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Memórias Da Transgressão - Gloria Steinem PDF
Memórias Da Transgressão - Gloria Steinem PDF
Memórias
da Transgressão:
momentos da história da mulher
do século XX
Tradução de
CLAUDIA COSTA GUIMARÃES
EDITORA
ROSA DOS
TEMPOS
CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.
ISBN 85-01-04655-8
Nota ao Leitor 9
Prefácio 11
CINCO MULHERES
TRANSFORMANDO A POLÍTICA
Ha mais referências sobre "o que devo ler sobre o feminismo" no final deste prefácio. Cada livro
lido puxará outros.
14 GLORIA STEINEM
* Paul D. Colford, The Rush Limbaugh Story [A história de Rush Limbaugh] (Nova York, St. Martin's
Press, 1993), p. 184.
16 GLORIA STEINEM
*Diana E. H. Russell, Against Pornography: The Evidence of Harm [Contra a pornografia: a prova do
mal] (Berkeley, Califórnia: Russell Publications, 1994). Ver também: Russell, Making Violence Sexy:
Feminist Views on Pomography [A Transformação da violência em sexy: visões feministas sobre a
pornografia] (Nova York: Teachers College Press, 1993). i
MEMÓRIAS DA TRANSGRESSÃO 19
mas imagens típicas: mulheres com seios tão aumentados por im-
plantes que elas mal conseguem andar ou se deitar confortavelmen-
te- corpos femininos transformados em carne de açougue com o uso
de mortalhas, correntes e máscaras; meninas com a maquiagem es-
correndo pelo rosto em lágrimas de "prazer" pela humilhação a qual
estão sendo submetidas; mulheres acorrentadas com as pernas aber-
tas enquanto garrafas e bastões são introduzidos, à força, em suas
vaginas; meninas sorridentes, aparentemente drogadas, enquanto seus
lábios vaginais e seus mamilos são perfurados por agulhas; crianças
sendo penetradas oral e analmente em manuais explicativos de como
abusar sexualmente de uma criança; mulheres gritando de dor, pre-
sas em arreios e penetradas por vibradores e animais; homens com
garotinhos no papel da "fêmea" tendo seu corpo cruelmente invadi-
do; até mesmo cenas extremamente reais de evisceração e homicí-
dio. Em muitos dos casos acima descritos, a diferença de poder en-
tre vítima e algoz é amplificada pelo acréscimo de diferenças de raça,
classe, idade e grau de nudez.
Quanto tempo se passará até que homens e mulheres de todas
as raças se oponham à pornografia e sejam levados tão a sério quan-
to os judeus que se opõem às representações de imagens nazistas,
aos negros que se opõem às representações de imagens do racismo
ou qualquer um que se oponha às representações de ódio e degrada-
ção não sexualizadas?
Como podem ver, sinto raiva ao reler algumas destas páginas e re-
fletir sobre a falta de mudanças ou sobre os lembretes dos pequenos
retrocessos que sofremos nas mudanças obtidas. Mas a raiva é uma
célula energética que leva à mudança. Eu espero que vocês tratem
com carinho e utilizem o que quer que sintam. Apenas a raiva não-
externada e engolida transforma-se em amargura ou depressão, e
existem diversas provas de que a ação é um antídoto para tais senti-
mentos e o único caminho para o progresso. É bem verdade que os
retrocessos são, em si, um tributo ao sucesso: o resultado perigoso
mas inevitável de colocar a consciência da maioria na direção da igual-
dade e assim transformar uma maioria antiigualdade numa minoria
irada que ainda acredita poder ditar o que é legal, e até mesmo o
que é normal.
20 GLORIA STEINEM
— 1995
Houve dias, nos últimos dez ou doze anos, em que achei que minha
coleção de trabalhos escritos se resumia a cartas de captação de re-
cursos, rascunhos de discursos, declarações dadas no nascimento de
uma nova aliança e apresentações para os livros de outras pessoas.
Não me arrependo do tempo dedicado a estes outros projetos.
A escrita que leva à ação, que põe um sentimento comum em pala-
vras, que apresenta as pessoas umas às outras, talvez seja, a longo
prazo, tão importante quanto grande parte dos trabalhos convencionais
de ficção e não-ficção publicados. Se me pedissem para relatar o ápice
emocional desses vinte anos de carreira como escritora, eu talvez dissesse
que foram os dois dias passados em claro como escriba de diversas
reuniões durante a Conferência Nacional de Mulheres, em 1977 (um
evento aqui relatado em "Houston e a História"). Mulheres, repre-
sentantes de todas as minorias americanas, das mais antigas nações
indígenas às refugiadas vietnamitas recém-chegadas, haviam deci-
dido forjar uma resolução comum. Enquanto procurava palavras para
descrever as experiências comuns às mulheres de cor, tentando pre-
servar, ao mesmo tempo, as questões únicas a cada grupo, e quando
esta resolução em comum, sem precedentes, foi aceita e aclamada
por duas mil representantes de todos os cantos do país, senti um
imenso orgulho de ser escritora — um orgulho tão prazeroso quan-
to o de ver relatos mais pessoais publicados.
Dessa mesma forma, e supondo que exista realmente a posteri-
dade, eu teria sentido igual prazer se minha participação tivesse sido
ate menor que um livro ou um ensaio: talvez a invenção de algo tão
breve e essencial quanto a frase liberdade reprodutiva, uma substituta
democrática para frases antigas e paternalistas tais como controle
populacional, e uma liberdade de especial importância para a metade
reminina de todo o mundo. Encontrar uma linguagem que permita
30 GLORIA STEINEM
• Mas acima de tudo, ter aprendido com Flo que ninguém precisa
aceitar os termos impostos pela oposição. Por exemplo, quando
um homem hostil nos perguntou se éramos lésbicas (coisa
que acontecia com uma certa freqüência; afinal, por que ha-
veria uma mulher branca e outra negra de serem companhei-
ras?). Flo simplesmente olhou dentro dos olhos dele e per-
guntou: "Por que, minha alternativa é você?"
*Há dois semilivros: The Thousand Índias {As mil índias}, um guia que escrevi para o governo da
índia durante uma estadia como bolsista em 1957 e 1958 que jamais foi editado nos Estados Unidos;
e The Beach Book [O livro de praia] (Editora Viking, 1963) cuja antologia foi minha embora
contivesse, principalmente, artigos escritos por outras pessoas.
MEMÓRIAS DA TRANSGRESSÃO 43
• Por outro lado, escrever faz com que eu não acredite em tudo
aquilo que leio.
• A meu ver, escrever é a única coisa que passa pelos três testes
de métier: 1) quando estou escrevendo não sinto que deveria
estar fazendo outra coisa no lugar; 2) escrever me dá uma
sensação de realização e, de vez em quando, de orgulho; 3)
me dá medo.*
* What's In It for Me" (Que vantagem isso me traz), revista Harper's, 1965, p. 169.
44 GLORIA STEINEM
_1983
Eu Fui Coelhinha da Playboy
GAROTAS:
Será que as Coelhinhas da Playboy Realmente Têm Empregos
Glamourosos,
Conhecem Gente Famosa e Ganham Bem?
SEXTA-FEIRA, 25
SÁBADO, 26
Hoje vesti as roupas mais teatrais que pude encontrar, enfiei a ma-
lha numa bolsinha e caminhei até o Playboy Club. E impossível não
vê-lo. O discreto prédio de escritórios e a galeria de arte que ocupa-
vam o local foram transformados num reluzente retângulo de vidro.
O interior acarpetado de laranja é claramente visível, de fora, com
uma moderníssima escadaria flutuante espiralando clube acima pelo
centro. O efeito geral é alegre e surpreendente.
MEMÓRIAS DA TRANSGRESSÃO 63
QUARTA-FEIRA, DIA 30
Risos.
Olhei ao meu redor. Iluminação suave e tapetes macios haviam
sido substituídos por blocos de cimento sem pintura e lâmpadas
penduradas dos bocais. Havia uma porta marcada OELHINHAS;
dava para ver o contorno onde antes houvera um "C". Um aviso,
escrito à mão num pedaço de cartolina rasgada, dizia: BATAM!! Por
favor, meninas. Dá para cooperar?!! Passei pela porta e entrei num cor-
redor iluminado e cheio.
Duas garotas passaram por mim. Uma vestia apenas a calcinha
de um biquíni e a outra vestia meias arrastão de trama delicada e
saltos altos lilás. Ambas entraram correndo na sala de figurinos à
minha direita, berraram seus nomes, pegaram seus uniformes e vol-
taram correndo. Perguntei à responsável pela Srta. Burgess.
— Querida, acabamos de lhe entregar um presente de despe-
dida.
Outras quatro garotas saltitaram sala adentro pedindo suas fan-
tasias, golas, punhos e rabinhos. Vestiam meias-calças e salto alto e
nada da cintura para cima. Uma delas parou para examinar o qua-
dro no qual havia uma lista de "Coelhinha da Semana".
Dirigi-me à outra extremidade do corredor. Dava para um ca-
marim enorme cheio de armários de metal e diversas fileiras de mesas.
Havia bilhetes colados aos espelhos ("Alguém quer trabalhar no Nível
B no sábado?" e "Vou dar um festão na quarta em Washington Square,
todas as Coelhinhas serão bem-vindas"). Havia cosméticos espalha-
dos pelas bancadas e três garotas sentavam-se lado a lado colocando
cílios postiços com uma concentração de iogue. Parecia uma carica-
tura do camarim de artistas de teatro de revista.
Uma garota de cabelos muito ruivos, pele muito branca e uma
fantasia de Coelhinha de cetim preto deu as costas para mim e aguardou.
Entendi que queria que eu puxasse seu zíper, uma tarefa que levou
vários minutos de puxa e estica. Era uma garota grandalhona, de
aparência um tanto rude, mas a voz que me agradeceu era pequeni-
ninha como a de uma criança. Judy Holliday não poderia ter feito
melhor. Perguntei a ela a respeito da Srta. Burgess.
— Sei. Ela está no escritório — disse Vozinha de Bebê indican-
do uma porta de madeira com uma portinhola de vidro. — Só que
a nova Mamãe Coelha é Sheralee.
Através do vidro pude ver duas garotas, uma loura e uma more-
MEMÓRIAS DA TRANSGRESSÃO 67
na. Ambas pareciam ter vinte e poucos anos e não eram nada pare-
cidas com a matrona do prospecto. Vozinha de Bebê puxou e esti-
cou mais um pouco.
Este uniforme não é o meu — explicou. — É por isso que
está difícil de colocá-lo. — Ela se afastou estalando os dedos e can-
tarolando baixinho.
A morena saiu do escritório e se apresentou como a Mamãe Coelha,
Sheralee. Eu disse que a confundira com uma Coelhinha.
— Cheguei a trabalhar para o clube quando inaugurou no mês
passado — disse. — Mas agora vou substituir a Srta. Burgess. —
Ela indicou a loura que experimentava um conjunto bege de três
peças, provavelmente seu presente de despedida. — Terá de aguar-
dar um instante, querida.
Eu me sentei.
Às sete eu já tinha assistido a três meninas eriçarem os cabelos
até parecerem algodão doce e outras quatro encherem o sutiã com
lenços de papel. Até às 19:15, eu já havia conversado com outras
duas candidatas a Coelhinha, uma bailarina e uma modelo de meio-
expediente do Texas. Às 19:30 testemunhei a maior crise da vida de
uma Coelhinha que enviara a fantasia para a lavanderia com a aliança
de noivado presa com um alfinete pelo lado de dentro. Às 19:40 a
Srta. Shay subiu para avisar que "Não há mais ninguém além de Marie".
Às oito eu estava certa de que ela esperava pelo gerente do clube
para que ele dissesse que haviam descoberto minha verdadeira identida-
de. Às 20:15 finalmente fui chamada e estava nervosa além da conta.
Esperei enquanto Sheralee olhava minha ficha.
— Você não tem cara de 24 anos.
Bem, acabou por aqui, pensei.
— Parece bem mais jovem.
Sorri, incrédula. Ela tirou diversas polaróides de mim.
— É para os arquivos — explicou. Ofereci a história que eu criara
é datilografara com tanto esmero mas ela a devolveu sem nem olhar.
— Não gostamos que nossas garotas tenham histórias — ela
disse com firmeza. — Só queremos que você se adeque à imagem da
Coelhinha. — Ela me mandou para a sala de figurinos.
Perguntei se devia vestir a malha.
-—• Não perca tempo com isso — disse Sheralee. — Queremos
ver a imagem da Coelhinha.
68 GLORIA STEINEM
QUINTA-FEIRA, DIA 31
SEXTA-FEIRA, 1 DE FEVEREIRO
Expliquei que ser demitida por não sair com um deles me pare-
cia uma coisa muito diferente.
Bem — ela começou, pensativa —, acho que foi a maneira
que ela disse. Ela mandou ele se ferrar.
Paguei a conta. US$ 8,14 pelos cílios e por um ruge, mesmo
com os 25% de desconto para Coelhinhas. Recusara-me a investir
num batom mais escuro, embora "as garotas fossem despedidas por
estarem pálidas". Perguntei-me quanto as Coelhinhas geravam de
negócios para o Sr. Matthews. Será que houvera uma licitação de
salões de beleza para um negócio tão lucrativo?
Estou em casa e medi os cílios. Talvez eu não devesse me preo-
cupar tanto em ser reconhecida. Na parte mais longa, estes cílios
têm mais de dois centímetros de comprimento.
DOMINGO, DIA 3
.. .Você... é o único contato direto que grande parte dos leitores j amais
terá com os funcionários de Playboy... Dependemos de nossas Coe-
lhinhas para expressar a personalidade da revista.
...É esperado que as Coelhinhas contribuam com um número razoável
de aparições pessoais como parte de suas obrigações para com o clube.
...E bom lembrar às Coelhinhas que há maneiras muito agradáveis
de aumentar o volume de bebidas alcoólicas consumidas no clube e
assim aumentar os ganhos pessoais de cada uma, significativamente...
A chave para uma maior venda de bebidas é o Contato com o Cliente...
eles reagirão bem à sua tentativa de ser simpática... Deve fazer com
que pareça que as opiniões do cliente são muito importantes...
74 GLORIA STEINEM
A sala das Coelhinhas estava um caos. Puxa daqui, puxa dali até a
chefe de guarda-roupa fechar minha fantasia azul-rei. Desta vez ela
permitiu que eu colocasse meu próprio enchimento e eu consegui
me safar com apenas metade de um saco plástico. Coloquei a gola e
prendi a gravatinha-borboleta e os punhos com abotoaduras de
coelhinho. Meu crachá foi colocado num arranjo de fitas, tal qual
uma medalha daquelas que põem em cavalos quando vencem corri-
das, e preso logo acima do quadril, à direita. Uma mudança no re-
gulamento interno acabara de mudar os crachás do lado esquerdo
para o direito. A chefe de guarda-roupa também me entregou uma
jaqueta porque fazia menos de dez graus negativos e eu deveria me
posicionar ao lado da porta de entrada. A tal jaqueta era um pedaci-
nho de pele branca artificial que cobria os ombros mas deixava o
decote cuidadosamente à mostra.
Fui até Sheralee para ser inspecionada.
— Você está uma graça — disse ela e me aconselhou a guardar
o dinheiro que trouxera dentro da fantasia. — Tiraram coisas do armário
de outras duas garotas. —Ela então acrescentou que eu deveria di-
zer ao chefe da portaria quanto eu trouxera em dinheiro. — Senão
vão achar que você roubou gorjetas.
É que as Coelhinhas Garçonetes podiam guardar gorjetas em
espécie (embora o clube ficasse com cinqüenta por cento das gorje-
tas das contas pagas com cartão de crédito), mas as Coelhinhas
Chapeleiras não podiam ficar com gorjeta alguma. Em vez disso, elas
recebiam doze dólares por oito horas de trabalho. Eu disse a ela que
um salário de doze dólares por dia era bem menos do que os duzen-
tos a trezentos dólares mencionados no anúncio.
— Ora meu anjo, você não vai trabalhar sempre na chapelaria
— ela disse. — Assim que você começar a trabalhar nas mesas, da
tudo no mesmo. Você vai ver.
Dei mais uma olhada no espelho. Uma criatura com cílios de
dois centímetros, orelhas de cetim azul e seios que pareciam saltar
MEMÓRIAS DA TRANSGRESSÃO 83
Havia até uma tela acima da calçada. Um aviso dizia: "Esta câmera
do circuito interno de TV transmitirá sua entrada para todo o clu-
be» Sentia-me como se estivesse caminhando nua através das mul-
tidões e a única forma de recuperar minhas roupas seria passando
nela escadaria da gaiola de vidro. A medida que mais homens esten-
diam casacos em minha direção, eu me virava para o cabideiro para
pedir mais tíquetes.
Não se preocupe — disse ele gentilmente. — Você logo se
acostuma.
O movimento ficou mais calmo. Perguntei à Coelhinha suíça se
ela estava gostando do trabalho.
— Não muito — ela respondeu, dando de ombros. — Fui aero-
moça durante algum tempo, mas depois que você conhece Hong
Kong já viu de tudo.
Um homem se aproximou para tirar o casaco. Virei-me e dei de
cara com duas pessoas que eu conhecia bem, um executivo da tele-
visão e a esposa. Mantive os olhos baixos enquanto pegava o tíquete
e dei-lhes as costas enquanto o cabideiro procurava o casaco, mas
tive de encará-lo outra vez para devolver o mesmo. Meu amigo televisivo
olhou diretamente para mim, deu-me cinqüenta centavos de gorje-
ta e se afastou. Nem ele nem a esposa me reconheceram. Foi depri-
mente ser uma zé-ninguém fantasiada de Coelhinha, mas era tam-
bém uma vitória. Para comemorar, ajudei um homem magro, de
aparência tímida, a enrolar um cachecol azul e branco no pescoço e
perguntei-lhe se o cachecol era da Universidade de Yale. Ele me olhou
assustado como se tivesse sido reconhecido num baile de máscaras.
Não havia relógios em nenhum lugar do clube. Perguntei ao
cabideiro que horas eram. "Uma hora", ele respondeu. Eu estava
trabalhando há cinco horas, sem intervalo. Meus dedos estavam fu-
rados e doloridos, de tanto empurrar alfinetes através de papelão,
meus braços doíam com o peso dos casacos e eu estava gelada com o
vento glacial que soprava pela porta cada vez que um cliente a abria,
equilibrada em sapatos de cetim de salto dez, eu morria de dor nos
pés. Aproximei-me da Coelhinha de Chicago para perguntar se eu
Podia descansar um pouco.
'— Pode. Mas é meia hora para comer e só.
Depois da Sala da Coelhinha havia uma sala de funcionários onde
nossos vales nos proporcionavam uma refeição gratuita por dia. Eu
86 GLORIA STEINEM
mos um pouco para nós mesmos, será que o homem que o contava
não o faria? Eu disse para ele que tinha medo de que revistassem por
dentro da minha fantasia e que eu não queria ser demitida.
Eles só revistam de vez em quando — ele me assegurou. —
Bem, de qualquer forma, você me dá o dinheiro. Eu encontro você
lá fora e nós o repartimos.
Meus pés doíam, meus dedos estavam grudentos de tantos for-
ros de chapéus suarentos e minha pele estava arranhada pelas bar-
batanas da fantasia. Até mesmo o intervalo de meia hora para jantar
fora tirado do meu horário de trabalho. Assim, o clube ficava com
oito horas completas de trabalho. Meu ressentimento era grande o
bastante para me fazer aceitar a oferta que ele me fazia. Mas mesmo
assim não valia a pena ser demitida por roubo. Disse a ele que era
nova e que ainda estava nervosa demais para levar a sugestão a cabo.
— Você se acostuma — ele disse. — Um sábado desses, a cha-
pelaria arrecadou mil dólares em gorjetas. E você sabe quanto nos
pagam. Pense nisso.
Eram quase quatro da manhã. Fim de expediente.
O chefe do lobby veio nos dizer que haviam contado dois mil cli-
entes naquela noite. Eu disse que era um bom número.
— Não — ele discordou. — Quatro mil é um bom numero.
De volta à Sala da Coelhinha, devolvi minha fantasia e me sen-
tei, imóvel, cansada demais para me mexer. O espartilho deixara marcas
verticais nas minhas costelas e o zíper deixara um vergão na minha
coluna. Reclamei para a Coelhinha que se encontrava ao meu lado,
igualmente imóvel, que a fantasia era apertada demais.
— É — ela concordou. — Muitas garotas reclamam que ficam
dormentes do joelho para cima. Acho que comprime algum nervo
ou coisa parecida.
A rua estava deserta mas havia um táxi vazio do lado de fora, ao
lado da saída de funcionários. O motorista mostrava uma nota de
dólar pela janela aberta.
— Tenho mais quatro destas aqui — ele disse. — Não é o bas-
tante?
Continuei a andar.
— Qual é? — ele insistiu, irritado. — Você trabalha aí dentro,
não trabalha?
As ruas estavam bem-iluminadas e reluzentes com o gelo. Ao
88 GLORIA STEINEM
QUARTA, DIA 6
QUINTA, DIA 7
Cheguei à Sala da Coelhinha uma hora mais cedo para ver se conse-
guia descobrir alguma coisa a respeito de minhas irmãs coelhas. O
jornal as descrevera como universitárias, atrizes, artistas e até mes-
mo lingüistas. Perguntei a uma Coelhinha que se sentara a meu lado
sobre as lingüistas. Ela disse que era verdade, que havia umas es-
trangeiras trabalhando na sala VIP. (Conforme eu lera na bíblia,
"VIP são as iniciais de Very Important Playboy, é claro".) Na verdade,
era necessário falar inglês com sotaque estrangeiro para trabalhar
no salão em questão, que se especializava em jantares e ceia da meia-
noite. E as Coelhinhas que trabalhavam lá ganhavam bem?
— Na verdade não. Só cabem cinqüenta pessoas no salão e como
é jantar, o entra e sai é bem menor. E bem melhor servir drinques e
se livrar dos boçais rapidinho. — Então perguntei a respeito das
universitárias.
— Ah, claro. Acho que tem umas três ou quatro que freqüen-
tam aulas durante a semana e trabalham nos fins de semana.
E como é que elas conseguiam trabalhar só nos fins de semanas,
as noites de maior movimento e de melhores gorjetas?
— Escuta aqui, colega, tem gente aqui que pode escolher os
horários que quiser e o resto tem de agüentar uma semana de almo-
ços ou aquela porcaria de chapelaria. Na maioria são as garotas de
Chicago ou alguém que tem prestígio junto à gerência.
Perguntei se isso não seria por estarem trabalhando há mais tempo-
— Claro — ela disse, procurando um lugar para colocar as
orelhinhas em cima do cabelo armado. — Só que tal sistema não
deveria existir. "Vocês são todas tratadas da mesma forma", é isso.
que nos dizem.
MEMÓRIAS DA TRANSGRESSÃO 93
SEXTA-FEIRA, DIA 8
ele me disse. "E olha que eu sou o barman mais bem pago da casa."
Perguntei a ele por que não pedia demissão. "E exatamente o que
vou fazer", ele respondeu.
Item. Os funcionários beliscam comida roubada do bufê dos clientes
em pratos comunitários. Somos uma grande família.
Item. Recebi 29,85 dólares de gorjeta, tudo em notas de um dólar
e moedas. Aumentam a prosperidade mas tornam a fantasia des-
confortável. Perdi dois quilos ontem à noite.
SÁBADO, DIA 9
DOMINGO, DIA 10
SEGUNDA, DIA 11
Vai estar cabendo como uma luva quando você chegar para
trabalhar amanhã. Vou ter de apertar cinco centímetros de cada lado.
Eu tirei o Playboy Club News do meu armário e li em voz alta:
"O mundo do Playboy Club é cheio de bons shows, lindas
garotas e playboys que gostam de se divertir. É uma festa contínua.
As alegres Coelhinhas sentem-se como se fossem um dos convida-
dos..."
Minhas colegas da Sala de Almoço começaram a rir.
— E que festão — disse Vozinha de Bebê. — Nem sair com os
clientes se pode.
Perguntei se algum homem da Willmark já tentara pegá-la.
— Nããão — ela respondeu, pensativa. — Mas um cara ofere-
ceu duzentos dólares para uma garota se ela prometesse encontrá-lo
depois do trabalho. E ela aceitou—Vozinha de Bebê disse com des-
prezo. — Ela devia saber que só mesmo um imbecil ou um homem
da Willmark ofereceria dinheiro antes.
TERÇA, DIA 12
QUARTA, DIA 13
1. Lenços de papel
2. Sacos plásticos
3. Algodão
4. Rabos de Coelhinhas
5. Espuma
6. Lã de carneiro
7. Absorventes íntimos cortados ao meio
8. Lenços de seda
9. Meias de ginástica
SEXTA, DIA 15
QUINTA, DIA 21
Quase uma semana se passou. Liguei para Sheralee para dizer que
voltara para buscar algumas roupas mas que precisava pedir demis-
são. Ela me implorou para trabalhar no bar mais uma noite. Por al-
gum motivo (será que eu aprenderia alguma coisa nova?) eu me peguei
aceitando.
SEXTA, DIA 22
CHEFE DE SETOR: "AS suas mesas são aquelas: quatro de quatro e três
de dois".
CLIENTE: "Se você é minha Coelhinha, posso levá-la para casa?"
BARMAN: "Eles não param de mudar o tamanho das doses: sobe, desce,
desce e sobe. É de enlouquecer".
COELHINHA: "Trabalhei na festa.privé da LoLo Cola e ganhei seis latas
de brinde. Grande coisa".
CLIENTE: "Estou no Hotel New Yorker. Quarto 625. Você vai lembrar?"
HOMEM: "Se mocinhas fossem grama, o que seriam os mocinhos?"
COELHINHA: "Deixa eu ver... Cortadores de grama?"
HOMEM: "Não. Gafanhotos!"
SERVENTE: "Tem dinheiro saindo pelos lados da sua fantasia, meu anjo",
COELHINHA: "Ele é mesmo um cavalheiro. Trata você bem, quer tenha
dormido com ele ou não".
— 1963
PÓS-ESCRITO
1. Recebi uma longa carta de Hugh Hefner dizendo que "a his-
tória do exame médico ao qual as garotas se submetiam an-
tes de começar a trabalhar me levaram a eliminá-lo". (Ele
continuava a achar que era "uma boa idéia", e observou que
não era a primeira vez que o exame era "mal-interpretado e
transformado em algo duvidoso".) Ele incluiu também os
primeiros quatro mandamentos de sua "Filosofia do Playboy".
Durante grande parte da carta de três páginas, no entanto,
ele insistiu em que não se importara nem um pouco com o
artigo.
2. Uma ação judicial, por calúnia e difamação, no valor de um
milhão de dólares foi movida contra mim e contra um jornal-
zinho de Nova York, hoje extinto, que comentara meu arti-
106 GLORIA STEINEM
1995
Em Campanha
JULHO, 1965
SETEMBRO DE 1967
ABRIL DE 1968
JUNHO, 1968
JULHO DE 1968
críticos são tão mais cruéis com diretores e dramaturgos do que com
atores: é impossível ser severo demais com aqueles que desnudam
sua vulnerável forma humana diante dos olhos de todos. Olhando
dois anúncios pró-Rockfeller e Humphrey através de pesados óculos
de leitura, os antiquados suspensórios esticados sobre a camisa bem
engomada e os ombros ossudos, ele mais parece o pai de alguém,
um homem amado e cansado, conferindo as contas do mês com imenso
cuidado. Um pouco deslocado, um pouco remoto, ele parece ser o
tipo de homem que lê jornal na praia calçando mocassins com a roupa
de banho.
Dia Dois. Seja em Nova York, ontem em Pittsburgh, ou neste
instante no avião, as divisões da equipe são interessantes. A equipe
itinerante, os contratados locais e a vanguarda, todos parecem divi-
dir-se em duas categorias: os fiéis, ou seja, aqueles que encaram a
campanha como uma cruzada, e os pragmáticos, aqueles que vêem
McCarthy apenas como a melhor alternativa. Os fiéis não são críti-
cos e chocam-se com as opiniões dos pragmáticos (eles próprios res-
ponsáveis pela alcunha de "fiéis"). Os dois grupos tendem a escolher
as palavras na presença do outro. Os dois grupos se preocupam com
a influência do outro sobre o candidato.
Além desta divisão há uma outra, entre os membros da equipe
que permanecem em contato direto com McCarthy (a maior parte
do tempo dentro do avião) e os contratados locais ou do quartel-
general. O primeiro grupo tem uma postura muito mais distante
do que o segundo. Não porque seu entusiasmo por McCarthy seja
menor, mas porque dedicam-se a imitar seu estilo pessoal. Portanto,
escarnecem dos que demonstram alguma emoção. Este modo de ser,
distante, discreto e levemente cínico, parece natural em McCarthy
mas fica muito estranho em seus jovens assessores. Além disso, não
passam uma imagem de entusiasmo pelo candidato. "Os moleques
são eficazes em proporção direta à distância que mantêm de McCarthy",
observou um dos integrantes de nossa comitiva.
— Dêem uma olhada nesse avião — disse um dos assessores,
que não era um dos Fiéis. — Nós podíamos ter qualquer figura de
respeito a bordo, Mike Harrington, Galbraith, Pat Moynihan, mas
nao temos quase ninguém. McCarthy acha que não precisa deles.
Dia Três. Charles Callahan, um jovem calado, um verdadeiro
rochedo de Gibraltar, assessor pessoal de McCarthy, disse que pode-
124 GLORIA STEINEM
rei acompanhar o vôo para Atlanta esta tarde. Como sempre acon-
tece em aviões de campanha, tanto a equipe quanto a imprensa con-
centram-se em quem está monopolizando as atenções do candidato.
Noto que, em comparação aos tempos anteriores a New Ham-
pshire, McCarthy deu início a um processo peculiar aos meios artís-
tico e político: ele está se transformando numa estrela. O tom bran-
co-acinzentado de sua pele foi substituído por um bronzeado discre-
to mas por igual, os cabelos prateados estão mais compridos e não
mais gomalinados. As meias não são mais curtas, de seda, com relojinhos
bordados nas laterais. Além de terem espichado o bastante para su-
mirem por dentro das barras das calças, são de tricô. Mas a meta-
morfose vai além, tem mais a ver com coisas interiores, com mu-
danças causadas pelo constante escrutínio do público e das atenções
obsessivas de uma equipe. Talvez a mudança seja o poder.
Eu pergunto:
— Há impressões errôneas em outros artigos que talvez queira
corrigir com este? — Esta foi uma pergunta estudadíssima, um ver-
dadeiro tiro certeiro. Tirando comentários sobre o tempo, as recla-
mações em relação à imprensa parecem ser a unanimidade mundial.
Ele responde daquela maneira aparentemente branda.
— As pessoas só se interessam pelo número de delegados, sabe?
Está errado. E cedo demais para isso. Comparecer a comícios e con-
versar com delegados é ótimo, mas o importante mesmo é ficar de
olho nas pesquisas de opinião. Elas é que contam. Veja só os jornais,
o New York Times, por exemplo. Sua principal preocupação é pregar
como as coisas deveriam ser. Cada vez que faço algo que, segundo
eles, eu não seria capaz de fazer por não ser um candidato sério, eles
encontram uma outra coisa qualquer. É bem capaz de eu ir parar na
Casa Branca e ainda assim não ser considerado "sério". — Ele deu
um de seus típicos meio-sorrisos sardônicos.
Conversamos um pouco a respeito da notícia de hoje, de que ele
demitira alguns de seus jovens assessores.
— Não é mudança de imagem ou conspiração, como os jorna-
listas preferem acreditar. Nós tivemos enorme sucesso desde o frio
de New Hampshire por termos contratado jovens. Então para que
mudar? Trata-se de um conjunto de elementos: alguns de cunho
econômico e os outros como parte de uma estratégia normal de re-
dução de pessoal, após as primárias. E ainda há os que parecem ra-
MEMÓRIAS DA TRANSGRESSÃO 125
Então me associei ao clube. Isso já faz anos. Nem sei se estou em dia
com as mensalidades. Agora Eric Sevareid vem dizer que não há negros
entre os Moose. Se ele resolver criar caso por causa disso, acho que a
CBS terá de colocá-lo na rua.
No lobby, na companhia dos redatores de discurso, descobri o motivo
do bom humor de McCarthy. Segundo a opinião pública, pela pri-
meira vez desde o início da campanha ele estava à frente. Segundo
Harris, ele estava pelo menos quatro pontos à frente de Humphrey.
Talvez tenha sido por isso que ele atacou Humphrey com seu
humor mordaz pela primeira vez.
— Eu nomeei Hubert em 52 — contou a um grupo de demo-
cratas de Fulton. — E ele já estava maduro na ocasião.
Quando McCarthy, o candidato pacifista, balbuciou seu famoso
epigrama, "a única motivação política válida é a vingança", não de-
veríamos ter achado que estava apenas brincando.
AGOSTO DE 1968
Time, e assim por diante. Tais reuniões fazem parte do ritual espera-
do de um candidato à presidência.
Aparentemente, no entanto, a presença de mulheres em tais
eventos não faz parte do ritual. Eu ainda dupliquei o erro ao chegar
acompanhada de uma outra mulher: uma perita em relações públi-
cas que também trabalhava como voluntária na campanha de
McGovern. O resultado foi algum constrangimento, especialmente
no caso da Time, e uma infinidade de piadas sobre mulheres. (Houve
também grande hesitação quanto a nos servir cerveja preta e charu-
tos, e editores que se desculpavam a cada vez que usavam a palavra
"porra".) A outra mulher não se importou nem um pouco, endure-
cida que já estava pelas situações que enfrentava no dia-a-dia de seu
trabalho. Mas eu fiquei surpresa com a condescendência dos edito-
res e com o baixíssimo nível intelectual das perguntas que faziam.
Seria este o ápice jornalístico pelo qual tanto almejamos?
Até mesmo Pierre Salinger, que viera a pedido de McGovern,
interrompia discussões importantes para fazer piadas políticas, pre-
faciando cada uma com um pedido de desculpas "às senhoras". Um
dos editores chamou atenção para o fato da revista ter se livrado das
garçonetes "com o intuito de evitarmos problemas de decoro". (Nossa
comida foi servida por atenciosos senhores uniformizados.)
Estranhamente, McGovern pareceu não notar coisa alguma. Ele
simplesmente foi em frente com extrema seriedade e eficiência.
Fumei metade do charuto, bebi metade da cerveja e consegui
tirar McGovern de lá a tempo para aparecer num piquete da União
dos Trabalhadores Rurais. Mas acho que não nasci para isso.
JULHO 1969
AGOSTO DE 1969
AGOSTO DE 1971
FEVEREIRO DE 1972
MARÇO DE 1972
ABRIL DE 1972
JUNHO DE 1972
que esta era uma decisão individual, não um assunto legislativo, ele
se viu brutalmente atacado por grupos antiaborto durante as pri-
márias. Sem ter o mesmo instinto a respeito desta questão que pos-
sui no que diz respeito à guerra ou à economia, ele fez algo muito
atípico para ele próprio: voltou atrás. Primeiro, disse que era um assunto
que cabia a cada estado decidir e depois sugeria o oposto criticando
Nova York diretamente por ser excessivamente liberal. Como resul-
tado, sua posição não pareceu consistente ou simpática a nenhum
dos dois lados da questão.
Como forma de resolver o dilema, sugeri o termo "direito
reprodutivo", constante do próprio estatuto do comitê eleitoral. Talvez
pudesse ser adaptado para alguma plataforma política. Por exem-
plo: "O Partido Democrata se opõe à interferência do governo na
liberdade reprodutiva e sexual do cidadão americano como indiví-
duo". Isto englobava o assunto em todas as suas proporções por in-
cluir o verdadeiro apelo das leis que regem o controle de natalidade,
as leis de eugenia que permitem a esterilização involuntária e as leis
relacionadas à escolha sexual — todas preocupações tanto masculi-
nas quanto femininas. No item aborto, incorporamos uma pesquisa
do Instituto Gallup que mostrava 57% de todos os cidadãos ameri-
canos e 54% de todos os cidadãos americanos católicos acreditando
ser uma escolha individual, sob orientação médica, e não uma esco-
lha do governo. Além disso, assumia também uma posição contra a
interferência do governo com a qual tanto a esquerda quanto a di-
reita concordariam.
McGovern ouvia com atenção, como é seu costume, e disse que
gostava da formulação, que pensaria a respeito e que nos daria uma
resposta naquela mesma noite.
O único ponto de discórdia durante a reunião foi quanto à re-
presentação feminina na equipe de campanha. Betty Friedan, exage-
radamente loquaz com seu estilo frenético, disse a ele para ter "mais
mulheres visíveis na campanha, porque neste instante simplesmen-
te não há nenhuma". McGovern respondeu dizendo que aquilo era
uma grande asneira e você não sabe do que está falando". E na ver-
dade, Jean Westwood, uma das principais estrategistas políticas da
campanha, assim como várias outras mulheres influentes da equipe
de McGovern, encontravam-se na sala.
Uma delas foi ao auxílio de Betty acrescentando que, embora
152 GLORIA STEINEM
mas de nós não mais aceitará que nos digam o que fazer, nem mes-
mo de uma outra.
JULHO DE 1972
Suponho que fique claro, pelo tipo de afirmações que escolhi, que
eu estava secretamente fugindo do que era esperado de mim. Eu não
era casada, ganhava a vida numa profissão da qual gostava e tinha
— 1972
Reunião de Ex-Alunas
Nós nos reunimos num hotel local para o jantar da turma. Foi uma
reunião barulhenta, com mulheres inseguras olhando umas às ou-
tras com discreta curiosidade enquanto insistiam bravamente em que
todas nós estávamos "iguaizinhas aos tempos de escola".
Na verdade, apenas com base na aparência, a diferença de idade
entre algumas de nós poderia ser de vinte anos. A garçonete achou
que algumas tinham vinte e tantos anos enquanto outras pareciam
bem mais velhas do que nossos 46 anos de idade.
Sem o batom escuro, as golas redondas e os penteados dos anos
cinqüenta, no entanto, a maioria de nós parecia bem mais jovem
do que os poucos maridos presentes. Eles tinham uma aparência
assustadoramente paternal. Ficou claro que muitas de nós haviam
escutado os conselhos que nos mandavam casar com homens mais
velhos, mais sábios e mais altos, que pesassem mais e ganhassem
mais do que nós. Segundo o questionário da turma, a maioria dos
nossos maridos se encontrava numa faixa etária entre os 48 e os 62
anos.
O acontecimento central da noite foi um outro pequeno choque
de idades. Tínhamos, agora, a mesma idade que a reitora da facul-
dade. Como Jill Ker Conway era a primeira mulher a ocupar tal posição
em Smith e se formara em 1956 numa universidade da Austrália,
nós a nomeamos membro honorário de nossa turma.
Em troca, ela nos falou de seus anseios pessoais, dos sonhos de
aventura de uma infância vivida numa fazenda isolada na Austrália)
daquilo que almejara como estudante e como jovem estudiosa e as
MEMÓRIAS DA TRANSGRESSÃO 169
* Esta jornada aparece de maneira detalhada em The Road from Coorain (A Estrada de Coorain), o
comovente primeiro volume de sua autobiografia (Nova York: Knopf, 1989)-
170 GLORIA STEINEfo
— Estou tão feliz de ter trazido meu marido — disse uma mu-
lher, com os olhos cheios de lágrimas. —Venho tentando dizer a ele
como me sinto há vinte anos.
Eu temera que o fato de não ter marido ou filhos, além de ser uma
personalidade pública, me isolasse das mulheres que haviam sido minhas
amigas. Eu me esquecera do fenômeno das reuniões de ex-alunas:
você é jogada de volta ao mesmo ponto no qual se encontrava há 25
anos. As madeleines de Proust são tão especiais quanto uma hora pas-
sada num alojamento de faculdade.
Também descobri que ser famosa não é o pior crime que uma
mulher possa cometer. Talvez porque ser famosa, assim como ser
qualquer coisa que não esposa, ainda seja controverso e, portanto,
na melhor das hipóteses, uma faca de dois gumes. Não, o pior dos
crimes é ser magra. Como compreendo este desconforto sentido na
presença de pessoas magras (passei a vida inteira lutando contra os
quilinhos a mais e são poucos os minutos do dia em que não penso
em comida), empenhei-me em explicar que o fato de estar magra
não significava não ser louca por comida, da mesma forma que estar
sóbria não quer dizer que não se é alcoólatra.
Apesar de tudo, não era sempre que eu conseguia me sobrepor
à barreira dos quilos. A única colega que escreveu um comentário
hostil posteriormente (que eu comparecera à reunião "não para ver
e sim para ser vista") não comentou eventos ou conversas, apenas
que eu era "um anacronismo dos anos 70, vestindo calças jeans de
estilista famoso, tamanho 38, e falando de irmandade". (Na verda-
de, nem eram tamanho 38 nem tampouco de algum estilista famo-
so, mas compreendi o que quis dizer.)
Não obstante, foi um fato concreto — os cartazes do Desfile do
Dia das Ex-Alunas — que mais me ensinou.
— 1981
A Canção de Ruth (Porque Ela Não
Sabia Cantar)
passei agarrada à minha mãe com uma das mãos e a Uma História de
Duas Cidades de Dickens com a outra, porque a guerra que eclodia do
lado de fora de nossa casa era tão real para ela que quisera escapar, me
levando consigo. Assim, atravessou a vidraça com o braço e se cortou.
Ela só conseguiu dormir quando finalmente concordou em tomar o
remédio. E só então, naquela tranqüilidade terrível que se segue à crise,
admiti para mim mesma o quão apavorada ficara.
Não é de se espantar que eu não me lembre de nenhum parente
ter tentado desafiar o médico que receitara o remédio ou ter per-
guntado se um pouco daquele sofrimento todo e das alucinações não
seria proveniente de uma superdose ou da abstinência do mesmo,
ou até mesmo ter consultado outro médico a respeito de seu uso. O
alívio que a droga trazia era tão nosso quanto dela.
Mas por que será que ela jamais voltou ao primeiro sanatório? Por
que será que jamais consultou outro médico? E difícil responder. Em
parte, era devido ao medo de que a dor voltasse. Por outro lado, havia
muito pouco dinheiro disponível e as suposições normais da família
de que uma doença mental é parte inevitável da personalidade de uma
pessoa. Ou talvez outros parentes temessem ter uma experiência como
a que eu tive, no calor desesperador do verão entre a quinta e a sexta
série, quando eu finalmente a persuadi a se consultar com o único médico
do sanatório do qual ela se lembrava sem medo.
Sim, respondeu o homem velho e brusco depois de vinte minutos
de conversa com uma mulher distante e tímida: o seu lugar é defini-
tivamente numa instituição governamental para doentes mentais. Ele
disse que eu deveria interná-la ali sem demora. Mas até mesmo na-
quela idade, as reportagens publicadas na revista Life e nos jornais me
mostravam os horrores que ocorriam dentro daqueles hospitais. Achando
não haver outra alternativa, levei-a para casa e nunca mais tentei.
Olhando para trás, talvez o principal motivo de minha mãe ter
recebido atenção mas não os cuidados adequados era simples: seu
funcionamento normal não era necessário para o mundo. É o mes-
mo que as mulheres alcoólatras que bebem em suas cozinhas, en-
quanto programas caríssimos são criados para executivos homens que
bebem. Ou, então, como as donas de casa que são controladas com
tranqüilizantes enquanto pacientes homens recebem a atenção de
terapeutas e muita atenção pessoal: o trabalho de minha mãe não
tinha importância para ninguém. Ela não era nem mesmo respon-
182 GLORIA STEINEM
Esta era uma mulher que eu conheci pela primeira vez numa
instituição para doentes mentais nas redondezas de Baltimore, no
estado de Maryland. Era um lugar humano, com jardins e árvores,
onde eu a visitava todos os fins de semana durante o verão, depois
do primeiro ano de faculdade. Felizmente, minha irmã não conse-
guira trabalhar e tomar conta de nossa mãe ao mesmo tempo. Fin-
do o ano de meu pai com ela, minha irmã pesquisou hospitais com
todo o cuidado e sentiu coragem de romper com o hábito familiar
de apenas tolerar o estado de minha mãe.
A princípio, esta Ruth era a mesma mulher distraída e amedron-
tada com a qual eu vivera tantos anos. Em seguida, ela se tornou ain-
da mais triste por estar separada de nós pelos longos corredores do
hospital e por inúmeras portas trancadas. Mas aos poucos ela foi fa-
lando de sua vida e foi confidenciando lembranças que os médicos iam
despertando. Comecei a conhecer uma Ruth que eu jamais conhecera.
... Uma garota alegre de cabelos castanho-avermelhados que,
durante a escola secundária, gostara de ler e de jogar basquete; que
tentara dirigir o Stanley Steamer do tio, o primeiro carro do bairro;
que adorara jardinagem e as vezes vestia o macacão do pai, desafiando
a convenção da época; uma menina que tinha coragem de ir a bailes
apesar da igreja dizer que a música em si já era uma coisa pecamino-
sa, e cujo senso de aventura quase compensava a sensação de ser
desajeitada e feiosa ao lado da irmã, tão mais delicada e morena.
... Uma garotinha que acabara de aprender a andar mas que já
descobrira as áreas do corpo que lhe davam prazer. Era castigada pela
mãe com tanta violência que a força dos tapas a arremessavam do
outro lado da cozinha.
... A filha de um bem-apessoado engenheiro ferroviário e de uma
professorinha que acreditava ter se casado com alguém de uma clas-
se social inferior à sua. A mãe viajava com as duas filhas para a lon-
gínqua Nova York com passagens gratuitas às quais o marido tinha
direito para lhes mostrar os restaurantes e os teatros a que deveriam
aspirar — embora só pudessem ficar do lado de fora, na neve, olhando
para dentro.
... Uma boa aluna de Oberlin College, uma faculdade de filoso-
fa liberal que ela adorava, onde os colegas a apelidaram de "Billy";
uma aluna com um talento especial para a poesia e a matemática
que não se furtava de passar uma fina camada de Karo nas tampas
186 GLORIA STEINEM
Acho que ela me contou essa história para me mostrar que tentara
se salvar, ou talvez quisesse exorcizar uma lembrança dolorosa contando-
a em voz alta. Mas, ao ouvi-la, pude entender o que a transformara na
mulher da qual me lembro. Imagino uma figura solitária, sentada no
carro, suando no verão, encasacada no inverno, esperando que meu
pai saísse dos tantos antiquários, grata só de não estar sozinha. Como
eu era pequena demais para ficar em casa, eu os acompanhava. Eu
adorava ajudar meu pai a embrulhar e desembrulhar a porcelana e os
pequenos objetos que ele comprava em leilões e depois vendia para os
antiquários. Eu me sentia necessária e adulta. Mas às vezes passáva-
mos horas nos antiquários, horas até voltarmos ao carro e para minha
mãe, que estava sempre esperando, paciente e silenciosamente.
MEMÓRIAS DA TRANSGRESSÃO 189
Eu gostaria de lhes dizer que esta história tem um final feliz. O melhor
que posso dizer é que o final é mais feliz que o começo.
Depois de meses e meses no hospital de Baltimore, minha mãe
passou dois anos sozinha, num pequeno apartamento. Eu estava na
faculdade e minha irmã morava nas redondezas. Quando sentia que
seus antigos temores voltavam a atormentá-la, ela mesma pedia para
voltar para o hospital. Ela já tinha quase sessenta anos quando deixou
o hospital e uma instituição de readaptação do doente à sociedade,
administrada pelos quacres. Contrariando as expectativas dos médi-
cos, de que ela passaria períodos cada vez menores fora do hospital,
ela jamais voltou. Viveu mais vinte anos. Passou seis destes anos numa
pensão na qual tinha privacidade e companhia, conforme quisesse. Mesmo
depois de minha irmã ter se mudado com o marido para uma casa
maior e ter transformado o porão num apartamento para minha mãe,
ela continuou a ter uma vida independente e muitos amigos. Ela tra-
balhava meio-expediente como balconista numa loja de porcelana, viajava
comigo uma vez por ano e chegou a ir à Europa com parentes. Parti-
cipava de reuniões em clubes para mulheres, encontrou uma igreja
multirracial que adorava e passou a freqüentá-la todos os domingos.
Fez meditação e leu muitos e muitos livros. Ela ainda não conseguia
assistir a filmes tristes, ficar sozinha com nenhum dos seus seis netos
quando eram pequenos, viver sem tranqüilizantes ou falar daqueles
tristes anos passados em Toledo. Os velhos medos ainda existiam em
algum canto de sua mente e cada dia era uma nova luta, uma nova
tentativa de mantê-los sob controle.
O pessimismo dos médicos era proveniente da duração da doença
de minha mãe. Na verdade, não conseguiam diagnosticar doença
alguma além de "ansiedade neurótica": baixa auto-estima, medo da
dependência, medo da solidão e uma constante preocupação com a
190 GLORIA STEINEM
O velório foi celebrado numa igreja episcopal que ela adorava por
darem de comer aos pobres, por deixarem que os sem-teto dormissem
em seus bancos e por ter sido processada pela hierarquia episcopal por
ter uma mulher pastora. Mas, acima de tudo, ela amava o carinho com
que a congregação a recebera, com que a buscavam em casa para levá-
la aos sermões. Eu acho que ela teria gostado da informalidade, tão no
estilo quacre, com a qual os freqüentadores da igreja se levantaram
para contar como se lembravam dela. Sei que ela teria gostado de haver
tantos amigos presentes. Foi para esta igreja que ela deixou parte do
que restara da propriedade do Michigan, com a esperança de que fos-
se transformada em acampamento multirracial, uma tentativa de fi-
car quite com os vizinhos que esnobaram meu pai por ser judeu.
Acho que ela também teria ficado contente com seu obituário.
Enfatizamos sua breve carreira como uma das primeiras jornalistas
mulheres e pedimos doações para os fundos para bolsistas de Oberlin
a fim de que outros pudessem freqüentar a faculdade que ela tanto
amara mas que tivera de deixar.
Sei que vou passar muitos anos tentando compreender o que sua vida
me deixou.
Compreendo agora por que os idosos sempre me comoveram mais
do que as crianças. O que me emociona são os talentos e as esperanças
trancadas em corpos que começam a falhar. Esse contraste pungente
me faz pensar em minha mãe, até mesmo quando estava com saúde.
Sempre senti atração por histórias de mãe e filha, sozinhas no
mundo. Assisti a Um Gosto de Mel diversas vezes, em versão teatral e
cinematográfica, e jamais deixei de sentir tristeza. Vi Gypsy também,
inúmeras vezes, e ia aos bastidores no final da apresentação. Vi o
filme também. Eu mentia para mim mesma dizendo que estava
aprendendo os passos de dança, mas na verdade meus olhos esta-
vam cheios de lágrimas.
Uma vez me apaixonei por um homem só porque nós dois fazía-
mos parte daquele grupo enorme e secreto de "filhos de mães lou-
cas". Compartilhávamos as histórias da vergonha que sentíamos por
viver em casas que ninguém podia freqüentar. Antes dele nascer, sua
mãe fora presa por ser uma pacifista convicta. Em seguida, casou-se
com o jovem e ambicioso advogado que a defendera, ficou em casa,
criou seus muitos filhos e foi enlouquecendo aos poucos, num outro
tipo de prisão. Eu me desapaixonei quando meu amigo quis que eu
194 GLORIA STEINEty
Como tantas sufragistas, minha avó parece ter sido feminista publi-
camente e isolacionista na vida privada. Isso, em si, deve ter sido he-
róico e o máximo que poderia ser esperado, mas o voto e o direito le-
gal ao trabalho não eram o único auxílio de que minha mãe precisava.
Assim, o mundo perdeu um ser único chamado Ruth. Embora ela
quisesse ter morado em Nova York, embora quisesse ter podido viajar
nela Europa, ela se tornou uma mulher que temia atravessar a cidade
num ônibus. Embora ela tivesse dirigido o primeiro Stanley Steamer,
casou-se com um homem que jamais permitiu que dirigisse.
Só me resta imaginar o que ela poderia ter sido. Existem pistas,
provenientes dos momentos de alegria e humor.
Depois de passar tantos anos amedrontada, ela me acompanhou
a Oberlin quando fiz uma palestra naquela faculdade. Ela se lem-
brava de toda a história da faculdade, do fato de ter sido a primeira
a aceitar negros e a primeira a aceitar mulheres. Ela respondeu às
perguntas dos alunos com a dignidade de uma professora, a preci-
são de uma jornalista e um charme único.
Quando ela ainda podia fazer viagens a Washington e pesquisar
em suas bibliotecas, tornou-se perita em genealogia, deleitando-se
principalmente com os grandes moleques e os rebeldes da família.
Havia uma história que ela contava com enorme satisfação. Uma
vez, antes de eu nascer, ela preparou uma refeição enorme para os
integrantes de alguma banda famosa, hospedada na estação de ve-
raneio de meu pai. Como eles não tivessem raspado o prato, ela ti-
rou uma espingarda da parede e a apontou para suas cabeças até
comerem cada migalha de pão-de-ló com morangos. Só então ela
contou que a arma não estava carregada.
Embora sexo fosse um assunto que não gostasse de discutir, ela
apreciava muito os homens sensuais. Quando um amigo meu veio
me visitar e quis conversar sobre culinária, ela ficou furiosa. ("Ele
entrou nessa cozinha para falar de ensopado!") Mas ela o perdoou quando
saímos para nadar. Ela sussurrou: "As pernas dele são maravilhosas!"
No seu aniversário de 75 anos, ela jogou softball com os netos na
praia e sentiu imenso orgulho de ter arremessado bolas ao mar.
Até mesmo no último ano de vida, quando minha irmã a levou
Para conhecer a nova e luxuosíssima casa do vizinho, ela olhou as
listras verticais de um quadro abstrato pendurado no corredor e dis-
se, azeda: "O que é isso aí, o código de barras com o preço?"
196 GLORIA STEINEM
Nos anos sessenta, todo sexo praticado fora do casamento era cha-
mado de Revolução Sexual, uma expressão não feminista que sim-
plesmente queria dizer maior disponibilidade feminina, do ponto de
vista masculino. Ao final dos anos setenta, o feminismo trouxe a
compreensão de que liberação significava poder de escolha, de que a
sexualidade, para homens e mulheres, não deveria ser forçada ou
proibida. Com isso em mente, palavras como "virgem", "celibato",
"autonomia", "fidelidade", e "compromisso" passaram a ter um sig-
nificado positivo. Palavras condenáveis tais como "frígida" e "ninfo-
maníaca" estão sendo substituídas por palavras que omitam qual-
quer julgamento, tais como "pré-orgásmica" e "sexualmente ativa".
De fato, do ponto de vista médico, "ninfomaníaca" é um termo
inexistente, cujo intuito era condenar qualquer mulher que gostasse
de sexo ou que fizesse cobranças sexuais.
Pode ser que levemos algum tempo para entender os motivos
pelos quais tantas mulheres começam a manter seu nome de batis-
mo (em vez de chamá-lo de nome de solteira, com todas as implica-
ções de um sistema de dois pesos e duas medidas sexuais para ho-
mens e mulheres). Algumas mulheres até mesmo trocaram os no-
mes "patriarcais" por nomes "matriarcais" ("Mary Ruthchild, filha de
Ruth"), ou passaram a seguir a tradição de substituir os nomes dos
antigos senhores escravagistas por nomes de lugares ou por letras
(por exemplo "Judy Chicago" ou "Laura X"). Muitas tentaram resol-
ver o dilema do nome dando o passo reformista de simplesmente
acrescentar o sobrenome do marido ("Mary Smith Jones"). Mas tal opção
MEMÓRIAS DE TRANSGRESSÕES 205
— 1979 e 1982
PÓS-ESCRITO
— 1995
Celebrando o Corpo Feminino
Quanto tempo faz desde a última vez que você passou alguns dias
na companhia de outras mulheres: tirando e botando a roupa, to-
mando banho, descansando — aquela união confortável que parece
bem mais comum aos vestiários masculinos?
Para mim, o mais perto que cheguei de uma experiência como
esta foi na aula de ginástica no científico. Mas isso foi durante os
repressivos anos cinqüenta, quando até mesmo as mais ousadas se
escondiam por trás de toalhas. Outras de nós sentiam-se tão insegu-
ras em relação às mudanças de nossos corpos adolescentes (ou à falta
de mudança) que tomavam banho de calcinha—ou então agüenta-
vam o desconforto das roupas de ginástica úmidas debaixo da roupa
só para não terem de se despir.
Acho que já devíamos ser mais adultas e mais abertas quando
chegamos à faculdade. Não obstante, para as mulheres o esporte,
além de pouco feminino, tornou-se uma coisa antiintelectual. Estas
eram duas excelentes desculpas para evitar a maioria das situações
de nudez casual entre mulheres. E assim continuávamos a esconder
os corpos imperfeitos em que no fundo, acreditávamos, estava todo
o nosso valor.
E foi bem tarde que vim a ter uma experiência básica, humana e
reconfortante que deveria ter sido comum durante toda a minha vida.
Graças a alguns dias passados num spa antiquado, na companhia de
umas noventa mulheres, descobri uma consciência simples e visceral,
tão crucial quanto a do tipo verbal. Assim como muitas das experiên-
cias básicas que uma mulher é encorajada a não ter, esta trouxe força
(através da auto-aceitação) e raiva (por que não aprendi isso antes?).
É um truísmo dizer, por exemplo, que pouca roupa causa mais
impacto do que nenhuma. Mas no caso específico das mulheres su-
tiãs, calcinhas, biquínis e outros tipos de roupas são lembretes visuais
de uma imagem feminina idealizada e comercial à qual nossos cor-
216 GLORIA STEINEM
Quando volto para casa, com o corpo livre de açúcares, livre de ca-
feína e relativamente saudável, pergunto a mulheres mais jovens o
que sentem diante da nudez de outros corpos femininos. Eu parto
do princípio de que esta geração se sentiria mais à vontade com o
MEMÓRIAS DE TRANSGRESSÕES 221
1981
A Importância do Trabalho
No final dos anos setenta, o The Wall Street Journal criou uma série
em oito partes, todas matérias de primeira página, dedicada à "mu-
lher trabalhadora". Ou seja, à invasão da mulher no mercado de tra-
balho como sendo a maior mudança no cotidiano dos americanos
desde a Revolução Industrial.
Muitas mulheres receberam a série de reportagens e a definição
com cinismo. Afinal de contas, as mulheres sempre trabalharam. Se
todo o trabalho produtivo que as mulheres realizam no lar, pela
manutenção do bem-estar de outros seres humanos, recebesse o va-
lor monetário que lhe é devido, o Produto Nacional Bruto subiria
em 26%. Mas acontece que as mulheres, especialmente mulheres
brancas, estão mais propensas hoje em dia a deixar o emprego de
dona de casa — um emprego mal remunerado, de pouca segurança
e de alto risco (embora ainda tentemos explicar que é uma atividade
perfeitamente aceitável e que o verdadeiro problema está na recusa
do mundo masculino em realizá-lo e lhe dar um preço) — por ativi-
dades mais seguras, mais independentes e remuneradas fora do lar.
É óbvio que a verdadeira revolução do trabalho não ocorrerá até
que todo o trabalho produtivo seja remunerado — isto inclui a cria-
ção dos filhos e outras atividades exercidas dentro do lar—e os homens
sejam integrados no mundo feminino da mesma forma que as mu-
lheres passem a ser incluídas no mundo masculino. Mas a mudança
radical anunciada pelo Journal, e pela imprensa em geral, faz parte
de um longo processo de integração: a invasão, sem precedentes, de
mulheres de todas as raças a ocupações assalariadas, à força de tra-
balho que fora até então constituída e definida por homens. Já so-
mos quase 4 1 % do mercado de trabalho, a proporção mais alta em
toda a história. Considerando o fato das mulheres serem, também,
69% da "força de trabalho desencorajada" (ou seja, indivíduos de-
224 GLORIA STEINEM
sempregados mas que não fazem mais parte das estatísticas de de-
semprego por já terem desistido de procurar), além de haver uma
taxa de desemprego feminino oficial consideravelmente mais alta do
que a masculina, fica claro que podíamos fazer este número crescer
o suficiente para passarmos a ser metade da força de trabalho até
1990.*
Confrontados com a determinação feminina de nos tornarmos
um pouco independentes e sermos mais bem pagas e respeitadas pelo
trabalho que realizamos, os especialistas se apressaram em pergun-
tar: "Por quê?" É uma pergunta poucas vezes feita aos trabalhadores
do sexo masculino cuja motivação básica, a sobrevivência e a satisfa-
ção pessoal não são jamais questionadas. Na verdade, homens só são
encarados com estranheza e passam a motivar estudos sociológicos e
artigos em jornais apenas quando não trabalham. Isto ocorre mes-
mo quando os homens em questão são ricos e não precisam traba-
lhar ou então quando são pobres e não conseguem trabalho. Mesmo
assim, pesquisadores de opinião pública e sociólogos já fizeram de
tudo para demonstrar que as mulheres trabalham fora por extrema
necessidade financeira, ou, se persistimos apesar da existência de um
homem empregado em nossas vidas, é pelo simples desejo de "com-
prar umas coisinhas a mais" para nossas famílias, ou até mesmo de-
vido à boa e velha inveja do pênis.
Entrevistadores dos departamentos de recursos humanos, e até
mesmo nossas próprias famílias, ainda perguntam às mulheres re-
muneradas o grande "por quê?" Se temos filhos pequenos, ou se rea-
lizamos um trabalho considerado "de homem", esse tipo de pergun-
ta torna-se ainda mais freqüente. São versões condescendentes ou
acusadoras de "O que uma garota tão bacana como você está fazen-
do num lugar como este?" que ainda não desapareceram dos escri-
tórios ou das fábricas.
E como respondemos a estas suposições de que "trabalhamos"
*Esta estimativa acabou sendo ultrapassada. Em 1990, mulheres de todas as raças constituíam
57,5% da força de trabalho. De acordo com as estatísticas do Ministério do Trabalho americano,
este número cresceu um pouco nos anos 90 e a projeção é que chegue a 6 3 % até o ano de 2005-
Não obstante, a mídia vem enfocando uma tendência estatisticamente insignificante de mulheres
que decidiram deixar o mercado de trabalho para criar os filhos — uma escolha que deveria estar
ao alcance dos pais de qualquer criança, especialmente dada a ausência de horários flexíveis e de
creches adequadas —, em vez de falar do lado positivo, do que faz as mulheres permanecerem na
força de trabalho remunerada.
MEMÓRIAS DE TRANSGRESSÕES 225
— 1979
O Fator Tempo
Por outro lado, eu tinha amigas casadas com homens cujos pla-
nos profissionais a longo prazo eram compatíveis com os delas e mesmo
assim elas viviam a vida, dia após dia, em função das necessidades
dos maridos e dos filhos. Além disso, o único colega homem que
compartilhava ou que compreendia esta sensação de impotência era
um bem-sucedido jornalista e crítico literário negro que admitia, mesmo
depois de vinte anos de carreira, planejar apenas um trabalho de cada
vez, jamais esquecendo a dependência que sentia em relação aos editores
brancos.
Torna-se claro que há mais neste medo do futuro do que a con-
vencional definição de classes sociais consegue explicar. Há também
as castas: as indeléveis marcas de sexo e raça que acarretam toda uma
constelação de imposições culturais contra o poder, até mesmo o poder
limitado de controlar a própria vida.
Ainda não examinamos a noção de tempo e o planejamento do
futuro como função da discriminação, mas já começamos a lutar com
eles, conscientemente ou não. Como um movimento, as mulheres
tornaram-se dolorosamente conscientes de um excesso de reação e
de viver de emergência em emergência, com muito pouca iniciativa
e ação planejada. Por isto, sofremos tantas perdas para uma direita
tão menor porém mais consistente e arraigada.
Embora o hábito cultural de vivermos no presente e de passar-
mos um verniz no futuro sejam enraizados, começamos a desafiar o
castigo cultural sempre à espera das mulheres "insistentes" e "egoís-
tas" (e dos ambiciosos homens das minorias étnicas) que tentam romper
as barreiras para controlar suas próprias vidas.
Mesmo assim, escritoras e teóricas do feminismo tendem a se
esquivar do futuro despejando suas habilidades analíticas na tenta-
tiva de compreender o que há de errado com o presente ou com re-
visões históricas e críticas de influentes pensadores homens do pas-
sado. Os livros grandes, originais e certamente corajosos desta onda
do feminismo contêm mais diagnósticos do que receitas. Precisamos
de planejadoras pragmáticas e de futuristas visionárias, mas alguém
consegue imaginar um plano de cinco anos para o feminismo? Tal-
vez o mais próximo a que consigamos chegar seja à arquitetura visionária
ou à ficção científica feminista, mas estas, em geral, evitam passos
práticos como ir daqui até lá.
É óbvio que muitas de nós precisam expandir a noção de tem-
232 GLORIA STEINEM
— 1980
Homens e Mulheres Conversando
Houve uma época (alguns anos atrás) em que a crença, por parte
dos psicólogos, de que a forma que escolhemos para nos comunicar-
mos uns com os outros era, em grande parte, uma função da perso-
nalidade. Se certos estilos de conversação fossem mais comuns a um
sexo do que a outro (uma maneira de falar mais agressiva e mais abstrata
para os homens, por exemplo, e mais pessoal e ambígua para as
mulheres), isto nada mais era do que um tributo à influência da bio-
logia em nossas personalidades.
Conscientemente ou não, as feministas sempre desafiaram esta
hipótese. Muitas de nós aprenderam uma grande lição nos anos ses-
senta, quando toda uma geração ergueu a voz contra as injustiças da
guerra e contra as injustiças de raça e classe social. No entanto era
menos provável que as mulheres, mesmo usando as mesmas pala-
vras e o mesmo estilo de suas contrapartes masculinas, fossem ouvi-
das ou levadas a sério. Ao tentarmos falar a respeito desta ou de outras
frustrações, multiplicavam-se os ouvidos moucos e a freqüência do
ridículo e de oposição para quem falava. Apenas reuniões exclusivas
às mulheres e confissões mútuas confirmaram o que pensávamos ser
uma experiência pela qual passávamos sozinhas. Foram também estes
primeiros grupos de conscientização feminina que começaram a con-
firmar a existência de uma forma mais cooperativa e menos combativa
de falar, um estilo alternativo que vem fortalecendo muitas mulhe-
res desde então.
O problema é que esta forma culturalmente diferente de falar
continua a ser quase que apenas feminina. É verdade que ajudou
inúmeras mulheres a compreenderem umas às outras e a elaborar
estratégias de ação. Mas como influência sobre a fala considerada
culturalmente masculina permanece tão distante quanto as versões
domésticas do passado.
234 GLORIA STEINEM
pelo dinheiro em si, até mesmo por aqueles que concordam com suas
visões políticas.) E, finalmente, quase todo mundo, independente-
mente do status social, se vê no direito de criticar. (Professoras uni-
versitárias contam que têm seu estilo pedagógico criticado por jo-
vens alunos assim como chefes mulheres recebem críticas de seus
subordinados).
Da mesma forma que os homens de um grupo consideram um
tópico de conversa mais interessante se este não for apresentado por
uma mulher (mesmo se o mesmo assunto for ^apresentado por um
homem), ou uma questão política "mais importante" do que qual-
quer uma de interesse feminino, há também um estilo melhor e mais
eficiente do que aquele usado por uma mulher.
Os homens nos apoiariam, sim, se nós soubéssemos pedir este
apoio. É uma forma sutil e eficiente de não só culpar a vítima como
também fazer com que a vítima se culpe.
0 que podemos fazer para eliminar estes estereótipos? Fazer a ata de uma
reunião ou anotar a proporção de fofocas e auto-referências mascu-
linas/femininas durante uma semana seria educativo. Fazer com que
os homens passem um dia sem usar palavra alguma terminada em
"ção" e outras generalidades talvez os encoraje a dizer o que pensam
sem se esconderem por trás de generalizações. Deixar de usar frases
tais como "Bem, é só a minha opinião..." e outras autodesvalorizações
do gênero, para encorajar outras mulheres a confiarem em suas con-
vicções pessoais.
Como exercício pessoal, tente combater abstrações escorregadias
com exemplos tangíveis. Quando David Susskind e Germaine Greer
foram convidados para a mesma apresentação histórica num programa
de televisão, por exemplo, Susskind usou afirmações gerais e pseu-
docientíficas a respeito das mudanças emocionais sofridas mensal-
mente pelas mulheres como uma forma de se esquivar das injustiças
citadas por esta mulher de assombrosa inteligência. Finalmente, Greer
virou-se para ele educadamente e disse: "Então me diga uma coisa,
David. Você sabe me dizer se eu estou menstruada ou não?" Ela não
só eliminou qualquer dúvida que porventura houvesse surgido de-
vido às afirmações de Susskind, como também manteve o espírito
belicoso do outro sob controle pelo resto do programa.
Os próprios homens estão se esforçando para romper com as
244 GLORIA STEINEM
As vozes finas das mulheres e as mais graves dos homens são produto dafi-
siologia. Como vozes graves são mais agradáveis e autoritárias, oradoras mu
sempre enfrentarão problemas. Além do mais, as expressões faciais e os gesto
das mulheres simplesmente não são tão fortes... e assim por diante. É verda-
de que o tom de voz é, em parte, criado pela constituição da gargan-
ta e pela ressonância dos ossos. Embora haja uma enorme gradação
masculina e feminina de tons de voz, assim como de altura, força e
outros atributos físicos, nós partimos do princípio de que os homens
possuem um tom de voz mais grave do que o das mulheres.
Na verdade, ninguém sabe exatamente até que ponto a voz com
a qual falamos é imitativa e culturalmente produzida. Estudos rea-
lizados com meninos, antes da puberdade, demonstram que seu tom
de voz pode mudar, antes mesmo de ocorrerem as mudanças fisioló-
gicas responsáveis por tal mudança. Eles estão, na verdade, imitan-
do os homens à sua volta. Dale Spender cita um estudo de homens
que não eram mudos mas que nasceram surdos e eram, portanto,
incapazes de imitar sons. Alguns deles jamais passaram pela mu-
dança de voz dos adolescentes.
Qualquer que seja a mistura de fatores culturais e fisiológicos,
no entanto, o mais importante é que a aceitação do tom de voz é
definitivamente cultural. Assim sendo, está sujeita a mudança.
No Japão, por exemplo, a voz tradicionalmente aguda e sussur-
rante das mulheres é considerada um atributo sexual da maior im-
portância. (Durante uma pesquisa de opinião pública, a maioria dos
homens japoneses respondeu que considerava "a voz" o atributo se-
xual mais importante.) Embora sejam treinadas para falar com tons
mais agudos, as mulheres japonesas, assim como suas irmãs em grande
parte do mundo, falam em tons mais graves na ausência de homens.
São até capazes de modificar a linguagem que usam. Por exemplo,
as fitas de um grupo de colegiais japonesas, gravadas por um jorna-
lista, foram motivo de escândalo no país: elas usavam verbos e ter-
minações de palavras masculinos num país onde a língua é formal-
mente dividida em masculino e feminino. Sendo assim, é possível
que os homens japoneses achem as vozes agudas atraentes não pelo
que são em si e sim pela promessa da tradicional subserviência que
elas contêm.
Algumas mulheres americanas também cultivam vozes agudas,
mfantis ou sussurrantes à Ia Marilyn Monroe. Muitas vezes, sabe-
246 GLORIA STEINEM
mos que uma mulher está ao telefone com um homem porque sua
voz fica mais fina — assim como a dele se torna mais grave.
Um estilo vocal infantil ou "feminino" torna-se uma desvanta-
gem, no entanto, quando uma mulher tenta assumir um papel adulto,
ou um papel de poder. A televisão manteve as mulheres longe de
seus noticiários durante muito tempo alegando que suas vozes eram
agudas demais, irritantes demais e sem autoridade alguma para dar
credibilidade às notícias a serem dadas. Até hoje, as vozes femininas
são consideradas mais apropriadas para as notícias de interesse hu-
mano, para as notícias "leves", enquanto os homens ainda anunciam
as notícias "sérias". Nos primórdios da televisão, as mulheres podiam
apresentar o boletim meteorológico, desde que de forma bastante
sexy. Quando a meteorologia em si e os mapas meteorológicos en-
traram em voga, no entanto, a maioria dos canais trocou as mulhe-
res por homens. Oitenta e cinco por cento das vozes usadas em anúncios
televisivos é de homens. Até mesmo quando o produto anunciado é
destinado às mulheres. Mesmo se tratando de ceras e detergentes, a
voz da perícia e da autoridade é provavelmente masculina.
A longo prazo, os homens podem sofrer mais com as restrições
culturais em relação ao tom de voz do que as mulheres. O estudo da
lingüista Ruth Brend sobre modelos de entonação de homens e
mulheres nos Estados Unidos revelou que as mulheres usam quatro
tons diferentes na oratória normal. Os homens usam apenas três.
Esta diferença não é resultante de uma fisiologia diferenciada, pois
os homens possuem à sua disposição quatro tons. O que acontece é
que eles raramente usam o mais agudo de todos. Assim, as mulhe-
res podem falar com os tons mais agudos que possuem e com os mais
graves com algum grau de aceitação pública mas os homens usam
apenas os mais graves. É aceitável bajular a classe dominante atra-
vés da imitação de seu modo de falar, assim como é aceitável que as
mulheres vistam calças compridas e que os negros falem e se vistam
como os brancos do establishment. Mas é menos aceitável que homens
vistam roupas femininas, que brancos adotem o linguajar dos ne-
gros e um estilo "de rua" ou que os homens imitem ou pareçam as
mulheres. (Exceções da classe alta, tais como as apresentações de tra-
vestis promovidas pelo Hasty Pudding Club da Universidade de
Harvard ou pelos ricos homens do Bohemian Grove da Califórnia,
MEMÓRIAS DE TRANSGRESSÕES 247
Não podemos trocar nossas cordas vocais (nem as nossas nem as deles), mas
podemos nos certificar de que as mesmas estão sendo bem usadas. Tente gra-
248 GLORIA STBINEM
— 1981
A Política da Alimentação
— 1980
Criando Redes
Se você sair viajando por este país não terá como escapar: nos anos
oitenta e noventa, a criação de redes é o que a conscientização foi
nos anos setenta. E a forma principal de nós mulheres descobrirmos
que não somos loucas, e sim o sistema. E a forma, também, de des-
cobrirmos que grupos de apoio mútuo podem provocar mudanças
que até as mulheres mais corajosas não conseguiriam sozinhas.
Se nós já passamos pela conscientização (ou pelo clube do livro
feminista, pelos grupos de apoio às mães — ou qualquer que seja o
nome que damos para a célula revolucionária de nossas vidas), então
as redes de mulheres, formadas em torno do trabalho ou de qual-
quer outra questão que atinja a todas, talvez apóie o próximo passo
lógico para nosso ativismo e aprendizado. Se não usufruímos das
preciosas revelações, capazes de preservar a sanidade de qualquer uma,
que surgiram (e ainda surgem) em tais grupos de conscientização,
então a discussão de nossas verdades pessoais dentro dessas redes talvez
produza revelações similares e nos dê um apoio parecido.
Mas há um problema. Ao contrário dos antigos grupos de
conscientização, as novas redes são freqüentemente encaradas como
uma imitação das táticas do establishment. Algumas realmente ex-
cluem mulheres malsucedidas em vez de derrubar barreiras para as
mulheres como um grupo, mas muitas sofrem de problemas relaciona-
dos à imagem e outros problemas provenientes do termo em si. Redes
ou mesmo redes das velhas garotas evocam ecos dos antigos clubes dos
velhos garotos. Embora a conscientização também seja derivativa,
como conceito, suas referências incluem a "amargura verbal" da
Revolução Chinesa, os "testemunhos" do movimento de direitos ci-
vis negros, os grupos de apoio dos Alcoólatras Anônimos e outros
modelos de transformação. As redes podem invocar o status quo.
Isto é, até você colocar o "de mulheres" logo a seguir. E até você
MEMÓRIAS DE TRANSGRESSÕES 257
se dar conta de que "rede" pode ser usado genericamente para in-
cluir qualquer coisa, de alianças nacionais especializadas tais como o
National Women's Health Network (Rede Nacional de Saúde da
Mulher) ou o Feminist Computer Technology Project (Projeto Fe-
minista de Tecnologia de Computadores) ou locais de intercâmbio
tais como o Fórum das Mulheres, em Nova York ou o Fórum de
Mulheres Executivas, na Filadélfia.
Na psicologia da nomeação, tenho notado que as redes que exi-
bem Fórum no título parecem ser as mais elitistas, enquanto aquelas
que incluem termos tais como Grupo de Apoio ou Comitê eleitoral pa-
recem ser as menos elitistas. As redes locais, que incluem entre seus
membros as mais bem-sucedidas profissionais de uma dada ocupa-
ção, tendem a considerar o status ingrediente imprescindível, enquanto
as redes que se organizam em torno de uma questão ou de uma ins-
tituição específica tendem a incluir todas as mulheres afetadas por
aquilo.
O mais importante é o uso constante, por parte das mulheres,
do termo rede como verbo, formar redes, e não como um substanti-
vo isolado. É um processo, e não o produto final. Neste sentido, for-
mar redes torna-se algo solto e lateral, um contraste com o estilo
fechado e hierárquico das contrapartes masculinas tais como associações
profissionais, ordens fraternais, diretorados e as próprias redes dos velhos
garotos.
Para ser sincera, no entanto, há um problema de conteúdo, ou
seja, um problema com as realizações práticas das redes. Quando
suas organizadoras dependem de empregos em atividades de domí-
nio primordialmente masculino, as redes passam por fases dolorosas
nas quais a aprovação passa a ter enorme importância. Assim, crêem
que o melhor mesmo é portar-se como "boas meninas". Ou seja, ao
limitarem-se à definição mais restrita de "questões trabalhistas", ao
evitarem identificar-se com outras mulheres como grupo, ao evita-
rem o uso de palavras como "feminista" e ao negarem apoio às ques-
tões aparentemente "não relacionadas" tais como o Equal Rights
Amendment — ERA, emenda da constituição americana que exi-
gia direitos iguais para as mulheres — e a liberdade reprodutiva,
todas as oposições do establishment desaparecerão.
Normalmente este estágio dura pouco. Quando o dinheiro e o
poder estão em jogo, a maioria das "boas meninas" logo descobre
258 GLORIA STEINEM
— 1982
Transexualismo
— transexual feminino
— transexual masculino
* Raymond, Jan, The Transexual Empire [O império transexual]. Boston: Beacon Press, 1979-
MEMÓRIAS DE TRANSGRESSÕES 271
salvas pela mesma técnica, assim seus seres exteriores podem se adequar
à estrutura cromossomal ou às suas capacidades reprodutivas. Há
também os adultos que não poderiam, de outra forma, desempe-
nhar as únicas funções físicas realmente ditadas pelo sexo: a fecun-
dação, pelo homem, e a gestação, pela mulher.
De certa forma, os próprios transexuais dão uma contribuição
positiva ao provarem que os cromossomos não são tudo. Ao ignora-
rem esta estrutura interna, que não podem mudar, e enfocando as
aparências externas do corpo e a socialização, eles demonstram que
tanto homens biológicos como mulheres biológicas possuem, den-
tro de si, qualidades do sexo oposto e, assim, toda a gama de possi-
bilidades do ser humano. Infelizmente, a imprensa não divulga este
lado da questão. Ao contrário, o transexualismo é usado, em grande
parte, como um testemunho da importância dos papéis sexuais con-
forme os dita uma sociedade com imagem, genitais e comportamento
"masculino" e "feminino".
Mas a questão principal é se alguns indivíduos estão sendo for-
çados a se mutilarem pelos preconceitos que os rodeiam e se esta
automutilação é então utilizada e divulgada para provar a veracida-
de de tais preconceitos.
As feministas têm razão de se sentirem desconfortáveis com a
necessidade e com o uso do transexualismo. Mesmo se protegermos
o direito de cada indivíduo bem informado de chegar a esta decisão
e de ser identificado da forma que ele ou ela desejar, precisamos deixar
claro que, a longo prazo, esta não é uma das metas feministas. A
questão é que a sociedade se transforme a tal ponto que uma mu-
lher possa "jogar basquete" e que um homem não precise "ser o mais
forte". É melhor exteriorizar a raiva e usá-la para transformar o mundo
do que prendê-la dentro de si e usá-la para mutilar nossos corpos de
forma a se adequarem ao que espera a sociedade.
Neste meio tempo, não deveríamos nos surpreender com a quan-
tidade de publicidade e de exploração comercial conferida a um punhado
de transexuais. Os tradicionalistas dos papéis sexuais reconhecem um
tributo político quando o vêem.
Mas a questão permanece: se o sapato não nos cabe, será que
precisamos encurtar o pé?
— 1977
Por que as Jovens São Mais Conservadoras
dos anos. Embora algumas jovens feministas sejam uma enorme exceção
a esta regra, as mulheres, em geral, não se permitem desafiar a po-
lítica de suas próprias vidas até bem mais tarde.
Pensando bem, eu me dou conta de que eu mesma segui este
modelo. Os anos que passei na faculdade foram cheios de incertezas
e de um conservadorismo pessoal típico de quem busca a aprovação
dos outros e tenta se adequar ao papel de adulta e de mulher, quer
isto signifique encontrar um homem rico para sustentá-la ou um radical
que precise ser sustentado. Não obstante, continuei a acreditar que
uma juventude desbravadora e uma velhice conservadora eram a norma
para todo o mundo e que eu devia ser apenas um acidente, um caso
isolado e digno de culpa. Embora todas as generalizações baseadas
na cultura feminina possuam numerosas exceções, e jamais devam
ser usadas como desculpa ou muleta emocional, acho que seríamos
menos severas com nós mesmas e com outras estudantes, que nos
sentiríamos melhor em relação ao nosso potencial de mudança à medida
que envelhecemos — e creio também que devamos educar os jorna-
listas que anunciam a morte do feminismo devido ao fato de seu
epicentro não se encontrar nos campus universitários — se nos
conscientizássemos do fato de que, para a maioria das mulheres, o
tradicional período universitário é uma época cautelosa e pouco rea-
lista. Pense bem no seguinte:
E possível que, como universitárias, as mulheres sejam tratadas
com mais igualdade do que jamais serão tratadas. Em primeiro lu-
gar, por sermos consumidoras. As faculdades ficam extremamente
satisfeitas com as mensalidades que pagamos, ou que nossos pais ou
o governo pagam por nós. Com as taxas populacionais caindo devi-
do a um maior controle das mulheres sobre o número de filhos que
terão, ou não terão, este dinheiro torna-se ainda mais vital para a
sobrevivência daquela dada instituição. No entanto, ao contrário de
outros consumidores, alunos são transitórios demais para ter poder
como grupo. Se nossas mensalidades são pagas pelas nossas famílias,
nosso poder torna-se ainda menor.
Como jovens mulheres, quer sejamos estudantes ou não, estamos
no estágio mais valioso para uma cultura dominada pelo sexo mas-
culino: estamos em nosso ápice como trabalhadoras, como esposas,
como parceiras sexuais e como reprodutoras.
Isto quer dizer que ainda não passamos pelos eventos que mais
274 GLORIA STEINEM
*Isto deve-se também ao retorno de mulheres mais velhas às universidades, uma tendência que
continua em alta. Em 1990, de acordo com o Centro Nacional para Estatísticas Educacionais, um
terço de todas as mulheres matriculadas em instituições de ensino superior tinham pelo menos
trinta anos de idade — o dobro, proporcionalmente, do que em 1970, antes do impacto do
movimento feminista.
MEMÓRIAS DE TRANSGRESSÕES 275
1979
MEMÓRIAS DE TRANSGRESSÕES 281
PÓS-ESCRITO
— 1995
O Erótico vs. O Pornográfico
gressão dos direitos, das vidas e da segurança dos outros. Isto deve
servir também para a pornografia. Hoje em dia, ela se tornou isen-
ta, quase "abaixo da lei".
No que diz respeito ao preconceito de classe, simplesmente não
é correto dizer-se que a pornografia é o erotismo com um menor nível
de instrução. Das origens das palavras às formas que são normal-
mente usadas, torna-se claro que há uma diferença de contexto, e
não apenas de ordem artística e econômica. A pornografia envolve
dominação e muitas vezes a dor. O erotismo envolve a reciprocidade
e sempre o prazer. Qualquer homem sensível à condição feminina
saberá a diferença entre um e outro apenas de olhar uma fotografia
ou de assistir a um filme e colocar-se-á na pele da mulher. Talvez o
mais revelador de todo o argumento seja que ele é feito em nome da
classe trabalhadora pelos liberais pró-pornografia que fazem parte
das classes média e alta.
E claro que a idéia de que gostar de pornografia a torna aceitá-
vel é de fato uma difundida idéia masculina. A partir de Kinsey, as
pesquisas demonstram que os compradores de material pornográfi-
co são quase sempre homens e que a maioria dos homens se excita
com ele. Enquanto isto, a maioria das mulheres acha a pornografia
enfurecedora, humilhante e de maneira nenhuma excitante. A vera-
cidade de tal afirmação foi demonstrada apesar do fato de as mulhe-
res terem sido expostas a material de sexo explícito que possivel-
mente incluía o erotismo, pois Kinsey e os demais pesquisadores não
fizeram distinção alguma entre um e outro. Se os raros exemplos
que mostram o ato sexual como sendo prazeroso para ambas as par-
tes fossem completamente suprimidos, talvez a pornografia servisse
de terapia pró-aversão sexual para a maioria das mulheres. E no entanto,
os homens, e alguns psicólogos, insistem em chamar as mulheres de
pudicas, anti-sexo e rígidas por elas não se excitarem diante da ima-
gem de sua própria dominação. É muito pouco provável que estes
mesmos homens argumentassem que a literatura racista e anti-semita
é aceitável porque lhes dá prazer. O problema é que a degradação
de mulheres de todas as raças ainda é tida como normal. Um siste-
ma de dominação masculina ensina aos homens que a dominação
sobre as mulheres é normal. E é exatamente isto que faz a pornogra-
fia.
Não obstante, há algumas poucas mulheres bem-intencionadas
MEMÓRLAS DE TRANSGRESSÕES 293
*Para um histórico desta lei controvertida e mal interpretada, aprovada pelo Conselho Municipal
de Minneapolis e vetada pelo prefeito — assim como o resumo de uma pesquisa realizada sobre a
pornografia —, ver Franklin Mark Osanka e Sara Lee Johann, Sourcebook on Pornograpby [Livro-
fonte sobre a pornografia], (Lexington, Massachusetts: Lexington Books, 1989).
MEMÓRIAS DE TRANSGRESSÕES 295
Assim, eu não gostava dela e sempre evitava assistir aos seus fil-
mes. Se fizessem piadas a seu respeito, se ridicularizassem seu nome
e sua imagem, logo me juntava aos insultos. Eu contribuía nas risa-
das, no ridículo, nos insultos, provando assim ser nada como ela. Nada
mesmo.
Deixei meu bairro anos depois, assim como ela escapara de uma
vida tão pior, sublinhada pela falta de amor, por abusos sofridos na
infância e por lares adotivos. Não escapei, como ela, através de calen-
dários com fotos nuas e pequenas participações em filmes. (Mesmo
que existissem tais possibilidades para meninas bonitinhas em Toledo,
Óhio, eu jamais teria tido coragem de demonstrar tal vulnerabilidade.)
Eu era americana o bastante para sonhar em ingressar no show business.
Os garotos do meu bairro sonhavam em escapar de uma vida de tra-
balho nas fábricas através dos esportes. As meninas, as que imagina-
vam algo além de um bom casamento, sempre sonhavam em entrar
para o mundo do show business. Mas depois de fazer parte do circuito
de show business de Toledo, como bailarina, durante o segundo grau,
até eu fui capaz de perceber que havia poucas esperanças de que eu
seguisse tal carreira. No final, foi a sorte, uma mãe que sempre me
apoiou e uma certa facilidade com as palavras que me libertou. Esta
mesma facilidade fez com que eu demonstrasse uma competência maior
do que na verdade tinha nos exames de admissão para a faculdade,
para os quais estava completamente despreparada.
Mas as meninas que passam de raspão em exames de admissão
para as faculdades não são mais seguras do que aquelas que, como
Marilyn, apresentam-se diante de jurados de concursos de beleza.
Na próxima vez que a vi, eu era uma respeitável aluna, assistindo
aos celebrados atores do Actors Studio encenarem duas peças de te-
atro de altíssimo nível (naquele dia, apresentaram Arthur Miller e
Eugene O'Neill). Ela também era aluna, pupila de Lee Strasberg,
líder do Actors Studio e guru americano do método Stanilavski, mas
o status de estrela de cinema e de símbolo sexual fazia com que ela
não fosse levada a sério, até mesmo naquela época. Deixavam que
ela assistisse, mas não deixavam que encenasse com os colegas.
Então nós duas ficávamos ali, sentadas, ambas pasmas, creio eu,
na presença de gente do teatro como Ben Gazarra e Rip Tom, ambas
inseguras diante do mundo masculino da Alta Cultura, ambas que-
rendo sumir.
MEMÓRIAS DE TRANSGRESSÕES 301
— 1972
— 1968
A Verdadeira Linda Lovelace
tria ilegal de filmes) reclamou que Linda não era a "loura peituda"
que ele imaginara para o filme. Ele continuou a reclamar até mesmo
depois que a mandaram servi-lo sexualmente.
Na verdade, foi ao assistir Linda atuar publicamente como pros-
tituta que Damiano teve a idéia inicial de Garganta profunda. Ele
compareceu a uma festa na qual os homens faziam fila para serem
beneficiários de um truque de engolidora de espadas sexuais que
Linda aprendera com o marido e guardião, Chuck Traynor. Rela-
xando os músculos da garganta, ela aprendera a receber o mergu-
lho profundo de um pênis sem engasgar; para ela, uma desespera-
da técnica de sobrevivência, mas para os clientes uma constante
fonte de divertimento e novidade. E assim inspirado com tanta
criatividade, Damiano imaginou o roteiro para um filme, algo quase
tão perfeito quanto a completa eliminação do clitóris como fonte
de prazer por Freud, inventor do orgasmo vaginal. Damiano deci-
diu contar a história de uma mulher cujo clitóris se encontrava na
garganta e que, por isso, estava sempre ávida por fazer sexo oral
com homens.
Embora esta ficção fisiológica sobre uma mulher fosse bem me-
nos ambiciosa do que a ficção de Freud sobre todas as mulheres, este
filme pornô teve um impacto audiovisual brutal. Tratou-se de um
instrumento educacional que a teoria freudiana não teve.
Literalmente milhões de mulheres foram levadas aos cinemas por
seus namorados ou maridos para ver Garganta profunda (sem contat
as prostitutas, levadas pelos cafetões) para aprender o que uma mulher
poderia fazer para satisfazer um homem se ela realmente quisesse. Este
valor instrutivo parece ter sido o principal motivo da popularidade
do filme para sua projeção além do universo normal de uma platéia
exclusivamente masculina.
E claro que se a espectadora fosse uma verdadeira desmancha-
prazeres, ela poderia se identificar com a mulher exibida na tela —
sentir sua humilhação, o perigo, a dor —, mas o rosto sorridente e
feliz de Linda Lovelace servia também para acabar com a empatia.
Ela está ali porque quer. Quem a está forçando? Olha só como ela sorri. Está
vendo só como mulheres de verdade gostam disso?
Oito anos depois, Linda deu uma resposta, humilhante e dolo-
rosa, para a pergunta em Ordeal [Provação], sua autobiografia.
Não obstante, é importante compreender o quão difícil deve ter
312 GLORIA STEINEM
alguém lhes dê coragem para fugir, de alguém que lhes diga que é
possível recobrar a auto-estima", ela conta. "Significou muito para mim
receber aquele cartão-postal."
Ironicamente, sua única esperança de fuga veio justamente do
surpreendente sucesso de Garganta profunda. Ela se tornara uma
propriedade valiosa. Precisava ter contato com gente que vivia do
lado de fora, num mundo que, segundo ela, lhe fora negado até mesmo
via rádio e jornal. Hoje, ela diz, lucidamente: "Eu agradeço a Deus,
hoje, por não fazerem snuff movies naquela época."
Ela diz que escapou fazendo Traynor acreditar que poderia con-
fiar nela, um pouquinho mais a cada vez, até que foi deixada, sem
vigias, num quarto de hotel, durante os ensaios para a versão teatral
de Linda Lovelace. Após a fuga, ela passou semanas escondida, sozi-
nha, em quartos de hotel, convencida de que poderia ser espancada
ou morta por esta quarta escapada, mas sentindo-se mais forte, des-
ta vez, por ter de se preocupar apenas com a própria vida. Ela pas-
sou muito tempo escondida, com a ajuda e os disfarces conseguidos
por uma secretária que se compadecia dela, a secretária da Linda
Lovelace Enterprises, o novo e bem-sucedido empreendimento de
Traynor (mas ela não conseguiu ajuda alguma da polícia pois, se-
gundo eles, não podiam fazer nada para protegê-la "até que um homem
armado esteja na mesma sala que você"), antes que o terror dimi-
nuísse até um medo renitente. Traynor continuou a telefonar e a su-
plicar pelo seu retorno. Ele a processou por quebra de contrato. Mas
ele também encontrara uma nova mulher para estrelar seus filmes
pornô: Marilyn Chambers, a modelo que apareceu em Behind the Green
Door (Por trás da porta verde}, um filme, comparativamente, não
violento.
E então, de repente, ela soube através do advogado de Traynor
que ele concordaria em assinar o divórcio. As ameaças e as súplicas
pararam.
Não mais precisando se esconder e se disfarçar finalmente, ela
tentou transformar sua identidade criada em atuação de verdade no
filme Linda Lovelace for President [Linda Lovelace para presidente},
uma comédia que não deveria ter cenas de sexo explícito. Mas ela
descobriu que os produtores que lhe ofereciam papéis esperavam,
em troca, sua nudez. Ela compareceu ao Festival de Cannes mas fi-
cou deprimida por ser aceita dentre celebridades que ela tanto res-
MEMÓRIAS DE TRANSGRESSÕES 315
falar, eu vejo que a pergunta deveria ser outra: Onde foi que ela encon-
trou coragem para fugir?
Bem no fundo da paciência com que ela responde às perguntas
— resultado de toda uma infância sendo treinada para ser uma "boa
menina", o que contribui para que tantas de nós nos tornemos víti-
mas — há uma força e uma teimosia que são, em si, a resposta. Ela
vai conseguir que as pessoas compreendam. Ela não desistirá.
No microcosmo desta mulher reside um milagre que nos é fa-
miliar: a maneira pela qual as mulheres sobrevivem e voltam à luta.
E lutar é preciso.
— 1980
PÓS-ESCRITO
— 1995
Repensando Jackie
Não estou sugerindo que a Mulher Mais Famosa do Mundo seja como
todo mundo. Muito pelo contrário, ela não se parece com ninguém.
Parte daquilo que a faz única é a habilidade de distanciar-se de sua
imagem pública, de ignorar a curiosidade obsessiva de estranhos, e
de se recusar a ler quase tudo escrito a seu respeito.
Esta habilidade, certamente, a ajudou a sobreviver com a sanidade
e o senso de humor intactos. E provável que este seja o hábito que
mais irrita àqueles que gostariam de vê-la utilizar seu poder público
para diversos fins políticos. (Eu, por exemplo, adoraria que ela usasse
um pouco de sua influência para lutar em público por questões que
envolvem grupos sem poder, em geral, e mulheres, especificamente.)
Mas querer que ela use o poder de outras vidas pode chegar, injusta-
mente, perto de querer usá-la, por mais nobre que seja a causa.
Ela, pessoalmente, contribui financeiramente para diversos pro-
jetos, incluindo aqueles que ajudam mulheres a lutar por seus direi-
tos, mas ela não defende publicamente a Emenda de Igualdade de
Direitos que no íntimo apóia, ou qualquer outra plataforma políti-
ca. Através dos anos, ela se manteve fiel a projetos iniciados no go-
verno Kennedy, tal como a Restauração de Bedford-Stuyvesant, um
projeto de reforma do maior gueto negro de Nova York. Mas, pu-
blicamente, sua imagem está ligada a eventos artísticos e culturais,
interesses pessoais seus há muito. Salvar os prédios de Nova York
para a Sociedade Municipal de Arte ou a Rua 42 de sua decadência
MEMÓRIAS DE TRANSGRESSÕES 327
— 1979
Alice Walker: Você Conhece Essa Mulher?
Ela Conhece Você
nina na África. ("Você tem alguma idéia do que ela significa para nós?",
uma aluna do Spelman College me perguntou certa vez com os olhos
cheios de lágrimas.) Mas mulheres com formações pessoais diferen-
tes também sentem uma ligação com Alice Walker. A luta por trabalhos
e mentes próprias, pela nossa vulnerabilidade física, a dívida para
com nossas mães, as realidades do parto, as amizades entre as mu-
lheres, o destrutivismo dos homens que amamos — que nos tratam
como seres menores do que eles — a sensualidade, a violência: to-
dos estes são os temas básicos de sua ficção e de sua poesia. Em The
Third Life of Granje Copeland, ela expôs a violência contra mulheres,
anos antes de começarmos a contar, em público, a verdade sobre
espancamentos pelas mãos de maridos e amantes. Em termos de crítica,
o romance pagou seu preço por estar muito à frente de seu tempo.
Na verdade, o grande poder de sua obra está em falar da experiência
feminina, ultrapassando as barreiras de raça e classe social.
E ela jamais desiste. Nenhum personagem feminino pode esconder-
se por trás de um papel sexual, assim como um personagem negro
não pode se esconder por trás de um estereótipo de raça.
Como disse o jovem romancista: "Eu me tornei uma pessoa bem
melhor", o que parece ser a reação freqüente de seus leitores homens
e negros. Eles comentam a forma carinhosa com a qual ela usa o inglês
do povo negro, a compreensão que ela tem do que dá certo e do que
não dá, entre homens e mulheres, e o tratamento lúcido que ela dá
à vida dos negros nas zonas rurais do Sul do país, onde grande parte
de seus personagens cresceu.
É verdade que um número desproporcional de críticas negati-
vas veio de homens negros. Mas estes poucos críticos parecem rea-
firmar sua convicção de que os homens negros devem ter acesso a
tudo aquilo que os brancos já tiveram, incluindo a dominação femi-
nina. Eles demonstram seu medo de que as verdades contadas por
uma negra sejam mal usadas por uma sociedade racista, e perplexi-
dade diante do "estilo de vida" de Alice, um eufemismo usado para
o fato dela ter passado dez anos casada com um branco, ativista de
direitos civis. Quem fez esta última observação foram críticos que,
como já escreveu Alice, "já tiveram um casamento inter-racial e que,
além do mais, seguiam, embevecidos, cada palavra escrita por Richard
Right, Jean Toomer, Langston Hughes, James Baldwin, John Williams
e LeRoi Jones, para mencionar, apenas, alguns e que por sinal já ti-
332 GLORIA STEINEM
veram ligações inter-raciais... Eu, mulher e negra, ousei usar das mesmas
prerrogativas que eles".
Por outro lado, Alice também aponta que: "Pelo menos estes
críticos negros me levam a sério o bastante para exporem sua fúria.
A maioria dos brancos demonstra apenas perplexidade."
E quanto aos leitores homens e brancos, a primeira barreira na
qual esbarram é a convicção de que os livros de Alice "não foram
escritos para nós". Após lerem uma obra de Alice, no entanto, eles
muitas vezes dizem ter uma melhor compreensão da raiva negra ou
uma nova convicção de terem sido privados de uma visão integral
do mundo; é uma ironia, se considerarmos os medos expressados pelos
críticos negros. Susan Kirschner, professora de inglês que estudou
todas as críticas publicadas a respeito de Meridian, concluiu que o
único crítico a examinar os temas morais do romance com serieda-
de, que não se limitou a descrever a trama, foi Greil Marcus, crítico
branco do New Yorker.
Afinal, quem seria capaz de não compartilhar da ira da poeta
que escreveu:
*" 10 de janeiro de 1973", Good night Willie Lee, 1'll See You In the Morning [Boa noite Willie Lee, nos
vemos pela manhã] (Nova York: Dial, 1979)-
MEMÓRIAS DE TRANSGRESSÕES 333
Rage" ("Fúria"), Revolulionary Petunias & OtherPoems [Petúnias Revolucionárias e Outros Poemas)
(Nova York: Harcourt, Brace, Jovanovich, 1973).
*"New Face" (Nova Face), Revolulionary Petunias & Other Poems [Petúnias Revolucionárias e Outros
Poemas) (Nova York: Harcourt, Brace, Jovanovich, 1973).
334 GLORIA STEINEM
lhava como doméstica e ficava fora de seis e meia da manhã até depois
que escurecia. Como uma de minhas irmãs fora morar no Norte e a
outra se tornara esteticista, eu era responsável pela casa e pela comi-
da. Eu tinha doze anos e quando voltava da escola encontrava uma
casa vazia, para limpar e cozinhar. E ninguém dava muito valor à
luta que era manter aquilo tudo. Eu sentia muita falta de minha mãe.
Ouvimos ecos das histórias de Alice e seus personagens estão todos
presentes. Como Celie, ela começou a escrever como forma de so-
breviver.
— Dos oito em diante, passei a escrever num caderno. Eu o
encontrei há pouco tempo e fiquei surpresa, os poemas eram horrí-
veis, mas eram poemas. Há até um prefácio no qual agradeço a to-
dos que foram forçados a me ouvir ler aquele material: minha mãe,
minha professora e meu tio Frank, que era cego.
Como o narrador de seus muitos poemas e histórias, ela tinha
uma mãe em cuja coragem e sabedoria ela se apoiava. E ainda se
apóia. Aos quase setenta anos, ainda vivendo na mesma cidadezinha
da Geórgia, sua mãe já está fraca demais para trabalhar. Alice a vi-
sita com freqüência. Ela conta os dois presentes que sua mãe lhe deu
com sacrifício, uma maleta e uma máquina de escrever, claramente
uma permissão para se aventurar e para trabalhar. Seu pai, que morreu
há nove anos, era um homem perturbado e complicado, de quem
ela diz ter sido muito próxima quando criança, mas ele não soube
compreender a mulher na qual a filha se transformou.
No ensaio "O País de Meu Pai São os Pobres", ela escreve sobre
a separação que nenhum dos dois quis, uma distância entre pai e
filha que a pobreza extrema e o sacrifício para o progresso da gera-
ção seguinte tantas vezes cria.
Como Meridian, a personagem principal de seu segundo romance,
ela ganhou uma bolsa e foi para Spelman, uma faculdade para mu-
lheres negras, em Atlanta. Para Alice, a oportunidade era parte de
um resultado irônico de um acidente ocorrido na infância e que a
deixara "deficiente".
Aos oito anos, enquanto brincava com os irmãos mais velhos,
ela foi ferida com um tiro de espingarda de chumbinho. Ficou cega
do olho direito. Um médico local previu que ela eventualmente per-
deria também a visão do outro olho e, embora estivesse enganado,
ela viveu com este medo durante muitos anos.
MEMÓRIAS DE TRANSGRESSÕES 341
— 1982
PÓS-ESCRITO
-1995
Houston e a História
— Tomas Jefferson
*Para o texto completo deste Plano Nacional de Ação, ver Caroline Bird, What Women Want: The
National Women's Conference [O que querem as mulheres: a conferência nacional de mulheres] (Nova
York: Simon and Shustet, 1979).
354 GLORIA STEINEM
*Gunnar Myrdal, An American Dilemma [Um dilema americano] (Nova York: Harper and Brothers,
1994), 1073.
356 GLORIA STEINEM
* Angelina Grimke, em Elizabeth Cady Stanton et ai., The History of Woman Suffrage [A historia
sufrágio feminino], vol. 2 (Rochester: Charles Mann, 1899).
MEMÓRIAS DE TRANSGRESSÕES 357
* The Life and Times of frederick Douglass [A vida e os tempos de Frederick Douglass] (Nova York:
Collier, 1962), p. 469.
358 GLORIA STEINEM
— 1979
O Crime Internacional da Mutilação Genital
Aviso: Estas palavras são dolorosas de ler. Elas descrevem fatos da vida tão
longínquos quanto nosso mais apavorante pensamento e tão próximos quanto
qualquer negação da liberdade sexual das mulheres.
*Embora este artigo seja fruto de uma parceria, decidimos publicá-lo como parte de nossas coleções
respectivas devido à importância do assunto.
**Estimativas de 1992 da Organização Mundial de Saúde e da Agência Americana para o
Desenvolvimento Internacional.
366 GLORIA STEINEM
— 1979 e 1992
PÓS-ESCRITO
— 1995
Receitas de Fantasias: Para Alívio Temporário
da Dor Causada Pela Injustiça
O New York Times é herdado por mulheres que rompem com a tradição
de família e não passam seu controle para maridos, irmãos, filhos ou
cunhados. (Como a hemofilia, o Times é passado através das mulheres
mas recebido pelos homens.) Em vez disso, elas mesmas assumem o poder
e demitem todos os editores e gerentes responsáveis pelos preconceitos
citados por funcionários em processos históricos de discriminação sexual
MEMÓRIAS DE TRANSGRESSÕES 379
e racial. Então, eles dizem às suas litigantes: "Vão, minhas queridas ...
agora vocês decidam quem vai dirigir o New York Times."
Pela segunda vez este ano, o papa João Paulo anuncia que a Igreja
deve ficar fora da política — só que desta vez ele realmente fala a
sério. Todas as tentativas da Igreja de influenciar a legislação em relação
aos anticoncepcionais, à sexualidade, ao aborto, à família e outros
problemas/questões privadas são imediatamente suspensas. São pa-
gos impostos sobre estacionamentos, hotéis, shopping centers, e todas
as outras propriedades religiosas. Nós realmente conseguimos sepa-
rar a Igreja do Estado.
*Hoje são 75 centavos por cada dólar, assim roubaríamos apenas 25 centavos — justiça é justiça.
380 GLORIA STEINEM
greve similar pelo menos uma vez por mês e depois duas vezes por
mês... e assim por diante. Elas fazem o Pentágono ficar de joelhos.
Por favor não pense que todas as minhas fantasias são alegres. Mui-
tas são bem paranóicas. Dado à habilidade, cada vez maior, de
predeterminar o sexo do bebê, acrescentada aos preconceitos em favor
de filhos homens e ao desenvolvimento da gestação fora do útero, a
pior de minhas fantasias estende-se por décadas futuras de uma po-
pulação feminina decrescente. Termina em alguns zoológicos inter-
nacionais do futuro com uma dezena de nós em jaulas onde lê-se o
aviso: "Por favor não alimente as mulheres."
No entanto, uma vida com fantasias fortes é a nossa própria fic-
ção científica. É uma fonte de alívio, de fuga e até mesmo de algu-
mas idéias mirabolantes.
Pense no movimento de auto-ajuda feminina, por exemplo. Suas
pioneiras nos ajudaram a conhecer a incrível elasticidade, a força e a
sensibilidade do colo do útero. Suponhamos que tal conhecimento
fosse associado a técnicas de biofeedback que nos ensinaram a contro-
lar os músculos em questão. Mulheres incapazes de levar uma ges-
tação até o final talvez pudessem fazê-lo. Mulheres que não desejas-
sem uma gravidez talvez pudessem induzir abortos espontâneos. Se
até o ano 2000 as mulheres usassem cada publicação, cada confe-
rência nacional e internacional para ensinar umas às outras esta téc-
nica subversiva talvez conseguíssemos declarar uma seleta "greve do
bebê". Assim, não só deferíamos o controle sobre os meios de repro-
dução como também contaríamos com a irreversibilidade do fato.
Isto seria, certamente, de grande utilidade numa conferência de
mulheres — e nestas páginas.
— 1980
Se Hitler Estivesse Vivo,
de que Lado Estaria?
— Cartaz exposto
na Convenção Pró-Vida de 1979
— Raymond J. Adamek,
Human Life Review, outono de 1977
Usando a mesma analogia com os nazistas alemães feita por muitos dos
conferencistas {o congressista Robert K.}, Dornan disse: "Sabemos o que
está acontecendo neste país. Alguns alemães tinham a desculpa de que
não tinham certeza."
— Washington Post,
23 de janeiro de 1977
382 GLORIA STEINEM
*Nos anos oitenta e noventa, programas de rádio e redes de computadores on-line multiplicaram
este número diversas vezes.
MEMÓRIAS DE TRANSGRESSÕES 383
dos sexos; esse respeito exige que nenhum dos sexos tente
realizar o que pertence à esfera do outro."
— Discurso de Hitler para a Organização
de Mulheres da Nacional Socialista,
setembro de 1934.
-1980
Pensamentos Noturnos de um Telespectador
* A igualdade de direitos, sob o regime da lei, não deverá ser negada ou abreviada pelos Estados
Unidos ou por qualquer estado devido ao sexo."
408 GLORIA STEINEM
*Os leitores que assistiram ao filme, lançado após a publicação deste ensaio, notarão que esta
passagem do livro foi suprimida. Na verdade, a fantástica atuação de Metyl Streep como Sofia quase
salvou o personagem na versão cinematográfica enquanto o amante sádico e o narrador tornaram-
se mais ternos e "limpos". Não obstante, a questão básica da moral de ambos e do "masoquismo"
de Sofia permanecem.
412 GLORIA STEINEM
No entanto, ele não gasta uma mísera palavra sobre a política sexual
que poderia estar implícita na decisão de Sofia de não salvar a filha.
Na mente do autor, a preferência pelo filho não precisa ser explicada.
É tão natural quanto o masoquismo feminino e a tendência suicida
das mulheres.
E difícil zangar-se com um autor que deixa seus próprios precon-
ceitos tão em evidência. Ler A escolha de Sofia é como ler um caso de
Freud em que ele sustenta ferrenhamente que uma paciente não foi
realmente estuprada por seu pai quando criança, que ela apenas cons-
truiu esta história porque desejara que isso acontecesse. E claro que
estamos descobrindo, agora, através das cartas de Freud, que ele sabia
que tais pacientes diziam a verdade. Mas ele continuou a acusar a
vítima a fim de tornar seus relatos aceitáveis para a sociedade. É possível
que Styron também soubesse o que estava fazendo. (Se isto for ver-
dade, eles são igualmente culpados.) No final, o leitor é deixado com
a triste suspeita de que, se Sofia não tivesse sido linda e se o autor
não tivesse gastado um longo verão tentando levá-la para a cama,
ele não teria se incomodado em registrar sua existência de forma
alguma. Em um quadro enorme sobre os campos de concentração,
o sofrimento humano, a morte de crianças e a insanidade, o autor
pintou o retrato de um escritor jovem branco, sulista, obcecado pelo
sexo, que finalmente consegue perder sua virgindade.
Minha primeira esperança é de que jamais tenha existido uma
Sofia verdadeira, que Styron a tenha criado completamente. Como
as pacientes de Freud, no entanto, ela é real e crível o bastante para
entristecer o leitor; muito mais porque ela é registrada por alguém
que a descreve mas nunca a entende.
Talvez devêssemos colocar bilhetinhos nas capas de ambos The
Confessions of Nat Turner e A escolha de Sofia: "Por favor, ajude-me.
Sou prisioneiro em um livro de William Styron".
— 1980,1981
Se os Homens Menstruassem
— 1978
*Meus agradecimentos a Stan Pottinget pelos muitos improvisos incluídos neste texto.
Longe da Margem Oposta
TESTANDO A PROFUNDIDADE I
TESTANDO A PROFUNDIDADE II
TESTANDO A PROFUNDIDADE IV
*A Emenda de Igualdade de Direitos foi reintroduzida no Congresso um pouco depois de sua não
ratificação até a data limite de julho de 1982. Até as eleições de novembro do mesmo ano, os eleitores
pró-igualdade haviam conseguido mudar um número suficiente de deputados na Flórida e no Illinois,
dois estados-chave na não ratificação da ERA, para que os novos deputados conseguissem aprova-
la. Não obstante, se o mesmo processo de ratificação for seguido, estima-se no mínimo dez anos
para a sua ratificação.
MEMÓRIAS DE TRANSGRESSÕES 429
*Em relação aos outros movimentos e grupos de interesse, o movimento feminista é mensuravelmente
mais radical, ou seja, muito mais interessado em mudanças fundamentais. Uma pesquisa realizada
pelo Centro para Assuntos Internacionais da Universidade de Harvard e o Washington Post sobre
grupos de liderança nos Estados Unidos (grupos de jovens, o movimento negro e muitos outros)
determinou que as feministas estavam consistentemente mais aptas a falar de questões que implicam
mudanças básicas (por exemplo, a propriedade pública de companhias de gás, luz, água, esgoto e
telefone e disttibuidoras de combustível ou sobre a redistribuição de renda) do que qualquer outro
grupo. A maioria dos entrevistados era membro do N O W e do Comitê Eleitotal Nacional de
Mulheres, os mesmos grupos feministas considerados "moderados".
MEMÓRIAS DE TRANSGRESSÕES 431
estes dois grupos. Você pode ter a certeza de que a maioria das femi-
nistas estará do lado condenado, já que apenas uma pequena mino-
ria poderá ser considerada "pura". As vezes, esta é a maneira paternalista
que os observadores políticos de fora do movimento encontram para
definir a inexistência do mesmo. E muitas vezes é a forma derrotista
que algumas poucas mulheres encontram de declarar sua superiori-
dade moral e sua propriedade sobre o feminismo.
Em ambos os casos, é importante ignorar rótulos e olhar regis-
tros de questões e ações. Estes muitas vezes revelam algo bem dife-
rente. O grupo da maioria sobreviveu e cresceu justamente por ser
feminista, e portanto radical o bastante para atacar problemas fun-
damentais e comuns e fazer com que as experiências e as histórias
pessoais de cada mulher sejam bem-vindas. Esta minoria "pura" e
amarga, por outro lado, pode ter sido isolada precisamente por ter
sido feminista em sua retórica, mas exclusiva ou autoritária em seu
comportamento e em seu estilo. Quer tenham vindo da esquerda ou
da direita, possuem a tendência de cavar seu território, de declarar
sua propriedade ou outra autoridade que lhes seja única e exigir res-
peito perpétuo àquilo que pregam.
Na realidade, no entanto, a mais reconhecível característica das
feministas e dos atos feministas é o seu esforço em ser inclusivo. As
visões radicais do feminismo dependem da sua possibilidade de trans-
formar as condições de todas as mulheres e não apenas de uma mi-
noria correta.
E isto não quer dizer que diferenças internas e críticas não sejam
construtivas. Podem sim, dado que descrevam diferenças verdadei-
ras e que não nos afastem sem motivo.* No que diz respeito aos rótulos,
por exemplo, eu prefiro ser chamada simplesmente de "feminista".
Afinal de contas, a crença na humanidade integral de uma mulher
leva à necessidade de transformar-se as estruturas machistas e, as-
sim, eliminar o modelo usado para outros sistemas de privilégio
determinado por nascimento. Isso em si deveria ser radical o bas-
tante. No entanto, como há feministas que acreditam que uma mulher
*Para uma descrição de grupos e tendências que compõem o movimento feminista, tanto durante
a primeira quanto a segunda onda, ver Shulamith Firestone, Dialectic of Sex {A dialética do sexo]
(Nova York: Bantam Books, 1971), pp. 15-40.
432 GLORIA STEINEM
possa integrar ou imitar estruturas existentes (ou então que nós de-
vemos aguardar até que as estruturas de classe sejam eliminadas e a
posição de subordinação das mulheres seja automaticamente altera-
da), eu sinto que preciso me identificar como uma "feminista radi-
cal". "Radical" quer dizer "ir à raiz das coisas" e achar que o sistema
de castas sexuais ê a raiz. Quer tenha se desenvolvido cronologica-
mente como o primeiro modelo de dominação na pré-história ou não,
ficou claro que a liberdade feminina é mais restringida em socieda-
des também dedicadas a manter algumas raças ou classes "puras" de
nascimento como forma de perpetuar seu poder.
Como acredito que o sistema de castas sexuais é este tipo de raiz
causai, crucial e antropológica, também acho que todas as ações efer
tivas tomadas contra ele contribuirão para uma transformação radi-
cal da sociedade. Isso acontecerá quer estas ações sejam efetuadas
por feministas radicais ou por alguém que declare, hesitante, "Eu
não sou feminista, mas..." Portanto, eu me sinto bem apoiando e
trabalhando com mulheres que não compartilham do rótulo que escolhi.
Sim, podemos discordar nas análises, a longo prazo: não acho que o
feminismo possa ser imitativo ou integracionista. Por definição, o
feminismo precisa transformar. Mas, a curto prazo, existem metas
nas quais concordamos. E é a curto prazo que precisamos agir.
Como Indivíduos
• Ter tomado conta de uma criança para uma mãe que traba-
lha demais poder ter um dia só para si. (Isso é ainda mais
revolucionário quando feito por um homem.)
Em Grupos
Alguns dos mais eficazes atos em grupo são também os mais sim-
ples:
Como estrategistas
Nos meus primeiros dias de ativismo, pensei que faria isso ("isso"
significando o feminismo) durante alguns anos e que depois voltaria
à minha vida de verdade (o que era essa "vida de verdade", eu não
sabia). Em parte, acho que essa era uma crença ingênua de que uma
injustiça só precisava ser indicada para ser sanada. Por outro lado,
acho que era pura falta de coragem.
Mas como tantas outras ativistas, de hoje e de movimentos pas-
sados, aprendi que estamos nisso pelo resto da vida e pela vida. Não
precisamos nem mesmo do espiral da história para percebermos a
distância percorrida. E só olhar para trás, para as pessoas menos com-
pletas que fomos um dia.
E a última Lição de Sobrevivência é: ao olharmos a distância já
percorrida sabemos que não há como voltar atrás.
— 1978, 1982
Se a luta das últimas décadas foi contra o colonialismo, que permitia
que uma nação dominasse outra, a luta atual e futura será contra o
colonialismo interno, que permite que uma raça ou um sexo domi-
ne outro.