os motivos que
a levaram a beijá-lo daquela forma na véspera.
Portanto, preferiu apenas desculpar-se.
– Creio que me comportei de uma forma ridícula. Desculpe-me. Não deveria tê-lo
beijado.
Os movimentos rotativos da dança começavam a deixá-la tonta.
– Mas você o fez. Por quê?
– Tratou-se apenas de um impulso. É melhor esquecermos.
– Ainda tem a intenção de me repudiar, pelo que vejo.
– Claro que sim. Nada mudou. – Harriet sentiu-o apertar o braço que a prendia,
numa reação ao que ouviu.
– Arriscaria dizer que, se tenho tentado evitá-la, é justo por isso. Pode ter me
beijado, pode ter ficado emocionada por causa do beijo que lhe dei depois da corrida de
barcos, mas eu sabia como seria. Neste exato momento, estou tão irritado com você que, se
não estivéssemos dançando, iria colocá-la em meus joelhos e lhe dar uma boa surra.
Harriet ficou estupefata diante de tal afirmação, e apenas olhou-o, imaginando
primeiro se seria capaz de prosseguir dançando sem errar os passos, e depois como poderia
dizer alguma coisa, se estava de boca aberta.
– Isso, continue me olhando desse jeito, Harriet. Tem dado às cartas nos últimos
dias, o que tem sido muito estranho, e devo confessar que estou farto disso, desse seu jogo
de gato e rato em que se mostra ardente num minuto e fria como gelo em outro. Acha que
sou feito de pedra e que pode ficar brincando, comportando-se como bem entender
enquanto me mantenho a seu dispor? Não, senhorita. Seja qual for seu jogo, não estou mais
fazendo parte dele. Há apenas uma coisa que quero ouvir de seus lábios a partir deste
momento, que deseja se tornar minha esposa. Nada mais. Qualquer coisa diferente,
considerarei um absurdo.
Harriet sentia-se zonza, estranha, um tanto nauseada. Se Daniel de fato estivesse
dizendo o que pensava, e parecia estar, acabaria sendo forçada, devido à aposta que fizera,
a casar-se com ele, afinal de contas.
Engoliu em seco, sem conseguir aceitar que acabara de perder a batalha, e, assim
sendo, estaria nada mais nada menos do que dando a Daniel o que ele acabara de lhe
exigir: sua mão em casamento. Que grande ironia!
Entretanto, não queria se desesperar, e imaginou que poderia haver uma solução
bem simples para seu problema. Porém, teria antes de terminar aquela contradança.
Portanto, disse:
– Acho que tem razão, Daniel. Agi mal com você e por isso peço-lhe perdão. Será
que poderíamos, pelo menos por alguns instantes, até que a música termine, esquecer
nossas diferenças e aproveitar a valsa? Talvez depois consigamos conversar, porque ainda
há algo que quero muito lhe pedir.
Ele a analisou por longos momentos. E continuou valsando, levando-a ao redor do
salão nos movimentos da melodia, agora mais rápidos.
– Está certo – concordou, por fim.
E passou a abordar outros assuntos, a maioria deles sem maior relevância, como o
clima, um pequeno corte que seu cavalo sofrera no passeio que dera com ele naquela
manhã, e, para terminar, quando Harriet pretendia retomar a Brighton.
– Porque sei que sempre vai para lá depois de suas férias de verão em casa de
Margaret.
– Na próxima semana – Harriet respondeu, esquecendo-se, por instantes, de que
não mencionara nenhum de seus planos.
O olhar de Daniel fixou-lhe o rosto naquele momento, e algo em sua expressão,
decepção talvez, quase feriu o coração dela. Só aí Harriet passou a compreender de fato
tudo o que fizera a ele desde que começara com suas maquinações para conseguir os
objetos necessários para vencer.
– Entendo – Daniel murmurou, muito sério.
A conversa parou por aí, e terminaram de dançar na mais absoluta quietude. Assim
que tomou-lhe a mão para levá-la de novo ao local de onde a tirara, Daniel sugeriu que
fossem até a sala de bilhar para poderem ter uma conversa em particular. Harriet
concordou de pronto. Havia outros lugares muito mais perigosos ali do que a grande sala
de jogos com sua imensa mesa de bilhar. O jardim, por exemplo, o terraço, ou, pior ainda,
o escritório, que era um cômodo muito afastado de onde estavam.
Seguiram para lá em silêncio ainda, e cada passo pareceu a Harriet conduzi-la para
um local muito, muito distante. Quando chegaram ao cômodo vazio, ela já sabia o que
queria dizer. E começou, sem maiores preâmbulos.
– Fiz algo muito tolo. E nem tenho uma explicação ou desculpa para meus atos.
Mas peço que me dê seu alfinete de gravata e prometo deixá-lo em paz.
Daniel andou pela sala, sem direção específica. Então, voltando-se, encostou-se na
mesa de bilhar e cruzou os braços, observando-a, atento.
– De algum modo, neste momento, estou relutante em dar-lhe seja lá o que for,
Harriet. Já tem meu relógio, que, aliás, me é caríssimo, pois pertenceu a meu avô. Por que
precisa de meu alfinete de gravata? Sabe muito bem que foi um presente de minha mãe.
Ela podia ver que Daniel estava sendo teimoso de propósito. E preferiu continuar
com a farsa.
– Quero a esmeralda de seu alfinete porque ela seria, para mim, uma lembrança de
seu amor. Sinto que não conseguirei ter o futuro da forma como sonhei, e me disseram que
lembranças desse tipo ajudam a tomar o espaço da afeição, bem como da discórdia, em
nossos corações, afastando os sentimentos de dentro de nós. É como se pudessem nos
livrar de uma escravidão dos sentidos, de sentimentos sem esperança e sem utilidade.
– Sem esperança, talvez. Mas não sem utilidade? – Havia sarcasmo na voz dele. –
Porque, senão por outro motivo, esses mesmos sentimentos a fazem lembrar-se de que tem
um coração, srta. Godwyne, mesmo que prefira não utilizá-lo.
– Isso não é justo, Daniel. Não quando foi você quem...
Ele ergueu a mão direita, como a mostrar que as palavras dela precisam de um sinal
físico para não serem pronunciadas.
– Já chega! Beijei Margaret e não sou digno de você! Bem, deixe-me dizer-lhe uma
coisa, moça. É você quem não é digna de mim. Quando a conheci, quando a vi pela
primeira vez, achei que tinha encontrado uma mulher cujo espírito falava de perto ao meu,
que era minha alma gêmea, cujo peito estava aberto a aventuras e emoções. E quando nos
beijamos, soube que aquele foi seu primeiro beijo na vida. Estava apaixonado, Harriet,
mas, naquele segundo, fiquei enredado por completo por sua paixão, por sua inocência. E
me refiro não só a sua paixão no sentido romântico, mas a que demonstra pela vida.
Daniel olhava-a de tal forma que Harriet sentia que ele penetrava sua alma. E
continuou ouvindo-o, incapaz de interrompê-lo.
– O que houve? Por que o beijo que dei em Margaret naquela noite matou por
completo a alegria, a ousadia que existiam em você? Por que sua coragem desapareceu, a
confiança se desintegrou dessa forma? Não consigo acreditar que um simples beijo sem
maiores intenções tivesse tal força ou poder. Na verdade, jamais acreditarei numa coisa
assim tão tola! Disse-me, é lógico, que aquele beijo destruiu sua confiança em mim, mas
por que permitiu que também destruísse o que você era, e que acredito ainda é? Minha
única satisfação é que, nesta semana, em sua perseguição por meu relógio, meu chicote de
montaria, o qual você nem teve a gentileza de pedir uma segunda vez, e meu alfinete de
gravata, pude voltar a ver algo daquela garota maravilhosa pela qual me apaixonei como
louco há sete anos. Todavia, começo a pensar que tenho amado um fantasma.
Harriet continuava calada e atônita diante daquilo tudo. Seus pensamentos tentavam
colocar-se em ordem, mas sentia dificuldade em fazê-lo. E ainda não os tinha ordenado de
maneira apropriada quando disse:
– Mas foi você quem me fez agir! Eu não ia... Ah, não posso explicar. Eu estava tão
assustada. – Teve de interromper-se, pois o corredor encheu-se de vozes e risadas
masculinas.
Harriet calou-se, e não ficou nada surpresa quando sir Edgar, o sr. Douglas e seu tio
apareceram à soleira.
– Olá! – saudou o sr. Douglas, sempre bem-humorado. Bem, o que é isto? Estamos
interrompendo alguma coisa?
– De modo algum. – Harriet tentava sorrir. – Lorde Connought e eu estávamos
tendo uma breve discussão, como sempre fazemos, mas creio que já chegamos ao fim.
Portanto, vamos deixar a sala para os senhores.
– Se é assim... – murmurou o sr. Weaver, com olhar perspicaz e cheio de
sagacidade.
Daniel adiantou-se, oferecendo o braço a Harriet, para levá-la de novo ao salão.
– Fiquem à vontade, cavalheiros.
Mais aliviada, Harriet seguiu com ele até lorde Frith. Daniel deixou-a ao lado do
rival, que não perdeu tempo em convidá-la para a próxima contradança.
Quando o número terminou, o jantar foi servido, e o barão conduziu Harriet à sala
de jantar.
Estavam entrando quando Laurence passou por eles, esbarrando no ombro de Frith.
– Laurence! – Harriet o chamou. – Andou bebendo outra vez?
Ele se virou, oferecendo-lhe um sorriso e uma resposta.
– Não tanto quanto gostaria. – E deixou escapar um soluço.
– Ele nunca conseguiu beber mais de dois ou três copos sem sentir o efeito do vinho
até na alma – Frith desdenhou.

Harriet sentou-se à mesa, ao lado de seu acompanhante, mas mal tocou nos
deliciosos quitutes que foram servidos.
Ficou ouvindo Frith lhe falar, mas sem ouvir de fato o que dizia, e de repente deu-
se conta do quanto Daniel significava em sua vida. E chegou a esperar que jamais
conseguisse o alfinete de esmeralda dele, que o destino pudesse decidir por ela quanto a
seu casamento. Amava-o, sem sombra de dúvida. Isso em nada mudara naqueles anos
todos. Amava-o com loucura. E o que ouviu de seu pai veio-lhe à memória, forte e claro.
Daniel era o homem certo para ela. Frith não lhe daria orgulho algum como marido, mas
Daniel, sim.
A constatação da realidade tomou-a de assalto. Depois de tudo o que Daniel lhe
falara havia pouco, em especial quando lhe disse que tinha amado um fantasma, mesmo se
quisesse agora desposá-lo, havia grande possibilidade de que ele a rejeitasse por completo
devido a tudo que o fizera passar.
– O que me diz, minha querida? – indagava lorde Frith, encarando-a. Segurava seus
dedos frágeis com firmeza e apertava-os.
Mais uma vez, Harriet deu-se conta de que estava sendo pedida em casamento por
ele. Prendeu a respiração, sem saber o que responder, e soltou-se.
– Não me diga que não estava me escutando outra vez?
– Peço-lhe mil perdões, Frith. Não pude evitar. Estava com a cabeça longe.
Sua atenção foi chamada pela entrada de Daniel. Ele vinha com Margaret, que pelo
jeito lhe contara algo de muito engraçado, pois ele ria com satisfação.
Um ciúme repentino e forte surgiu no peito de Harriet e, mesmo sendo Margaret
sua prima querida e tendo total confiança nela, soube que poderia arrancar-lhe os cabelos
ruivos um por um. E preferiu desviar-se.
– Então, é isso – Frith comentou, aborrecido.
– O quê? Oh, não! Se estiver pensando que Daniel... Está muito enganado! Sinto
muito, Frith, mas é que estou muito distraída esta manhã. Digo, esta noite. Por que não me
faz uma visita amanhã cedo para podermos conversar melhor? O que me diz?
– Está bem.
O barão lhe sorria com tanta confiança e intimidade que Harriet entendeu que suas
intenções de poder seduzi-la ainda eram fortes. Fosse como fosse, pretendia ser franca com
Frith, dizendo-lhe que jamais poderia ser sua esposa.
Arabella aproximou-se, tocando de leve o ombro de Harriet e segredando-lhe:
– Sua prima parece saber muito bem como entreter lorde Connought.
– De fato. Margaret é uma companhia muito agradável.
Sentia que era estranho Arabella ter se aproximado com a única intenção de tocar
no assunto. E mais espantada ainda ficou quando a beldade pediu ao barão que lhes desse
licença, pois tinha algo de vital importância para tratar com Harriet.
Frith levantou-se, gentil, e, com uma mesura, afastou-se.
– Eu jamais teria a intenção de interromper o que parecia ser uma conversa íntima
entre você e lorde Frith. – Arabella tentava falar de forma que ninguém mais as escutasse.
– Mas o fato é que acabei de saber de uma novidade que me foi contada por Laurence
Douglas. Ele está bêbado, como sempre, mas achei que devia compartilhar o que soube
com você. Em outras circunstâncias, eu não interferiria, mas como sou sua amiga, achei
que não deveria ocultar-lhe nada.
Harriet ficou curiosa.
– Do que se trata, afinal?
– Bem, o fato é que você foi motivo de uma aposta entre Daniel e seus amigos,
Charles e Laurence.
Harriet sentiu o sangue gelar. Tinha, já, suspeitado de algo semelhante, mas saber
que era mesmo verdade, e que talvez a atitude de Daniel, ou parte dela, se devia a tal
aposta, a abalou.
– Uma aposta?
– Isso mesmo. Daniel deveria mostrar-se interessado por você outra vez até que
estivesse pronta a dizer-lhe que o aceitava em casamento. Assim que o fizesse, a aposta
estaria ganha por ele, e o perdedor, Laurence, teria de pedir a mão de sua prima Margaret.
Harriet engoliu em seco diante da segunda parte da revelação. Quer dizer que o
tempo todo Daniel pretendera apenas convencê-la a aceitar seu pedido.
– Se eu concordasse em me casar com ele, teria de fazê-lo? – indagou, confusa.
Arabella fez que não.
– Sei que é terrível, querida. Daniel não precisaria se casar com você. A aposta
falava apenas na prova de que ele tinha, sim, ganhado seu coração.
– Entendo.
Harriet tentava compreender tudo. Sabia por intuição que, fosse qual fosse o
interesse de Daniel na aposta, os sentimentos dele por ela eram verdadeiros, apesar da
natureza vil daquele jogo entre rapazes.
Daniel podia ser muitas coisas ruins, mas jamais duvidara de que a amava. E sabia
que o provocara muito e deixara que ficasse com uma má impressão a seu respeito nesses
anos todos. Mesmo assim, continuava apaixonado.
Por fim, achou que entendia tudo muitíssimo bem e, se Arabella esperava que
ficasse infeliz, estava redondamente enganada.
Sentiu a mão da falsa amiga em seu braço e virou-se para ver a expressão de
piedade nos olhos dela.
– Está se sentindo bem, Harriet? Agi mal em informá-la sobre tudo isso?
Harriet demorou a responder. Entendia muito bem qual era a motivação de Arabella
em tudo aquilo. Se estivesse fora de seu caminho, ou por detestar Daniel pensando ser ele
um homem que se deixava envolver tão fácil por outra, ou ainda, se fosse embora de
Shalham, não haveria empecilho para que ficasse com Daniel de vez.
Por isso, sorriu, complacente:
– Não há nada melhor do que uma verdadeira amiga, Arabella. Ainda mais quando
ela está sempre disposta a se apressar em revelar qualquer evento mais escandaloso. Esta
não é a primeira vez em que conto com você para me avisar de algo terrível, não é mesmo?
Devo imaginar que não poderia existir amiga melhor, então. Agora, se me der licença, acho
que Margaret está acenando para mim.
– Mas claro.
Arabella não estava à vontade. Havia em seu belo rosto uma expressão consciente e
repentina que demonstrava ter percebido que Harriet captara muito bem suas intenções.
Harriet levantou-se, ansiosa por falar com sua prima, mas Charles apareceu a seu
lado, puxando-a, insistente, para uma dança folclórica que começaria em alguns instantes.
Assim, a conversa que tanto queria ter com a prima ficaria para mais tarde.
E, já que sabia do interesse de Laurence por ela, estava mais do que ansiosa por
poder falar com Margaret para saber se existia, de sua parte também, algum interesse por
ele.
Capítulo XVI

Mais tarde, nessa mesma noite, Margaret bateu na porta do quarto da prima e, ao
ouvir a permissão para entrar, esgueirou-se pela fresta que abriu.
Sentou-se na cama junto de Margaret e contou-lhe com detalhes tudo o que
Arabella lhe dissera sobre a aposta que Daniel, Charles e Laurence haviam feito, inclusive
explicando a parte que elas três, Jane, Margaret e Harriet, tinham no que os rapazes haviam
combinado. Quando terminou, olhou para a prima, ansiosa, perguntando:
– O que acha de tudo isso?
Margaret, que escovava os cabelos devagar, com prazer, e que não a interrompera
nem uma única vez durante todo o relato, ponderou por alguns instantes, ainda atônita
diante das revelações de Harriet. Sua quietude foi se prolongando, deixando a prima mais e
mais ansiosa.
– Margaret?
A jovem colocou a escova sobre a mesa-de-cabeceira, mas continuou calada. E
assim ficou, pondo Harriet ainda mais apreensiva. Por fim, lágrimas surgiram em seus
olhos e, diante da expressão pasma de Harriet, curvou-se sobre as próprias pernas e
desabou em soluços.
– Margaret! – Harriet a abraçou, sem saber o que dizer. – Calma, calma. O que está
havendo com você? – Não conseguia entender a que se devia aquela reação. E, baixando a
cabeça, tentou ver o rosto da prima. – O que houve, querida?
Depois de alguns segundos, durante os quais tentou se acalmar, Margaret
murmurou:
– Ele não me ama. E nunca me amará. Será que alguma mulher já foi mais tola do
que eu?
Harriet engoliu em seco, abraçando ainda mais a prima. Por fim compreendia a
causa de tamanha dor. Embora não pudesse quebrar sua promessa a Laurence e revelar
sobre o que ele sentia, achou que podia, pelo menos, dar alguma esperança à prima.
– Margaret, em minha opinião Laurence não lhe é indiferente. Na verdade, acho até
que ele a quer bem.
Margaret encarou-a, muito séria.
– O que está dizendo? Acha que Laurence poderá me amar?
Harriet tentou sorrir.
– Sim. Acho que ele está... – interrompeu-se.
Poderia dizer mais, mas ocorreu-lhe, de repente, que Laurence lhe dissera na
véspera que a moça pela qual se apaixonara amava outro que não a queria. Assim, encarou
a prima por longos momentos, piscando várias vezes.
– Oh, meu Deus! – O susto a atingiu por completo. A realidade aparecia, enfim, nua
e crua. – Não estava falando de Laurence agora, não é?
Margaret não respondeu, nem se mexia. Muitas lágrimas banhavam seu rosto.
Negou de leve com a cabeça.
– Daniel? – Harriet arriscou, num sussurro.
Margaret fez que sim.
– Há quanto tempo?
Mais lágrimas surgiram. Margaret não respondeu de pronto, e as duas
permaneceram caladas por vários minutos. Por fim, a jovem respirou fundo, juntando toda
sua coragem para revelar.
– Desde que consigo me lembrar, Harriet. Jamais houve outro homem para mim.
Sou uma grande idiota!
Harriet se ergueu, pasma. Sentia que estava vivendo um sonho. Ficou assim,
estática, pensando por algum tempo, para depois deixar-se sentar mais uma vez.
– Então, naquele dia em que ele a beijou, você deve ter desejado que o conde o
fizesse.
– Eu queria, sim. Sei que foi uma péssima atitude de minha parte, visto que sabia
que ele e você se amavam. Porém, Daniel disse que aquele beijo seria apenas para
comemorar seu noivado, embora eu achasse um tanto estranho, permiti. Entretanto, desde o
princípio, notei que o conde queria apenas tocar meus lábios de forma inocente. E, quando
o fez, passei meus braços por seu pescoço e não o soltei. Queria tanto aquele beijo! Não
pode imaginar quanto, Harriet. Depois, quando você desfez o compromisso com o conde, o
remorso que senti foi grande e terrível, mas, no fundo, tive esperança de que então, estando
livre, Daniel pudesse me notar e até vir a me amar um dia.
Margaret encarou a prima, com olhos vermelhos e sinceros.
– Tenho sido uma péssima amiga para você. Todos estes anos eu a tratei muito pior
do que Daniel jamais fez. Harriet, sei que vai me desprezar quando souber de tudo.
– Por quê? Há mais ainda? – quase gritou, espantadíssima.
Não conseguia imaginar o que mais Margaret poderia ter para revelar-lhe. E,
quando viu que a prima estava ficando pálida, com os olhos arregalados e o queixo
trêmulo, decidiu enfrentar a situação e pressioná-la.
– Muito bem, diga. O que mais fez?
– É tudo tão horrível! Tão... Mesquinho! Conheço você desde que éramos bebês,
sei como é, e, se a tivesse encorajado em vez de concordar com suas opiniões estúpidas
sobre o amor e o casamento, você já teria se casado com Daniel há anos. Mas achei que, se
não suavizasse seu coração, então haveria uma chance de, um dia, Daniel ser meu.
Harriet baixou os olhos, tentando desesperadamente entender a maneira de
raciocinar e os sentimentos de sua prima.
– Então acha que eu estava errada em tê-lo recusado sem cessar, até agora?
– Todos sempre viram o quanto Daniel lhe é devotado, e aquele beijo, pelo menos
no que se refere a Daniel, foi inocente.
Harriet encarava-a, incrédula.
– E está me dizendo isso agora, depois de tantas vezes ter falado mal dele, de seu
caráter?
– Sei que não há desculpas possíveis para minha conduta, Harriet.
Margaret viu quando Harriet tornou a se levantar e seguiu, em silêncio, até a porta.
Ao vir ao quarto da prima para contar-lhe as novidades do que Arabella lhe dissera
sobre a aposta de Daniel e seus amigos, Harriet podia esperar qualquer coisa, menos o que
acabara de escutar. E não conseguiu fitar Margaret, nem responder-lhe quando ela lhe
pediu, suplicante.
– Pelo amor de Deus, Harriet, perdoe-me! Por favor!
Ela saiu para o corredor e seguiu, às cegas, para seus aposentos.

O quarto estava silencioso e em penumbra. Harriet sentara-se numa cadeira junto à


janela e bebia uma xícara de chocolate quente.
Acordara com o coração pesadíssimo. Era terça-feira, e o dia não ficara muito claro
ainda. Seis dias tinham se passado desde que a aposta fora feita, e tantas coisas haviam
acontecido, tantas palavras foram trocadas, tantas coisas ditas por ela e por Margaret contra
o caráter de Daniel, que Harriet sentia como se carregasse o peso do mundo em suas
costas.

A traição de Margaret a sua amizade pesava mais que tudo. Quase tanto quanto
algumas palavras que Daniel lhe dirigira e que continuavam a povoar sua mente. Ele lhe
dissera que a ouvira acusá-lo de que aquele beijo destruíra a confiança depositada em sua
palavra e que ela mesma permitira que destruísse também a garota que fora e ele ainda
acreditava ser.
Harriet começou a imaginar se, em todos aqueles sete anos, permanecera presa
numa espécie de armadilha entre o amor de Margaret por Daniel e sua própria e
inexplicável relutância em relação ao homem pelo qual se apaixonara. Eram questões
misteriosas que não faziam sentido.
E uma delas, entretanto, se sobressaía. Teria, em algum momento, percebido o
amor de sua prima por Daniel e preferido fazer de conta que não o via? Recordava o
comportamento de Margaret em muitas ocasiões e não se lembrou de nada que pudesse ter,
de fato, revelado a real natureza de seus sentimentos. Afinal, Margaret sempre fora muito
discreta nesses assuntos. Tanto quanto ela própria.
A única pista que poderia ter tido era: Margaret permitira que Daniel a beijasse
naquela época, mas achara que isso não tinha passado da atitude de um canalha que sabia
muito bem como ludibriar uma mocinha, mesmo uma jovem inteligente e sensata como
Margaret.
Agora, analisando as circunstâncias, Harriet via, pela primeira vez, o quanto sua
prima fora má. E o papel de Daniel como sedutor e cafajeste parecia desaparecer.
Mesmo tendo ele cometido um ato errado, Margaret soubera desde o princípio
sobre o noivado, sobre o quanto Harriet o amava, e, por ter permitido que Daniel a
beijasse, podia ser vista como uma grande traidora, nada mais. Harriet não se conformava
por nunca ter tido essa linha de raciocínio antes.
Bebeu mais um gole de chocolate e deixou a xícara sobre a mesa ao lado. Como
pudera ser tão cega? Como nunca vira nada? Teria sido uma enorme tola? Podia agora
apenas concluir que, por algum motivo, nunca desejara saber a verdade, e passara a ignorar
qualquer sinal que se apresentasse.
E havia mais. Margaret continuara a traí-la, apoiando suas opiniões erradas quanto
ao amor e ao casamento, que a mantiveram afastada de Daniel nesses anos todos. E estava
desconcertada quanto a isso. Mesmo assim, vendo tudo tão claro agora, notava que era
uma traição igual à outra, à do beijo, e ela também se mantivera obtusa, como se não
quisesse enxergar o que se passava diante de seu nariz. Mas por quê?
Quanto mais pensava, menos compreendia a si mesma. Sempre tivera orgulho de
suas idéias, de sua maneira de agir, de suas opiniões, mesmo justificando sua teimosia ao
chamá-la de virtude e de princípios. E assim, jamais questionara sua conduta. Nunca.
Naqueles sete anos, não parara para pensar melhor, até estar tão infeliz que não teve
outra saída a não ser observar seus próprios princípios e seu coração de uma forma bem
mais coerente.
E se houvesse, por todos esses anos, se escondido atrás de suas regras? Que tipo de
caráter era o seu afinal?
Por fim, decidiu ponderar sobre o mais importante: a opinião de Daniel de que ela
mudara, que tinha deixado uma coisa muito valiosa ser destruída dentro de seu espírito.
Quanto do que ouvira dele na véspera seria verdade? O que lhe acontecera ao longo do
tempo em que ficara longe dele, de seu amor, ressentida e teimosa? O que acontecera com
a jovem que ousara andar com as saias erguidas até quase os quadris nas águas frias do
riacho, em Padd1esworth, naquele longínquo mês de agosto? O que se passara com a moça
que beijara Daniel com tamanho abandono, que entregara seu coração ao homem com
fama de sedutor, de mau-caráter?
Ele lhe chamara a atenção justo para tudo isso, e dependia dela apenas verificar se a
opinião dele era, de fato, correta.
Parecia que sim.
Ao olhar para seu passado, em especial aqueles dias em que Daniel começara a
cortejá-la, quando parecia não se cansar de dizer-lhe belas palavras, mostrar-se solícito,
presente, apaixonado, e por fim conseguira atrai-la, Harriet via alguém que mal se parecia
com o que era hoje. Não mais se reconhecia. Aquelas semanas de namoro foram uma
deliciosa entrega de sua parte nos braços de seu amor, algo de que jamais se esqueceria e
de que nunca se arrependeria.
Adorara cada momento que passara com lorde Connought, os beijos roubados a
princípio, correspondidos com ardor depois, os toques que a deixavam arrepiada, trêmula,
as frases que ele ousava dizer, sem pudor, porque sabia que Harriet queria ouvir.
Naquele instante, porém, quando enxergava tudo o que acontecera com maior
clareza, também via ocasiões em que, depois de um abraço apaixonado, um beijo
carregado de desejo, ou após um encontro ousado em que desafiara regras da sociedade só
para estar nos braços dele, ela se recolhia à solidão de seu quarto e via-se tremendo de
medo por tudo que fizera, tudo o que ousara.
Sabia que, mais de uma vez, estivera pronta a terminar aquele romance porque
tinha receio da reputação que Daniel carregava consigo, e preocupava-se em ir longe
demais e colocar sua família numa posição vergonhosa diante da sociedade. No entanto,
quando estava com Daniel, perdia por completo a noção do perigo, do que era certo ou
errado, seus temores desapareciam e deixava para trás qualquer receio.
Começava, atônita diante de si mesma, a compreender que o beijo que ele dera em
Margaret não passara de uma desculpa para que desfizesse seu compromisso com ele por
puro medo. E, chegando a tal conclusão, cruzou os braços, como para não entregar-se às
dores do mundo, e sentiu a força da realidade desabando sobre sua cabeça como uma
grande tormenta.
Pôde lembrar-se muito bem daquele terrível momento em que Arabella viera até ela
para contar-lhe a novidade, para dizer-lhe que vira Daniel e Margaret se beijando. Sim,
uma parte de seu ser ficara devastada com isso, mas outra, talvez a mais sensata, sentiu-se
aliviada. Não precisava mais temer, muito embora não soubesse do quê. Afinal, fora o
próprio Daniel quem se provara indigno de seu afeto. Estava, desse modo, livre para poder
desfazer o noivado.
Margaret ficara pálida, confusa, envergonhada, diante do incidente, mas Harriet lhe
garantira que não a culparia por nada, porque sabia muito bem quais eram os pendores de
Daniel e que ele se comportara como já era de se esperar. Como o infame que era, que
sempre fora. E ficara dando passos pela sala, pensando coisas cada vez mais terríveis sobre
a atitude dele e criando um muro intransponível em torno de si mesma.
Desde aquele dia, sua conduta mudara, e tornou-se uma moça reclusa, fechada.
Quando Daniel a visitava, podia protestar à vontade, desculpar-se, implorar seu perdão;
nada a abalava, nada amolecia seu coração. Ele suplicara perdão pelo beijo, mas Harriet se
colocara contra Daniel em definitivo.. E assim fora até então.
Na última festa, quando Arabella lhe contara sobre a aposta atual da qual ela fazia
parte importante, devia ter se sentido aliviada, como agora queria estar. Afinal, sua opinião
sobre o caráter de Daniel estaria mais uma vez ratificada. Poderia até vangloriar-se de sua
extraordinária percepção e continuar a pensar mal sobre ele o quanto quisesse.
O problema era que nunca antes estivera tão infeliz quanto se achava nesse
momento. O que poderia ter lhe servido bem quando tinha dezoito anos não adiantava
agora que era mais experiente, aos vinte e cinco.
E assim passou várias horas ali, ponderando, analisando tudo. O que acontecera, e
abrindo tanto quanto podia toda a verdade dentro de si, de sua mente, de seu espírito.
Examinou todos os seus receios e surpreendeu-se por descobrir que, embora ousada e
voluntariosa como fora, tornara-se muito menos corajosa do que sempre julgara ser.
E, no meio de suas cogitações, chamou por sua criada e pediu-lhe que a ajudasse a
vestir-se e pentear-se.
Quando ficou pronta, notou que ainda não se preparara para agir conforme suas
deliberações. Portanto, levou consigo um livro, carregando-o por vários cômodos, depois
por vários bancos dos jardins. Não lia, nem tomava nenhuma outra atitude. Apenas
caminhava daqui para ali, fingindo fazer algo. Quando alguém aparecia, abria o livro e
fingia estar muito interessada na leitura, o que afastava qualquer familiar que pudesse vir a
interferir em seus pensamentos.
Assim, pôde prosseguir com a avaliação de toda sua vida, suas forças e fraquezas,
perdida em reflexões.
Quanto a Margaret, ficou sabendo que a prima não descera porque era vítima de
uma forte enxaqueca. ‘Pobre Margaret.’ Mas ela a traíra! Pior ainda, Harriet nunca
conseguira ver aquela traição pelo que ela era de fato. E o mais terrível de tudo fora que
usara as ações de sua prima para esconder-se de si mesma.
Entrou pela terceira vez no jardim, levando o livro nas mãos, quando avistou um
homem que também entrava, pelo outro lado. Imaginou que poderia ser Daniel, e seu
coração se acelerou de imediato. Queria, mais do que tudo no mundo, conversar com ele,
apresentar-lhe suas conjecturas tão complicadas e ver se era capaz de ajudá-la a desfazer a
intrincada rede de nós que dera em sua própria alma.
No entanto, acabou por reconhecer a figura de lorde Frith, que se aproximava
sorridente. Tirou seu chapéu ao vê-la.
– Será que a incomodo, minha querida? – E tomou-lhe a mãos para beijá-la.
– Não, não. Você é sempre muito gentil e não me incomoda de forma alguma.
Gostaria de caminhar pelo jardim?
– Mas é claro. Vamos?
Harriet podia ficar à vontade em companhia de lorde Frith, e sabia disso. Estava
sempre segura quando a seu lado e, embora soubesse que tinha algo de importante a fazer,
em especial no que se referia a compreender a si mesma e suas emoções, descobriu-se
contente pela pausa bem-vinda em suas aflições.
– O que o traz a Shalham, barão?
– Bem, eu estaria mentindo se lhe desse algum outro motivo que não fosse vê-la,
minha cara. E devo acrescentar que fiquei preocupado desde ontem. Não pude deixar de
ver que, depois de sua conversa com a srta. Orlestone, você ficou muito... Digamos...
Tensa. E agora constato que sua expressão ainda guarda marcas da ansiedade que me
pareceu sentir após o jantar.
– É mesmo? E além de notar, preocupou-se? Reconheço que não poderia ter melhor
amigo do que você, Frith.
– Muito bem, então se importaria em contar-me o que houve para deixá-la tão
ansiosa? Mesmo agora ainda me parece inquieta.
Harriet olhou-o, tentando bloquear o suspiro que lhe subiu do peito.
– Temo parecer ridícula, mas estou numa situação em que não consigo encontrar
uma saída.
Frith permaneceu calado por instantes, refletindo, para perguntar.
– Pode me dizer qual é a natureza dessa situação? Talvez eu possa ajudá-la de
alguma forma.
– Saiba que valorizo muito sua amizade, mas acho que não pode fazer nada por
mim. Estou analisando meus pensamentos, tudo o que sinto, na verdade, e só eu mesma
poderei chegar a alguma conclusão.
– Isso me parece ser bem grave. Mas sempre achei que, mesmo em momentos
assim, o conselho de um amigo, quando sincero e desinteressado, pode lançar uma nova
luz ao tema.
– É muito gentil, mas ainda creio que não adiantaria.
– Está sendo injusta comigo.
– Estou? De que forma?
– Por não confiar em mim o suficiente para me contar o que a aflige. Sempre quis
ser seu confidente, Harriet. Sempre imaginei que confiasse um pouco em mim, na verdade,
e pode se surpreender com o que poderei fazer para auxiliá-la, até mesmo no que diz
respeito a sua felicidade.
Harriet parou de caminhar e voltou-se para encará-lo.
– Tem sido um excelente amigo por todos estes anos. Sempre está a meu lado, e
não quero causar-lhe nenhum tipo de ofensa ou decepção e sei que, se eu lhe dissesse o que
se passa comigo, acabaria por ser assim. Sabe, não sou sempre a mais virtuosa e bem-
nascida moça que gostaria de ser, ou que você possa pensar que sou.
– Agora está sendo injusta consigo mesma, minha cara. – Frith tomou-lhe as mãos,
apertando-as de leve entre as suas. – Conheço sua disposição, sua impetuosidade, que
revela de maneira tão graciosa aos que fazem parte de seu círculo social. E, neste
momento, desejo apenas poder ficar com você, tê-la para mim, amá-la, cuidar de seu bem-
estar, vê-la diante de mim em todos os desjejuns de minha existência futura. Harriet, case-
se comigo.
Ela piscou várias vezes, tomada de espanto pelo pedido repentino. Podia ver que
Frith lhe falava com sobriedade e gentileza. E desejou que seu coração pudesse pertencer-
lhe. Talvez, ponderou.
– Se... Se ao menos me beijasse. – murmurou, quase sem sentir.
Um sorriso apareceu nos lábios de Frith, que a tomou nos braços de imediato.
Beijou-a com força, mas os braços dela estavam colocados entre seus corpos, e assim
permaneceram, como se ela nada sentisse durante aquele beijo.
Poderia pedir-lhe que a soltasse naquele mesmo instante, mas quisera saber o que
sentia pelo barão, se haveria uma pequena possibilidade de, um dia, vir a amá-lo. E,
enquanto era beijada, ficou esperando que a magia funcionasse como funcionava com
Daniel. Em vão.
Não houve aquela deliciosa sensação de não sentir mais o chão sob seus pés, nem o
estremecimento que identificava sua paixão, nem o arrepio que a presença de Daniel
sempre lhe provocava. Não houve nada, e ela estava decepcionada.
O beijo terminou, por fim. Nem foi tão longo, mas pareceu durar tempo demais
para Harriet. Frith afastou-se um pouco, sorrindo.
– Sou o homem mais feliz do mundo.
– Mesmo?
Ele tomou-lhe a mão e a fez passar o braço pelo seu, retomando o passeio.
– Quando nos casarmos...
Mas Harriet retirou seu braço, mais rude do que pretendera.
– Acho que me interpretou de forma errada, Frith. Sei muito bem que a culpa foi
minha, mas você foi muito precipitado. Nem pude completar o que ia dizer. Eu dizia que,
se ao menos me beijasse, talvez pudesse ter uma visão melhor do que sentia por você. E
percebo agora que não devia ter colocado minhas emoções à prova dessa forma, em
especial porque você não compreendeu minha intenção, e peço-lhe que me perdoe. Frith,
lamento muito, mas não posso aceitar seu pedido de casamento pela simples razão de não o
amar. E acredito que jamais conseguirei amá-lo.
O rosto de Frith perdeu toda a cor, como se ele acabasse de receber um golpe fatal.
No entanto, seus lábios permaneciam corados, o que era estranho.
– Não compreendo.
– Por favor, me desculpe por tê-lo mantido à espera durante estes anos todos. Agi
muito mal, reconheço. Devia ter deixado claro que não poderia haver esperanças, e não
deixar que você pensasse o contrário. Mas, para lhe ser franca, até este momento acho que
nunca consegui me entender. E ainda estou muito confusa comigo mesma.
– Se está confusa, não deveria apressar-se em suas conclusões. Espere um ou dois
dias para me dar uma resposta definitiva.
– Não, não é isso. Estou confusa com muitas coisas, mas não com meus
sentimentos em relação a você. Não poderei ser sua esposa. Nunca, entende? Não o amo
como uma esposa deve amar seu marido e suplico-lhe que me perdoe por isso e por
qualquer outro mal que eu possa ter lhe causado.
– Perdoá-la? Quer que eu a perdoe? Meu Deus, Harriet! Tem noção do que está me
dizendo? Do que está rejeitando? Deve estar muito atrapalhada, mesmo. Tenho uma renda
de doze mil libras por ano! Nem mesmo Daniel ganha tanto assim.
Harriet afastou-se dois passos, olhando-o, atônita e surpresa. Frith parecia
irritadíssimo, e nunca antes o vira assim. O barão sempre se mostrara gentil, confiável,
controlado.
– Sinto muito. – conseguiu murmurar, vendo, nos olhos dele, que a expressão agora
era outra, mais dura, mais intensa. E deu outro passo atrás.
– Tenho esperado durante todos esses anos! Venho acreditando e esperando que
consiga superar essa sua ridícula ligação com Daniel. É por isso que não consegue me
amar e não vai conseguir amar nenhum outro tampouco, não é?
Não se tratava apenas de uma "ridícula ligação", Harriet avaliava, magoada. E
desviou-se, por não poder lhe dar uma resposta. Sentiu que lágrimas apareciam em seus
olhos e piscou, tentando evitar que descessem por suas faces.
– Vamos, responda-me! – Frith quase gritou. – Mereço saber pelo menos isso, não?
– Por favor, não me pressione...
– Não quer que eu a pressione? – Agora a raiva dele vinha misturada à ironia. –
Fiquei a seu lado como um tolo por sete anos, sempre com esperança de que minha
gentileza, minha bondade para com você e, sobretudo, minha persistência, pudessem, de
alguma forma, fazê-la esquecer essa bobagem juvenil e dar-me a recompensa que mereço!
Em vez disso, vem me dizer agora que não me ama, que jamais poderá se casar comigo.
Pois saiba que me sinto muito, muito usado. E não gosto disso.
– Não agi de propósito! – Tornou a encará-lo. – Não foi essa minha intenção. Eu
apenas não sabia ao certo o que sentia, o que pensava. Creio que esperava que meu
sentimento pudesse mudar e até cheguei a achar, certas vezes, que... Ah, mas isso não
importa mais. Sei agora que não poderei desposá-lo.
As pupilas dele cintilavam de raiva e indignação. Parecia estar rígido, feroz. E
Harriet chegou a ter a impressão de que, a qualquer momento, ele poderia agredi-la. No
entanto, de repente, sua atitude mudou, suavizou-se.
– Você é uma inocente, querida. Sempre foi. – E curvou-se de leve, num
cumprimento, dando-lhe as costas.
Mas, conforme se afastava, Harriet pôde ouvi-lo acrescentar, para si mesmo.
– Sei muito bem a quem atribuir a culpa disso.
Ela o viu afastar-se, sabendo que o barão culpava Daniel por seu fracasso. Mas ele
estava errado. A própria Harriet o enganara, embora sem intenção de fazê-lo, talvez para
não experimentar o medo que a assolava agora.
Talvez fosse melhor chamá-lo de volta e contar-lhe toda a verdade. Mas, como
acabara de magoá-lo, decidiu esperar para que conversassem numa outra ocasião.
Continuou passeando pelo jardim. A questão agora era o que podia ser feito para
reverter aquela situação e ser perdoada por Daniel.

Capítulo XVII

Daniel apoiou-se em seu taco e observou Laurence se voltar, do outro lado da mesa
de bilhar, para fazer sua próxima jogada. Nesse movimento, ele se colocou de costas para
Charles, que aproveitou para mudar uma bola de lugar.
– Coloque-a de volta – Laurence disse, sem nem mesmo ter visto a trapaça, e
encarou o amigo.
– Mas como você consegue saber?
– Vi, pelo canto dos olhos, quando se inclinou sobre a mesa, Charles.
– Eu podia estar apenas tentando um ângulo melhor para minha próxima tacada.
Laurence continuou fitando-o, de cenho franzido.
– Acha que sou algum idiota?
Charles riu, sem graça, e depois de ver o amigo jogar, tomou sua posição para fazer
o mesmo. Era um ótimo jogador, não havia dúvida, e não existia motivo para querer
trapacear sem cessar, e sempre com Laurence.
Daniel apenas os analisava, sorrindo, tranqüilo, embora não estivesse feliz. Sua
última discussão com Harriet o desgastara muito, como uma corrente forte que vai
arrastando pedaços de terra ao longo de um rio.
E, em sua mente, misturavam-se as lembranças mais recentes, a começar por sua
chegada ao pomar em que ela estava e aqueles beijos que tinham trocado lá.
Já fazia uma semana, e era como se ainda pudesse senti-la junto a si,
correspondendo, demonstrando que também o queria, para depois mostrar a costumeira
hostilidade.
E tantas outras ocasiões tinham estado juntos nos últimos dias, tantos outros beijos
aconteceram, tudo para terminar com aquela amarga discussão, na véspera, ali mesmo,
junto à mesa de bilhar onde ele agora jogava com seus melhores amigos.
Sentiu um peso tomar-lhe o peito, uma espécie de cansaço vindo do desespero. Era
muito estranho, mas sentia que já não se importaria se nunca mais tornasse a ver Harriet
Godwyne. E não conseguia explicar o porquê.
As bolas produziam seu barulho característico ao baterem umas contra as outras,
trazendo sua atenção mais uma vez para o jogo. Apesar da tentativa de trapaça de Charles,
ele ainda ganhou aquela partida de forma honrada, o que deixou Laurence irritadíssimo. E,
imaginando que a sorte do outro não se devesse a sua habilidade, mas a seu embuste,
passou vários minutos discorrendo sobre a falta de caráter de Charles, quando, de repente,
uma comoção no corredor chamou-lhes a atenção.
Daniel virou-se para a porta, percebendo que a voz de seu mordomo se elevava
mais do que o normal, e Mollash parecia estar discutindo com um visitante indesejado.
– Mas o que é isso? – murmurou, dando alguns passos à frente.
Daniel girou a maçaneta e lançou um olhar para a extremidade direita da residência,
onde notou que, de fato, Mollash barrava a entrada de alguém na entrada principal. Para
sua total surpresa, lorde Frith apareceu, por trás do fiel criado, transtornado, ameaçando
esmurrar o mordomo se ele não saísse do caminho.
Daniel ordenou:
– Deixe-o entrar, Mollash. – E, já se dirigindo ao recém-chegado, indagou, em tom
pouco amistoso. – O que pensa estar fazendo tratando meu mordomo desse jeito, Frith?
O barão avançou pelo corredor, indo até Daniel. Era evidente que se encontrava
fora de si.
– De todos os cafajestes que já conheci, todos os canalhas, você provou ser o pior!
Daniel arqueou as sobrancelhas, mantendo-se calmo.
– É mesmo? E quando foi que chegou a tal conclusão?
– Conseguiu me tirar o único prêmio que já consegui, e juro por Deus que pagará
bem caro por isso! – E, sem vacilar, Frith ergueu o braço direito e desferiu um violento
golpe contra Daniel.
Mesmo tendo sido pego de surpresa, Daniel revidou da mesma forma, e fez o barão
cambalear para trás e acabar perdendo o equilíbrio. Do chão, ele olhava com raiva para
Daniel. Passando a mão pela face atingida, imprecou.
– Maldito seja!
Daniel apenas o observava, calado, tentando imaginar o que trouxera Frith até ali
em tal estado de espírito.
– Não devia ter dito isso. – Laurence apareceu por trás do amigo.
– É verdade, Frith – Charles concordou, a seu lado.
– E então? – Frith provocou-o. – Vai ficar aí parado, sem dizer nada, seu cretino!
Daniel meneou a cabeça.
– Deve ter ficado completamente louco para vir a minha casa dessa maneira.
O barão se ergueu devagar, as pupilas brilhando de ódio, os lábios torcidos numa
expressão terrível.
– Sempre soube que você não passava de um covarde, Connought. Posso ver isso
em seu semblante neste exato momento. Um covarde, um miserável, um imprestável!
Daniel cerrou os dentes, movido pelo impulso de revidar aquelas acusações baratas.
E, num ímpeto, avançou contra Frith, mas foi seguro por seus amigos antes de atingi-lo.
Soltou-se com um safanão e tentou controlar-se, dizendo:
– Você vem querendo me enfrentar em duelo há anos, barão. Portanto, vamos logo
acabar com isso. Douglas e Badlesmere serão meus padrinhos. Escolha os seus. Espadas ou
pistolas?
– Pistolas. Mandarei avisar seus padrinhos antes do anoitecer sobre a escolha dos
meus e sobre o lugar onde nos enfrentaremos.
E, dando meia-volta, Frith deixou Kingsland do mesmo modo como chegara.

– Um duelo? – Harriet gritou. – Entre Daniel e Frith? Impossível!


Mas, olhando para o rosto pálido de Jane, compreendeu muito bem o que tinha
acontecido. Frith deixara Shalham furioso e fora direto até Kingsland. Ele mesmo dissera
que sabia a quem culpar e só podia estar se referindo a Daniel.
– Espadas ou pistolas, Jane?
– Pistolas.
– Meu Deus!
Todos sabiam que Frith era um dos melhores atiradores da Inglaterra, tendo até
inúmeros recordes descritos na Galeria Manton de Artilharia de Londres. As habilidades de
Daniel eram muito menos conhecidas. Era um esportista, sem dúvida, como a maioria dos
cavalheiros de alta linhagem da época, mas saber atirar em pratos lançados ao ar numa
competição simples não era uma boa indicação de que pudesse ter sucesso num duelo de
vida ou morte. Harriet estremeceu só em imaginar.
– O que podemos fazer? – Jane, abatida, sentou-se ao lado da amiga no sofá diante
da lareira.
A sala de estar estava vazia, pois os demais familiares tinham ido fazer um passeio
no bosque da propriedade. E Margaret permanecia acamada com sua enxaqueca.
– Não faço a menor idéia de como agir, Jane. Sabe como são os homens quando se
trata de códigos de honra. Nenhum tipo de argumento consegue trazê-los de volta ao bom
senso.
– Por que Frith forçou esse duelo? Pelo que ouvi dizer, entrou feito um louco em
Kingsland e chegou a esmurrar Daniel, e depois o xingou de todos os nomes possíveis.
Charles nem quis repeti-los para mim, tão graves foram as ofensas.
Harriet recordou-se da conversa que tivera com o barão no jardim e assentiu muito
de leve.
– Quando ele saiu daqui esta manhã, estava fora de si.
– Mas por quê?
– Porque eu, enfim, recusei-me a desposá-lo. Quero dizer, decidi que jamais
poderia amá-lo e deixei meus sentimentos muito claros para Frith.
– Ora, depois de tantos anos! Imagino que ele esperasse que você cedesse de certa
forma. Deve ter sido um baque para o barão. Talvez nutrisse esperanças de que você
pudesse vir a aceitá-lo um dia.
– É, Frith não esperava minha negativa, isso ficou bem evidente na maneira como
reagiu. Sei que agi de errado com ele, mas nunca compreendi de fato por que o mantinha
ao meu lado, sempre aceitando sua companhia, sua conversa. Não agi por mal. E sinto-me
uma verdadeira tola, porque sempre me julguei tão esperta e acabei fazendo tudo errado.
Jane passou o braço pelos ombros da amiga, consolando-a.
– Não fique assim. Você é esperta, sim, mas não no que se refere a Daniel e Frith. –
Arregalou os olhos, de repente, exclamando. – Deus, Harriet! Um duelo!
Harriet encarou-a, perplexa. Parecia que só naquele instante Jane compreendeu a
real situação e o perigo que representava.
– Há outra coisa que quero lhe dizer. – Harriet se lembrava do que conversara com
Margaret. – Não sei se é algo tão terrível quanto um duelo, mas para mim foi tão doloroso
quanto.
E relatou tudo o que a prima lhe revelara.
Jane ouviu-a calada, a cada minuto mais pasma. Por fim, indagou, sussurrando:
– Então ela tem amado Daniel durante todos estes anos!
– É, parece que sim.
– E confessou ter usado de artimanhas para manter você afastada dele?
Harriet assentiu.
– Mas, Jane, não a culpo, porque passei a ver e entender que eu mesma me mantive
cega durante todos esses anos.
E explicou-lhe todas as conclusões a que chegara sobre si mesma e como
raciocinara para consegui-las. Para terminar, acrescentou:
– Corno pode ver, tenho tanta culpa nisso tudo quanto Margaret. O que ela fez foi
errado, mas não teria tido significado algum em minha vida se eu não estivesse tão
determinada a fechar meu coração para Daniel. Entende?
– Não – Jane rebateu, firme. – Não entendo nada. Discordo de você. Mas, se é o
que acha, vou aceitar. Diga-me, onde ela está agora?
– No quarto. Tem chorado muito. Pelo menos, foi o que a criada me disse. E está
com uma enxaqueca terrível, acredito que por efeito das lágrimas.
– Acha que devo ir falar com sua prima?
– Eu esperava que se oferecesse para ir. Por favor, convença-a de que não estou
aborrecida com ela. Margaret me pediu perdão, mas ainda não tivemos oportunidade de
conversar de maneira apropriada e deixar claro que não guardo rancor por tudo o que
aconteceu.
– Pode deixar. Ficarei contente em ajudar no que puder. – Jane levantou-se,
dirigindo-se à porta, onde parou para dizer ainda. – Harriet, o que vamos fazer quanto a
esse duelo? Não podemos permitir que lorde Connought morra.
Harriet sentiu um calafrio passar por sua coluna. Ficou de pé, murmurando
atormentada:
– Não sei. Mas, seja como for, farei tudo o que estiver a meu alcance para tentar
demovê-los dessa idéia absurda.
– Como?
– Nem imagino, mas pode estar certa de que pensarei em algo.

Assim que Jane deixou a sala, Harriet passou a caminhar de um lado para o outro
no enorme cômodo, tentando achar uma maneira de acabar com o duelo. Mas nada lhe
ocorreu por algum tempo, deixando-a confusa e irritada consigo mesma.
Apenas depois de uma hora parou de andar, os olhos atentos à frente, muito embora
nada estivesse vendo. Um plano nascia em sua mente, e ela o esquadrinhava por completo,
para saber se seria, de fato, válido colocá-lo em ação.
Ali parada, pensava em Daniel. Depois de todas as divagações que a tinham levado
às conclusões sobre si mesma, a maior delas a atingia mais uma vez, com uma força
violenta. Amava-o com todo seu coração, e sempre o amaria, sendo ele o modelo contra o
qual nenhum outro ser vivo poderia ter chance de comparação.
No entanto, algo agora estava diferente no amor que sentira por ele. Não havia mais
medo. Na realidade, descobrira que arriscaria tudo, sua reputação, sua fortuna, sua vida até,
para mostrar-se digna de ser amada por Daniel. O problema era como prová-lo.
Seria tarde demais? Daniel conseguiria entendê-la e, mais do que isso, perdoá-la?
Precisava falar com ele o quanto antes.
Voltou-se para sair da sala, mas Margaret apareceu à soleira, sozinha. Estava
palidíssima, e seus olhos, fundos e vermelhos.
– Minha prima querida... – Harriet suspirou, indo abraçá-la.
– Jane disse que eu deveria descer e falar com você. Oh, quanto deve me desprezar.
– Não, não! – Harriet apertava-lhe as mãos, reassegurando sua afeição. – Não faça
disso um grande problema, está bem?
Mas Margaret soluçou e abraçou-a, arrasada.
– Sinto tanto, Harriet! Tanto! Não consegue imaginar o quanto. Não mereço ser
perdoada e, mesmo Jane tendo dito que você acredita ter tanta culpa quanto eu, não posso
ver como isso seria possível.
– Depois de ouvir o que tenho a lhe dizer, talvez seja você que venha a me
desprezar, prima.
Margaret a encarou, confusa. Passou no rosto molhado o lenço que trazia, atenta ao
que Harriet ia lhe falar. Mesmo assim, disse ainda.
– Não é possível. Você foi envolvida nessa história toda, era inocente, a mais
virtuosa de nós todos. Você e Frith, é claro. Talvez os dois tenham, por fim, algo em
comum.
Harriet teve de rir diante daquilo, o que deixou a prima ainda mais curiosa.
– Se você soubesse!
– O que está havendo, Harriet? Ficou no sol por muito tempo? Não deve estar bem.
Harriet meneou a cabeça e, tomando Margaret pelo braço, levou-a consigo.
– Venha, vamos pedir uma xícara de chá na sala de música, onde poderemos
conversar em maior privacidade. Lá eu lhe contarei tudo.
Pouco mais tarde, com a xícara entre as mãos, Margaret, atordoada, murmurava:
– Ainda não consigo acreditar. Essas são as conclusões a que chegou? Não entendo.
Sua linha de pensamento não me parece certa.
– Está certa, sim, e nunca esteve melhor! – Harriet rebateu, animada. – Eu tinha
medo do amor que sentia por Daniel. Pavor, na verdade. Tudo o que fiz desde o momento
em que soube que ele a beijara, ou que você o tinha beijado, seja como for, foi dominado
por esse temor.
– E ainda o sente? Ainda teme seu amor por ele?
– Não, de forma nenhuma! É algo inacreditável, não? Mas é como se eu precisasse
de todos esses anos de solidão para, enfim, crescer, tomar-me mulher. E agora que entendo
a mim mesma, acho que pode ser tarde demais.
– Não, não. Daniel irá perdoá-la, você verá.
– Tenho minhas dúvidas quanto a isso. Além do mais, neste momento, o que me
importa, é que você me perdoe.
– Perdoá-la? Eu? Mas... Pelo quê? Não vejo sentido nesse seu pedido. Muito ao
contrário, eu que...
– Não se culpe mais. Não vê, Margaret? Escondi-me atrás de minha suposta virtude
durante anos e, fazendo isso, permiti que você continuasse em sua culpa.
– Quer dizer que nós duas agimos mal. – Suspirando Margaret tomou um gole de
chá. Um leve sorriso apareceu em seus lábios, em reflexo ao que imaginava. – Bem, já que
prefere ver minha terrível conduta com tamanha complacência, existe apenas uma coisa a
ser feita.
Ela deixou a xícara sobre a mesa lateral e levantou-se, indo até Harriet e abraçando-
a com. carinho.
– Pronto! Eu a perdôo, minha querida Harriet.
E as duas, com lágrimas nos olhos, ficaram assim, abraçadas, por vários minutos.
Depois, quando voltaram a se sentarem juntas, Margaret secou o rosto, perguntando:
– Muito bem, o que pretende fazer quanto ao duelo?
– Tive uma idéia, mas não sei ainda se é o melhor caminho.
A lembrança da aposta que envolvia Laurence, Daniel e Charles retornou a sua
memória, e ela olhou para a prima. Piscou, marota, para indagar.
– Margaret, acha que poderia, um dia, vir a amar Laurence?
Harriet esperava que a prima ficasse espantada com a questão, mas uma expressão
perturbada apareceu em seu semblante. Por isso, corrigiu-se depressa.
– Ah, eu não devia pressioná-la logo depois de ter chorado tanto. Por favor, não se
preocupe em me responder se não quiser.
– Não se trata disso. Para ser franca, gostei de você ter perguntado, porque tenho
pensado muito nisso desde ontem à noite. Sinto como se nossa conversa após o baile
tivesse aberto meus olhos para tudo, sabe? E acho que, com o tempo... Bem, talvez eu
pudesse amá-lo, sim. Porque consigo me lembrar agora, com clareza até, que muitas vezes
o achei interessante, atraente. No entanto, como estava tão apaixonada por Daniel, acabava
sempre deixando tal impressão ser dominada pela figura dele. – Ela riu. – Suponho que, se
você ainda conseguir o alfinete de gravata, vai acabar me forçando a aceitar Laurence de
qualquer maneira.
– Eu poderia conseguir o tal alfinete por esse motivo, sim, e o faria com satisfação,
mas apenas se achasse que isso poderia, de alguma forma, assegurar sua felicidade.
Contudo, no momento, não vou fazê-lo, porque se eu perder nossa aposta terei o prêmio
que mais almejo. O problema é se o prêmio irá me querer.
– Existe apenas um meio de descobrirmos. E, se fosse você, eu agiria agora mesmo!
Harriet animou-se. Mandou que preparassem a carruagem e seguiu nela até
Kingsland, sentindo que o caminho, que conhecia tão bem, parecia ter dobrado, triplicado
de tamanho. Os poucos quilômetros que separavam Shalham de Kingsland tornaram-se
imensos, e os minutos estenderam-se por horas.
Seu coração batia num ritmo descompassado, louco, e cada nova curva da estrada
revelava-se um novo obstáculo. Agora que compreendia as razões de sua alma, teria dado
seu dote considerável de bom grado para poder criar asas e chegar mais rápido à casa de
seu grande amor. Tinha, entretanto, de considerar a terrível possibilidade de o conde não
querer, ou não estar interessado em ouvir o que tinha a lhe dizer.
Sentiu lágrimas encherem seus olhos e tocou-os, para secá-los. E se tivesse
entendido tudo tarde demais? E se...
Não conseguia sequer fazer mais suposições, tal o estado de seus nervos. Se ao
menos o cocheiro instigasse mais os cavalos!

Por fim, a elegante mansão surgiu, e pouco depois a carruagem parava diante dela.
Um dos rapazes veio abrir a porta e puxar os degraus para que Harriet descesse. Ele
mesmo seguiu até a porta e trocou a sineta, à qual, segundos depois, Mollash atendia. Com
sua fleuma habitual, o mordomo inclinou-se numa saudação, depois respondeu com
educação às indagações de Harriet quanto a sua saúde. Tremendo, ansiosa, ela perguntou
do conde.
– Sim, milorde está em casa, senhorita. Se puder esperar alguns minutos.
Harriet assentiu e tentou manter a respiração num ritmo normal, embora não
conseguisse, pelo menos não com facilidade.
Mollash retomou logo depois, encaminhando-a até a biblioteca. Harriet seguia com
as mãos geladas, segurando as alças da bolsinha com apreensão. Também os passos que
deu pelo corredor pareceram levá-la por quilômetros nos poucos metros que a separavam
da biblioteca. Lá, foi deixada a sós, olhando para as paredes forradas de livros.
Daniel apareceu em seguida, calmo e com expressão severa.
– Então você veio, Harriet.
Aquele não era um bom começo, mas ela tentou se controlar.
– Há uma coisa que quero lhe dizer, Daniel. Se me permitir, é lógico.
Daniel a encarou, seus olhos parecendo frios, sem interesse.
– Vá em frente. Mas devo avisá-la de que tenho uma reunião com meu contador em
poucos minutos.
Harriet sentiu um aperto no peito.
– Não vou me demorar.
E, como ele não se movesse, cruzou o espaço que os separava para poder ficar mais
próxima. Diante dele, respirou fundo e começou.
– Tenho estado muito enganada comigo mesma e com você nestes sete anos.
Depois da conversa que tivemos ontem à noite e da confissão que obtive de Margaret, de
que ela de propósito me encorajou a manter minha conduta distante em relação a você,
passei a entender que tenho sido hipócrita. E vim para pedir-lhe que me perdoe.
Daniel pareceu interessar-se, mas não mais do que por uma fração de segundo.
– Verdade?
– Eu o amava tanto quando me fez a corte naquela época, que... Bem, você nem
pode imaginar.
– Suponho que não tenha sido suficiente, não?
– De fato. Meu amor não bastou para superar meus temores. Fui covarde. Durante
todas aquelas semanas em que me cortejou fui uma grande patife. Vivia com um medo
absurdo de que pudesse me afogar em meus sentimentos por você, de que um dia iria
acordar e descobrir que eu mesma já não existia. Sei que o que estou dizendo pode não
estar fazendo sentido para você, mas... – Parou, procurando as melhores palavras.
– Continue.
Harriet assentiu, buscando, mais uma vez, os termos certos.
– Todas as noites, depois de nos encontrarmos em segredo, eu ficava acordada na
cama durante horas, tremendo, pensando, sentindo... Mas não era devido ao desejo, como
deveria acontecer a qualquer moça, e sim a um pavor que você não poderia imaginar e nem
eu explicar. Era tão poderoso e forte, para mim, Daniel. Eu não passava de uma menina
tola que mal acabara seus estudos. E o amava com loucura. E não tinha experiência
alguma, não sabia lidar com a paixão que me consumia. E o beijo que você deu em
Margaret acabou sendo a desculpa perfeita para afastá-lo de minha vida.
Ele mantinha o cenho carregado.
– Está me dizendo que durante todas aquelas semanas em que a cortejei, eram esses
seus sentimentos?
– Quando longe de você, sim. Mas, em sua companhia, ficava completamente
envolvida por seu amor. Era tão bom. Todavia, quando me afastava e ficava sozinha...
– Harriet, nunca me disse nada, nunca percebi isso em você. Aliás, como poderia?
– Sim. Quando estávamos juntos, eu não deixava transparecer nada porque me
sentia muito feliz. E não havia mais temor algum.
Ele meneou a cabeça.
– Não consigo entender.
– Acho que nem eu mesma entendo por completo. Mas, seja como for, os temores
que tinha antes agora não mais existem. Falei para lorde Frith que jamais poderia me casar
com ele.
– É, disso eu sei.
– E agora vai bater-se em duelo com o barão.
– Isso, Harriet, é um tema que não pretendo discutir com você.
Ela assentiu.
– Compreendo. Não seria próprio de um cavalheiro.
– Não, não seria.
Harriet permaneceu calada por alguns segundos e decidiu, por fim, que tinha de
fazer a pergunta mais arriscada e mais importante de sua conversa com o conde.
– Acha que poderia vir a me amar outra vez?
Ele tornou a encará-la, vendo a suavidade de sua expressão ansiosa por uma
resposta. Sabia que Harriet estava sendo sincera e dava um valor incrível a tal sinceridade.
Porém, na noite anterior algo dentro dele mudou de forma irrevogável.
– Não – disse com firmeza e viu-a empalidecer de imediato. Percebeu que Harriet
vacilava e teve de segurar-lhe os ombros. – Acho que não deveria ter-lhe dado uma
resposta tão dura, mas fiz-lhe a cortesia de ser franco e direto.
– Sei disso, e lhe agradeço. – Harriet empinou o queixo, altiva, e engoliu em seco,
contendo-se para não chorar.
Daniel sentiu que não poderia mais encará-la e voltou-se para a janela, de onde
observou o jardim por alguns segundos antes de explicar.
– Cansei-me de nossas brigas e coloquei um ponto final em tudo. Amei você por
sete anos, mas foi teimosa demais, Harriet. Como poderíamos ter um bom casamento tendo
sua obstinação por base? Não. Acho que não te amo mais.
– Bem, nesse caso, devo me retirar. Mas, antes de ir, gostaria que soubesse que, se
tivesse me pedido para casar-me com você, eu teria dito que sim.
Daniel virou-se de imediato.
– Soube da aposta?
– Sim. Arabella foi muito gentil ao me informar em detalhes, ontem, sobre minha
parte no que apostaram, bem como a de Margaret.
– Sei... E lhe falou também que ela própria estava envolvida?
Harriet franziu a testa.
– Não. Isso Arabella não esclareceu.
Daniel sorriu com ironia.
– Arabella seria a mulher a quem eu deveria propor casamento, se você nunca me
dissesse o que acabou de dizer. Fiz uma promessa, como condição para a aposta, de me
casar com ela se não conseguisse ganhar seu coração de volta.
– Então casar-se comigo nunca foi parte da aposta. Jamais teve intenção de me
pedir em casamento de verdade, não é?
O conde fez que não.
– Aceitei o acordo a princípio para castigar você por todo o sofrimento que vem me
causando. Queria apenas reconquistá-la e depois fazê-la sofrer também. E parece que
consegui.
Harriet sentiu aquelas palavras penetrarem-na com a dor de uma lâmina muito
afiada.
– Nunca imaginei que pudesse ser tão cruel, milorde. Por que escolheu este
momento para revelar-me toda a verdade?
– Minha intenção nada tem a ver com crueldade, Harriet. O fato é que não tenho
mais interesse em proteger seus sentimentos, como fiz durante tanto tempo.
– Correto. – Ela secou as lágrimas que teimavam em descer por seu rosto e tornou a
encará-lo. Parecia não haver mais nada a dizer. – Não deve deixar seu contador esperando.
Tenha um bom dia, milorde.
– Você também, senhorita.
Assim, Harriet deu meia-volta e deixou a biblioteca. Mantinha a cabeça aprumada,
esperando, desesperada, que Daniel não percebesse o tormento intenso que a espicaçava.
No corredor, procurou um lenço em sua bolsa e passou-o pelas faces. Não queria
encontrar algum dos criados de Daniel tendo no rosto as marcas de sua frustrada conversa
com ele. Se assim fosse, logo sua visita a Kingsland se espalharia por toda a vizinhança em
comentários maldosos.
No entanto, o fato foi que não avistou ninguém e, mesmo que tivesse avistado, não
seria seu pranto que teria demonstrado o desespero em que se encontrava, mas sua palidez
mortal.
Capítulo XVIII

Harriet caminhou com passos firmes até a carruagem que a aguardava diante das
portas de Kingsland. O criado abriu-lhe a porta e ela entrou, mantendo-se altiva até que se
viu sozinha na penumbra do interior do veículo.
Só aí permitiu que mais algumas lágrimas escorressem. Sabia que precisava
permanecer calma e composta. Afinal, fossem quais fossem os sentimentos de Daniel no
momento, existia um assunto muitíssimo mais importante a ser resolvido, sem demora. Seu
coração, mesmo despedaçado, podia esperar. Havia um duelo em vista.
Era estranho, mas os cavalheiros ficavam como que tomados por uma sensação
primitiva, quase bárbara, quando se tratava de duelar. Nada, por mais racional ou sensato
que fosse, conseguia demovê-los de sua intenção. Nada podia interferir no processo todo
de se enfrentarem, a não ser a própria morte no campo escolhido para tal.
E dessa vez Harriet não podia permitir tal insanidade. Tinha arrepios só em pensar.
Se alguma vez nutrira esperança de recuperar o amor de Daniel, ou se ainda, porventura, a
tivesse, apesar da dura conversa que acabara de ter com ele, haveria de encontrar um meio
de mantê-lo vivo. Não, aquela não era hora para deixar-se levar por temores, melancolia ou
desespero. Era preciso raciocinar e agir.
E, mirando a paisagem lá fora, em seu retorno a Shalham, seus pensamentos se
concentraram mais uma vez no problema e, muito devagar, um sorriso apareceu em seus
lábios. Recordou mais uma vez aquele dia de verão em Paddlesworth, no riacho frio pelo
qual caminhara com as saias arrebanhadas à altura das coxas. Uma atitude escandalosa.
Pela primeira vez em muitos anos, experimentou uma adorável sensação de liberdade
invadindo-a dos pés à cabeça.
Era estranho, mas estava se sentindo leve, quase feliz, eufórica. Uma esperança
nascia em seu íntimo e se tornava a cada segundo mais e mais intensa. Sentia-se flutuar,
tamanha a alegria que a agitava.
Ali estava a garota à qual Daniel se referira em sua briga, na véspera. Encontrou-a,
agora renovada, renascida.
Respirou fundo, sentindo os aromas que vinham da estrada, do bosque logo ao lado,
das flores miúdas espalhadas pelos campos abrindo-se ao sol. E o enorme alívio que
experimentava, deixava-a mais apta a resolver o que tinha diante de si.
A presença de mulheres em todo o processo de um duelo era inaceitável do começo
ao fim. Assim, como colocar um ponto final naquele que estava para acontecer?
Como já antes ocorrera, em Shalham, quando ponderava a respeito, uma idéia
começou a se formar. Não era algo novo, mas uma lembrança de algo que Frith lhe dissera
sobre seu cavalo ter sido um investimento que fizera e que ainda não fora inteiramente
pago.
Recordou que Daniel comprara um dos belos cavalos de Frith, um animal valioso,
belíssimo, e que mesmo assim ele vendera pouco depois, jamais tendo mostrado grande
interesse pelo animal.
Sempre imaginara que Daniel tivesse, de fato, comprado o garanhão de Frith, mas
agora, pelo que o barão comentara, começava a achar que a história poderia não ter sido
bem assim. Daniel tentara adquirir o animal por diversas vezes, mas Frith sempre se
recusava a vendê-lo, dizendo que aquele cavalo era uma mina de ouro, que o cruzaria com
suas melhores éguas, que era puro-sangue legítimo.
Curioso... Ter um animal assim e desfazer-se dele. E depois Daniel não mais o
quisera também.
Mas por que se lembrava disso agora? De que forma essa história do garanhão
poderia estar ligada ao duelo que aconteceria em breve?
E, como as duas coisas pareciam não ter conexão alguma, achou melhor tomar
outra linha de raciocínio e pôr o fato de lado, por ora.
Mas não conseguiu. A suposta compra e subseqüente venda daquele cavalo a
inquietavam, com insistência.
Na noite em que ficara noiva de Daniel, ele se mostrara muito romântico,
apaixonado, encantado por ela. Tinham namorado, trocado beijos ardentes, declarações de
amor eterno e depois Harriet se recolhera. Os rapazes ficaram acordados até altas horas da
madrugada, e, no dia seguinte, Daniel beijou Margaret. Essa era a seqüência exata dos
fatos.
Outra memória lhe ocorria. Laurence lhe disse que Frith havia, no passado, agido
mal em relação a Daniel, mas logo em seguida se mostrou não estar disposto a continuar
falando nisso, talvez preso a algum voto de segredo, ou apenas por não desejar desenterrar
fantasmas do passado.
No entanto, a mente de Harriet era insistente e, de repente, ela entreabriu os lábios,
atônita. ‘É isso!’ Entendeu tudo num átimo, incluindo a participação de Frith.
O barão, que sempre a quisera, que a pedira em casamento inúmeras vezes, sempre
presente, paciente, amigo, esperançoso. Devia ter sido ele quem engendrara uma maneira
de separá-la de Daniel.
Analisou tudo o que pôde. Daniel devia ter concordado em participar de alguma
aposta, como era de seu costume, e os prêmios poderiam ser o cavalo de Frith contra algo
que Daniel possuía e que o barão almejava. Algo que tivera naqueles sete anos.
Harriet conhecia lorde Connought. Mesmo tentando convencer a si mesma de que
ele não tinha caráter, sabia que jamais a trairia de propósito. Jamais. Devia estar bêbado
quando concordara com os termos do acordo. Se é que tinha, de fato, havido um.
Quanto mais pensava, mais se convencia de que houvera, sim, uma aposta naquela
ocasião, que só poderia ter culminado com aquele estranho, inesperado, inexplicável beijo
de Daniel em Margaret. Mas quem poderia tê-lo levado a agir assim? Apenas alguém que
possuísse algum tipo de interesse no rompimento de seu compromisso.
E apenas um nome continuava reverberando em seu cérebro.
Frith.
Então, fora Frith o mentor intelectual daquele plano terrível, o verdadeiro autor
daquele beijo entre Margaret e Daniel, concluiu, horrorizada e cheia de rancor. Tinha agora
tanta certeza disso quanto de que o sol nasceria na manhã seguinte.
O conde tentara precavê-la quanto ao caráter do barão, mas não fora adiante, não
dissera por que Harriet devia temer um relacionamento com ele. Não revelara por que Frith
não devia merecer sua confiança. E as opiniões dos homens mais velhos sobre o barão
também lhe conferiam numa explicação para suas dúvidas. O sr. Douglas olhava-o com
desagrado. Seu próprio pai dissera-lhe que não teria orgulho dele como marido.
Harriet sentia-se melhor, mais segura. Compreendia o papel que o barão
desempenhara e compreendia também todo o fingimento dele, tentando passar-se por
gentil, afetuoso, paciente, cavalheiro. Tratava-se, na realidade, de corrupto, e ela sabia o
que era necessário fazer.
Além do mais, queria ter provas concretas, absolutas, de suas conclusões antes de
tomar uma atitude. Teria apenas de arranjar para que uma conversa breve acontecesse entre
ela e Frith. Não tinha dúvida de que, após alguns minutos, conseguira todas as respostas de
que necessitava.
Levantou-se dentro da carruagem e chamou o cocheiro, mandando-o seguir direto
para a Taverna Bell, na aldeia de Kenningford. Era lá que o barão estava hospedado.

Uma hora mais tarde, Harriet entrava no quarto dele, ousada, pois esse não era o
comportamento que se poderia esperar de uma dama solteira. E o barão demonstrou sua
surpresa, erguendo-se, chocado, da escrivaninha onde lia seu jornal.
– Harriet! Mas o que deu em você para vir até aqui? Não entende que pode
provocar um enorme escândalo por entrar em meu quarto desacompanhada? Essa atitude
nada tem a ver com você.
– Não dou a mínima para o que possam supor. Tenho algo de grande relevância
para tratar com você. Não será uma conversa longa, pois um diálogo exigiria que nós dois
falássemos.
Frith encarou-a, sem entender.
– Não está falando coisa com coisa.
– Muito bem, então tentarei me expressar de maneira bem mais clara. Sou eu quem
vai falar, e você apenas me ouvirá e dirá sim ou não.
O barão riu, incrédulo, mas desconfiado de tudo aquilo.
– Deve ter enlouquecido – brincou. – Como fala comigo nesse tom? Ainda está
irritada porque perdi o controle em Shalham e a tratei, digamos, sem muita cortesia?
– Isso? Não, não. O que houve nos jardins de Shalham entre nós não tem a menor
importância para mim. Estou me referindo à aposta que foi feita a sete anos envolvendo
você, Daniel, Margaret e seu cavalo.
Frith parou de sorrir, murmurando entre os dentes.
– Aquele demônio! – Mas logo em seguida tentou controlar-se e mostrar-se
educado. – Como ficou sabendo disso? Laurence fez algum comentário? Ou foi o próprio
Connought? Porque preciso dizer-lhe que parte das condições impostas entre nós ficou
especificamente declarada como segredo. Está se esquecendo de mencionar a propriedade
em Lincolnshire, a reserva de caça que pertence à família de Daniel desde tempos
imemoriais. E agora ela será minha!
Harriet começou a tirar as luvas, ao mesmo tempo olhando ao redor. Puxou uma
cadeira disponível e sentou-se diante da lareira.
– Essa é a única parte desse jogo bizarro que não fui capaz de deduzir. O que
ganhou nessa aposta sem cabimento, Frith? Porque o desafio não precisaria ser mantido em
sigilo, caso se tratasse apenas do que sei. E não tem de ficar me olhando com essa
expressão de quem está muito satisfeito, visto que foi você mesmo quem me falou do
acordo. Joguei a isca e você a mordeu com voracidade. Muito bem, portanto. Uma das
condições da tal aposta era que ela ficasse mantida em segredo absoluto? Mas diga-me,
Daniel estava bêbado quando a aceitou?
Frith deu alguns passos pelo aposento, sem se desviar de Harriet. Notava agora o
quanto ela era esperta, e isso o agradava ainda mais.
– Nunca lhe disse uma palavra sobre isso, Harriet. Alguém mais deve ter lhe dito.
Pretendo ter o que me pertence por direito e, sim, o segredo absoluto era uma das
condições impostas.
– Entendo. Acha que agora ganhou as terras de Daniel por quebra de acordo. Mas
ninguém me falou nada, portanto, você continua sem elas. E sem mim. – Mesmo tentando
mostrar-se calculista, Harriet sentia muita tristeza ao mencionar essa parte do jogo.
– Você teria sido um acréscimo adorável à propriedade, não nego.
– Quer dizer que impôs seus termos mesmo sabendo que a brincadeira envolvia
meus sentimentos?
– Se prefere ver dessa maneira, sim. Mas não é assim que enxergo a coisa toda. Eu
te amava, Harriet! Queria tê-la como minha esposa, e Connought, que era indigno de sua
pessoa, estava em meu caminho. O que quero saber é quem lhe contou sobre a aposta,
porque sei muito bem que você jamais teria sabido de algo através de mim. Também jurei
sigilo.
– Engana-se, porque foi devido a algo que me disse que cheguei a minhas
conclusões. Estávamos falando daquele seu garanhão, o que perdeu para Daniel, e você
deixou bem claro que não o tinha vendido ao conde, embora não tenha especificado como
o animal acabou sendo dele. Eu sabia o quanto Daniel queria aquele cavalo, pois já havia
feito várias ofertas por ele. E só há duas maneiras de se transferir propriedades de uma
pessoa a outra sem um recibo de compra e venda: troca ou ganho em jogo. Daniel nunca
me disse que trocara o animal pelo que quer que fosse. Desse modo, deduzi que só poderia
ter sido através de uma aposta. E não me custou muito deduzir todo o resto da trama.
Daniel devia estar bêbado, e você o fez aceitar os termos que serviam apenas a seus
interesses pessoais. E exigiu que beijasse Margaret como parte das condições, porque sabia
que eu jamais o perdoaria por isso. Aliás, se consegue se lembrar, lorde Connought nem
conseguiu manter o cavalo, e o vendeu pouco menos de um ano depois.
– Ainda não acredito em você. De alguma forma, Laurence ou Charles deve ter lhe
contado tudo isso, e acabou de me forçar a confessar o que aconteceu.
– Não o forcei a nada. Apenas, como já disse, joguei minha isca e você a aceitou.
Além do mais, repito pela última vez: ninguém me disse nada, ninguém rompeu o silêncio
acertado entre vocês naquela noite. Mas, afinal, a esta altura, já não importa se fui
informada ou não sobre a aposta, porque o resultado continua sendo o mesmo. Quero que
deixe Kenningford amanhã, às onze horas da noite, uma hora antes de acontecer o duelo,
barão. Sim, sei a respeito do embate, porque Charles contou a Jane, decerto temendo que o
pior pudesse acontecer, uma vez que você é famoso por ser um excelente atirador.
Frith ergueu mais a cabeça, orgulhoso por ser reconhecido como tal, mas irritado
por estar sendo confrontado daquela maneira por Harriet.
– Jane também me falou que você usou de uma linguagem muito elegante para
provocar o duelo. Quanta falta de cavalheirismo de sua parte! Mas nem isso importa muito.
Neste momento, devo insistir para que se sente de novo nessa escrivaninha e escreva um
bilhete apropriado, endereçado a Daniel, liberando-o de vez dos termos do acordo que
fizeram e desculpando-se por ter provocado esse combate absurdo. Também explicará que
não tem a menor intenção de quebrar a proibição real entrando num confronto considerado
ilegal em nossas terras.
Frith continuou onde estava, abrindo para ela um sorriso deselegante.
– Não, minha cara. Não sairei de Kenningford, nem desistirei de duelar. Muito
menos escreverei uma carta me desculpando para com aquele verme.
– Nesse caso, vai arriscar ter de se separar de todos a quem estima em Londres. Foi
isso que me ensinou, Frith. Como circular nos meios mais distintos de nossa capital com
graça e dignidade, e é por isso que tenho excelentes relações por lá para poder ser de certa
influência. E, devido a esse ato de extrema maldade que perpetrou na ocasião de meu
noivado, sete anos atrás, eu não hesitaria em me lamentar a cada uma dessas pessoas a
quem me referi. E você seria, por conseqüência, banido de toda a sociedade londrina, para
sempre. E eu ainda poderia acrescentar que provocou um duelo com Daniel porque não o
aceitei como marido. Como vê, com uma história dessas, e sendo ela verdadeira em cada
pormenor, seria julgado sem misericórdia.
Harriet podia ver que ele estava furioso, que seu cérebro trabalhava depressa para
encontrar uma saída para aquela situação.
– Não há nada que possa fazer, barão.
– Há, sim! Vou fazê-la experimentar de seu próprio veneno, srta. Godwyne! Direi,
por minha vez, sobre todas as concessões que fui obrigado a fazer naquela época.
Harriet continuava sarcástica.
– Engana-se quanto a algo muito simples, lorde Frith. Se, algum dia eu me vir em
situação de ter de enfrentar os comentários da sociedade, não vou me importar nem um
pouco. Não dou a mínima para meus conhecidos em Londres, ou para a posição social que
posso ocupar. Nunca fui dada a essas futilidades. O que mais desejo na vida está aqui
mesmo, em Kent.
Frith a encarou com severidade durante alguns minutos. A atmosfera no quarto
pesava. Por fim, tendo ponderado sobre tudo que ouviu e analisado os prós e contras da
situação que enfrentava, dirigiu-se à escrivaninha e, bastante contrariado, pegou papel e
pena e começou a redigir uma missiva, na qual descrevia suas intenções e se desculpava
com Daniel pelo incidente que provocara o duelo. Ao terminar, entregou-lhe a folha com
rispidez, para que Harriet lesse e se desse por satisfeita.
– Existe ainda uma coisa que quero que acrescente.
Ele protestou, resmungando, mas retomou o papel e a obedeceu. Então, colocou a
carta num envelope, selou-a e entregou-a mais uma vez a Harriet, que a enfiou em sua
bolsinha.
– Lembre-se: não deve dizer nem uma palavra aos cavalheiros quanto a minha
visita aqui, e muito menos sobre sua partida esta noite. Se porventura decidir agir de outra
forma, saiba que não vacilarei em cumprir as ameaças que lhe fiz. Olhando-o de cima a
baixo, ainda acrescentou, com um sorriso de desprezo. – E pensar que cheguei a considerá-
lo um dos cavalheiros mais refinados deste país.
E deixou-o, logo em seguida.

Naquela mesma noite, Daniel, diante de Laurence, ainda não conseguia acreditar no
que o amigo acabara de lhe dizer.
– Harriet foi vista saindo do quarto de hotel de Frith? – murmurou, entre
decepcionado e revoltado.
– É o que parece. Achei que devia contar-lhe, uma vez que toda a aldeia já está
comentando.
– Meu Deus! Mas será que Harriet enlouqueceu de vez?
Charles, que bebia um copo de xerez a um canto, comentou, taciturno.
– Talvez ela tenha decido aceitar o pedido de casamento dele, afinal.
– Como pode dizer uma coisa dessas? – Daniel rebateu, furioso. – Harriet está
apaixonada por mim! Já lhe falei isso mais de uma vez.
Charles assentiu, sabendo que essa era a única atitude sensata diante da ira
demonstrada pelo amigo.
– Eu sei, Daniel. Mas, uma vez que você não a ama mais, e muito menos deseja
casar-se com ela, talvez o desespero a tenha movido. Algumas mulheres se deixam levar
pelas circunstâncias, outras, pelos sentimentos. Outras ainda pelo desespero. Pode ser este
o caso de Harriet. Eu mesmo tinha uma prima, de nome Penélope, deve se lembrar dela.
Bem, essa minha prima casou-se com um completo idiota, um vigário em Devonshire.
Estava com vinte e cinco anos na época, a mesma idade de Harriet, se não me falha a
memória, e não conseguia suportar a idéia de permanecer solteira, pobrezinha. Muito
embora fosse feia como a necessidade. E acabou tendo as crianças mais feias que já vi na
vida.
Laurence olhou-o com enfado.
– Poderia parar de falar, Charles? Harriet tem juízo, jamais se prestaria a um papel
assim. Nunca se casaria com Frith. Pelo menos, acho que não.
– É claro que ela tem bom senso suficiente para não cometer tal loucura! – Daniel
interferiu, servindo-se de uma dose generosa de brandy. – E você, Charles, não me
aborreça com suas histórias. Posso saber por que está rindo agora?
– Porque você, meu grande amigo, ainda está louco por ela. E sempre estará.
Ouvindo isso, Daniel pegou seu copo e, em vez de arremessá-lo contra a cabeça de
Charles, como era sua vontade, virou-se para a lareira e lançou-o ao fogo, partindo-o em
mil pedaços e atiçando ainda mais as chamas com o álcool. Ato contínuo, saiu da sala
como um alucinado.

Às onze horas em ponto, Harriet esperava numa carruagem fechada do outro lado
da rua, na aldeia de Kenningford, observando a porta da Taverna Bell. Vestia um terno
masculino, que fora de seu tio e que ficara guardado no sótão por mais de dez anos.
Puxou com muito cuidado a cortina escura que vedava a janela, e, através da
minúscula abertura, avistou o veículo que saía do pátio interno da hospedaria. Pôde
reconhecer o perfil de Frith, iluminado por dois lampiões pendurados ao lado do cocheiro.
Suspirou, aliviada, quando viu que os cavalos eram guiados em direção oposta
àquela que levava ao local acertado para o duelo. Mais tranqüila, cerrou os olhos e respirou
fundo, recostando-se no banco. Seu coração batia apressado. Mas a tensão, por fim,
passara.
Se Frith, por algum motivo, decidisse não seguir suas orientações, não saberia o que
fazer. Porém, não tivera tantas dúvidas assim quanto ao que ele faria. Afinal, o barão dava
um valor extremo a sua posição social em Londres.
Voltando-se para as amigas que a acompanhavam, sorriu, apesar do nervosismo.
– Margaret, você até que fica bem de homem, sabia? Acho que estou começando a
me apaixonar.
Margaret deu risada.
– Nunca me diverti tanto, sabia?
– Ora, vocês duas perderam o juízo! Voltem à realidade, meninas! Nem deveríamos
estar vestidas desde jeito. Margaret, tem certeza de que seu cocheiro e o auxiliar são de
confiança? Porque se formos descobertas...
– Sempre foi estraga-prazeres, não, Jane? – Margaret franziu o cenho, aborrecida. –
Pare de se preocupar e aproveite nossa aventura noturna.
– Posso ter sido sempre a estraga-prazeres da turma, sim, mas sei que minha mãe
terá um ataque quando souber disso tudo.
Harriet tocou-lhe o braço com carinho.
– Se isso acontecer, pelo menos você não terá mais de usar aquele vestido marrom
horroroso, não é?
Jane entreabriu os lábios, atônita, depois caiu na gargalhada, bem como Margaret e
Harriet.
– Vamos embora daqui – Harriet sugeriu. – Porque, embora eu tenha elaborado este
plano ridículo, apesar do qual tenho certeza de que não conseguirei reconquistar o amor do
homem que adoro, estou, neste momento, a ponto de perder o que ainda me resta de bom
senso.
Margaret bateu na parte interna da carruagem, chamando o cocheiro e ordenando-
lhe:
– Vamos para o pasto sul, em Kingsland. E rápido!
– Pois não, senhorita.
E a carruagem se pôs em movimento, seguindo para a propriedade de Daniel.

Assim que chegaram a um local bastante recluso, junto de um pequeno bosque,


alguém com uma lanterna, que estava à espera dos padrinhos de Frith e dele próprio, levou
Harriet, Jane e Margaret pelo campo escuro até o lugar exato onde deveria acontecer o
embate. Pelo menos, ela já não estava tão ansiosa e temerosa quanto antes, diante da
atitude quase arriscada que tomara.
Planejava confrontar Daniel no campo de duelo, tomando o lugar de Frith, com o
único propósito de provar, primeiro para si mesma, depois para ele, que não estivera,
afinal, perdida naqueles últimos sete anos; que ainda havia dentro dela a garota cheia de
coragem e de ousadia de outrora.
Margaret, seguindo a seu lado, puxou-lhe de leve a manga do paletó.
– Não seria melhor falarmos com Laurence e Charles primeiro? Imagino que seja
assim que os padrinhos devem proceder num duelo. Acho que tentam, numa última vez,
demover os participantes para uma possível reconciliação, ou um pedido e desculpas. E
depois verificam se está tudo certo com as armas.
Harriet ergueu a gola do paletó contra o rosto e ajeitou o chapéu alto de seu tio,
para parecer maior. Ponderou por alguns segundos sobre o que a amiga dissera.
– Você não conhece nada sobre armas, Jane. Muito menos pistolas.
– Nem você.
Harriet passou os olhos ao redor, mas a escuridão era total.
Apenas o caminho por onde seguiam tinha a trêmula iluminação da lanterna levada
pelo criado, que, calado, seguia à frente, como um fantasma.
– Creio que não deve haver nada disso que você disse. Vamos apenas continuar
andando e ver o que acontece.
Mais alguns segundos de quietude se passaram, até Margaret tornar a falar.
– Acha que seu plano dará certo?
– Nem imagino, mas seguirei em frente assim mesmo.
Por fim, chegaram a uma espécie de clareira, onde o criado lhes fez um breve sinal
para que parassem.
Sem querer revelar sua identidade, Harriet aguardou, observando Laurence e
Charles que juntos, a alguns metros de distância, após trocarem algumas palavras,
começaram a se aproximar.
Margaret e Jane fizeram o mesmo, e os quatro se encontraram no meio da clareira.
Harriet podia ver um outro homem presente, em pé, ao lado de Daniel, bem longe da
lanterna que o criado ainda segurava. Prestando o máximo de atenção possível, ela acabou
por reconhecer a figura um tanto corpulenta do bondoso dr. Steele, de Kenningford. Ver
que um médico se encontrava presente, para qualquer eventualidade, fez um calafrio
percorrer-lhe a espinha. Era como se, só naquele instante, se desse conta de que, por
estarem ela, Margaret e Jane vestidas como homens, a gravidade da situação tivesse
aumentado muito.
E o que mais a impressionava era a constatação de que, se não tivesse interferido,
aquele duelo teria acabado em um derramamento inútil de sangue.
Quando uma gargalhada abafada de Charles cortou a quietude reinante, seguida
logo pela de Laurence, Harriet soube de pronto que as identidades de Jane e de Margaret
haviam sido reveladas. E as duas voltaram até ela, apressadas.
– Devemos informá-la, Harriet, que lorde Daniel não pretende desistir em hipótese
alguma, pois se sente profundamente atingido em seu caráter pelo que lhe foi dito e, assim,
irá até o fim no combate. – Era óbvio que Jane ria, por sua entonação.
Margaret também estava rindo, e se controlava para que ninguém a ouvisse.
Em instantes, os dois oponentes começaram a caminhar um em direção ao outro.
Harriet tremia, sentindo que, a cada segundo, sua tensão aumentava. Mas continuava
seguindo em direção a Daniel.
– Mas o que significa isto? – Daniel exclamou quando, por fim, a reconheceu.
– Boa noite, milorde.
– Harriet! Meu Deus! – Ele se voltou para seus amigos e padrinhos. – Então, era
por causa disto que estavam rindo?
– Era, sim – Laurence confessou.
Ele e Charles chegaram perto de Jane e Margaret, tendo o dr. Steele logo ao lado.
Suas expressões ficaram bem visíveis à luz da lanterna, e todos os rostos sorriam para
Daniel e Harriet.
O conde deu mais alguns passos, pondo-se diante dela.
– Qual é o significado de tudo isto? Onde está Frith?
Harriet retirou do bolso interno do paletó a carta que o barão escrevera e estendeu-a
a Daniel, dizendo:
– Ele não virá, e pediu-me que lhe entregasse isto.
Daniel cerrou um pouco os olhos, aborrecido.
– Você foi visitá-lo em seu quarto de hotel ontem.
– Sim, fui. – Harriet não sentia a menor vergonha pelo que fizera, porque tinha
consciência de seus atos.
Daniel rasgou o selo, mas, naquela escuridão, não conseguiu ler o bilhete. Por isso,
afastou-se até onde ficara a lanterna, que o criado ajeitou melhor para facilitar sua leitura,
pondo-se a ler.
– O que o barão diz aí? – Charles quis saber.
No entanto, Daniel fez-lhe um sinal para que se mantivesse calado e tornou a virar-
se para Harriet, reaproximando-se.
– Foi você quem arranjou tudo isto?
– Sim, isso mesmo.
– Explique-me: pretende tomar o lugar daquele idiota no duelo?
– Pois é. Sou eu quem o enfrentará para salvar sua honra.
– Não entendo, Harriet. Como foi que Frith concordou com isso? Como conseguiu
convencê-lo? O barão não é do tipo que se afastaria de bom grado de um duelo, ainda mais
sendo tão bom atirador.
– Bem, lorde Connought, na verdade foi tudo bastante simples. Eu disse a ele que,
se não agisse como eu queria, acabaria sendo malvisto em Londres.
– Mas você nem tem todo esse poder de influência para que o considerem mal?
– Engano seu. Nos últimos anos, consegui fazer amizade com gente muito influente
na sociedade londrina. Todas as grandes senhoras, as que sabem receber melhor por lá,
têm-me em muito boa conta, e os cavalheiros, em sua maioria grandes magnatas e políticos
do reino, consideram-me uma verdadeira dama. Para ser sincera, quando me recusei a casar
com você, meu gesto foi visto por todos com muita simpatia. Diria até com entusiasmo.
Imaginei, naquela época, que fosse porque você tinha uma terrível reputação de sedutor, de
patife.
Àquela altura, Daniel se mostrou atingido por aquelas palavras, mas Harriet ergueu
as mãos, pedindo-lhe que continuasse a ouvi-la.
– No entanto, bem mais tarde compreendi que eles agiam assim em seu próprio
interesse. Vi quando todas as grandes damas que me recebiam tão bem apresentaram a
você, uma após outra, alguma parente que quisesse se casar com um conde. Cheguei a
achar engraçado. Entretanto, como acabei favorecendo tantas moças por não ter desposado
o conde Connought, acabei fazendo um número muito interessante de amizades. Em
resumo, para responder ao que perguntou, eu poderia, sim, com facilidade, arruinar a
posição de Frith entre seus pares.
Daniel sorriu de leve, desfazendo a carranca que mantivera até aquele instante.
– Acho que até eu começo a ficar com medo de você.
Com a atmosfera menos tensa, Harriet sorriu.
– Não, você não tem medo de nada. Nem mesmo da morte. E sempre o admirei por
essa sua coragem sem limites.
– Imagino que eu tenha tido excelentes professores, pois meus irmãos, que sempre
enfrentaram a morte nos campos de batalha da Europa inteira, costumavam me dizer como
me portar e o que sentir em relação à vida.
Harriet transbordava de ansiedade. Amava-o tanto. Teria alguma chance de
suavizar-lhe o coração, depois do que tramara?
E seu peito se apertou quando o ouviu acrescentar, agora sério.
– Seja como for, não deveria estar aqui agora.
– Muito pelo contrário, Daniel. Alguma coisa precisava ser feita. Ou você se
considera páreo para a pistola certeira de Frith? O barão é um excelente atirador, o que não
é segredo para ninguém.
– É claro que me considero à altura dele! Bem, mas isso não importa mais. Mesmo
que eu fosse o pior atirador de toda a Inglaterra, ainda estaria obrigado a aceitar o desafio
que me foi feito. Mas sei que uma mulher jamais poderia entender o código de honra que
rege um verdadeiro cavalheiro.
– Um código de honra que permite que esse mesmo cavalheiro beije uma dama
apenas para proteger sua propriedade numa aposta?
– O quê? Como descobriu?
– Para ser sincera, acabei deduzindo tudo, ou quase tudo. Frith me revelou os
detalhes.
Daniel baixou a cabeça. Quando tornou a fitá-la, revelou, com certo
constrangimento.
– Eu estava muito bêbado, Harriet. E Frith tirou vantagem disso.
– É. Uma atitude abominável da parte dele. Bem, vocês dois agiram mal.
– Desejei mais de mil vezes que aquela aposta não tivesse sido feita. E você sabe
bem disso.
– Sim, sei. No entanto, não vim para discutirmos mais uma vez sobre isso. Estou
aqui para tomar o lugar de Frith no duelo.
Ele a encarou, atônito.
– Isso é ridículo, Harriet! E não é necessário, como deve saber agora.
– Pense como quiser, mas estou determinada a levar essa situação até o fim. Além
do mais, sei manejar uma pistola. Quer ver?
Mesmo na escuridão, ela podia vê-lo sorrindo.
– Muito bem. Charles! Traga a caixa!
– Você não pretende continuar com isso, pretende? – Charles rebateu, assustado.
– Suponho que sim, visto que se trata de um ponto de honra. Harriet está insistindo
nisso.
– Vocês dois ficaram malucos? – Charles olhou para Laurence, aturdido. – Fale
com eles! Pelo amor de Deus, convença-os de que isso é uma insanidade!
Laurence deu de ombros.
– Daniel sempre fez o que bem quis, meu amigo. Por que esta noite seria diferente?
Leve as pistolas para ele, homem!
– Você também enlouqueceu! Todos estão loucos! E eu não vou ser o culpado por
isso!
Vendo que o amigo vacilava, Laurence tomou-lhe a caixa de armas das mãos e
encaminhou-se para junto de Daniel e Harriet, entregando-a e depois retornando ao seu
lugar.
Daniel abriu a tampa e ofereceu as pistolas a Harriet, para que ela escolhesse uma.
– Começo a me sentir em perigo – Daniel comentou, sorridente, diante da
inexperiência evidente dela.
– Aconselho-o a não zombar de mim. Ainda estou aqui com o propósito de
duelarmos e, se possível, matá-lo.
O sorriso dele tornou-se uma gostosa risada.
– Harriet, está sendo ridícula.
– Não atiro tão mal assim, sabia?
– Pode até ser, mas não conseguirá nada se não segurar a arma direito. Além do
mais, não colocou a pólvora.
Ela franziu o nariz.
– Onde devo colocá-la?
Daniel mostrou para o local exato.
– Aqui, veja. Como pode confirmar, não há pólvora alguma.
– Laurence, poderia, por favor, colocar pólvora em minha arma? – Assim dizendo,
tombou a pistola e, fazendo isso, provocou a queda da bala, que acabou caindo aos pés de
Daniel.
Isso bastou para que todos os homens rolassem de rir. Harriet, porém, se mantinha
circunspeta.
– Podem achar isso tudo algum tipo de divertimento, mas posso lhes garantir que
estou determinada a tomar o lugar de Frith de maneira apropriada.
Laurence colocou a pólvora na pistola. Em seguida, abaixou-se e recolheu a bala.
Em dois minutos, a arma estava pronta para disparar.
– Está pronto, senhor? – Harriet indagou, decidida a levar seu plano até o fim.
– Tem certeza de que é isso o que quer?
Ela apenas assentiu.
– Muito bem, então. Compreende que um de nós, ou os dois, estará correndo o risco
de nos ferir ou até de morrer nos próximos minutos?
– Sem dúvida.
– Certo. Sendo assim, façamos como você quer. Charles, conte trinta passos.
Harriet, vire-se de costas para mim, sim? Está pronta?
– Estou!
– Muito bem, então... Charles, pode começar.
Respirando fundo, contrariado, Charles obedeceu.
– Um... Dois... Três... Quatro... Cinco...
Quando, por fim, chegaram aos trinta passos, Harriet se virou, vendo Daniel bem
distante, e achou que isso era muito bom.
– Prontos? – Charles gritou. – Apontem!
Harriet nivelou o braço, em direção a Daniel, mas desviou-o para a esquerda, para
que seu tiro saísse bem longe dele.
– Fogo!
Ela apertou o gatilho, e a pistola explodiu numa mistura de fumaça e faísca. Harriet
teve de dar um passo atrás devido ao tranco que recebeu. Sua mão estava estranha, como se
tivesse sido ferida.
Olhou para cima e piscou, percebendo, só então, que Daniel estava dando passos
lentos e irregulares para trás. Até que o viu cair.
De olhos arregalados de verdadeiro pavor, ela se perguntava como aquilo teria sido
possível. Tomara tanto cuidado para desviar a pistola dele. Não podia ser. Não podia ser!
Repetia a si mesma. Não podia ter matado o homem que amava!
Saiu correndo, dentro das botas grandes que dificultavam seus passos, até que caiu,
arranhando as mãos e os joelhos. Mas levantou-se e prosseguiu, percebendo, mesmo com
toda aquela aflição, que os amigos de Daniel deviam estar em estado de choque, porque
continuavam parados, junto de Jane e Margaret e do dr. Steele.
– Doutor, por favor, depressa! – gritou, desesperada.
Alcançou Daniel e ajoelhou-se ao lado dele, começando a falar-lhe enquanto
tocava-lhe a cabeça, o pescoço, o peito e os membros, numa seqüência rápida para
descobrir onde o disparo o acertara.
– Oh, meu querido! Meu amor! Meu grande amor. Por favor, fale comigo. Pelo
amor de Deus! Eu não queria feri-lo, juro! Diga-me que está bem, que não morreu. Meu
Deus, o que eu fiz? Daniel, fale comigo!
Os olhos dele se abriram e, antes que entendesse o que estava acontecendo, Harriet
viu-se presa por seus braços, caindo sobre ele na grama, recebendo um beijo feroz, ardente.
Afastou-se, apoiando as mãos no peito dele, emocionada.
– Eu não o matei! Não o matei!
– Parece que não. – Daniel comentou, num sorriso.
– Nem o feri?
– Não, meu amor. Na verdade, você errou feio! Acho até que serei obrigado a dar-
lhe aulas de tiro, porque é uma vergonha dizer que fez um papel assim tão ruim hoje.
Como vai poder continuar assim? Ainda mais se decidir fazer dos duelos um passatempo.
Harriet sentiu os nervos todos relaxarem e deixou-se cair sobre ele, sem querer
saber de mais nada.
– Meu Deus! – Suspirou. – Você não está morto. – E acariciou-lhe o rosto,
sentindo-se imensamente feliz.
– Não, minha querida, estou bem vivo. – Ele tornou a beijá-la e depois a encarou
por longos segundos, sem conseguir ver direito seus traços, naquela escuridão. – Parece
que voltou para mim, Harriet.
– Sim, meu amor. Estou aqui de novo. Para você.
– Não sente mais receio algum?
Harriet pareceu vacilar.
– Talvez... Um bem pequeno, mas pretendo afastá-lo logo.
– Se o que fez esta noite servir como parâmetro, conseguirá superá-lo em breve. E
com louvor!
Daniel moveu-se no chão, invertendo papéis e ficando curvado sobre ela. Ia beijá-la
mais uma vez, mas Harriet impediu-o.
– Estou perdoada? Quero dizer, será que um dia conseguirá me perdoar por ter nos
mantido afastados por tanto tempo?
– Não tenho bem certeza. – brincou. – Mas acho que você vai ter de se empenhar
muito para conseguir meu perdão total.
– Acha que o resto de minha vida será suficiente para que eu cumpra tal tarefa?
– Quem sabe... – E os lábios dele tomaram os de Harriet.
E ela correspondeu como nunca. Porque estava radiante e agradecida aos céus pela
nova oportunidade que lhe estava sendo dada com Daniel.

– Por que você me trouxe até aqui? – ela quis saber, quando entraram no pomar de
cerejeiras.
Uma semana tinha se passado, o noivado de ambos havia sido anunciado e a gota
que torturava Howard, enfim, desaparecera, permitindo que ele caminhasse por toda
Shalham à vontade, sem o uso da bengala que tanto detestava.
– Porque foi neste exato lugar que tudo começou. – Daniel olhava para as árvores
carregadas de flores cor-de-rosa. – E isso, há quinze dias. Lembra? Eu a abracei e roubei-
lhe um beijo. E acho que vou fazer o mesmo hoje.
– Sério? – Harriet sorria, numa expressão de pura felicidade. – Será que vai?
Parece-me muito seguro de si, conde Connought.
– E não deveria estar? – Havia um profundo amor na maneira como ele a olhava.
Harriet ergueu o olhar para ver Margaret e Laurence, que também caminhavam,
alguns metros a sua frente.
– Parece que dará certo entre aqueles dois, não é?
– É, querido, creio que sim. Conversamos ontem à noite, e Margaret falou sobre
algumas coisas que Laurence tinha feito e dito. E notei algo diferente nela, sabe? E uma
suavidade em sua entonação, em sua expressão. Juro que nunca a vi assim.
– É ótimo ouvir isso.
Continuaram andando, agora calados, apenas saboreando a companhia um do outro,
até que Harriet lembrou-se de algo, e disse.
– Sabia que Arabella está de partida hoje para Bath? Uma viagem um tanto
repentina, não concorda? Disseram-me que ela chorou muito nos últimos dias.
Daniel sorriu.
– Tenho certeza de que irá superar sua decepção.
– Mesmo?
– Querida, sabe muito bem que ela nunca me amou.
– Acredito que Arabella tenha tentado muito amá-lo. Mas como pode ter tanta
certeza assim de que nunca o amou? Afinal, ela sempre me pareceu tão devotada a você,
parecendo tê-lo como seu objeto de desejo.
– Desejo, pode até ser, porém, não amor, Harriet. Uma mulher apaixonada jamais
se utilizaria de comentários maldosos e mexericos para manipular uma situação a seu
favor. Quando Arabella lhe contou sobre minha aposta com Laurence e Charles, agiu de
forma imperdoável.
– Quase tanto quanto a própria aposta, eu diria.
Ele a tomou nos braços, buscando-lhe os lábios para um beijo ardente. Depois,
muito próximo, murmurou:
– Eu poderia até concordar com você. Mas devo lembrá-la de que se envolveu com
sua prima e sua amiga numa outra aposta, quase tão imperdoável quanto a minha.
Harriet riu, caprichosa.
– É verdade.
– Ah! A propósito, vou querer meu relógio e meu chicote de montaria de volta.
– Por falar nisso, como soube que eu estava com o chicote?
– Eu vi a ponta dele saindo de seu bolso naquela manhã em que foi a minha casa
dizendo que queria cavalgar e em seguida fez toda aquela encenação de estar se sentindo
mal e precisar voltar depressa a Shalham.
– Meu Deus, mas que papel ridículo em fiz naquele dia, não?
– De fato. Eu e Laurence rimos muito quando contei a ele.
– Contou a ele?
– Lógico! Eu tinha de dividir aquela piada com alguém.
– Deus, fui motivo de chacota. No entanto, acho que fiz por merecer. Mas sabe de
uma coisa? Ainda acho que você não devia ter se comprometido numa disputa assim,
arriscando me magoar. Não acha que foi uma atitude maldosa e desprezível a sua?
– Talvez, mas nem preciso lembrá-la de que foram justo as duas apostas, ridículas
ou não, desprezíveis ou não, a minha e a sua, que nos fizeram ficar juntos outra vez.
– Tem razão. Prometo nunca mais reclamar delas, então.
Daniel tornou a beijá-la, com aquela paixão voraz que a deixava fraca, entregue.
Harriet permitiu-se ser levada mais uma vez para o mundo de magia e encantamento que
só ele sabia provocar em seu corpo e em sua alma. Não poderia ser mais feliz.
Não poderia haver outro homem em sua vida. Amava Daniel com loucura, como
amara sete anos antes, e como amaria pelo resto de sua vida.

Fim

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