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Pequena Biografia

do Autor

ERICO VERÍSSIMO nasceu em Cruz Alta, RS, a 17-12-1905, filho


de Sebastião Veríssimo da Fonseca e Abegahy Lopes Veríssimo.
Estudou no Colégio Cruzeiro do Sul, em Porto Alegre e, de volta
à cidade natal, trabalhou por algum tempo num banco,
tornando-se depois sócio de uma farmácia. Ali, entre remédios e
o n a m o r o c o m Mafalda Halfen Volpe, que iria desposar em 1931,
dedicava as horas vagas à leitura , p r i n c i p a l m e n t e de Ibsen,
Shakespeare, G e o r g e Bernard Shaw, Oscar Wilde e M a c h a d o de
Assis, que m u i t o i n f l u e n c i a r a m sua f o r m a ç ã o literária.

Em 1930, te/ido seus primeiros c o n t o s d i v u l g a d o s em jornais da


capital g a ú c h a (estreou c o m " L a d r ã o de G a d o " , na Revista do
Globo, em 1928), transferiu-se para l á e ingressou c o m o redator
na referida Revista. Iria encontrar seu lugar certo, p o r é m , c o m o
secretário do Departamento Editorial da Livraria do G l o b o , a
convite do editor Henrique Bertaso, c o m q u e m c o l a b o r o u por
longos anos.
Em 1932, c o m a edição de Fantoches, pela Livraria do G l o b o ,
iniciou sua brilhante carreira literária, que viria a alcançar, a
partir de 1938, repercussão nacional e, mais tarde, internacio-
n a l . Já em 1934 c o n q u i s t a v a , c o m seu r o m a n c e Música ao
Longe,o Prêmio M a c h a d o de Assis, da Cia. Editora Nacional e,
no ano seguinte, seu Caminhos Cruzados era p r e m i a d o pela
Fundação Graça Aranha. Foi c o m Olhai os Lírios do Campo,
entretanto, que seu n o m e se fez largamente popular, a t i n g i n d o
a t o d o s os pontos do País.
Desde 1943, q u a n d o viajou pela primeira vez aos Estados Uni-
dos, e m p e n h o u - s e em divulgar a literatura e a cultura brasileira
no exterior, em c o n f e r ê n c i a s e cursos que se realizaram nos
mais diversos países ( M é x i c o , Equador, Peru, Uruguai, França,
Espanha, Portugal, A l e m a n h a , e t c ) . Seu prestígio i n t e r n a c i o n a l
cresceu a tal p o n t o q u e , em 1953, p o r indicação do Ministério
das Relações Exteriores do Brasil, assumiu a direção do Depar-
t a m e n t o de Assuntos Culturais da OEA, cargo que exerceu por
três anos em W a s h i n g t o n , D.C.

Até 1950 esteve ligado à Editora G l o b o , na qualidade de conse-


lheiro literário, f u n ç ã o q u e n u n c a a b a n d o n o u de t o d o , embora
mais adiante tivesse preferido voltar-se inteiramente para sua
vocação de escritor, a q u e deu foros de verdadeira profissão,
sustentando-se c o m o s r e n d i m e n t o s d e sua o b r a p u b l i c a d a !
Para a G l o b o , traduziu t a m b é m mais de c i n q ü e n t a títulos, do
inglês, francês, italiano e e s p a n h o l , além de organizar várias
coleções literárias célebres, c o m o a Nobel e a Biblioteca dos
Séculos.

Sua o b r a l o g o espalhou-se pelo m u n d o , em traduções publica-


das nos EUA, Inglaterra, França, Itália, Alemanha, Áustria, Mé-
xico, URSS, N o r u e g a , Holanda, Hungria, România e Argentina.
No Brasil, recebeu, entre o u t r o s , os prêmios Jabuti (1966), Juca
Pato (1967), Personalidade Literária do Ano (PEN Club, 1972) e o
Prêmio Literário da Fundação M o i n h o s Santista (1973), para o
c o n j u n t o d a obra.

Viajante a p a i x o n a d o , esteve ainda na Grécia, Oriente M é d i o e


Israel, e r e t o r n o u várias vezes à Europa e aos EUA. Faleceu
subitamente, de infarto, a 28-11-1975, em Porto Alegre, q u a n d o
se ocupava c o m o s e g u n d o v o l u m e de suas m e m ó r i a s , Solo de
Clarineta. A c r o n o l o g i a de sua o b r a c o m p l e t a é a s e g u i n t e :

• 1932 — FANTOCHES, c o n t o s
• 1933 — CLARISSA, r o m a n c e
1935 - MÚSICA AO LONGE, r o m a n c e
- CAMINHOS CRUZADOS, r o m a n c e
- A VIDA DE JOANA D'ARC, literatura infanto-juvenil
1936 — AS AVENTURAS DO AVIÃO V E R M E L H O , literatura i n -
fantil
— OS TRÊS PORQUINHOS POBRES, literatura infantil
— ROSA MARIA NO CASTELO ENCANTADO, literatura i n -
fantil
— UM LUGAR AO SOL, r o m a n c e ;
1937 _ AS AVENTURAS DE TIBICUERA, literatura infantil
1938 — 0 URSO-COM-MÚSICA-NA-BARRIGA, literatura i n f a n -
til
- OLHAI OS LÍRIOS DO C A M P O , r o m a n c e
1939 — A VIDA DO ELEFANTE BASÍLIO, literatura infantil
— OUTRA VEZ OS TRÊS PORQUINHOS, literatura infantil
— VIAGEM À AURORA DO MUNDO, literatura i n f a n t o -
juvenil
— AVENTURAS NO MUNDO DA HIGIENE, literatura infan-
. til
1940 - SAGA, r o m a n c e
1941 _ GATO PRETO EM CAMPO DE NEVE, viagens
1942 _ AS MÃOS DE MEU FILHO, c o n t o s
1943 -*- O RESTO É SILÊNCIO, r o m a n c e D
1945 — BRAZILIAN LITERATURE, An o u t l i n e
1946 — A VOLTA DO GATO PRETO, viagens
1949 — 0 T E M P O E O VENTO, 1.ª Parte:
O Continente, 2 vols., romance
a
1951 — O T E M P O E O VENTO: 2 . Parte:
O Retrato, 2 vols., r o m a n c e
1954 — NOITE, novela
1956 — GENTE E BICHOS, literatura infantil
(antologia)
1957 — MÉXICO, viagens
1959 — 0 ATAQUE, c o n t o s
a
1961/62 — O TEMPO E O VENTO: 3 . Parte:
O Arquipélago, 3 vols., r o m a n c e
1965 — O SENHOR EMBAIXADOR, r o m a n c e
1966 — FICÇÃO COMPLETA, edição em papel-biblia
1967 — O PRISIONEIRO, r o m a n c e
1969 — ISRAEL EM ABRIL, viagens
1970 -- UM CERTO CAPITÃO RODRIGO (extrato de O Conti
nente, 1}
1971 -- ANA TERRA (extrato de O Continente, ? .
- INCIDENTE EM ANTARES, r o m a n c e
1972 — UM CERTO HENRIQUE BERTASO, biografia
1973 — SOLO DE CLARINETA, 1.° vol., m e m ó r i a s
1975 — A PONTE (extrato de O Ataque), edição de luxo, ilus-
trada
1976 — SOLO DE CLARINETA, 2.° vol., m e m ó r i a s (edição pós-
tuma)
I

A MENINA JOANA

AQUELA criaturinha que ali vai cantando é a menina Joana.


Olhem só como ela caminha resoluta, como tem os passos lar-
gos. .. Seus pés descalços parecem duas pombas brancas que
vão pulando por cima das pedras do caminho.
A manhã é de sol. A primavera chegou a semana passada. O
perfume dos prados viaja montado no vento. Nos bosques há
lobos ferozes mas também existem lindas árvores floridas.
Joana caminha. Vai à casa de Hauviette, sua amiguinha, que
mora perto da colina. Joana canta porque está contente da vida.
A vida é boa. Papai e mamãe vivem em paz. Os irmãozinhos
vão à escola de Maxey, aldeia que fica do outro lado do rio.
A primavera encheu de rosas brancas e vermelhas o jardim lá
de casa. As vacas engordam. Os porcos chapinham na lama e
grunhem de satisfarão. O burrinho peludo sacode as orelhas e
zurra de alegria quando Joana lhe vai levar água e feno. Os vi-
zinhos são bons. E os melhores vizinhos do mundo são os santos
da igreja que fica perto da casa de Joana: para ver S. Catarina
ou S. Margarida basta a gente atravessar o pequeno cemitério...
Sim, a vida é boa. Por isso Joana caminha cantando.
Já avista a casa de Hauviette, com o seu telhado de pedra e
sua chaminé fumegando. Fumegando... Decerto já estão fa-
zendo bolos para o almoço.
Joana agora pára à beira do rio. Este é o Mosa. Um rio mui-
to comprido que vem de terras distantes e vai para terras dis-
tantes.
Joana olha a água clara. A gente pode enxergar os peixes
que passam no fundo. O Mosa é um rio bonito. Joana lhe quer
um bem muito grande porque quando ela era pequenina ou-
via sempre de seu berço o marulho macio das águas, que era
uma música de nina-nana. Depois ela cresceu vendo todos os
dias o rio amigo. No inverno — engraçado! —o rio crescia mas
ficava triste porque espelhava céus cinzentos cheios de nuvens
de chuva. Mas quando vinha a primavera o Mosa tornava a fi-
2 ERICO VERÍSSIMO

car alegre, as suas águas eram azuis como o céu e se enfeita-


vam de pingos dourados de sol. Brotavam jardins nas margens
Jardins como o que agora Joana está vendo.
Que lindo! Os salgueiros se inclinam para a água. Parecem
mulheres de cabelos verdes se olhando no espelho do rio. Os
olmos estão perfilados e o vento sacode a sua folhagem rendi-
lhada. Os juncos das margens parecem a cabeleira eriçada do
sacristão da igreja. Há uma quantidade enorme de plantas aquá-
ticas que Joana não sabe como se chamam. Papai lhe disse o
nome de muitas, mas ela esqueceu. . .
Joana respira forte. Ajoelha-se à beira do rio, molha os dedos
nágua e depois encosta-os na testa. Como está fresca a água da
rio! '
Lá no fundo passam peixes esverdeados. Joana sabe que são
trutas. Papai Jacques às vezes vai pescar; no jantar servem truta
frita. Joana tem muita pena dos peixes. Não deviam tirar os coi-
tadinhos de dentro dágua... Todos os bichos — os peixes, os
veados, os porcos, as vacas, as pombas e os burrinhos — são filhos
de Deus. Um pai gosta de ver os filhos maltratados? Não gosta.
Logo: Deus não pode gostar de ver os peixes irem para a panela
de mamãe Isabel. A última vez que viu uma truta no prato, Joa-
na não quis comer. De pena, de pura pena.
Joana se levanta e continua a andar. A estradinha que leva até
a casa de Hauviette se mete moitas a dentro, brincando de escon-
de-esconde. Os passarinhos cantam nas árvores. E Joana tem a
impressão de que todas as andorinhas, todos os pardais e todos
os rouxinóis a conhecem de vista. Quando eles cantam as suas
cantigas que os homens não entendem, Joana julga saber o que
os passarinhos dizem. Agora eles estão perguntando: "Joana,
aonde vais?"E ela, sorrindo, responde assim: "Vou ver a minha
amiguinha Hauviette. Gosto muito dela. Não temos a mesma
idade, não, senhores! Eu tenho nove anos e ela, cinco. Mas não
faz mal.. . Hauviette é muito boazinha e eu gosto dela!"
Joana segue o seu caminho, sempre pela beira do rio. Lá na
outra margem está a aldeia de Maxey. A gente daqui enxerga os
seus telhados vermelhos, os seus moinhos com as grandes pás
rodopiando ao vento da manhã.
Joana torna a parar para pensar numa coisa muito triste. A
aldeiazinha de Maxey faz que ela se lembre dos irmãos. Jac-
A VIDA DE J O A N A DARC 3
quemin mora longe, era Sermaize, com tio Henrique, cura da
paróquia. Mas João e Pedrinho freqüentam a escola de Maxey
e quase sempre voltam com as roupas esfarrapadas, porque bri-
gam com os outros rapazes da aldeia vizinha. Brincam de guerra.
Atiram-se pedras, atracam-se a socos.
O rosto de Joana fica sombrio ao pensar nestas coisas. Papai
já explicou tudo. Os habitantes de Maxey são partidários dos
borgonheses, isto é: são do lado do Duque de Borgonha. Os de
Domrémy, onde Joana mora com sua gente, são do lado dos ar-
magnacs.

Joana não chega a compreender bem essas lutas dos grandes.


Sabe que são dois partidos compostos de homens ferozes que
vivem sempre em guerras. E os meninos — maluquinhos!—dis-
cutem e lutam também. Não há roupa nem calçado que chegue
para João e Pedrinho. Mamãe se queixa muito. Papai já pro-
meteu uma surra a cada um se eles continuam a brigar...
Joana vai pensando que a sua querida aldeia de Domrémy,
cujo chão ela agora pisa com tanto amor, podia ser um paraíso
se não fossem as guerras. A vida vai correndo muito bem, mas
de repente se ouve um barulho, uma gritari?., um tinido de
4 ERICO VERÍSSIMO

ferros e fica alarmada... Os bichos começam a gritar nos quin-


tais, os burros zurram, as vacas mugem, os galos fazem um co-
coricó assustado... As pessoas saem pálidas de suas casas para
ver o que aconteceu. Saem e encontram homens-de-armas, com
couraças rebrilhantes, capacetes de aço, lanças, espadas, escu-
dos . . . E são homens brutos, dizem palavrões feios, comem mui-
to, bebem canecões enormes de vinho e não pagam nada. Depois
vão embora levando o gado pela frente, o gado que roubaram
aos pobres camponeses de Domrémy! E ainda todos dão gra-
ças a Deus quando os brutos não atravessam com suas lanças
pontudas o corpo de algum habitante da aldeia.
Joana tem certeza de que Deus não pode gostar dessas bru-
talidades. E todas as noites ela reza as orações que mamãe Isabel
lhe ensinou. O Pai-Nosso, a Salve-Rainha, o Credo... Reza
e pede a Deus que dê juízo e bom coração aos homens. Aos ar-
magnacs, aos borgonheses, a todos, todos...
A V I D A DE J O A N A D'ARC 5
Joana chega à casa de Hauviette. A amiguinha já está à por-
ta acenando para ela com a sua mãozinha miúda como um pas-
sarinho.
Abraçam-se.
— Como vais? — pergunta Joana.
— Vou bem — responde Hauviette.
A vozinha dela é fina e fraca, fraca e suave como o marulho
do rio que Joana ouvia quando estava no berço. Hauviette tem
cabelos louros e olhos azuis.
— Vim te buscar para um passeio.
Hauviette bate palmas.
— Que bom! Espera aqui que eu vou pedir à mamãe.
Vai para dentro e volta depressa, pulando de contente.
De mãos dadas as duas amiguinhas se vão. A cabeça de Hau-
viette mal chega aos ombros de Joana. E é um contraste vivo o
vestido vermelho da mais velha com o vestido branco da outra.
— Aonde é que vamos?—pergunta Joana.
— Vamos ver o castelo da ilha.
Vão.
Bem no centro duma ilha formada por dois braços do Mosa
ergue-se um castelo de paredes eriegrecidas e altas torres. Ao
redor dele abre-se uma fossa funda. Não mora ninguém no ca-
sarão. Joana sabe que é uma 'fortaleza abandonada. Contam his-
tórias de fantasmas...
Hauviette olha com olhinhos assustados.
— Joana, tu eras capaz de entrar no castelo de noite?
— Eu? Era.
— Sozinha?
— Sozinha.
Hauviette faz uma carinha de incredulidade.
— Não tinhas medo?
— Não. Quem acredita em Deus não tem medo de nada. Ca-
da pessoa tem um anjo da guarda que anda sempre atrás dela.
— Anjo da guarda?
Hauviette está espantada. Nunca lhe* contaram esta história...
Então Joana explica que Deus deu a cada criatura um anjo
que serve de protetor, que vai aonde a gente vai, que desvia to-
dos os perigos, que cuida de nós como a melhor das mães cui-
daria do seu filho.
6 ERICO VERÍSSIMO

Hauviette está de olhos arregalados.


— Mas como é que eu não vejo o meu anjo? — Volta-se de
repente, procurando. — Como é que eu não vejo o teu? Será
que Deus se esqueceu de nós?
Joana solta uma risada. De dentro duma faia copada um ban-
do de passarinhos desata também a rir.
— Bobinha! Ninguém pode ver o anjo da guarda.
Hauviette fica pensativa. Olha para o castelo e diz:
— Mas nem com o anjo da guarda eu tenho coragem de en-
trar naquele casarão de noite.
— Olha, — conta Joana — todos os pastores têm medo dos lo-
bos da floresta. Eu não tenho. Eles nunca atacam as minhas ove-
lhinhas. Sabes por quê? Porque têm medo do meu anjo da
guarda. Os homens fogem dos lobos porque não têm fé nos seus
anjos.. .
As duas amigas dão-se as mãos e continuam a caminhar.
O Mosa canta, acompanhando a menina do vestido branco e
a menina do vestido vermelho.
II

QUE FOI QUE OS G A L O S V I R A M ?

É NESTA aldeia de Domrémy que Joana vive com seus pais e


irmãos. Um lugar bonito e de aparência tranqüila. O R i o Mosa
passa perto dela, com suas águas transparentes e as suas ilhotas
verdes e floridas.
Entre os habitantes de Domrémy há velhinhos risonhos que
contam estranhas histórias do tempo em que as fadas andavam
pela terra.. .
O senhor cura não gosta dessas heresias. Nos seus sermões
dominicais,-bate no púlpito e grita:
— As fadas nunca existiram!
Nos bancos da igreja os velhinhos risonhos se entreolham e
trocam sinais misteriosos, cochichando palavras que os moços não
entendem.
Pela manhã os camponeses levam o seu gado a pastar nos
arredores. E o pasto é rico graças ao Mosa que nunca esquece
os amigos que tem nas aldeias que ficam às suas margens. Na
estação das chuvas ele transborda e invade o vale. Quer tanto
bem à terra que não se contenta com o correr sempre pelo mes-
mo leito. Sente desejo de se espraiar, de abraçar as colinas, de
chegar ao portal das casas, de acariciar os pés das crianças, dos
homens, dos animais. . . E quando se recolhe para o leito antigo,,
os prados que ele visitou ficam fertilizados: o pasto cresce ver-
de e tenro. Ficam aqui e ali pequenas lagoas que são como que
filhotes do grande rio.
Ao redor de Domrémy erguem-se colinas dum verde suave c
polido. No alto de muitas delas existem florestas de carvalhos.
Florestas onde há lobos e encantamentos. As pessoa:- mais arti-
gas do lugar contam histórias espantosas que vêm lá do fundj
do tempo. Façanhas dum certo bruxo que sabia ler o que es-
tava escrito, no futuro. . .
O Cura M i n e : nos seus sermões dos domingos repete sempre
que um bom cristão não deve acreditar em contos de fadas. N e m
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em gênios e mágicos. Só há um Deus Todo-Poderoso com a


sua grande corte de santos e anjos.
Mesmo assim os habitantes de Domrémy olham com certo
temor para o "Bois Chénu" que negreja no cocuruto dum ou-
teiro. Dizem que era uma vez um feiticeiro chamado Merlin...
Quase todas as casas da aldeia têm telhados vermelhas.
Galos e galinhas, cavalos e burros, ovelhas e porcos se mis-
turam nos quintais. Os vizinhos conversam, falam do tempo e
das colheitas, dos filhos e dos bichos domésticos, contam-se his-
tórias, trocam favores. Entre eles há muitos compadres. Quando
uma criança nasce, escolhem para ela muitos padrinhos e ma-
drinhas.
Bem no centro da aldeia fica a capela dedicada a S. Remigio.
Tem um vitralzinho com a figura de S. Miguel. Imagens de S.
Catarina e S. Margarida. Um Cristo muito bonito pregado na
cruz. Um sino musical que nos domingos de manhã chama os
fiéis para a missa e que à tardinha toca a Ave-Maria. Ao lado
da igreja, o pequeno cemitério. Depois do cemitério, o jardim,
e finalmente a casa de Jacques D'Are, cuja mulher se chama Isa-
bel. É um casal muito trabalhador e religioso. A casinha em que
moram é pequena e modesta: uma porta e duas janelas. O te-
lhado de pedra desce quase até o chão, do lado do jardim. No
inverno a fachada fica muito triste: nua e cinzenta. Mas na
primavera as rosas sobem pelas paredes e vestem a casa de bran-
co e vermelho.
Aqui mora a menina Joana. Foi sob este teto que ela nasceu,
na noite de seis de janeiro de 1 4 1 2 . Era o dia da Epifania. Os
camponeses de Domrémy festejavam com alegria a vinda de
Jesus Cristo.
Estrelas no céu. Janelas iluminadas em Domrémy. Havia can-
tigas e risos em todos os lares. Muitos vizinhos se reuniam
numa casa só ao redor da grande mesa do banquete. Segundo
costume muito antigo, tiravam a sorte. Ocultavam dentro de
enorme bolo uma fava. Quem ficasse com a fatia onde estava
metida a fava era aclamado rei e daí por diante tomava conta
da festa.
Os homens e as mulheres de Domrémy comiam e riam; fa-
lavam muitos deles nos Três Reis Magos que foram levar seus
presentes ao Menino Jesus. De repente os convivas se calaram.
10 ERICO VERÍSSIMO

assustados. Acontecia uma coisa fora do comum. Todos os ga-


ios da aldeia estavam cantando e batendo asas, furiosamente, co-
mo doidos. Era como se o antigo senhor do castelo da ilha ti-
vesse posto todos os seus pajens a tocar trombetas ao mesmo
tempo...
Homens e mulheres saíram para fora de casa: queriam ver o
que estava acontecendo. Incêndio ou salteadores? Encontraram
so a neve, o frio e o céu estrelado. Os galos cantavam ainda,
sempre sacudindo as asas.
— Devem ser os lobos!—disse um camponês.
Armaram-se e foram ao quintal mais próximo. N ã o encontra-
ram vestígio de lobo. Mas viram os galos alvorotados, cocori-
cando, c o c o r i c a n d o . . .
Visitaram outros quintais. A mesma cena.
Que milagre estaria acontecendo? Cada qual dava a sua opi-
nião. As comadres tagarelavam. Os homens olhavam para os
lados e para cima, procurando descobrir o motivo daquele al-
voroço. O senhor cura apareceu e pediu que todos voltassem pa-
ra as suas casas, para as suas festas.
Obedeceram. O padre ficou na rua. A sua batina negra era
um contraste no meio da neve que o luar deixava ainda mais
branca. O reverendo ficou pensando. Porque ele sabia que os
galos sempre adivinham. Cantaram uma noite para anunciar o
nascimento de Jesus. ..
Por fim o senhor cura começou a ficar entanguido. Voltou
para casa, pensativo e trémulo. Foi rezar. Deitou-se. Custou a
dormir.
Durante duas horas os galos ainda cantaram. Quando fecha-
ram o bico, desceu sobre a aldeia um silêncio muito grande. To-
das as luzes de Domrémy estavam apagadas. Todas — não. Na
casa de Jacques D ' A r c brilhava uma luzinha amarelada. Acon-
tecia lá dentro uma coisa muito importante. Vinha ao mundo
uma criança. Jacques caminhava dum lado para outro à porta
do quarto. Jacquemin, Catarina e João, seus três filhos, dormiam
profundamente, enrodilhados ao pé do fogo. Na varanda em
torno da mesa havia alguns vizinhos amigos. Estavam silencio-
sos e aflitos.
Mal os galos lá fora terminaram de cantar, começou um choro
de criança dentro do quarto. Os olhos de Jacques brilharam. A
porta se abriu e uma mulher lhe disse sorrindo:
A V I D A DE J O A N A D'ARC 11

— Pode entrar.
— Jacques entrou, tonto de alegria. Era uma menina.
Foi assim o nascimento de Joana. Deram-lhe três padrinhos
e os três se chamavam João. Deram-lhe cinco madrinhas e uma
delas se chamava também Joana.
E a filha de Jacques e Isabel D'Arc cresceu na aldeia com os
porcos e os burrinhos, com as árvores e os pardais.
Agora tem nove anos. Quem a vê pela primeira vez tem von-
tade de perguntar.
— Quem é aquele rapazinho vestido de mulher?
Sim, porque Joana tem uma cara de menino, apesar dos ca-
belos escuros e longos, com tranças, que lhe caem quase até os
joelhos. Seus olhos são dum azul diluído e remoto de céu de
primavera. O narizinho é reto e curto. O rosto, miúdo e oval.
A boca parece simplesmente um risco feito com lápis vermelho.
Joana é diferente dos demais meninos e meninas de Dom-
rémy. Quando está no meio deles, brincando, chama mais a
atenção do que os outros. Não é bonita mas tem qualquer coisa
qué atrai, que faz pensar. O seu ar tranqüilo e ao mesmo tempo
resoluto, impressiona. A coragem com que ela leva as suas ove-
lhas até a borda dos bosques das colinas, por onde às vezes
cerrem lobos, deixa toda a gente pasmada.
Joana não sabe 1er nem escrever. Mas percebe tudo, com-
preende tudo. Tem resposta para as mais complicadas pergun-
tas. Acha solução para todos os problemas. Sabe onde fica o
pasto mais maduro. Sabe como conduzir sem" extravios as vacas,
:Os porcos, as ovelhas. Em casa é muito hábil nos trabalhos de
agulha. Ajudi a mãe no serviço doméstico. E nunca deixa de
fazer o sinal-da-cruz quando o sino da capelinha toca o Angelus.
Aconteceu há poucos dias um fato muito curioso. O sacris-
tão se esqueceu de tocar a Ave-Maria. Joana esperou o som
do sino. Como não ouviu nada, foi à igreja saber o que tinha
acontecido. Com bons modos repreendeu o sacristão. E o Pe.
Minet, que tinha vindo para o mesmo fim, achou graça da me-
nina e perdoou o sacristão.
E assim vive Joana DArc.
M a s . . . que teriam visto os galos naquela fria noite de Reis
do ano de 1412?
Ill

MERLIN, O ENCANTADOR

U M A das madrinhas de Joana — a que se chama Jannet Aubrit


— é mulher muito supersticiosa. O Cura Mine: vive a lhe di
zer: "A senhora precisa deixar dessas idéias. As bruxas não
existem, estou cansado de dize;. É pecado acreditar nelas." Mas
a Sra. Aubrit não consegue esquecer as histórias que lhe mete
ram na cabeça quando ela era criança.
Vai todos os dias visitar compadre Jacques e comadre Isabel
Sempre traz novidades: uma nova receita de bolo, um remedia
para curar a peste do gado, boatos, mexericos.. .
Hoje a madrinha de Joana chega e não encontra os compa-
dres em casa. Foram ambos e mais Catarina visitar um parente
que mora em Sermaize. Joana está de caseira. João e Pedrinho
saíram para a escola.
A madrinha senta-se perto da mesa. A afilhada lhe traz um
copo de vinho fresco. A Sra. Aubrit bebe um gole largo e es
traia a língua. Fica com o rosto muito vermelho, os seus olhinhos
ganham mais lustro.
Muito tesa, com as mãos enlaçadas, descansando no colo, J o a n a
olha para a sua madrinha.
Que Cara engraçada, a deia! Pisca o olho de quando em
quando. T e m uma verruga na ponta do nariz. Seus dentes são
miúdos e esverdeados.
Mas a menina Joana olha e fica séria. N ã o é direito fazer
troça dos mais velhos. . .
A Sra. Aubrit começa a fazer perguntas. Joana responde.
A janela aberta enquadra um pedaço de paisagem: o "Bois
Chénu" negreja longe.
— Queres ouvir uma história bonita? — pergunta a madrinha
Joana sacode a cabeça, dizendo que sim. A Sra. Aubrit então
começa a contar um dos seus contos prediletos. E tem muito
orgulho nisso, porque a história fala no grande bosque de car-
A V I D A D E J O A N A D'ARC 13

valhos que se avista de Domrémy, no alto duma colina. É tão


bom contar casos que se passaram com gentes e coisas nossas
conhecidas...

— Pois era uma vez um rei chamado Artur (Isto se deu há


muito, muito tempo.) Esse rei tinha na sua rica corte um con-
selheiro chamado Merlin. E quem é que tu pensas que era
Merlin? Pois Merlin era um encantador. Não sabes o que é en-
cantador! Encantador é um mágico, um homem que faz bru-
xarias, que tem parte com o Demônio.. .
Joana se benze. A madrinha solta uma risada e prossegue:
— Merlin era um homem extraordinário. Inventou um pó
mágico que tinha o poder de destruir os seus inimigos. Merlin
sabia ler o futuro. Merlin conhecia os pensamentos dos homens.
— A voz da Sra. Aubrit agora é um cochicho leve, leve,—
Merlin era filho do próprio Diabo!
14 ERICO VERÍSSIMO

Joana se benze de novo. A madrinha piscou o olho. Enruga o


nariz: a verruga dança.
— O Demônio queria transformar Merlin no Anticristo...
— Que é Anticristo, madrinha?
— Anticristo é o inimigo de Cristo. Anticristo é o homem
mau que vai aparecer antes do fim do mundo para transformar
a terra num inferno de crime e de impiedade.
Joana torna a se benzer. A madrinha continua:
— Merlin um dia foi batizado e o Demônio levou um logro!
— A Sra. Aubrit solta a sua risadinha seca. — Mas aconteceu
que Merlin caiu na asneira de ensinar as suas artes e encanta-
mentos para a fada Viviana. E a fada Viviana — veja só que
ingratidão! — um belo dia fechou Merlin dentro de um círculo
mágico de onde ele não pôde sair. ..
Joana escuta atenta. Pausa.
— Merlin era um profeta...
— Que. é profeta?
— Profeta é o homem que diz o que vai acontecer no futuro.
Os olhos de Joana brilham.
— Merlin fez uma profecia muito g r a n d e . . . — A madrinha
Aubrit olha para fora, através da janela aberta. — Disse que
lá do "Bois Chénu".. .— Aponta para a mancha escura no ci-
mo da colina — . . . lá daquelas florestas ainda há de sair uma
donzela para fazer grandes, grandes coisas. . .
A voz da madrinha está cheia de segredos. Joana fica olhando
para ela, muito impressionada. A Sra. Aubrit toma mais u m i
gole de vinho.
Depois levanta-se, despede-se e vai embora.
Joana fica à porta da casa, olhando muito fixamente para o
"Bois Chénu" que agora contra o vermelhão do ocaso parece
ainda mais preto e misterioso...
IV

NOSSA SENHORA DE BERMONT

A PRIMAVERA prolonga a sua visita.


A menina Joana vive a sua vida. Levanta-se muito cedo, an-
tes mesmo do sol nascer. Auxilia a mãe na arrumação da casa.
Acorda João, Pedrinho, e prepara a merenda que eles têm de
levar para o colégio. Sai para o pátio e vai dar de comer aos
bichos.
O sol aparece, vestindo Domrémy dum véu côr de laranja.
Joana acompanha o pai ao campo. E fica-se a ajudá-lo, mui-
to decidida, no trabalho da lavoura.
Mamãe Isabel permanece em casa com Catarina, enquanto os
dois rapazes vão para Maxey.
Ao meio-dia, Joana volta para a aldeia. Vem cansada mas
vem contente. Faz o sinal-da-cruz quando passa pela frente da
igreja, E se acontece o Sr. Cura estar à porta, a menina Joana
lhe sorri gentilmente.
À tardinha brinca com os irmãos e vizinhos. Além de Pedro,
João e Catarina, há outros companheiros. Hauviette, a da ca-
becinha loura. Mengette, que mora na casa fronteira, e que às
vezes vem ajudar Joana nos trabalhos domésticos. Zabillet, o
filho de Simonin Musnier...
O bando fica cantando e dançando ao ar livre. Corre às vezes
a beber água na fonte milagrosa ou a fazer ciranda ao redor da
Árvore-das-Fadas.
Neste momento estão todos reunidos. Não sabem que fa-
zer... Já jogaram todos os jogos que conhecem. Já cantaram
todas as cantigas...
Joana tem uma idéia:
— Vamos visitar Nossa Senhora?
Todos batem palmas a um tempo:
— Vamos! vamos! vamos!
16 ERICO VERÍSSIMO

Seguem os sete de mãos dadas, pulando, falando e rindo. Só


Zabillet é que vai triste.
— Que é que tu tens, Zabillet?—pergunta Joana, que gosta
muito do seu pequeno vizinho.
— Estou sentindo uma dor aqui.. .
Zabillet bota a mão ao peito. Joana pára. Os outros conti-
nuam a andar.
— Dói muito?
— Dói.
— Nos vamos pedir à Nossa Senhora que te faça sarar.
Zabillet sacode a cabecinha, triste. E os dois seguem atrás
do bando.
A tarde, muito clara e transparente, parece de vidro. Por trás
das colinas verdes e dos bosques negros o horizonte está co-
meçando a se tingir duma poeira dourada e vermelha.
O bando caminha.
— Vamos ligeiro, antes que anoiteça!—diz um.
Apressam o passo. Joana puxa Zabillet pela mão. Se ele fos-
se mais pequeno ou se ela fosse mais forte, havia de levá-lo
nos braços, como um b e b ê . . .
Chegam todos a um lugar onde há muita sombra. Param,
cansados. A relva aqui é tão verde, tão macia e tão fresca que
dá vontade de rolar pelo chão.
Lá está a fonte. O bando se aproxima dela. A água muito
pura corre com um glu-glu musical. Dizem que esta água é
milagrosa, cura febres, cicatriza feridas. Brota da terra, à som-
bra de faias, carvalhos e freixos. Mais para diante, a poucos
passos da fonte, está a Capela de Nossa Senhora de Bermont.
— Vamos fazer coroas para Nossa Senhora? — convida Joana.
E todos se põem a apanhar flores no prado. Cada qual quer
ficar com as mais bonitas. Depois de algum tempo todos eles
estão com os braços cheios de flores azuis, vermelhas, amare-
las e alaranjadas.
— Vamos entrar! — diz Joana.
Dentro da capelinha há uma frescura ainda maior que a da
sombra das árvores. Anda no ar um cheiro de flores murchas.
Os sete companheiros ficam parados à porta.
Joana dá alguns passos e se ajoelha aos pés de Nossa Se-
nhora. A santa parece uma rainha, com o seu comprido manto
A V I D A DE J O A N A D'ARC 17

de seda e a sua coroa refulgente. Nos seus braços o Menino


Jesus sorri.
Nossa Senhora de Bermont faz milagres. Os meninos e as
meninas, os moços e as moças de Domrémy vêm aqui trazer-
lhe pedidos. E Nossa Senhora atende a todos.
Joana começa a orar. Pede à santa que dê saúde a todos os
seus e que faça Zabillet sarar da dor no peito. Suplica-lhe que
mande a papai uma boa colheita e que afaste os lobos e a peste
de todos os bichos de Domrémy. E que não permita também
que os homens de armadura e lança ataquem a aldeia, assus-
tem os habitantes e lhes roubem o gado e os víveres.
Faz o sinal-da-cruz e se ergue. Volta-se para os amigos e diz:
— Podem vir.
Num minuto os pés da santa ficam afogados no meio das.
flores.
V

O VIZINHO DOENTE

H O J E é dia de Joana ficar cuidando dos rebanhos que pastam


no prado, ao pé duma colina. Enquanto os bichos comem, Joa-
na trabalha no seu bordado. N ã o tem medo dos lobos da flo-
resta porque sabe que seu anjo da guarda não a deixa aban-
donada. Não teme as serpentes, porque tem a certeza de que,
se elas vierem, é para lhe lamber mansamente os pés.
Quando cansa de trabalhar, Joana conversa com os passari-
nhos que passam voando e piando por cima de sua cabeça.
À beira da floresta os porcos comem bolotas de carvalho, fa-
zendo grande barulho. As vacas arrancam o pasto com seus
dentes amarelos, — gru-gru-gru. É um ruído macio e monótono
que dá vontade de dormir.
Quando chega a hora de voltar, Joana se ergue e leva o gado
para a aldeia. Isso não lhe custa. Porque os bichos estão acos-
tumados e obedecem com docilidade.
Agora ao chegar em casa Joana fica sabendo pela mãe que
Zabillet caiu de cama e está muito doente.
— Mamãe, — diz ela — eu vou à casa de Zabillet cuidar
dele.
Mamãe Isabel sorri.
— Pois sim, minha filha.
Joana vai à casa de Simonin Musnier.
Zabillet está na sua pobre cama desconjuntada. A coberta é
toda feita de retalhos de diversas cores. O rostinho do doente
está tão pálido que quase desaparece no branco da fronha.
Joana entra na ponta dos pés.
Zabillet entreabre os olhos.
— Joana, és tu?
— Sou eu, Zabillet.
— Estou doente, Joana.
A V I D A DE J O A N A D'ARC 19

— Eu sei, mas não fales.


— Tu não vais embora, sim?
— Não vou.
Joana senta-se ao pé da cama. Põe a mão na testa de Zabillet.
Parece um forno, de tão quente. Joana sente uma dor no co-
ração. Pobre Zabillet!
— Joana.
— Que é?
— Conta uma história pra mim.
— Pois sim.
Joana conta a história do nascimento de Jesus.
Depois, a fuga para o Egito, a Virgem Maria com o menino
no colo, montada num burrinho.

Zabillet pergunta:
— O burrinho era como aquele lá da tua casa?
— Era.
Vai anoitecendo. Joana não se arreda da cabeceira da cama.
E quando a noite desce, Pedrinho vem perguntar se a irmã não
volta para casa.
20 ERICO VERÍSSIMO

— Diga que eu fico cuidando do Zabillet, — responde Joana.


E fica. A noite está muito clara. Pela janela aberta Joana vê
lá longe, iluminado pelo luar, o grande bosque de carvalhos.
Merlin, o encantador, disse que do "Bois Chénu" ia sair uma
donzela para fazer grandes, grandes coisas...
Zabillet dorme tranqüilamente. Joana leva a mão à testa de-
le. Agora está mais fresca.
Joana continua sentada. Começa a contar as estrelas mas logo
cansa. Mesmo ela não sabe contar além de d e z . . .
Vão caindo de mansinho suas pálpebras. Quando a manhã
começa a clarear, Joana abre os olhos. Dormiu na cadeira. Está
com o corpo dolorido.
Ergue-se e sai do quarto na ponta dos pés.
Na varanda encontra o velho Simonin Musnier.
— Ele está dormindo. Eu volto depois.
A VIDA DE JOANA D'ARC 21

— Muito obrigado, Joana, — sorri o pai de Zabillet.


Joana volta para casa. Tem de acordar os irmãos e mandá-los
para a escola. Tem de vestir Catarina. (Nem parece que ela é
mais velha.. .) Tem de dar comida para os bichos.. .
As costas lhe doem. Mas não faz mal. O cura sempre diz que
Deus quer que a gente seja muito boa e caridosa para com o
próximo. Zabillet não é o próximo? É. Logo: Deus deve estar
contente com ela.
Antes de entrar em casa, Joana entra na capela.
A luz do sol começa a atravessar o pequeno vitral onde ful-
gura a imagem de S. Miguel: vestido de armadura, espada na
mão, asas muito brancas.
Joana ajoelha-se e ora. E como sempre seus olhos pousam
nas suas duas santas queridas: S. Catarina e S. Margarida. O
titio Henrique de Vauthon prometeu contar-lhe um dia a vida
dessas duas santas. Quando papai deixar, ela e Pedrinho vão até
Sermaize, para visitar titio e ouvir suas histórias.
Joana se levanta e sai da igreja.
O sol inunda Domrémy. As vacas mugem O Mosa e os galos
cantam.
VI

A ÁRVORE-DAS-FADAS

DOMRÉMY tem coisas muito singulares.


Lá para aquelas bandas do horizonte onde o sol se esconde
ao fim do dia, ergue-se uma colina toda coberta de cerrada flo-
resta de carvalhos, onde moram lobos e javalis. À sombra de
suas árvores — contam — aconteceram muitos encantamentos. A
floresta é antiga, tão antiga que ninguém sabe quantos anos ela
tem.
Ao pé da colina fica a Fonte-dos-Groselheiros. Contam as
gentes d'antanho que o bosque estava cheio de fadas que iam
beber na fonte. Tinham elas uma grande influência na sorte
dos homens. Possuíam varinhas de condão, eram adoradas e
respeitadas. Mas o tempo passou e elas perderam o seu poder
mágico. Passaram então a viver uma vida simples, como a da
gente da aldeia. Os habitantes de Domrémy e Maxey as con-
vidavam para madrinhas das crianças que nasciam. As fadas vi-
nham para as festas e comiam sozinhas. Ninguém via quando
elas entravam; ninguém percebia quando saíam.
Havia fadas boas e más. E quase todas tinham uma estréia
de luz na cabeça. Seus vestidos eram lindos e feitos de fios bri-
lhantes que a gente podia ver mas não podia pegar. De quando
em quando uma fada se apaixonava por um cavaleiro. Coitado
dele! Se era valente, passava a ficar medroso. Muitos não ti-
nham mais força nem destreza para manejar a espada. Outros
ficavam como loucos, só queriam viver dentro da floresta en-
cantada.
Isto tudo se passou num tempo mui remoto que nem a ima-
ginação agora alcança.
Mas ainda há pessoas em Domrémy que acreditam que as
fadas não morreram.
Jannet Aubrit, madrinha de Joana, afirma que viu com os
A VIDA DE JOANA D'ARC 23

seus próprios olhos uma fada debaixo daquela grande faia que
fica à beira do bosque, perto da estrada real que vai para Neuf-
château. E chega até a garantir que era a própria Melusina.
Joana conhece a história de Melusina. Madrinha Jannet lha
contou num serão de inverno, enquanto os lobos lá fora uiva-
vam para a lua. Foi assim:
Existia, há muitos, muitos anos uma fada que casou com o
R e i da Albânia e teve uma filha a que deu o nome de Melusina.
Era uma criança muito bonita que recebeu da mãe um dom
terrível. Todos os sábados a parte inferior de seu corpo tomava
a forma de uma serpente. Melusina cresceu, ficou uma moça
linda como as estrelas. Um dia encontrou o Conde Raimundino
e se apaixonou por ele. O conde ficou também perdido de amor
pela fadazinha e pediu-a em casamento. "Só me caso contigo
— disse Melusina — se tu prometeres que nunca procurarás ver-
me aos sábados." Raimundino prometeu. Casaram. Foi um ca-
samento deslumbrante. Foram convidados todos os reis e todas
as fsdas do mundo. Nunca se viram presentes mais finos.
Os noivos viveram felizes muitos anos no Castelo de Lusi-
gnan, erguido pela magia de Melusina. Mas ura belo dia o Conde
de Forêt, irmão de Raimundino convenceu o irmão de que ele
devia qiíebrar a promessa. Tentado, Raimundino procurou Me-
lusina num sábado e descobriu o seu horrendo segredo. Melusina
se transformou imediatamente em serpente e fugiu por uma
janela do castelo, soltando berros de dor. E desde aquele dia,
sempre que a morte rondava o Castelo de Lusignan, Melusina
aparecia na torre, exalando os seus uivos doloridos.
Esta é a história da fada Melusina que Jannet Aubrit diz
que viu debaixo da Árvore-das-Fadas.
Todos os anos, no quarto domingo da Quaresma, os campo-
neses de Dcmrémy vão beber na Fonte-dos-Groselheiros e can-
tar e dançar ao redor da Árvore-das-Fadas.
Todas as meninas e todos os meninos da aldeia tomam parte
nas danças.
A Árvore-das-Fadas é uma faia muito alta e copada. Parece
de prata. Quando o sol bate nela, seus troncos, suas folhas e
seus frutos rebrilham. Sua sombra no chão é azulada e fresca.
Dizem que as fadas se reúnem para conversar debaixo dessa
faia antiga.
24 ERICO VERÍSSIMO

De mãos dadas, homens e mulheres, meninos e meninas, for-


mam rodas enormes a seu redor. Cantam e dançam. Depois
estendem toalhas na relva e comem as suas merendas sentados
no chão.
Para festejar a primavera os homens e as crianças mais habi-
lidosos da aldeia fazem um boneco de folhagens e de flores.
Joana sempre vai com seus pais e seus irmãos à festa ao
Dia das Fontes. Dança ao redor da faia. Bebe a água das fontes.
Canta e come as merendas.
Mas no íntimo ela sabe que as fadas nunca existiram. Se
existiram, não tinham nenhum poder. O Cura Minet lhe diz
sempre que só Deus e os seus santos é que podem obrar mi-
lagres.
VII

J O A N A E OS BICHOS DE NOSSO SENHOR

JOANA agora tem onze anos. Em Domrémy a vida rola. O se-


nhor padre reza as suas missas todos os domingos. Os homens
trabalham, comem, oram e dormem. As comadres fiam, conver-
sam e cuidam de suas casas. Morrem vacas mas nascem ter-
neiros. E cada terneiro que nasce é mais um amigo para a me-
nina Joana.
Fora disso, escaramuças e sustos. Correrias, e invasões. Os
borgonheses lutam com os armagnacs e se estraçalham sem pie-
dade. E os bandos de soldados que se desgarram depois das
batalhas assombram constantemente Domrémy.
Joana neste momento está sentada à beira do bosque cui-
dando -das suas ovelhinhas que pastam.
É o forte do verão. Os passarinhos vêm pousar nos ombros,
nos braços, nos joelhos e nas mãos da menina. E com os bicos
ágeis vão tirando do côncavo do avental dela o dourado farelo
que foi trazido especialmente para eles. Depois que se fartam
de comer, voltam para o mato à procura dum regato ou algum
oco de pau ou cálice de flor que tenha guardado a água da
última chuva.
Um rouxinol se põe a cantar numa árvore. Solta algumas no-
tas e cala-se. Joana começa a cantar também, imitando. O rou-
xinol torna a tirar mais algumas notas. Joana responde. O pas-
sarinho volta para todos os lados a cabeça, aflito por descobrir
o outro rouxinol. Vê Joana e voa para ela, pousando-lhe nas
costas da mão. O rouxinal canta. Joana canta também. E os dois
ficam num concerto, como se estivessem conversando.
Mas de repente as ovelhinhas começam a balar e a se acon-
chegar umas às outras. O rouxinol, pressentindo algum perigo,
foge. Joana se ergue. As ovelhas tremem e soltam balidos la-
mentosos. Que será?
A V I D A DE J O A N A D'ARC 27

Joana olha. Um lobo enorme vem saindo do bosque. Corre,


de dentes arreganhados. Seu pelo fulvo está incendiado de soL
Parece um demônio. O berreiro das ovelhas cresce.
Joana dá alguns passos para a frente, na direção do lobo.
Ela sabe que o seu anjo da guarda não lhe faltará.
O lobo corre para Joana. Seus dentes são pontudos e de sua
boca vermelha escorre uma baba branca. Joana caminha sem va-
cilar. Pára. Espera. O lobo continua a correr. Está a cinco pas-
sos da rapariga. Vai saltar. Joana permanece imóvel, olhando
firme para a fera. O lobo rosna. Mas estaca. Olha e o seu olhar
de repente, como se pousasse numa visão assustadora, perde o
brilho. E ele vai recuando, sempre com os olhos fitos na cabeça
de Joana, vai recuando até se sumir na floresta.
Joana leva o rebanho para casa. Vai triste, com pena do des-
tino dos lobos. E pensa nos homens que vivem como lobos,
esquecidos de Deus e sempre de dentes arreganhados, prontos
para ferir o próximo...
VIII

O BURRINHO TRISTE

JOANA e Pedrinho se preparam para visitar tio Henrique, que


mora em Sermaize, distante quinze léguas de Domrémy.
Mal o dia começa a clarear já os dois irmãos estão arrumando
as suas trouxas, porque pretendem ficar alguns dias na casa de
titio.
Viajar em algum dos cavalos de papai, seria perigoso. O ani-
mal pode assustar-se dos lagartos, dos lobos e até dos passari-
nhos e jogá-los no chão. O melhor é ir em cima do burrinho
que já está habituado com eles e com as viagens a Sermaize.
Pedrinho e Joana despedem-se dos pais.
— Beijos no Jacquemin! — recomenda a mãe.
— Leva este garrafão de vinho para tio Henrique! —diz papai
Jacques, metendo um garrafão de barro no cesto de Joana.
Pedro monta no burrinho. Joana sobe para a garupa.
— Upa! Vamos!—diz Pedrinho, batendo com os calcanhares
na barriga do burro. O animal começa a trotar. Joana volta a
cabeça e acena.
— Não esqueça de passar pela casa de primo Perrinet!—gri-
ta o pai.
Joana diz que sim com um sinal.
O burrinho atravessa Domrémy. Aparecem caras às janelas.
Os conhecidos abanam:
— Boa viagem, Joana!
— Sejam felizes, meninos!
Chegam à casa de Hauviette, que está à porta e sai correndo
para se despedir da amiga. Seguem depois pela estrada grande.
Passam pela Árvore-das-Fadas e entram no vale.
O sol agora vai alto. É muito engraçada a sombra do burri-
co no chão. Pedrinho e Joana conversam animadamente. O ra-
paz fala nos meninos de Domrémy e nas guerras que eles tra-
vam com os de Maxey.
A VIDA DE JOANA D 'ARC 29

O burrico avança. Passam os três por grandes florestas som-


brias onde cantam passarinhos e onde se ouvem mil ruídos mis-
teriosos. Ao entrar novamente no campo, encontram um moinho
de grandes asas escuras girando ao vento.
E o burrico trota-que-trota, trota-que-trota...
Quando a noite começa a cair eles chegam à casa de uns mo-
leiros conhecidos. Apeiam e entram. A família os recebe com
carinho. Pedrinho e a irmã jantam com apetite e Joana não es-
quece de ir levar comida para o seu burrinho.
Aqui está ele no estábulo, tristonho e pensativo. É um ani-
malzinho peludo, de grandes orelhas que sempre estão a se me-
xer dum lado para outro. Quanta mágoa nestes olhos graúdos!
Que ar abandonado o pobrezinho tem! Como parece infeliz!
Ou tudo será apenas cansaço?
Joana o acaricia suavemente. O burrico arreganha os dentes.
É o seu melhor sorriso.. .
De noite os moleiros se reúnem na varanda. Joana conta
histórias de santos aos filhos do casal.
Depois vão todos para a cama. No dia seguinte de madru-
gada os dois filhos de Jacques D'Arc continuam a sua viagem.
Agora aqui segue o burrinho trotando com as duas crianças
às costas.
— Que ser,á aquilo lá, Joana?—pergunta Pedrinho, apontan-
do para uma curva da estrada.
Joana olha. Vê uma grande nuvem de poeira dourada dc sol.
Pedrinho puxa as rédeas bruscamente e faz o burrinho parar.
A nuvem de poeira vem se aproximando. Agora se ouve o ba-
e
rulho de patas 4 cavalos e o tinir de metais.
— São homens-d'armas!—diz Joana.
— Tenho medo.. . — balbucia Pedrinho, começando a tremer.
— Bobinho! Como é que não tens medo de brincar de guerra
com os meninos de Maxey?
— Oh! Mas aquilo é guerra de brinquedo...
— Fica quieto. O nosso anjo da guarda está nos protegendo.
A nuvem de poeira se dissipa. Agora a gente pode ver bem
claro os cavaleiros. É um bando de doze Todos vestidos de ar-
maduras polidas. Trazem lanças e espadas.
Joana faz o burrico sair da estrada. E os cavaleiros passam
conversando e rindo, fazendo uma barulheira inferna!, como
30 ERICO VERÍSSIMO

uma floresta de passarinhos. Passam e nenhum deles dá pelos


valentes viajantes de Domrémy. Pedrinho e o burrico tremem
de medo. Mas Joana sorri serenamente.
A cavalgada se some. Os três amigos continuam a viagem.

Joana está pensativa, olhando para a cabeça do burro. Ela


se lembra que foi um burrinho assim como este que ajudou
Nossa Senhora na sua fuga para o Egito. Deus Nosso Senhor
deve ser muito amigo dos burrinhos. E a gente não devia sa-
crificar e encher de carga os pobres animais abandonados. Como
é triste este bichinho! E como vai sacudindo as orelhas para
espantar as moscas!
De repente Joana fica com tanta pena dele que salta para O
chão. „
— Que é isso?—pergunta Pedrinho.
— Vou a pé.
— Mas estamos longe ainda de Sermaize!
— Não faz mal. Vou a pé.
— Mas por quê?
— É muito peso para ele.
— Oh!
Contrariado, Pedrinho volta o rosto. Sabe que não adianta
discutir com maninha Joana. Ela sempre vence. Sempre tem
razão. Sabe tudo, compreende tudo. Tem idéias extraordinárias.
No fundo, ele respeita mais a irmã mais moça do que a mãe. . .
A VIDA DE JOANA D'ARC 31

Joana segue a pé. O dia está quente e o chão escalda. O


burrico segue agora mais aliviado.
Ao entardecer, depois de fazerem várias paradas para des-
cansar e para dar água ao animal e para comer a merenda, eles
chegam a Sermaize.
Tio Henrique recebe-os à porta de sua casa, com os braços
abertos. Jacquemin também os abraça com alegria.
Pedrinho chega contando proezas:
— Encontramos um bando de soldados, — diz ele. — Não saí-
mos da estrada. Vocês pensam que eu tenho medo de soldado?
Qual! Meti as esporas no burro...
Encontra os olhos enérgicos de Joana e se cala.
A casa de tio Henrique é muito confortável. Tem as paredes
pintadas de branco e seus móveis são polidos e limpos. Tio
Henrique é um homem alegre e simpático.
— Fiquem à vontade, meninos! Vão brincar.
Jacquemin e Pedrinho vão à casa de primo Perrinet. Ele é
pedreiro e tem um filho chamado Henriquinho. Os três rapazes
saem pelas ruas de Sermaize procurando mais companheiros pa-
ra fazer um exército.
Joana prefere ir à igreja rezar. Ajoelha-se e ora, pedindo a
Deus que proteja todos os burrinhos do mundo.
IX

A HISTÓRIA DE S. MARGARIDA

À NOITE tio Henrique reúne as crianças para lhes contar his-


tórias.
— Que é que vocês querem ouvir? — pergunta ele, cruzando
as mãos por cima do ventre roliço.
— Contos de fadas!—pede Jacquemi
— Histórias de guerras!—grita Pedrinho.
— E tu, Joana?
— Eu quero ouvir a vida dos santos, — responde ela baixinho.
— Muito bem! Joana ganhou. As fadas nunca existiram, as
guerras são contrárias à vontade de Deus. Vou contar a história
de S. Margarida.
Os três pequenos aproximam do cura os seus bancos. Tio
Henrique pigarreia, passa nos lábios o seu largo lenço verme-
lho e começa a contar:
— Há muitos anos, numa cidade da Síria chamada Antioquia,
nasceu Margarida. O pai dela se chamava Teodósio e era sa-
cerdote dos gentios. Vocês sabem o que quer dizer gentios?
Pois eram cs pagãos, os bárbaros, gentes que adoravam ídolos
esquisitos, que não seguiam a religião cristã. Margarida guar-
dava as ovelhas de seu pai e um dia, quando ela já tinha quinze
anos, o Governador Olibrius viu a menina e ficou encantado
com a sua beleza. Chegou ao palácio e disse aos seus servidores:
"Vão buscar aquela moça. Se ela for livre, eu me caso com ela.
Se for escrava, ficará sendo minha serva."
"Quando Margarida foi trazida à sua presença, Olibrius lhe
perguntou:
"—Dize-me de onde és, qual é o teu nome e a tua religião.
"—Eu me chamo Margarida de Antioquia e sou cristã.
"Olibrius fez uma careta.
"—«Como é que uma moça bonita e nobre como tu pode
adorar o Jesus crucificado?
A VIDA DE JOANA D'ARC 33
—Jesus vive eternamente, — respondeu Margarida com do-
çura,
"Olibrius ficou irritado e mandou a moça para a prisão. No
dia seguinte enviou-a ao seu tribunal, dizendo-lhe:
— Criatura infeliz, tem piedade de tua própria beleza. Adora
os nossos deuses, porque assim poderás aproveitar melhor essa
linda carinha que tens. Mas se insistes em adorar o Crucificado,
eu mando rasgar o teu corpo!
"Os olhos de Olibrius fuzilaram.
"Margarida não se perturbou e foi com uma grande calma que
respondeu:
"— Jesus morreu por minha causa: eu quero morrer por
Jesus.
"Então o governador mandou amarrar Margarida em cima
dum cavalete. Uns homens fortes e brutos lanharam o corpo
dela a chibatadas. Outros homens mais brutos e mais fortes
ainda lhe rasgaram as carnes com pontudas unhas de ferro. O
sangue começou a correr do corpo da moça, parecia uma fonte
de água vermelha que jorrava, que jorrava sem parar.
"Os que assistiam ao suplício choravam. O próprio gover-
nador cobriu o rosto com seu manto para não ver os rios de
sangue que escorriam daquele corpo puro. Mandou desamarrar
Margarida e levá-la de volta para a prisão.
"Deitada num monte de feno na masmorra escura, Margari-
da foi tentada pelo Diabo. Então ela se ajoelhou e pediu a
Deus que lhe fizesse ver o inimigo que tinha de combater. De
repente surgiu diante dela um enorme e horrendo dragão azul
è amarelo que avançou para a devorar, vomitando fogo. Mas
Margarida fez o sinal-da-cruz e o monstro desapareceu.
"Surgiu então o Diabo em figura de homem para tentar Mar-
garida. Chegou, segurou as mãos da moça e disse:
"—Margarida, já sofreste demais. Agora precisas fazer o que
Olibrius deseja.
"Mas ela o segurou pelos cabelos, derrubou-o no chão e, pon-
do o pé sobre a cabeça dele, gritou:
"— Treme, inimigo soberbo, tu estás sob os pés duma mulher!
"No dia seguinte, diante do juiz e do povo, ela foi intimada a
adorar os ídolos. Margarida recusou-se a isso e então o juiz
mandou queimar o corpo dela com tochas ardentes. A moça
34 ERICO VERÍSSIMO

parecia não sentir a menor dor, o menor mal. Espantado, diante


daquele milagre, o povo todo se converteu à religião da Don-
zela de Antioquia.
"Olibrius mandou decapitar a bem-aventurada Margarida. Foi
assim que ela disse ao carrasco:
"—Irmão, toma da tua espada e me fere.
"O carrasco cortou-lhe a cabeça dum só golpe.
"E a alma de Margarida voou para o céu, transformada numa
linda pomba.
"Esta é a história de S. Margarida."
Quando o cura termina a narrativa, Pedrinho e Jacquemin
estão cochilando. Mas Joana, muito atenta e comovida está com
olhos fixos no tio.
À hora de deitar, ajoelha-se diante da cama e começa a orar.
Agora ela quer ainda mais bem a S. Margarida.
Deita-se e fica por muito tempo ainda recordando a estranha
história que tio Henrique lhe contou. E dorme pensando em
que seria muito bom a gente se chamar como S. Margarida —
"Donzela de Antioquia"...
X

A H I S T Ó R I A DE S. C A T A R I N A

No DIA seguinte os três filhos de Jacques D A r c pulam da


cama contentes e vão pedir a bênção ao tio cura. O Pe. Hen-
rique os abençoa sorrindo. Jacquemin e Pedrinho saem para
tomar banho no rio.
Joana vai dar de comer ao burrinho. Sermaize é uma aldeia
pequena como Domrémy. Seus habitantes são também campo-
neses pacatos. Joana conhece muita gente. Passa o dia fazendo
visitas.
Agora ela vai aqui em companhia de duas meninas de sua
idade, rumo do campo. As camponesinhas de Sermaize não co-
nhecem Domrémy. Joana lhes conta maravilhas, de sua terra
natal.
— Temos o Mosa, o nosso rio bonito — diz ela.
— Nós também temos um rio, — retruca uma das companhei-
ras, mostrando o Saulx que corre a poucos metros da estrada.
— Temos uma igrejinha...
— Nós também.
— Temos a Capelinha da Nossa Senhora de Bermont. . . —
continua Joana. — Temos um castelo grande numa ilha cercada
de flores.. .
As outras se calam. Porque em Sermaize não há ilhas com
castelos.
Joana ensina às amiguinhas várias orações e um punhado de
jogos e cantigas. Ficam brincando o resto da tarde.
Quando voltam para a aldeia já brilham estrelas. E Joana
verifica que são as mesmas estrelas que moram no céu de Dom-
rémy. Mais tarde a lua cheia se ergue por trás do grande bosque
que fica na outra margem do rio. Também é a mesma lua que
clareia as noites de Domrémy.
36 ERICO VERÍSSIMO

De sua janela, depois da ceia, Joana fica olhando o rio. Tem


a impressão de que as estrelas se atiraram dentro da água, só
para alegrar os pobres peixes que vivem no fundo sem poderem
ver as coisas bonitas que Nosso Senhor semeou pela terra.
Tio Henrique sentou-se na sua grande cadeira, assoou o na-
riz com estrondo e agora está preparado para contar mais uma
história.
Jacquemin e Pedrinho bocejam. Joana se aproxima do tio e
pede:
— Conte a história de S. Catarina, titio.
O Pe. Henrique conta:
"Era uma vez um rei chamado Costus casado com uma rai-
nha chamada Sabinela. O bom Deus lhes dera uma filha lindís-
sima, que ganhou o nome de Catarina. Mas de que servia aque-
la beleza se a alma dela era feia? De que valia ter um corpo
bonito se o espírito adorava ídolos grosseiros?
A VIDA DE JOANA D'ARC 37

O cura faz uma pausa, fita os sobrinhos, que estão de olhos


arregalados, e depois continua:
"Catarina cresceu sem conhecer o Deus de verdade. Mui-
tos nobres, condes e barões e marqueses queriam cas:;r com
ela. Mas Catarina era ambiciosa e queria mais do que condes,
do que barões e do que marqueses.
"Mas um belo dia a menina teve um sonho. A Virgem Maria
lhe apareceu com o Menino Jesus no colo, dizendo: Catarina,
queres tomar este aqui como esposo? E tu, meu suavíssimo filho,
queres essa virgem como esposa?'
"O Menino Jesus respondeu: 'Minha mãe, eu não quero, por-
que ela é idolatra. Mas se ela consente em se batizar, eu pro-
meto botar no dedo dela o anel nupcial.'
"Catarina acordou impressionada. Tão impressionada que na
mesma manhã foi à Montanha Negra da Armênia procurar o
eremita Ananias. Chegou e disse:
"— Quero que me batizes. Vou ser esposa de Jesus. — E o
batismo foi feito.
"Catarina voltou para casa, radiante de alegria. E um dia, bem
no momento em que rezava sozinha em seu quarto, começou, a
ouvir um coro muito suave e muito bonito. Uma luz cresceu,
vencendo a luz do sol e o Senhor se aproximou de Catarina, no
meio de anjos, e meteu-lhe no dedo um anel que era o símbolo
daquele casamento espiritual.
"Ora, Maxêncio era Imperador de Roma naquela época. Exi-
gia que os habitantes da Alexandria fizessem sacrifícios aos ído-
los. Certa tarde, ouvindo os cânticos dos sacerdotes e os mugi-
dos dos pobres animais que iam ser sacrificados, Catarina saiu
para a praça e, vendo o imperador à porta do templo, disse:
" — Que loucura mandar essa gente render homenagem a ído-
los! Tu vives admirando esse templo que foi erguido pela mão
dos operários. Adoras esses enfeites faiscantes que não passam
de poeira que o vento espalha. Tu devias antes admirar a terra,
o mar, o céu, os passarinhos. Devias admirar os ornamentos do
céu, o sol, a lua e as estrelas. Devias admirar os círculos des-
ses astros que, desde o começo do mundo, correm para o Oci-
dente e voltam para o Oriente, sem nunca cansar. Olha e pensa
em tudo isso. Quem foi que fez todas essas maravilhas? Foi o
nosso Deus, o Deus dos deuses!
38 ERICO VERÍSSIMO

"O imperador depois do sacrifício mandou levar Catarina


para o palácio. Estava impressionado com a beleza e com a
sabedoria da moça. Então chamou os cinqüenta doutores mais
sábios de todo o Egito e lhes disse:
"—Uma rapariga de espírito sutil garante que nossos deuses
não passam de demônios. Eu quero que a confundam pela for-
ça de seus argumentos. Se triunfarem sobre ela, farei que vo-
cês voltem para casa cheios de honrarias.
"Quando soube que ia discutir com os sábios, Catarina ficou
cheia de medo. Era uma pobre moça que não tinha nem cora-
gem nem conhecimentos para enfrentar os doutores sabichões.
Mas um anjo lhe apareceu dizendo:
"—Sou o Arcanjo S. Miguel, enviado de Deus. Venho te di-
zer que sairás do combate vitoriosa e digna da graça de Nosso
Senhor Jesus Critso.
"E a virgem discutiu com os sábios. Eles afirmavam que era
impossível que um Deus se tivesse transformado em homem
para conhecer a dor. Catarina provou que o nascimento e a
paixão de Jesus tinham sido anunciados aos gentios e procla-
mados por Platão e Sibila."
Neste ponto os três irmãos D'Arc se entreolharam sem com-
preender.
"Os doutores — continuou o cura — não tiveram argumen-
tos para responder.
"Voltaram ao imperador para dizer que nunca tinham sido
vencidos por ninguém, mas que aquela moça os confundira.
E confessaram:
"—Em verdade vos dizemos que ela nos encheu de admi-
ração. Fala no espírito de Deus e não ousamos nem sabemos
dizer nada contra Cristo.
"E os cinqüenta doutores — vejam só vocês!—se converteram
ao Cristianismo. Furioso, Maxêncio mandou queimá-los em pra-
ça pública. Acenderam-se grandes fogueiras. Mas, em sinal de
que aqueles homens morriam pela verdade, os anjos do Senhor
não deixaram que suas vestes e seus cabelos fossem atingidos
pelo fogo.
"Maxêncio chamou Catarina e ofereceu-lhe jóias, o seu pa-
lácio e os seus escravos, em troca apenas de seu sacrifício aos
deuses. Catarina respondeu que pertencia a Jesus.
A VIDA DE JOANA D'ARC 39

"Maxêncio ameaçoií-a ae morte. Catarina não se atemorizou.


Cristo não tinha morrido por ela? Pois então ela podia morrer
por Cristo.
"O imperador mandou dois musculosos escravos negros fus-
tigar o corpo da virgem. Toda lanhada e sem forças, Catarina
foi metida numa masmorra. O rei partiu para uma província
distante.
"Aconteceu que a imperatriz, que era pagã, teve uma visão
em que S. Catarina lhe apareceu no meio dum clarão deslum-
brante. A imperatriz recuou, medrosa, não ousando erguer os
olhos para a claridade cegante. A santa lhe disse:
"— Eis aqui uma coroa que te mandaram do céu, em nome
de Jesus Cristo meu Senhor.
"A imperatriz ficou muito emocionada. Chamou Porfírio, um
bravo guerreiro, chefe dos exércitos e foi uma noite com ele
à prisão da donzela Catarina.
"Encontraram-na cercada duma claridade tão grande que eles
ficaram deslumbrados e caíram de joelhos sobre as pedras. Um
perfume maravilhoso se evolava do corpo da virgem. Ela tinha
na mão uma pomba branca que todos os dias lhe levava à
prisão um alimento feito no céu.
"-—Erguei-vos — disse ela à rainha e ao guerreiro — não vos
espanteis, porque Jesus vos chama.
"A imperatriz e Porfírio se ergueram e viram Catarina no
meio de um grupo de anjos. A santa tomou das mãos de um
deles uma coroa muito bonita e pô-la na cabeça da imperatriz.
Era a coroa que simbolizava o martírio.
"Voltando de sua viagem, Maxêncio chamou Catarina e lhe
disse:
"—Faze a tua escolha: ou sacrificas e vives ou não sacrificas
e sofrerás tormentos e morte.
"Mandou buscar uma roda guarnecida de dentes de ferro
para amarrar nela o corpo de Catarina. Mas um anjo apareceu
e quebrou a máquina: fez que ela arrebentasse com tanta força
que seus cacos mataram muitos pagãos. Vendo estas coisas, a
imperatriz desceu de seu quarto e repreendeu o imperador, di-
zendo que ele era um monstro de crueldade. Maxêncio, cheio
de raiva, mandou a imperatriz fazer o sacrifício aos deuses. Ven-
do que a mulher se recusava a obedecer-lhe, o imperador or-
1
40 ERICO VERÍSSIMO

denou que lhe decepassem a cabeça, depois de muito torturá-la.


"O corpo da pobre rainha foi levado para fora da cidade.
Porfírio, cavaleiro fiel, levou-o carinhosamente nos braços e deu-
lhe sepultura cristã.
"Ao saber disso, Maxêncio mandou matar Porfírio e jogar seu
cadáver aos cães.
"Chamou depois Catarina e falou assim:
"—Fizeste a rainha morrer com tuas artes mágicas. Se te
arrependeres, terás agora o lugar dela no meu palácio. Faze o
sacrifício aos deuses, ou oferece a tua cabeça ao' carrasco.
"Catarina respondeu serena:
"—Faze o que quiseres. Eu pertenço ao rebanho de Jesus.
"Maxêncio mandou levar Catarina para fora da Cidade de
Alexandria. Antes de morrer ela ergueu cs olhos para o céu. Não
chorava. Não tremia. O seu olhar era manso. Suas mãos se jun-
taram, brancas como a pombinha que a visitava na prisão. E
Catarina falou:

"—Jesus, esperança e salvação dos fiéis, eu te suplico que


atendas a todos os que, invocando o meu martírio, se dirijam
a ti no momento de aperturas ou na hora extrema da morte.
A VIDA DE JOANA D'ARC 41

"Uma voz que fez os guardas estremecerem lhe respondeu


com ternura:
" — V e m , minha esposa. A porta do céu está aberta. Prometo
ajudar aqui do alto os que me chamarem por tua intercessão.
"Assim morreu Catarina de Alexandria, numa tranqüila sexta-
feira de novembro. Hoje ela mora na corte celestial e é a pa-
droeira das moças, das criadas e das fiandeiras."
Quando tio Henrique termina de contar a sua linda história,
a noite já vai alta. Os dois rapazes cochilam. Mas a menina
Joana, de olhos arregalados, fica escutando na sua mente o eco
daquelas palavras que titio disse com sua voz grave e doce.
Joana vai para o quarto e não consegue dormir.
Lembra-se de S. Catarina e de S. Margarida. Agora ainda quer
mais bem às duas santas.
Elas morreram por amor de Jesus. Foram boas e constantes.
Joana se ajoelha ao pé da cama e pede a Deus que lhe dê a
coragem e a fé que S. Catarina e S. Margarida tiveram na hora
do perigo.
XI

OS HOMENS SÃO M A U S

D E VOLTA a Domrémy, Joana retoma a sua vidinha de sempre.


Vai agora rodos os dias à Igreja de S. Remígio. Ajoelha-se
diante das imagens de S. Catarina e S. Margarida e lhes repete o
pedido que fez diretamente a Deus a última noite que passou
na casa de tio Henrique.
Nos dias em que não tem de ir cuidar do gado no pasto, fica
em casa fiando. Mengette, a sua amiga e vizinha, vem ajudá-la
e as duas se deixam estar, uma na frente da outra, conversando,
trabalhando.. .
Roda a roca. O fio é branco. A tarde é calma.
— Papai disse que viu ontem uma fida debaixo da faia,—
diz Mengette.
Joana levanta os olhos.
— Não acredito.
— Oh! Então queres dizer que papai é mentiroso.
— Não é isso. As fadas não existem.
— Existem. A tua madrinha mesmo já viu.
— Foi engano.
— Não foi.
— Então não acreditas em aparições?
— Não.
— Nem de santos?
— De santos, acredito.
— Pois eu não.
A roca continua a girar. Um passarinho pia lá fora. As ami-
gas baixam a cabeça de novo. Silêncio.
Mengette fala:
— Por que é que teu pai anda tão triste?
Joana encolhe os ombros.
— Não sei. . . Deve ser por causa daquela coisa que ele é
agora.
— Que coisa?
A VIDA DE JOANA D'ARC 43
— Eu não entendo" bem. Deram para ele um cargo. . . Ele
tem ido a Vaucouleurs para se entender com o senhor do cas-
telo. Vai e volta triste. Fala nas guerras. Fala nos impostos.

— Ah! Eu sei.. . Mas isso não é motivo para andar triste.


Nossos pais vão para a guerra? Não. Pois os armagnacs e os
borgonheses que se estripem.. .
— Mas é que os soldados entram aqui e roubam, incendeiam,
matam o gado. Papai vive dizendo que agora ele tem muitas
responsabilidades...
Mengette encolhe os ombros. No fundo ela acha todas as cor-
rerias muito divertidas.
E depois, erguendo os olhos da roca:
— Tu entendes essas guerras?
Os olhos de Joana entristecem:
— Não entendo.
— Por que será que os homens brigam?
44 ERICO VERÍSSIMO

— Porque são maus.


— É porque querem mais terras, mais dinheiro, mais gado.
mais comidas e mais b e b i d a s . . .
— Se eles amassem Jesus Cristo, não brigavam.
— E se Jesus Cristo voltasse, — acrescenta Mengette — eles tor-
navam a pregar o pobre Nosso Senhor numa cruz. . .
Ficam falando nas guerras. Agora Domrémy não tem mais
sossego. Vai tudo muito bem quando de repente surge um bando
de cavaleiros, no meio duma nuvem de poeira. Entram gritando
e assustando os pobres camponeses. Às vezes são soldados do
Duque de Borgonha. Outras, são homens do lado dos Armagnacs.
(Joana e Mengette sabem o que ouvem os grandes conversar. . . )
Apeiam. Invadem as casas. Pedem comida. Pedem vinho. Pedem
dinheiro. Revistam arcas e gavetas. Faltam com respeito às mu-
lheres. Ameaçam os homens.
Mengette conta que ouviu o pai falar num tal Roberto de
Saarbruck, que é o mais feroz dos chefes. Um homem tão mau
que acha que guerra sem incêndio não tem graça. Queima sem
piedade as casas dos camponeses, queima florestas, campos, cer-
cas . . . Se fosse possível queimaria até os rios.
— Quem sabe se ele não é o próprio diabo?—remata Men-
gette.
Joana faz o sinal-da-cruz.
Quando cansam de trabalhar, Mengette se despede da amiga
e volta para casa.
De noite Joana vai para a cama e fica longo tempo de olhos
abertos, pensando nas guerras. Lembra-se de que há poucos dias
despertou de madrugada acordada pelo repicar desesperado dos
sinos e pelos gritos dos camponeses. Era um grupo de borgo-
nheses que invadia Domrémy. Levaram boa parte do gado de
papai e ainda por cima o maltrataram.
Joana espiou pela fresta da janela, quando os guerreiros par-
tiram. A noite estava clara de lua. A silhueta dos borgonheses
se recortava contra o céu cor de violeta. As armaduras, as lanças
e os elmos brilhavam.
Ela ficou olhando, transida de medo e ao mesmo tempo fas-
cinada. Aqueles homens eram os anjos da morte. Por onde pas-
savam iam deixando a marca brutal de seus coturnos de ferro.
Mas como ficavam lindas ao luar as suas armaduras polidas!
XII

POBRE DOMRÉMY!

UM DIA, certo viajante que ia para Vaucouleurs passou por


Domrémy, apeou do cavalo à frente da casa de Jacques D'Arc,
entrou, sentou-se à mesa, comeu pão com toicinho, bebeu vi-
nho e disse, estralando a língua:
— Esta aldeia é um paraíso!
Jacques ouviu e calou. Joana ouviu e entristeceu. Realmente
a aldeia estava calma àquela hora. Um sol muito dourado cla-
reando o casario, o vale, as colinas, os bosques e o rio. Um céu
muito azul. Um vento fresco perfumado de bosque. Bom vinho
vermelho, pão gostoso.
O viajante levantou-se, agradeceu, montou a cavalo e partiu,
levando a ilusão de que Domrémy era o lugar mais tranqüilo
e delicioso do mundo.
Os que ficaram, os habitantes mesmo da aldeia, bem sabiam
de sua vida. Viviam noite e dia em contínuo sobressalto.
Agora tudo piorou.
Antigamente o gado podia pastar livre. Hoje não pode.
As raparigas andavam soltas pelo vale, cantando. Hoje não
andam.
Os campônios viviam alegres. Hoje não vivem.
A vida era serena. Hoje não é.
Numerosos bandos de borgonheses burlequeiam pelas terras de
Vaucouleurs. Por onde passam deixam montões de cinzas e de
ruínas. As patas de seus cavalos amassam as flores. As suas lan-
ças trespassam o corpo dos pastores e põem em fuga os seus
rebanhos. O fogo e o sangue reinam nas terras da Lorena.
Ninguém mais dorme tranqüilo na aldeia de Joana.
Jacques D'Arc alugou com os outros homens da vila o caste-
lo da ilha. É lá que eles vão esconder os seus porcos, os seus
46 ERICO VERÍSSIMO

cavalos,— enfim: os seus rebanhos e os seus objetos mais valio-


sos quando se aproxima algum bando de homens armados.
Cada noite postam um aldeão de guarda na torre mais alta
de Domrémy. E ali fica ele sob as estrelas, o coração batendo
acelerado, os olhos pregados na estrada. Se alguma coisa reluz
ao luar, se algum foguinho brota longe, o vigia dá o alarma. E
Perrin, o tesoureiro da paróquia, se pendura na corda do sino
como um doido e começa a badalar, a badalar, a badalar, acor-
dando a população.
Homens e mulheres saem correndo de suas casas, em trajes
de dormir. Crianças choram. Porcos grunhem. Galos cocoricam.
Cavalos relincham. Vacas mugem. E cada qual vai levando como
pode os seus bichos para o pátio do castelo da ilha. E passam
homens arrastando arcas. E mulheres carregando trouxas de
roupa. Crianças puxando a cabresto o seu cabrito ou o seu ca-
chorrinho de estimação. Balbúrdia. O Sr. Cura — que agora
não é mais o Pe. João Minet, mas sim o Pe. Guilherme Frontey,
que o substituiu — tenta apaziguar a população alarmada. O
sino continua a badalar. Os bichos do Sr. Musnier se misturam
com os bichos do Sr. Aubrit. Os porcos do Sr. Barry se confun-'
dem com os do Sr. Royer. O burrico peludo do Sr. d'EsteIlin
dá um coice no Sr. Aubert d'Ourches.
A confusão dura demorados e angustiosos minutos. Só cessa
quando todo o gado fica encerrado no pátio do castelo da ilha.
E depois que o sino se caia e os homens se acalmam, veri-
ficam que o fogo que brilhou longe numa ameaça era simples-
mente a tocha que João Morel, que vinha de Vaucouleurs, agi-
tava no ar para lhe alumiar o caminho.
Mas muitas vezes o rebate não é falso.
Sob o olho do sol o vigia do alto da torre contempla a es-
trada. De repente longe, longe, apagada, uma nuvem de poeira
sobe da estrada. No meio da nuvem há manchas brilhantes que
se movem Não há dúvida. São guerreiros. . .
De novo geme o sino. Os homens, se estão fora, voltam para
suas casas, apressados. Se estão em casa, saem para fora. A gri-
taria e a confusão se repetem. O gado é encurralado no pátio
do castelo da ilha.
O bando de aventureiros entra na aldeia. As armaduras ful-
guram ao sol. A cavalgada passa num barulho de metais que
A VIDA\DE JOANA D'ARC 47

retinem. Os cavalos resfolegam, suas patas brutais vão derri-


bando os canteiros, as sebes, as gentes... Os guerreiros são
maus e riem do medo dos camponeses.
Apeiam. Querem dinheiro. Os seus senhores precisam de re-
cursos para continuar as guerras. Querem bom vinho e boa ca-
ma. E ai de quem não tem dinheiro, bom vinho e boa cama!
O pobre João Morel ficou estendido no chão com uma costela
quebrada, só porque, atarantado, deu vinagre em vez de vinho
a um capitão truculento.
Anoitece e muitos dos moradores da aldeia têm de dormir ao
ar livre para dar seus leitos aos soldados. E é na escuridão da
noite que explode o fogo dos incêndios. Como os soldados riem
vendo o clarão que se ergue das pobres casinholas que ardem!
E suas caras são vermelhas e horrendas como caras de demônios.
Quando os bandidos vão embora, Domrémy fica triste como
um cemitério no inverno. (Sim, porque na primavera, verdes e
floridos, até os cemitérios são alegres...). Homens e mu-
lheres choram diante de seus lares reduzidos a cinzas, de suas
lavouras devastadas e de seus rebanhos mortos. Reúnem-se os
chefes de família e começam a fazer a lista dos prejuízos. Tantas
casas incendiadas, tantas hortas inutilizadas, tantos homens fe-
ridos. Às vezes há mortos.
O consolo destas pobres gentes é a religião. O cura lhes abre
as portas da casa de Deus. E a igrejinha de Domrémy é pequena
para conter todos os que a procuram.
O padre fala em Deus, em resignação e em recompensa. Os
camponeses se retiram mais aliviados.
E a vida recomeça. Trazem o gado de volta do pátio do cas-
telo. Erguem-se novas casas. Plantam-se novas lavouras. Os fe-
ridos se curam. Os mortos são esquecidos.
E lá um dia passa um viajante descuidoso, apeia, bebe bom
vinho, come bom pão, estrala a língua e diz:
— Domrémy é um paraíso!
E se vai, sem desconfiar de nada.
XIII

U M A H I S T Ó R I A SEM F A D A S

JOANA olha tudo com olhos espantados. Não compreende a


crueldade dos homens. Medo não sente deles, porque tem fé
em Deus e nos Santos. Mas lhe dá pena ver a sua pobre aldeia
saqueada pelos soldados malvados.
Joana procura aproximar-se cada vez mais de Deus. Vai à
igreja todos os dias. Conta os seus pecados ao Pe. Frontey, no
confessionário. O cura a absolve sorrindo e ela volta para casa
com a alma leve e clara.
O verão corre manso e luminoso. O Mosa marulha, as trutas
nadam por entre os juncos e os animais pastam tranqüilamente
no campo. '
Até quando durará esta paz?
Joana vai à casa de Hauviette. Encontra-a no jardim. Saem
de mãos dadas. Mengette aparece. Depois vem o filho de Si-
mão Musnier. E o bando vai crescendo.
Chegam à Árvore-das-Fadas. Começam a cantar e a dançar
ao redor dela. Joana começa a fazer grinaldas de flores para
Nossa Senhora de Bermont.
Mas não há mais alegria nestes brinquedos. As meninas es-
tão sobressaltadas. Temem ver surgir a cada instante um bando
de soldados.
E os rapazes só falam em guerras.
Diz Pedrinho:
— Hoje o nosso exército vai tomar Maxey!
— Vamos queimar a casa do Jerônimo! — grita Joãozinho com
entusiasmo.
— Ele disse que era o Duque de Borgonha.
— Pois sou eu que vou matar o Duque de Borgonha!
Riem. Fazem pianos. Pedrinho diz que vai montado no bur-
rinho peludo e armado com uma enorme lança de pau.
— Vou fazer uma armadura com a bacia de folha de mamãe!
— exclama Simãozinho, encantado «com a própria idéia.
A VIDA DE JOANA D'ARC 49

— Vamos atacar pelo lado do moinho.


— Primeiro, as bombardas.
— Depois as setas.
— Depois a carga de lança.
— Viva o Exército dos armagnacs!
— Viva!
— Viva!
Joana ouve e vê o que dizem e fazem os irmãos e os amigos.
Seu coração se aperta de dor. Até estes coitadinhos estão com
as cabeças cheias de histórias de guerras. Os culpados são os
grandes, que não têm juízo e dão o mau exemplo. Que Deus
tenha piedade deles!
O bando volta para Domrémy. Separam-se.

<

Ao chegar a casa, Joana tem a alegria de encontrar lá tio Hen-


rique, que acaba de chegar de Sermaize.
Caminha para ele sorrindo e pede-lhe a bênção.
— Deus te abençoe e crie para o bem, Joaninha, — diz o
cura.
50 ERICO VERÍSSIMO

À noite, depois da ceia, o Pe. Frontey vem visitar o Pe. Hen-


rique. E ficam os dois e mais Jacques D'Are e Perrin, conver-
sando ao redor da mesa.
Mamãe vem servir pão molhado em vinho tinto. Joana fica a
um canto, muito atenta às conversas.
Tio Henrique conta que Sermaize foi saqueada. E ao falar
nos seus paroquianos maltratados e roubados, as lágrimas co-
meçam a correr-lhe pelo rosto.
O Pe. Frontey fala das últimas pilhagens em Domrémy. Jacques
e a mulher escutam em silêncio.
E noite a dentro os homens continuam a falar em política.
— Joana, não queres ir dormir?—pergunta mãe Isabel.
— Não, mamãe, eu quero ficar.
Isabel encolhe os ombros. Joana fica.
Os homens falam nas guerras. Dizem nomes de gentes conhe-
cidas e desconhecidas. Nomes complicados, nomes que fazem
medo. Reis, príncipes, duques, condes, capitães valentes, senho-
res de castelos...
E Joana escuta, sem compreender.
Quando os visitantes se vão^embora, ela chega para tio Hen-
rique e lhe pede, muito humilde:
— Titio, não fique zangado, mas me explique toda essa his-
tória de reis e de guerras.. .
O cura sorri.
— Para que é que queres saber?
— Fico muito aflita... Veio os homens brigarem e não sei
por que é que eles brigam. Ouço falar em reis e em tronos e
não entendo. Acho que tudo o que existe é de Deus. Não devia
haver donos de terras e de castelos. Todos os homens são irmãos.
Deus fez o mundo para todas as pessoas. . .
Tio Henrique sorri.
— Senta-te aí, menina.
Joana senta-se.
Como naquelas duas noites em que contou as histórias de
S. Margarida e S. Catarina, o cura de Sermaize limpa a boca com
o seu lenço vermelho e começa a falar:
— Olha, minha filha, se eu fosse te contar toda essa compli-
cação política, tu ias ficar morta de sono e no fim não enten-
derias nada.
52 ERICO VERÍSSIMO

— Conte, titio, que eu escuto. Não durmo. Prometo.


— Bom. Faz de conta que as guerras são uma história de
fadas. . . Não. Melhor: uma história sem fadas.
— Faz de conta...
Tio Henrique sorri e começa: .
— Era uma vez um rei chamado Carlos VI. Um rei tão esqui-
sito que uns lhe chamavam "O Bem-Amado" e outros "O ma-
luco".
Joana sorri. Tio Henrique continua:
— Esse rei governou algum tempo a nossa França. Governou
é o modo de dizer. . . Quem manda aqui nesta casa é teu pai
Jacques. Mas quem mandava na França não era o Rei Carlos VI.
Imagina tu, menina, quando o rei maluco chegou aos vinte e
um anos, convidou para seus conselheiros os Marmousets, que
governaram direitinho. Mas esses moços, oh!, esses,moços. . . —
O padre faz um gesto desesperado. — Esses moços perdem fa-,
cilmente a cabeça. O Rei Carlos já não era muito bom da bola.
Viu riqueza, viu ouro, viu honras, perdeu a cabeça. Começou
a se divertir com loucura e acabou louco mesmo...
Joana está muito séria e muito atenta.
O Pe. Henrique se remexe na cadeira e prossegue:
— Se teu papai enlouquecesse, que o bom Deus o livre!, que
é que acontecia? Os meninos não iam mais à escola e mana
Isabel não tinha força para governar a casa. Todo o mundo se
achava com direito de mandara desmandar. Pois foi o que acon-
teceu na França. Todos viram que o rei estava maluco. Não ha-
via meio de se verem livres dele. Veio a anarquia, a confusão.
Dum lado o Duque de Borgonha e do outro lado o Duque de
Orléans, cada qual queria ficar de dono do país. Começou o ba-
rulho. No ano de 1407 Luís de Orléans foi assassinado.
Pausa. Joana estremece. Tio Henrique prossegue:
— Por causa dessa morte, estourou a guerra entre os arma-
gnaes e os borgonheses, esta maldita guerra que está durando até
hoje. Ora, o Rei da Inglaterra, o meu xará Henrique V, era um
homem muito sabido. — O padre solta uma risadinha. — Viu a
situação e procurou tirar vantagem para si. Fez amizade com
João Sem Medo, o Duque de Borgonha, e combinou com ele
invadir a França. João Sem Medo foi vencedor em muitas ba-
A VIDA DE J O A N A D'ARC 53
talhas e chegou a tomar Paris, onde ficou governando em nome
de Carlos VI.
O Pe. Henrique tosse. Pela janela Joana vê brilhar as estre-
las da noite. O vento traz o barulho macio do Mosa, que corre
ao luar.
— E depois, tio Henrique?
— Onde é que eu estava?
— João Sem Medo tomou Paris.
— Ah! Mas o Duque de Borgonha era um homem de cabeça
esclarecida. Viu que era melhor governar sem inimigos e pro-
pôs a paz aos armagnacs, que tinham em seu poder o Delfim
Carlos, filho do rei maluco. Combinaram um encontro numa
ponte para tratarem da paz. . . Mas esses diabos não têm mesmo
miolo na cabeça! Pois imagina só, minha filha, a loucura dos
amigos do Delfim! Em vez de irem calmamente fazer a paz, fi-
zeram uma traição, mataram o Duque de Borgonha!
— Não diga!
— Pois é para tu veres, Joaninha.. .
— Que gente malvada...—Joana suspira. — E depois?
— Com a morte de João Sem Medo, foi o seu filho Filipe, o
Bom que ficou como Duque de Borgonha. Pois o novo Duque
de Borgonha fez uma aliança firme com o meu xará Henrique
da Inglaterra. Fizeram lá uma combinação, um tratado, segundo
o qual Henrique V tinha de casar com Catarina, filha de Carlos
VI, para ficar rei da França. E sabes o que aconteceu? — Joana
sacode negativamente a cabeça. — Pois Henrique V morreu e dois
anos depois morreu o rei maluco, Carlos V I . . .
— E agora, titio?
— Agora o filho dele, o Delfim, está em Bourf,es. Um su-
jeito mole, desanimado, sem energia. Está lá atirado e não quer
outra vida. Está esperando um homem, um homem de verdade
que comande os seus exércitos e leve o Delfim a Reims, para
botar a coroa de rei na cabeça dele, naquela pobre cabeça des-
miolada!
— E ninguém quer fazer isso?
— Qual! Os ingleses estão tomando conta de tudo. O Delfim
não tem dinheiro para pagar as tropas. O Duque de Borgonha
tem aliado forte: Duque de Bedford. . .
— Quem é esse Duque de Bedford?
54 ERICO VERÍSSIMO

— É o regente da França, por parte de Henrique VI da In-


glaterra.
— E então, titio?
O cura faz um gesto desanimado.
— Não há esperança! Não há exército! Não há dinheiro! Não
há inteligência! Não há energia! Não há nada!
Jacques D'Arc, que ouviu tudo em silêncio, agora fala:
— Há uma profecia que diz que a França, desgraçada por
uma mulher, será salva por uma donzela.
O cura de Sermaize ergue os olhos para o alto e diz:
— Se Deus assim quiser, assim será.
Joana fica imaginando.. .
XIV

A V O Z LUMINOSA

É UM meio-dia de verão cheio de sol.


Joana tem treze anos.
No seu jardim as rosas e as cenouras se misturam. E o mes-
mo sol que doura as rosas e as cenouras inunda também as se-
pulturas e as cruzes do cemitério da igreja.
Silêncio na aldeia. Nuvens no céu.
Joana está imóvel, pensando. Seus olhos se acham voltados
para a estrada de Vaucouleurs mas seu espírito está olhando pa-
ra Deus.
De repente, à direita dela, no meio da grande luz do meio-
dia chameja uma claridade maior, mais branca, mais brilhante,
uma claridade tão grande que Joana fica tonta por um instante.
E, saindo inexplicavelmente do meio da claridade, chega aos
ouvidos dela uma voz que Joana nunca ouviu. Uma voz clara,
uma voz luminosa que lhe diz:
— Eu venho de Deus para te ajudar a ter um bom compor-
tamento. Sê boa, Joaninha, e Deus te ajudará.
Joana começa a tremer de medo porque a voz que ela ouve
sai dum corpo que não se vê. É a voz da luz, desta luz que cega,
desta luz que vence o próprio clarão do sol.
A menina Joana treme da cabeça aos pés. Tem a impressão
de que está pairando no ar, como um anjo ou um passarinho.
Depois que a luz se apaga ela se encontra de novo sozinha no
jardim silencioso, entre as cenouras e as rosas. Não diz uma pa-
lavra, não faz um gesto.
Fica assim alguns minutos.
Depois vai para casa muito quieta e se mete no quarto sem
falar com ninguém.
A noite chega. Joana reza, ajoelhada ao pé da cama. Deita-se.
Não consegue dormir. As horas passam. Ela pensa. . . Os ga-
56 ERICO VERÍSSIMO

los cantam. Um novo dia amanhece. Joana levanta-se apreensiva,


pensando ainda na voz luminosa. Vai à igreja. O sol da manhã
ilumina o pequeno vitral. Ali está o Arcanjo S. Miguel com a sua
armadura lampejante e a sua espada de ouro.
Joana se ajoelha e reza. Depois fica olhando muito tempo
para as imagens de S. Catarina, S. Margarida e S. Remígio.
À saída da igreja encontra Mengette.
— Joaninha, vamos brincar?
— Não, Mengette, eu não quero brincar.
A VIDA JOANA D'ARC 57

— Mas que tristeza é essa, menina?


— Nada, Mengctte. Não fiques zangada, sim? Eu quero estar
sozinha,
Joana fica a sós com seus pensamentos.
A voz luminosa não lhe sai da memória. Será mesmo que
Deus, o grande e bom Deus teve a imensa bondade de lhe man-
dar um recado, a ela pobre camponesinha humilde e sem im-
portância?
Passam-se os dias. Às horas das refeições, pai Jacques e Mãe
Isabel notam que a filha está diferente.
— Que é que tens, minha filha?—pergunta ele.
— Nada, papai.
— Estás sentindo alguma coisa, Joaninha?—pergunta a mãe.
— Nada, mamãe. Estou bem.
Joana vai ao confessionário. Volta para casa, pega a sua roca
e fica fiando, fiando e pensando, pensando e fiando.. .
E um dia, no mesmo lugar do jardim, outra vez surge o cla-
rão. Joana estremece. A voz luminosa lhe diz:
— Sê boa, Joaninha!
Ela se volta, atarantada, e não enxerga ninguém. O clarão se
apaga. E por trás dele fica só a parede branca da igrejinha.
Com o coração aos pulos Joana entra em casa.
À tarde leva os porcos para as bordas do bosque de carvalhos.
Vai distraída, de olhos postos no céu. Se os bichos quisessem
podiam se dispersar, podiam fugir. Mas os gordos porquinhos
de Jacques D'Arc querem bem à sua guardadora e seguem pela
estrada muito disciplinados, bem como os soldados do Duque
de Borgonha, quando entram nas cidades conquistadas.
Enquanto os animais mastigam as bolotas de carvalho que
juncam o chão, sentada numa pedra, Joana fica pensando na
voz luminosa que ela não sabe donde vem. . .
XV

AS VISÕES Q U E R I D A S

O VERÃO vai forte. O Mosa refulge nos dias claros, como a ar-
madura dum guerreiro. Os lagartos preguiçosos saem para os
descampados para tomar sol. Os sapos verdes coaxam nos char-
cos uma cantiga que dá sono. As nuvens muito brancas se amon-
toam no céu: parecem grandes montanhas de neve. O ar está
cheio de insetos de asas transparentes, as abelhas voam e^ zum-
bem e fulguram, como se fossem de ouro.
Joana se acha agora no seu jardim. Está agachada sobre um
canteiro quando de repente o clarão aparece. E a mesma voz
lhe diz:
— Joaninha, sê boa!
A menina se volta. Oh! Agora ela vê uma visão resplande-
cente. Esfrega os olhos. Pisca. Torna a esfregá-los. Depois os
abre bem e fica olhando. Quer dizer uma palavra mas a voz lhe
falta. Dentro do clarão está um lindo guerreiro, metido na sua
armadura polida. O belo cavaleiro tem uma grande espada na
mão direita e um escudo na esquerda. Uma coroa de ouro cir-
cunda o seu elmo, que lampeja. O rosto dele mal se enxerga
por causa da luz que o inunda. Mas Joana sente que é um lin-
do rosto de anjo. Sim, de anjo.. . Ela está conhecendo este so-
berbo capitão.. . Ela o conhece...
S. Miguel! Oh! o arcanjo S. Miguel!
Os olhos de Joana se turvam de lágrimas.
Sereno, o arcanjo lhe fala:
— S. Catarina e S. Margarida virão a ti, Joaninha. Segue os
conselhos que elas te derem, pois as santas te dirão o que tens
a fazer. -Deves acreditar em tudo o que disserem. Todas estas
coisas se fazem por ordem de Nosso Senhor.
S. Catarina e S. Margarida vão aparecer para ela? Oh! Joana
sente um desfalecimento.
60 ERICO VERÍSSIMO

A visão desaparece. E a filha de Jacques D'Arc fica de joe-


lhos, de mãos postas com a alma iluminada por aquela clari-
dade do céu.
Que alegria! Ver a suas santas queridas, ouvir a voz delas...
Será possível? Será possível?
Ergue-se, toda trêmula. Caminha para casa. Tem a impressão
de que seus pés não tocam no chão. Parece que vai volitando
como uma pomba, como uma andorinha. Não sente que tem
um corpo: é toda alma.
Deve dizer ao pai o que viu? Deve contar à mãe, aos mani-
nhos? Não. Eles hão de dizer, rindo:
— Menina boba, tu estás mentindo. . .
Não. Melhor é guardar o segredo. Só contará se o anjo lhe
der ordem.
E Joana passa o dia contente como se estivesse morando no
paraíso. Em torno dela os grandes falam em guerras, em morte,
em incêndios e roubos. Os homens lamentam a sorte dí> pobre
delfim que está metido em Bourges, sem um capitão forte que
lhe dirija os exércitos e o leve a Reims para ser coroado.
E Joana pensa assim: Se o Delfim tivesse a seu lado um ca-
pitão valente e forte como S. Miguel, suas tropas sairiam vito-
riosas. . . Os ingleses seriam expulsos e na Catedral de Reims
(disseram-lhe um dia que é uma catedral imponente, enorme)
um bispo de roupagens deslumbrantes haveria de pôr-lhe na
cabeça a coroa do Reino de França. . .
Passam-se alguns dias. Joana agora vai ainda com mais fre-
qüência à igreja. E depois da Capela de S. Remígio, o lugar mais
agradável para ela é o pequeno jardim de sua casa onde viu e
ouviu o Anjo.
Chega o momento em que a promessa de S. Miguel se cumpre.
S. Catarina e S. Margarida aparecem para Joana. É um dia
sombrio de céu cinzento.
A pobre menina sente que suas forças lhe faltam. Se não cai
decerto é porque as mãos de seu Anjo da Guarda a amparam. . .
Com os olhos muito abertos de espanto, Joana vê as suas
santas queridas.
Elas têm longos vestidos de rainhas. Trazem na cabeça co-
roas de ouro crivadas de pedras preciosas que brilham como es-
trelas. Joana quer ver bem as feições delas. Mas não consegue.
A VIDA DE JOANA D'ARC 61

porque a luz que os rostos santos irradiam é tão grande que


deixa a gente quase cega. . .
Joana se ajoelha. Vai se arrastando de joelhos e se aproxima
das visões. Toca a ponta de seus vestidos, beija-os com fervor.
Oh! Vem das santas um perfume suave e bom, mais suave e
melhor que o perfume das flores, que o perfume dos bosques
depois das chuvas da primavera.
Joana está deslumbrada. E quando a voz lhe volta, ela diz:
— Oh minhas santas queridas! Eu prometo que não hei de
me casar como as outras moças. Quero me dedicar toda a Je-
62 ERICO VERÍSSIMO

sus. . . Como a senhora, S. Catarina... — como a senhora tam-


bém, S. Margarida.
Quando as imagens se apagam, e só fica o branco da parede
da igreja, Joana começa a chorar. Ergue-se e vai para o quarto.
Não conta a ninguém nada do que viu e ouviu.
E nos dias que seguem ela vive a esperar nova visita das suas
santas.
S. Catarina e S. Margarida voltam. . .
Joana as conhece pela maneira como elas cumprimentam. E
também as santas conversam e se chamam pelos nomes. Surgem
no jardim cercadas de anjos.
Dão conselhos:
— Não deixes de ir à igreja, Joana.
— Segue os mandamentos do Senhor.
— Sê boa, Joaninha.
Outras vezes, indo à Fonte-dos-Groselheiros com as suas ami-
guinhas, Joana lá encontra as suas visões queridas. As outras não
vêem nada. Ficam só muito admiradas do jeito esquisito da
companheira.
E assim correm os dias da menina Joana em Domrémy.
Ela continua a levar seus rebanhos para a beira da floresta.
E lá também as santas lhe aparecem. Antes delas surgirem,
ouve-se um farfalhar no arvoredo, o rebanho fica ligeiramente
inquieto e depois a luz brota contra o verde dos carvalhos. . .
Muitas vezes as vozes dos sinos que tocam as matinas ou as
completas se misturam com as vozes dos céus.
Onde estará S. Miguel que agora não aparece mais?
Terá desconfiado de alguma coisa? — pensa Joana, aflita.
E mal ela acaba de pensar isto o arcanjo surge no meio dum
grande clarão.
Surge e lhe diz da grande pena que tem do pobre Reino de
França, desta pobre terra sem rei e sem lei.
E a menina Joana se vai habituando às vozes e às visões do
céu. Já não se perturba quando as vê e ouve. Escuta-as com cal-
ma e com alma. Procura seguir todos os conselhos que os santos
lhe dão. E sente um peso no coração quando as visões desapa-
recem.
XVI

UMA VIDA NOVA

MENGETTE chega e diz:


— Joana, vamos apanhar groselhas no bosque?
— Não, Mengette, eu quero ficar sozinha.
Hauviette aparece e convida:
— Joana, vamos cantar ao redor da Árvore-das-Fadas?
— Não, Hauviette, eu quero ficar sozinha.
E Joana fica. Em casa todos pensam que ela anda doente. E
no entanto a menina nunca teve saúde melhor. Todos acham que
ela é infeliz. E no entanto nunca em sua vida Joana se sentiu
mais venturosa.
Suas visitas à igreja redobram.
Agora ela vem saindo da Capelinha de Nossa Senhora de
Bermont. As crianças da aldeia estão bebendo na fonte ou can-
tando e rindo ao redor da Árvore-das-fadas.
Quando Joana passa de cabeça baixa e ar sério os outros fi-
cam rindo dela. E alguns gritam, com vozinhas de falsete:
— Olha a carola!
— Vejam só a santinha!
— Qualquer dia cria asas e sai voando como os anjos!
— Ela está mas é maluquinha!
Risadas. Gritos. Algazarra.
Mas Joana sorri e segue o seu caminho sem voltar o rosto,
sem dizer palavra.
Agora a sua vida mudou. Sua alma é forte. Ela tem fé nos
santos. Ela tem pena da França. Em coisas que antes não pen-
sava, agora pensa.
Ontem era uma pastorinha despreocupada que não sabia das
coisas. Pouco lhe importava que a França estivesse sem rei.
Pouco se lhe dava que os ingleses estivessem tomando conta de
tudo.
64 ERICO VERÍSSIMO

Agora não. Os santos aparecem e lhe dizem que a França é


infeliz e que a gente deve ter pena dela.

Joana está vivendo uma vida nova. Cumpre as suas obriga-


ções de boa filha. Cose e fia. Lava os pratos. Cuida da merenda
dos irmãozinhos que vão à escola de Maxey. Leva os porcos, as
ovelhas e as vacas para o pasto. Visita os conhecidos. Mas a sua
vida mesmo, a vida de sua alma está toda dedicada a Deus.
Todos fazem troça dela. Todos, menos o cura. Todos dizem
que ela vai acabar maluquinha. Uns garantem que é doença.
Coitados! Eles não sabem das visões, eles não viram nem ouvi-
ram nada...
E assim os meses se vão. Domrémy vive num sobressalto sem
fim. Os bandos aventureiros continuam a aparecer. A aldeia so-
fre. Os soldados chegam e destroem. Vão embora gritando e
cantando. Os camponeses se dedicam mais uma vez à recons-
trução paciente. E a vida recomeça.
A VIDA DE JOANA D'ARC 65

Um homem disse que é o fim do mundo. Outro declarou que


tudo está perdido.
Mas ela, Joana, tem fé. Os anjos do céu estão se interessando
pela sorte da França.
Três vezes por semana as santas lhe aparecem.
E agora lhe dizem coisas estranhas. Assim:
— Filha de Deus, é preciso que deixes a tua aldeia e vás para
a França.
Mas para quê? Com que fim? Ela simplesmente não com-
preende. . . Será que as santas querem que a pobre Joana de
Domrémy faça alguma coisa pelo Delfim? Oh! Não é possí-
vel. . .
Joana fica horas e horas pensando na ordem que veio do céu.
Deixar Domrémy e ir para a França. Será possível?
A profecia rezava: "A França, desgraçada por uma mulher,
será salva por uma donzela." Sim, diziam que essa donzela ha-
via de sair das fronteiras da Lorena. Domrémy está justamente
nas fronteiras da Lorena. Oh! Mas não é possível!
E como a dúvida é uma tortura, Joana vai rezar na igreja.
E aqui ela passa a maior parte de seu tempo. Aqui, ajoelhada
ao pé das imagens.
Papai Jacques já se queixou ao Sr. Cura. O Sr. Cura sorriu,
porque não vê pecado na devoção da menina.
Papai Jacques disse que ultimamente Joana já não cuida com
o mesmo amor os rebanhos, já não é a mesma no serviço da
casa. Só pensa nos santos, nas orações, no confessionário. . .
E assim os anos passam.
O tempo é uma coisa misteriosa. Tão misteriosa que não tem
para todas as criaturas a mesma duração. Para uns é mais curto,
para outros, mais longo. Há minutos que duram anos. Há anos
que parecem minutos.
Para o vigia da torre, que fica olhando a estrada para dar
alarma quando avistava soldados armados, as horas de guarda são
séculos. Para a menina Marianne e o jovem Paulo, os namora-
dos, que vão colher frutas no bosque de mãos dadas, as horas
são segundos que se escoam depressa.
Assim para Joana que vê os santos da corte de Deus, o tempo
nem existe.
Os dias, as semanas e os meses fluem sem que ela sinta.
66 ERICO VERÍSSIMO

Os santos lhe aparecem sempre com ordens estranhas.


E, em sua grande humildade, ela responde:
— Eu sou uma pobre menina que não sabe andar a cavalo
nem guerrear...
Mas as vozes insistem:
— Filha de Deus, é preciso que deixes a tua aldeia e que vás
para a França...
E neste sonho vive Joana. Mais com os santos do céu do que
com as gentes de Domrémy.
Ela não sabe quando um dia acaba e outro principia. As se-
manas nascem, envelhecem e morrem. Assim os meses. Assim
os anos.
XVII

O SONHO DE J A C Q U E S D ' A R C

A TARDE é doce. Por cima das colinas há uma grande lista ver-
melha pintada no céu. As sombras são arroxeadas. O vento é
manso.
Aqui vai Joana à rabiça do arado. Os cavalos estão suados do
trabalho do dia: seus corpos ofegantes reluzem ao último sol.
À beira do rio as raparigas cantam. Seus vestidos são colo-
ridos. Elas jogam flores para o ar e dançam. São moças e tem
namorados. O Mosa canta com elas. Os peixes dançam. As som-
bras escutam. Os vaga-lumes farfalham. Os vaga-lumes começam
a luze-luzir no campo enquanto as primeiras estrelas brincam
no céu de imitar os vaga-lumes. Os cavalos caminham. O arado
rasga a terra. Joana segue pensativa. A seu lado João Waterin,
seu companheiro de lida, trabalha e canta. Tem cabelos louros,
cara tostada, olhos azuis de criança. Conversa muito, gosta de
dançar com as raparigas da aldeia e diz sempre que um dia
há de ser senhor dum castelo grande e fortificado.
Agora aqui vai ele, cantando uma canção alegre. Suas roupas
estão esfarrapadas, mas João Waterin julga-se um rei. Quem o
vê assim caminhando contente, de cabeça erguida e passo firme,
dirá que ele é o dono de Domrémy!
Joana não vê nem ouve o companheiro. Seus olhos estão vol-
tados para o céu.
Cansada, ela pára e senta-se numa pedra, enxugando a testa
com o lenço. João pára também. Os cavalos resfolegam. Lá em
baixo à beira do rio as raparigas continuam a cantar.
Contra o céu claro Joana vê desenharem-se os seus vultos
queridos. S. Catarina e S. Margarida aparecem numa nuvem de
ouro. O seu perfume domina o perfume dos campos, que é
mais ativo nesta hora do escurecer. O azul de seus man-
tos é mais suave que o azul do céu da noitinha. A coroa de suas
68 HR1C0 VERÍSSIMO

cabeças têm pedras que brilham mais que os vaga-lumes e as


estreias.
Joana escuta as vozes amigas.
— Toma o estandarte em nome do rei do céu, — elas lhe di-
zem— toma-o com coragem, que Deus te ajudará.
As santas desaparecem. Suas palavras ficam ecoando na me-
mória de Joana como uma música encantada.
— Eia, Joana! Que é isso?

João Waterin gesticula. Joana desperta. Ergue-se.


— A noite chegou. Vamos embora.
João desatrela os cavalos e desce cantando para o rio. A me-
nina Joana volta para casa.
À hora da ceia todos se reúnem. Falta uma pessoa. É Cata-
rina, que casou o mês passado com Collin de Greux e agora
mora na aldeia vizinha, do outro lado do riacho.
Papai Jacques está preocupado. Diz que o Sr. Roberto de
Saarbruck o obrigou a assinar, em nome da aldeia, um papel
A VIDA DE JOANA D'ARC 69
pelo qual ele fica comprometido a lhe pagar muito dinheiro por
ocasião das festas de S. Miguel, para que os soldados daquele
senhor defendam Domrémy dos salteadores e aventureiros.
Mamãe Isabel queixa-se des filhos. Pedrinho e Joãozinho sem-
pre voltam do colégio de Maxey todos lanhados, às vezes san-
grando, e com as roupas sujas de lama. Continuam a brincar de
guerra com os rapazes da aldeia vizinha. Sempre a mesma his-
tória de borgonheses contra armagnacs.
Joana nada ouve e nada vê. Seu pensamento está voltado para
Deus e para os santos.
Ela não esquece as palavras de S. Catarina e S. Margarida.
— Toma o estandarte em nome do Rei do céu, toma-o com
coragem, que Deus te ajudará.
Mas como ela há de fazer isto se é uma pobre rapariguinha
que não sabe andar a cavalo, que não sabe guerrear?
Na cama Joana torna a pensar na estranha ordem. As vozes
não cessam. Joana, vai para França! Joana, toma do estandarte!
Joana, tem pena da França que está sem rei!
Joana adormece pensando nos santos.
No dia seguinte encontra o pai de cara sombria.
À hora da primeira refeição ele conta o sonho horrível que
teve:
— Sonhei que vi a Joana sair a cavalo com os soldados, ves-
tida de homem...
Todos olham para ele, surpreendidos. Joana sente um sobres-
salto, porque o sonho do pai coincide com a vontade dos santos.
Jacques D'Arc dá um soco na mesa. Os pratos tremem. O vi-
nho vermelho salta dos copos e mancha a toalha.
— Se isso acontecesse, com estas mãos que Deus me deu, eu
afogava Joana no rio!
À tarde, antes de ir para o campo, Joana se lembra de S.
Remígio, padroeiro da aldeia. Tio Henrique lhe contou a histó-
ira do bem-aventurado arcebispo que batizou o Rei Clóvis.
Se S. Remígio se lembrasse de descer do céu para coroar
e sagrar o pobre Delfim que está metido no seu castelo de
Chinon?
Joana entra na igreja.
XVIII

A I N S P I R A Ç Ã O DE S. REMÍGIO

AJOELHADA ao pé da imagem de S. Remígio, depois de orar,


Joana fica pensando na história deste santo. Foi também tio
Henrique que lhe contou.
S. Remígio coroou um rei. Se S. Remígio andasse agora pela
Terra, ele havia de levar o Delfim a Reims para o sagrar rei.
Há muito, muito tempo, certo eremita ouviu uma voz que
saía dum exército de anjos:
— Deus olhou a terra e ouviu o gemido dos que estão acor-
rentados. O Senhor quebrará as suas cadeias, a fim de que seu
nome seja proclamado às nações e que os povos e os reis se
reúnam para o servir. Cilínia terá um filho, que será a salva-
ção do povo.
Cilínia era velha. O marido dela era cego. Mas Cilínia deu
à luz uma criança. E com o leite que dava a seu bebê, esfregou'
os olhos do cego, que tornou a ver a luz do dia.
Essa criança que os anjos tinham anunciado ganhou o nome
de Remígio.
Remígio era muito piedoso. Passou sua mocidade em Laon,
praticando todas as virtudes cristãs. Quando completou vinte e
dois anos, ficou vago o bispado de Reims, porque havia morrido
o bem-aventurado Bispo Bennade. O povo em massa designou o
moço Remígio para ocupar o lugar. Ele, entretanto, recusou, di-
zendo que a carga era pesada demais para seus ombros frágeis
de moço. Mas um raio de luz desceu de repente do céu sobre a
cabeça de Remígio. Um licor divino se derramava ao mesmo
tempo sobre seus cabelos, que se inundaram dum perfume ma-
ravilhoso nunca antes sentido.
Remígio sentou-se na cadeira episcopal. Mostrou-se liberal nas
esmolas, zeloso, piedoso c justo. Despertou a admiração dos ho-
mens.
A V I D A DE JOANA D'ARC 71

Naquele tempo Clóvis Rei da França, era pagão. Os seus ca-


pitães e soldados também não conheciam o Deus único e verda-
deiro. Um dia, às vésperas duma grande batalha contra os ale-
mães, Clóvis invocou o nome de Jesus Cristo. No dia seguinte
obteve uma grande vitória. Depois, sua mulher, a santa Rainha
Clotilde, insistiu para que ele se fizesse batizar pelo bem-aven-
turado bispo de Reims.
Sabedor do desejo do rei pagão, o Bispo Remígio o instruiu,
dizendo-lhe como devia renunciar a Satanás e às suas pompas.
Disse-lhe da onipotência de Deus e do sacrifício de Jesus.
Como se aproximavam as festas da Páscoa, o bom Bispo Re-
mígio ordenou ao rei pagão que fizesse jejum, segundo o cos-
tume dos fiéis.
No dia da Paixão de Nosso Senhor, na véspera do batismo do
rei, Remígio levou Clóvis e a rainha a um oratório consagrado
a S. Pedro, príncipe dos apóstolos. De súbito a capela toda se
encheu duma claridade indescritível. E do meio dessa claridade
saiu uma voz: "A paz seja convosco. Não tenhais medo, sou eu.
Permanecei em meu amor."
A luz desapareceu, mas ficou na capela um perfume suavís-
simo. O Bispo Remígio, com o rosto iluminado dum clarão di-
vinal, profetizou:
— Clóvis e Clotilde, vossos descendentes estenderão os limi-
tes do reino. Elevarão a Igreja de Jesus Cristo e triunfarão sobre
as nações estrangeiras, contanto que, não abandonando a virtu-
de, não se afastem nunca dos caminhos da salvação, não envere-
dem pela estrada do pecado e não se deixem cair. nas garras
desses vícios mortais que derribam os impérios e transferem a
dominação dum povo para outro.
Tudo se prepara para o batismo. Forram de tapetes finos as
mas que vão do palácio até a igreja. As casas ostentam estan-
dartes e guirlandas. O povo está alegre.
O cortejo sai do palácio. O clero vai na frente, abrindo a
marcha com os santos evangelhos, as cruzes e as bandeiras. Can-
tam-se hinos religiosos. Vem depois do clero o bispo, condu-
zindo o rei pela mão. Depois a rainha, seguida do povo.
O rei pergunta ao bispo:
— É este o reino de Deus que me prometeste?
Remígio lhe responde:
72 ERICO VERÍSSIMO

— Não. Mas é a entrada da estrada que leva aos céus.


O cortejo chega ao batistério. O sacerdote que traz os santos
óleos, detido pela multidão, não pode chegar até o rei. Há um
momento de angústia. A espera é dolorosa. Os minutos passam.
Começam os cochichos.
Mas o bispo ergue os olhos para o céu e ora em silêncio, com
.os olhos cheios de lágrimas.
Então uma pomba branca como as nuvens mais puras desce
do céu trazendo no bico uma ampola cheia do santo óleo da
crisma. Um perfume delicioso se exala da ampola. O santo bispo
a toma do bico do pássaro, asperge com o óleo a água batismal.
A pomba desaparece.
Cheio de alegria diante dum milagre tão esplêndido, o rei
renuncia a Satanás e as suas pompas, pede insistentemente o
batismo e se inclina sobre a pia.
Desde então os reis da França são sagrados com a unção di-
vina trazida do céu pela pomba. A santa ampola que a contém
está guardada na Igreja de S. Remígio em Reims. E por um
milagre de Deus, a ampola nunca se esvazia.. .
Joana pensa na história maravilhosa.
Pobre Delfim! Quando achará ele um general para levá-lo a
Reims? Quando os santos óleos cairão sobre sua cabeça desam-
parada? Quando?
Joana faz um pedido a S. Remígio: Que ele lhe dê coragem
e inspiração para cumprir a ordem dos santos. Que ele interceda
junto a Deus para que um dia os santos óleos perfumem os
cabelos de Carlos de Valois. . .
XIX

A O R D E M DO A R C A N J O

QUANTOS anos se passaram desde que Joana ouviu a voz lu-


minosa e viu as visões queridas pela primeira vez? Dois? Três?
Ela não sabe. . . A seu redor a vida continua. Em sua casa hou-
ve um longo período de tristeza. Num inverno muito frio e
escuro Deus Nosso Senhor sentiu que estava precisando de mais
um anjo na sua corte e mandou seus mensageiros à Terra es-
colher uma jovem. Foi numa noite de neve e ventania que os
anjos do Senhor chegaram a Greux e pairaram sobre a casa
de Colin. Viram Catarina, a irmãzinha de Joana, e acharam
que Deus havia de ficar contente se a tivesse no seu exército
branco. E assim, enquanto Colin estava de visita a vizinhos,
eles levaram a moça para o céu. Agora o corpo de Catarina
acha-se enterrado no pequeno cemitério da igreja junto do jar-
dim de seus pais. De sua janela Joana pode ver a sepultura sin-
gela, um monte de terra com uma cruz tosca.
Das coisas do mundo, só desta é que Joana tem uma lem-
brança viva. O mais se lhe esfuma aos olhos da memória, como
se estivesse por trás de um nevoeiro.
Joana, animada pelas visitas repetidas das santas, vai sen-
tindo nascer dentro de si uma alma nova, corajosa e forte.
Interessa-se por tudo quando ouve dizer da sorte da França.
Escuta com atenção o que se fala do rei.
Um dia o Arcanjo surge e lhe ordena:
— Filha de Deus, tu conduzirás o Delfim a Reims para que
ele ali receba a sua digna sagração.
E Joana imediatamente se lembra de S. Remígio e da pom-
ba branca que trouxe no bico a ampola com o óleo sagrado.
Mas, por que será que Deus, o grande e bom Deus escolheu
a ela, pobre camponesa, para esta missão tão alta e tão difí-
cil? Tudo parece um sonho. . .
74 ERICO VERÍSSIMO

Joana pensa e mais pensa. De dia e de noite. De noite e de


dia. Reza e pede conselho a Deus. E Deus em troca lhe for-
talece mais e mais a alma.
Uma noite papai Jacques volta de Vaucouleurs, a cidade mais
próxima de Domremy, onde fora falar com o Sr. Roberto de
Baudricourt, a respeito de negócios da aldeia.
A V I D A DE J O A N A D'ARC 75
— Um homenzarrão decidido, aquele!—comenta ele. — Fala
grosso, tem ares de mandão e parece valente como trinta!
Os meninos, que o escutam atentos, ao ouvirem falar em va-
lentia, crivam o pai de perguntas.
— Tem muitos soldados?
— De que lado é ele? Do Delfim ou do Duque de Borgonha?
— Do Delfim, meu filho.
Joana vai dormir pensando no Sr. de Baudricourt.
No outro dia S. Miguel lhe aparece com estas palavras:
— Filha de Deus, irás ao Cap. Roberto de Baudricourt, na
Cidade de Vaucouleurs, para que ele te dê gente que te conduza
até o Delfim.
Joana se alegra. Ficara toda a noite a pensar no capitão, cer-
ra de que era a pessoa que a podia ajudar.
Agora aqui está a menina D'Arc indecisa no seu jardim, sem
saber que fazer. . . Como vai pedir para ir a Vaucouleurs?
— Papai, eu quero ir procurar o senhor Cap. Roberto de Bau-
dricourt. . .
Assim? Claro que não! Porque papai perguntaria:
— Para quê, menina boba?
— Para ele me levar até o Delfim.
— Perdeste o juízo?
Oh! Não. É melhor não dizer nada a papai. Joana lembra-se
do sonho que ele teve e da ameaça que proferiu ao contá-lo à
família.
Joana se põe a orar. E quando diz a última palavra da oração,
nasce-lhe na mente uma idéia.
Em Burey-en-Vaulx, à margem esquerda do Mosa, mora Du-
rand Lassois, que casou com a filha duma irmã de mamãe Isa-
bel. Joana gosta dele. Devia chamar-lhe primo. Mas como Du-
rand é mais velho e tem um ar grave e doce, Joana chama-lhe
titio.
Ele não seria capaz de ajudá-la?
A mulher de Durand está esperando um nené. . . Não é mes-
mo um pretexto maravilhoso?
Joana um dia se aproxima do pai e pede:
— Papai, posso ir até Burey-en-Vaulx visitar tio Durand e
prima Joana?
76 ERICO VERÍSSIMO

Jacques diz que sim. Joana vai. O lugarejo em que Durand


mora com sua mulher fica perto de Domrémy.
— Olhem a Joana! Mas que é que tu andas fazendo por aqui,
menina?
Joana chega, cumprimenta os parentes, vai à igreja orar e
depois de pedir coragem a Deus se dirige ao "tio":
— Titio Durand, eu quero que o senhor me leve a Vaucou-
leurs.
— A Vaucouleurs? Mas para quê, menina?
— Quero falar com o Cap. de Baudricourt.
— Tu?
Durand solta uma risada sonora. O seu canário que pula na
gaiola ao pé da porta começa a cantar.
— Não ria, titio. Tenho uma coisa muito importante a dizer
ao capitão.
— Mas que coisa é essa?
— Titio, o senhor nunca ouviu falar naquela profecia: "uma
mulher desgraçará a França e uma donzela a salvará"?
Joana fala com firmeza. Tio Durand coça o queixo, impres-
sionado, e fica pensando, sério, de olhos baixos... Estas rapari-
guinhas às vezes têm cada idéia!...
O canário canta. Joana espera. Tio Durand hesita.
XX

A PRIMEIRA VIAGEM A VAUCOULEURS

Tio DURAND atrela o cavalo na carroça, Joana salta para dentro


dela e a viagem começa.
Vão conversando durante todo o tempo. Tio Durand fala
no filho que está para chegar. Joana conta histórias de Domré-
my. E quando dão acordo de si, já aparecem perto as primeiras
casas de Vaucouleurs.
À porta do castelo do Cap. Roberto de Baudricourt, Durand
Lassois faz parar a carroça.
— Olha, Joana, eu não quero me meter em complicações. Sei
que o Sr. de Baudricourt é brigão e bruto. Agora eu te d e i x o . . .
Joana se despede do tio.
E aqui vai ela no seu vestidinho vermelho todo cheio de re-
mendos. Caminha pela ponte levadiça como se caminhasse pe-
los carreiros familiares de Domrémy. Que força misteriosa des-
via dela a atenção dos guardas? Que misteriosa vontade faz que
eles fiquem imóveis em seus lugares e não impeçam a menina
de passar?
Joana entra no castelo. Será que os anjos a guiam? Porque
ela vai sem errar, sobe escadas, caminha por corredores longos
e finalmente entra numa grande sala. A luz do sol jorra pela
janela aberta. Grandes reposteiros de veludo verde.
Dois homens se acham conversando junto duma mesa. Em
torno deles há muitos outros cavaleiros armados.
Joana vai direto ao Cap. Roberto de Baudricourt, que se es-
panta.
Estarão dormindo os seus guardas? Por que deixaram entrar es-
ta pastorinha maltrapilha?
Joana pára diante do enorme capitão.
— Eu venho da parte do Messire para lhe pedir mande dizer
ao Delfim que se contenha e não dê combate aos ingleses.
78 ERICO VERÍSSIMO

Roberto de Baudricourt cruza os grandes braços musculosos.


Olha muito sério para Joana e depois desata a rir.
— Mas que algaravia é essa, rapariga?
Joana repete as palavras que o Arcanjo lhe sussurrara ao ou-
vido. E é com calma que continua:
— Antes da terceira quarta-feira da Quaresma, Messire lhe
mandará socorro. Porque o reino na verdade não pertence ao
Delfim. Mas Messire quer que ele seja feito rei. Apesar de seus
inimigos, Carlos de Valois será coroado rei. E quem o vai levar
à sagração, sou eu.
A risada de Roberto de Baudricourt ecoa no grande- salão. Os
outros homens, para lhe serem agradáveis, riem também.
— Mas quem é esse Messire? — pergunta o capitão.
— O Rei do Céu, — responde Joana.
Roberto de Baudricourt continua a rir. De repente corta a ri-
sada, fica sério e diz a um de seus homens:
— Mandem levar esta rapariga de volta aos pais. Mas pri-
meiro lhe apliquem umas palmadas.
Joana é levada para fora do salão e para fora do castelo. Pro-
cura tio Durand, mete-se na carroça dele e volta para Burey-en-
Vaulx, onde se demora oito dias. Depois torna a Domrémy.
E passa a viver como num sonho. Pensando no Delfim. Nos
exércitos. Nos combates. Na vitória. Na coroação. E sempre
com esperança em Roberto de Baudricourt.
Um dia diz a um dos camponeses:
— Há entre Coussey e Vaucouleurs uma menina que daqui
a um ano levará o Rei da França à sagração. ..
O camponês contém a custo uma gargalhada.
Todos na aldeia notam os modos estranhos de Joana.
Alguns dizem que ela está enfeitiçada.
— É obra das fadas, — afirma a sua madrinha Jannet Aubrit.
— Sim, das fadas!—repetem muitos.
Isto não pode ser natural. A menina está perdida.
Mas os dias passam e o sonho maravilhoso de Joana se pro-
longa.
XXI

A FUGA PARA NEUFCHÂTEAU

PARECE que Bedford quer mesmo tomar conta de toda a Fran-


ça, em nome do Rei da Inglaterra. Agora os seus olhos se vol-
tam para a castelania de Vaucouleurs. Para dominá-la, ele manda
equipar mil homens d'armas que entrega ao comando de An-
tônio de Vergy.
Aqui marcham neste momento os soldados borgonheses sob
suas ordens. Por onde passam vão deixando um rasto de fogo
e de sangue. Incendeiam casas, derrubam lavouras, matam ho-
mens . . .
Quando o vigia da torre de Domrémy os divisa a boa dis-
tância, na curva do caminho, faz um sinal para a igreja e o
sino começa a badalar desesperadamente.
Agora ninguém mais pensa no castelo da ilha. O seu escon-
derijo já está conhecido. O remédio é fugir, fugir para bem
longe e esperar que passe a onda de morte e de destruição.
Os camponeses com suas mulheres e filhos saem de suas casas
gritando, como marimbondos assanhados que fogem das colmeias
incendiadas.
Os velhos se arrastam. Os doentes são carregados em braços.
As carretas se enchem de móveis e de trouxas. Os que não têm
carreta vão a pé, arrastando os mulambos.
Há choro e imprecações por todos os lados.
E o exército dos retirantes lá vai. É uma fila comprida que
se estende pela estrada. Carroças, bois, vacas, porcos, cavalos e
homens de mistura. Seguem todos para Neufchâteau.
Chegam ao cair da noite.
A família de Joana vai parar no albergue da mulher de João
Waldaires, que é uma velha de cara enrugada, feia e ríspida.
80 ERICO VERÍSSIMO

A hospedaria é barulhenta. Soldados e monges, camponeses


e comerciantes. Viajantes misteriosos e mulheres estranhas. Jo-
gam, comem, bebem e conversam ao redor das mesas. Explo-
dem risadas. Às vezes há discussões violentas: brilham punhais.
Joana vive indiferente a tudo. Para ela só existe uma coisa
importante: a sua missão. Quando toda essa balbúrdia cessar,
ela há de ir de novo ao Cap. de Baudricourt.
Neufchâteau é um lugar bonito. Tem dois velhos conventos
onde à tardinha os monges passeiam no jardim por entre ci-
prestes, cantando cânticos melancólicos que sobem para o céu.
Joana fica a escutá-los, encantada.
Os dias passam. O gado de Jacques D'Arc está no pátio do
albergue. Joana leva-o a pastar nas campinas dos arredores.
Quando volta para a hospedaria, ajuda a velha Waldaires nos
trabalhos domésticos.
Quando sente necessidade de aliviar a alma, vai aos monges
e se confessa.
No fim de duas semanas Jacques D'Arc e a família voltam
para Domrémy.
Ao chegarem à entrada da aldeia, ele se detém e olha. O seu
coração se confrange. Isabel chora. Os rapazes ficam olhando,
de boca aberta, tristonhos. . .
Casas incendiadas. Lavouras derrubadas. Galos cantando, lon-
gamente, tristemente sobre ruínas. Silêncio de cemitério.
Outros camponeses voltam. Quase todos dormem ao relento
quando a noite chega.
No outro dia recomeça a reconstrução. Não é a primeira.
Não será a última. . .
Casas novas vão brotando aos poucos no meio dos escombros.
Os camponeses de Domrémy têm o coração forte. Trabalhara
cantando. Pensam nas colheitas futuras. São felizes de novo.
A normalidade volta à aldeiazinha. Já se vêem caras alegres:
risos.
As vinhas tornam a reverdecer. Homens e mulheres saem pa-
ra o campo. As raparigas farandulam outra vez, pelos bosques,
vão dançar e colher flores à beira do Mosa.
Uma tarde chega um viajante a Domrémy e conta que Or-
léans, coração da França, está sitiada pelos ingleses.
XXII

ADEUS, D O M R É M Y !

Os VIAJANTES que passam pela aldeia trazem notícias de Or-


léans. O cerco continua. A cidade sofre. O seu duque está pri-
sioneiro. A peste irrompeu nos subúrbios pobres. Cadáveres
insepultos empestam o ar e a água. Mulheres e crianças gemem
de fome. O Anjo da Morte passeia pelas ruas desertas da cida-
de sitiada.
Joana escuta estas histórias negras. O coração lhe dói de pena.
Ela não disse ao Cap. Roberto de Baudricourt que os socorros
mandados por Messire chegariam ao Delfim antes da terceira
quarta-feira da Quaresma? Então? O tempo passa. As vozes re-
petem a ordem de ir para a França.
Janeiro principia. Um vento gelado sacode as árvores despidas
de folhas. Nos bosques de carvalhos da profecia de Merlin há
flocos de neve que o tíbio sol não consegue dissolver. O burri-
nho tirita no estábulo. Morreram as rosas do jardim. E a can-
tiga do Mosa não é mais um embalo doce e sim um gemido
trêmulo de quem está com frio e não tem agasalho.
Joana pensa no Cap. de Baudricourt. É preciso procurá-lo de
nuvo, custe o que custar.
Prima Joana Lassois dentro de poucos dias vai ganhar o seu
bebê...
Papai naturalmente dá licença para eu ir ajudar a cuidar de-
la,— pensa Joana.
E Jacques permite mesmo. Faz um mundo de recomendações:
— Tome cuidado com os lobos. Se enxergar algum grupo de
soldados, esconda-se. Seja obediente e boa.
Mamãe Isabel também vem com os seus conselhos:
— Agasalha-te bem, minha filha. Não durmas de janela aber-
ta. Não te resfries.
Uma tarde Joana monta no seu burrinho e segue para Burey.
A VIDA DE JOANA D'ARC 83

Aqui vai ela saindo da aldeia. Com o pressentimento de que


nunca, nunca mais tornará a ver estas casas, estas gentes, estas
colinas, estas árvores.
— Adeus, Joaninha, boa viagem! — exclamam os seus amigos.
Joana acena com a mão e com a cabeça.
— Adeus!
Despede-se dos conhecidos. Não tem coragem de passar pela
casa de Hauviette. Pensa na amiguinha de cabelos louros. Como
sua carinha ficará triste se ela souber que a sua companheira
vai p a r t i r . . .
O burrinho trota. E em cima dele vai uma menina triste de
vestido vermelho. Berra a cor viva contra o branco dos caminhos
cobertos de neve.

Um sol frouxo inunda a paisagem. O Mosa marulha. E a sua


voz macia de água parece que está dizendo assim:
— Adeus, Joana, adeus. Não te lembras de quando eras pe-
quena e vinhas brincar nas minhas águas e ficavas muito admi-
rada quando vias o teu rostinho no meu espelho? Olha, Joana,
diz adeus a tudo isto. Diz adeus à Árvore-das-Fadas, à tua casa,
à igrejinha, ao cemitério, à Nossa Senhora de Bermont, a t u d o . . .
Segue, Joana, segue o teu caminho, que eu te acompanharei até
onde Deus quiser. Se eu pudesse correr à vontade, eu iria sem-
pre contigo. Mas não posso, tu sabes, sou prisioneiro deste leito.
84 ERICO VERÍSSIMO

Mas Joana não escuta a voz do rio porque está ouvindo as vo-
zes santas que falam dentro dela.
Em Greux, a aldeia vizinha de Domrémy, ela passa por Men-
gette.
— Joana, aonde vais?
— Vou para Vaucouleurs! Adeus, Mengette! Eu te recomendo
a Deus!
O burrinho continua a trotar. Joana mergulha nos seus pen-
samentos. E só desperta nas proximidades de Burey.
Fica-se várias semanas na casa dos primos. E depois que o
bebê nasce, depois que passa o alvoroço dos primeiros dias, Joana
pede a Durand Lassois que a acompanhe de novo a Vaucouleurs.
O bom tio compõe uma cara fingida de zanga e diz:
— Não levo!
Joana torna a pedir. Durand Lassois quer manter a carranca
mas a felicidade que lhe traz a presença daquela criaturinha que
esperneia e berra no berço lhe inunda a alma. E ele não sabe
resistir aos pedidos de Joana. Sorri e vai atrelar o melhor cavalo
na carroça.
Seguem uma manhã para Vaucouleurs.
Durand vai todo encolhido de frio. Mas Joana não sente o
inverno. Não ouve o que o companheiro de jornada lhe diz. Não
vê a paisagem desolada. Só tem ouvidos para suas vozes inte-
riores. Só tem olhos para as suas visões queridas. Só tem alma
para sentir a desgraça da França.
XXIII

OUTRA V E Z EM VAUCOULEURS

E M VAUCOULEURS Joana vai de novo ao castelo de Roberto de


Baudricourt. Encontra-o um tanto mudado. O homenzarrão já
não solta as suas grandes gargalhadas que sacudiam os repostei-
ros e faziam os móveis trepidar. Já não fala em mandar dar pal-
madas na camponesinha travessa. Agora ele a escuta, sério, aten-
cioso. . .
— Capitão, — diz Joana — Deus mandou que eu fosse ao gen-
til Delfim, que deve ser e é o verdadeiro Rei de França. Ele me
deve dar gentes d'armas para eu levantar o cerco de Orléans e
levá-lo depois à sagração em Reims.
Levantar o cerco de Orléans? O Cap. de Baudricourt franze a
testa. . . Esta garota de olhos ingênuos? Bah!
Mas manda Joana em paz, sem resolver nada.
A menina sai do castelo e volta para casa. Está hospedada
com Henrique Leroyer e sua mulher Catarina — gente boa.
Para matar o tempo, Joana fia. O que fia, vende. O dinheiro
que tira, dá aos pobres.
Enquanto permanece em Vaucouleurs vai repetidamente à
igreja. Catarina a acompanha. A mulher de Henrique Leroyer
gosta de Joana. Nunca viu menina tão quieta e tão piedosa. As
outras raparigas da idade dela — acha Catarina — andam às vol-
tas com festas, com vestidos, com rapazes. Joana é diferente.
Reza e fia. Nunca pronuncia em vão o nome de Deus. Não faz
juramentos. Não se irrita. Não se queixa. É mansa, obediente,
compassiva.
Agora a caminho da igreja as duas conversam. Catarina fala
na sorte da França. Pobre terra! Como os tempos são maus! Há
de chegar o dia em que não ficará pedra sobre pedra. Joana
sorri e pergunta:
86 ERICO VERÍSSIMO

— Nunca ouviu falar naquela profecia que diz que a França,


desgraçada por uma mulher, será salva por uma donzela?
Catarina sacode a cabeça afirmativamente.
— Sim. Mas onde está a donzela libertadora?
O sorriso de Joana é vago e enigmático.
Na cripta da capela de Vaucouleurs existe uma velha ima-
gem da Virgem a que os habitantes do lugar chamam Notre-Dame-
de-la-Voüte. A santa faz milagres. É a padroeira dos pobres e
dos desgraçados.
Joana fica horas e horas ajoelhada na cripta, ao lado da ima-
gem. É aqui que as suas santas a visitam, agora, de preferência.
É aqui que Joana cada dia que passa ganha mais coragem para
levar avante a sua missão.
Às vezes vai também se confessar ao Pe. João Fournier, cura
de Vaucouleurs.
E a todas as pessoas com quem fala Joana, repete sem temor:
— Preciso ir até o Delfim. É vontade de Messire, o Rei do
Céu, que eu vá até ele.
E a história estranha da camponesinha de Domrémy se es-
palha por Vaucouleurs.
João de Metz, um homem d'armas da guarnição da cidade,
curioso, um dia se aproxima de Joana.
— Então, minha pequena, que é que estás fazendo aqui? —
pergunta ele, com ar meio sério, meio brincalhão. E, para expe-
rimentá-la, indaga, também. — Então, que dizes? É preciso bo-
tar o rei para fora do reino para todos ficarmos ingleses?
Joana ergue os olhos para o guerreiro. É um homem moço.
Deve ter no máximo vinte e oito anos.
— Eu vim aqui — responde ela — para pedir a Sire Roberto
que me leve ou me mande levar ao Delfim. Mas o capitão não
faz caso de mim nem de minhas palavras.
João de Metz está interessado. Olha firmemente para a me-
nina que se acha na sua frente metida no seu vestido vermelho
e grosseiro. Que criaturinha esquisita!
Joana, animada pelo olhar de simpatia, prossegue:
— Preciso estar com o Delfim antes da terceira quarta-feira
da Quaresma, nem que seja preciso eu ir até lá de joelhos!
João de Metz, surpreendido, olha sem dizer palavra. Joana
continua:
A VIDA DE JOANA D'ARC 87

— Ninguém no mundo, nem príncipe, nem duque, nem a fi-


lha do Rei da Escócia pode recuperar o Reino de França. E o
único socorro que existe está em mim. Eu preferia ficar em casa
de minha mãezinha, fiando e cuidando dos bichos do quintal,
porque esta era a minha vida. Mas preciso ir, preciso mesmo.
E se vou fazer isso é porque Messire quer que eu faça.

— Mas quem é Messire?—pergunta João de Metz.


— É Deus.
— Pois eu te prometo e te dou a minha palavra que, se Deus
me ajudar, eu te levarei até o rei.
E põe a sua mão na mão de Joana, em sinal de juramento.
— Quando queres partir?—pergunta ele.
— Hoje será melhor do que amanhã; e amanhã melhor do
que depois.
88 ERICO VERÍSSIMO

Que estranha força faz Joana, a pobre aldeã, dizer estas pala-
vras decididas de sabedoria? Por que falou ela na filha do Rei
da Escócia? Por que, se mal compreendia as conversas que an-
davam espalhadas pela cidade a respeito da França e da Ingla-
terra, dos reis e dos seus capitães?
— Mas vais viajar assim com estas roupas?
João de Metz olha Joana de alto a baixo. Seria coisa de cha-
mar a atenção sair com esta menina metida num berrante ves-
tido vermelho.
— Eu me visto de homem! —decide Joana.
Despede-se de João de Metz e volta para casa.
Uma tarde Joana e Catarina estão fiando serenamente em si-
lêncio quando Roberto de Baudricourt e o Pe. João Fournier
entram na casa de Henri Leroyer. Pedem a Catarina que se re-
tire. Ela obedece.
O padre está com à sua estola. Recita as palavras latinas que
querem dizer: '
— Se és coisa ruim, afasta-te. Se és coisa boa, aproxima-te.
Em seguida o cura respinga com água-benta o rosto de Joana.
Ele sabe que se o diabo na verdade mora dentro dela, a menina
imediatamente se jogará ao chão, escabujando, em contorções
horrendas.
Mas Joana permanece serena. Roberto de Baudricourt a con-
templa, embasbacado. Foi ele que trouxe o padre. Desconfiou
que Joana estivesse possuída do demônio.
No entanto aqui se acha ela muito tranqüila, parada na frente
do cura. Seus olhos são doces, olhos de anjo e não de demônio.
Os dois homens se retiram em silêncio.
XXIV

"DEUS A P L A I N A R Á O C A M I N H O . . . "

Os DIAS passam. Baudricourt não resolveu ainda mandar levar


Joana ao Delfim.
Joana fia, ora, ajuda os pobres, fala com os seus santos e
espera.
Faz diversas viagens a Burey. Vai, volta. Torna a ir. Torna a
voltar.
Chegam notícias de novas derrotas dos franceses.
João-de Metz cumprirá a sua palavra?— pergunta Joana a si
mesma.
E um dia, não se podendo conter, veste as roupas de seu pri-
mo Durand Lassois e decide ir até o rei. O bom "titio" a acom-
panha. Um habitante de Vaucouleurs oferece-se para guiá-los.
Vão.
Chegam à capela de S. Nicolau, a uma légua da cidade. Ao
fiado dela escurece o grande bosque de Saulcy.
De repente Joana resolve voltar. Que lhe terão sussurrado ao
ouvido as suas vozes amigas?
Voltam.
De novo Vaucouleurs e a espera.
Enquanto isso, Baudricourt, como tinha então a certeza de que
Joana não estava possuída do demônio, escrevera a Carlos de
Valois contando o que vira e ouvira da estranha menina de
Domrémy.
E agora justamente chega por um mensageiro a resposta do
Delfim. Diz que Sire Roberto de Baudricourt pode enviar a ra-
pariga a Chinon.
Quando Joana vem a saber da notícia, ergue os olhos para o
céu, num agradecimento. Tudo vai se passar como ela queria e
esperava.
No seu velho casarão senhorial, de Nancy, assombrado pelos
fantasmas da velhice e duma doença crônica, vive o velho Du-
90 ERICO VERÍSSIMO

que de Lorena. Tinha uma esposa dedicada e fiel, que expulsou


de casa para acolher como amante a bela Alison du Mai, com
a qual agora vive.
O remorso e o medo da morte são as duas visitas que o duque
recebe com mais freqüência. Eles chegam e ficam parados na
frente da poltrona do doente e às vezes nem o ruído de vozes
humanas, nem a trepidação das festas os conseguem espantar.
A notícia dos milagres de Joana chegam aos ouvidos do ve-
lho Duque, que resolve mandar chamar a menina de Domrémy.
Atendendo ao convite do velho senhor de Lorena, Joana ca-
valga até Nancy em companhia de Durand Lassois e Jacques
Alain. João de Metz os acompanha até Toul.
Joana chega à presença do duque, que lhe pergunta:
— És capaz de me restituir a saúde?
A VIDA DE JOANA D'ARC 91

A menina contempla o velho tranquilamente e depois de al-


guns segundos responde:
— Eu não sei se posso airar o senhor. Só sei que Deus não
lhe restituirá a saúde enquanto o senhor não abandonar a mu-
lher com quem agora vive, trocando-a por sua esposa legítima.
O duque fica vermelho. Morde o lábio. Olha para os lados,
atarantado. Joana está serena. Seus olhos azuis são tão puros e
tão límpidos que o duque revê neles, como num espelho mágico,
todos os seus pecados.
Antes de partir, Joana, que foi informada da vida e dos re-
cursos do duque, lhe pede com veemência:
— Dê-me o seu filho, o herdeiro de Lorena, para que ele e
os seus soldados me levem até o Delfim. Em recompensa eu
pedirei a Deus pela sua saúde, duque!
Ora, o senhor de Lorena deseja ardentemente a cura. Mas a
menina de Domrémy o decepcionou. Tocou na sua corda sen-
sível. Feriu-o no seu orgulho. E com que decisão, com que co-
ragem! No entanto ele hesita^ luta com seus pensamentos, com-
para, pesa, conjetura. . . Se a menina é uma impostora e ele
lhe dá o filho com seus soldados, todos hão de rir do seu logro,
do seu ridículo. Mas por outro lado, se ele nega e Joana D A r c
é realmente uma enviada do Céu, Deus nunca, nunca lhe devol-
verá a saúde perdida. Que fazer?
O velho duque ainda fica por muitos minutos sem resolver
nada. Por fim, julgando descobrir uma solução conciliatória, diz
para um de seus homens:
— Dê a essa moça quatro francos e um cavalo negro!
E Joana volta para Vaucouleurs com os presentes do duque.
De novo na cidade de Roberto de Baudricourt, escreve aos pais,
pedindo-lhes perdão por havê-los abandonado.
Agora muita gente começa a ter fé em Joana DArc. Ouvem-
na com mais atenção. Contemplam-na com ar mais respeitoso.
Espalha-se a notícia de que a estranha camponesinha está pres-
tes a ir a Chinon à procura do Delfim.
Então se faz entre os habitantes da cidade uma coleta de di-
nheiro com o fim de comprar para Joana vestimentas masculinas
e arreios completos de guerra.
Roberto de Baudricourt lhe dá uma espada.
92 ERICO VERÍSSIMO

João de Metz, Bertrand de Poulengy, João de Hovecourt e


mais seus criados devem acompanhar Joana na longa viagem.
Fala-se que os caminhos estão povoados de salteadores. Con-
tam-se os horrores das noites nos descampados. Assaltos, morti-
cínios, crueldades.
Fevereiro de 1429.
O pequeno grupo sai de Vaucouleurs rumo da França.
Muitas pessoas assistem à partida. Os bons amigos Henrique
e Catarina Leroyer choram ao se despedirem da hóspede de tantos
dias. Durand Lassois enxuga disfarçadamente uma lágrima.
Alguém pergunta a Joana:
— Como tens coragem de fazer uma jornada tão arriscada?
Não sabes que em todas as partes há exércitos em guerra?
A menina sorri, olhando para o céu.
— A estrada está aberta diante de mim, — responde. — Se en-
contrarmos homens d'armas, Deus saberá aplainar o caminho para
que eu chegue salva até o Delfim. Porque esta é a minha missão,
O bando põe-se em marcha.
Baudricourt se despede de Joana com estas palavras:
— Vai! E aconteça o que acontecer!
A cavalgada se some na distância. E quando a noite desce, ela
segue em silêncio sob as estrelas.
XXV

A J O R N A D A

D E MÃOS DADAS com Mengette, Hauviette, João, Pedro e outros


meninos e meninas de Domrémy, Joana cantava e dançava ao
redor da Árvore-das-Fadas.
Hoje vai aqui em cima dum cavalo alazão alto e fogoso (ela
que só andava na garupa de seu burrico peludo e manso! ), via-
jando na companhia de guerreiros de verdade, através de campos
desolados pelo inverno.
Dizem que os caminhos estão infestados de bandidos e guer-
rilheiros. Para evitar encontros, o grupo de Joana se desvia da
estrada real e procura os atalhos, as veredas meaos freqüentadas.
A noite está fria. As estrelas palpitam. Os cavalos trotam. Os
homens guardam silêncio.
Joana está pensativa. Saudade da sua aldeia, de seus pais, de
sua casa, de seus companheiros? Está claro que ela os traz guar-
dados no coração; mas no fundo, bem no fundo, num lugar em
que agora todas aquelas coisas ficam escondidas, como se não
existissem. Porque todo o corpo dela está cheio deste grande
desejo: ver o Delfin , conseguir homens d'armas, libertar Or-
léans, coroar o rei em Reims, devolver Paris à França.
Joana quebra o silêncio: fala aos companheiros. E eles ficam
espantados vendo que a filha de Jacques D'Arc, esta rapariguita
de dezessete anos que não sabe 1er nem escrever, compreende
com uma nitidez luminosa a situação de sua terra e de seu rei.
Novo silêncio entre os viajantes.
O único ruído que se ouve é o das 'patas dos cavalos batendo
no chão, golpeando os seixos da estrada.
A cavalgada chega à margem direita do Marne. Avista-se em
cima duma colina o Monasterio de S. Urbano. Suas portas se
abrem para os viajantes.
94 ERICO VERÍSSIMO

No silêncio da abadia Joana encontra repouso. E no seu re-


pouso recebe a visita do Arcanjo, que a reconforta e deixa com
novas ordens e uma alma nova.
A noite avança. Os cavaleiros que acompanham Joana, dor-
mem. A moça fica de olhos abertos. Sabe que ao lado do mos-
teiro se acha a igreja onde se guardam as relíquias de S. Urbano.
A comoção lhe rouba o sono. Olha através da janela de seu
quarto. Lá fora se agitam sombras leves e fundas. As estrelas'
agora brilham com mais força. Além, muito além destes cam-
pos fica Chinon. Em Chinon vive o pobre Carlos de Valois,
cercado de amigos hipócritas, sem dinheiro, sem esperança, sem
glória...
Oh Deus! Quando chegará o momento da libertação?
Na manhã seguinte Joana assiste a uma missa conventual.
Poucos minutos depois a companhia retoma a marcha. Fal-
tam ainda cento e vinte e cinco léguas.
Resolvem viajar de preferência à noite, por causa do perigo
dos encontros com destacamentos borgonheses.
Nas horas do descanso, Joana dorme vestida sobre as palhas
dos celeiros ou debaixo de árvores, ao relento. .
A VIDA DE JOANA D'ARC 95

João de Metz está sempre a seu lado. Uma vez a dúvida o


assalta:
— Mas será que vais fazer mesmo tudo o que dizes?
Joana fita nele seus olhos claros:
— N ã o tenhas medo. O que faço, faço por ordem de Deus.
Meus irmãos do Paraíso me dizem como devo me conduzir. Faz
já quatro ou cinco anos que Messire, por intermédio deles, me
diz que devo ir para a guerra, a fim de retomar o Reino de
França.
E a jornada continua. Às vezes neva. Quando os homens falam
sai fumaça de suas bocas. Joana se lembra por um instante de
sua casinha em Domrémy: a chaminé da cozinha lançando fu-
mo para o céu.
Os companheiros de viagem são alegres e gostam de brincar
com Joana. Eles a respeitam e a estimam, acreditam mesmo em
que ela é uma inspirada. Mas no fundo ainda sentem uma pon-
tinha de dúvida quando contemplam esta menina do campo me-
tida em roupas de pajem, esta pequena de olhos de bebê, rosto
sereno, ar inocente...
E lhe dizem, com voz grave, como se estivessem contando a
uma criança histórias assustadoras de gigantes e dragões:
— Oh! Os ingleses são ferozes. Grandes e valentes. Com um
golpe de espada podem partir uma pessoa ao meio.
Joana sorri:
— Não temam nada! — diz. — Em nome de Deus, eles não
podem fazer nenhum mal a vocês!
A cavalgada trota sempre e sempre. Avistam-se novos rios. O
Aube, o Sena, o Yone. Todos lembram a Joana o Mosa de sua
infância.
Em Auxerre a menina D'Arc ouve missa na Igreja de S. Es-
têvão.
Chegam ao Loire, que banha Gien.
Gien! Uma cidade francesa, obediente ao Rei de França!
Os homens gritam e cantam de contentamento. Acabam de
fazer setenta e cinco léguas em terra inimiga!
— Tivemos sorte em não encontrar inimigo pela frente! — diz
um dos homens da comitiva.
Joana responde:
96 ERICO VERÍSSIMO

— Dizes que tivemos sorte? Eu te digo que foi Deus que nos
protegeu.
A jornada continua. O inverno também. Noites terríveis, com
vento gelado e cortante como uma espada de fio fino.
O grupo chega a Fierbois.
Joana apeia do cavalo. Neste lugar é que se ergue o Santuário
de S. Catarina. Aqui a santa querida de Joana recebe os pere-
grinos e faz os seus milagres. Muitos guerreiros valentes que,
tendo invocado a santa, ganharam vitórias contra os infiéis, vie-
ram depor suas armas neste santuário.
Joana olha para as paredes da capela e vê escudos, armaduras,
elmos e gládios. E os anjos lhe contam em surdina ao ouvido a
história milagrosa de cada arma.
Em Fierbois Joana assiste a três missas.
Antes de pôr-se de novo a caminho, chama um dos compa-
nheiros e dita-lhe uma carta para o Delfim. Manda dizer que,
para ir em seu auxílio, ela percorreu cento e cinqüenta léguas
a cavalo e que precisa vê-lo a todo o custo, pois tem boas no-
tícias a lhe dar.
João de Metz sela a carta e a manda a Chinon, por mãos de
um mensageiro.
Ao meio-dia o grupo torna a partir.
As nuvens que toldavam o céu desde a tarde anterior se dis-
sipam. O sol brilha alegremente sobre os campos cobertos de
neve. Os viajantes vêem nisso um bom presságio.
E aqui vai a cavalgata rumo da cidade do Delfim.
Bem na frente, Joana D'Arc segue em cima de seu cavalo, de '
cabeça erguida. Seu rosto resplandece ao sol. Não é a campone-
sinha desamparada que saía para visitar tio Henrique em Ser-
maize, montada na garupa dum burrinho triste.
Agora é a guerreira. É a Donzela das profecias. A virgem que
vai dar uma coroa ao rei e um rei à França.
XXVI

R E I SEM COROA, R E I N O SEM R E I

JOANA chega a Chinon com a sua comitiva.


Esta é a cidade do rei.
Mas pobre rei!
Carlos de Valois ainda não fez trinta anos. É um homem tí-
mido e covarde. Não tem figura empertigada e rija de guerreiro.
É com dificuldade que consegue equilibrar-se em cima dum ca-
valo. Vive metido no seu palácio, embalado por uma vida pre-
guiçosa da qual receia sair. Sonha com a coroação. Mas se en-
colhe diante do menor obstáculo.
O Duque de Borgonha e seu aliado Bedford, que comanda
os ingleses, estão senhores de quase toda a França. Falta-lhes
apenas tomar conta do Sul.
Orléans está cercada. O Loire, completamente nas mãos dos
ingleses.
O rei está enfurnado no seu castelo. Ao seu redor conversam,
gesticulam, caminham, contam anedotas, intrigam, dizem mal da
vida alheia — conselheiros, capitães, cortesãos e doutores muito
sábios, muito profundos, muito solenes, mas doutores, enfim, que
não acham remédio para a crise.
O cozinheiro do castelo sofre ainda mais do que o rei. Vai
buscar verduras e frangos no fornecedor e este lhe sai com um
palavrório terrível: '
— Não pagam a minha conta! São uns ladrões! Que faz o
rei que não cobra impostos? Sou pai dele? Não sou. Não tenho
obrigação de estar fornecendo verduras e frangos de graça!
E o pobre cozinheiro volta aniquilado para o castelo; por-
que, custe o que custar, tem de dar de comer ao rei, aos conse-
lheiros, aos astrólogos, aos soldados da guarda, à criadagem...
Pelas ruas de Chinon as comadres e os compadres espalham
histórias que cobrem o Delfim de ridículo.
98 ERICO VERÍSSIMO

Contam que um dia Carlos de Valois mandou fazer umas po-


lainas no melhor sapateiro da cidade. O sapateiro veio, muito
honrado com a real preferência, tirou a medida das nobres per-
nas do Delfim, voltou para a sapataria e se pôs a trabalhar. No
dia seguinte voltou para o rei e, tirando-lhe humildemente as
polainas velhas, experimentou-lhe as novas. O rei olhou, sorriu
e gostou:
— Admiráveis!—disse.
E quando o sapateiro pediu o dinheiro, Carlos de Valois, her-
deiro do trono de França, baixou os olhos mansos e disse:
— Olhe, bom homem, depois eu mando um pajem à sua casa
levar o dinheiro.
— Depois? — retrucou o sapateiro alarmado. — Essa é que não!
O homem conhecia o estado dos cofres públicos. Ajoelhou-se
de novo, não para beijar a mão do soberano, mas sim para ti-
rar-lhe das magras pernas tortas as polainas que acabara de
fazer. O rei ficou firme e o sapateiro saiu sem cerimônia, dei-
xando o Delfim com as polainas velhas e uma cara desconsola-
damente triste.
Contam também que um dia encontraram o rei e a rainha
muito desanimados diante do almoço que com enorme sacrifí-
cio o real cozinheiro conseguira apresentar-lhes: dois frangui-
nhos magros e um rabo de porco.
E assim se ridiculariza o pobre rei sem coroa. E assim vive
a pobre França sem rei.
Auvergne, Lyonnais, Dauphiné, Touraine, Anjou e todas as ter-
ras do sul do Rio Loire, além da Guyana e da Gasconha, ainda
pertencem ao Delfim. Mas de que serve isso se os impostos não
rendem nada? Os coletores correm o risco de cair nas mãos dos
salteadores de estradas ou dos bandos de soldados inimigos. Nin-
guém viaja. Ninguém faz negócio.
Carlos de Valois está cercado de gente má. Nobres cavalhei-
ros ambiciosos que se guerreiam na sombra, procurando cada
qual dominar o Delfim, influir, mandar nele.
Quem Carlos de Valois mais ouve é La Trémouille, seu conse-
lheiro e favorito. O reino lhe deve muito dinheiro.
Quando há necessidade de fazer algum banquete ou recepção,
o Delfim se aproxima humilde de seu gordo conselheiro:
— Olha, La Trémouille, eu estou precisando "de dinheiro.. .
A VIDA DE JOANA D'ARC 99

La Trémouille sorri. Sua barriga bojuda treme de contenta-


mento. O dinheiro passa para a mão do Delfim. O prestígio do
emprestador aumenta. A dívida do reino também.
Existem outros credores de grandes importâncias. O fornece-
dor de peixe. Os cozinheiros do palácio. Os pajens. Os armeiros
de várias cidades.
Que fazer para lhes pagar as dívidas? O Delfim dá terras,
cidades.. . Um dia, como recurso extremo, resolve fazer moeda
falsa.. .
La Trémouille é o usurário da corte. Faz largos empréstimos
e recebe como garantias terras e castelos.
E as suas propriedades crescem como a sua barriga.
Desanimado, o rei recorre aos seus astrólogos. Carlos de Valois
acredita em Deus e ao mesmo tempo nos magos que lêem nos
astros a sorte dos homens e das coisas.

Um dia o seu melhor astrólogo lhe vem dizer que as estrelas


falam vagamente duma Donzela das margens do Mosa que há
de vir, mandada por Deus, para expulsar os ingleses...
100 ERICO VERÍSSIMO

Um dia chega ao castelo de Chinon a carta do Cap. Roberto


de Baudricourt falando na camponesinha de Domrémy.
Carlos consulta La Trémouille. O gordo cortesão faz um mu-
xoxo. É homem prático. Não acredita em milagres. A menina
diz que quer comandar os exércitos de França e levantar o cerco
de Orléans? Quá-quá-quá! Se grandes comandantes, homens for-
tes e bravos não conseguem nada.. .
Mas o rei escreveu em segredo ao capitão de Vaucouleurs, di-
zendo que concordava em receber a Donzela.
Depois lhe chegou a carta de Joana, mandada de Fierbois.
Chegou num momento crítico. O Delfim acabava de receber
notícias de novas derrotas. O dinheiro continuava a faltar. A
carta da Donzela era impressionante. Que prejuízo ele pode ter
em recebê-la, mesmo que ela seja uma impostora? Nenhum.
Assim reflete o rei sem coroa e fica pensando em se' deve ou
não deve deixar entrar no seu castelo aquela estranha rapari-
guinha de Domrémy que insiste em afirmar que o pode levar
a Reims para ser coroado...
XXVII

O S I N A L

JOANA E SEUS amigos chegam a Chinon e vão parar numa hos-


pedaria.
Jantam com apetite. Os homens bebem e conversam. Depois
sobem para os seus quartos. Soltam suspiros de alívio quando
se estendem nos colchões macios. Pensam nas noites passadas ao
relento e adormecem sorrindo.
Joana no seu quarto está imóvel, voltada para dentro de si
mesma. Por um instante sai do estado de contemplação para re-
cordar a sua aventura. Agora ela se acha numa cidade estranha,
a quase duzentas léguas de sua terra natal. Cercada de gente
desconhecida. Burgueses, guerreiros, ladrões, doutores, vagabun-
dos...
De sua janela vê as luzes de Chinon. Na silhueta escura das
casas recortam-se janelinhas iluminadas. Muitas dessas casas de-
certo abrigam famílias que vivem calmamente a sua vida. As
mulheres fiam. Os homens pensam no trabalho do dia que fin-
dou. O fogo arde na lareira.
Por um segundo a saudade de Domrémy visita a alma de
Joana. Por um segundo apenas, porque de novo aqui estão com
ela as Vozes queridas a lhe sussurrar segredos extraordinários.
No silêncio da noite ela ouve as palavras do Arcanjo que
lhe fala nos mistérios do Delfim e lhe dá o Sinal, a grande re-
velação que há de fazer que Carlos de Valois veja nela a en-
viada do Céu.
Quando S. Miguel se vai, Joana adormece.
Nasce mais um dia. E esse dia morre. E clareia outra madru-
gada que se faz manhã dourada de sol.
João de Metz abre a porta do quarto da Donzela.
— Joana, o rei te recebe!—exclama éle.
102 ERICO VERÍSSIMO

Joana monta no seu cavalo e com os companheiros segue para


o castelo.
Agora aqui vão eles seguindo pela ponte que leva ao gran-
de portão da morada real. Um soldado da guarda cavalga em
sentido contrário. O caminho é estreito. O cavalo do guarda se
choca com um dos cavalos da comitiva. Estrépito. Pinotes. Bal-

búrdia. Imprecações. A escuridão da noite que desce aumenta


a confusão. O guarda fica enraivecido e solta uma blasfêmia.
— Em nome de Deus, tu blasfemas? Logo agora que estás tão
perto da morte?
É Joana que fala. Que visão teria ela tido para dizer tais
palavras? Sua voz se ouve, clara e musical, dominando todas as
outras. O guarda sente um calafrio. Sabe que o Delfim espera
uma Donzela, uma virgem inspirada por Deus. Será esta, Santo
Pai?
Esporeia o cavalo e continua o seu caminho de cabeça baixa,
perdido em reflexões. A noite é escura. As nuvens escondem
a lua. O guarda esquece as estranhas palavras da moça. Mas an-
tes de uma hora, ao descer do cavalo, aproxima-se demais do
A VIDA DE JOANA D'ARC 103
fosso que rodeia o castelo, dá um passo em falso, rola para o
fundo da vala inundada e morre afogado.
Joana espera diante da grande porta fechada do salão prin-
cipal do castelo. Chegam até seus ouvidos os ruídos abafados
das conversas. Deve haver muita gente lá do outro lado. Um
mundo diferente e deslumbrante. Mas ela não sente o mais le-
ve tremor no corpo. Porque não está sozinha. Sente a seu redor
um cortejo de anjos, invisível para os outros, mas visível e pal-
pável para ela.
A porta se abre. Joana D'Arc entra.
Um bafo quente lhe bate no rosto. Dentro do salão se avo-
lumam ondas de claridade e de sons coloridos. Cinqüenta to-
chas ardem presas às paredes. E os diademas, os anéis e os bra-
celetes das damas enfeitadas faíscam, faíscam, faíscam...
Quanta gente! Homens e mulheres, velhos e moços. Vestidos
coloridos e espadas. Caras lisas e caras barbudas.
As vestimentas dos homens são engraçadas: ombros postiços
enormes, calções curtos e pernas cobertas de meias de cor. Vêem-
se também guerreiros com armaduras rebrilhantes.
Num instante passam mil pensamentos pela mente de Joana.
No zunzum das conversas em que há vozes finas e grossas, fir-
mes e trêmulas, ela "vê" e "ouve" o seu rebanho de Domrémy
a balir com medo do lobo que sai da floresta...
As mulheres exibem vestidos de seda e jóias finas. Mas que é
tudo isto comparado com o esplendor de S, Catarina e de S.
Margarida? O salão é claro, sim, mas que é esta pobre luz de
tochas, comparada com o clarão divino das aparições?
Quando Joana dá os primeiros passos no salão, as conversas
cessam.
Onde estará o rei, — pergunta ela a si mesma. Não está no
estrado do trono. Não se vê nenhum homem vestido de maneira
a fazer a gente desconfiar de que ele seja o Delfim.
Joana passeia os olhos pelos cortesãos.
Alguns começam a rir. Outros, para experimentar a virgem
milagrosa, apontam ao acaso e dizem:
— O rei é aquele!
— Não. É aquele outro ali!
— Menina, o rei é o de barba branca!
— É o moço louro!
104 ERICO VERÍSSIMO

Mas Joana caminha firme numa direção. Sabe onde se encon-


tra o Delfim. O Arcanjo guia seus passos. Ela se aproxima de
um homem que está vestido modestamente, sem luxo, ajoelha-se
aos pés dele e diz:
— Deus vos dê uma longa vida, gentil Delfim!
Carlos de Valois estremece. Mas procura disfarçar ainda:
— Eu não sou o rei!
— Em nome de Deus, Sire, vós sois o rei e nenhum outro
mais! Dai-me tropas com que socorrer Orléans e guardar-vos
até Reims, onde recebereis a crisma e a coroa. Porque este é o
desejo de Deus.
O Delfim, de olhos arregalados, surpreendido e trêmulo, olha
para cs seus cortesãos sem saber que fazer nem dizer.
Joana alça os olhos para o rei.
Ele não é nem mais elegante nem mais garboso que o menos
elegante e menos garboso rapaz de Domrémy.
Feio. Tem olhinhos miúdos e vesgos que piscam e mais pis-
cam. Nariz abatatado. Boca de lábios finos. Pernas tortas, descar-
nadas, unidas nos joelhos.
Pobre rei!
Joana está imóvel. Carlos leva-a para um canto do salão e fi-
ca a conversar com ela longamente, fazendo-lhe perguntas sobre
perguntas. Como foi que a menina o conheceu sem nunca o ter
visto, sem ninguém o ter mostrado? É verdade que ela viu S.
Miguel? E S. Catarina? E S. Margarida? Deus acha mesmo que
cie é o verdadeiro Delfim?
Joana se recorda das palavras do Arcanjo e diz:
— Em sinal de que venho da parte de Deus, eu vos revelarei
um grande segredo de vossa vida.
Carlos de Valois estremece. Olha para os lados, assustado.
Aproxima-se mais de Joana. Escuta. . . A Donzela lhe diz ao
ouvido o grande segredo.
Carlos de Valois está aniquilado. Maravilhado. Mudo de es-
panto. Porque o que Joana lhe diz ninguém sabe, além de Deus
e dele próprio.
Começam a explodir conversas em diversos pontos.
O Delfim olha para a moça longamente, como que sob a in-
fluência de estranho sortilégio.
A VIDA DE JOANA D'ARC 105

Vendo a expressão de espanto respeitoso no rosto do senhor


do castelo, os cortesãos fazem silêncio.
E todos os olhos se voltam para Joana.
La Trémouille está furioso. Que será que a menina disse de
extraordinário ao ouvido do Delfim? Oh, o pobre diabo acre-
dita nos astrólogos, acredita nas estrelas e não é de admirar que
acredite também nas virgens milagrosas. Quanto a ele, La Tré-
mouille, só tem fé nas moedas de ouro, nos faisões recheados e
no prestígio da astúcia...
Agora, por entre duas alas de cortesãos que a contemplam
em silêncio, Joana caminha rumo da porta, com passadas firmes.
A luz das tochas põe lampejos de ouro em seus cabelos es-
curos. Joana leva amassado na mão o chapéu de lã. Os seus sa-
patos grosseiros pisam os ladrilhos do chão.
E nenhum dos homens, nenhuma das mulheres nem de leve
têm uma idéia do grande, do bravo coração que pulsa dentro
deste peito de dezessete anos.
XXVIII

O CONSELHO DOS Q U A T R O

HÁ NO CASTELO de Chinon uma torre que se chama "A Torre


de Coudray". Moram nela Guilherme Bellier, oficial da corte,
e sua mulher.
Para lá é que levam Joana. Dão-lhe aposentos confortáveis, como
se ela fosse um guerreiro de renome. Põem a seu serviço um pajem
de quatorze anos. Chama-se Luís de Coutes. O rapaz vê Joana e
fica encantado. Começa a servi-la com dedicação.
Encontra-a sempre recolhida em seu quarto, de joelhos, orando.
E fica parado à porta, silencioso, contemplando a sua senhora com
uma expressão de simpatia no rosto liso e corado.
Muitas vezes por dia ele chega, respeitoso, e pergunta:
— Deseja alguma coisa. . .?
E fica todo atrapalhado porque não sabe se deve tratá-la de
senhora ou de senhor.
Joana despede-o com um gesto:
— Não quero nada, Luís, obrigada. Vá descansar.
Mas o pajem não vai. Deixa-se estar no corredor, rondando o
quarto da jovem guerreira. Conhece-a há apenas dois dias e já se
sente disposto a morrer por ela.
O Delfim anda muito contente. Tem conversado repetidamente
com Joana. Ela lhe chama "gentil Delfim", fala-lhe com carinho e
respeito. Insiste em dizer que ainda há de pôr-lhe na cabeça a
coroa de rei.
Ora, o pobre Carlos de Valois não está acostumado a estas
cortesias. Sabe que na cidade, nas províncias e nos campos ini-
migos, em todo o país enfim (e provavelmente até na própria
Inglaterra) toda a gente ri dele, inventa anedotas a seu respeito,
cobrindo-o de ridículo... »
Joana agora vem dar-lhe alma nova. Esperança de uma vida
melhor. ..
A VIDA DE JOANA D'ARC 107

O Delfim conversa com a Donzela. O sol entra pelas grandes


janelas num jorro luminoso. E neste mesmo instante penetra no
salão, num lampejo de armadura, um homem alto e forte.
O rosto do rei se ilumina.
— O Duque d'Alençon!
O guerreiro sorri e beija a mão do rei.
— Esta é a Donzela do Mosa, duque, na certa já ouviste fa-
lar nela.

Sim, d'Alençon já ouviu falar em Joana, a sua história corre


mundo, parece que viaja nas asas do vento.
A Donzela está maravilhada. Contaram-lhe muitas histórias
deste bravo cavaleiro, que é casado com a prima do Delfim.
Diz-lhe agora estas palavras:
108 ERICO VERÍSSIMO

— Seja bem-vindo, duque! Quanto mais sangue real houver ao


redor do rei, tanto melhor.
O pobre rei sente-se feliz. E é tão tímido e tão modesto que
já se contenta com reinar no coração dum guerreiro valente e
duma Donzela inspirada. Que lhe importa neste momento a
coroa da França? Dois amigos não valem um reino?
Mas aparece o gordo La Trémoulle. A custo passa na porta
estreita que dá para o comprido corredor que corre ao longo
duma das paredes externas do castelo.
"O conselheiro cumprimenta o Duque d'Alencon mas não diz
a menor palavra nem faz o menor gesto para a Donzela.
No dia seguinte Joana assiste a uma missa do rei.
Depois se aproxima de Carlos e faz-lhe uma reverência. O
Delfim sorri. Chama d'Alencon e convida-o a ir com' ele e
Joana para a sala particular do castelo. Os três para lá se di-
rigem. Mas La Trémoulle, que não abandona o Delfim, 9egue
o grupo como uma sombra.
O rei não tem outro remédio senão admitir La Trémoulle no
conselho.
Conversam. Discutem. Estudam a situação. Trocam perguntas.
Fazem planos.
Joana fala; e o Arcanjo e as santas guiam as suas palavras.
A moça diz da sorte da França. Os outros escutam. La Trémoulle
sorri ironicamente.
— Gentil Delfim, quando fordes sagrado rei, deveis oferecer
a Deus o Reino da França.
Joana expõe planos de guerra. Carlos de Valois está mara-
vilhado. D'Alencon sorri do entusiasmo da Donzela. O gordo
cortesão não se pode conformar com a idéia de que esta me-
nina plebéia, saída duma aldeia pequenina, possa comandar exér-
citos, ter sob suas ordens capitães de sangue azul, guerreiros ex-
perimentados e soldados, muitos soldados. . .
Para ele só existe uma força irresistível no mundo: o ouro.
Joana insiste. Há de expulsar os ingleses e coroar o verdadeiro
Rei de França.
— Bravo, companheira!—exclama d'Alencon.
E desde este momento a amizade de Joana pelo jovem du-
que aumenta. Despedem-se numa saudação máscula, como bons
companheiros d'armas.
XXIX

COMO S. C A T A R I N A D I A N T E DOS DOUTORES

M A S O REI duvida ainda. Não quer dizer que no fundo do co-


ração não sinta simpatia e não tenha uma pontinha de confian-
ça na pastora inspirada de Domrémy. Carlos de Valois é tão
fraco e tão sem vontade, que não tem firmeza nem na fé nem
na dúvida.
Mas acontece que os seus conselheiros a todo o momento lhe
enchem os ouvidos de palavras assim:
— Ela é uma impostora.
— Se Deus escolhesse alguém na Terra para comandar os exér-
citos de França, esse alguém não seria certamente uma campo-
nesinha rústica das margens do Mosa.. .
— Ela vem mandada por Belzebu... — diz La Trémouille.
O gordo cortesão não crê em Deus, mas teme o diabo, o Es-
pírito das Trevas — essa entidade maligna que nos aparece no
corpo dum bicho, no cálice duma flor, na alma duma mulher. . .
Enquanto os conselheiros conspiram e intrigam, enquanto o
rei mergulha desesperado as mãos pálidas nos cabelos ralos, na
"Torre de Coudray" Joana recebe muitas visitas. Não são só as
visitas de anjos e de santos. São criaturas da Terra que querem
ver a Donzela de quem se contam tantos milagres.
Joana os recebe sorrindo. E chegam senhores importantes,
capitães enormes, padres, astrólogos, guerreiros. E a todos ela
fala e a todos encanta.
No salão particular do castelo o rei acha-se com o seu Con-
selho reunido. Acabam de decidir que Joana deve ser mandada
a Poitiers para ser examinada por sábios doutores versados em
Teologia.
Quando Joana recebe a notícia de que vai ser examinada,
lembra-se imediatamente de S. Catarina que teve de enfrentar
os sábios do Egito. E fica serena, esperando a visita do Arcanjo.
110 ERICO VERÍSSIMO

Poitiers é agora a capital da França francesa. Os restos do


Parlamento de Paris (cidade que está em poder dos inimigos)
se encontra em Poitiers. Nesta cidade existe uma Universidade
cheia de homens de grande saber e incalculável experiência.
O rei escolhe entre seus sábios os padres e os doutores que
devem examinar Joana. Há bacharéis em Teologia, doutores em
Direito Civil e em Direito Canónico. O confessor do rei, o bispo
de Poitiers, o bispo de Maquelonne, o inquisidor de Toulouse
e outros, muitos outros — uns vinte ao todo — fazem parte da
ilustre companhia que vai submeter a Donzela a um exame se-
vero.
Aqui estão seis deles reunidos. Conhecem toda a ciência da
Terra e alguns dos mistérios dos céus. Sabem que o diabo muita
vez prefere para morada terrena o corpo das virgens. . .
São homens de caras fechadas, testas largas, olhos penetrantes.
Estão vestidos de escuro. Têm um aspecto assustador. Uns se-
guram o queixo pensativamente. Outros mordem a falange do
indicador com fúria nervosa. Outros ainda entortam a cabeça e
apoiam uma das faces na mão espalmada.
Na frente deles está a menina Joana.
Seis pares de olhos se acham voltados para ela.
Mas não se lê rancor nem mesmo desconfiança nestes olha-
res duros. São olhos de partidários dos armagnacs que estão
fitando uma criatura que se diz enviada de Deus para expulsar
os ingleses.
Joana espera.
Estamos na sala maior da casa de João Rabateau, homem do
Duque de Orléans. É aqui que Joana está hospedada. E é aqui
que ela recebe a visita dos doutores.
Eles não vêm todos juntos. Chegam aos grupos.
Irmão João Lombardo pergunta:
— Por que foi que vieste? O rei quer saber o que foi que te
impeliu a procurá-lo. ..
Joana responde:
— Eu estava no jardim de minha casa e uma voz me apare-
ceu dizendo: "Deus tem grande pena do povo francês. Joana,
é preciso que vás para a França." Quando Ouvi estas palavras
comecei a chorar. Então a voz me disse. "Vai a Vaucouleurs.
Acharás lá um capitão que te mandará conduzir com segurança
A VIDA DE JOANA D'ARC 111

à França, para junto do rei. Não tenhas medo." Eu fiz o que


mandavam e cheguei ao rei sem impedimento.
Um outro doutor argumenta:
— Se Deus quer libertar o povo da França não precisará de
gente d'armas.. .
— Em nome de Deus, — replica Joana — os homens d'armas
batalharão e Deus lhes dará a vitória!
Os doutores se entreolham admirados, e se retiram em si-
lêncio.
Outras visitas chegam. Novos interrogatórios. A todos Joana
responde com rapidez e clareza.
Um dia recebe a visita de Pedro de Versalhes e de João Erault,
que trazem em sua companhia um jovem escudeiro, Gobert Thi-
bault. Ao vê-lo entrar, Joana, tomada de brusca simpatia, apro-
xima-se dele, bate-lhe no ombro amistosamente e lhe diz:
— Eu queria ter muitos soldados assim de boa vontade como
este!
E tem razão para dizer isto, porque Gobert Thibault é um
homem simples e bravo, tem uma fé tão grande que para acre-
ditar na Donzela não exige provas nem sinais.
Chegam mais doutores. Joana está cansada, aborrecida, mas
responde a todas as perguntas.
Os sábios contradizem a Donzela. E ela freqüentemente lhes
retruca assim:
— Nos livros de Nosso Senhor há muito mais sabedoria e
verdade do que nos vossos.
Irmão de Seguin interroga Joana. É um homem natural do
Limousin e fala com um sotaque que a muitos faz rir. Suas pa-
lavras saem arrastadas, lentas como se fossem de chumbo.
Ele quer confundir a Donzela e prepara-lhe uma pergunta
sutil:
— Que língua falam as tuas Vozes?
Os outros doutores se entreolham, surpreendidos pela habili-
dade de Seguin. Mas Joana lança água fria na chama de seu
entusiasmo:
— Falam um francês muito melhor do que o teu.
Risadas. Irmão Seguin fica vermelho.
Mas insiste:
112 ERICO VERÍSSIMO

— Acreditas em Deus?
— Mais do que tu!—responde Joana sem pestanejar.
Seguin não se dá por vencido. Pede sinais, sinais que mostrem
que ela realmente é uma enviada do Senhor.

— Não vim aqui para dar sinais. Levem-me a Orléans e eu


vos mostrarei com fatos que tenho uma missão de Deus.
Diante das caras surpreendidas dos doutores, com voz firme
e clara, Joana faz estas quatro profecias extraordinárias:
— Orléans será libertada. Eu levarei o Delfim a Reims para
ser coroado. Paris voltará a pertencer ao rei. O Duque de Or-
léans, que está preso na Torre de Londres, voltará à pátria.
Os doutores estão satisfeitos. E surpreendidos também. Não
descobrem malícia nem falsidade nem fanatismo na Donzela.
Joana falou nas Vozes. . . Mas não diz nada das visões. É um
segredo que guarda por enquanto no fundo do coração.
Os doutores se retiram.
Joana fica. E João Rabateau tem ocasião de vê-la muitas ho-
ras ajoelhada, orando.
A VIDA DE JOANA D'ARC 113

No mais ela ri, fala com alegria na vitória da França e a


espera, com fé.
O rei em Chinon recebe o resultado do interrogatório. Fica
muito contente porque não se descobriram em Joana influên-
cias do Maligno. La Trémouille sacode a cabeça com abandono.
Suas bochechas tremem. E ele diz:
— Que calamidade! Os exércitos do Rei de França comanda-
dos por uma camponesinha ignorante do Mosa. Que calamidade!
XXX

A E S P A D A DAS CINCO C R U Z E S

TOURS é a linda cidade dos tecelões e dos armeiros. Daqui é


que saem os mais finos panos de seda de ouro e de prata.
Joana é conduzida a Tours. O melhor armeiro da cidade, por
ordem do rei, lhe faz sob medida uma armadura completa de
ferro batido.
O homem que está polindo agora o elmo comenta, sacudindo
a cabeça:
— É impossível que uma simples rapariguinha agüente todo
este peso!
E continua a balançar a cabeça, >
Quando a armadura fica pronta, o armeiro recebe em troca
algumas centenas de acres de terra boa, porque dinheiro não há
nos cofres do rei.
Joana recebe a sua armadura. E o rei lhe diz que escolha em
suas cavalariças o cavalo de que mais gostar. Joana escolhe.
Falta agora a espada.
Joana se lembra do Santuário de S. Catarina em Fierbois. Lá
existem muitas espadas pelas paredes da capela. Cada arma con-
ta uma história de heroísmo e lealdade.. .
— Vamos, Joana — diz o Duque d'Alençon — escolhe a tua
espada.
Joana não escuta a voz do companheiro darmas. Porque outra
'voz mais familiar e mais doce lhe está falando agora à alma e
•lhe dita as seguintes palavras:
— Escrevam esta carta aos padres de Fierbois.. .
João de Metz escreve. Joana dita, de olhos fechados. São pou-
cas frases em que a Donzela pede aos bons padres que cavem
perto do altar de S. Catarina onde se acha enterrada, não muito
fundo, uma velha espada. Como sinal de que está falando com
autoridade, a Donzela declara que o gládio tem cinco cruzes
gravadas na lâmina.
A VIDA DE JOANA D'ARC 115

João de Metz incumbe um\armeiro de Tours de levar a carta


a Fierbois.
Enquanto o portador vem e vai, Joana manda bordar um es-
tandarte que deve ser o seu distintivo de comando.
Suas irmãs do Paraíso lhe disseram: "Toma do estandarte por
ordem do Rei do Céu!"
E Joana recebe de suas Vozes instruções para mandar fazer um
estandarte de linho branco com franjas de seda.
Vai ao melhor pintor da cidade.
Aqui está ela na casa de Hamish Power, um escocês muito
hábil no manejo do pincel.

Ela lhe diz:


— Quero que pintes no estandarte Nosso Senhor sentado no
seu trono, com a mão direita levantada e com a esquerda se-
gurando o mundo. À esquerda dele, faze um anjo; outro anjo
a direita, os dois apresentando ao Senhor um punhado de flores-
de-lis. E mais este dístico: Jesus-Maria.
116 ERICO VERÍSSIMO

No outro lado do estandarte Joana manda pintar um escudo


azul, com uma pomba de prata trazendo no bico uma bandeirola
com estas palavras: "Por ordem do Rei do Céu."
Hamish Power está inclinado sobre o linho branco e pinta o
estandarte com amor. Anda no ar um cheiro ativo de tinta. Lá
fora os sinos de Tours batem e o som fica dançando sobre os
telhados, luminosamente.
Heliote, filha do pintor, entra na sala e sorri para Joana. A
Donzela lhe corresponde ao sorriso.
Power ergue a cabeça:
— Essa é a minha filha — diz, fazendo um sinal na direção
da recém-chegada. — Está noiva, vai casar... — acrescenta com
satisfação.
Heliote tem os cabelos ciares, tão claros que parecem de prata.
Seus olhos são do azul dessas lagunas muito puras e transparentes
que deixam ver no fundo uma flora mágica de coral.
Joana e Heliote conversam. A filha do pintor contempla ad-
mirada esta menina de sua idade que teve a coragem de cortar
os cabelos (que deviam ser lindos), de se vestir de homem e
que agora está aqui esperando que papai pinte para ela o seu
estandarte de guerra. É extraordinário!
E ficam as duas, uma na frente da outra, a se mirar' em si-
lêncio. Dum lado está Heliote, frágil, clara, vestida de branco,
mãos finas e delicadas como os lírios que seu pai justamente
neste instante está pintando no estandarte. Do outro lado ach?-
se Joana, cabelos muito negros e cortados à moda dos homens,
empertigada e rija, mãos calosas, roupas grosseiras.
Joana fala. Pergunta a Heliote notícias do noivo. A escocesa
cora. E embaraçada pergunta, depois de dizer que o noivo é um
belo oficial do rei:
— E tu não tens também um noivo?
Joana sorri.
— Não, minha amiga. Prometi aos santos do Céu que dedi-
caria toda a minha vida ao Senhor. . .
Quando o estandarte fica pronto, Joana manda colocá-lo na
ponta duma haste de ferro.
Volta para o hotel de João du Puy, onde se acha hospedad
Já está de volta o mensageiro que levou sua caita aos padres de
Fierbois.
A VIDA DE JOANA D'ARC 117

Ao pé do Santuário de S. Catarina, não muito fundo, estava


realmente enterrada uma espada. E tinha cinco cruzes gravadas
na lâmina.
Os homens que sabem da profecia de Joana, estão espantados.
Joana agora mira e remira a arma. Está enferrujada, baça,
velha.
— Mandem polir esta espada!—ordena ela.
João de Metz sai com o gládio das cinco cruzes. Joana fica
olhando para a porta por onde saiu o seu fiel companheiro dar-
mas. E seus olhos caem em dois vultos familiares que entram e
ficam parados, com os gorros apertados nas mãos.
— Vocês aqui?
Joana olha, admirada. Na sua frente os seus dois irmãos João
e Pedro lhe sorriem. Não têm coragem de entrar e abraçar a
irmã, dizendo:
— Então, Joaninha, como vais?
Sabem das coisas maravilhosas que se contam dela. Sabem
que ela viu o rei e que o rei lhe vai dar um cavalo, uma arma-
dura, um estandarte, e um exército. Agora ela não é mais a cam-
ponesinha de Domrémy que levava as ovelhas para o campo,
que viajava na garupa do burrinho. Não. Maninha agora é Joana
D'Arc, a guerreira.
E por isto ficam de olhos muito abertos, olhando com amor
e admiração para a moça que está sorrindo diante deles, com os
braços abertos...
XXXI

A M E N S A G E M AOS INGLESES

TRAZEM a Joana a espada das cinco cruzes que agora está poli-
da e fulgura ao sol de Tours.
A notícia do milagre se espalha. A cidade se enche de entu-
siasmo. Joana é aclamada nas ruas. O povo de Tours lhe dá
duas bainhas para a arma sagrada. Uma de veludo para o uso
diário; a outra de pano de ouro para as grandes solenidades.
Mas Joana prefere guardar a espada numa bainha tosca de couro.
Trazem-lhe à hospedaria de João du Puy um padre, Irmão
Pasquerel:
— Joana, nós te trouxemos este bom padre. Hás de gostar
dele, quando o conheceres melhor.
A Donzela responde:
— O bom padre me deixa bem alegre. Já ouvi falar a seu
respeito e amanhã quero fazê-lo meu confessor.
No dia seguinte Irmão Pasquerel confessa Joana D'Arc e can-
ta a missa com a presença dela.
E desde este momento não a abandona mais.
Joana segue para Blois com sua comitiva.
No último encontro com o rei ela fez uma profecia:
— Hei de salvar Orléans e pôr os ingleses em fuga. Quando
eu estiver na cidade uma frecha me ferirá, mas não de morte.
E neste mesmo verão sereis coroado em Reims!
À mulher do Duque d'Alençon prometeu:
— Não se inquiete. Eu lhe trarei de volta o seu marido com
vida e com glória.
Agora aqui está a Donzela, cercada de seus companheiros.
João de Metz e Bertrand de Poulengy discutem animadamente
a rijeza de suas couraças. O primeiro ergue no ar o seu gládio,
para mostrar ao amigo um golpe eficaz de gume. A lâmina re-
lampagueia ao sol de Blois.
A VIDA DE JOANA D'ARC 119

Joana vê e sorri.
— Estás com medo, Raimundo? — pergunta ela ao rapaz tris-.
tonho que está a seu lado.

— Medo, eu? Ao vosso lado?


Raimundo força um sorriso. Ainda não fez dezessete anos. É
o novo pajem de Joana. A proximidade da luta o deixa nervoso.
— Olha só para o Luís, vê como ele se diverte! — anima-o
a Donzela.
Num grupo de soldados Luís de Coutes, o primeiro pajem
que Joana ganhou em Chinon, inventa façanhas que nunca fez
e ri uma risada sonora que se mistura com o tinido das espadas
e das armaduras que se entrechocam.
O cavaleiro João d'Aulon, escudeiro de Joana, estende os olhos
Io acampamento fervilhante e diz, sorrindo:
— É um milagre. Esta gente ganhou alma nova. Ontem só de
vir falar no nome dos ingleses queriam fugir. Hoje estão aqui
postos a brigar...
Joana fecha os olhos e ora, agradecendo a Deus todos os fa-
vores que lhe tem feito.
O acampamento ganha vida. Chegam novos contingentes. Pre-
param-se muitas carretas com víveres. É que os habitantes de
120 ERICO VERÍSSIMO

Orléans já começam a sentir fome. A munição de seus defenso-


res escasseia. É preciso revitualhar a cidade sitiada.
O vulto de Poulengy se ergue na frente de Joana. Sua arma-
dura polida reverbera à luz do sol.
— Então? Atacamos?
Joana sacode a cabeça em silêncio. De olhos fechados ela en-
xerga a vitória. Mas contra o fundo vermelho de suas pálpebras
descidas se desenha uma visão horrível. É um campo depois da
batalha. Os feridos se estorcem. O Rio Loire está tinto de sangue.
Os mortos bóiam à flor da água. Oh Deus! Quando é que os
homens vão compreender?
— Escudeiro!—grita a Donzela.
— Pronto! — responde d'Aulon, aproximando-se.
— Quero mandar uma mensagem aos ingleses.
E dita uma carta assim:
Rei da Inglaterra, e vós, Duque de Bedford, que vos dizeis
regente do Reino da França; Guilherme de la Poule, Conde de
Suffort, João, Sire de Talbot, e vós, Thomas, Lord d'Escales, que
vos dizeis tenentes do dito Duque de Bedford, fazei justiça ao
Rei do Céu; entregai à Donzela que foi enviada por Deus, Rei
do Céu, as chaves de todas as boas cidades que tomastes e vio-
lastes na França. Ela aqui veio por ordem de Deus para redimir
o Sangue Real; ela está pronta a fazer a paz se fizerdes justiça
a ela e ao Reino de França, ao qual deveis pagar por aquilo de
que vos haveis apoderado. E vós, arqueiros e companheiros de
guerra, de alta ou baixa linhagem, que estais diante da boa Ci-,
dade de Orléans, ide embora, em nome de Deus, para a vossa
Pátria. Rei da Inglaterra, se assim não fizerdes, eu, chefe de guer-
ra, em qualquer lugar da França em que vos encontrar vos man-
darei para fora, queiram ou não queiram, e a quem não obede-
cer matarei e a quem obedecer pouparei. Nem julgueis que vos
é possível tomar conta do Reino de França. Não, por Deus, o
Filho de Maria! Carlos, o Rei, ficará com ele, porque é o vero
herdeiro. Porque Deus o Rei do Céu assim o quer, conforme a
Donzela lhe revelou. Ele entrará por fim em Paris com uma boa
companhia. Se não derdes crédito às palavras de Deus pela boca da
Donzela, em qualquer lugar que vos acharmos, havemos de desferir
golpes tremendos e faremos uma derrabada violenta como ja-
A VIDA DE JOANA D'ARC 121

mais se fiu na França nestes cem anos. Depois veremos quem


tem melhor direito do Deus dos Céus, se nós ou vós!
De Blois a Orléans há uma distância que o exército pode
vencer em três dias de marcha. Um cavaleiro montado em bom
cavalo poderia deixar Blois ao nascer do sol e chegar à cidade
sitiada bem no momento em que as águas do Loire começam
a se tingir da luz alaranjada do sol poente.
Joana reúne os seus oficiais.
— Quantos homens temos?—pergunta.
— Uns quatro mil, — responde João de Metz.
Silêncio.
Bertrand de Poulengy fala:
— Antes de tudo, precisamos revitualhar Orléans.
— Justo, — concorda Joana.
Os olhos de d'Aulon fuzilam: o seu rosto se ilumina de
alegria:
— A situação não pode ser mais favorável. O Duque de Bor-
gonha retirou os seus soldados do cerco.
— Brigou com Bedford?—pergunta João de Metz.
D'Aulon sacode a cabeça:
— Não. Mas vieram-lhe aos ouvidos umas intriguinhas de
Chinon. . . O duque quer tirar partido da situação. Pelas dú-
vidas, prefere ficar de lado por uns tempos.. .
— Então?—E ao fazer a pergunta, Poulengy franze a testa.
Os homens estão sentados nos fardos de víveres, formando
uma roda em cujo centro se encontra Joana, de pé.
D'Aulon tira a espada da bainha e começa a riscar o chão.
— Vejam só a situação de Orléans...
Joana baixa os olhos. Poulengy e João de Metz acocoram-se
muito juntos um do outro e ficam olhando com atenção os ra-
biscos que o escudeiro da Donzela está traçando na terra.
Luís e Raimundo espicham o pescoço para olhar. E d'Aulon
vai explicando. Sua longa espada projeta no chão uma sombra
azulada.
XXXII

PARA ORLEANS!

AGORA no grupo só se ouve a voz pausada de d'Auion.


— Como vocês vêem — diz ele — aqui está Orleans...
Aponta com a espada. Orleans fica à margem direita do Rio
Loire, que corre do nascente para o poente.
— Os ingleses estão nos seus fortins—continua o escudeiro.
— Ficaram com o efetivo reduzido depois que o Duque de Bor-
gonha retirou os seus soldados. Como não possuem gente em
quantidade suficiente para assaltar a cidade, estão procurando.. .
— Submetê-la pela fome!—berra João de Metz, como se ti-
vesse feito uma grande descoberta.
— Isso! —confirma d'Auion. E prossegue: — A q u i estão os
fortes que cercam Orleans. Temos ao sul as "Tourelles". Mais
adiante está o dos Agostinianos. Perto do rio, para as bandas
do Ocidente, temos o "S. Lourenço". Ao norte, fica o "Paris''.
— E ao pronunciar o nome desta cidade, d'Aulon suspira fundo
porque se lembra que Paris está nas mãos dos inimigos do Del-
fim. — Bom. Do lado e:v, que nasce o sol fica o forte St. Loup.
Esta, a situação. Entre es fortes existem grandes espaços des-
protegidos por onde a nossa gente podia entrar...
— Os ingleses só vigiam o lado de onde eles julgam possa
chegar socorro para Orleans. É o lado do Ocidente, o que dá
para Tours e Chinon.
Joana escuta em silêncio. Poulengy, João de Metz e d'Aulon
discutem. Diz o primeiro:
— Quer dizer — avança João de Metz — que podemos entrar
por qualquer outra parte?
D'Aulon encolhe os ombros. Joana fala:
— Temos dois caminhos livres que nos levam a Orleans. Um
pela margem direita do Loire. Outro pela esquerda..
VIDA DE JOANA D'AP,C 123

— Tomaremos a margem esquerda!—exclama de Poulengy.


A do sul! — Os ingleses estão esperando reforços. Temos de se-
guir o quanto antes! Pela margem esquerda! Que acham vocês?
Ergue os olhos para Joana, que medita, de olhos fechados.
— Seguiremos pela margem direita, diretamente sobre Orléans
— diz ela com firmeza.
Poulengy ergue-se rápido.
— Mas não é possível! Veja as conveniências.. . Do lado di-
reito do rio encontraremos as guarnições inglesas de Marchenoir,
Beaugency, de Meung, de Montpipeau, Saint-Sigismond, Janvil-
l e . . . de.. . de.. . nem sei mais quê!
— Joana, — diz João de Metz com voz doce — será desastroso
para nós se tomarmos a margem direita. Vamos cair na boca do
lobo...
O rosto da Donzela está sereno. E com calma ela repete:
— Vamos pela margem direita!
Os homens se entreolham em silêncio e se separam.
O acampamento é uma colmeia assanhada. Gritos e tropéis.
Lanças e espadas e armaduras fulgindo na claridade macia da
124 ERICO VERÍSSIMO

tarde. Capitães berrando ordens. Homens fortes carregando far-


des para dentro das carretas.
Do alto duma colina onde fica a sua tenda, Joana contempla
o acampamento. Chegam a seus ouvidos, de mistura com as vo-
zes dos homens, vozes mais finas e mais musicais. A Donzela
franze a testa. Passam mulheres abraçadas a soldados, cantando
e rindo. São criaturas de má vida que burlequeiam pelas tendas,
e que acompanham os exércitos.
O coração de Joana se aperta. E ela desce na direção dos sol-
dados. Encontra João de Metz. Detém-se na frente dele e lhe
diz com voz trêmula:
— Mande botar todas as mulheres para fora do acampamento.
— Pausa. João de Metz espera. Joana prossegue. — Todas, e ime-
diatamente!
João de Metz faz meia-volta e se some no meio dos soldados.
A Donzela reúne os guerreiros e lhes diz que não poderá ha-
ver esperança de vitória se eles não se arrependerem de todos os
pecados.
— Precisais purificar as vossas almas sujas. Deveis pedir per-
dão a Deus. Se morrerdes na luta, como haveis de ter coragem
de erguer os olhos para o Pai, lá na outra vida? Vós os casados
lembrai-vos também de vossas esposas. E de vossas irmãs, os
solteiros. Cada uma dessas mulheres que foram expulsas do acam-
pamento é mais perigosa do que todo o exército do EHique de
Bedford.
Joana fala de cabeça erguida. O último sol do dia lhe pinta
ao redor da cabeça uma auréola de ouro avermelhado. E os guer-
reiros fortes baixam a cabeça diante desta menina de dezessete
anos, de olhos azuis como o céu que se estende sobre o acampa-
mento, de voz fina como o tinido das espadas. E nenhum tem
coragem de dizer uma palavra de revolta.
Joana manda chamar os padres que acompanham as tropas.
São muitos. Vindos de diversas partes da França, fugidos de con-
ventos que foram pilhados e incendiados pelos ingleses. Sem
teto e sem pão, esfarrapados e exaustos, eles ainda estão de pé e
se agitam porque a fé os anima.
Os padres chegam e a Donzela manda-os confessar os soldados,
que se ajoelham na terra dura e contam baixinho ao ouvido dos
A VIDA DE JOANA D'ARC 125

sacerdotes todos oi seus pecados. E um por um, todos confessam


suas culpas, purificam suas almas.
Ao anoitecer, o Duque d'AIençon, que tinha ido a Chinon pe-
dir ao rei dinheiro para as tropas, chega com pequena comitiva.
À noite as estreias brilham sobre o acampamento adormecido.
D'Alençon, Poulengy, João de Metz e outros capitães confabu-
lam em voz baixa numa das tendas do comando.
Joana ora ao ar livre, com os olhos erguidos para o céu. Os
guardas que rondam o acampamento parecem fantasmas. Um si-
lêncio de morte envolve todas as coisas. E no meio do silêncio
Joana ouve as Vozes.
No dia seguinte, pelos seus arautos Ambleville e Guyenne, a
Donzela envia a mensagem aos ingleses.
Mais tarde o exército libertador prepara-se para seguir para
Orléans.
Joana veste pela primeira vez a sua armadura. Monta no seu
cavalo branco, toma do estandarte e abre a marcha.
O dia está claro e fresco.
Os padres marcham reunidos, com uma bandeira à frente, e
vão cantando o Verti Creator Spiritus. Joana segue embalada pe-
lo cântico dos religiosos. Ao seu lado cavalgam em silêncio Rai-
mundo e Luís, os dois pajens. João e Pedro, irmãos de Joana,
também não se afastam do lado dela. Como um cão fiel que não
conhece fadiga, Irmão Pasquerel se arrasta ao lado da Donzela.
E os soldados da França, marchando de lanças aos ombros, dão
a impressão de uma floresta desgalhada em movimento.
Joana volta os olhos e se deslumbra. O sol arranca faíscas das
armaduras, das espadas e das lanças. O exército se estende no
campo como uma grande cobra de prata lampejante. Os padres
cantam. Os soldados cantam. Até as carretas de víveres, no re-
chinar das rodas, parecem cantar um hiro de vitória.
Joana segura firme a haste do seu estandarte.
E por um instante — só por um instante — ela se lembra da-
quela viagem que fez a Sermaize, na garupa do burrinho pe-
ludo. . .
XXXIII

DEUS É O S E N H O R DOS V E N T O S

No DIA seguinte, ao anoitecer, Joana avista as torres de Orléans.


Mas de súbito, olhando o rio que corre lá em baixo, ela sente
um sobressalto:
— Mas nós estamos na margem esquerda!—exclama.
D'Aulon, que se encontra a seu lado, baixa os olhos sem dizer
palavra.
— Mas que é isto, D'Aulon? Eu não disse que devíamos se-
guir pela margem direita?
Seus olhos fuzilam. Sua testa está franzida em inúmeras rugas
de contrariedade.
Ainda de olhos baixos D'Aulon confessa humildemente:
— Eles quiseram...
— E l e s . . . quem?
— Os capitães...
Silêncio. D'Aulon se afasta, aniquilado, como sob o peso du-
ma culpa irremissível.
Poucos instantes depois, o comandante das tropas que defen-
dem Orléans sai da cidade sitiada, atravessa o rio e vem procu-
rar a Donzela.
Os dois se acham agora aqui, frente a frente.
Ela é a primeira a falar:
— És tu o Bastardo de Orléans?
— Sou eu e estou contente por teres vindo.
O comandante de Orléans sorri com simpatia. É um bravo
soldado. Olha para a Donzela e fica desde o primeiro instante
acreditando na sinceridade dela.
— Foste tu que deste o conselho de virmos por este lado do
rio e não direito sobre o lado onde estão Talbot e os ingleses?
A VIDA DF. JOANA D'ARC 127

— Eu e outros capitães mais prudentes demos esse conselho,


julgando fazer tudo pela forma melhor e mais segura.
— Em nome de Deus! O conselho de Messire é mais seguro
e mais sábio que o vosso. Vós julgais me enganar e vós vos en-
ganais a vós mesmos. Porque eu vos trago um socorro melhor,
que é o socorro do Céu, que vem do próprio Deus. Ele teve pie-
dade de Orléans, não quis que os inimigos tivessem ao mesmo
tempo o corpo do duque e a sua cidade.
O Bastardo baixa os olhos em silêncio e sorri com benevolência.
Saem os dois juntos a revistar as tropas.
À beira do Loire Joana estende os braços e mostra ao guer-
reiro um punhado de barcas carregadas com víveres e munições.
— Temos de fazer isto tudo entrar em Orléans.
— Qual é o plano?—pergunta o Bastardo.
— Levar as embarcações pelo rio até a aldeia de Checy e dali,
por terra, até a Porta Oriental de Orléans. Na Porta Ocidental
a entrada seria impossível porque ali os inimigos são mais nu-
merosos.
O Bastardo contempla as barcas carregadas que sobem e des-
cem levemente ao balanço das ondas. A água bate-lhes nos cos-
tados com um chape-chape macio e repetido que dá vontade de
dormir. As velas estão enfunadas. Os homens que vão conduzir
as embarcações acham-se a postos. Esperam apenas ordem de
largar.
O comandante de Orléans está pensativo.
— É impossível levar estas barcas a Checy!
— Impossível?
Joana sorri.
— O vento sopra de leste. As barcas têm de subir o rio. Não
há força humana que vença a correnteza aliada ao vento.
E o vento que vem das bandas do nascente leva para longe as
palavras do Bastardo. E infla as velas, tentando impelir as bar-
cas para o rumo contrário ao que elas precisam tomar. O vento
é impiedoso. Uiva e sopra incessantemente. Os capitães andam
dum lado para outro, sem saber que providência tomar.
O Bastardo olha pensativo para a sua pobre cidade sitiada.
Silêncio por um minuto.
Joana abre os braços e ergue os olhos para o céu. E diz alto
para que todos a seu redor possam ouvir:
128 ERICO VERÍSSIMO

— Deus é o Senhor dos Ventos!


E de repente o vento cessa. Cessa e em seguida começa a so-
prar do Ocidente para o Oriente com a mesma força com que
soprava em sentido contrário. Os homens perdem a fala. O bojo
das velas que estava voltado para o oeste agora está apontando
para o leste.
O Bastardo está assombrado. Joana sai do seu êxtase e grita:
— Soltem as amarras! Para Checy! Para Orléans!
E nas asas do vento parece que vem um bafejo dos céus.
Alguns soldados se ajoelham para adorar a Donzela. Joana
fá-los erguerem-se.

Os barcos vencem a correnteza com facilidade. E lá se vão


de velas infladas, rumo de Checy, onde chegam no mesmo dia.
Joana forma a sua tropa e atravessa com ela o Loire.
Em sua companhia estão agora o Bastardo, o Mar. Boussac,
o Cap. La Hire e outros oficiais,
A VIDA DE JOANA D'ARC 129

A tropa pernoita em Reilly. Joana vai parar na casa de Guy


de Cailly, que lhe dá bom quarto e boa cama.
E de noite, quando, orgulhoso de hospedar a Donzela inspira-
da, Guy de Cailly vai até Joana para lhe perguntar se deseja
alguma coisa — ao chegar à porta recua espantado. Porque a
visão que se lhe depara dentro do quarto da hóspede é incrível.. .
No meio da peça a guerreira está ajoelhada, orando. E diante
leia, envoltos em sua luz radiosa, S. Catarina, S. Margarida e
os anjos pairam no ar, sorrindo.. .
XXXIV

A E N T R A D A EM O R L É A N S

SEXTA-EEIRA.
Joana passa o dia em Reilly. Quer partir para Orléans a todo
o transe. Os capitães a custo a detêm.
— Vamos esperar a noite, — aconselha o Bastardo.
A noite chega.
O exército retoma a marcha.
Sob um céu sem estrelas aqui vai a Donzela, com o estandarte
na mão. A seu lado cavalga o Bastardo. Os soldados marcham em
silêncio.
Aproximam-se de Orléans, na direção da Porta Borgonhesa,
que está livre.
Joana sente o corpo dolorido. A armadura é pesada e incô-
moda. Mas o seu coração, que bate de comoção ao se aproximar
da cidade sitiada, parece querer saltar-lhe do peito, romper o
ferro da couraça e voar como uma pomba para Orléans, levando
a seus habitantes a notícia de que o socorro se avizinha.
De repente o Bastardo avista um clarão confuso que sobe da
terra. Aproximando-se mais vê que ele é formado pela luz de
muitas tochas.
Um ruído indistinto, prolongado, semelhante ao uivo do ven-
to, chega aos ouvidos dos que marcham à frente do exército
salvador.
— O povo está saindo da cidade para nos encontrar!—grita
o escudeiro D'Aulon.
— É extraordinário!—comenta o Bastardo. — Essas criaturas
estavam mortas de desânimo. Parece que até os mortos voltaram
à vida.
Esporeia o cavalo. Um espião vem dizer ao comandante da
praça sitiada que nos arraiais dos ingleses anda o zunzum de
que uma Donzela que tem parte- com o diabo se aproxima de
A VIDA DE JOANA D ARC 131

Orléans. Os ssoldados atacantes começam a sentir um visível


mal-estar."Uma sentinela no meio da noite começou a gritar e
a correr, dizendo ter enxergado fantasmas escalando a paliçada
do forte. Estava louco. Talbot a custo contém os seus homens.
O exército de Joana D'Arc passa a Porta Borgonhesa.
Orléans!
As patas do cavalo branco da Donzela pisam nas pedras da
cidade sitiada. Uma multidão que urra, canta, grita e agita no
ar as tochas acesas, cerca a jovem guerreira.

— Viva Joana D'Arc!


— Viva a Donzela de Orléans!
Nas janelas das casas aparecem mulheres e crianças.
O exército desfila pelas ruas. Joana vai de cabeça erguida. Em
torno dela ardem tochas e corações. Mulheres erguem nos bra-
ços finos os filhos pequenos, para que eles vejam a heroína,
para que eles toquem com os dedinhos minúsculos a sua cou-
132 ERICO VERÍSSIMO

raça sagrada. Um homem chega a deitar-se no chão para que o


cavalo da Donzela lhe espezinhe o corpo.
À luz dos archotes as caras dos habitantes de Orléans parecem
máscaras avermelhadas. Máscaras de alegria, de entusiasmo, de
loucura. Berros, atropelamentos, imprecações, cantigas, lágrimas,
— tudo se mistura no ar fresco da noite numa onda sonora e lu-
minosa que sobe para o céu e se dissolve na escuridão que reina
acima dos telhados.
Os soldados da guarnição sitiada se alegram e ganham cora-
gem com a chegada do exército salvador.
A chama duma tocha prende fogo no estandarte de Joana. A
Donzela, imperturbável, baixa a sua bandeira e faz que as patas
de seu cavalo abafem o fogo. E de novo o pendão dos céus tre-
mula acima da cabeça da guerreira, acima do entusiasmo da mul-
tidão.
A procissão da vitória chega à Igreja da Vera Cruz. Joana des-
ce para orar e para render graças ao verdadeiro Senhor dos Exér-
citos.
Torna a subir para o seu cavalo e vai hospedar-se na casa de
Boucher, o tesoureiro do duque, que mora na outra extremidade
da cidade.
A comoção não a deixa dormir esta noite. Um novo dia clareia
e a primeira coisa que a Donzela faz ao nascer do sol é man-
dar uma nova mensagem a Glasdale, no forte das "Tourelles",
prometendo-lhe a paz se ele abandonar o cerco.
"A vaqueira que volte para cuidar dos seus rebanhos de Dom-
rémy"—responde o chefe inglês.
Passam-se uns poucos dias de calma.
Na frente da casa em que Joana se hospeda apinha-se uma
multidão que ergue a voz e os braços para a janela de Boucher.
— Queremos ver a Donzela! Queremos Joana D Are! —gritam.
E quando Joana aparece ao balcão, um enorme clamor sobe
para ela.
O Bastardo sai com suas tropas ao encontro dum novo com-
boio de víveres.
Na manhã de quarta-feira voltam com as provisões.
Joana reúne os seus homens e vai ao encontro da expedição.
Entram em Orléans sem serem perturbados pelos inimigos.
A multidão canta e ri à vista das Carroças de mantimentos. O
A VIDA DE JOANA D'ARC 133

Bastardo tem de empregar a força para evitar que os homens e


as mulheres dilacerem os\ardos dos mantimentos.
Joana entra na casa de Boucher. Tem o corpo cansado, os
membros doloridos. A armadura lhe maltrata as carnes.
A dona da casa, muito solícita, se aproxima dela:
— A minha querida não quer tirar a armadura? Oh! Isso deve
ser horrível. . .
Joana despe a roupa de ferro. Atira-se na cama com um ge-
mido de alívio. No outro quarto ao lado está D'Aulon, o seu
escudeiro e fiel companheiro d'armas.
Joana pensa em Domrémy. De olhos fechados enxerga a ca-
sinha de seus pais. Um penacho de fumaça foge pela chaminé
e sobe para as nuvens. As rosas no jardim. Os porcos na lama do
quintal. Hauviette, muito loura, brincando às margens do Mosa.
E o Mosa correndo de mansinho, como nos tempos da infancia
em que ela dormia embalada pela cantiga do rio. Pela cantiga
doce.. . Dormia.. .
Joana dorme. Mas as Vozes falam dentro de seu sono e ela
acorda sobressaltada.
— Raimundo! Luís!
Os dois pajens aparecem, caras assustadas.
— Por que me deixaram dormir?
Enquanto eles gaguejam palavras de desculpa, Joana grita:
— Minha armadura, depressa!
Mete-se rápida na armadura.
— Meu cavalo!
Luís sai para buscar o cavalo.
Joana pega da espada e do elmo e corre para a rua. Monta. O
cavalo se empina nas patas traseiras. A guerreira grita para
dentro:
— O meu estandarte!
Raimundo passa-lhe pela janela o estandarte.
Acompanhada de D'Aulon, Joana se dirige para a Porta Orien-
tal. Saltam estrelas de fego das ferraduras dos animais.
Joana "sabe" o que está acontecendo. Os homens do Bastardo
levam um ataque de surpresa ao forte inglês de St. Loup.
Joana reúne-se a eles.
— Hardi! — grita ela. E este é o seu grito de guerra.
Sem desembainhar a espada, entra na luta.
134 ERICO VERÍSSIMO

Incita os soldados. A seu lado ninguém sente medo. Pedro,


seu irmão, bate-se como um velho guerreiro experimentado.
Dentro de algum tempo St. Loup cai em poder dos franceses.
Joana olha para os cadáveres. Dói-lhe ver tanta gente morta
sem confissão.
— Pai, eles não quiseram a paz! — murmura ela olhando para
o céu. — Por mim não correria sangue. Eu avisei...
Mas de súbito a expressão doce de seu rosto se altera comple-
tamente. E seus olhos são frios e duros como um escudo. De
novo é a guerreira.
Urge tomar uma providência. Chegam notícias de que os re-
forços para os ingleses se aproximam de Orléans pela estrada
de Paris.
Anoitece.
Na casa de Boucher, diante de vários capitães, Joana diz:
— Dentro de cinco dias a cidade estará livre.
Joana relembra os cadáveres do forte de St. Loup. Manda uma
mensagem ao forte das "Tourelles", propondo a paz aos ingleses. •
As "Tourelles" ficam ao sul da cidade, na margem oposta do
rio. Uma ponte atravessa o Loire. Mas a parte do sul dessa pon-
te foi destruída pelos sitiados.
Joana em pessoa toma dum arco e duma frecha e se aproxi-
ma das "Tourelles", seguindo pela ponte até chegar ao ponto
em que os pilares estão derribados. Ajoelha-se cautelosamente,
espeta a mensagem na ponta da frecha e, fazendo pontaria para
o forte inglês, dispara...
Os ingleses lhe respondem com um palavrão ofensivo. A pa-
lavra é dura e dói. Joana chora. Mas sente imediatamente um
par de mãos celestiais que lhe afagam a cabeça e ouve uma voz • V

amiga, que não é da Terra, dizer-lhe palavras de consolo.


XXXV

A V I T Ó R I A

HOJE se comemora a Ascensão.


Os guerreiros depõem as armas e fazem trégua de um dia.
Joana conversa com os irmãos na sala de Boucher.
— Então, Pedrinho, gostaste da luta?
— Se gostei!
O rosto do rapaz se ilumina de contentamento.
— E tu, Joãozinho?
— Eu também.
— Vocês se lembram de Maxey? Os rapazes de lá eram bor-
gonheses. Os de Domrémy eram armagnacs.. .
— Agora estamos numa guerra de verdade!—exclama Pedro
com um ar de incredulidade.
Joãozinho faz um muxoxo:
— E se eu disser que eu tinha mais medo das pedradas dos
rapazes de Maxey do que tenho hoje das bombardas e das fre-
chas dos ingleses.. . vocês acreditam?
— Acredito, — diz Pedro, muito sério. — Mas o que me sur-
preende é a maninha Joana.. . Ficava toda arrepiada quando
nos via arranhados e agora está aqui, como uma guerreira de
verdade...
— É mesmo, — concorda João. — Comandando um exército.
Parece sonho.. .
Ficam recordando os dias passados. Relembram gentes e cenas
da aldeia natal.
Mas de repente Joana se ergue:
— Bom! Não podemos ficar a vida inteira a falar nestas coi-
sas. Orléans não está ainda livre. Andem! Vão para o acampa-
mento.
136 ERICO VERÍSSIMO

Os rapazes saem. Joana se recolhe para esperar as Vozes. E


pensa isto: se as "Tourelles" caírem, a cidade estará salva!
Quando à noite se dirige para o quarto com o fito de dormir
algumas horas, a Donzela pede aos pajens que a acordem pela
madrugada.
Sexta-feira amanhece sombria.
Joana procura o Bastardo.
— Precisamos atacar o quanto antes. O reforço para os ingle-
ses se aproxima. Falstoff, o grande general, vem comandando as
tropas.
— Acho mais prudente ficar na defensiva, — observa o co-
mandante de Orléans.
— Na defensiva? Mas se precisamos libertar á cidade antes
da chegada dos reforços!
— Pensei muito e este é o juízo que formei.
— Pois bem, — replica Joana—tu formaste o teu juízo. Mas
o meu foi ditado por Deus.
A Donzela faz meia-volta e sai, disposta a conduzir sozinha
os seus soldados.
Reúne-os às pressas, monta a cavalo e cavalga na direção da
porta que fica ao sul da cidade. Encontra-a fechada. Diante dela
se estende uma fileira de guardas que têm ordens positivas de
não deixar passar ninguém.
— Cometeis uma ação má!—exclama a Donzela, dirigindo-se
aos guardas que lhe impedem a saída. — Mas os meus soldados
hão de passar, com o vosso consentimento ou sem ele.
Os guardas baixam a cabeça, vencidos.
E pouco depois as grandes portas se abrem com ruído. Qual
o bom francês que tem coragem de resistir a uma ordem da
Donzela?
Joana atravessa o rio com a sua tropa. Glasdale tem seus ho-
mens reunidos no forte dos Agostinianos; fazendo uma sortida,
rechaça os primeiros soldados de Orléans, que chegam à mar-
gem esquerda. Mas Joana, que pisa terra firme com sua gente,
reúne-se a eles e, ajudada por D'Aulon, comanda uma carga de
lanças contra o inimigo. Ataca a porta do forte dos Agostinia-
nos. A sua presença anima os franceses.
O forte inglês cai. O estandarte branco da Donzela tremula
no alto da praça vencida.
A VIDA DE JOANA D'ARC 137

Joana volta para Orléans. Agora falta tomar as "Tourelles".


Exausta, a guerreira vai para o quarto. Dorme sono agitado.
Acorda com o corpo dolorido. Abre a janela.

Sábado — pensa ela. — Amanhã Orléans estará livre.


Pasquerel, seu confessor, vem saudá-la.
— O Senhor seja contigo, Joana.
— Amém.
— Tornamos a atacar hoje? — pergunta o padre.
E Joana:
— Sim. E hoje serei ferida, acima do seio esquerdo. No en-
tanto hei de voltar com vida: e pela ponte.
— Pela ponte?
E Pasquerel franze a testa, intrigado. Mas se a ponte está em
parte destruída?
No instante em que Joana se apresta para partir, aproxima-se
dela um pescador que lhe traz uma savelha enorme. De olhos
vidrados, boca sangrenta e aberta, o peixe se balouça nas mãos
do bom homem, que tremem de comoção.
138 ERICO VERÍSSIMO

— Olhe o que eu lhe trouxe! — diz ele para Joana.


Boucher pega a savelha. Ergue-a no ar. Grita para a cozinha:
— Venha cá, mulher! Mande fritar este peixe para a Donzela.
Ela vai comê-lo antes de sair para o ataque às "Tourelles".
Joana pousa a mão no ombro do pescador e diz:
— Bom homem, eu te agradeço. — Depois, voltando-se para
Boucher com um sorriso: — A m i g o , guarda o peixe para a ceia,
porque esta noite eu te trarei um goddam que há de querer tam-
bém um bocado.
Dum salto ganha a porta. Volta-se. Faz um gesto largo de des-
pedida. E grita:
— E não esqueçam: eu vou voltar pela ponte!
Boucher está imóvel, com o peixe na mão. Seus olhos não se
afastam da porta onde a Donzela se sumiu.
Joana, fora, olha o céu da manhã. Chama os pajens e o escu-
deiro. Manda buscar o cavalo. Monta. Atravessa o rio e var
reunir-se às tropas vencedoras do dia anterior.
Ao chegar à beira do Loire a Donzela contempla a ponte. Os
soldados de Orléans trabalham como formigas, tentando estabe-
lecer uma passagem sobre os arcos quebrados.
A cavalaria dos armagnacs atravessa o rio em barcas. O rio,
como um espelho puro, copia todas as cores do céu matinal. Os
cavalos estão inquietos dentro das embarcações.
E aqui vão muitos capitães ilustres. O pessimismo lhes ensom-
brece os rostos. Preferiam não a t a c a r . . . Mas Joana insistiu,
pediu, impôs desesperadamente a sua vontade...
As barcas deslizam. O Bastardo, apoiando-se na espada, con-
templa a outra margem. A seu lado La Hire pensa num plano
de ataque. No batelão que vem mais atrás, Poton de Xantrailles,
Florent d'Illiers e vários outros capitães discutem animadamente.
Dentro de meia hora as tropas francesas estão reunidas na
margem esquerda. Trazem canhões que se enfileiram agora com
as bocas voltadas na direção das "Tourelles".
Começa o assalto.
Joana entrega o seu pendão ao porta-estandarte e esporeia o
cavalo.
— Hardi!— grita, precipitando-se è frente das tropas.
Uma chuva horizontal de frechas parte das "Tourelles". Os
A VIDA DE JOANA D'ARC 139

franceses se aproximam do fosso. Os canhões troam. Um cheiro


de enxofre inunda o ar. Erguem-se nuvens de poeira.
Tombam os primeiros soldados nas fileiras de Orléans. O san-
gue começa a empapar a terra. Os canhões continuam a vomitar
fogo. As setas se entrecruzam e chocam no ar luminoso.
Joana desmonta. Desce o fosso que cerca a muralha que os
ingleses defendem. Encosta uma escada no parapeito. Ergue uma
perna para galgar o primeiro degrau. . . De súbito uma arbaleta
arremessada violentamente, do alto, passando pelo interstício que
há entre a couraça e a ombreira, se lhe crava no ombro e vem
sair no seio. Joana solta um grito. O sangue começa a manar da
ferida, escorre quente, borbotando, tinge de vermelho a arma-
dura clara. A Donzela cai. Mas se ergue em seguida, levando
a mão ao ferimento. A dor lhe põe uma nuvem escura diante dos
olhos. D'Aulon se aproxima dela e num relance compreende tu-
do. Com mais dois companheiros tira Joana do fosso. Ela resiste:
quer ficar. Levam-na à força para um lugar abrigado. Deitam-na
no chão. O sangue continua a correr.

— Eu sei duma cantiga mágica que faz parar o sangue,—


diz um dos homens que se acha ao lado da guerreira.
Joana ergue a cabeça e com voz fraca diz:
— Só aceito remédios lícitos. Ponham azeite de oliva na fe-
rida.
140 ERICO VERÍSSIMO

Enquanto lhe pensam o ferimento, Joana olha o combate. E


se aflige. E freme de impaciência. E mal o sangue cessa de ma-
nar ela se ergue, torna a pôr o elmo e s a i . . .
Afasta-se alguns metros do lugar da luta. Vai para uma vinha
e ali fica por vários minutos a orar. Depois volta correndo para
os seus soldados, toma o estandarte das mãos de um deles e leva-o
até a beira do fosso. No alto do parapeito apontam as cabeças
dos soldados da defesa. Quando vêem a Donzela, a sua fúria re-
dobra. Engrossa a chuva de setas. Saltam pedras que fazem uma
trajetória serena no ar e vêm cair nas fileiras dos armagnacs.
Caem homens com os crânios esfacelados.
Passam-se os segundos, os minutos, as h o r a s . . . A luz do sol
vai mudando de cor. O vento muda de rumo. E a batalha con-
tinua.
Servindo-se de abrigos de madeira, trincheiras móveis que
escudam pequenos grupos de guerreiros, os franceses repetem as
investidas '
E Joana os incita. Esquece o ferimento. Corre dum lado para
outro agitando o estandarte.
De mistura com as setas e as bombardas e as alabardas, os
ingleses arremessam também ofensas dirigidas à Donzela.
— Vaqueira dos armagnacs!
— Ordinária!
— Feiticeira!
E em Joana essas palavras doem mais do que a ferida que a
seta lhe rasgou no seio.
O Bastardo está desanimado. O dia declina. Seus homens es-
tão extenuados. Os ingleses não afrouxam a defesa. É loucura
insistir.
Anoitece. Começam a aparecer as primeiras estrelas no céu e
as primeiras luzes em Orléans. E luzes e estrelas enchem de pon-
tinhos prateados e amarelentos as águas do Loire.
O Bastardo consulta os outros capitães e manda as trombetas
dar sinal de retirada. E os sons das trombetas dominam os ou-
tros ruídos da luta. Os canhões cessam de atirar.
Joana estremece. Monta a cavalo e vai até ao Bastardo:
— Por Deus!—grita ela. — Espere ao menos mais uma hora.
— É inútil, — responde o comandante de Orléans. — A noite
chega. A tropa está cansada. Não há esperança.
A VIDA DE JOANA D'ARC 141

A Donzela faz gestos desesperados. Repete o pedido. Invoca


Deus. Pinta para o Bastardo um quadro de horror: Orléans ren-
dendo-se pela fome, Orléans invadida, Orléans em poder dos in-
gleses . . .
O Bastardo está imóvel. Por fim Joana lhe diz:
— Está bem. Leve os seus homens. Eu fico.
Puxa as rédeas, esporeia o cavalo e se precipita para a frente
da luta. A retirada já começa. Os armagnacs recuam. Os canhões
são arrastados para a margem do rio. É a derrota. ..
De repente, no meio da confusão, ouvem-se de novo as trom-
betas que agora dão ordem de atacar.
Joana puxa forte as rédeas e faz o cavalo estacar.
— Bravo, Bastardo! — exclama ela para si mesma.
Os armagnacs voltam ao assalto.
Os canhões tornam a atirar. Chegam reforços de Orléans. Um
brulote carregado de matérias graxas e inflamáveis é lançado
pelos franceses do meio do rio e agora, ardendo como um pe-
queno inferno flutuante, vai deslizando rumo da ponte levadiça
que, acima dágua, une a primeira torre de defesa à segunda.
De repente Joana vê o seu estandarte branquejar perto da mu-
ralha. Fita os olhos nele e compreende. O seu pendão está na
mão dum dos soldados armagnacs. E o soldado se acha sozinho
no fosso. Se os ingleses fazem uma sortida, o estandarte sagra-
do cairá em suas mãos.. . Num segundo a Donzela resolve.. .
Apeia. Corre. Desce o fosso. Arrebata a bandeira das mãos do
soldado e a agita no ar. Avança assim contra a muralha. Os sol-
dados franceses a seguem. O combate recrudesce. Encostam-se
escadas na paliçada. Começa a escalada.
Do alto caem pedras. Muitos assaltantes rolam. Uns conse-
guem transpor a muralha. Outros tombam com as mãos decepa-
das a machadinha. O sangue escorre pelo muro de pedra cin-
zenta. Clarões de incêndio iluminam visões horrendas.
E os soldados franceses sobem, sobem, sobem. Saltam o para-
peito. Tinem ferros. Os homens se atracam num corpo-a-corpo
selvagem.
A voz de Joana se destaca no meio das vozes mais fortes:
— Quando esta bandeira tocar o bastião, a vitória será nossa!
— diz ela.
E dentro de poucos minutos o estandarte branco ondula no
142 ERICO VERÍSSIMO

alto da fortaleza. Os ingleses recuam. Ganham a ponte levadiça


procurando passar para a bastilha de pedra. A ponte levadiça
verga ao peso dos soldados. Estrala. Cai. O brulote ateou fogo
nela.
Joana grita para o grupo de ingleses que se defende feroz-
mente:
— Glasdaie! Glasdale! Entrega-te em nome do Rei do Céu!
Tu me chamaste prostituta, mas tenho muita pena da tua alma
e das almas dos teus soldados.
Neste momento um novo ataque francês parte de Orléans e
cai violento sobre as "Tourelles". Os últimos ingleses tombam.
Glasdale morre com eles. Fazem-se muitos prisioneiros.
As trombetas soam anunciando a vitória das gentes de Orléans.
Brilham estrelas no céu. Brotam mais luzes em Orléans. Os
sinos da cidade libertada começam todos a badalar. Os sons cla-
ros invadem a noite.
Com grandes pranchas de madeira , os soldados franceses es-
tabelecem uma passagem por cima dos arcos derribados da ponte.
E aqui voltam eles para Orléans. Joana é carregada numa
rede. Vai de olhos cerrados. A ferida lhe dói. O vento da noite
lhe bate no rosto e lhe traz aos ouvidos a música contente dos
sinos.
XXXVI

" P A R A A F R E N T E , FILHA DE DEUS!"

A FERIDA ainda dói. Joana leva a mão ao peito e seu rosto


se contrai numa careta muito parecida com as que ela fazia
quando estava doente em Domrémy e madrinha Aubrit a obri-
gava a tomar remédios amargos.
A luz desta tarde de primavera entra pela janela aberta e inunda
o quarto da casa de Boucher onde Joana está hospedada.
Nas ruas o povo ainda canta e grita. Os sinos badalam. As
casas estão enfeitadas com bandeiras e guirlandas. O sol é uma
festa sobre os telhados.
Joana sentada ao pé da janela recosta a cabeça no espaldar da
cadeira e cerra os olhos de mansinho.
E bem como o Mosa que, passadas as tempestades de inverno
que lhe sujam e sacodem as águas, fica tranqüilo e límpido na
primavera, — assim agora Joana, cessada a tempestade da bata-
lha, começa a enxergar neste momento transparente todo o seu
passado.
De olhos fechados ela vê papai Jacques, mamãe Isabel, mano
Jacquemin, tio Henrique, as madrinhas... Domrémy lhe apa-
rece nitidamente diante dos olhos. Ela enxerga tudo tão bem. ..
A estradinha que leva para casa de Hauviette, o rio, a igreja com
o cemitério ao lado. . . E o bosque de carvalhos? Como ele
ficava engraçado no inverno, todo sarapintado de neve! Parecia
uma cabeça que começa a envelhecer. . . Depois o quintal da
casa. Os porcos chapinhando no lodo, e o sol botando respingos
.de fogo no chão do chiqueiro. O burrico paciente e peludo,
sacudindo as enormes orelhas para espantar as moscas.
Joana se deixa adormecer, ninada pela música dos seus pen-
samentos.
Mas batem à porta.
— Entre!
144 ERICO VERÍSSIMO

D'Aulon entra. Saúda a Donzela. Seus olhos chispam.


— Então?—pergunta a moça, percebendo que o companheiro
darmas está recheado de notícias. — Novas do rei?
D'Aulon atira-se sobre uma poltrona.
— Tens inimigos na Corte!—exclama ele, ofegante.
Joana sorri.
— Eu sei. -..
O escudeiro faz um gesto desesperado.
— Aquele gorducho miserável do La Trémouille. Vive a con-
tar mentiras ao Delfin. Quer por força conseguir uma aliança
com o Duque de Borgonha, porque sabe que o dia em que os
borgonheses abandonarem Bedford, não ficará mais nenhum
inglês em terras de França.
— La Trémouille! — murmura Joana. E continua a sorrir.
— Um dia a graça de Deus há de atravessar aquela couraça de
gordura e atingir-lhe o coração.
— Duvido! — berra D'Aulon. — N ã o há em Tours um ar-
meiro capaz de bater uma armadura mais espessa e mais resis-
tente do que as carnes do conselheiro do Delfim
Silêncio. Joana olha o céu.
— Notícias dos ingleses? — pergunta.
— Fortificados em Jargeau, Meung e Beaugency, — diz o es-
cudeiro.— E é isto que está preocupando o Delfim.
— O Duque de Borgonha?
— Um mistério. Não ata nem desata. Nem dá apoio a Bed-
ford nem combate a nossa gente.
— Está procurando tirar proveito de ambos os lados...
— Exato. E sabes o que ele disse? Ouve só: Hei de fazer
que cada um deles me deseje com tanto ardor que for fim eu
serei dono de minha própria Pátria e não terei rei acima de mim,
nem o meu primo Valois nem o Plantageneta.
— Bonitas palavras! — caçoa Joana, de bom-humor. — Mas Deus
resolveu que o Delfim há de ser o rei e único senhor de França.
— Amém! —exclama dAulon, meio sério, meio brincalhão
— Mas esta demora me impacienta. Estamos parados, parados.
A Donzela sorri da impaciência do amigo. Acalma-o com um
gesto.
Continuam a falar em planos de guerra. Por fim os olhos
de Joana vão aos poucos crescendo e ganhando um fulgor
A VIDA DE JOANA D'ARC 145

maior. E dentro de dez minutos ela está ardendo na mesma an-


siedade que abrasa o seu escudeiro.
— Precisamos ir falar com o rei, nem que tenhamos de bater
às portas da Sala do Conselho!
Joana ergue-se brusca. Onde está a menina que sonhava tris-
tonha com sua aldeia natal? Onde está a convalescente?
A guerreira acorda.
E no momento em que D'Aulon se retira e o quarto remer-
gulha no silêncio, as Vozes rompem a falar com insistência aos
ouvidos da Donzela. E lhe dizem de modo doce mas enérgico:
— Para a frente, filha de Deus! Estamos contigo. Vai! Vai!
No dia seguinte Joana segue para Loches.
Bate à porta da Sala do Conselho.
Ao vê-la, o rei se sobressalta. Tem vontade de se ajoelhar e ir
de rastos beijar a mão da libertadora de Orléans. Ou então de
gritar muito alto, sacudindo os braços: Viva Joana D'Arc! Viva
a Donzela! Mas a presença dos cortesãos e dos conselheiros o
deixa constrangido.
Joana se aproxima do Delfim, inclina-se diante dele e abra-
ça-lhe os joelhos:

—Delfim, nobre Delfim, não fique aqui desperdiçando pala-


vras com os seus conselheiros, mas ide a Reims para serdes
coroado. As Vozes me dizem: Para a frente, filha de Deus!
estamos contigo! Vai! Vai!
146 ERICO VERÍSSIMO

O gordo La Trémouille sorri amarelo. O rei hesita. E fraco,


para desconversar, diz a Joana que está muito satisfeito com a
vitória e que, como prova de seu reconhecimento, está pensando
em dar um título de nobreza à família D'Arc.
Já pensou até no brasão... Uma flor-de-lis branca em campo
azul... Que tal, hein? Que tal?
Muitas e muitas vezes Joana torna a insistir com o rei para que
ele decida reunir tropas e seguir com ela para Reims.
Carlos de Valois sonha com a coroa de França, sonha com a
Glória.. . Mas é tão boa e tão calma esta vidinha do castelo,
sem terras largas demais para governar, sem complicações, sem
fronteiras definidas... Beber, comer, dormir, ouvir intrigas, con-
sultar os astrólogos, dar recepções, pedir dinheiro emprestado a
La Trémouille e tolerar as suas impertinências... Tudo isto é
tão bom e ao mesmo tempo tão fácil, que o Delfim se deixa ficar
no castelo, preguiçosamente, voluptuosamente, como um lagarto
ao s o l . . .
Mas Joana persevera no pedido.
Passa-se um mês, depois da libertação de Orléans. O Duque
d'Alençon, que cada vez está mais cativo de Joana, também
procura convencer o Delfim.
— Convencer este diabo—confessa ele um dia, indignado —
é mais difícil do que tomar uma praça forte aos ingleses!
João de Metz, truculento e pouco amigo de diplomacias, pro-
põe, entre sério e trocista:
— Vamos raptar o Delfim e levá-lo amarrado à garupa dum
cavalo!
Os seus amigos riem. Joana diz:
— Ele há de ir livremente. A vontade dele será mais forte que
a de Deus?
E no mesmo dia torna a visitar Carlos de Valois, repetindo o
pedido. O Delfim coça o queixo ossudo e diz:
— Está bem. Vamos.
9 de junho de 1429. A grande comitiva se põe em marcha.
O Bastardo de Orléans, Joana e seus cavaleiros, Pasquerel, d'Au-
lon e os pajens seguem à frente das tropas.
Espalha-se a notícia da marcha rumo de Reims. O entusiasmo
torna a acender-se. Muitos guerreiros de. varras partes vêm em
auxílio de Carlos de Valois, atraídos pelas" façanhas da Donzela,
A VIDA DE JOANA D'ARC 147

fascinados pela energia,-pela coragem e pela serenidade da me-


nina de Domrémy.
A força engrossa. Guy e André, dois jovens de sangue nobre,
oriundos da Bretanha, juntam-se aos guerreiros de Joana. O
encontro se realiza em Selles. Os moços se aproximam da Don-
zela, fazem uma saudação com a espada e ajoelham-se-lhe aos
pés.
— Quero ser um dos teus, Donzela!—diz Guy.
— Meu maior desejo é combater ao teu lado, Joana D'Arc —
exclama André.
Joana manda servir vinho para os recém-chegados.
— À tua saúde, Donzela!—brindam eles, erguendo os ca-
necões.
Joana leva o copázio aos lábios. E seus olhos fitam a superfí-
cie vermelha do vinho onde uma visão se desenha de repente.
Unia cidade com altas torres e muitas casas. Ela reconhece Paris.
Numa hospedaria muitos guerreiros bebem e conversam anima-
damente. São guerreiros do Delfim... Os pendões dos ar-
magnacs tremulam na cidade. . .
Joana baixa o copo e diz aos jovens bretões:
—Em breve estareis bebendo em Paris!
Os olhos dos novos guerreiros se incendeiam.
XXXVII

UMA SEMANA GLORIOSA

PREPARA-SE a tropa para continuar a marcha.


Metida na sua armadura branca, Joana espera o novo cavalo
que lhe trazem. É um grande animal negro, inquieto e bravo.
Três homens não conseguem contê-lo: o cavalo sacode a cabeça,
empina as patas, escouceia e nitre. Os soldados que procuram
dominá-lo olham para a guerreira com ar apalermado, como que
pedindo socorro.
A VIDA DE JOANA D'ARC 149
Ê numa grande pr|ça. Homens e mulheres olham a cena e o
temor lhes tira a voz.
Joana faz um sinal e diz:
— Levem o cavalo até aquela cruz ali ao lado da igreja.
Com grande esforço os homens conseguem arrastar o animal
para o lugar indicado. E um milagre acontece. Diante da cruz
o cavalo se aquieta, fica calmo e dócil. Um rugido de admira-
ção se escapa de todas as gargantas quando Joana, serenamente,
a armadura chispando ao sol, monta com facilidade no cavalo
negro.
As suas mãos puxam com energia as rédeas prateadas e guiam
o corcel na direção do norte. Atrás da Donzela segue o exército
do rei.
D'Alençon e o Bastardo consultam Joana sobre o plano da
campanha.
— Primeiro marcharemos sobre Jargeau.
— Mas os nossos homens já atacaram a cidade com insucesso!
— declara d'Alençon.
— É que não estava com eles, — retruca Joana.
— Falstolf saiu de Paris com reforços para Jargeau — observa o
Bastardo.
— Maior será a nossa vitória, — afirma a Donzela, sem hesitar.
Jargeau fica a dois dias de marcha de Orléans.
Antes do anoitecer de sábado, o exército do Delfim chega aos
muros da cidade. Trazem de Orléans um grande canhão, cuja
boca assestam para Jargeau.
E é impressionante o grito dum dos capitães ao anoitecer, no
momento em que um crepúsculo de sangue tinge o céu:
— Fogo!
Um ribombo e pouco depois outro ruído, mais adiante, numa
das muralhas da cidade, atingida pelo tiro. As estrelas começam a
aparecer no céu. Os tiros continuam. Por fim uma brecha se
abre numa das torres principais da defesa. Joana prepara os
homens para o assalto. D'Alençon se aproxima dela e, para se
fazer ouvir no meio da tempestade de estrondos, berra:
— Não convém atacar. A brecha pode ser pequena demais
para os nossos homens entrarem.
— Para a frente! — grita Joana. — Rumo da brecha, sem medo
de nada! Esta é a hora do prazer de Deus! Não te lembras,
150 ERICO VERÍSSIMO

d'Alençon, que eu disse a tua mulher em Tours que te levaria


de volta com vida?
Joana esporeia o cavalo e se precipita como um dardo na
direção da cidade fortificada. Os soldados a seguem. Junto da
muralha, ela apeia e se dirige para uma escada.
Do alto da muralha desaba uma chuva de pedras e de setas.
No momento em que a Donzela alça o pé para subir o primeiro
degrau, uma pedra lhe cai sobre o elmo. Joana tomba. Mas se
ergue em seguida:
— Avante, amigos, avante! Coragem!—exclama. — Nesta mes-
ma hora seremos vencedores!
E, animados pela Donzela, os soldados do Delfim entram em
Jargeau, tomando conta da cidade. Os ingleses fogem. Os que
não fogem morrem ou ficam prisioneiros.
Suffolk, o comandante da defesa, cai nas mãos dos armagnacs.
Joana e os seus homens na mesma noite seguem para Orléans.
— Agora Meung! — diz ela a d'Alençon.
Na terça-feira seguinte Joana conduz a sua tropa rumo de
Meung, que fica a dois dias de marcha de Jargeau.
No caminho a Donzela diz a d'Alençon:
— Amanhã, depois da refeição do meio-dia, atacaremos Meung.
Dê Ordens.
E no dia seguinte Meung c a i . . .
Agora aqui segue Joana D Are montada no seu cavalo. Um
grande manto vermelho e verde-escuro lhe cobre a armadura.
Foi o Duque de Orléans que o deu de presente à Donzela, em
testemunho do seu reconhecimento por lhe ter ela devolvido a
sua cidade amada.
Anoitece. As estrelas se escondem atrás das nuvens com medo
da batalha iminente.
O exército libertador se aproxima de Beaugency. A guarnição
inglesa desta praça recebe a notícia de que Richemont, capitão
francês, se dirige para ela com muitos soldados, em auxílio do
Delfim. Sentindo-se fracos, os invasores abandonam a cidade e
a ponte, refugiando-se no castelo.
Joana recebe comunicação de que Richemont está prestes a
chegar. Seus olhos passeiam, interrogadores, pelos rostos de seus
capitães.
Um deles lhe diz:
A VIDA DE JOANA D'ARC 151

— Donzela, se me permites, eu digo que seria de bom aviso re-


cusar o auxílio de Richemont.
. Outro cavaleiro avança um passo e confessa:
— Sou da mesma opinião.
Mas d'Alençon chama Joana à parte e lhe segreda:
— São trapaças do gordo! La Trémouille tem um velho ódio
a Richemont. Não podemos recusar um auxílio tão precioso. De-
pois, diga-se a verdade, Richemont é bom chefe.
Joana hesita um instante. Mas a Voz lhe fala no meio do tu-
multo e ela decide.
La Trémouille instiga o rei a recusar o apoio de Richemont.
— Pois sim, La Trémouille. Vou dar ordem para que os meus
capitães se recusem a receber a ajuda de Richemont.
E dá.
Mas Joana recebe Richemont com muita amizade.
E Richemont lhe diz, sorrindo:
— Joana, eles diziam que tu me repelirias. Se és de Deus ou
és do Diabo, não sei. Se és de Deus, nada temo, porque Ele
sabe que meu coração é leal; mas se és do Diabo, aí então é que
eu não temo em absoluto!
E, muito amigos, Joana e Richemont ficam a conversar ani-
madamente.
Na mesma noite o castelo se rende.
A sexta-feira amanhece cheia de sol. La Trémouille, sabendo
do sucesso de seu inimigo Richemont, fica sombrio.
— Que cara é essa, homem?—pergunta-lhe um cortesão.
— Aquele faisão de ontem me sentou mal, — responde o con-
selheiro, escondendo o verdadeiro motivo da indisposição.
O acampamento dos soldados de Joana é despertado pela che-
gada dum mensageiro que traz a notícia de que o Gen. Talbot está
de volta com um novo exército. Não sabe que Beaugency caiu
e vem trazer-lhe socorro.
O. acampamento fica todo alvorotado, porque o nome de
Talbot é temido.
Ao saber do que se passa, Joana exclama:
— Em nome de Deus, precisamos dar-lhe combate! Mesmo
que eles estivessem pendurados nas nuvens, nós os arrastaríamos
para baixo!
Escurece. É a noite de sexta-feira e entre os soldados do Del-
152 ERICO VERÍSSIMO

fim corre um murmúrio de temor. Sexta-feira, dia agourento,


as bruxas andam soltas, as corujas piam, os defuntos saem de
suas sepulturas... E grandes guerreiros musculosos se encolhem
de medo.
Mas quando a Donzela passa por eles em cima do seu cavalo,
como uma visão branca varando o crepúsculo, todos os corações
se animam. Porque se irradia da guerreira uma luz tão clara, e
o rosto dela é tão lindo e tão sereno que os soldados sentem que
estão do lado de Deus.
No alto duma colina, Joana, em companhia de Richemont,
olha a planície que se estende a seus pés. Os ingleses devem estar
a pouca distância. Os campos dormem mergulhados numa cla-
ridade docemente azulada.
Com as primeiras estrelas chegam arautos da parte dos in-
gleses. Talbot oferece duelos de três cavaleiros contra três.
Mas os capitães de Joana lhe respondem por ordem dela: '
— Vão descansar por hoje: amanhã nos veremos bem de perto,
se Deus e Nossa Senhora quiserem.
Os arautos voltam a galope para Talbot.
Joana conversa com os seus comandantes.
— Tendes boas esporas?—pergunta.
— Por quê? — indagam eles. — Para fugir?
— Não. Para perseguir!
Risadas.
Joana passa em revista o seu exército. São perto de doze mil
homens.
Seguem para Meung, no dia 1 8 , sábado. Não encontram os
ingleses. Estes, com canhões, munições e vitualhas, se dirigiram 3
noite passada para Janville.
O exército do Delfim sai a persegui-los pela estrada que leva
a Paris.
— O gentil rei — diz Joana aos seus companheiros d'armas —
terá hoje a sua maior vitória dos últimos tempos.
Patay.
Pela grande planície de horizontes que fogem, o exército se
estende. O sol arde. O calor sufoca. ...
A tropa inglesa comandada por Talbot e Falstolf também
marcha sob o sol. Seus generais combinam um plano para sur-
preender os franceses. Talbot escolhe um grupo de arqueiros pe-
A VIDA DE JOANA D'ARC 153

ritos e firmes e manda-os ficar de tocaia numa depressão do ter-


reno, por trás,,dum bosque por onde vão passar as tropas fran-
cesas.
Na vanguarda do exército francês cavalgam alguns homens
encarregados de abrir a marcha e de dar o alarma quando avis-
tarem o Inimigo.
Aqui vão eles se aproximando do bojo onde os ingleses es-
tão escondidos. De repente, a poucos passos dos cavalos, um
veado assustado pelo tropel sai a correr como um doido. E os
vanguardeiros da Donzela, cheios de surpresa, ouvem agora os
gritos dos ingleses que em seu esconderijo saltam e gritam e
correm como bons "sportmen" tentando apanhar o animal que
entrou pinoteando, assustado, no meio deles.
— O inimigo! — diz um dos vanguardeiros. — Vamos voltar.
Seguem a todo o galope ao encontro de sua tropa, para dar
aviso aos chefes. Os soldados franceses se apressam e caem de
surpresa em cima dos ingleses emboscados e os desbaratam.
Falstolf e seus infantes, com o melhor da cavalaria, se apres-
sam para encontrar os homens que estão imediatamente atrás
dos arqueiros, comandados por um cavaleiro que agita um es-
tandarte branco. Este chefe inglês, vendo a poeira e ouvindo o
tropel, julga que se trata do inimigo e bate apressadamente em
retirada. Quando Falstolf, a todo o galope, chega com sua gente
ao lugar onde se encontrava a sua vanguarda, vê-se só e despro-
tegido, com os infantes muito longe e todo o exército francês pela
frente.
Os generais do Delfim percebem a confusão dos ingleses e
dão ordem de avançar.
As lanças armadas se projetam na direção dos peitos dos
infantes de Falstolf. O choque é horrível. Os ingleses caem um
por um.
— A vitória!—murmura Joana, cerrando os olhos.
No campo aberto os feridos gemem. Os vencedores cercam as
carretas de víveres.
Joana passeia por entre os destroços. E cobre o rosto com
as mãos ao ver sangue e carnes dilaceradas e sente uma frechada
no coração ao pensar que todas essas criaturas morreram sem
confissão.
154 ERICO VERÍSSIMO

Talbot está prisioneiro. É levado à presença do jovem Duque


d'Alençon.
— Então — pergunta-lhe este — hoje de manhã nem sonhavas
que isto podia acontecer, hein?
Talbot está imperturbável. Com um sorriso polido responde:
— Fortuna de guerra...
O exército vencedor se aproxima de Lignerolles, onde Joana
passa a noite.
Não consegue dormir, apesar da canseira. Não pode esquecer
o gemido dos feridos. Nem as visões sangrentas do campo de
batalha.
Mas depois de rezar muito e muito, a calma lhe vem como
duas mãos frescas e macias que pousam sobre seu rosto febril. E
ela dorme. Dorme e sonha que o Delfim está sendo coroado em
Reims.
XXXVIII

PARA REIMS!

O D U Q U E d'Alençon manda vir à sua presença Talbot, o general


prisioneiro.
— Uma vez eu caí nas mãos do inimigo, — diz o jovem capi-
tão— mas os meus me resgataram por alto preço.
Talbot está silencioso, de cabeça erguida.
D'Alençon continua:
— Vós sois um general inglês. E sabeis quanto vale para mim
um chefe da vossa têmpera?
Talbot sacode a cabeça, negativamente.
— Pois vale tanto, — termina o duque — que não há preço
para o seu resgate. Podeis ir em paz.
Dá dois passos e entrega-lhe a espada. Talbot faz-lhe uma sau-
dação militar. Nenhum músculo de seu rosto se move. E ele sai,
acompanhado de dois cavaleiros franceses.
O exército da vitória marcha para Orléans.
O povo o recebe com entusiasmo. Gritos e vivas. Ruas emban-
deiradas.
— Onde está o rei?—perguntam vozes.
Mas o rei não entra com a tropa, como se esperava.
— O rei! O rei!
Os gritos redobram. Os soldados desfilam mas Carlos V I I não
aparece.
Neste momento de entusiasmo e de ruído, em que o tinido
das lanças e das espadas se mistura com o tropel dos cavalos
e os gritos dos habitantes de Orléans, o rei no seu castelo silen-
cioso olha as moscas que voam ao redor do seu nariz, enquanto
La Trémouille lhe vai enumerando os perigos de uma viagem a
Reims.
— Entre este castelo e Reims, alteza, existem muitas cidades
fortificadas em poder dos borgonheses. E os borgonheses, nós
156 ERICO VERÍSSIMO

sabemos que não são nossos amigos... Vá contando nos dedos...


Auxerre, Troyes, Châlons... Até a própria Reims tem muitos
castelos fortes e muralhas difíceis de transpor...
Carlos de Valois olha o vôo caprichoso duma mosca que traça
um s no ar e vai pousar na testa de La Trémouille. Começa a
rir baixinho.
— De que é que está rindo, alteza? Não é brinquedo. Quatro
cidades fortificadas! É melhor ficar...
— Ai, meu Deus!—exclama o Delfim.
— E depois, onde é que se vai conseguir dinheiro para pagar
as tropas?—prossegue La Trémouille, importuno como a mosci
que voa da sua testa e vai pousar de novo no nariz do rei.—
São cem léguas que nos separam de Reims.. .
Cem léguas para o Delfim correspondem ao Infinito. Cem
metros para ele já parecem distância respeitável.
Menos de cem passos o separam da mesa onde agora acabam
de servir a ceia. E Carlos de Valois se ergue resoluto e marcha
para a sala de refeições, com passo firme, teso e importante
como um general.
Joana vem procurar o Delfim, cansada de esperá-lo. Encontra-o
em S. Benedito, à margem do Loire.
— Em nome do Senhor eu vos suplico, nobre Delfim, que
me deixeis conduzir-vos a Reims para a coroação.
O Delfim desconversa:
— Estou maravilhado com as tuas vitórias.. .
— Vamos, nobre Delfim, a coroa vos espera.
— Conseguiste a maior glória para as armas de França!
Os dias passam. Joana insiste. Por fim o rei cede.
— Vamos para Gien!—resolve ele.
Vão. Mas corre uma semana e a comitiva real não se move
de Gien. Falta dinheiro. Faltam provisões. É preciso abastecer
e pagar as tropas.
Novos cavaleiros chegam de castelos distantes, seduzidos pelo
que se conta da Donzela. E todos vêm entregar a Joana os seus
corações e as suas espadas.
O exército engrossa.
Mas a guerreira está impaciente. A inatividade lhe causa mal-
estar. Ela chega a sentir saudade do peso da armadura, do balanço
do cavalo, do ruído da batalha. Sua espada jaz adormecida na
A VIDA DE JOANA D'ARC 157

Abainha. Virgem de sangue. Não feriu ninguém. Nem sequer viu


a luz dos combates.
Raia o dia 26 de junho. Não conseguindo conter-se por mais
tempo ela segue com seus homens na direção do norte.

Seus olhos agora estão voltados para Reims. Para Reims, a


cidade da grande catedral. Reims significa a Coroa de França.
Reims é a ampola sagrada.
Ao lado de Joana seguem d'Aulon, d'Alençon, o Bastardo, La
Hire e os jovens pajens. O estandarte branco tremula nas mãos
da Donzela.
Dois dias depois o Delfim e o seu séquito vão ao encontro do
exército que marcha para Reims.
A primeira cidade fortificada aparece. Auxerre. O sol do ve-
rão doura os seus telhados e as suas torres. Os borgonheses estão
senhores da cidade.
Será que resistem? — é a pergunta que anda na cabeça de todos
os capitães franceses.
158 ERICO VERÍSSIMO

La Trémouille, que acredita mais no poder do dinheiro do que


na força das armas, passa secretamente duas mil peças de ouro
para as mãos dos borgonheses, que não opõem nenhuma resis-
tência ao exército do Delfim.
Os franceses se abastecem em Auxerre e seguem para diante.
Chegam a Troyes. É a maior das cidades que se erguem no ca-
minho que leva a Reims.
4 de julho. Os capitães do Delfim contemplam a cidade que
se avista a pouca distância. Ali estão as muralhas e as torres
fortificadas, defendidas por uma boa guarnição de borgonheses,
misturada com alguns soldados ingleses. Como receberá o exér-
cito do Delfim?
Joana não se detém em considerações passivas.
Manda um emissário a Troyes, intimando os seus defensores,
em nome do Rei do Céu, a se renderem e a prestarem obediên-
cia ao verdadeiro rei que ainda vai ser o senhor absoluto de todas
as cidades de França.
Mas a guarnição de Troyes não se deixa convencer como a de
Auxerre:
— Dizei aos vossos generais que não há nada que nos faça
entregar a cidade.
Mas depois que os arautos de Joana voltam trazendo-lhe esta
resposta, um fato admirável acontece.
Irmão Ricardo, um religioso de Troyes, sai de sua cidade e se
dirige para a Donzela, fazendo o sinal-da-cruz e aspergindo água-
benta para afugentar os espíritos da treva.
Joana ao vê-lo gesticular aflito, grita-lhe, rindo:
— Venha sem medo!
O padre se aproxima.
— Olhe, bom irmão, volte para a sua cidade e diga-lhe que
se entregue. Esta é a vontade do Senhor.
Irmão Ricardo volta para Troyes mas não consegue convencer
a guarnição que a defende. Os borgonheses sabem que o rei tem
um exército poderoso mas não ignoram também que lhe falta
alimento.
O Delfim reúne o seu Conselho. O desânimo volta a tomar-
lhe conta do espírito. Fala-se em retirada. Troyes não se entre-
gará. Os víveres acabaram. A tropa está quase a cem milhas de
Gien.
A VIDA DE JOANA D'ARC 159

Joana é trazjda a presença do Delfim. Fica ao corrente da


situação.
— Nobre Delfim, por que acreditais em tudo o quanto vos di-
zem? Esperai uns poucos dias e a cidade será vossa.
Regnault, Arcebispo de Reims, que faz parte do Conselho, diz:
— Não podemos resistir mais de seis dias sem mantimentos.
— Oh! Tende fé, todos vós! — suplica-lhe a guerreira.
Anoitece.
Joana se enfurna no acampamento e vai de homem a homem,
com- palavras de entusiasmo e conforto.
— Firmes! Precisamos vencer!—diz a uns.
E a outros:
— Afiem as lanças! Tenham fé em Deus!
Mais adiante:
— Façam escudos de madeira para o assalto!
E o acampamento ganha vida. Todos trabalham. Os que es-
tão quase fraquejando, olham para Joana e, vendo esta menina
de dezessete anos que não conhece nem o medo nem a canseira,
— se envergonham e cobram ânimo.
Amanhece a segunda-feira. À primeira luz da manhã, Joana er-
gue o seu estandarte e, diante da tropa que se acha preparada
para o assalto, grita:
— A eles!
O ataque começa. Os canhões rugem. Uma nuvem de setas
escurece o ar. Uma linha de homens vestidos de aço caminha
firme rumo à cidade: parece uma muralha em movimento. E o
seu ímpeto é tão forte que a guarnição da cidade se assusta e
afrouxa na defesa.
Troyes cai. Joana invade a cidade e reabastece fartamente sua
gente.
O último obstáculo foi derribado. Châlons, que fica entre Troyes
e Reims, não terá coragem de resistir ao grande exército.
À aproximação de Reims, até o Delfim se anima.
Já começa a pressentir na cabeça o peso amável da coroa. Rei!
Rei de verdade! Rei de França!
No quarto em que descansa, Joana ora. Ora e agradece a Deus
que lhe deu coragem e constância para vencer e para cumprir as
suas divinas ordens.
XXXIX

CHÂLONS E REIMS C A P I T U L A M

CHÂLONS não oferece nenhuma resistência. João de Montbéliard-


Sarrebruck, conde e bispo de Châlons, sai ao encontro do Del-
fim e lhe entrega as chaves da sua cidade.
O exército libertador entra na praça que capitulou.
Joana está contente. Não se derramou sangue. Não foi preciso
sacrificar vidas.
As ruas de Châlons estão cheias de povo. Ouvem-se algumas
aclamações fracas. Mas na maioria das caras há uma expressão
de temor e desconfiança.
Joana vai olhando, divertida, a fileira fervilhante de máscaras
que se voltam para ela e ficam paradas, fixas, contraídas numa ca-
reta, imóveis como se fossem de pedra. Uns olham para ela
com um ar de respeito religioso. Nos olhos de outros transparece
o temor. Vêem-se mulheres que fazem O sinal-da-cruz à passagem
da Donzela. Um homem alto e louro dá alguns passos e, correndo
o risco de ficar sob as patas dos cavalos, vai beijar-lhe a mão.
Joana sorri docemente. E continua a olhar as máscaras. Homens
de caras barbudas e reluzentes. Gordos e magros. Cabelos ruivos,
negros, castanhos, esverdeados, brancos, cor de fogo.. . Caras ve-
lhas e moças, alegres e tristes, enrugadas e lisas, coradas e pá-
lidas... Roupas de todas as cores. Pano grosseiro de mistura
com seda. Mãos que se agitam. Mãos que se erguem na ânsia de
se aproximarem. Mãos que se abrem como a quererem afugentar
fantasmas. Mãos de velhos, de moços, de mulheres, de crianças,
de soldados, de camponeses. .. Mãos. E caras, mais máscaras, mais
olhos... E de repente Joana sente um sobressalto, porque os
seus olhos caem numa fisionomia familiar...
João Morel!
Um homem corre na direção da Donzela.
— Joaninha!—exclama ele, rindo de contentamento. — Joa-
ninha!
A VIDA DE J O A N A D'ARC 161

Beija a mão da moça e, segurando-lhe a bainha da espada com


ambas as mãos, vai acompanhando ã marcha do cavalo, com o
rosto erguido para a guerreira.
— Padrinho João Morel!
— Em pessoa!
E Joana reflete com tristeza que, apesar de a ter levado à pia
batismal, João Morel em Domrémy não lhe dava a menor impor-
tância.
— Papai e mamãe?
— Estão bem. Teu pai vai a Reims, ele me disse.
— Que é feito da nossa terra?
— No m e s m o . . .
João Morel de quando em quando olha contente para a mul-
tidão e, fazendo com a cabeça um sinal na direção de Joana, diz:
— É minha afilhada!
E segue, muito orgulhoso, marchando parelho com o cavalo.
— Sabes, Joaninha? Pois eu estou muito satisfeito com tudo o
que tens f e i t o . . . Quem havia de dizer, hein?
Joana baixa os olhos para o camponês e sorri.
João Morel continua:
— Sabes, Joana? Eu quero que me dês uma lembrança tua.. .
Já se viu? Sou teu padrinho e não tenho nenhum trapinho da
Donzela de Orléans como recordação.
Joana bate-lhe no ombro:
— Eu vou lhe dar o meu vestido vermelho com que saí de
Domrémy!
Ao chegar na praça central de Châlons a multidão envolve
Joana D'Arc. Todos querem ver, tocar a Donzela milagrosa de
quem se contam maravilhas. João Morel é arrastado pela onda
e se perde no meio do povo.
Os habitantes de Châlons escrevem aos de Reims aconselhando-
os a receber o rei.
Ao se aproximar de Reims a vanguarda do exército do Delfim
recebe os mensageiros que lhe vêm dizer que as portas da ci-
dade estão abertas para receber o rei e os seus soldados.
Joana contempla a cidade desejada. Reims! Daqui deste ou-
teiro ela avista as torres finas da grande catedral. Reims lhe
aparecia bem assim no seu sonho, bem assim com aqueles muros
altos, aquelas torres, aqueles telhados...
162 ERICO VERÍSSIMO

Todos os seus grandes desejos se realizam. Primeiro, o de


ir a Vaucouleurs, à procura de Sire Roberto de Baudricourt. De-
pois, o de chegar a Chinon a ver o Rei. A seguir: o de libertai
Orléans. Agora Reims! Reims e a sagração do Delfim!
Quando os cascos do seu cavalo batem nas pedras das ruas de
Reims, Joana sente uma comoção tão grande que tem a impres-
são de que vai c a i r . . .
Ao anoitecer se encontra diante da catedral
A VIDA DE JOANA D'ARC 163
Tem uma sensação opressiva. Perde a fala. Treme. Sente-se
pequenina, humilde, ninguém. É como se se visse de repente
sozinha na frente de Deus.
Fica olhando para a silhueta escura e silenciosa que negreja
diante dela.
Por trás da catedral o céu é dum azul pálido e esverdeado. Pis-
cam as primeiras estrelas.
Joana está em silêncio. Parada. Aniquilada. Não tremeu nem
hesitou nos combates. Nunca teve medo. Agora se sente ven-
cida. Vencida por estas pedras antigas. Mais velhas do que ela,
do que seu pai, do que os avós que ela não conheceu. Foi ali
dentro daquela grande casa severa que S. Remígio batizou Clóvis,
o rei pagão.
Joana continua imóvel diante da catedral. A luz prateada da
noite começa a clarear a enorme fachada. As imagens dos santos
ganham relevo. Parecem pessoas vivas, que têm olhos e estão
olhando. Olhando e escutando a linguagem das coisas mudas.
Dentro da armadura, o coração da Donzela bate-que-bate. Ela
pensa em Domrémy. N u m relâmpago recorda toda a sua aven-
tura. Agora se aproxima o fim. Depois da coroação do Delfim,
que será dela?
Há nos seus olhos esta pergunta ansiosa.
A catedral, parada, enorme, parece uma pessoa rezando, de
joelhos sob o céu noturno. As duas setas das torres estão voltadas
para o alto, mostrando Deus. Por cima delas, faíscam os astros.
Joana ergue os olhos e reconhece as mesmas estrelinhas que ela
via em sua aldeia natal nas noites em que não tinha sono e ia
para a janela olhar o céu.
Tudo agora é tão estranho... Parece um sonho. ..
Um cavalo entra a galope no largo. O estrépito de suas patas
acorda ecos atrás da catedral.
Joana desperta. O encantamento se quebra.
XL

A SAGRAÇÃO

UM DOS IRMÃOS de Joana chega com esta notícia alegre:


— Joana, papai está na cidade!
— Papai?
O rapaz sacode a cabeça.
— Falei com ele há pouco.
— Onde?
— Está parando no "Burro Raiado". Queres ir até lá?
Saem juntos. *
E agora aqui está Joana à porta do salão da hospedaria. Jacques
D'Arc, que se encontra sentado a pequena mesa, diante dum copo
de vinho tinto, ergue os olhos para a porta e fica olhando fixa-
mente para a menina vestida de homem na qual a custo reconhece
a filha.
Seus lábios tremem. Seus olhos piscam. E ele gagueja:
— M i . . . minha filha!
Joana sorri com doçura. Aproxima-se do pai, que dá dois pas-
sos na direção dela. Abraçam-se.
Jacques D A r c está maravilhado.
— Mas como é que eu ia te conhecer? Assim, vestida de ho-
mem . . .
Olha-a da cabeça aos pés. Com respeito. Acanhado. Sem saber
que dizer nem fazer.
Sim, esta é a sua Joana. Um dia ele disse que havia de afo-
gá-la se ela, confirmando o seu sonho, saísse a cavalo em com-
panhia de soldados. E ela saiu. Desde então muitas coisas ex-
traordinárias aconteceram. Coisas que parecem bruxaria. O no-
me de sua Joaninha encheu toda a França. Dizem que ela ouve
vozes do céu. Que obedece às ordens de Deus. J o a n a . . . A sua
Joaninha com quem freqüentemente ele ralhava. A Joaninha que
muitas vezes foi castigada pelas suas mãos. Por estas m ã o s . . .
A VIDA DE JOANA D'ARC 165

E Jacques D'Arc tolha para as mãos ásperas e calosas. Sim,


por estas mãos. No entanto Joana agora está em sua frente e
ele não encontra palavras para lhe dizer. Ela está mais crescida,
mais forte e até mais bonita. Parece uma pessoa estranha. Ele
tem medo de tocá-la. Medo, propriamente não. Respeito. É
como se ela fosse sagrada.. .
Por trás da Donzela está Pedrinho. Um homem. Já tomou
parte em combates. Combates de verdade e não de brinquedo,
como as guerras entre os meninos de Maxey e os de Domrémy.
E no meio do seu grande embaraço, Jacques só encontra estas
palavras para dizer:
— Vim ver a sagração do nosso rei.
Joana sacode a cabeça mansamente. E como se sentisse hu-
milde e insignificante demais diante da filha que fez tantas coisas
grandes, Jacques acrescenta:
— Sim, foi na qualidade de representante de Domrémy que
eu vim. — Sorri. Coça o queixo. — Estou encarregado de pedir
ao rei que nos livre de impostos...
E de repente, vendo qualquer coisa brilhar no dedo de Joana,
muda de tom:
— O anelzinho de latão que mamãe te deu?
Joana estende a mão:
— Veja. É ele mesmo. Nunca saiu daqui.. . Nem há de sair.
Pedro avança, orgulhoso:
— Muitos lábios têm beijado esse anel, papai.
— Veja só!—exclama o camponês.
— Todo o mundo quer encostar a mão em Joana. Até gente
de sangue nobre, papai, imagine!
Jacques D'Arc está encantado.
E nos cinco dias que se demora em Reims tem muitas opor-
tunidades de ver como o povo adora a sua Joana.
Amanhece o dia 17 de julho.
Joana conversa com o seu confessor, Irmão Pasquerel, e lhe
diz:
— Este é o dia mais feliz de minha vida.
Nas ruas de Reims o povo formiga. Todos querem assistir à
passagem do cortejo. Festa de coroação é coisa rara. Não acon-
tece todos os dias.. .
166 ERICO VERÍSSIMO

Quando aparece o rei com a sua comitiva rebrilhante, o povo


grita: Noel! Noéll
E as conversas explodem em todos os pontos. N u m grupo de
comadres alguém diz:

— Que pena! Aquela coroa linda de brilhantes e rubis, de


safiras e esmeraldas que andou na cabeça do Rei Carlos Magno
está nas mãos dos ingleses...
— Não senhora! Ouvi dizerem que a Donzela fez um passe
mágico e a coroa voou de volta para Reims.
— Mentira!
— Sim senhora!
— Os ingleses estão guardando a coroa para o Infante Hen-
rique.
— Dêem um brinquedo para o menino que é melhor.
Gargalhadas.
Outros comentam:
— Olhem só a cara do Delfim. Parece mais um pajem do que
um rei.
Uma menina loura suspira:
— Mas conheço um pajem que é mais lindo que todos os
reis...
A VIDA DE JOANA D'ARC 167

— Sossega, bobinha! — resmunga uma velha.


— Olha o nariz dele, mamãe! — grita um pequeno, puxando
na saia duma senhora gorda e mostrando o rei que passa no seu
cavalo.
— Cala a boca, malcriado! — sussurra a mãe, beliscando o
filho.
E o cortejo passa no meio das aclamações.
São nove horas da manhã. Carlos de Valois entra na catedral.
Seguem-no alguns pares do reino. As figuras mais ilustres da
nobreza e do clero. O Duque d'Alençon. Os Condes de Vendôme
e Clermont, os Cavaleiros de Laval e de Maille. O gordo La Tré-
mouille, nas suas roupas mais finas, ostenta um sorriso amarelo
como o seu ouro. O arecbispo de Reims, o bispo de Châlons e
o bispo de Laon, também estão presentes.
Joana entra na igreja com o seu estandarte. A flâmula já não
ondula ao vento. Parece uma ave branca de asas caídas, dormindo
um sono leve, leve.
A Donzela passeia os olhos pela nave. Como tudo isto é lindo!
Mas — curioso—parece que estes santos, estas colunas, estes
castiçais, estas pedras todas são velhos conhecidos seus...
O sol da manhã incendeia os vitrais e inunda o interior da
catedral. Brilham espadas e armaduras. O altar é uma festa de
ouro.
A cerimônia da coroação começa.
Carlos de Valois, metido em roupagens bonitas, está perfilado
diante do altar, — ombros encolhidos, joelhos encostados, fazendo
um esforço enorme para imitar o aprumo dos outros cavaleiros.
O arcebispo de Reims, imponente em suas vestes cor de sol, se
ergue entre Carlos de Valois e o altar.
O Delfim, com voz trêmula, jura conceder paz e privilégios à
Igreja. Promete não carregar o povo de impostos. (Neste momento
brilham os olhinhos de La Trémouille.) Promete governar com
misericórdia e justiça.
O Duque d'Alençon aproxima-se do seu real primo e arma-o
cavaleiro. Carlos, Sire d'Albert, segura a espada.
Ao lado do Delfim se acha Joana D'Arc.
O arcebispo unta Carlos de Valois com os santos óleos.
Joana cerra as pálpebras e recorda. Uma noite sonhou que ela
mesma havia posto uma coroa resplandecente na cabeça de seu
168 ERICO VERÍSSIMO

r e i . . . Uma coroa que havia descido do céu pela mão de um


anjo.
Mas ai! A rica coroa de Carlos Magno, toda crivada de pedras
preciosas, está em poder dos inimigos de França.
O arcebispo de Reims toma da modesta coroa fornecida pelo
Chapitre e, com ambas as mãos, a leva à cabeça do rei.
Parece um gesto mágico. Porque imediatamente um grande
ruído se levanta. Muitas trombetas soam. O povo começa a
gritar: Noel! Noel!
Carlos VII está coroado.
Joana tem a impressão de que seus pés não tocam no chão da
catedral: seu corpo está pairando no ar, como os das suas visões
de S. Catarina e S. Margarida. A seu lado o fiel pajem Luís de
Coutes sorri como se estivesse enxergando e ouvindo um coro
de anjos. Irmão Ricardo, o religioso de Troyes, que, fascinado
pelo ar de santidade de Joana, não a quis abandonar mais, ftjoe-
lha-se e ora.
E as trombetas soltam notas límpidas, notas faiscantes que
sobem como uma onda luminosa' e são multiplicadas em ecos
por toda a catedral.
— Noel.' Noel! — grita o povo. E as aclamações redobram.
Meio-dia. A cerimônia está finda.
Joana se ajoelha aos pés de seu rei e, abraçando-lhe as pernas,
diz-lhe com os olhos cheios de lágrimas:
— Gentil rei, agora se cumpriu a vontade de Deus que quis
que eu libertasse Orléans e vos trouxesse a esta Cidade de Reims
para receberdes o vosso Santo Sacramento, mostrando que sois o
rei verdadeiro ao qual o Reino de França deve pertencer.
Carlos veste o manto real que é azul como o céu da França na
primavera, e todo bordado de flores-de-lis de ouro.
Monta no seu corcel e, acompanhado da grande comitiva, per-
corre as ruas de Reims.
Noel! Noel!
Depois do desfile começa á distribuição dos presentes. Um
tapete de cetim verde e ornamentado de veludo vermelho e da-
masco branco ao Chapitre. Um vaso de prata para o altar da
catedral. O título de conde para La Trémouille. O de marechal
de França para Sire de Rais. O Cap. La Hire e o jovem Laval
são também feitos condes.
A VIDA DE JOANA D'ARC 169

Grande banquete na ca|a episcopal de Reims. Em torno da


longa mesa sentam-se figuras ilustres. Nobres senhores, prelados,
capitães, funcionários do rei. A mesa vai até a rua. A festa se
prolonga por toda a cidade.
Nas casas, públicas e particulares, nas praças e até no meio
da rua homens e mulheres e crianças comem. Há grelhas acesas
ardendo pelas esquinas. Matam-se várias dezenas de bois. Esva-
ziam-se os galinheiros. Abrem-se as pipas de vinho de Borgonha.
De Borgonha, sim! Vinho dos inimigos do nosso rei!
Bebamos vinho, muito vinho: é como se estivéssemos sugando
o sangue do maldito Duque de Borgonha, inimigo do gentil
Carlos de Valois, Rei de França!
Noël! Noël!
Em torno da grande mesa os capitães contam bravatas. O
vinho faz brilhar os olhinhos do rei. La Trémouille está atracado
com um faisão dourado.
Os olhos do Duque d'Alençon percorrem inquietos os rostos
dos convidados, um a um. Mas onde estará Joana D'Arc? D'Alen-
çon procura em vão. A Donzela não se encontra entre os con-
vivas.
Começam já a esquecê-la, — pensa ele com tristeza. — É o
princípio do abandono absoluto, quem sabe se até da hostili-
dade.. .
E para abafar a sua mágoa ele emborca o copázio de bom Bor-
gonha.
XLI

SILÊNCIO

CESSOU a música das trombetas. Nas ruas o povo já não grita


mais. Faz-se um silêncio muito grande sobre Reims e sobre a
alma da Donzela.
Joana p e n s a : — A missão está cumprida. O rei coroado.. As
Vozes não lhe sussurram mensagens novas.
Mas seus olhos se voltam irresistivelmente para as bandas de
Paris.
E se o rei decidisse marchar sobre a grande cidade, aproveitando
a confusão e o abatimento que reina no campo inimigo, conse-
qüências das últimas derrotas? Oh! Seria l i n d o . . . Paris voltaria
para o seu verdadeiro senhor. Os ingleses e os borgonheses per-
deriam o seu derradeiro reduto f o r t e . . .
Joana sonha. Fecha os olhos e vê o rei cavalgando pelas ruas
de Paris reconquistada. O povo o aclama. Noël! Noël/ Bandeiras
e lenços coloridos. Lanças ao sol. Elmos e estandartes. Escudos
e espadas. Vitória!
Mas em Reims agora só se fala em paz. O Duque de Borgo-
nha mandou uma embaixada para saudar o rei recém-coroado
e fazer-lhe uma proposta de trégua. Carlos de Valois aceitará?
Não aceita, — dizem uns. Aceita, — afirmam outros. E nas ruas
de Reims as conversas se entrecruzam, as opiniões se chocam.
Burgueses barrigudos e conspícuos dizem com voz grossa:
— Se eu fosse o r e i . . .
As comadres murmuram. Os capitães confabulam. Os olhos
se voltam para o castelo onde está hospedado Carlos VII.
O soberano repousa. Passa as horas ruminando a sua grande
façanha. Passeia pelos grandes corredores do castelo com passo
marcial, detém-se diante dos espelhos, mira-se neles apaixonada-
mente, recua um passo, dois, estaca, perfila-se, franze a testa, volta
um pouco o rosto para o lado, olha-se de soslaio, sorri: sente-se
A VIDA DE JOANA D'ARC 171

um herói. Passam-lhe pela mente, numa cavalgada fantástica,


as recordações das últimas vitórias. Orléans, Beaugency, Jargeau,
Meung, Patay... Oh! Patay... que vitória!
E continua a passear a sua ilustre pessoa pelas salas do cas-
telo. Mas o peso da glória somado ao peso da coroa que o bispo
de Reims lhe pôs na cabeça — começam a tornar-se insuportáveis.
Há um momento em que Carlos VII, vergando sob a carga
gloriosa, atira-se pesadamente numa cadeira. É que lhe invadiu
a mente a idéia de que mais batalhas virão, mais cavalgadas in-
cômodas e perigosas...
La Trémouille aparece.
— Sire, e a embaixada do vosso ilustre primo Filipe, Duque
de Borgonha?
O rèi se anima. Seus olhinhos brilham. Sim! A embaixada.
Ele ia esquecendo. A embaixada foi uma surpresa. A mais agra-
dável de todas as surpresas.
— Esse primo Filipe é mesmo um grande homem! — exclama
Carlos de Valois, sorrindo.
La Trémouille inclina-se sobre o soberano. Diz-lhe que a
Donzela e os seus capitães pensam em atacar Paris. Estão ansiosos.
Esperam apenas a ordem de marchar.

O gordo cortesão insinua, conta, intriga, sugere. É um barril


com a boca voltada para o rei, despejando conselhos. O rei es-
cuta. O rei pensa. O rei sofre.
172 ERICO VERÍSSIMO

Não quer contrariar Joana D'Arc. Mas tem um fraco pelo primo
Filipe. Fazer as pazes com o Duque de Borgonha foi sempre o
seu sonho mais acariciado.
La Trémouille representa o pensamento da maioria da corte.
— A pastorinha pretensiosa precisa dum freio, majestade!
— diz ele, inclinando-se sobre o rei, enquanto suas bochechas
vermelhas e lustrosas tremem. — Se nos entregarmos de corpo e
alma à vaqueira, onde é que vamos parar?
A dúvida é um polvo que envolve o rei nos seus tentáculos.
O pobre Carlos VII mergulha mais fundo na poltrona estofada
de damasco. Sente-se pequenino, ao passo que vê crescer diante
de seus olhos o vulto do conselheiro.
— O que a França quer é a paz.
— Paz? — repete Carlos.
Agita-se na poltrona. Seu rosto resplandece.
Paz? Mas se ele não quis outra coisa em toda a sua vida!
— Precisamos chamar o Duque de Borgonha para o nosso
lado.. . —sussurra-lhe La Trémouille, piscando um olho.
— Sim, o primo Filipe. . .
— Sem ele Bedford ficará desnorteado.. .
La Trémouille sorri. O rei sorri, como se fosse a própria ima-
gem do conselheiro, refletida e deformada por um espelho con-
vexo.
— Vá falar com os embaixadores de Borgonha, La Trémouille.
Discuta com eles uma trégua. As condições? Sei lá! Ficam a
seu critério. Vá! Eu quero o primo Filipe do meu lado. Eu
quero o primo de Borgonha!
O conselheiro sai ao encontro da embaixada do Duque de
Borgonha. Recebe-a na sala do Conselho, de portas fechadas.
David de Brimeu, o chefe do grupo, propõe a trégua. Discutem.
O Duque de Borgonha está disposto a esquecer. A morte de
João Sem Medo? Não se fala mais nisso. As guerras? Águas pas-
sadas. Precisamos de paz. Faça-se uma trégua de quinze dias.
Mais tarde se discutirá a paz definitiva. Por exemplo, uma con-
ferência em Arras, no mês próximo, com a presença do próprio
Duque de Borgonha e dos representantes do Rei Carlos...
La Trémouille fala em condições. Sim, porque Carlos VII está
coroado, tem um exército poderoso, bons capitães e pode tomar
A VIDA DE JOANA D'ARC 173

Paris quando bem lhe aprouver. Que é que o Duque de Borgonha


lhe pode oferecer em troca da paz?
David Brimeu sorri. Inclina-se sobre a mesa na direção do
conselheiro:
— Ao rei, propriamente, não oferecemos nada. Mas ao seu
sagaz conselheiro...
Pisca um olho. Continua sorrindo. La Trémouille compreende.
Firma-se a trégua.
Quando o conselheiro lhe traz a notícia, Carlos VII exulta.
— Graças ao bom Deus o Duque de Borgonha já não é mais
meu inimigo! — exclama.
Mas de repente seu semblante se anuvia. Uma sombra lhe em-
pana o olhar.
— Mas o que é que vamos dizer à Donzela e aos seus capitães?
La Trémouille encolhe os ombros fofos.
— Diremos que o Duque de Borgonha em troca da paz pro-
meteu entregar-nos Paris sem resistência...
O rei se transfigura. O sol brilha de novo em sua alma. Seus
olhos miúdos miram o conselheiro com um ar de admiração
agradecida.
A notícia se espalha por toda Reims. Trégua de quinze dias
com os borgonheses. Paris vai ser entregue ao rei.
Joana recebe as novas com reserva. O Bastardo de Orléans, o
Duque d'Alencon e d'Aulon estão constantemente ao lado dela.
Caras fechadas. Olhos baixos. Por trás destas máscaras carran-
cudas a Donzela pressente a tempestade. São as primeiras sombras
que se estendem sobre o seu caminho. E ela compreende tudo.
Compreende e diz a seus amigos, que não ousam contradizê-la.
Na corte conspiram contra ela. La Trémouille a odeia. O rei não
a admite, nem a seus amigos, no Conselho. Se não se desembaraça
dela de vez é porque os soldados e o povo ainda a estimam...
— Não é assim? — pergunta a Donzela aos companheiros.
Eles sacodem a cabeça numa afirmação muda e melancólica.
Pela mente do Bastardo passa num vôo de pássaro esta idéia:
A missão da Donzela está cumprida.
Fala-se na paz. Joana não é contrária à trégua e mesmo a uma
cessação definitiva das hostilidades.
No fim de contas, armagnacs e borgonheses, todos são filhos
174 ERICO VERÍSSIMO

de França... Mas com relação aos ingleses, só há uma condição


para a paz absoluta: é a retirada de todos eles do solo francês.
Passam-se quatro dias. Quatro dias que o rei perde em ne-
gociações com os enviados do Duque de Borgonha.
Joana espera, impaciente. A sua armadura branca jaz a um
canto. O estandarte parece que se morre de saudade da luz e do
vento das batalhas.
A Donzela ora. Sente a seu redor a presença consoladora de
suas santas. Elas não a abandonaram. Ainda estão ao alcance de
seus olhos, de suas mãos, de seu coração. Mas as Vozes já lhe
não confiam novas missões.
O silêncio continua. Um silêncio opressivo, de morte, de eter-
nidade. E dentro dessa quietude de cemitério só se ouvem os
baques surdos do coração da guerreira, que pulsa descompassada-
mente.
XLII

SOMBRAS NO CAMINHO

ENQUANTO OS seus embaixadores negociam a paz, o Duque de


Borgonha insidiosamente prepara a guerra. O Cardeal de Beauford
deixa Calais, rumo de Paris, com três mil e quinhentos ingleses.
Bedford vai a seu encontro. Em Paris o Duque de Borgonha con-
centra tropas. Dá-lhes munições. Arregimenta recrutas.
E três dias antes da coroação de Carlos de Valois em Reims —
apesar de ter mandado ao primo uma embaixada de paz — Filipe
provoca em Paris uma reunião na qual em altos brados relembra
o assassínio de João Sem Medo, cuja culpa lança sobre os ombros
de seu primo armagnac.
O povo de Paris se inflama de ódio. Morra Carlos VII! —
é um grito que salta com freqüência da multidão assanhada. Pre-
ferem ver o diabo entrar na cidade a ver o rei assassino cavalgando
pelas suas ruas. Seria mil vezes melhor queimar Paris do que
entregá-la aos soldados de Carlos V I I .
O Duque de Borgonha concentra suas tropas nos arredores de
Amiens. E sem respeitar a trégua firmada em Reims, continua
enviando recrutas picardos a Bedford. Com o ar mais natural
deste mundo pensa ainda na grande conferência de Arras que
ficou marcada para o mês próximo.
Enquanto o tempo passa, Filipe o Bom acaricia o seu ardil
e cada vez mais se admira a si mesmo.
Reims de novo se agita.
Passa-se a primeira semana da segunda quinzena de julho.
O rei resolve movimentar o seu exército. É um sacrifício. Ao
i

pensar na jornada, o soberano suspira. Vida boa era aquela de


Chinon! Delfim. Sem cuidados. Comendo, dormindo, bebendo,
ouvindo as intriguinhas da Corte, recebendo impostos magros,
levantando empréstimos gordos, vendo o rio correr preguiçoso
176 ERICO VERÍSSIMO

ao sol, — sem o perigo de guerras, sem o incômodo de longas


cavalgadas, sem o peso da armadura, sem o peso da coroa, sem o
peso de nada.
Ao saber que o exército vai marchar, Joana cobra ânimo.
— Paris!—murmura ela.
E os seus pajens se entreolham, admirados, vendo como de
novo se inflama e empertiga a menina que, nos dias que se se-
guiram à coroação, andava tristonha, silenciosa e de olhos baixos.
Joana manda polir a armadura. Vai ao estábulo onde está o
seu cavalo alazão. Bate-lhe no lombo. O animal infla as ventas
e relincha. Suas crinas se eriçam.
— Vamos para Paris! —exclama Joana, como se o cavalo pu-
desse compreendê-la.
Move-se o exército armagnac. Outra vez o estandarte sagrado
tremula ao vento e ao sol. As lanças e as armaduras enchem os
campos de faiscações. O tropel dos cavalos se mistura com os
gritos da população. Não são gritos apenas de incitamento ou
de alegria. São gritos em que há também um pouco de desespero.
O desespero de quem pressente que vai ser abandonado ao perigo.
Ao lado de Joana cavalga o Duque d'Alençon que lhe diz no
momento em que perdem Reims de vista:
— Ânimo, companheira! Vamos para Paris!
Joana volta o rosto para o duque, e sorri tristemente. A dúvida
outra vez o assalta. Maus pressentimentos. . . Ela como que en-
cherga sombras no seu caminho. Tem a intuição de que seus de-
sejos não se vão realizar.
O exército chega a St. Marcoul.
Manda-se à importante cidade de Compiègne uma intimação.
Ela deve abrir suas portas ao rei e ao seu exército. Idêntico ul-
timatum se expede a Château-Thierry.
Carlos VII e sua tropa entram em Soissons.
Uma nuvem de tempestade pesa sobre o acampamento.
Em cada canto uma conspiração.
Joana sente que está sendo traída. Os favoritos do rei, che-
fiados por La Trémouille, procuram desviar o exército da estrada
de Paris. Traçam seus planos sem convidar Joana para o Con-
selho. Os campos se dividem.
A Donzela está inquieta. Como se sua armadura fosse de ferro
em brasa.
A VIDA DE JOANA D'ARC 177

Uma manhã a notícia de que o rei ordena uma retirada se es-


palha pelo acampamento, como se fosse soprada por trombetas.
Joana procura o rei. Carlos VII lhe diz:
— Voltamos para as margens do Loire, Joana. Não te aflijas.
Temos tempo... O primo Filipe prometeu entregar Paris. Não
te amofines. Temos tempo.
Joana pede. Joana suplica. Joana invoca nomes, recorda vitórias,
oferece a sua vida.
Mas o rei está com os olhos voltados para o Loire pacífico e
preguiçoso, onde há segurança, paz e descanso.
— Paris!—exclama ela. — O nosso rumo deve ser o de Paris.
Dentro de poucos dias a cidade será vossa, Majestade.

Carlos VII olha para La Trémouille implorando auxílio. O


Conselheiro avança.
— Seria loucura atacar Paris agora, — diz ele. — A guarnição
da cidade foi reforçada. Novos socorros virão. A aventura pode
nos custar muito sangue, muitas vidas.
178 ERICO VERÍSSIMO

Os olhos de Joana cintilam.


— Mas não disseste que o Duque de Borgonha prometeu en-
tregar a cidade sem luta?
La Trémouille morde o lábio. Gagueja uma explicação. Fica
vermelho. Cala-se. Volta as costas e vai embora.
Mas a marcha se inicia, evitando a estrada de Paris.
Carlos V I I e seu exército atravessam o Marne e entram em
Château-Thierry.
— Ccmpiègne está nos esperando de braços abertos, Sire —
diz-lhe Joana D'Arc, suplicante.
— Sim? — desconversa o rei, arregalando muito os olhos..
— Compiègne é uma cidade tão importante como Orléans, ma-
jestade!
— Veja só!
— Devemos seguir por Crépy e Senlis.
— Vamos v e r . . . — diz o rei, vagamente.
E na presença da Donzela sente um grande mal-estar. Não
tem coragem de encará-la firme. Sabe que ela pode ler-lhe os
pensamentos. Sabe que ela conhece a sua fraqueza, a sua covardia.
Ao mesmo tempo não esquece que deve a sua glória, a sua coroa
(e também as suas aflições... ) a esta menina de dezessete anos
que possui a bravura de um homem (mas de um homem que
não seja como ele, Carlos V I I ) e o discernimento dum guerreiro
velho e experimentado.
Apesar de tudo a marcha para o sul continua.
Entra o mês de agosto.
Joana não pode suportar a inação. Vai de novo ao rei.
— Sire, eu vos garanto que Paris será nossa!
E, desconversando o rei envereda por outro assunto:
— Uma vez, Joana, teu pai me pediu que perdoasse a Greux
e Domrémy o pagamento de impostos... Eu não lhe disse nada
de positivo. Pois agora, em homenagem à tua pessoa, e como
recompensa dos serviços que pretaste à França, eu livro para
sempre à tua aldeia de todo e qualquer imposto!
Joana se cala. O rei respira fundo. Julga-se eximido de qual-
quer compromisso moral para com a Donzela. Pagou. Favor com
favor.
Desanimada, a guerreira se retira. O rei" se felicita pela vitória.
XLIII

A F U G A DE P E D R O C A U C H O N

CONTINUA a marcha para o sul.


O exército do Rei de França entra em Provins.
Os capitães de Carlos de Valois contam com a ponte de Bray
sobre o Sena para lhes facilitar a marcha que já vai tomando
ares de retirada.
Passam-se os primeiros dias de agosto.
Chegam notícias de Reims. O povo está desesperado, julgando-
se abandonado pelo seu rei. O inimigo é forte. A cidade está
desprotegida. Os ingleses e os borgonheses a qualquer momento
podem tomá-la de assalto e então a população sofrerá, pagando
caro a ousadia que teve de coroar o Delfim.
A tropa de Carlos VII se dirige para o Sena. Os vanguardei-
ros voltam a todo o galope para dizer que o único caminho para
o sul está cortado. Uma força inglesa tomou conta da ponte de
Bray. Não há remédio senão voltar, — decidem os capitães —
voltar para o norte.
— Para o norte!—exclama Joana, animada. — Para as bandas
de Paris novamente!
Graças aos ingleses...
O rei suspira, contrariado. Oh meu doce e calmo Loire de
águas mornas e remansosas! Quando te verei outra vez? Quando
poderei olhar-te novamente das janelas do meu castelo?
Aqui vão os soldados do Rei de França marchando na estrada
de Paris.
Joana dita uma carta para Reims. Entre muitas outras palavras,
diz estas:
Queridos e bons amigos, bons e fiéis franceses, a Donzela
vos envia suas noticias. Eu não vos abandonarei enquanto esti-
ver viva. Ê verdade que o rei fez uma trégua de quinze dias com
o Duque de Borgonha e que, ao expirar esse prazo, Filipe deve
entregar-nos pacificamente a Cidade de Paris.
180 ERICO VERÍSSIMO
A VIDA DE JOANA D'ARC 181

O exército armagnac conserva o rumo do norte. Dirige-se


a Crépy e Ferré. Nem de leve passa pela mente de Carlos VII
e de seus favoritos atacar Paris. A cidade está bem defendida.
É grande demais. Para cercá-la eficientemente, seriam necessá-
rios muitos mil homens, muitos canhões e muitos víveres.
Joana, entretanto, segue mais animada, na ilusão de que dentro
em breve estará assediando Paris.
A seu lado, e todos devotados à sua pessoa, cavalgam os capi-
tães com que ela pode contar. São Dunois, o Bastardo de Or-
léans, René, Duque de Bar, o Conde de Vendôme e Guy de Lavai.
Já correu um mês depois do dia da coroação.
O rei e seus favoritos marcham taciturnos.
Ao trote do cavalo, as bochechas moles de La Trémouiile ba-
louçam incessantemente. Carlos VII está macambúzio. De quando
em quando, com saudade e desalento, volta a cabeça para o
sul.. .
Agora o exército acha-se entre Crépy e Ferté.
Nesta região a alegria é grande à passagem do rei. Homens e
mulheres acenam e gritam para Carlos VII: Noêl! Noèl! Noêl!
Agitam-se lenços e bandeiras de todas as cores. O contenta-
mento é tão intenso que dá idéia dum dia de grande festa. To-
das as fisionomias estão iluminadas. Os camponeses abandonam
o trabalho, largam o arado, os rebanhos e se aproximam da es-
trada para ver passar o rei e os seus soldados.
Joana cavalga entre o Arcebispo Regnault e o Bastardo de Or-
léans.
— Que povo bom, este! — exclama ela, sorrindo. — Eu seria
feliz se, quando morrer, pudesse ficar sepultada nesta terra!
Seus olhos passeiam pela paisagem que o sol doura, pelo cam-
po dum verde suave que se estende, todo dobrado, cortado de
estradas e pontilhado de bosques até se perder longe, dissolvendo-
se azul no azul do horizonte.
O arcebispo se volta para a Donzela:
— E onde e quando achas que vais morrer, Joana? — pergun-
ta ele. #

— Quando Deus quiser. O lugar e a hora, sei tanto como vós.


De novo o olhar da guerreira envolve a paisagem.
Este vento do campo, estes bosques, estes céus lhe lembram a
sua aldeia natal.
182 ERICO VERÍSSIMO

Suspira.
— Assim quisesse Deus — continua ela — que a minha missão
estivesse cumprida e eu pudesse depor as armas e voltar para
minha casa, para junto de meus pais, para junto dos meus re-
banhos.
O Bastardo olha de soslaio para a companheira. Novamente
um pensamento rápido lhe cruza a mente: Sua missão está cum-
prida.
Chega a Carlos de Valois uma carta de Bedford.

Antes de lê-la o rei tem um suave pressentimento. Deve ser


um convite para a paz definitiva. Ele vive sonhando com a trégua
eterna. Todas as noites seus sonhos se povoam de mensageiros
que vêm trazer cartas amigas assinadas pelo temível Bedford.
A VIDA DE JOANA D'ARC 183

Mas a mensagem do regente inglês é dura. Carlos VII a lê


e estremece. Tu que te dizias Delfim e que agora te intitulas
rei — reza a carta. E mais abaixo: ...levas contigo gente
supersticiosa e vagabunda, uma mulher desabusada e de má vida,
dissoluta de costumes, vestida de homem. . .
Joana lê a carta e sofre. Carlos VII está aniquilado, não pelas
palavras ofensivas de Bredford, mais sim porque a carta não é
um convite à paz.
O Exército francês se aproxima de Senlis, localidade que os
ingleses ocupam.
Anoitece. Joana, com o Duque D'Alençon, o Conde de Ven-
dôme e outros capitães, reúnem os seus seis mil homens nos altos
de Montepilloy.
A noite entra com escaramuças. O luar dá um brilho fantástico
às lanças, às espadas e às armaduras. E que cor estranha tem o
sangue derramado no campo à luz da l u a . . .
Amanhece um novo dia.
Os franceses ouvem missa em campo aberto.
É a festa da Assunção. Mal termina a missa, rompem a tocar
as trombetas dando ordens para o ataque.
La Hire, que comanda a vanguarda da tropa da Donzela, avan-
ça com um grupo de cavalaria.
Bedford acha-se abrigado atrás de forte paliçada. Tem nove
mil homens. É inútil atacar... Seria repetir o desastre de Rou-
vray, ocorrido há alguns meses, no tempo em que Joana ainda não
tinha tomado armas.
La Hire retrocede.
De repente Joana se transfigura. Uma força insopitável se
apodera dela. Esporeando o cavalo a Donzela se precipita como
um dardo na direção das fortificações inimigas. O vento agita
o seu estandarte e as crinas de seu cavalo. O sol lhe incendeia
a armadura. Com a mão direita Joana tira da espada e fere com
ímpeto a paliçada, numa provocação. A velha lâmina se trinca. A
guerreira a repõe na bainha sem nada perceber.
Volta para os seus e, com d'Alençon, dita uma mensagem aos
ingleses. Que Bedford saia com seus homens para campo livre!
Os franceses se retiram para que o inimigo possa escolher posição
livremente.
Um arauto leva a mensagem.
184 ERICO VERÍSSIMO

Os soldados de França esperam.


A alguma distância, na retaguarda, encolhido em cima de seu
cavalo, o rei olha o campo, nervoso. Para que toda esta com-
plicação, todos estes perigos? Não é muito melhor deixar que ,is
coisas fiquem como estão? O Castelo de Gien, com as suas
salas confortáveis, o seu silêncio, a sua p a z . . . No entanto está
agora a gente aqui de quadris doloridos, com o coração pulsando
descompassadamente, esperando a cada momento receber uma
frechada, um pontaço de lança ou de espada... Oh!
La Trémouille contempla as fortificações inglesas que são
apenas um ponto escuro, longe. E de quando em quando olha
com o rabo dos olhos para Carlos de Bourbon, o bravo comandante
que se acha aqui ao lado com seus homens, protegendo o rei.
Escoa-se mais um dia. E quando uma nova manhã nasce, Bed-
ford se retira com seu exército na direção de Paris.
Os franceses entram em Senlis.
Em Beauvais o Bispo Pedro Cauchon, grande amigo dos in-
gleses, está no seu rico gabinete em estado contemplativo. Sonha
com glórias indescritíveis. Com um prestígio político tão grande,
tão firme e tão largo que a sua autoridade prevaleça acima da de
qualquer Duque ou Rei ou Regente que venha a governar a Fran-
ç a . . . E o seu devaneio se prolonga. É como um enorme lago
tranqüilo parado ao sol, sereno dessa serenidade das coisas imor-
tais. Pedro Cauchon sonha. Mas de repente lhe vem uma idéia
que como um tufão faz uma tempestade doida no seu lago calmo.
Joana D'Arc! E então o sonho é um castelo que se esboroa. E
o Bispo de Beauvais se lembra das vitórias das tropas armagnacs
conduzidas e inspiradas pela Donzela. Vaqueira! Bruxa!
Pedro Cauchon dá um murro no braço da poltrona. Ergue-se,
agitado. Que fazem os ingleses que não detêm o exército do
Delfim? Ele tinha esperanças em Bedford. Pensava também que
Senlis desistisse... Qual! Uns covardes! Abrem as suas portas
ao rei, recebem-no com festas... Aquele bastardo! Aquele débil
mental!
No mesmo dia um mensageiro esbaforido vem avisar a Pedro
Cauchon que as tropas da Donzela se aproximam de Beaüvais.
O bispo estremece. Num relance compreende a situação. Não
pode, não deve cair nas mãos dos armagnacs... Sai por toda a
casa a dar ordens apressadas.
A VIDA DE JOANA D'ARC 185

Está vermelho, ofegante, furioso. E dentro de poucos minutos


se encontra na estrada tendo já passado as portas de Beauvais.
Vai ruminando a sua raiva. Longe da sua cidade, volta a cabeça
por um instante. Seus olhos fuzilam.
— Ela me paga! — murmura, fazendo um gesto truculento.
Corre a carruagem episcopal, aos solavancos pelas estradas,
erguendo poeira, sacolejando no seu bojo adamascado o senhor
Bispo Pedro Cauchon que vai engendrando sinistros projetos
de vingança.
Beauvais recebe o rei cordialmente.
Compiègne, cidade mais importante ainda, abre-lhe também
as suas portas. E seu povo aclama Carlos V I I com alegria. Nas
ruas a gritaria não cessa. O rei está deslumbrado. Nunca ima-
ginou encontrar tanto entusiasmo, tanta dedicação...
Compiègne é um paraíso. Por algum tempo Carlos de Valois
esquece Gien.
XLIV

A ESPADA QUEBRADA

DEFINE-SE a situação. O Rei Carlos VII está senhor de Compiègne


e Compiègne está contente com o seu rei. O Conde de Vendôme,
os Marechais de Rais e de Boussac comandam as forças francesas
que se apoderaram de Senlis. Joana D'Arc e o Duque d'Alençon
suspiram por Paris. Carlos VII sonha firmar a paz definitiva com
seu primo, o Duque de Borgonha. Bedford retirou-se com seu
exército para Paris, deixou ali alguns soldados e foi com o grosso
da força para Evreux, chave da Normandia.
Carlos de Valois e seus cortesãos conspiram. Dum lado é pre-
ciso conquistar as graças do Duque de Borgonha e prolongar a
trégua; por outro lado é preciso não desgostar a Donzela, que tem
prestígio entre os soldados e que deseja a todo o transe tomar
Paris.
Em Compiègne Joana se hospeda na casa do procurador do
rei. A esposa deste é Maria Boucher.
— Parente de Jacques Boucher? — pergunta Joana. Maria faz
um sinal com a cabeça. Sim, é prima de Jacques Boucher, te-
soureiro de Orléans. Joana relembra o carinho com que foi tratada
na casa de Jacques.
Passam-se os dias. A Donzela anda desinquieta.
Uma tarde, diz a d'Alençon:
— Belo duque, aparelha a tua gente e a dos outros capitães,
porque eu quero ver Paris mais de perto.
O duque sorri tristemente. Ele sabe das intrigas da Corte.
Entrementes, Carlos VII negocia em segredo com o Duque de
Borgonha uma trégua que deve durar um ano.
Agosto está a findar.
A Donzela, o Duque d'Alençon e um punhado dos melhores
capitães do exército real saem de Compiègne com uma poderosa
força e enveredam pela estrada de Pari|.
A VIDA DE JOANA D'ARC 187

Três dias depois chegam a St. Denis, depois de se terem reu-


nido às forças ,de vendôme, que se encontravam em Senlis.
E em Senlis, ao pé de seus velhos muros, Joana se confessa ao
Irmão Pasquerel. E aqui comunga dois dias seguidos.
St. Denis fica a duas léguas de Paris, ao norte.
Joana vai visitar a sua velha abadia que tem três séculos de
idade.
Aqui estão guardadas as relíquias precisosas. É neste lugar que
os reis de França têm a sua sepultura. É também aqui que eles
tomam a auriflama. Os religiosos de St. Denis guardam na sua
santa abadia um pedaço de madeira da verdadeira cruz de Cristo.
Um caco de cântaro que continha a água que Jesus transformou
em vinho, nas bodas de Caná. E muitas, muitas outras relíquias...
Joana tudo vê e examina com respeito.
No dia seguinte combina com d'Alençon o plano de ataque a
Paris. Envia forças para escaramuçar às portas da grande cidade.
São duas, três sortidas por dia.
Enquanto isso, o duque em pessoa vai repetidamente a Com-
piègne pedir ao rei que siga para St. Denis.
Joana estuda as fortificações de Paris, procurando escolher
um ponto para o grande assalto.
Um dia, percorrendo o acampamento, se defronta com uma
mulher de má vida que passeia por entre as tendas abraçada a
um soldado. Seu rosto todo pintado é uma máscara repelente.
Uma fileira de dentes escuros brilha fóscamente por trás dos
lábios grossos, gretados e muito vermelhos.
Joana se inflama de indignação. Dá alguns passos na direção
do par. O soldado se afasta rápido da companheira e foge. A
Donzela tira da espada, ergue-a no ar e desfere um golpe no
ombro da mulher. E a lâmina trincada se parte. No mesmo ins-
tante Joana se arrepende do gesto. Baixa a cabeça, enquanto a
mulher se afasta, cobrindo o rosto com as mãos.
A espada das cinco cruzes está partida. Joana contempla-com
tristeza seus fragmentos. Ergue os olhos para os céus e pede
perdão a Deus pelo gesto violento.
Passa alguns minutos agoniada pelo remorso. E só se tran-
qüiliza um pouco ao se lembrar de que Cristo um dia fustigou os
vendilhões do templo.
188 ERICO VERÍSSIMO

Chegam notícia de Compiègne. Terminou a trégua de quinze


dias.
Joana escreve ao rei, suplicando-lhe que venha fazer-se visível
em Paris. O duque não prometeu entregar-lhe sem luta a grande
cidade, quando expirasse o prazo da trégua?

Intimamente Joana não se fia nessa promessa e, para não


perder tempo, continua a fazer escaramuças e a estudar um plano
de assalto.
A 28 de agosto firma-se a nova trégua pelo prazo de um ano.
Carlos VII declara no documento: Nosso primo de Borgonha
poderá, durante a trégua, dedicar-se, ele e sua gente, à defesa da
cidade e a resistir aos que lhe fizerem guerra ou lhe quiserem
infligir prejuízos.
— Temos paz com o primo Filipe! —exulta o rei.
La Trémouille sorri. Seus desejos estão satisfeitos.
No seu grande contentamento Carlos VII se torna magnânimo:
— Vamos oferecer até Compiègne ao primo de Borgonha!
A VIDA DE JOANA D'ARC 189

La Trémouille sonha com novos lucros.


— Foi a sabedoria que falou pela vossa boca!
A notícia se divulga.
Mas o povo de Compiègne se insurge. As ruas se enchem.
Fervem. Gritos de protesto. Não queremos os borgonheses! Antes
a morte! Somos dos armagnacs! O nosso rei é Carlos VII!
Do seu castelo o rei olha a multidão assanhada.
— Que gente incompreensível... — murmura ele, penalizado.
Os protestos continuam. Compiègne mantém-se fiel a Carlos
VII. Ao soberano infiel...
Joana vem a saber dos termos do tratado de paz.
Seus olhos claros de menina se agrandam. Ela reflete...
Por mais que se esforce, não compreende...
O rei negocia a paz com os borgonheses. Entrega Paris ao Du-
que de Borgonha. Reconhece-lhe o direito de se defender contra
quem atacar a cidade... E ao mesmo tempo, com o ar mais ino-
cente desta vida, autoriza a sua Donzela a atacar Paris...
Joana não penetra no mistério. Fica a pensar ainda alguns
minutos.
Uma trombeta soa longe.
A sonhadora desperta. A guerreira renasce.
Para Paris!
XLV

O A T A Q U E DE PARIS

O I T O H O R A S da manhã.
O grande exército de Carlos de Valois se acha entre St. Denis
e Paris.
Uma luz oleosa e amarelenta inunda a paisagem. O ar é macio.
Sopra uma brisa mole. O céu está muito alto e é dum azul diluído.
Os grandes capitães cavalgam em fila única.
O Duque d'Alençon, os Marechais de Boussac e de Rais, o
Duque de Bourbon, o Conde de Vendôme, os Sires de Lavai, de
Gaucourt, dAlbret. Falam e gesticulam. Coruscan armaduras e
espadas. E uma estranha fileira de caras severas se movimenta
ao trote dos cavalos.
Longe de todos,-como se não pertencesse a esse exército, Joana
D'Arc cavalga solitária. Está sem elmo. O vento lhe revolve os
cabelos escuros.
E ela pensa.
V ã o a caminho de Paris, mas seu coração está triste. Os ge-
nerais se reúnem em conselho e não a consultam. Os favoritos
do rei conspiram contra ela. Onde está aquele entusiasmo de
soldados, capitães, aquele entusiasmo doido que venceu em Meung,
Beaugency, Jargeau, Patay?
Joana volta a cabeça. As forças se estendem pelo campo a
perder de vista. Sobem e descem colinas, desdobram-se pelos va-
les, somem-se nas florestas, parecem uma serpente cuja cabeça
são os capitães e cuja cauda se perde longe, além do horizonte.
Doze mil homens... E armas, e espadas, e bestas, e canhões e
bombardas... De que vale tudo isso se a fé morre e o entusiasmo
se apaga?
Joana olha para a sombra tênue que a acompanha. Na sombra —
ela e o cavalo se confundem num único corpo.
A marcha continua.
A VIDA DE JOANA D'ARC 191

As onze e meia da manhã atingem as colinas dos Moinhos, à


vista de Paris.
O exército faz alto. Chegam as carretas que trazem escadas
e feixes de lenha e munições e mantimentos. Alinham-se os
canhões.
Joana ferve de impaciência. É assim que se combate? Não.
Positivamente, os capitães não querem tomar Paris. Se quises-
sem, desde a madrugada os canhões estariam roncando, com as
bocas voltadas para Paris. Teriam saído na noite anterior de
St. Denis.
Agora tudo se faz com lentidão. Nem parece que o inimigo
está a pequena distância. Ninguém se apressa. Ninguém se en-
tusiasma.
As horas passam.
O cavalo de Joana nitre, sacode nervosamente a cabeça, escarva
o chão, como que contagiado pela impaciência da guerreira.
Joana freme. E se agita. Porque sabe que se os capitães qui-
serem, Paris será deles em poucas horas.
Lá estão os muros cinzentos da cidade cobiçada. Apontam vul-
tos nas ameias. Os campanários e as terras se erguem sobre o
casario, avançam para o céu. Ouve-se um som de sino que vem
de longe. Uma calma enorme envolve Paris.
Chegam mais carretas, rechinando preguiçosamente. Os ho-
mens gemem e suam, puxando os canhões.
— Mas os tiros não alcançam os muros da cidade! — exclama
Joana, medindo a distância com os olhos.
Um dos comandantes encolhe os ombros indiferente e se afasta.
Joana procura d'Alençon:
:
— Mas, meu bom duque! Isto é guerra ou é uma feira?
O duque sorri com benevolência.
— Que queres?
Os olhos da guerreira suplicam. D'Alençon volta a cabeça para
a grande cidade.
— O rei tem esperança de conquistar Paris com um sorriso...
— diz ele. — E só dará ordem para atacar em último caso.
— Mas que é que o rei espera? — pergunta Joana.
— Espera que o povo, de medo, lhe entregue a cidade, à apro-
ximação de nossas forças...
A Donzela faz um gesto desesperado.
192 ERICO VERÍSSIMO

— E se isso não acontecer, qual é o plano de ataque?


— A porta de St. Honoré.
Silêncio.
— Duque! Em nome de Deus, vamos ao ataque! Paris será
nossa dentro de poucas horas.
Nos muros de Paris se agitam estandartes, surgem vultos. E uma
grande bandeira branca com uma cruz vermelha de S. Jorge tre-
mula por um instante contra o céu dum azul luminoso.
À vista da bandeira o sangue de Joana referve.
— Duque! Não podemos perder tempo!
D'Alençon está impassível. O tempo se escoa. As carretas con-
tinuam a chegar. Mais canhões. Mais colubrinas. Alguns soldados
começam a descarregar as escadas.
A artilharia e o grosso da força se acham abrigados atrás das co-
linas dos Moinhos.
Duas horas da tarde. D'Alençon manda romper o fogo. Aos
primeiros estrondos os cavalos estremecem e pinoteiam.
Os canhões de Paris respondem. Ao abrigo dos tiros, o grosso
do Exército francês espera, imóvel.
Um destacamento sob o comando de Saint-Vallier e de vários
outros capitães ataca a Porta de St. Honoré, ocupando-lhe o bou-
levard exterior e pondo em debandada seus poucos defensores.
D'Alençon e Charles de Bourbon, com uma parte do exército,
guardam a Porta de St. Denis, por onde é de se esperar uma sor-
tida.
Joana olha e sofre. Vê a maior parte da força do rei imobili-
zada e inútil como um rebanho de carneiros que se juntam e se
encolhem num bloco medroso.
Ela sabe que se se fizer um ataque inteligente, aproveitando to-
dos os homens, Paris cairá em pouco tempo.
A companhia do Marechal de Rais avança na direção da muralha.
Leva grandes pranchas e fardos e escadas para atulhar os fossos e
tentar a escalada. Joana ergue o estandarte, esporeia o cavalo e toma
a dianteira da companhia atacante. Com gritos e com gestos in-
cita os homens.
Esqueceu o capacete. Sua cabeça está descoberta. Seus cabelos
esvoaçam. E em torno deles zunem setas negras que uivam uma
canção de morte.
Entre a Porta de St. Denis e a de St. Honoré, a Donzela e os
A VIDA DE JOANA D'ARC 193

homens de Rais desmontam. Descem o primeiro fosso e o ven-


cem com facilidade. Chegam à beira do segundo e de repente se
encontram expostos ao fogo dos defensores de Paris. Caem pedras
e frechas que se chocam com ruído nas armaduras. Alguns soldados
tombam.
Joana olha num relance para o segundo fosso. É mais largo que
o anterior e está cheio dágua.
A Donzela se ergue e grita com toda a força para os muros da
cidade:
— Entreguem a cidade ao Rei de França!
E sua voz musical se mistura com o vu-vu das frechas, com o
estrépito dos estilhaços, com os gritos ferozes dos que combatem
e com os gemidos dos que caem.
Mais forte ainda Joana berra:
— Entregai-vos por ordem de Jesus!
Nas muralhas surgem caras desfiguradas pelo ódio.
Caras barbudas, dentes à mostra. E chovem setas. E canhões vo-
mitam fogo.
Joana entrega o seu estandarte a um soldado que ela sabe va-
lente e forte. Toma duma lança e começa a sondar a profundidade
da água.
— Se os homens se atirarem aqui, morrem afogados — reflete.
Sua lança mergulha, a água chega já até os dedos de Joana e a
ponta da haste não encontra o fundo.
O tempo passa. Chegam reforços para os defensores. O fogo
redobra. Agora o ar escurece porque se estende nele um cortinado
de frechas.
Joana se acha à beira do fosso, de pé. Sua armadura branca é um
contraste contra a terra escura.
Numa das seteiras da muralha um borgonhês de cara selvagem
vislumbra o belo alvo. Seus olhos chispam. Ele alça o corpo, puxi
a corda do arco, mira e despede a seta que, rápida, fende o ar, entra
pela armadura de Joana e crava-se-lhe na coxa.
A Donzela solta um ai, ao sentir a dor aguda. Cai. O sangue
começa a brotar.
Em seguida o homem que segura o seu estandarte também é
ferido. Para melhor ver donde partiu a frechada, ele ergue a viseira.
De repente uma frecha com um ruído surdo se lhe crava no olho.
O soldado cai com o estandarte.
194 ERICO VERÍSSIMO

O ataque arrefece. A princípio os franceses procuram atulhar


o fosso. Mas compreendem que todo o esforço é inútil. Cada feixe
que rola para o fundo da vala leva consigo um homem, uma vida.
A água está se tingindo toda de vermelho vivo.
Estendida no chão, Joana continua a gritar e a incitar os seus
homens.
— Para a frente! A cidade é nossa! Hardi !
E sente na coxa uma dor aguda. O sangue continua a escorrer.
Mas ela só pensa em Paris. Seus olhos claros se voltam para a re-
taguarda. Lá atrás daquelas colinas se esconde um exército pode-
roso. Muitos capitães de nomes sonoros e de grande fama estão
parados com as espadas inertes nas bainhas. Se quisessem...
Oh! Joana não pode compreender a atitude deles.
Os soldados aqui estão morrendo como ratos e o socorro não
vem.
Faz um esforço desesperado para se erguer. Mas a perna não
obedece e ela cai de novo.
— Para a frente! Coragem! Vamos! Paris é nossa!—grita.
E a sua voz de menina ouve-se no meio da batalha como um
sonido que vem dum outro mundo, formando palavras de uma
língua diferente.
Dois companheiros a arrastam para um ângulo morto.
— Avante! Entulhem o fosso! Escalem as muralhas...
A voz da guerreira vai ficando cada vez mais débil. Aos pés dela
se estende um pequeno lago de sangue. O sol pinta estrelinhas
douradas na superfície vermelha e polida. Muito pálida, quase da
cor da armadura, Joana continua a g r i t a r . . .
Escurece. Aparece a lua. A noite envolve a cidade e os campos.
O gordo La Trémouille vem com muitas precauções aconselhar a
retirada.
O Duque d'Alençon manda buscar Joana.
— Não me tirem daqui! — exclama ela com energia. — Este é
o meu posto. Não vou!
Os homens insistem Erguem-na nos braços.
Agora os olhos da guerreira estão molhados de lágrimas. E com
voz sentida ela diz:
—Bastava só um pequeno esforço e a cidade seria nossa...
Deixa cair os braços e as pálpebras.
Põem-na em cima do cavalo. Muito encurvada, os olhos fundos,
A VIDA DE JOANA D'ARC 195

Joana segue as forças que se retiram, A coxa lhe dói. Ela sente a
perna fria, fria, debaixo da armadura.
As estrelas cintilam contra o céu profundo.
O exército marcha. Ficaram para trás muitas carretas e muitas
escadas e muitos mantimentos.
É a derrota.
Joana chora baixinho. (Não faz mal. É noite. Ninguém v ê . . . )
Perto da Granja dos Maturins o exército faz uma pequena parada
para deitar fogo às bagagens que abandonam.
Precisam despojar-se de todo o peso, para facilitar a retirada.
Acendem-se grandes fogueiras. E no silêncio da noite Joana hor-
rorizada vê que, de mistura com os grandes fardos que os soldados
atiram para o fogo, vão também formas humanas. A Donzela com-
preende. Os franceses estão queimando os seus cadáveres.
As fogueiras crepitam. E, vendo o clarão enorme, Joana pensa
no inferno. Os soldados gritam e blasfemam. Em torno do fogo,
são como demônios.
A Donzela alça o olhar, buscando socorro no céu. Por cima
do tumulto, sob a paz das estrelas, S. Margarida e S. Catarina sor-
riem para ela.
Como por um milagre a paisagem horrível se apaga. E Joana
agora só escuta as Vozes que a animam. As Vozes que são frescas
e perfumadas como o vento da primavera.
A Donzela esquece suas feridas.
XLVI

DESPOJADA DA ARMADURA

M A I S U M A M A N H Ã nasce indiferente às mágoas de Joana. Um


sol de mel se espreguiça pelos cimos dos outeiros e vai aos poucos
se alastrando pelos campos. E como os campos e os outeiros não
sabem que há guerra e que os homens se estraçalham, a paisagem
é alegre diante dos olhos da guerreira.
A retirada do exército de Carlos V I I continua. Parece que a
força volta duma derrota descomunal. Ficaram para trás as car-
retas de munições. Os soldados se arrastam sem postura marcial.
As lanças de ponta caída andam de rastro e riscam no chão li-
nhas sinuosas. Até as armaduras parecem embaciadas pelo fra-
casso: não brilham mais.
Ninada pela marcha lenta e regular do seu cavalo, acariciada
pelo sol morno que lhe bate no rosto e nos cabelos, Joana se
deixa levar num torpor quase bom. E se não adormece de todo é
porque a ferida da coxa ainda lhe dói um pouco.
Toe—toe—toe... As patas do cavalo batem na terra do ca-
minho. Joana sonha. Sonha que Paris se ergue a poucos passos
de seus olhos. As muralhas estão embandeiradas. Soam trombe-
tas. Os portões estão abertos para receber o Rei de França. Os
sinos de todas as igrejas badalam alegremente. Noèl! Noel! —
gritam os parisienses que saem para fora dos portões de sua cidade,
fervilhando como formigas...
Mas de repente o cavalo tropeça, estremece, balança brusca-
mente a cabeça, sacudindo as crinas. Joana desperta. E diante de
seus olhos vê a grande planura vazia. Paris ficou para trás. Esta
marcha é de derrota: uma retirada...
1
Oh! Mas como seria fácil tomar P a r i s . . . Bastava mais um
esforço, um pequeno esforço, um n a d a . . .
Joana esquece a dor. Sua testa se franze. O corpo se emper-
tiga. Volta a cabeça. D'Alençon...
A VIDA DE JOANA D'ARC 197

Esporeia o cavalo, puxa violentamente as rédeas e galopa na


direção do duque. Ao lado dele, faz o animal estacar.
— Belo duque, mande tocar as trombetas. Ainda podemos
tomar Paris. Ande depressa!
O seu rosto se contrai numa expressão dolorosa de ânsia, de dor
e ao mesmo tempo de esperança. D'Alençon franze a testa, por-
que nestas últimas horas o mesmo pensamento andou a visitar-lhe
a mente. Voltar e atacar Paris...
Muitos dos chefes estão inclinados a tentar novo assalto. Mas
o rei não os encoraja. E os homens do rei andam espalhados no
meio da força, semeando o desânimo.
— Então? — indaga Joana.
Ergue-se um vozerio à retaguarda da tropa. Ouve-se o tropel
de uma cavalgada. Tilintar de armas.
Joana e o duque voltam a cabeça.
Poucos instantes depois um soldado vem dizer a d'Alençon que
o Barão de Montmorency com mais cinqüenta cavaleiros acabam
de chegar para oferecer seus serviços ao Rei de França.
Os olhos de Joana brilham. Seu rosto resplende.
Momentos depois Montmorency e os comandantes de Carlos
VII conversam animadamente. Discute-se um novo ataque a Paris.
Estudam-se possibilidades. O entusiasmo renasce.
Afastada do grupo, Joana ora e pede a Deus que inspire os
seus companheiros darmas.
Do meio duma nuvem dourada de poeira que se ergue da es-
trada surgem Carlos de Bourbon e o Duque de Bar. Trazem or-
dens do rei. Continuar a retirada e levar a Donzela para St.
Denis.
Os chefes compreendem que é preciso obedecer...
A tropa acampa. Anoitece. Na sua tenda, d'Alençon não con-
segue conciliar o sono. E se antes de marchar definitivamente
para St. Denis se tentasse um novo ataque, passando pela ponte
que ele mesmo mandou construir sobre o Sena? Este pensamento
lhe assombra a mente toda a noite, toda a noite...
Amanhece o dia 10. É um sábado de sol.
D'Alençon e Joana reúnem parte da cavalaria e se preparam
para marchar. A companhia se põe em movimento. Chega à
beira do Sena..
A ponte está destruída!
198 ERICO VERÍSSIMO

O duque estremece de raiva. Joana sente como que um pon-


taço de lança no coração.
E o rio corre mansamente ao sol, refletindo um céu que cada
vez se distancia mais, como se tivesse medo da fúria destruidora
dos homens.
Outra vez a retirada.
St. Denis.
Joana sente a seu redor um vácuo enorme. D'Alençon anda
afastado, como que envergonhado do fracasso. O rei sonha com
o seu Castelo de Gien e com a tranqüilidade duma vida sem
guerras. E no seu grande otimismo alimenta um sonho: Fáris um
dia lhe virá às mãos por vontade de seus habitantes, sem luta, sem
sangue. . .
Joana conduz o seu cavalo através das ruas de St. Denis. Na
frente da catedral, apeia. Entra. Dentro do templo a sombra é
azulada e fresca. Na penumbra dos nichos parece que os santos
lhe acenam com gestos amigos. Silêncio. A Donzela caminha
com um cuidado infinito, na ponta dos pés como se tivesse medo
de acordar o menino Jesus que dormita no colo de S. José.
Bem na frente da imagem da virgem, faz alto. E com lágri-
mas nos olhos desveste a armadura e de joelhos a vai depor no
altar, aos pés da santa.
Fica um instante a orar. Depois se ergue de mansinho e sai.
Fora o dia de outono é tão macio e claro que Joana caminha
devagar com medo de ferir o ar.
Pelas ruas passam homens e mulheres e crianças e carretas e
cavaleiros montados em cavalos ajaezados. Pendem tapetes colo-
ridos dos balcões. De um pata outro lado da rua, nas janelas de
suas casas as comadres conversam.
Joana vai andando. Parece um rapazinho sem história. Um
pajem. Um pobre moço recém-chegado do campo.
E as criaturas passam por ela sem olhar. E ninguém fica sa-
bendo que esta que aqui vai libertou Orléans, venceu em Meung,
Beaugency e Patay.. . Ninguém nem por sombra desconfia de
que o rapazito de cabelos escuros e olhos azuis que aqui segue
com os cílios irisados de lágrimas tem olhos que enxergam e ou-
vidos que ouvem os santos do céu.
A VIDA DE JOANA D'ARC 199
XLVII

GIEN!

GIEN!
Carlos de Valois respira fundo. Gien! O Loire batendo mole-
mente nos contrafortes do castelo... Os petiscos da cozinha
real. . . Vinhos, intrigas, anedotas, festas. . . Poltronas estofadas,
a companhia da rainha, o sorriso das castelãs, os presentes, a paz.. .
Principalmente a paz! Não precisar andar escarranchado no lom-
bo duro dum cavalo. Não correr perigo de vida. . . Não ter incô-
modos. .. A paz! Oh Deus, como sou feliz!
Carlos faz questão de revisitar todos os compartimentos do cas-
telo. Começa na adega onde o recebe um cheiro bom de vinho
velho. Até este bafio úmido de masmorra é agradável, familiar,
amigo. Aponta no alto duma pipa a cabeça dum ratão. Carlos
sorri para ele. Os ratões fazem parte da corte. Não se concebe
uma adega sem ratões. Tudo que existe em Gien é bom, logo
os ratões são bons.
Carlos sobe as escadas. Passeia por outros quartos. E é uma
alegria verdadeira sentar-se nestas cadeiras, olhar estes quadros,
mirar-se nestes espelhos.
E ainda não terminou a sua maravilhosa excursão e já o insí-
pido La Trémouille lhe vem dizer que precisamos tratar de ne,
gócios de Estado . Carlos VII faz um muxoxo de criança amuada.
Que negócios de Estado?
As bochechas do conselheiro tremem de surpresa. Que negó-
cios? O r a . . . Dinheiro para pagar as forças, novos empréstimos,
orçamentos, planos.
Na sala do Conselho, Carlos assume uma atitude mais compe-
netrada.
— Então? — pergunta cie.
— Não há dinheiro, — responde placidamente o conselheiro.
Discute-se. Opiniões. Debates. Chegam a uma conclusão: dis-
solver o exército.
A VIDA DE JOANA D'ARC 201
Os capitães voltam cada qual para a sua casa, para as suas
terras.
O Duque d'Alençon vai ao encontro da esposa, em Beâumont-
sur-Oise.
Joana despede-se com tristeza de seu "belo duque". Dói-lhe ver
partir o fiel companheiro d'armas.
Fala-se com insistência em que a rainha vem ao encontro do
rei.
A Donzela vai esperá-la em Selles-en-Berry, de onde segue
para Bourges.
Nesta última cidade se hospeda na casa de Margarida La To;i-
roulde.
Metida agora em roupas de mulher, Joana sempre que se vê
refletida num espelho não pode evitar pequeno sobressalto. Pa-
rece que o cristal está mentindo e que aquela moça de saia e touca
não é e l a . . .
O marido de Margarida La Touroulde é Régnier de Bouligny,
general das Finanças. Um homem importante em Bourges. Sua
casa vive cheia de doutores e conselheiros e comerciantes e fun-
cionários.
Joana e Margarida fazem boa amizade. A dona da casa não se
cansa de olhar para a hóspede. Entorta a cabeça, cruza os braços
e sorri, sem tirar os olhos do rosto da Donzela.
Então — se pergunta ela interiormente — esta rapariguinha de
ar tristonho e voz mansa é a guerreira, a que vestia armadura e
sabia manejar a lança e manter-se em cima dum cavalo a todo o
galope? É esta a Donzela que o Senhor enviou para libertar a
França?
O coração de Margarida se enche de contentamento e de or-
gulho. E sai a espalhar por toda Bourges—nas casas das ami-
gas, à saída da igreja — a grande notícia.
— Olhem — diz invariavelmente — sabem quem está morando
na minha casa? Imaginem s ó . . . Joana D'Arc, a Donzela de
Orléans.
As amigas fazem cara de incredulidade. E Margarida, de mãos
nos quadris, sacudindo a cabeça, confirma:
— Sim, senhoras! Joana D'Arc!
Os dias passam. Joana fia. Fia e ora. Quando o silêncio é
maior na varanda da casa do general das Finanças, a Donzela
202 ERICO VERÍSSIMO

escuta as Vozes. Elas lhe dizem palavras de consolo. E dão con-


selhos de paciência.
O outono avança. Dias frescos, de ar sutil, céu afastado dum
azul muito vago. As folhas amarelecem no jardim. O gato branco
da casa se espreguiça no borralho.
Muitas vezes Joana vai ao confessionário.
Agora caminha ela aqui ao lado de Margarida pela rua prin-
cipal de Bourges. Vão às Matinas na catedral.
Pelo meio da rua passa a cavalo um homem metido numa ar-
madura reluzente. Margarida pergunta de súbito:
— Mas Joaninha, eu não compreendo como tinhas coragem
de tomar parte nos combates. ..
Joana sorri sem dizer nada. A outra prossegue:
— Naturalmente é porque tinhas a certeza de não morrer...
Joana continua a sorrir e depois diz:
— Certeza? Eu sabia tanto do dia da minha morte como os
outros soldados...
Margarida arregala os olhos, incrédula.
Continuam a andar.
Vem em sentido contrário um homem. Ao dar com os olhos
em Joana, pára. Pára, sorri e vai acompanhando a Donzela com
os olhos.
Joana se espanta.
— Eu acho que ele me conhece—diz ela à amiga. — Quem
sabe se é de Domrémy? Ou algum soldado que lutou a meu
lado... Quem será?
Volta a cabeça. Lá está o homem parado à esquina. E faz
agora um gesto galante, quando vê que Joana se volta.
— Deve ser um conhecido...
Margarida desanda a rir.
— Conhecido? Mas que bobinha!
Margarida tem quarenta anos, conhece a vida, conhece os ho-
mens e tudo o que seus olhos dizem.
— De que é que a senhora está rindo?
— O homem ficou encantado com a tua pessoa...
— Oh!
Joana acha a observação absurda. Porque apesar destes vestidos
de mulher que agora lhe envolvem o corpo,' ela ainda se imagina
dentro da armadura.
A VIDA DE JOANA D'ARC 203
— Mas que tolinha! — continua a companheira. — Então es-
queceste que no mundo existem rapazes e raparigas que se podem
Ter e ficar apaixonados uns pelos outros?
Apaixonado... Paixão.. . Joana franze a testa... Ela amava
a sua gente, a sua aldeia, o seu rebanho. Mas de repente o amor
de Deus cresceu dentro dela e submergiu todos os outros sen-
timentos. E foi uma onda tão forte que conseguiu despertar nela
um amor imenso pela França, pela pobre pátria retalhada e in-
vadida . . .
Margarida de Touroulde ri ainda.
Chegam à catedral. Entram. Findas as Matinas, saem. Um gru-
po de homens e mulheres cerca a Donzela.
— É Joana D'Arc! É a guerreira!
Cochichos. Bisbilhos. Cada qual procura fazer que Joana toque
com suas mãos os rosários e santos e os escapulários que trazem
consigo.
— Por favor! — pedem. — Encoste o seu dedo a q u i . . .
Joana sorri com simplicidade. Faz um sinal na direção de Mar-
garida e diz:
— Tanto faz eu tocar nesses objetos como e l a . . . É o mesmo.
A custo consegue sair do meio do grupo.
Outra vez nas ruas movimentadas.
O dia é tranqüilo e claro, como se em toda a face da Terra os
homens não pensassem mais em se matar.
XLVIII

O EXÉRCITO INVISÍVEL

JOANA passeia pela alameda. As folhas secas lhe caem sobre a


cabeça, lhe deslizam pelo rosto e tombam dançando para o chão.
As árvores que se desfolham têm o ar transido e desamparado
de meninos doentes. O vento é fresco e brando.
Na névoa azulada que paira no ar voam insetos coloridos.
Anoitece.
Joana caminha. Estralam folhas sob seus pés. E lhe dói no
coração esmagar o que quer que seja: até mesmo coisas inani-
madas.
Joana devaneia.. . O outono envelhece. O inverno se aproxima.
E os homens que a cercam parecem mortos e desalentados como
esta paisagem. Bedford ainda está em França. A trégua se pro-
longa. Paris continua nas mãos dos borgonheses. O rei passeia
de cidade em cidade, de castelo em castelo. Os guerreiros es-
queceram as armaduras.
Joana suspira. Um pássaro corta o ar na sua frente, num
vôo assustado. Soa ao longe uma trombeta.
Joana chega à beira do rio. A água prende agora todas is
cores do horizonte. Lá na outra margem os arbustos escuros
parecem soldados na tocaia.
Joana se ajoelha e inclina a cabeça. O seu rosto se reflete no
espelho do rio. E ela se lembra do Mosa. De Domrémy. De
sua casa.. .
Maxey ficava na outra margem. Tinha telhados vermelhos e
as pás de seus moinhos rodopiavam ao vento como doidas.. . E
Hauviette, com seus cabelos louros e suas mãos miudinhas como
passaritos, por onde andará a estas horas? Deve estar crescida...
Todos os garotos de Domrémy naturalmente cresceram, ganha-
ram caras novas, mudaram de v i d a . . .
A VIDA DE JOANA D'ARC 205

Joana volta a cabeça. O vulto do castelo se recorta contra o


céu. Parece um gigante ^comedor de crianças.
A primeira estrelinha pisca no céu. Acendem-se olhos de luz
na cabeça do gigante.
Joana se levanta e começa a andar.
Quando chega às portas do castelo já é noite fechada. Um
soldado da guarda caminha de lá para cá na torre mais alta.
A sua silhueta negreja contra o fundo azul da noite. E a sua
lança parece estar arranhando o rosto da lua.
Joana sobe para os seus aposentos. Ajoelha-se diante da imagem
da virgem e ora.
Depois vai para a cama. Dorme.
Outro dia amanhece. Mais um dia torna a morrer.
E assim o outono passa.
O rei manda a Joana muitos vestidos de seda. E colares. E
enfeites com pedras que despedem fagulhas com as cores do
arco-íris.
Joana contempla tristemente todas essas coisas.
Compreende o que significam os presentes. O mesmo que
estas palavras: Joana, menina tola, não pernes mais em tomar
Paris, não -penses em prosseguir nas guerras., Olha que lindos ves-
tidos, que lindas jóias! Como te senta bem este colar! Vem fiara
o salão de festas do castelo-, Ainda não tens dezoito anos. Qual
ê a moça que nessa idade pensa em guerrear?
Quando encontra o rei, a Donzela lê a aflição no rosto dele.
Carlos de Valois fica vermelho, perturbado. E seus olhos lhe
suplicam que não fale em novas guerras.
Joana compreende e cala. La Trémouiüe passa sorrindo. Os
cortesãos sorriem também. Todos a cumprimentam com amabi-
lidade. Os capitães lhe fazem mesuras.
E ela compreende.. . São gratos. Querem mostrar-se reconhe-
cidos. E só temem uma coisa: que a Donzela lhes peça para
reunir o exército e ir atacar os ingleses.
Na ausência de d'Alençon, d'Albret, irmão de La Trémouille
fica comandando as forças do Rei de França.
Um dia Joana sem se poder conter lhe pergunta:
— Por que não vamos operar na Ilha-de-França e fazer uma
nova tentativa para tomar Paris?
206 ERICO VERÍSSIMO

D'Albret sorri enigmaticamente, encolhe os ombros e faz una


gesto vago na direção da Sala do Conselho.
E a vida continua.
O rei passeia pelas suas cidades. Acha muito agradável as
mudanças de ambiente. Novas paisagens. Novas caras. Pequenas
surpresas de ordem doméstica.
Joana sofre em silêncio. As suas Vozes lhe falam em surdina.
São um consolo, um amparo. Mas não lhe dão ordens nova"
Pasquerel, seu confessor, diz palavras de amizade. Pedro
João, seus irmãos, a visitam repetidamente.
Chegam notícias de que ingleses e borgonheses recomeça
a atividade guerreira. O castelo onde Carlos de Valois se encon-
tra com sua corte, fervilha de comentários.
O coração de Joana bate com mais força ao saber das novidades
Os ingleses invadiram St. Denis e arrebataram do altar da Virgem
a armadura branca que a Donzela ali deixara.
O rei se estabelece em Mehun-sur-Yèvre, perto da Cidade de
Bourges, no mais lindo de seus castelos.
Da janela de seu quarto Joana olha para fora.
As colinas verdes semeadas de bosquetes, a curva do rio,
Bourges branquejando lá longe e por cima de tudo um céu
de outono, transparente, distante, irreal. ..
Mas a Donzela não enxerga a paisagem. Está olhando agora
para os próprios pensamentos. Ela se revê metida na armadura,
montada no cavalo, segurando a haste do estandarte.. . Soam
trombetas. Os homens gritam e os corcéis nitrem. As lanças
faíscam. A flor-de-lis fulgura nas bandeiras. E as muralhas de
Paris vão crescendo diante dos olhos dos soldados de Carlos VII.
Joana desperta. E se encontra diante da paisagem muda e in-
diferente.
No outro dia trazem-lhe novas sensacionais.
O Duque d'Alençon está à espera de homens para entrar na
Normandia. Mandou pedir ao rei que lhe enviasse a Donzela. O
rei esteve disposto a ceder. Mas La Trémouille chegou e disse:
''Não vai." E o rei repetiu num eco fraco: "Não vai."
E quando Joana se dispõe a vestir uma armadura e montar a
cavalo para seguir até o duque, mesmo sem licença do rei, La
Trémouille, amável como nunca, lhe vem dizer que o Conselho
resolveu que se deve recuperar a Cidade de La Charité, atacando
A VIDA DE JOANA D'ARC 207

primeiro Saint-Pierre-Le-Moustier que está guardada por uma


guarnição inglesa.
Joana se agita. Parte com d'Albret para Bourges e ali reúne
homens.
Outubro entra com os primeiros frios. D'Albret e Joana le-
vam o seu exército a Saint-Pierre-Le-Moustier. Fazem o cerco.
Tentam o primeiro assalto. São repelidos.
Joana avança a cavalo e desmonta junto dos muros da praça.
A resistência dos ingleses não afrouxa. O ataque arrefece. A ba-
talha parece perdida. Joana grita. Mas seus homens não avançam.
O escudeiro D'AuIon, que com seu grupo ataca outro ponto
da muralha, recua. Caminha de muletas, porque tem um ferimento
no calcanhar. Os seus olhos se voltam para o ponto em que se
acha Joana. A Donzela está só com cinco homens. João e Pedro,
seus irmãos, e mais três infantes. D'Aulon monta a cavalo e se
aproxima do grupo.
— Sozinha? — grita ele para Joana. — Mas que é isto? Por que
não recua? N ã o vê que o ataque foi rechaçado?
Joana volta para ele o rosto desfigurado pelo entusiasmo.
— Sozinha? — Estende o braço em torno. — Mas se tenho co-
migo cinqüenta mil homens?!
D'Aulon olha: só vê os cinco companheiros que cercam a
Donzela. E, além deles, o campo deserto e o céu.
O rosto de Joana está iluminado. D'Aulon olha para ela an-
gustiado.
Que estranho exército invisível será este que a guerreira vê e
que a anima?
Joana ergue os braços.
— A vitória é nossa! Vamos! Atulhem os fossos! Hardi! De-
pressa!
Os homens que a cercam vão até a retaguarda e voltam com
reforços. Os soldados franceses trazem pranchas e feixes e pedras.
Os fossos são atulhados. Joana reúne os seus homens e faz novo
ataque.
Saint-Pierre-Le-Moustier cai.
XLIX

DIVERTISSEMENTS...

JOANA é despertada de seu êxtase pelo vozeirão de d'Aulon que


entra sem bater em seu quarto e caminha apressado para ela,
apoiado nas muletas.
A Donzela se ergue.
— Orléans! — grita ele com os olhos fuzilando!—Orléans!
Pára, ofegante, joga longe as muletas e atira-se numa poltrona
rindo, rindo, rindo.
Joana está serena.
— Orléans! — repete D'Aulon. — A nossa brava Orléans aten-
deu ao nosso pedido. Mandou homens, canhões, dinheiro paia
soldo, roupas! Que venha o inverno! — Ergue-se, esquecido do
ferimento. Mas logo torna a sentar com uma careta de dor.—
Mas não estás surpreendida? Orléans nos ajuda.
Joana sorri.
— Eu sabia — diz.
D'Aulon fica sério. Lembra-se do ataque a Saint-Pierre-Le-Mous-
tier e do exército invisível. Olha a Donzela da cabeça aos pés e
no seu olhar agora há uma expressão estranha. Ele gosta de Joana.
Como gostaria do melhor companheiro darmas. Quase nunca se
afasta dela no mais vivo dos combates. Um dia chegou a sentir
medo. As setas escureciam o ar. Troavam os canhões. Os homens
rolavam a seus pés. Por um momento ele fraquejou, chegou a
voltar a cabeça para trás.. . Mas encontrou o rosto de Joana. Um
rosto resplandecente: o rosto dum anjo. Nenhuma contração
de medo nem de ódio. Dois olhos azuis de criança olhando para
a morte como se olhassem para um brinquedo. Teve vergonha.
Esporeou o cavalo e carregou... Sim, ele gosta de Joana. Mas
esquece, no fim de contas, que ela é diferente das outras pessoas.
Passam-se coisas extraordinárias com ela. Contam-se milagres.
Ele mesmo tem visto maravilhas. Uma vez teve ímpetos de se
210 ERICO VERÍSSIMO

ajoelhar aos pés dela como se se encontrasse diante duma santa...


Chegou a fazer um movimento, mas imediatamente teve vergonha
do gesto. Conteve-se. Porque Joana estava na frente dele tão
simples, tão amiga, tão natural... E é por causa disto que às
vezes ele a trata de igual para igual.

D'Aulon está em silêncio. É Joana quem primeiro fala.


— Pedimos auxílio a Riom e a Bourges.. . Mas eu sei que
de lá nada nos virá.. .
— Mas Bourges? — pergunta o escudeiro, admirado.
A Donzela responde simplesmente:
— La Trémouille.
O silêncio cai de novo.
— Com o inverno a campanha vai ser dura — comenta D'Aulon.
A sombra dum sonho passa pelo rosto de Joana:
— O meu caminho era outro.
A VIDA DE JOANA D'ARC 211

— Outro?
— Paris.
Joana solta esta palavra num cicio.
— Paris — repete D'Aulon quase sem sentir.
Os dias passam.
Os recursos solicitados não chegam. Os soldados se inquietam.
Os capitães andam taciturnos. Joana sofre.
Novembro avança e o frio aumenta.
Chegam carretas de Auvergne e Clermont trazendo o auxílio
que D'Albret e Joana lhes pediram há alguns dias atrás. E de
mistura com pólvora, canhões e lanças, vem uma espada de pre-
sente para a Donzela.
A 24, mal-armado e mal pago, desalentado e frouxo, o exér-
cito de Carlos VII chega às proximidades de La Charité.
D'Albret e Joana escrevem uma carta a Bourges pedindo re-
cursos. O tempo rola e o dinheiro pedido não vem.
La Charité é cercada por um exército já desde o início derrotado.
Joana, em cima de seu cavalo, percorre as linhas de frente. A
sua voz fina soa inutilmente dentro do grande silêncio de desa-
lento em que submergem as tropas. E a Donzela parece um anjo
tentando reanimar uma legião de mortos.
A guarnição de La Charité é brava e tenaz.
O cerco se estabelece nas piores condições para os atacantes.
Dentro de pouco tempo Perrinet Gressart, comandante da praça
sitiada, faz uma sortida e levanta o cerco.
E aqui marcha de volta o exército vencido.
O inverno manda no vento a sua primeira mensagem.
E a- paisagem vai ficando gris como a alma dos homens.
Joana cavalga ao lado de D'Albret que lhe diz:
— A culpa não é nossa. Sem munição e sem mantimentos é
impossível fazer um cerco em regra. O que foi possível fazer,
se fez.
A Donzela sorri tristemente. Ela agora compreende. Quise-
ram desviá-la do caminho de Paris. Deixaram-na atacar La Charité
para lhe dar um entretimento. Um brinquedo...
E a primeira vez que avista o rei e o seu inseparável La Tré-
mouille, lhes diz sem prelúdio:
— Se queriam distrair a minha atenção não era preciso fazer
isso com o sacrifício de vidas. . .
212 ERICO VERÍSSIMO

As bochechas de La Trémouille tremem de surpresa fingida.


O rei gagueja uma desculpa.
— M a s . . . mas eu não compreendo? Distrair? Ora!
Joana reafirma a acusação. Conta o desastre de La Charité.
As lágrimas lhe escorrem dos olhos. O rei está perturbado. E
quando a moça se cala, com voz meiga ele vai dizendo:
— Olha, Joana, eu quero provar como não te quero mal. Não
é, La Trémouille? — Volta a cabeça para o conselheiro, como
a criança que pede a aprovação do mais velho. — Pois até eu
resolvi dar a ti e à tua gente cartas de nobreza, não é, La Tré-
mouille?
Joana está impassível. As lágrimas lhe deslizam pelas faces,
brilham ao sol e tombam depois sobre a couraça. O rei prossegue:
— Determinarei que o teu querido nome, Joaninha, de hoje
em diante seja escrito "d'Ay", não é, La Trémouille?
O conselheiro sorri candidamente e sacode a cabeça.
O rei está mais tranqüilo. Mas seus olhos encontram os olhos
de Joana — azuis, grandes, firmes, claros — olhos de quem tudo
vê e tudo sabe. Olhos de anjo ou de demônio?
Carlos de Valois estremece.
A S BODAS D E HELIOTE

COMEÇA O ano de 1430.


Sob um pálido sol de inverno Joana D'Arc entra em Orléans.
Não vem de elmo e armadura, nem de estandarte em punho; e na
sua cabeça não moram mais sonhos de vitória. Aparece vestida
simplesmente como um pajem. Um gorro grosso de lã lhe cobre
parcialmente os cabelos negros. E com os dedos entanguidos de
frio, mesmo por baixo das luvas grosseiras, a Donzela segura as
rédeas.
Mas o povo que sabe de sua vinda a espera e a reconhece.
As aclamações principiam.
Viva a Donzela de Orléans! —gritam.
Joana recorda a noite em que entrou aqui, por esta mesma
rua, quando a cidade estava sitiada. Seu coração batia descompas-
sado. Ânsia e temor. E via rostos desfigurados, olhos chispantes,
interrogações aflitas em cada semblante.
Agora tudo está tranqüilo. Já não se vêem mais rostos angus-
tiados. Acenam-lhe com as mãos, com lenços, com bandeiras.
Há outros que param e olham, sem compreender.
O sol da tarde beija os telhados, risca faixas douradas nas ruas
e nas praças. Vêem-se mulheres, homens e crianças às janelas.
Nas ruas centrais a multidão é mais compacta. As aclamações
redobram de intensidade.
— Joana D'Arc! Deus te guarde!
— A Donzela de Orléans!
— Viva a Donzela!
A multidão cerca o cavalo de Joana. Todos procuram tocar-lhe
nas roupas, beijar-lhe a mão. Os gritos crescem e sobem para
o céu azul.
A VIDA DE JOANA D'ARC 215

Joana olha o mar inquieto de cabeças que ondula e se prolonga,


claro-escuro, a perder de vista. Trapos coloridos agitados por
mãos frenéticas. Zunzuns cortados de gritos estridentes...
Esquece o frio. O mar se agita ainda diante de seus olhos como
que encrespado pelo vento. Ela sente uma tontura e é por um
milagre que mantém o equilíbrio em cima do cavalo que começa
a pinotear, assustado.

Meia hora depois, livre, finalmente, e só no quarto da casa em


que vai ficar hospedada, a Donzela respira.
Aqui reina o silêncio. A sombra fresca. A quietude familiar.
Entra uma criada e pergunta:
— A senhora deseja alguma coisa?
— Não, obrigada — responde Joana.
A criada sai. É bem nutrida e tem uma cara gorda e corada.
Deve ser do campo — pensa Joana.
Deita-se e fica a refletir.
Do campo... Cerra os olhos. E contra o fundo vermelho-roxo
das pálpebras lhe aparece uma paisagem querida. A casa de
papai Jacques, com a chaminé fumegando. Nada mudou. É um
milagre. Cai neve mas o ar é morno e as rosas enfeitam o jardim.
A igrejinha branqueja além do cemitério. E o bom cura sorri
para a menina Joana que passa com uma braçada de flores para
216 ERICO VERÍSSIMO

Nossa Senhora de Bermont. Os porcos brincam no charco e o charco


batido de sol parece respingado de jóias. João e Pedrinho vol-
tam da escola de Maxey. Vêm todos esfarrapados. Estiveram brin-
cando de guerra. Papai os espera carrancudo, de braços cruzados.
Pega dum chicote. Os meninos tremem, começam a chorar. Mas
mamãe Isabel sai de casa: Deixa os pobrezinhos, Jacques, eles
não fazem mais travessuras!
Joana abre os olhos. A paisagem se some. Agora ela só enxerga
c teto do quarto.
Mas uma idéia lhe brinca na mente. Mandar buscar mamãe
Isabel para Orléans. Arranjar-lhe uma casinha modesta... Sim,
tudo isto é possível.
Ergue-se e dita uma carta para o rei.
Os dias passam.
Os maiorais de Orléans oferecem a Joana um banquete. Todas
as personalidades importantes da cidade estão ao redor da mesa.
Funcionários públicos e comerciantes. Capitães e doutores.
Começa o suplício para Joana. Responder a todas as pergun-
tas com o rosto sorridente.
— Gosta de faisão?
— Um pouco.
— Por que não bebe mais vinho?
— Obrigada.
— Sentiu medo alguma vez na guerra?
— Acaso sou diferente dos outros?
Os capitães, depois do terceiro copázio de vinho, começam
a ganhar batalhas. Os doutores sorvem os licores e despejam
sabedoria. Os comerciantes sonham com lucros fabulosos. Um
funcionário começa a chorar, queixando-se de que não recebe há
muito os seus vencimentos.
E enquanto os convivas falam e discutem e riem, as perdizes
e os faisões assados erguem para o alto as pernas mutiladas, e
uma cabeça de leitão olha desconsoladamente para as bochechas
dum doutor em Teologia.
O banquete termina. E nasce mais um dia. E vêm outros dias.
O inverno continua. A trégua entre o Rei Carlos e o Duque de
Borgonha se prolonga.
Um dia Joana se lembra de Heliote, a filha de Hamish Power,
o escocês que lhe pintou o estandarte. Vai visitá-la em Tours.
A VIDA DE JOANA D'ARC 217

Heliote fica encantada.


— Então, não se esqueceu de mim?
Quer beijar a mão de Joana, que não o permite.
O pintor aparece, cheio de mesuras. E com o seu francês trô-
pego procura dizer a Joana, da melhor maneira possível, que
teve muito prazer em saber que ela deu uma boa sova nos intro-
metidos ingleses de Bedford.
Heliote sorri. Está mais linda. Os seus olhos lembram a Joana
o verde lustroso e fresco da relva de Domrémy que cresce em
torno da Fonte-dos-Groselheiros.
— E o noivo?
A filha do pintor conta que as bodas se realizam dentro em
breve.
De volta a Orléans, Joana escreve às autoridades da Cidade de
Tours pedindo-lhes cem escudos para o enxoval de Heliote.
Chega a data do casamento. Os maiorais de Tours não estão
em melhores condições financeiras do que o Rei Carlos VII. Fa-
zem um prodigioso torneio de retórica para dizer a Joana que
precisam do pouco dinheiro que têm, para a manutenção da
cidade. Mas que, em atenção à Donzela de Orléans, vão pessoal-
mente assistir às cerimônias nupciais e que hão de oferecer à
noiva pão e vinho.
E assim acontece.
Na almofada em que os noivos ajoelham ao pé do altar, Hamish
Power pintou em ouro e vermelhão uma frisa de querubins gor-
duchos de mãos dadas.
Joana assiste à solenidade. A igreja se enche de vozes, que
cantam em coro.
Heliote parece um lírio. A seu lado o noivo, muito alto e de-
sempenado, baixa os olhos para ela com ternura.
Joana recorda... Um dia um moço lhe propôs casamento.
Foi na primavera. Havia árvores floridas nos bosques. Ele era
moreno e trabalhava no campo, de sol a sol. Falou rude e firme
como quem não admitia recusa.
— Joana, você vai casar comigo!
E ela fugiu. Não queria casar, não gostava de ninguém a
não ser dos pais, dos irmãos, e dos santos do céu. Andava com
o pensamento nas Vozes e nas aparições. O mundo real não sig-
nificava nada para ela. A proposta do camponês era absurda.
218 ERICO VERÍSSIMO

Mas ele insistiu. Perseguiu. Chegou a queixar-se às autoridades,


indo a ponto de mentir que ela lhe prometera casamento...
Joana abre os olhos. O padre abençoa Helicte e o noivo, de-
clarando-os marido e mulher.
Quando a igreja se esvazia, a Donzela fica a olhar para a ima-
gem de S. Catarina e se recorda de que um dia N. Senhora lhe
apareceu em sonho com o menino Jesus no colo e lhe perguntou:
"Catarina, queres tomar este aqui como teu esposo?"
LI

"ANTES DE S. JOÃO CAIRÁS PRISIONEIRA!"

D E NOVO a primavera.
Ao erguer-se uma manhã, Joana a encontra com surpresa na
andorinha pousada no ramo duma árvore toda cheia de brotos
verdes. O vento embala o perfume das flores. Grandes nuvens
bóiam no céu como caravelas.
E então a Donzela fica a recordar o longo inverno de inativi-
dade. Notícias de pequenas escaramuças. O vento uivando. Os
serões intermináveis. A neve. Noites agitadas. Sonhos incom-
preensíveis: uma cidade — parecia Paris — dançando diante dela,
dançando... Ela estendia a mão e a cidade fugia, fugia, punha-se
a correr. E Joana queria também correr mas tinha nos pés sa-
patos de ferro, correntes que a prendiam à terra. E o inverno con-
tinuava. .. Os pobres vinham bater-lhe à porta e tudo que tinha
ela lhes dava de coração alegre. Sempre que se via a sós, orava.
E era um consolo ver que suas santas não a abandonavam. Di-
ziam-lhe palavras amigas. E quando a Donzela lhes pedia instru-
ções, fazia-se a seu redor um silêncio de gelar o sangue.
Joana encontra-se em Sully com o rei. Esta é a terra de La
Trémouille.
Março. Aproxima-se a Páscoa e o fim da trégua com o Du-
que de Borgonha.
No castelo do gordo conselheiro, onde estão hospedados Carlos
VII e a Donzela, toda a gente sente o influxo da estação nova.
A luz jorra pelas grandes janelas de vidros coloridos. Os criados
tagarelam animadamente. O rei respira fundo e não se cansa de
elogiar os móveis, os tapetes e os quadros do castelo de La Tré-
mouille.
Combinam-se grandes partidas de caças ao javali. E os bos-
ques dos arredores de Sully se enchem do som agudo das trom-
betas, do tropel dos cavalos e dos gritos dos caçadores.
220 ERICO VERÍSSIMO

As árvores exibem um verde novo. Em algumas brotam flores.


Cantam passarinhos. O sol é claro e o vento é fresco.

O Rei Carlos VII volta da caça. Com um ar feliz e glorioso de


quem retorna duma batalha. La Trémouille está mal-humorado
porque caiu do cavalo, fazendo afundar a terra com o peso de
seu corpanzil. Os curandeiros do palácio aparecem com medicinas
esquisitas. La Trémouille bufa e geme.
Joana espera e enquanto espera sofre.
Chegam novas inquietadoras.
Os habitantes de Rekns escrevem-lhe carta desesperada em
que lhe dizem do grande temor de que a cidade que coroou o rei
seja sitiada por ingleses e borgonheses.
No castelo de La Trémouille os cortesãos cochicham intrigas.
Quando Joana se aproxima dos grupos, os homens se calam ou
mudam de assunto, principiando a falar de coisas fúteis: proe-
zas de caça, qualidades de vinhos. . .
Mas Joana fica sabendo por D'Aulon que se prepara em Paris
uma conspiração contra a Inglaterra. O plano é simples. . . Intro-
duzir sorrateiramente arqueiros escoceses na cidade. Depois pro-
vocar um levante popular.
A VIDA DE JOANA D'ARC 221

A Donzela dita uma carta aos habitantes de Reims. Que fiquem


tranqüilos os seus bons e queridos amigos. Ela não os abandonará
nunca e nunca. Em breve estará batendo às suas portas.
No fim da carta Joana se lembra da conspiração de Paris. E
dita:
Se eu não tivesse medo de que essa carta fosse roubada em ca-
ninho, eu lhes daria uma notícia muito boa.
Os dias passam.
Sabe-se no castelo de La Trémouille que Bedford cedeu ao
Duque de Borgonha toda a região da Champagne.
O Rei Carlos reúne o Conselho. La Trémouille expõe a situa-
ção. Com a mão nos rins e gemendo de quando em quando —
porque o corpo ainda lhe dói da queda — ele vai expondo:
— Bedford vai trazer para a França... —ai! —o Rei Hen-
rique VI com um forte — ui! —exército.. . — F a z uma careta.
— O Duque de Borgonha quer conservar Paris a todo o preço...
Interrompe o discurso para gemer. D'Albret termina:
— E para isso vai procurar retomar todas as praças das pro-
ximidades de Paris que estão em nosso poder...
O Rei Carlos VII, como se despertasse dum sono profundo,
exclama:
— E isso porque Paris não poderá contar com essas cidades
para se abastecer!
Olha, sorrindo, para o conselheiro, que, em resposta, sacode
a cabeça, aprovando. Carlos de Valois fica satisfeito consigo
mesmo. Acaba de dizer uma verdade. Mostrou que compreende
a situação. Lavrou um tento. Afirmou-se.
Joana, que foi admitida excepcionalmente no Conselho, es-
cuta em silêncio.
Os conselheiros discutem. La Trémouille conta que lhe chegou
a notícia de que se prepara uma conspiração contra os franceses
em R e i m s . . .
O rei estremece. Os olhos de Joana brilham.
Alguns minutos depois o Conselho debanda. E a vida reco-
meça como se nada de grave se estivesse passando.
Ceias despreocupadas. Cavalgadas. Passeios. Festas. Vinhaças.
E a primavera rebentando em brotos, flores, folhas e venta-
nias descabeladas.
Joana escreve aos habitantes de Reims dizendo que o rei
222 ERICO VERÍSSIMO

tinha ouvido falar duma conspiração borgonhesa na cidade mas


que sabe que os bravos moradores de Reims hão de ficar fiéis
à França.
Uma noite a Donzela confia a D'Aulon o seu plano.
— Antes da semana da Páscoa sigo para Lagny-sur-Marne.
— Sem ordem do rei? — pergunta o escudeiro.
— Sem ordem do rei — confirma Joana.
Faz-se um silêncio longo.
A noite é clara. Palpitam as estrelas. Ouve-se longe os
gritos dos guardas que se revezam. Em torno do castelo a cam-
pina dorme.
D'Aulon quebra o silêncio para dizer numa insinuação:
— Falam que o Rei da Inglaterra virá com um forte exército
de dez mil homens.. . Gente bem armada, bem municiada;
soldados descansados; tropa fresca.. .
Joana compreende e sorri. Seus olhos se voltam para o céu.
— Não tenho medo, D'Aulon. Acaso o meu exército de cin-
qüenta mil guerreiros não me acompanha?
D'Aulon estremece de leve, lembrando-se de Saint-Pierre-Le-
Moustier.
Separam-se.
Joana vai para o quarto. E durante muito tempo fica a ouvir
as suas Vozes. E em vão espera alguma ordem, a sugestão dum
rumo. . . Nada. Quietude. Imobilidade.
No dia seguinte chegam notícias decepcionantes: foi desco-
berto o complô de Paris!
O rei fica consternado. Sempre lhe foi repugnante, é ver-
dade, a idéia de tomar a grande cidade pela força. Chegou a
alimentar a esperança de que um dia os habitantes de Paris
por suas próprias mãos e por sua própria vontade lhe ofere-
cessem a praça. . . Por fim, sempre repelindo a idéia dum ataque
direto, chegara a consentir que se tramasse a conspiração, que
se provocassem motins dentro da cidade...
E agora, a decepção...
— Ingratos! — murmura Carlos VII para si mesmo. — In-
gratos!— repete, embora nem ele mesmo saiba com clareza a
quem se está referindo. — Ingratos!
A VIDA DE JOANA D'ARC 223

E vai à cozinha pedir um faisão dourado para o almoço, à guisa


de consolação.
Joana manda chamar os seus dois irmãos. Aqui estão Pedro
e João, perfilados diante da Donzela.
— Meninos, eu resolvi partir sozinha, sem ordem do rei. Sigo
para Melun.
Os rapazes sé entreolham.
— Vocês não têm obrigação nenhuma de ir comigo. Se quise-
rem, podem voltar para Orléans.
Uma expressão de surpresa dolorosa nos dois rostos queimados.
Uma pausa curta. Depois Pedro fala:
— Maninha, nós vamos com você.
— Olhem que é arriscado, vou quase s ó . . .
— Nós vamos com você — repete João.
Joana fica pensativa um instante. Depois sorri e estende ambas
as mãos para afagar de leve a cabeça dos rapazes.
Finda o mês de março.
Sem avisar o rei, Joana sai de Sully acompanhada de D'Aulon,
de seus dois irmãos e de um pequeno grupo de lanceiros.
Aqui vai a Donzela, metida de novo na sua armadura. As
estradas estão inundadas dum sol pálido e morno. Os cavalos
nitrem.
Na semana da Páscoa, Joana se acha junto aos muros de Melun.
Correm rumores de que a cidade, alvoroçada com a aproximação
dela, vai entregar-se ao Rei Carlos VII.
A Donzela olha as muralhas escuras. Em torno dela, silêncio.
De repente um clarão surge diante de seus olhos e dentro do
clarão, pairando no ar, Joana vê as imagens de S. Catarina e S. .
Margarida, que lhe falam docemente:
— Joana, antes de S. João cairás prisioneira.
A Donzela estremece, quer falar mas não pode, a voz lhe foge.
Ali no ar, com suas vestes dum azul puro, as coroas rebrilhando
na cabeça, as duas figuras queridas, bem como a menina Joana
as vira pela primeira vez em Domrémy, bem como continuara
a vê-las depois, através de muitos anos.. .
A Donzela faz um grande esforço e consegue dizer:
— Se eu for presa, acho que morro l o g o . . .
— É preciso que se cumpra o que Deus decretou. Serás presa
e terás paciência. Deus te ajudará.
224 ERICO VERÍSSIMO

A luz se apaga. As imagens se somem. E diante de Joana


se desenham agora os muros negros. E por trás dos muros se
ergue um clamor. Não são gritos de guerra. São vivas. O povo
de Melun resolve entregar a praça à Donzela.
D'Aulon vem correndo trazer a boa notícia.
Joana monta a cavalo para entrar no reduto que se rende.
E não lhe saem mais da memória as palavras de suas santas:
— Antes de S. João cairás prisioneira.
LII

O M I L A G R E DE L A G N Y

JOANA se acha em Lagny, cidade que há oito meses está ern


poder dos franceses.
Os habitantes da cidade a adoram. Vivem a bater-lhe à porta.
E os pedidos chovem:
— Dê-me uma mecha de seu lindo cabelo!
— Toque com seus dedos a minha cabeça...
— Venha ver o meu marido que está doente...
— Os meus porquinhos não engordam: faça o favor de ben-
zê-los . . .
Joana agora está com os olhos voltados para Compiègne. De
noite tem sonhos horríveis, em que a cidade lhe aparece em
chamas — mulheres gritando e arrastando os filhos pelas mãos,
as casas ruindo, choro, imprecações e sangue, enquanto borgo-
nheses e ingleses riem, riem, r i e m . . .
Em Lagny, Joana encontra excelentes companheiros d'armas:
Baretta, Kennedy, Ambroise de Loré e seu lugar-tenente Fou-
cault.
— Quantos homens tens, Baretta? — pergunta-lhe Joana um
dia.
— Quase cem entre alabardeiros e lanceiros.. .
Diz isto rindo, orgulhoso, como se dissesse: tenho doze mil
soldados.
Joana fica pensando. Seu rosto entristece. Lembra-se do po-
deroso exército que se estendia pelos campos de França como
uma longa cobra de aço, tendo na frente guerreiros como Dunois,
La Hire, Boussac, dAlençon. Sim, D'Alençon principalmente!
Oh!, se ao menos o duque estivesse aqui!
Um dia João Foucault vem dizer a Joana que em Paris se
fala com alvoroço na aproximação da "Donzela de Orléans". Os
borgonheses e os ingleses estão inquietos. Entre o povo e os
226 ERICO VERÍSSIMO

soldados corre de boca em boca a lenda de que ela é uma feiti-


ceira que tem a seu serviço uma legião de anjos do inferno.
Joana faz um gesto desamparado.
Todos os dias ouve as Vozes que lhe repetem:
— Antes de S. João cairás prisioneira.
E Joana ora, pede com fervor que Deus não permita
tenha vida longa depois de cair nas mãos dos inimigos. E ou
vez as santas lhe sussurram ao ouvido:
— Terás a coragem da paciência. Deus não te abandonará.
Entre os capitães de Lagny encontra-se Kennedy, bravo sol-
dado que tem sob suas ordens um punhado de escoceses. Os
olhos de Kennedy lembram a Joana vagamente os olhos de uma
outra pessoa... A Donzela pensa um instante. Olhos verdes,
dum verde lustroso e p u r o . . . S i m . . . Heliote, a filha de Ha-
mish Power!
— Kennedy — diz-lhe Joana um d i a — e u quero ver co
brigam os teus escoceses!
— Hás de ver, companheira, hás de ver!
E o dia da prova não tarda.
Chega a Lagny a notícia de que um grupo de trezentos a
quatrocentos borgonheses e ingleses, que andavam burlequeando
pela Ilha-de-França, agora voltam para a Picardia.
— Precisamos cortar-lhes a retirada! — decide João Foucault.
Os soldados de Lagny saem de sua cidade sob as ordens de
Foucault, Kennedy e Geoffroy de Saint-Bellin.
Joana os acompanha. A seu lado cavalgam D'Aulon e mais os
dois irmãos D'Are, Pedro e João.
— Que surpresa eles vão ter — exclama Kennedy, antegozando
o susto dos inimigos.
Mas a pouca distância de Lagny se dá o choque. Os ingleses e
borgonheses têm tempo de se entrincheirar. Seus arqueiros
tendem linha e esperam.
As forças de Lagny carregam.
Os olhos de Kennedy crescem de espanto ao verem Joana
de estandarte em punho esporear o cavalo e precipitar-se como
um p r o j é t i l . . .
O primeiro ataque dos franceses é rechaçado. O inimigo está
em maioria.
Foucault organiza novo assalto. Outro fracasso.
A VIDA DE JOANA D'ARC 227

Na terceira carga borgonheses e ingleses afrouxam. Os sol-


dados de Lagny insistem na investida e desbaratam completamente
os arqueiros contrários.
Voltam para Lagny com prisioneiros, feridos e outras presas
de guerra.
Joana está contente. Porque volta livre. Durante todo o com-
bate não lhe saíram da memória as palavras de S. Catarina e S.
Margarida: "Antes de S. João cairás prisioneira". Soavam mis-
teriosamente mais alto do que os gritos de raiva e de dor dos guer-
reiros, mais forte que o gemido soturno das frechas no ar, mais
agudas que o estrépito das patas dos cavalos batendo no chão,
nas pedras, ou nas cabeças e nos peitos dos soldados tombados.. .
A Donzela agora repousa.
Foucault lhe vem dizer que entre os prisioneiros se acha um
gentil-homem chamado Franquet d'Arras.
— Que faremos com ele? — pergunta Joana.
O rosto de Foucault endurece.
— Vai ser julgado por crime de roubo e assassínio. Andou
com seus homens a atacar aldeias desprotegidas.. . Roubou, ma-
tou, depredou...
Joana está pensativa. Vem-lhe uma idéia... Em Paris deve
estar prisioneiro Jacquet Guillaume. Era um dos implicados na
grande conspiração que visava entregar Paris ao Rei Carlos VII.
Jacquet era dono do Hotel do Urso, onde se reuniam os conspi-
radores. Os frades de Melun, que teciam a trama habilíssima, en-
travam em Paris disfarçados e ali achavam abrigo. Um dia o
complô foi descoberto e os principais cabeças presos.
— E se nós propuséssemos aos borgonheses a troca de Franquet
d'Arras por Jacquet Guillaume?
Foucault faz uma careta de pessimismo. E depois, com a fisio-
nomia mais clara:
— Joana, tu te portaste bem no combate. Franquet é teu pri-
sioneiro. Eu to entrego.
Nos dias que se seguem, a Donzela manda emissários a Pa-
ris, com uma carta em que propõe a troca. Voltam os mensa-
geiros com más notícias. Jacquet Guillaume e mais seis dos chefes
da conspiração foram decapitados...
Joana se sente invadida por uma onda de tristeza.
Que fazer de Franquet? Soltar o demônio, para ele continuar
228 ERICO VERÍSSIMO

na sua vagabundagem criminosa, saqueando as pobres aldeias sem


defesa? Por um instante Joana se lembra de Domrémy e de seus
dias de pilhagem e pavor. O pensamento lhe dá calafrios.
Vai até Foucault.
— Devolvo-te o prisioneiro.
Foucault por um instante fica sem saber que fazer do presente.
— Mas que destino se vai dar ao homem?
Joana encolhe os ombros.
— Eu me desinteresso. Façam o que quiserem, contanto que
não o soltem...
Foucault, em vista dos crimes cometidos por Franquet d'Arras,
instaura um tribunal para o julgar.
Os dias passam. A Donzela ora e medita. E as Vozes lhe repe-
tem: "Antes de S. João cairás prisioneira."
Uma tarde batem-lhe aflitamente à porta do quarto.
No instante seguinte a guerreira é cercada por um grupo
de mulheres assanhadas que falam e gesticulam sem cessar. E
Joana vê a seu redor rostos congestionados, olhos que saltam das
órbitas... E as comadres falam, falam, f a l a m . . . Pacientemente
a Donzela espera. As mulheres são como catapultas, lançando
contra a guerreira palavras que têm a força de pedradas.
As comadres repetem sem cessar: Morreu pagã! Morreu pagã!
Choros. Gritinhos nervosos. E por fim as mulheres se ajoelham
em torno da Donzela. E quando o silêncio se faz — silêncio que-
brado apenas pelos soluços abafados — Joana pergunta placida-
mente.
— Que foi que aconteceu, boas mulheres?
Uma delas lhe explica com voz entrecortada. A sua comadre e
vizinha teve um bebê. Criança linda, gordinha, parecida com o
pai. Ia ser um encanto... Mas — pobrezinha!—morreu pouco
depois de ver a luz do d i a . . .
— Foi de noite — interrompe uma das comadres.
Sem tomar conhecimento da interrupção a primeira continua
a narrativa. E desfia um colar de lamúrias. Não é mesmo uma
grande desgraça morrer sem ser batizada? Oh! Deus deve com-
padecer-se da pobre alminha que a estas horas decerto já anda
nas proximidades do i n f e r n o . . .
Joana escuta. E depois, deixando cair as mãos num gesto de-
samparado, pergunta:
A VIDA DE JOANA D'ARC 229

—.Mas que é que eu posso fazer?


Das mulheres ajoelhadas sobe para ela um clamor que é quase
um urro. Depois cada qual começa a falar. Sim, a Donzela pode
fazer um milagre. Um milagre! Não é ela Joana D'Arc a en-
viada do Senhor? Não conversa com os santos? Não ouve as Vozes
dos céus? O rosto de Joana exprime tristeza.
— Eu só posso orar e pedir a Deus que se compadeça da crian-
cinha. — De repente, mudando de tom, resoluta, como se, es-
tando no campo de batalha, de súbito resolvesse fazer uma carga
de cavalaria, acrescenta: —Levem o bebê para a igreja e ponham-
no diante do altar de Nossa Senhora.
As mulheres saem correndo, sacudindo os braços e cacarejando
como galinhas perseguidas.
Na igreja Joana encontra uma multidão cercando a criança
morta. A notícia se espalhara por toda Lagny. Joana D'Arc, a
Donzela de Orléans, ia obrar um milagre.. . Ninguém tinha
dúvidas. A fé e a curiosidade contagiam o povo.
Abrem-se alas quando Joana se aproxima do altar.
E ali aos pés da imagem de Nossa Senhora encontra-se um pe-
queno fardo envolto em lãs. Joana se inclina e olha. Um rostinho
enrugado e enegrecido, dois olhos parados, vidrados, mortos.
Em torno, silêncio. Ao lado do cadáver, uma mulher chora
baixinho. Muitas raparigas ajoelhadas pedem a Nossa Senhora
que interceda junto a Deus para que ele devolva a vida ao cor-
pinho inerte.
Joana se ajoelha e começa a rezar.
Para ela nada pede, nada quer. Sabe que seu fim se aproxima.
Sua missão está terminada: foram cumpridas as ordens do Arcanjo.
A metade da França está em poder de seu verdadeiro rei. Ama-
nhã, ela sabe, o último inglês será expulso e então a sua querida
pátria estará livre! Mas, Senhor, por que não dar um pouco de
vida a esta criança morta? Ao menos por algumas horas, para
que ela seja batizada e para que sua alma depois possa voar para
o céu...
Por muito tempo a Donzela fica a rezar. Depois se levanta,
aproxima-se do cadáver e suas mãos, como duas asas cansadas,
pousam na testa fria da criança.
O silêncio é profundo. Todos esperam, sustendo a respiração.
E de súbito estremecem. Porque da boquinha entreaberta se
230 ERICO VERÍSSIMO

escapa um gemido, e outro e mais outro. O rostinho negro vai


aos poucos empalidecendo e por fim a criança começa a esper-
near.
De joelhos novamente, agradecendo a Deus o milagre, Joana
não ouve nem vê o alvoroto de gestos e vozes que se faz em
torno do recém-nascido. Também não percebe que um sacerdote
vem e leva à pia batismal a criança que emergiu há pouco do
fundo da morte.
Quando Joana sai de seu êxtase, já é noite fechada. A igreja
está deserta. O luar entra pelas janelas.
Amanhã, que acontecerá?
Joana caminha para fora.
As estrelas brilham sobre Lagny.
LIII

QUEM ESCREVE É D E U S . . .

DESDE a Páscoa a grande trégua entre Carlos VII e o Duque de


Borgonha está terminada.
La Trémouille sonha com novas aventuras douradas. Carlos
VII acaricia ainda a idéia de fazer uma grande, uma imensa, uma
eterna paz. Mas tudo isto não é tão, tão fácil? Reunir, por exem-
plo, os representantes das duas grandes potências em Auxerre para
discutir e firmar uma paz honrosa...
— Se eu ao menos, como queria, tivesse conseguido dar de
presente Compiègne ao primo de Borgonha! — exclama o rei ao
seu conselheiro, em tom lamuriento.
La Trémouille sorri enigmaticamente.
— Mas aquela gente é dura! — continua Carlos VII. — Você
já viu coisa mais tola do que essa mania de fidelidade ao rei, La
Trémouille? Ora, ora! Pois se o rei diz: Fiquem com os bor-
gonheses, eu não quero vocês, Compiègne me servirá melhor se
passar para as mãos do primo Filipe! Mas qual! Os homens
não se entregam.
La Trémouille continua a sorrir em branco.
Em Lagny os franceses conseguem reunir as tropas de muitos
chefes e levar a Senlis um exército de mil cavaleiros. Joana os
acompanha.
Ingleses e borgonheses, agora que a trégua findou, concentram
forças numerosas e uma artilharia possante em Montdidier. O
seu objetivo atual é tomar Compiègne, grande cidade, a chave de
Paris. E ingleses e borgonheses querem a todo o custo conservar
Paris. Carlos VII faz ainda tentativas desesperadas para entregar
Compiègne ao Duque de Borgonha.
— Prometi — diz ele sem cessar aos seus conselheiros. — Não é
"Vima vergonha deixar de cumprir a promessa?
Emissários vão e vem do rei para Compiègne. Mas a brava
cidade recusa render-se ao inimigo.
232 ERICO VERÍSSIMO

E então Carlos VII, como compensação, entrega Pont-Saint


Maxence ao Duque de Borgonha.
E fica muito satisfeito, julgando-se desobrigado, e imaginaria
que agora está aberto o caminho para a grande paz.
Mas o Duque de Borgonha não desiste da idéia de atacar Com
piègne. E com um belo exército se encaminha para a cobiçada
cidade. Leva muitos canhões e bombardas.
Joana fica aflita ao saber que seus amigos de Compiègne cor
rem perigo. A sua lealdade ao rei a comoveu. E a Donzela agora
só tem pensamentos para a praça ameaçada.
Guilherme de Flavy, o comandante da cidade, prepara a defesa,
Nas ruas e nas casas públicas já se murmura contra o rei que não
se move para socorrer Compiègne.
O Duque de Borgonha de Montdidier marcha para o ocidente
ocupando Noyon. A meia légua deste lugar fica a Fortaleza de
Pont-1'Evêque, ponto estratégico precioso, que se acha ocupada
por uma guarnição inglesa.
A 13 de maio Joana entra em Compiègne pelo sul.
A sua presença dá ânimo aos defensores da cidade. Como se
ela valesse por uma legião de vinte mil soldados.
Chegam notícias assustadoras: os borgonheses sitiam Choisy-
le-Bac, praça forte que fica abaixo de Compiègne.
Os arcebispos de Reims e Vendôme se encontram nesta última
cidade. Joana se alegra ao vê-los. Encontra-os na noite de sua
chegada, na casa de Guilherme Flavy. Combina-se um ataque a
Pont-1'Evêque. É necessário tomar a fortaleza e cortar as linhas
de comunicação dos borgonheses ao sul, através do Oise.
Madrugada. Uma tropa de três mil homens sai em silêncio de
Compiègne. A noite é clara. O vento, fresco. Joana vai ao lado
de Poton de Xaintrailles, que comanda a força.
O ataque começa ao romper do dia. Os ingleses resistem.
Os franceses desde os primeiros minutos ganham terreno.
E diante do inimigo Joana pensa: será hoje?
Mas afugenta a idéia e, esporeando o cavalo, carrega... De
repente recebe ordem de retirar. É que a guarnição borgonhesa de
Noyon teve notícia do combate e vem em socorro dos ingleses.
Os atacantes voltam para Compiègne. A manhã é clara. Mas
Poton de Xaintrailles está sombrio:
— Trinta mortos — diz ele. — Sem proveito nenhum...
A VIDA DE JOANA D'ARC 233

Três dias depois,«esta nova: Choisy-le-Bac se rendeu aos bor-


gonheses.
5 Em Compiègne reúnem-se os chefes franceses para combinar
Aima ofensiva.
— Precisamos atacar os borgonheses pela retaguarda — pro-
põe Vendôme.
Guilherme de Flavy ergue para ele os olhos ansiosos:
— De que modo? — pergunta. — De que modo?
Joana intervém:
— Vamos até Soissons! A cidade é nossa. Lá atravessamos o
Aisne e caímos sobre a retaguarda dos borgonheses!
Reúnem-se todas as forças de Compiègne para a grande ofen-
siva. Inicia-se a marcha rumo de Soissons. Joana cavalga entre
o arcebispo de Reims e o Conde de Vendôme.
Nas proximidades de Soissons a decepção na forma de um
arauto vem ao encontro dos franceses. Guiscard Bournel, um
picardo que comanda a guarnição francesa da cidade, manda dizer
ao Exército de Compiègne que não lhe permitirá a entrada em
Soissons. Os tempos andam maus. O dinheiro é pouco. A cidade
não tem recursos para dar mantimentos à tropa.
Só o arcebispo de Reims e o Conde de Vendôme é que são
recebidos por Guiscard Bournel. Joana, com sua companhia, per-
noita no campo.
O acampamento dorme. Uma fogueira crepita, o vento fresco
da noite faz bambolear as chamas. Os vultos escures dos guardas
se silhuetam contra o céu.
Joana passeia por entre as tendas. Pensa.. . Agora tudo cami-
nha para o fim, aceleradamente. Acabaram-se as cavalgadas glo-
riosas. A entrada em Orléans... a coroação do rei em Reims.
Bandeiras e trombetas e aclamações. Agora todos os homens a
seu redor têm o ar de conspiradores. Ingleses e borgonheses ga-
nham terreno. Apertam o cerco de Compiègne. Dentro em pouco
a cidade estará sitiada por todos os lados.
Joana pára. Longe brilham as luzes de Soissons.
A Donzela olha para Soissons que não a quis receber. Seus
olhos se enchem de lágrimas.
Continua a andar. Por cima de sua cabeça descoberta, as es-
trelas cintilam. A lua tem uma auréola prateada, como se fosse
a cabeça de uma santa.
234 ERICO VERÍSSIMO

Joana se dirige para a tenda. Diante dela se ergue uma sombra,


—Quem é lá?
— S o u eu — diz uma voz.
É D'Aulon.
Ficam ambos parados um instante. A cara do escudeiro está
escondida na sombra. Há um silêncio curto. Joana sente que o
seu fiel companheiro darmas está pensando em Soissons.

D'Aulon murmura por entre dentes.


— Nunca simpatizei com os picardos...
Refere-se a BourneL
— Não faz mal, d Aulon. Os nossos amigos de Compiègne hão
de nos ajudar.
— Compiègne está empobrecida também.
— Havemos de encontrar dinheiro para pagar as tropas.
A VIDA DE JOANA D'ARC 235

— Compiègrie mal pode sustentar a gente que a defende.


Pausa.
— D'Aulon — fala a Donzela. — Você compreende tudo isto?
Bournel se recusando a nos receber... O rei parado e indiferente
no seu castelo, desejando mesmo que Compiègne caia nas mãos do
Duque de Borgonha... Você compreende?
D'Aulon sacode a cabeça negativamente. E depois:
— É inútil. Tudo tem de ser assim mesmo. Não vale a pena
a gente fazer sacrifícios... — E de súbito, falando mais depressa,
com mais ânsia na voz. — E por que não abandona tudo isto?
Por quê? Já fez o impossível... Coroou o rei. Restituiu-lhe me-
tade da França.. . Sua missão está cumprida. Por que não de-
siste?
Joana fica um minuto em silêncio. Depois faz um gesto desam-
parado e diz:
— O que tem de ser está escrito. E quem escreve é Deus.
D'Aulon vai soltar uma blasfêmia:
— Deus?
Mas cala-se, sem força para pronunciar mais uma palavra. Ca-
la-se porque agora em torno da cabeça de Joana há um resplendor
prateado, uma poeira luminosa, um h a l o . . . Será ilusão? Ou a
luz da lua?
O escudeiro olha. Como está iluminada a cabeça da guerreira!
Parece uma imagem numa igreja invadida pelo luar. O seu rosto é
belo e sereno. O vento lhe agita os cabelos.
O acampamento dorme.
LIV

O ÚLTIMO COMBATE

No DIA seguinte Joana D'Arc e os chefes de guerra se separam.


Seguem estes com seus homens para Senlis e para as margens
do Marne.
Joana torna a Compiègne com sua pequena companhia.
Os soldados estão cansados. Entregam-se a um longo repouso.
Mas a Donzela, inquieta, torna a vestir a armadura e a empunhar
o estandarte e, montando no seu belo cavalo gris, vai até Crépy-en-
Valois onde se estão reunindo tropas para defender Compiègne.
Volta com elas para a cidade ameaçada de sítio. Atravessam uma
floresta que já está cheia dos ruídos da primavera. Cantam pássa-
ros nas árvores copadas. Os esquilos apontam as cabeças esquivas
por entre galhos. E às vezes, ao passar por baixo duma árvor;
a Donzela sente cair sobre ela uma chuva fresca e colorida
flores agrestes.
De Crépy-en-Valois a Compiègne a estrada está livre. Não se
encontra um inimigo. Ingleses e borgonheses estão acampados na
outra margem do Oise.
Outra vez em Compiègne.
Na frente da cidade, do outro lado do rio, na aldeia de Margny
um destacamento de borgonheses está acampado.
Joana reflete. .. O grupo inimigo parece não ser grande. Às
cinco horas os homens devem estar descansando, despojados de
suas armaduras. Os cavalos soltos... Os canhões abandonados. . .
Uma boa força que saísse de Compiègne pela ponte e caísse de
surpresa em cima dos borgonheses...
A Donzela ergue-se dum salto e, com D'Aulon, vai levar seu
plano a Flavy. Flavy aprova.
— E quando se vai fazer o ataque?
O rosto de Joana parece uma máscara de pedra cinzenta.
— Hoje! — diz ela.
A VIDA DE JOANA D'ARC 237

Combinam-se detalhes. Para auxiliar a volta das tropas de


Compiègne, Flavy colocará arqueiros, colubrineiros e arbaletei-
ros à cabeça da ponte. Porá a flutuar no rio grande quanti-
dade de barcos cobertos que auxiliarão a retirada.
Reúnem-se as forças em silêncio.
Joana veste a armadura, cinge uma espada borgonhesa que
arrebatou a um inimigo. Estende a mão para apanhar o seu es-
tandarte. Mas um pressentimento estranho lhe assalta a mente.
Cerra os olhos e fica um instante com o espírito voltado para
o céu. Mas as suas Vozes não lhe falam, as imagens queridas
não lhe aparecem.
Joana vai pegar o estandarte. De novo hesita. Um minuto.
Dois. Um tropel na rua. Joana desce com o elmo na mão. À
porta do quarto volta-se e olha de novo para o estandarte.
— Joana!
É a voz de D'Aulon. A Donzela desce as escadas. Monta a
cavalo.
E aqui vai ela à frente de quatrocentos e poucos homens. A
seu lado cavalgam João e Pedro, D'Aulon e Poton, seu irmão.
A companhia atravessa a ponte.
D'Aulon vai descrevendo a posição do inimigo:
— Baudot de Noyelles está na aldeia de Margny, João de Lu-
xembourg acha-se em Clairoix com a sua tropa de picardos. —
Ao pronunciar picardos, os dentes de D'Aulon rangem. — Os in-
gleses de Montgomery estão em Venette, à beira do Oise.
— E o Duque? — indaga Joana, sorrindo.
— O Duque está em Coudun.
Joana está de bom-humor.
— D'Aulon, e se nós desta sortida trouxéssemos preso o Duque
de Borgonha?
E solta uma risada musical.
D'Aulon faz uma careta pessimista.
— Não adianta prender. Em qualquer caso o nosso bravo rei
o mandaria soltar.. .
Chegam ao fim da ponte.
Instantes depois caem violentamente sobre o destacamento de
Baudot de Noyelles.
Joana esporeia o cavalo e investe. Os cavaleiros a acompa-
nham.
238 ERICO VERÍSSIMO

Os borgonheses, apanhados de surpresa, ficam desnorteados.


Gritos. Correrias. Tinido de ferros. Poeira.
Os franceses não arrefecem no ataque. Os inimigos recuam.
No alto duma colina, a poucas centenas de metros de Margny,
surge um grupo de cavaleiros. É João de Luxembourg que, com
oito ou dez gentis-homens, chega de Clairoix para visitar Baudot
de Noyelles.
Baixam os olhos. Lá em baixo na planície, a luta enfurecida. As
lanças, a lâmina das espadas, as armaduras e os elmos coruscam
na luz da tarde. Num relance, Luxembourg vê tudo e compreende.
Manda meia dúzia de cavaleiros de volta a Clairoix a todo o ga-
lope para buscar reforços.
Magny já está nas mãos dos franceses. Os borgonheses deban-
dam.
Luxembourg e seus homens estão sem armaduras.
Já agora não podem retroceder.
Joana deu pelo ilustre grupo. De espada desembainhada ela
arremessa o cavalo contra Luxembourg e sua comitiva. As crinas
do animal voam ao vento. Joana está transfigurada. Ela sabe
que é o fim. Sabe. Mas que importa? Vai como num sonho,
como se estivesse v o a n d o . . .
A VIDA DE JOANA D'ARC 239

João de Luxembourg e seu grupo juntam-se ao destacamento


de Baudot para melhor resistir ao inimigo.
À aproximação de Joana, fogem.
Os franceses estão senhores da aldeia. Ficam-se a examinar os
despojos. Canhões. Lanças. Espadas. Víveres.
— Podíamos v o l t a r . . . — sugere D'Aulon.
Joana responde:
— Depois que tivermos levantado do chão a última lança. Pre-
cisamos armar e municiar tropas de Compiègne.
Enchem-se muitas carretas com fardos de víveres e com armas
e outros despojos.
O tempo se escoa.
Os homens de Baudot de Noyelles armam-se como podem e
fazem uma investida. Querem retomar a aldeia. Colhidos de sur-
presa, os franceses recuam. Mas Joana esporeia o cavalo e, de
espada erguida, comanda uma reação. Os borgonheses se retiram.
Mas algum tempo depois voltam a atacar. E numa sucessão de
escaramuças, num vaivém violento e sangrento, o tempo passa.
Avistam-se ao longe as tropas que João de Luxembourg mandou
buscar em Clairoix. O próprio Filipe de Borgonha se aproxima
de Margny com as forças de Coudun.
— Estamos perdidos! — exclama D'Aulon.
Os franceses abandonam Margny. Debandam. É inútil resistir.
Agora só há salvação na retirada.
— Deixem as carretas!—grita Joana.
E de repente começa a brotar no meio dos soldados esta excla-
mação desesperada: Salve-se quem puder!
Joana olha para todos os lados, aflita. E de repente v ê . . .
Vê uma linha de cavaleiros ingleses que procuram cortar a reti-
rada dos soldados de Compiègne. D'Aulon convida Joana para
fugir. Ela recusa. Esporeia o cavalo e, com um punhado de
homens, se lança contra os inimigos, para proteger a retirada
dos seus.
Pânico. Os franceses fogem desordenadamente. Muitos atiram-
se à água, na esperança de serem recolhidos pelos barcos. Outros
procuram aproximar-se da ponte. Muitos tombam e ficam esma-
gados sob as patas dos cavalos dos ingleses. Ouvem-se urros de
dor e de raiva.
Dos muros de Compiègne, olhos aflitos, o rosto contraído,
240 ERICO VERÍSSIMO

Guilherme de Flavy olha... Não pode usar os canhões, pois cor-


reria o risco de matar os companheiros que estão misturados com
os inimigos.
E a massa de retirantes se aproxima seguida de perto pelos
que atacam. Flavy hesita... Que fazer? Esperar que os seus sol-
dados se aproximem da ponte, atravessem-na e se ponham a salvo?
Mas isso será permitir que os ingleses entrem junto e invadam
a cidade.
Flavy pesa as conseqüências. E num minuto resolve.. . Sa-
crificar algumas centenas de soldados para salvar Compiègne!
Manda fechar as portas da cidade e erguer a ponte levadiça.
Só Joana não recua. Cercada pelos irmãos, por D'Aulon e por
Poton, ela luta, brande a espada, grita, incita e se defende. E
arrisca a vida para auxiliar a retirada dos companheiros.
— Vamos entrar na cidade depressa — grita-lhe alguém — se-
não estamos perdidos.
D'Aulon, vendo que Joana não pretende arredar-se de onde
se encontra, segura violentamente das rédeas de seu cavalo e faz
que o animal se volte na direção da cidade. Estendendo a perna
direita, com a espora acicata o corcel da Donzela. E o grupo se
precipita a todo galope rumo de Compiègne.
Tarde demais! As portas fechadas. A ponte erguida.
Soldados picardos se aproximam de Joana.
— Esses demônios — berra D'Aulon. E brande a espada com
fúria.
Os inimigos avançam. Joana vê crescerem diante de seus olhos
caras barbudas, sujas de poeira e de sangue, olhos congestionados,
bocas retorcidas.
E espera, impávida.
— Rendam-se!—grita um dos picardos.
Joana ergue da espada.
Mas uma mão forte lhe agarra a capa que cobre a armadura.
Um puxão violento.
Joana tomba.
LV

PRISIONEIRA

SEM ELMO e sem espada, as mãos amarradas às costas, aqui vai


Joana D'Arc em cima de seu cavalo cujas rédeas um picardo puxa.
Ao redor dela os soldados ululam. Erguem-se punhos para o
seu rosto. Zunem gritos de alegria. Olha a feiticeira! berra al-
guém com uma risada. Outro grita: Chama os teus anjos do
inferno, chama! Gargalhadas.
Olhos fechados, Joana se deixa levar ao abandono. Seja agora
o que Deus quiser. Só uma coisa lhe dói. É saber que Compiègne
corre perigo. O sítio se vai apertando. A pobre cidade não po-
derá suportar a luta por muitos meses. Se ao menos ela estivesse
livre para os ajudar ou então para morrer ao lado de seus bons
amigos.. .
O Duque de Borgonha vem em pessoa ver a prisioneira. Ao
se defrontar com ela seus olhos brilham, suas narinas inflam de
contentamento. Faltam-lhe palavras para exprimir a sua grande
alegria.
Filipe o Bom vê diante de si a Donzela de Orléans, a rapariga
dos milagres, a camponesa que diz ter sido enviada por Deus para
libertar a França. Caiu, enfim, caiu apesar de seus anjos, de seus
santos, apesar de todas as profecias. . .
O Duque de Borgonha mira-a de alto a baixo. E diz:
— Vencida finalmente, hein?
Joana sorri com serenidade.
— Tem certeza? — pergunta simplesmente.
— Absoluta — responde o duque, começando a ficar inquieto.
— Espera então. Amanhã estarás de pazes feitas com Carlos
VII. E não haverá mais tropas inglesas no meu país.
Joana tem os olhos postos no futuro. E o que vê lhe enche a
alma de alegria. O último inglês expulso da França. A pátria
libertada. A paz.
242 ERICO VERÍSSIMO

E seu rosto é tão tranqüilo e tem um tal resplendor que Filipe,


evitando-lhe os olhos, diz aos seus capitães:
— Ela pertence a João de Luxembourg. Levem-na.
A notícia da captura da Donzela se espalha pela França. Cor-
rem arautos para todos os pontos.
No seu Castelo de Jargeau, ao saber da notícia, o rei dá um
salto:
— Joana presa? Oh!
Bufa. Sacode os braços. Chama La Trémouille. E diante dos
cortesões, declara solenemente que como Rei de França tudo fará
para libertar a Donzela. Perora:
— Com represálias, com dinheiro ou pelas armas! —grita num
assomo de energia de que ele mesmo se admira depois. Mas
encontra os olhos frios e trocistas de La Trémouille e arrefece.
Dinheiro? Mas onde está o mago para fabricar ouro? Pelas armas?
Onde anda o ouro Dara pagar e abastecer as tropas?
Durante alguns dias o rei ainda fala em libertar a Donzela.
Tem um ou dois sonos agitados em que a imagem de Joana
lhe aparece ameaçadora, prometendo-lhe castigos tremendos no
inferno. Conta suas visões pavorosas a La Trémouille.
— E se ela é santa, La Trémouille, que será de minha alma se
eu não a ajudar?
O conselheiro sorri.
— Se ela é santa terá os seus anjos para a libertarem.
E depois de meia dúzia de dias o rei esquece a Donzela.
Luxembourg guarda Joana como um tesouro. Conserva-a qua-
tro dias em Clairoix. Remete-a depois para o Castelo de Beau-
lieu.
E assim anda Joana, de lugar para lugar, exposta à curiosidade
e ao escárnio do povo, como um urso de feira.
No Castelo de Beaulieu o fiel D'Aulon fica a seu lado.
Joana vive a pensar em Compiègne. A todos pede notícias da
brava cidade. Dizem-lhe que os soldados da defesa ainda re-
sistem.
A sós no seu quarto de Beaulieu, a Donzela ora. E suas Vozes,
falando-lhe de mansinho, lhe aconselham a resignação.
Joana não pode conciliar o sono. Fica à janela olhando a noite.
Longe daqui existe uma cidade que precisa da sua presença e
A VIDA DE J O A N A D'ARC 243

da sua espada. Uma cidade onde milhares de criaturas sofrem.


Se ela pudesse fugir?
Um dia, encontrando uma porta aberta, foge. Corre sem plano
formado. Fugir! De qualquer modo, a qualquer preço... Ao
chegar a um longo corredor lateral, tombam sobre seus om-
bros as mãos dum guarda. Outros aparecem. Joana deixa cair os
braços, desalentada.
Pierre Cauchon, bispo de Beauvais que no verão de 1429 fora
obrigado a fugir às pressas à aproximação das forças de Carlos
VII comandadas pela Donzela, não pode esquecer os incômodos
e sustos daquela corrida desastrosa em que tivera de deixar para
trás a quietude confortável de sua casa, os seus quadros, as suas
fofas poltronas e os seus alfarrábios. Amigo também dos in-
gleses, vota agora a Joana D'Arc um ódio de morte. Bedford o
encarregou secretamente de arrebatar a guerreira das mãos de
LuxemDourg. Cauchon põe-se em campo. E expõe as suas ra-
zões:
— A Donzela foi aprisionada nos limites da minha diocese...
Seus olhinhos brilham. Seu sorriso é ambíguo. ..
Mas João de Luxembourg não se deixa vencer. Sacode a cabeça
numa negação.
O bispo persevera:
— Ela cometeu um crime que só a Igreja compete julgar.
Feitiçaria, heresia e idolatria. A prisioneira me deve ser en-
tregue.
— A prisioneira me pertence — declara Luxembourg, seca-
mente.
De Beaulieu Joana é levada para Beaurevoir, para o castelo
de João de Luxembourg.
Junho. Claros dias de verão. Sombras frescas e azuladas nos
corredores do castelo, sombras trespassadas por setas douradas
de sol.
Na nova prisão, Joana ora e medita.
A esposa, a tia e a filha de João de Luxembourg a tratam
com carinho. Dão-lhe um bom quarto. A primeira preocupa-
ção da Donzela — porque não lhe sai da cabeça a idéia da fuga
— é ir à janela olhar para baixo. Muitos metros de altura a
separam do solo. Um salto poderia ser fatal...
Aimond de Macy, um cavaleiro do partido borgonhês, vem
244 ERICO VERÍSSIMO

muitas vezes ao castelo e faz camaradagem com Joana. Con-


versam longamente. E aos poucos ele vai ficando fascinado pela
menina tranqüila e tristonha que veste roupas de pajem e que
renunciou ao mundo para lutar pela França. E o fascínio é tão
grande que um dia o cavalheiro Macy chega a estender uma mão
para Joana, na tentativa duma carícia. Ela recua e o repele ime-
diatamente com gestos e palavras. E num instante a guerreira
ressurge. Aimond de Macy recua, surpreendido. Arrepende-se
do que fez. E se vai embora, vermelho de vergonha.
Os dias passam.
Chegam aos ouvidos de Joana notícias que lhe descrevem as
manobras do Bispo Pedro Cauchon. Anda ele azafamado dum
lado para outro, a pedir que lhe entreguem a Donzela para
ser julgada pela Igreja.
Joana fica inquieta. Sabe que Cauchon trabalha para Bedford,
para os ingleses. E os ingleses ameaçaram um dia de levar a
"bruxa" à fogueira...
Mais do que nunca o desejo da fuga freqüenta os dias e as
noites da Donzela.
LVI

VENDIDA

TODOS amam a Donzela no castelo de Luxembourg. Dão-lhe a


liberdade de passear por quase todos os compartimentos. E Joa-
na passa a maior parte de seu tempo na capela, orando.
Aqui segue ela pelo longo corredor cheio de janelas. Ainda
não despiu as roupas de homem, apesar de as damas lhe terem
oferecido roupas de mulher.
— Foi assim que eu vim para a França pela vontade de Deus
— respondeu Joana delicadamente — continuar vestida deste mo-
do é manter-me fiel à minha missão.
Joana passeia. Seus passos ecoam estranhamente no longo
corredor. Um mundo de recordações a acompanha. E a lem-
brança de Compiègne não lhe deixa a mente. Ouviu dizer que
os ingleses ameaçam fazer uma grande matança de homens, mu-
lheres e crianças depois que tomarem a cidade. A Donzela sofre.
Anseia pela liberdade. Espera a todo o instante o milagre. Mas
o milagre não vem. A dúvida a assalta. Vai para o quarto orar.
E as Vozes lhe dizem que ela deve ter paciência, porque tudo
acontece por vontade de Deus.
Finda o verão. Compiègne ainda não se rendeu. Joana chora.
Se ela pudesse estar com os seus bons amigos. . .
Confessa-se repetidamente. Assiste às missas.
Entra o outono.
Cauchon continua a assediar Luxembourg. Bedford pretende
levantar altos impostos na Normandia. Manda oferecer vinte
mil libras a Luxembourg em troca da Donzela.
Numa sala do castelo, a tia de João de Luxembourg dirige-se
ao sobrinho:
— Meu caro João — diz ela — eu quero fazer-te um pedido.
— Sua voz é doce. — Não vendas a menina Joana aos ingleses,
sim?
246 ERICO VERÍSSIMO
A VIDA DE JOANA D'ARC 247

Entre um pedido da cara titia e as vinte mil libras de Bedford,


João não tem' a menor hesitação. Aceita a proposta de Bedford.
E é a sua mulher que vai levar a triste notícia à prisioneira.
Joana ouve-a em silêncio.
Quando se vê a sós de novo, toma uma resolução desesperada.
Pensa em Compiègne, que ela precisa ajudar. Pensa no que
será a sua sorte nas mãos dos ingleses.. .
E resolve num segundo. Aproxima-se da janela. Ergue a
perna para saltar. Mas contra o azul do céu lhe aparece a ima-
gem de S. Catarina, que lhe diz:
— Não saltes, Joana. Deus ajudará Compiègne. — Joana es-
taca. Ouve. Responde:
— Se Deus pretende ajudá-los, eu quero estar junto de meus
amigos nesse momento.
A imagem se apaga. Joana hesita um instante. Mas outra
vez lhe vem à memória o massacre de Compiègne.
Trepa ao peitoril da janela. Entrega-se a Deus e se precipita.

Ao abrir os olhos Joana vê os rostos amigos da tia e da esposa


de João de Luxembourg. Ambas sorriem para ela.
A Donzela se soergue na cama. Dói-lhe o corpo. Torna a
baixar a cabeça para o travesseiro.
Fala a mais velha das mulheres:
— Por que fez isso? Podia ter morrido. A janela é tão al-
t a . . . Foi por um milagre de Deus que seu corpo não ficou
em pedaços.. .
No íntimo Joana está aborrecida consigo mesmo. Pela pri-
meira vez desobedeceu às suas Vozes.
E durante a convalescença, o companheiro mais assíduo que
a Donzela tem é o arrependimento.
Setembro expira.
Joana é transferida para Arras.
Só em novembro é que Bedford consegue levantar o dinheiro
para comprar a "prisioneira de guerra". João de Luxembourg
a cede tranqüilo, muito embora sabendo que os ingleses a que-
rem queimar viva.
Em Paris, na Universidade, reina inquietação e ansiedade.
O julgamento deve ser feito o quanto antes.
248 ERICO VERÍSSIMO

Para que tanta demora? Quanto mais tempo continuar com


vida a Feiticeira, mais almas corromperá, mais heresias pra-
ticará . . .
Levam Joana a Drugy, às cidades marítimas.
Uma peregrinação dolorosa. O povo se apinha nas ruas para
a ver. Nas janelas assomam cabeças, rostos curiosos. Irrompem
vaias. Em Crotoy um popular arremessa uma pedra que lhe
fere o rosto.
Entre uma cidade e outra — o campo. O sol sobre as colinas.
Os bosques cheios duma sombra verde e fresca. Os regatos que
correm entre pedras, marulhando e cantando uma cantiga pa-
recida com a do Mosa.
Mas a peregrinação continua. Outras cidades. Outras humi-
lhações. Para esquecer a multidão que grita e gesticula a seu
redor, chamando-lhe feiticeira, herege, filha do diabo — Joana
cerra os olhos e ora. E contra o fundo avermelhado de suas
pálpebras vê as imagens de S. Catarina e S. Margarida, que sor-
riem para ela e lhe dizem baixinho palavras de consolo.
E a comitiva que leva a Donzela prisioneira atravessa prados,
sobe colinas, vadeia rios, corta aldeias e cidades.
St. Valéry. Eu. Dieppe. Arques. Longueville.
— Para onde me levam? — pergunta Joana.
E um dos capitães que a acompanham responde:
— Para Ruão.
— E o que vão fazer de mim?
O soldado dá de ombros. A marcha continua.
Ao anoitecer batem às portas de Ruão.
LVII

OS DOIS A C O R R E N T A D O S

N A ENCOSTA da colina de Boureuil, em Ruão, fica o velho cas-


telo construído no reinado de Filipe-Augusto. Suas sete torres
negras apontam para o céu.
E o céu agora é escuro e desolado. O vento uiva.
Dezembro.
Luzes nos aposentos principais.
O pequeno Rei Henrique VI da Inglaterra vai dormir. Metido
no seu camisolão de seda ele se aninha debaixo dos grossos
cobertores. A luz de duas tochas clareia o grande leito de pau
lavrado, mas deixa o resto do quarto mergulhado em sombra.
Na lareira brilha um fogo sem chama.
O reizinho afunda a cabeça no travesseiro.
O Conde de Warwick acha-se ao pé da cama. A luz das to-
chas lhe clareia o rosto duro. Carrancudo, ele olha fixamente
para o menino Henrique. Seus olhos lembram ao reizinho os
da cacatua branca que ele tem no seu palácio de Londres. Os
cabelos do conde estão grisalhos: parece que a neve que anda
lá fora na noite de inverno polvilhou-lhe a cabeça.
O reizinho olha para o preceptor, cheio de medo.
Warwick faz um sinal com a mão. Emergem da sombra dois
pajens.
— Segurem as tochas! — ordena o conde.
Os pajens obedecem.
Warwick olha mais uma vez para o rei.
— Feliz Natal! — diz, seco.
Faz um sinal aos pajens para que saiam com as luzes. Cami-
nha para a porta.
Agora a escuridão toma conta do quarto.
O reizinho se encolhe todo debaixo das cobertas e começa
a chorar baixinho.
Desde agosto está metido neste castelo de que Warwick é
250 ERICO VERÍSSIMO

governador. Festas e audiências, cerimônias cacetes, roupas aper-


tadas, cabeções de renda, beija-mão. E rumores de guerra. In-
trigas.
Perdido em pensamentos, o reizinho cessa de chorar. Ontem,
passeando na sua carruagem pelas ruas de Ruão, viu um grupo
de rapazes que brincavam e riam fazendo um boneco de neve.
Voltou para o castelo, pensativo. E se ele tivesse a felicidade
de não ser rei? Se pudesse sair de roupas grosseiras, sozinho,
livre e ir brincar no meio da rua como os garotos franceses?
Oh! No princípio haveria muita confusão porque os rapazes de
Ruão falam uma língua que ele não entende... Mas depois
tudo se arranjaria com gestos e atos.. .
Chegam até os ouvidos de Henrique os gritos dos guardas que
se revezam.
O reizinho pensa em Joana D'Arc. Há muito que lhe falam
nesse nome. Desde a Inglaterra que essas duas palavras lhe
vêm soando aos ouvidos. E com que ódio os seus generais e os
seus cortesãos as pronunciam! Certa vez uma das castelãs em Lon-
dres lhe contou as proezas da Donzela. Uma rapariguita do campo
um dia viu e ouviu anjos e santos dos céus. E esses anjos e esses
santos lhe ordenaram que fosse libertar a França, E ela foi. Sem
medo. Montou a cavalo, vestida de homem, e seguiu para a
guerra. Venceu muitas batalhas. E todo o mundo passou a falar
dela, de suas aventuras, de seus milagres. E durante meses e
meses contaram-se proezas da Donzela. O Regente falou um dia,
furioso: Se eu pesar aquela rapariga, meto-a na fogueira ou
atiro-a no rio dentro dum saco costurado.
O reizinho sorri no escuro. Não compreende por que sente
tanta simpatia por Joana D'Arc. Sabe que ela é inimiga de sua
gente, de sua coroa. Oh! Mas é tão valente... As suas aven-
turas são tão bonitas! Parecem as do Rei Artur. Daqui a alguns
anos haverá baladas e cantigas que falarão em Joana D'Arc, como
há hoje baladas e cantigas que falam no Rei A r t u r . . .
E de repente, ferido por um pensamento, o reizinho se ergue
na cama. Joana D'Arc — disseram-lhe — está presa neste mesmo
castelo.
O menino Henrique fica excitado. E não consegue conciliar
o sono. E pensa, pensa, pensa.
Como será ela? Bonita ou feia? Não estará sentindo frio,
A VIDA DE JOANA D'ARC 251

metida no calabouço? Oh! Se ao menos ele lhe pudesse mandar


cobertores...
O tempo passa. O reizinho se revolve na cama. Fecha os olhos
para ver se consegue aprisionar o sono. Amanhã é Natal. Vai
ser decerto o Natal mais triste de sua vida.
O reizinho dorme.

Mas Joana, de olhos abertos, sofre.


As argolas de ferro que tem ao redor do pescoço e dos tor-
nozelos são frias, frias como colares de gelo. E ela sente o peso
das correntes que a prendem à parede gelada que poreja umi-
dade.

Ouve o ressonar fundo dos guardas que dormem a poucos


passos de sua cama.
252 ERICO VERÍSSIMO

Os minutos se escoam. Nenhum ruído do exterior chega


até aqui. A prisioneira tem a impressão de que fora destas quatro
paredes limosas a vida parou.
A um canto da prisão dois ratos se atiram sobre os restos
duma côdea de pão. Soltam guinchos finos. Seus olhinhos miu-
dos brilham baçamente na escuridão.
Joana sente um frio de morte. Seu pobre corpo maltratado
está estendido sobre as tábuas duras da cama. A cabeça lhe dói e
lateja, como se fosse estourar.
Sede. Lábios ressequidos. Sede apesar do frio. Sede apesar
da umidade. Um tremor lhe sacode os membros.
Joana se ergue devagarinho. A bilha dágua está a poucos
passos da cama. -Joga as pernas para fora. Caindo sobre as lajes
do chão, as correntes produzem um tinido forte. A Donzela
estremece. Pára, toda assustada, contendo a respiração. Silêncio,
e bem no fundo do silêncio, o ressonar ritmado dos guardas.
Joana se ergue com cautela. É preciso não acordar os demônios.
Porque enquanto eles dormem ao menos reina uma relativa
paz no calabouço. Não lhe dizem aquelas coisas horríveis, não
ficam a olhar para ela com aqueles olhos frios e viscosos de cobra.
Joana se ajoelha, inclina o busto, apoia no chão a mão esquerda
espalmada e com a direita tateia a escuridão, procurando a bilha.
E se arrasta assim de joelhos, às cegas. Na ponta dos dedos da
mão direita sente o contato dum corpo duro, estende ambas as
mãos sofregamente, com um ímpeto tal que elas deitam a bilha
por terra, de borco. A água se alastra sobre as lajes. Joana vai
fazer mais um movimento.. . Mas as correntes a prendem à pa-
rede. Ela estaca. E, num acesso de choro — compreendendo tudo
— atira-se ao chão de bruços, encostando o rosto, que arde, nas
lajes úmidas. E com a boca estendida, rente às pedras espera que
chegue até ela um fio dágua, uma gota que seja — para lhe molhar
os lábios gretados.
Os guardas ressonam. Os ratos guincham. O tempo se arrasta.
Joana pensa no Mosa. Água, água, água. O rio correndo claro
por entre os seixos e juncos e salgueiros. Água fresca. Margens
verdes. Raparigas cantando. Os telhados vermelhos de Maxey,
lá do outro lado. E os seus grandes moinhos com as pás enormes
rodopiando ao vento.
Joana chora. E de repente julga sentir contra o rosto a carícia
A VIDA DE JOANA D'ARC 253

da água. Estende os lábios. E sente um gosto amargo. São as


suas lágrimas que lhe escorrem até a boca.
Inútil qualquer esforço, vigora tudo acabou.
O rei está coroado. E suas santas lhe disseram um dia que
dentro de poucos anos a França expulsará de seu território o úl-
timo inimigo. Que mais resta fazer?
E baixinho, pela primeira vez nestes últimos dois anos, Joana
em oração pede a Deus um favor para a sua pessoa.
— Meu Deus, eu quero a morte! — murmura.
Seus olhos se abrem escrutando a escuridão. E fica assim
longo, longo tempo, como se esperasse ver surgir do fundo da
treva o Anjo de asas negras que a deve levar.
Joana espera. E a seu redor agora se amontoam os ratos. E
ela sente nos cabelos, no rosto, nas mãos o contato úmido e repe-
lente dos bichos. Um calafrio lhe percorre o corpo.
Mas de repente, no meio da treva, começa a brotar uma poeira
luminosa que aos poucos se vai adensando até se transformar em
luz — luz cegante, mais forte que a do sol. Os olhos de Joana se
agrandam. E ela esquece o calabouço, a presença dos ratos e dos
guardas, a dor de seu corpo, a sede e a dor de sua alma, a umi-
dade e o f r i o . . . Um perfume suave lhe chega às narinas. — É
como se de repente rebentasse uma primavera dentro do cala-
bouço. Joana olha, deslumbrada. E no meio da luz, S. Catarina
' e S. Margarida sorriem para ela. E lhe dizem com voz doce que
é preciso sofrer com coragem. Cristo sofreu. Deus não esquece
nunca os que sofrem por amor dele.
Pairando no meio da luz as duas santas sorriem sempre. E a
um gesto de suas claras mãos os olhos de Joana se cerram paia
o sono.

Na sua grande cama de pau lavrado o reizinho dorme e tem


o sonho mais feliz de sua vida.
Sonha que não é rei e que Joana D'Arc surge num cavalo
branco, toda rebrilhante e em sua armadura de luz, passa pelo
quarto, e o arrebata, levando-o para uma cavalgada maravilhosa.. .
LVIII

INTERLÚDIO

E N T R A O ano de 1431.
Nas cidades borgonhesas, principalmente em Orléans, Tours,
Blois e Compiègne o povo não esquece a Donzela. Fazem-se gran-
des reuniões nas praças públicas em favor de Joana D'Arc. E
mandam-se mensageiros ao rei, pedindo-lhe que faça alguma
coisa em favor da moça que lhe pôs a coroa na cabeça.
Carlos VII permanece no seu eterno feriado, de castelo em cas-
telo, muito preocupado com os vinhos e com as caçadas, E o
caso da menina Joana a quem ele deve o reino lhe parece uma
coisa tão remota como as proezas do Rei Artur ou como os pós
de Merlin.
Os cortesãos tudo fazem para lhe apagar a mais leve sombra
de remorso. Enchem-lhe os ouvidos... S. Majestade não se deve
preocupar... Que queimem e esquartejem a Donzela! Que im-
porta a um Valois de sangue azul o que possa acontecer a uma
rapariga rude da Lorena?
Carlos VII procura esquecer... E bebe, e passeia, e vai caçar
javalis, e se refresca à sombra protetora do gordo La Trémouille.
Mas de noite, na quietude sombria de seu quarto, quando a
rainha já dorme e a lenha crepita na lareira, o rei pensa. As
palavras proféticas de Joana lhe soam aos ouvidos. Sim, ela veio
de Deus. Porque ela sabia, era senhora dum segredo que só Deus
podia conhecer.. .
E com os mínimos detalhes acodem à memória de Carlos de
Valois todas as cenas daquela noite em que Joana D'Arc, vestida
como um pajem, entrou resoluta no grande salão do Castelo de
Chinon. . . E foi direito a ele e o reconheceu, disfarçado como
estava, no meio de outros cortesãos... E o levou para um canto,
dizendo-lhe ao ouvido o espantoso segredo...
O rei se inquieta. O rei perde o sono. E conjetura. Faz planos.
Quando o dia raiar, mandará emissários a Bedford. . . Dará ordens
A VIDA DE JOANA D'ARC 255

para levantar altos impostos com o fim de resgatar a Donzela.. .


Organizará um grande exército para arrebatá-la à força das mãos
dos ingleses...
Mas quando o dia clareia, todos os fantasmas se somem. O rei
retoma a sua vida. Festas e cavalgadas. Banquetes e intrigas. Via-
gens e novos amores.
A muitas, muitas léguas de Carlos VII, Ruão está agitada.
O povo vibra. A excitação é grande. O Rei de Inglaterra está na
cidade. . . E no mesmo castelo, presa a ferros, Joana D'Arc, aguar-
da julgamento. . .
Cauchon, o bispo de Beauvais, movimenta os seus fantoches, os
doutores da Universidade de Paris. Prepara-se o grande processo.
Os olhinhos de Cauchon — olhos de raposa — brilham de ale-
gria. E a casa onde ele se hospeda vive cheia de homens de aspecto
grave, abades, assessores, funcionários. . .
Há longas reuniões em que se discute e se escreve. Mandam-se
emissários a Domrémy. É preciso averiguar os antecedentes da
Donzela, saber como ela vivia; o que fazia antes de vir para a
França.
— Precisamos testemunhas... — diz Cauchon, piscando o olho
e esfregando as mãos. — Precisamos fazer testemunhas... —
sibila ele com uma intenção secreta na voz.
Está contente. Tudo isto para ele é uma festa. Uma festa rara
que acontece uma vez na vida de cada homem.
E relembra a fuga de Beauvais.. .
Na prisão, Joana passa os dias orando e meditando.
Quando os guardas se aproximam dela com gestos e palavras
horrendos, a Donzela cerra os olhos e começa a rezar.
Conserva ainda o traje masculino. Dir-se-ia um pajem. Um
pobre pajem pálido de olhos tristes que vai murchando por falta
de luz e de ar puro.
E os guardas têm um prazer perverso em maltratá-la. Passam
horas e horas a inventar tormentos novos e fazem de pequenos
nadas formidáveis instrumentos de tortura.
Agora a menina Joana está sentada no chão, com as costas
apoiadas à parede. Na fraca luz que entra pela janelinha que há
bem alto ha parede que dá para a rua (é por ali que Joana vê
quando é dia e quando é noite. . . ) o seu rosto pálido se destaca
de maneira estranha. A roupa escura se dissolve contra o negrume
256 ERICO VERÍSSIMO

da parede e então parece que o rosto está suspenso no ar ou in-


crustado na pedra — rosto de santo, rosto de mártir.

A porta se abre. Joana descerra os olhos.


O Conde de Warwick, governador do castelo, entra em compa-
nhia de mais três homens.
Joana olha.
Os rostos lhe são vagamente conhecidos. Se ela fizesse um
esforço de memória, por mais leve que fosse, reconheceria João
de Luxembourg no homem que está logo atrás de Warwick e
Aimond de Macy no outro que se acha no limiar da prisão, dentro
da zona iluminada pela luz do corredor.
Mas Joana prefere ignorar a presença dos recém-chegados. É
melhor assim. A sua cela vive cheia de homens que vêm atormen-
tá-la sempre e sempre com perguntas e insinuações. Aparecem
advogados solertes disfarçados de padres, procurando arrancar-lhe
segredos por meio da confissão. Ela sabe, ela compreende, ela vê.
O Conde de Warwick faz perguntas a que ela responde de
maneira vaga. Os minutos passam. Os quatro homens se entreo-
lham. Há um deles que está de capa preta. Tem os olhos duros,
o nariz fino como uma lâmina de punhal. Fica calado enquanto
os outros falam.
A VIDA DE JOANA D'ARC 257

Aimond de Macy olha para Joana e recorda. . . Há alguns


meses atrás conversou com ela no Castelo de Beauvoir. Achou-a
tão bonita, tão estranha, que não resistiu. Quis acariciá-la.. . No
entanto agora o belo pajem está aqui, pálido, emagrecido, abando-
nado, f e i o . . .
João de Luxembourg dirige-se a Joana:
— Se eu te prometesse a liberdade — pergunta-lhe — tu eras
capaz de jurar que não pegarias mais em armas contra nós?
O rosto de Joana se transfigura. A guerreira ressurge por al-
guns minutos. Os olhos brilham. E ela responde firme:
— Em nome de Deus! Estás troçando comigo. Sei perfeita-
mente que não tens vontade nem poder de fazer o que dizes.
Mas João de Luxembourg insiste. Fala-lhe na liberdade, fala-
lhe no perigo da condenação. .. Se se visse solta, ela tornaria a
pegar em armas?
— Eu sei bem que esses ingleses me vão matar... — replica
e!a com energia. — Pensam que com a minha morte vão ganhar
o Reino de França...
Joana põe-se em pé. Agora não sente mais o peso das correntes.
Ergue os braços para o alto. Está esplêndida. Seu rosto se con-
trai. Sua voz enche a prisão. Transfigurada, ela grita:
— Mesmo que eles fossem cem mil vezes mais numerosos do
que são, não haviam de conquistar a França!
Os olhos duros do homem de capa preta chispam. E ele ergue
para Joana um braço rijo em cuja extremidade lampeja a lâmina
dum punhal. O Conde de Warwick segura o braço armado e apara
o golpe. Os outros dois homens o auxiliam.
Minutos depois Joana está a sós com seus pensamentos.
E as horas passam. E o seu sofrimento aumenta.
E chega a noite. No recorte da janelinha minúscula, por entre
as grades, brilha uma estrela.
À noite o pavor aumenta. Joana descobre agora que tem mais
um companheiro. É um enorme sapo esverdinhado, bojudo, de
olhos vítreos. Caminha aos pulos—pof-pof-pof!—e muitas ve-
zes chega a pousar nas mãos da Donzela.
E este animal frio e viscoso, este corpo que pulsa, que se move,
que vive, para Joana ainda é mais suportável do que as peludas
mãos dos carcereiros...
O frio é tão grande que às vezes a Donzela fica entanguida,
258 ERICO VERÍSSIMO

sem poder mexer com as pernas e os braços. Então o sapo lhe


percorre todo o corpo, aos saltos e vai pousar-lhe placidamente ao
rosto.
E freqüentemente, quando o azul do recorte da janelinha co-
meça a empalidecer, anunciando a manhã, Joana ainda não fechou
os olhos.
E o sol fulge sobre um novo dia.
E as portas da prisão se abrem. Visitas. Caras curiosas que ficam
olhando de longe, entre divertidas e temerosas, como se estives-
sem diante da jaula dum bicho raro e feroz.
Nos primeiros dias de janeiro Joana é entregue a Cauchon, para
ser por ele julgada.
Bedford freme de raiva. E diz:
— Se os padres a absolverem, nós havemos de prendê-la de novo
para queimá-la viva!
Cauchon escolhe o seu tribunal.
Dez membros da Universidade de Paris, teólogos de nenhuma
tolerância, borgonheses arraigados. Vinte e dois cónegos de Ruão
— todos dominados pelo governo inglês. E mais alguns monges
de diferentes ordens. Dominicanos. Frades.
Cauchon cuida de seu tribunal com o carinho de quem cultiva
um jardim. Dá-lhes instruções. Exercita-os.
Voltam os mensageiros que haviam sido enviados a Domrémy.
Um dia um dos assessores pede licença, levanta-se (é uma reu-
nião animada, preparam-se os doze pontos principais do pro-
cesso) e com voz débil, muito tímido, murmura:
— Este processo é irregular...
Cauchon salta. Cauchon fica vermelho. Cauchon esbraveja.
E lá vai o pobre assessor entre quatro guardas fazer companhia
aos ratos da prisão de Ruão.
Nas cidades de França, tanto nas que estão sob o domínio de
Carlos VII como nas que pertencem ao Duque de Borgonha e
ao Rei da Inglaterra — a expectativa é enorme.
Todas as atenções se voltam para Ruão.
Os heraldos chegam às cidades com notícias sensacionais: a
21 de fevereiro Joana D'Arc vai ser submetida ao primeiro inter-
rogatório.
LIX

O PRIMEIRO INTERROGATÓRIO

O TRIBUNAL está reunido.


Trazem Joana D'Arc. Os olhos dela ainda estão piscos. É como
um morcego que cai de repente no meio da luz.
Sente-se leve, agora que já não tem mais as argolas de ferro
com correntes no pescoço e nos tornozelos.
Os guardas que a escoltam fazem-na entrar na capela do castelo.
E quando ela dá os primeiros passos, os juízes se agitam. Pare-
cem abelhas assanhadas. Cochichos e exclamações abafadas. Os
doutores estão escandalizados... Uma mulher vestida de homem!
Sentado num lugar de destaque, imponente nas suas vestes vis-
tosas, Cauchon faz um sinal, pedindo silêncio. Os ruídos morrem.
Joana sente que sobre ela convergem mais de cem pares de
olhos.
São oito horas da manhã. O sol jorra pelas janelas. Como
são amarelas e cadavéricas algumas destas caras — principalmente
a dos monges, dentro dos capuzes escuros. Há frades de rostos
bochechudos e rosados. É uma sucessão de máscaras que têm
todas as expressões imagináveis. Mas há um momento em que
as fisionomias todas se uniformizam numa expressão de seve-
ridade.
Conselheiros, assessores, doutores, bacharéis em Teologia, ba-
charéis em Direito Canónico, licenciados em Direito Civil — todos
se preparam para interrogar a camponesa da Lorena.
Joana continua a esperar. Quis ouvir missa esta manhã. Não
permitiram. Pediu que mandassem buscar um representante dos
armagnacs para assistir ao interrogatório. Negaram. Pediu um
advogado. Nova negativa.
Os juízes olham agora para ela. E pensam: o diabo está es-
condido no corpo desta criaturinha que tem o ar dum simples
pajem. Dentro daquela cabecinha descoberta, de cabelos revoltos,
existem conhecimentos duma ciência infernal...
260 ERICO VERÍSSIMO

O Bispo Pedro Cauchon se ergue. O tribunal todo fica de pé.


Joana agora está serena. Suas Vozes na véspera lhe disseram
que não temesse nada, que Deus estaria com ela.

O Bispo de Beauvais fala:


— Joana D'Arc, juras com as mãos sobre os Santos Evangelhos
que responderás a verdade a tudo o que te for perguntado?
Joana responde:
— Não sei sobre que me querem interrogar. E podem me
perguntar coisas que não devo dizer.
Um zunzum enche a capela, com uma onda que se vai avolu-
mando. Cauchon exige silêncio.
E depois, voltando-se outra vez para a prisioneira:
A VIDA DE JOANA D'ARC 261

— Joana D'Arc, jurarás sobre os Santos Evangelhos responder


com verdade ao que te for perguntado?
Há uma ameaça escondida no tom de suas palavras. E a voz
de Joana, suave e calma, se faz ouvir agora:
— Se querem saber quem é meu pai e minha mãe, eu digo.
Se me perguntarem que era que eu fazia lá na minha aldeia, eu
respondo a verdade. Posso até jurar... — Pausa. Sua voz de
repente endurece. — Mas não farei nenhuma revelação das coisas
de Deus. Nunca fiz a nenhuma pessoa além do Rei Carlos. . .
E nunca farei a mais ninguém, mesmo que me cortem a cabeça.
O interrogatório principia.
— Como é o seu nome?
— Joana D'Arc.
— Onde nasceu?
— Em Domrémy, na Lorena.
— Foi batizada?
— Sim.
— O nome dos padrinhos?
Joana os enumera. .. E numa sucessão de claro e escuro se
prolonga o interrogatório: a voz seca e grossa do doutor que per-
gunta e a voz musical e fina da Donzela que responde.
— A sua idade?
— Parece-me que tenho dezenove anos...
Os minutos correm. Novas perguntas. Joana responde sem
hesitar.
— Sabe alguma oração? — indaga a voz dura.
E Joana:
— Sei porque minha mãe me ensinou. Sei o Pai-Nosso, a
Salve-Rainha, o Credo.. .
Os juízes começam a cochichar. E um deles murmura ao vizi-
nho:
— Mandem-na recitar o Pai-Nosso... Porque se ela é fei-
ticeira, só sabe dizer a oração de trás para diante...
E ordena-se a Joana que reze o Pai-Nosso.
A Donzela sacode a cabeça:
— Nunca. Só no confessionário — responde.
Tumulto. Cauchon pede ordem. O interrogatório prossegue.
Há um momento em que o bispo lhe diz:
— Se fugires da prisão serás declarada herética!
262 ERICO VERÍSSIMO

Joana queixa-se dos maus tratos, do desconforto.


— Estou presa por correntes, como se fosse um bicho feroz.
Cauchon troveja:
—A culpa é tua. Estás acorrentada porque ameaçaste fugir.
— É verdade — responde ela — eu quis fugir e quero ainda,
como é desejo de todo o prisioneiro.
Outro tumulto. Os juízes gesticulam e esbravejam, irritados.
No meio da tormenta, Joana sorri mansamente.
LX

COMO U M POBRE A L V O C R I V A D O D E F R E C H A S . . .

JOANA volta para a prisão. À noite vê de novo as suas santas


e ouve as suas Vozes. Dorme tranqüila e sonha que está em
Domrémy ao pé do bosque de carvalhos, enquanto os porcos
comem bolotas, fazendo ao esmagá-las com os dentes, um ruído
üdormecedor. Gru-gru-gru-gru-gru. . . Joana acorda para des-
cobrir que fora do sonho o ruído continua. Ergue-se na cama.
Pof-pof-poff É o sapo verde que vem saltitando.
Na manhã seguinte a Donzela é levada novamente à capela do
castelo.
Os juízes. A atmosfera de ódio.
O interrogatório prossegue.
Repete-se, primeiro, a cerimônia do juramento sobre o Evan-
gelho.
— Com que idade deixaste a casa de teu pai? —perguntam-lhe.
— Não sei.. .
Os juízes se assanham como vespas. Cauchon exige silêncio.
— Quais eram as tuas ocupações em Domrémy?
— Eu fiava e cosia e cuidava dos rebanhos de meu pai.
— Tu te confessaste alguma vez?
— Muitas.
— A quem?
— Ao cura da aldeia ou a outro padre, na falta do cura.
De repente, sem transição, Beaupère solta a pergunta como um
dardo:
— E as Vozes? Dizes que ouviste vozes do céu?
O rosto de Joana continua liso e tranqüilo.
E ela conta da voz luminosa, no jardim de sua casa. E das
visões que vieram depois... E das visitas que durante muito
tempo S. Margarida e S. Catarina lhe fizeram.
Os doutores engendram perguntas ardilosas, interrompendo a
narrativa de Joana. Mas ela responde com clareza e rapidez, de-
sarmando-os.
264 ERICO VERÍSSIMO

Conta de sua viagem a Vaucouleurs e do mais que se seguiu.


Mostram-lhe a carta que ela dirigiu aos ingleses. Joana reco-
nhece os termos que ditou.
Perguntam-lhe sobre sua vinda a Chinon. Joana narra...
E novas perguntas a interrompem. Como foi que ela reconhe-
ceu o rei no meio dos cortesãos? Alguma indicação das Vozes?
Ou obra de feitiçaria?
— Ouves repetidamente as tuas Vozes? — indaga Beaupère, de
súbito.
— Não há dia em que eu não as ouça. E elas me fazem muita
falta. São a minha única alegria, o meu único conforto. Preciso
mais delas do que do pão e da água que os carcereiros do Conde
de Warwick me levam todos os dias.

>

Outras perguntas. Joana mantém-se impávida no meio da sala.


Parece um alvo, um pobre alvo negro em que cinqüenta arquei-
ros desapiedados cravam frechas.
A VIDA DE JOANA D'ARC 265

Joana é levada para a prisão.


Uma manhã é acordada por suas Vozes. É a véspera dum novo
interrogatório. Joana ergue-se e senta-se na cama. Junta as mãos
para render graças às duas damas do céu.
— Minhas santas queridas, que é que eu vou dizer aos juízes,
que é?
E as Vozes:
— Responde com coragem e Deus te ajudará.
Os guardas acordam. Soltam urros e abrem bocarras em enor-
mes bocejos. Joana sabe que o suplício vai começar.
— Então, como dormiu a Santinha? — pergunta um deles.
A Donzela fica em silêncio.
— Os anjos apareceram?—pergunta o outro.
Nenhuma resposta.
O primeiro deles irritado, pega dum prato de folha e atira-o
no rosto de Joana. Ela recebe o golpe numa impassibilidade abso-
luta. Seu rosto continua liso, sem a menor contração de músculos.
Olhos tristes e mansos. Lábios apertados e já sem sangue.
— Perdeu a língua? — insiste um dos guardas.
Solta um palavrão. E se vão os dois para fora da prisão.
Joana se ajoelha.
— Muito doce Deus — murmura ela — em honra de vossa
Santa Paixão, eu vos peço, se me amais, que me reveleis o que
devo responder a esses homens que me interrogam.
E de novo ouve as Vozes do céu.
Joana é levada ao terceiro interrogatório. Logo ao chegar ve-
rifica que há mais gente entre os juízes.
Outra vez Pedro Cauchon pede que Joana jure sobre os Evan-
gelhos dizer toda a verdade.
— Toda? — pergunta Joana. — Toda, não.
E o bispo não consegue arrancar-lhe um juramento completo.
João Beaupère se levanta. O interrogatório começa. A voz clara
e a voz escura. A pergunta dura que fere. A resposta doce que
desarma.
As perguntas giram em torno dos mesmos assuntos. As Vozes.
Que é que aparece junto com as Vozes? Que é que estas revelam
à Donzela? Que lhe disseram com relação ao Rei Carlos?
E de repente Beaupère regurgita uma pergunta:
— Tens certeza de que estás na graça de Deus?
266 ERICO VERÍSSIMO

E Joana, sem se perturbar, responde tranqüila:


— Se não estou, que Deus me admita nela. Se estou, que Deus
assim me conserve.
Murmúrios. Cabeças que se agitam.
Faz-se silêncio. O interrogatório prossegue.
— Que fazia a menina Joana em Domrémy? — A voz de Beau-
père agora é macia ao perguntar: — A s pessoas não te olhavam
como sendo a jovem que o profeta disse ia sair do "Bois Chénu"?
Por um instante uma saudade leve, leve dança nos olhos de
Joana. E ela enxerga o bosque de carvalhos azulando no alto da
colina.
Mas a imagem familiar desaparece, dando lugar à figura de
João Beaupère.
— Quando vim procurar o rei — responde Joana — todos me
perguntavam se havia na minha terra um bosque chamado Chénu,
porque as profecias diziam que dos arredores desse bosque havia
de sair uma rapariga para fazer maravilhas. Eu nunca acreditei
nessas histórias...
Beaupère fala em Merlin. Joana lembra-se imediatamente das
histórias que o bom tio Henrique lhe contava nos serões de Ser-
maize. E bruscamente, como numa cilada, Beaupère indaga:
— Joana, queres vestidos de mulher?
— Dá-me um. Eu o tomo e vou me embora. Do contrário,
não. Eu me contentarei com as roupas que tenho, porque elas
agradam a Deus.
E a sessão se prolonga. Os que assistem a ela, ficam pasmados.
São sessenta e dois os membros do tribunal. Homens graves. Ho-
mens carrancudos. Homens que vivem curvados sobre alfarrábios.
Homens empanturrados de sabedoria.
Na frente deles, pequenina, tranqüila, os olhos muito azuis e
cândidos, uma menina vestida de pajem...
LXI

A SAVELHA

O P A J E M entra na prisão, põe o prato em cima do mocho, perto


da cama de Joana, e diz:
— Da parte de Sua Reverendíssima, o Bispo de Beauvais.
A Donzela faz um sinal vago com a cabeça. O homem se
retira. A porta se fecha.
Joana levanta o pano que cobre o prato. Olha. A princípio
não enxerga bem. .. Está sombria a prisão. Mas aos poucos o
objeto se define. Um peixe? Joana pega o prato, leva-o até mais
perro dos olhos. Sim, é um peixe. Uma savelha. A troco de que
lhe teria Pedro Cauchon mandado o presente? ,
Joana olha longamente para o peixe. Lembra-se das trutas
que via passar no fundo do Mosa, quando era criança. Eram
verdes e ágeis. Suas guelras palpitavam. Pedrinho e Joãozinho
gostavam de pescar. Ela nunca aprovava a pesca. Malvadez...
Agora aqui está uma savelha morta e frita. Um cheiro agradá-
vel sobe até as narinas de Joana.
Fome. Hoje é o primeiro domingo da Quaresma. Inicia-se o
jejum.
Joana começa a comer o peixe.
Sim, ela tem necessidade de alimentar-se. As sessões vão con-
tinuar. É preciso ter força para ir até o fim sem esmorecer. Se
ela ceder à vontade dos juízes, com que cara há de se apresentar
diante de Deus quando, depois da morte, os anjos a levarem até
o Céu?
Joana mastiga. O peixe lhe sabe mal. É amargo. Mal tem-
perado ou são as lágrimas dela que tombam no prato? Sim, por-
que ela chora. Chora pensando que este peixe decerto é amigo
daqueles que ela conheceu no seu Mosa distante...
268 ERICO VERÍSSIMO

Agora a Donzela está deitada. Fora, no corredor, os guardas


jogam dados e bebem.
Joana adormece. Sonha que está em Domrémy, às margens
do seu rio. Os juncos são tentáculos dum bicho horrendo que
lhe prendem os pés e as mãos. Ela quer fugir mas não pode.
E todos os peixes do rio e mais os peixes do mar se reúnem
diante dela. E um peixe enorme, vestido de púrpura, se ergue e
lhe diz:
— Joana, por que comeste nosso irmão?
Os outros peixes gesticulam e gritam. E Joana quer fugir e
não consegue mover um dedo. O peixe grande começa a lhe
fazer perguntas. E já não é mais peixe. Tem a figura de Cau-
chon. E os assessores, por baixo dos capuzes, têm caras de peixe.
De repente já não são mais assessores nem peixes, mas sim ar-
queiros e alabardeiros. Cai sobre ela uma chuva de pedras. Enor-
me bloco lhe golpeia o estômago. Uma dor horrível. Uma dor
que continua, forte, forte, cada vez mais aguda.. . »
Joana acorda. Doi-lhe ainda o estômago. Ela se soergue na
cama. Diante de seus olhos dançam grandes manchas dum verde
amarelado, pequenas, grandes, de formas variadas. A cabeça tam-
bém lhe dói. Náuseas. Tremor no corpo. Lábios ressequidos.
Febre.
Será que o pesadelo continua? Ou isto é a realidade?
Joana leva a mão ao estômago. Olha em torno. Sempre as
manchas verdes. Quer erguer-se, mas não tem força. Deixa cair
a cabeça para trás e começa a gemer baixinho.
Fica assim por muito tempo, num torpor. E quando abre os
olhos, vê duas caras aflitas inclinadas sobre ela.
São os doutores que Warwick mandou para examiná-la, reco-
mendando-lhes:
— Tratem de curá-la. O rei não quer por nada deste mundo
que ela morra de morte natural.
Os doutores coçam o queixo. Meditam. Conversam. Receitam.
Joana sofre. Está pálida como um cadáver.
Mestre João D'Estivet, que acompanha os médicos, aproxima
os lábios do ouvido da Donzela e lhe pergunta:
— Que é que tens, menina?
É necessário repetir a pergunta mais uma vez para que Joana
compreenda. Com voz débil ela responde:
A VIDA DE JOANA D'ARC 269

— Comi um peixe que Mons. Pedro Cauchon me mandou. . .


D'Estivet se ergue num pulo, vermelho. Solta um palavrão.

— Mentira! Tu é que andaste comendo arenques e outras


coisas indigestas!
Joana não reage.
Os médicos lhe apalpam o corpo.
— Não acho bem os r i n s . . . — diz um.
E o outro:
— Ela está com febre.
Coçam a cabeça. Entreolham-se.
— Sangria — sugere o primeiro.
270 ERICO VERÍSSIMO

— Sangria — concorda o outro.


Ao sabor da prescrição, o senhor do castelo arregala os olhos:
— Sangria? Mas nesse estado de fraqueza? Olhem que vocês
me matam a prisioneira.
Mas a sangria se faz.
Joana passa tranqüila a noite de domingo.
Terça-feira processa-se o quarto interrogatório.
A prisioneira está mais abatida. Magríssima, a roupa de pa-
jem lhe dança no corpo.
Outra vez perguntas sobre as Vozes. Depois, o caso do Rei
Carlos VII. Como foi que o Delfim ficou tendo a certeza de que
a Donzela lhe fora enviada pelo Céu? Que sinal lhe levara ela?
Joana responde com evasivas. Cauchon se irrita. As vespas
se assanham. Crescem sobre a acusada, agressivas.
Beaupère lhe fala nas espadas. Joana lhe conta simplesmente
s verdade.
— Foi o diabo que te indicou a espada que estava enterrada
junto da imagem de S. Catarina em Fierbois?
— Foram as Vozes.
Murmúrios. Os assessores cochicham que se tratava duma es-
pada encantada pelo demônio.
E depois de quebrada a espada de Fierbois, onde achara Joana
a outra?
— Arrebatei-a a um borgonhês — replica a donzela. — Eu a
usava ainda em Compiègne. Era uma bela espada de guerra.
— Quantos mataste com ela?
— Eu nunca matei ninguém.
O interrogatório dura quatro horas.
Exausta, Joana volta para a prisão e recebe uma visita de suas
Vozes, que lhe aconselham paciência e coragem. Joana está tão
fraca que só lhes fala com os olhos e com o pensamento.
Entra o mês de março.
Pelo vento que se insinua, suave, pela janela da prisão, Joana
recebe os heraldos da primavera.
Sorri, pensando no campo. Lá fora as árvores devem estar flo-
ridas. As raparigas cantam. O sol doura os campos. A vida é
alegre. Compiègne, agora livre, trabalha pela glória de seu rei. E
lá longe, em Orléans, que estarão fazendo papai Jacques e mamãe
Isabel?
A VIDA DE JOANA D'ARC 271

A quinta sessão se abre.


Beaupère esforça-se por apanhar Joana em contradição.
— Que dizes de nosso senhor o Papa? E qual achas que é o
verdadeiro Papa?
Joana imediatamente retruca:
— Mas será que existem dois papas?
Beaupère tenta o ataque por outro lado.
— Joana, disseram-nos os guardas da prisão que tu lhes fi-
zeste estranhas profecias.. .
A Donzela sacode a cabeça afirmativamente. E repete o que
disse aos guardas:
— Antes que se passem sete anos os ingleses sofrerão uma
derrota muito maior que a de Orléans. Perderão toda a França,
porque Deus mandará uma grande vitória aos franceses.
— Como sabes disso?
— Sei por uma revelação que me foi feita. T ã o certo como
estar o senhor diante de mim agora.
Novas perguntas sobre as Vozes. Que língua falam? São doces
ou ásperas?
O Arcanjo Gabriel lhe apareceu alguma vez? E como está
vestido S. Miguel? Tem uma balança na mão?
— N ã o me lembro — responde ela.
Findo o interrogatório, Joana torna à masmorra.
Um dia, ao passar pela capela, a caminho da sala das sessões,
Joana volta para J o ã o Massieu que a acompanha, e lhe pede:
— Deixe-me ir orar ao Senhor.
Massieu concede. Joana entra na capela e ajoelha-se na frente
do santuário.
E aqui está ela banhada dê alegria. Porque o que mais a mor-
tifica na prisão é o estar privada dos sacramentos.
Sexta sessão.
Volta-se a discutir a questão do hábito de homem. A discussão
é animada. Os juízes vêem nisso o maior pecado de Joana.
De súbito, vendo diante de seus olhos esta menina magra e
enfraquecida, desamparada e tristonha, Beaupère lembra-se es-
pantado de que ela já pôs em fuga fortes soldados ingleses e bor-
gonheses.
— Qual é o teu segredo, menina?—pergunta. — Como é que
conseguias arrastar os teus homens aos combates?
272 ERICO VERÍSSIMO

Joana responde:
— Eu dizia simplesmente Avancem afoitamente contra os
ingleses! E ia na frente.

Algum tempo depois fala-se nas pessoas que adoraram Joana


como a uma santa.
— Eram pobres gentes que vinham a mim de livre vontade,
porque eu não as desagradava — explica ela.
Uma hora depois o Bispo Pedro Cauchon declara solenemente
que os interrogatórios estão encerrados.
A VIDA DE JOANA D'ARC 273

Março avança. Joana definha.


Recebe na prisão a visita de cinco homens sombrios vestidos
de escuro. São membros do tribunal. O interrogatório prossegue
secretamente. Perguntas. Faces horrendas, graves, contorcidas de
ódio contido. Fisionomias de demônios, gárgulas assustadoras
crescendo fantásticas diante dos olhos de Joana.
Dois dias depois, nova visita. Num dos homens que a pro-
curam, Joana reconhece o Bispo de Beauvais.
Um deles faz as perguntas. Outro escreve as respostas.
Cauchon espera. Seu rosto se esconde na sombra.
Pela janelinha da prisão, um pedaço de céu azul está dizendo
que lá fora o dia é bonito.
— Mandamos gente a Domrémy. Contam-nos que teu pai,
Joana, um dia teve um sonho em que te viu vestida de homem,
montada a cavalo e em companhia de homens d'armas.. .
Joana lembra-se do sonho de Jacques D'Arc. Vem-lhe à mente
uma idéia que ela transforma nestas palavras:
— Por que não interrogaram meus pais?
Quando os visitantes se retiram, Joana fica com as suas refle-
xões amargas e suas feridas. Já não tem mais força nem para
chorar.
No dia seguinte suporta mais três interrogatórios na prisão.
À noite não consegue dormir, apesar das canseiras do dia.
Os guardas jogam dados e bebem até tarde. E a ameaçam com
olhares e gestos. E são brutais e cínicos.
No dia seguinte Cauchon desce à prisão e vem exortar Joana
a que se submeta à Igreja militante.
— Mas tu não representas a Igreja! — diz-lhe Joana, sentindo
por um momento renascer-lhe a energia.
Prosseguem os interrogatórios na prisão. A porta geme e se
abre para dar entrada a homens soturnos, assustadores e duros.
E Joana é crivada de perguntas desencontradas, que a envolvem
como redes emaranhadas.
Certo dia, no meio dum silêncio que se segue a uma chuva -de
palavras cruéis, alguém lhe faz esta pergunta decisiva:
— Queres submeter todos os teus atos e palavras, bons ou
maus, à determinação de nossa Santa Madre Igreja?
Joana reflete. E responde, com o fio de voz que lhe resta:
— Quanto à Igreja, eu a amo e a quisera sustentar com todas
274 ERICO VERÍSSIMO

as minhas forças para a nossa fé cristã; e não é a mim que deveis


impedir de ir à Igreja nem de ouvir missa. Quanto ao que disse
e fiz foi por ordem do Rei do Céu que me enviou a Carlos, filho
de Carlos, R e i de França. E haveis de ver que os franceses vão
ganhar brevemente uma grande vitória, mandada por Deus. Uma
vitória que há de sacudir todo o R e i n o de França. D i g o isto para
que, quando acontecer, todos tenham memória do que eu disse.
Os homens se entreolham. E há uma vaga expressão de pavor
em seus rostos endurecidos.
LXII

O PROCESSO

J O A N A é submetida ao último interrogatório.


As perguntas são como uma dança doida ao redor dos mesmos
assuntos. As Vozes. O sinal ao rei. As roupas de homem. A
submissão à Igreja. O salto de Beaurevoir, em desobediência às
mesmas Vozes.
Joana responde a tudo com coragem.
Perguntam-lhe:
— Achas que se fosses levada diante do Papa responderias
com verdade a todas as questões de fé que se te fizessem?
Os olhos de Joana chispam. Seu rosto se anima, ganha vida.
— Mas se eu já pedi que me levassem até o santo Papa! Le-
vem-me! Levem-me que eu responderei a tudo, tudo!
Os doutores se calam. Sabem que, se for até o Sumo Pontífice,
Joana D'Arc estará salva.
Aproxima-se o fim de março.
Começa o processo ordinário. O tribunal se reúne no grande
salão do castelo.
Joana é trazida em braços, porque mal se pode suster em pé.
Antes de mandar ler a ata de acusação, Cauchon ergue-se, pi-
garreia, e tomando ares de cordeiro manso declara a Joana, com
voz doce, que ela está diante de homens de ciência consumada
— homens que querem proceder com toda a piedade e mansue-
tude. Não pensam em vingança nem em castigo corporal. Dese-
jam apenas a salvação da Donzela de Orléans. A salvação do
corpo e da alma. E como a menina Joana não é douta, o Conselho
em sua grande magnanimidade lhe oferece um ou mais assis-
tentes . . .
Joana escuta em silêncio. Quando Cauchon se cala ela sacode
a cabeça, numa negação resoluta.
276 ERICO VERÍSSIMO

— Não aceito — diz. — Primeiro agradeço ao senhor e a toda


a companhia pelo interesse que tornam por mim. Quanto ao que
me oferecem, também agradeço, mas não pretendo me afastar
do conselho de Nosso Senhor. Quanto ao juramento que quereis
que eu faça, estou pronta a jurar que hei de dizer toda a verdade
em tudo que disser respeito ao vosso processo.
Cauchon ordena que se leia a acusação. Thomas de Courcelles
ergue-se e começa a ler com voz monótona e regular o libelo.
Sobre cada artigo, Joana é interrogada e responde da mesma
forma como respondeu nos interrogatórios precedentes.
No último dia de março Cauchon desce à prisão.
Verifica com surpresa que Joana está mais animada.
Recebeu à noite uma consoladora visita de S. Catarina e S.
Margarida.
Cauchon fala, fala, fala. Joana escuta em silêncio.
Cauchon procura convencer. Joana mantém-se imperturbável.
O bispo retira-se vencido.
Entra abril.
Os doutores da Universidade de Paris resumem o vasto libelo
de setenta artigos em doze.
Alguns dias depois reúnem-se na capela do bispado e vinte e
um doutores discutem uma vez mais o processo. Parecem um
bando de cacatuas. Pairam e sacodem as cristas. Dão-se bicadas
e agitam as asas.
Joana na prisão espera. E quando se sente prestes a desfalecer,
a entregar-se ao desânimo, a grande luz brota dentro da cela, .'.3
santas aparecem e cai sobre o corpo e sobre a alma da prisioneira
uma paz e uma suavidade tão grandes que lhe dão coragem para
continuar a luta.
O Bispo de Beauvais e o vice-inquisidor descem uma tarde à
prisão. Com palavras doces (uma doçura de superfície, por
baixo da qual se esconde um ódio que referve) procuram con-
vencer Joana de que deve submeter-se.
— A Igreja não fecha seu seio a quem volta a ela — diz Cau-
chon, erguendo deis dedos para o céu.
— Eu lhes agradeço — responde Joana com mansidão. — Sei
que estou doente, em perigo de morte. — Seu rosto ensombrece.
— Que Deus faça o que quiser. Eu só peço é que permitam que
A VIDA DE JOANA D'ARC 277
eu me confesse e que façam que meu corpo seja enterrado em
terra santa.
— Se queres confissão é preciso que te submetas à Igreja.
Joana volta a cabeça. As lágrimas lhe nascem nos olhos pisa-
dos. E num soluço ela diz:
— Se meu corpo morre na prisão, espero que o mandeis en-
terrar em terra santa. Se não fizerdes isso, Nosso Senhor há de
fazer.
Cauchon vê a tristeza de Joana e acha oportuno atormentá-la
com mais perguntas. Joana responde com bravura. Foi ela real-
mente enviada por Deus? Viu e ouviu o Arcanjo Miguel e S.
Catarina e S. Margarida?
— Aconteça o que acontecer — declara Joana — não farei
nem direi outra coisa que não tenha dito e feito no processo.
Outro maio entra, com suas flores e suas traições.
Nova reunião dos juízes. Joana comparece.
— Se o processo se prolonga — cochicha alguém — a menina
se fina na prisão.
A Donzela definha.
O corpo morre mas os olhos brilham e o espírito está aceso.
O tribunal aconselha, exorta e por fim ameaça.
Se ela não se submeter à Igreja, sua alma correrá perigo e seu
corpo será dado como pasto ao fogo.
Na prisão, na tarde dum dia que se inicia com nova sessão,
Joana ajoelha-se e, vendo as suas santas, lhes pergunta:
— Minhas santas queridas, eu devo me submeter ao que eles
mandam?
E as Vozes lhe respondem:
— Se queres que Nosso Senhor te ajude, tem fé n'Ele.
Uma manhã os guardas arrancam Joana da prisão e levam-na
para a torre maior do castelo.
Joana estremece. Está na câmara das torturas. É um quarto
horrendo. Vestígios de sangue. Um bafio de morte. Os velhos
instrumentos de tortura esperam. Um homem de cara de demô-
nio explica a utilidade de cada instrumento; com uma minúcia
cariciosa, enumera as torturas. Nove doutores a seu redor es-
cutam. E olham para Joana, frios.
A Donzela está serena.
278 ERICO VERÍSSIMO

— Podem me estraçalhar os membros... — diz ela. — Podem


me arrancar a alma do corpo... Eu não hei de dizer mais do que
já disse. E mesmo que dissesse, havia de declarar depois que fora
obrigada pela d o r . . .
Cauchon fica decepcionado. Não tencionava seriamente tor-
turar Joana.. . Esperava submetê-la pelo medo.
Manda-a levar, de volta para a prisão.
— Alma dura!—murmura ele para Warwick. — Deve ter par-
te com o diabo!
Nos olhos dos carrascos passa uma nuvem fugidia de tristeza.
Seria tão gostoso, tão divertido quebrar aqueles ossos de moça,
espicaçar aquelas carnes novas... E como ecoariam deliciosa-
mente nesta sala de paredes de pedra os gritos estridentes da
menina!
Cauchon e os seus doutores discutem o processo. O bispo pas-
seia dum lado para outro. Está intranqüilo. Decepcionado. Ao
cabo de tanto falatório, de tanta escrevinhação, de tantos depoi-
mentos falsos, a acusação resultara fraca, tão fraca que a idéia de
levar a Donzela à fogueira cada vez se afasta mais, ameaçando
perder-se de todo numa impossibilidade. . .
Cauchon reflete... E seus pensamentos se voltam para Carlos
V I I , para o odioso V a l o i s . . .
E de repente tem uma idéia. Cauchon estaca como se uma mão
forte e invisível tivesse caído pesadamente sobre ele, imobili-
zando-o.. ,
E se conseguisse fazer que Joana assinasse uma abjuração?.. .
(Cauchon sorri à i d é i a . . . ) Uma abjuração em que, entre muitas
coisas, a Donzela declarasse que Carlos de Valois não era o
verdadeiro herdeiro da coroa de França, mas sim um intrujão, '
um bastardo, um impostor?
O tribunal, outra vez reunido, resolve fazer uma nova admo-
nição piedosa à Donzela.
O Bispo de Beauvais, o vice-inquisidor e o promotor descem à
prisão acompanhados de outros juízes.
Joana mal se pode erguer quando os vê entrar.
A doença tomou conta de seu corpo. As forças a abandonam.
Um frio de morte lhe entorpece os membros. A vontade afrouxa.
Pedro Maurício, doutor em Teologia, avança dois passos na di-
reção da prisioneira. Pigarreia. E com voz solene, como se se
A VIDA JOANA D'ARC 279

estivesse dirigindo a vários milhares de pessoas, numa praça


pública, lê os doze artigos da acusação.
Joana o escuta de olhos cerrados. Não compreende tudo. Toma
vagamente conhecimento da acusação. É a dança de sempre.
Mestre Maurício l ê . . .
Os doutores sapientíssimos da Universidade de Paris acham
que Joana D'Arc não viu, como afirma, S. Catarina e S. Margarida,
nem ouviu as Vozes celestes... Declaram mais que a Donzela
não é uma enviada do Céu, mas sim impostora, mentirosa, pre-
sunçosa e sedutora. .. E proclamam que o fato de ela vestir
hábito de homem e usar cabelos curtos é uma blasfêmia, uma
transgressão às leis divinas, às Santas Escrituras e às regras canó-
nicas, uma prova de idolatria e um desprezo aos sacramentos.. .
E que escrevendo em suas cartas os nomes Jesus-Maria, Joana
deu prova de perfídia, crueldade, sede de sangue humano, amor
à tirania.. .
Pedro Maurício 'cala-se um instante para tomar fôlego. O
Bispo Cauchon tosse seco. Num canto da prisão o sapo verde
dá um pulo e faz pof! no chão. Pedro Maurício continua a
leitura...
Artigos 8, 9, 1 0 . . .
O salto da torre de Beaurevoir foi uma prova de covardia, foi
um suicídio, um ato de desobediência...
Joana suspira de mansinho. Quisera esquecer tudo. Quisera ser
livre de novo, livre desta prisão úmida, da presença incômoda
destes homens horrendos, da companhia destes guardas rudes e
pérfidos.. . Quisera esquecer esta voz monótona, dura, fria, que
lhe transmite todas as ofensas que os doutores da Universidade
escreveram.. .
E enquanto Pedro Maurício fala, Joana se perde em pensa-
mentos. Que importa que os homens possam dizer que ela não
viu realmente a Voz luminosa, que não ouviu e viu as suas san-
tas queridas, chegando a beijar-lhes até a fímbria dos vestidos?
Os doutores podem dizer o que quiserem... Que significam as
palavras? Tudo o que aconteceu foi tão bonito, tão suave...
O que ela sente agora é gratidão, gratidão para com Deus que
a escolheu para esta missão gloriosa.. .
Pedro Maurício se cala.
2 8O ERICO VERÍSSIMO

Dirige-se agora com voz mais suave a Joana. Exorta-a. Fala-lhe


com simplicidade, macio. Pede-lhe que se submeta à Igreja.
Por que é que a menina Joana não resolve ser boazinha e obe-
diente? Por que, se isto só lhe pode trazer benefício, se isso
pode livrá-la do fogo que lhe há de devorar o corpo e a alma?
Os olhos mal e mal entreabertos voltados para a janelinha
gradeada da prisão, Joana esquece os juízes, as palavras de Pedro
Maurício e olha para a nesguinha azul deste céu de primavera. . .
LXIII

A ABJURAÇÃO

JOANA desperta. Mas o seu corpo está tão dolorido, a sua ca-
beça tão povoada de horrores, que ela tem a impressão de que
os pesadelos do sono da noite continuam na vigília da manhã.
João Beaupère entra na prisão. Joana reconhece nele o homem
que a interrogou muitas vezes nas sessões, perante os juízes.
Beaupère fala com brandura:
— Se és boa cristã, deves dizer que submetes todos os teus
feitos e ditos à nossa Santa Madre Igreja e especialmente aos
juízes eclesiásticos.
Joana sacode a cabeça mecanicamente, numa afirmativa incons-
ciente.
Entram os guardas para a levar. Joana se deixa ir ao abandono.
Um homem que está à porta da prisão, ao ver a Donzela pas-
sar, se aproxima dela e diz:
— Joana, acredita no que te digo. A salvação depende de ti.
Veste as roupas do teu sexo e faze o que se resolver. Do con-
trário estarás em perigo de morte. Se fazes o que te digo, só te
acontecerão boas coisas. Serás posta nas mãos da Igreja.
Joana mal se pode manter em pé. Os guardas a carregam nos
braços até a carreta que os espera à porta do castelo.
Os habitantes de Ruão se apinham nas ruas para ver passar
a Donzela na carreta dos condenados, cercada por uma escolta.
Gritos. Vaias.
Joana, deitada no fundo do veículo, só tem consciência dos
sacolejos das rodas sobre o calçamento desigual. Não consegue
coordenar idéias. Os pensamentos se confundem. Ela pensa em
morrer. Mas entreabre os olhos, vê o céu claro e se reanima um
pouco.
A carreta pára. Os guardas erguem a Donzela.
Joana olha.
282 ERICO VERÍSSIMO

É no cemitério de Saint-Ouen. Ao lado dele, uma catedral,


desenhando-se muito serena contra o azul do horizonte.
A princípio Joana tem a impressão de que vê um mar de ondas
minúsculas e agitadas.. . A multidão. E como um mar enfurecido,
ela ulula.
Levam Joana para um cadafalso.
O vento agita os cabelos da Donzela. Um vento perfumado de
primavera. Joana respira fundo. Tem por um segundo a impres-
são de que está livre. Pássaros, nuvens, o sol, o espaço aberto.. .
Mas o peso das correntes se faz sentir nos pulsos, nos tornozelos,
no pescoço...
Na frente do cadafalso em que se acha a prisioneira, ergue-se
outro maior em que estão sentados alguns homens sombrios.
São os juízes. Sentem-se mal por causa do sol, do céu azul,
do vento perfumado e da primavera. São como flores negras que
só vicejam na escuridão viscosa das masmorras. Por trás da fi-
leira de máscaras severas, a parede da igreja. Em torno dos juízes,
um bando de doutores, bacharéis e soldados.
Levanta-se um homem lívido. A multidão faz silêncio.
Começa o sermão. É uma voz que parece que sai de dentro
duma sepultura de pedra. E a voz de cadávei acusa Joana de ter
pecado contra a Majestade real, contra Deus e contra a fé católica.
Além de pecadora, mostrou-se orgulhosa...
O homem lívido ergue a mão para o alto como se quisesse
mostrar Deus. Joana alça os olhos para o céu e esquece o ser-
mão. Vagamente, muito apagadas, chegam a seus ouvidos estas
palavras: feiticeira, herege. . . cismática. . .
O peso das correntes chama Joana à terra. E ela geme baixinho
de dor. Os pulsos e os tornozelos lhe sangram. E agora até a
carícia do vento faz doer as feridas.
O homem lívido está gesticulando como um demônio:
— Ah! Tu foste ludibriada, nobre casa de França, tu, que eras
a casa cristianíssima! Carlos que se diz rei e teu governador,
aderiu, como herege e cismático, às palavras e aos atos duma mu-
lher malfeitora, difamada e de toda a desonra cheia. — O orador
faz uma pausa, satisfeito consigo mesmo. E prossegue cinco se-
gundos depois:—E não somente ele, mas todo o clero que lhe
presta obediência e senhoria e pelo qual essa mulher, segundo
suas palavras, foi examinada.. .
A VIDA DE JOANA D'ARC 283

Joana sofre. Dói-lhe ouvir dizer mal de seu rei. Sabe que Car-
los VII nada fez em seu favor. Sabe que os armagnacs a abando-
naram e esqueceram. Mas no seu coração não há lugar para
ódios.

— É a ti, Joana que eu falo! —grita o orador, furioso porque


a prisioneira parece ausente. — E eu te digo que teu rei é he-
rege e cismático.
Joana levanta os olhos mansos para o acusador. E neste mesmo
momento ouve as Vozes que lhe ordenam:
— Responde corajosamente a case homem!
E diz com doçura:
— Por minha fé, Messire, guardada a reverência, eu ouso di-
zer-lhe e jurar, com o risco de minha vida, que o Rei Carlos é o
mais nobre de todos os cristãos e melhor do que ninguém ele
ama a Fé e a Igreja, e não é nada do que dizeis.
O homem lívido ergue o punho fechado:
284 ERICO VERÍSSIMO

— Façam essa mulher calar a boca!


A multidão urra. As ondas de sons sobem para o alto e es-
pantam os passarinhos que estão pousados nas árvores do cemi-
tério. Os guardas se agitam. Faíscam lanças e elmos. Uma mulher
solta um guincho. Os juízes cochicham.
O homem lívido termina o seu sermão. E suas últimas pala-
vras são um apelo para que a Donzela submeta seus feitos e ditos
à Igreja.
— Tudo o que eu disse e fiz, disse e fiz por ordem de Deus
— afirma ela.
A turba outra vez se assanha.
Quando o silêncio torna a cair sobre o cemitério de Saint-
Ouen, a voz de Joana, morna, macia, clara se faz ouvir:
— Quero que o meu caso seja levado ao Papa.
— Será!—berra o homem lívido. — Os processos irão até
o Sumo Pontífice!
— Não sei o que é que vão botar no processo. Eu quero ir
pessoalmente ao Papa, para que ele me interrogue.
O tempo passa. As correntes pesam. O povo urra. Os juízes
confabulam.
O duelo entre Joana e o homem lívido continua. Querem levar
a Donzela a acusar o seu rei. Inútil. Procuram fazer que ela
renegue suas palavras e ações. Em vão.
O sol brilha com mais força. O povo se inquieta.
Os juízes têm duas sentenças preparadas. Se Joana abjura, o
tribunal a declara livre da excomunhão.
O Bispo de Beauvais se levanta para ler a sentença.
E enquanto ele lê, os doutores em torno de Joana insistem
para que ela abjure.
— É uma loucura! — sussurram eles à Donzela. —Abjura en-
quanto é tempo!
E contam-lhe horrores da morte pelo fogo. Descrevem-lhe as
contorções dp corpo do condenado, a morte lenta, as dores pa-
vorosas e — pior do que tudo — a destruição da alma pelas cha-
mas, a morte sem confissão, a morte irremediável.. .
O homem lívido cresce para ela:
— Faze o que te aconselhamos e serás libertada. ..
Joana sente uma tontura.
A VIDA DE JOANA D'ARC 285

Alça o olhar para o céu. O céu está impassível. As suas Vozes


não falam.
A Donzela vacila. As pernas lhe doem, tremem, ameaçam
vergar. Suas feridas dos pulsos e dos tornozelos sangram.
O sol queima. E ela se lembra da fogueira. A morte lenta...
A morte da alma. . . A morte sem confissão.. .
Joana luta. Sacode a cabeça, num desespero. Pedro Cauchon
continua a ler a sentença.
— Olha — diz alguém ao seu ouvido, apontando para a en-
trada do cemitério. — Aquela mesma carreta te levará para a
fogueira. Não entrarás antes em nenhuma igreja. Nenhum padre
te confessará. Não terás nenhuma cruz diante de teus olhos.
Pensa bem. A salvação só depende de ti.
Joana pensa nos pais, nos irmãos. E de súbito lhe vem à
mente a idéia de que a França ainda precisa de sua espada.
Volta o rosto para o céu, que fulgura. O azul reverbera uma
claridade intensa. Ofuscada, tonta, a Donzela fraqueja e cai de
joelhos.
— Ela se submete!—grita Cauchon, vitorioso.
Tumulto. Erguem-se braços na multidão. Alguns começam
a jogar pedras contra a prisioneira. Os guardas investem.
Os juízes se encolhem. Os doutores se abrigam atrás do ca-
dafalso.
A multidão está enfurecida. Se Joana vai abjurar eles ficarão
privados do grande espetáculo do martírio. Ruão é uma cidade
insípida. Não tem espetáculos que divirtam. Os mistérios estão
vistos e revistos. O Rei Henrique da Inglaterra a princípio foi
uma novidade: hoje é fato trivial. O povo precisa de distrações.
Se Joana abjura, não haverá fogueira. E o povo quer fogueira.
O povo exige. O povo se amotina.
Mas Pedro Cauchon esquece a multidão. Sabe que vai conse-
guir a abjuração. Está satisfeito.
O tumulto se prolonga.
Dentro do grande barulho geral, Guilherme Erard lê a cédula
da abjuração. De joelhos, vencida pelo cansaço e pela dor, Joana
escuta sem compreender. As palavras do homem lívido são de-
voradas pelo vozerio do mar enfurecido.
A abjuração consta de poucas frases. Erard as lê às pressas,
confusamente: Joana submete-se ao julgamento e à determina-
286 ERICO VERÍSSIMO

ção da Igreja, reconhece ter cometido crimes de lesa-majesude e


seduzido o povo; promete não vestir mais roupas de homem nem
usar cabelos curtos.
O tumulto cessa.
Joana fita no homem lívido dois olhos vazios de expressão.
Exigem-lhe que assine a cédula.
— Mas eu não compreendi nada... — balbucia ela.
Erard diz a João Massieu, oficial de justiça:
— Aconselha-a a assinar a abjuração.
— Oh! S. Miguel, valei-me com o vosso conselho! —exclama
a prisioneira, juntando as mãos.
E a seus ouvidos uma voz blandiciosa — a voz de João Mas-
sieu — sussurra:
— Olha, se não assinares serás queimada... Eu te aconselha-
ria a levar o caso à Igreja universal, perguntando se deves ou não
assinar a cédula... »
Guilherme Erard grita:
— Então! Que diz a prisioneira, Messire Massieu?
O oficial se empertiga e responde:
— Dei-lhe a conhecer o texto da cédula e convido-a a assinar.
Mas ela se nega.
Um dos homens que se encontram ao redor de Joana insinua:
— Por que não assina? É tão simples... — E dizendo isto, toma
da cédula e lê apenas a parte final, acrescentando depois: —Pro-
metes vestir roupas de mulher e não usar mais cabelos cortados
à moda dos homens. Em troca desta pequena promessa te livra-
rás da fogueira. Então?
Por alguns segundos ainda os olhos de Joana têm uma ex-
pressão vaga.
— Eu quero que a Igreja delibere sobre os artigos — diz ela
— que diga se eu devo assinar ou não. Façam que a cédula seja
lida pela Igreja e pelos clérigos em cujas mãos devo ser entregue.
Se eles acharem que é meu dever assinar, eu assinarei de boa
vontade.
Berra Erard:
— Assina agora, senão serás queimada hoje mesmo!
Mas a voz menos áspera e autoritária de Massieu lhe promete:
— Se assinares, Joana, serás posta numa prisão cuidada por
A VIDA DE JOANA D'ARC 287

mulheres. Poderás assistir às missas e tomar a comunhão quando


quiseres. Não serás mais posta a ferros...
De repente, estranhamente, Joana começa a sorrir um sorriso
inexplicável. Contentamento? Ou rictus de dor?
Ela se lembra da sua prisão negra, da perversidade dos guardas,
dos ferros frios que lhe penetram as carnes.. . Seria lindo ir
para uma prisão da Igreja, ficar no meio de criaturas do seu
sexo... Oh!
Dão-lhe uma pena. A Donzela estende o braço e risca uma
cruz na parte de baixo da cédula.
O Conde de Warwick está indignado. Passaram-lhe pela mente
num relâmpago todos os reveses dos soldados de Inglaterra. Ca-
minha para os juízes, muito vermelho:
— O rei está mal servido, pois Joana D'Arc vai escapar.
O Bispo Cauchon sorri com ar enigmático. E ignorando so-
berbamente o Conde de Warwick, lê a sentença que se resume
assim:
"Joana é poupada ao fogo e condenada, por alta misericórdia,
à prisão perpétua."
Vaias. Gritos. Tumulto. Uma pedra passa zunindo rente à
cabeça do bispo. Warwick cerra os punhos e lamenta que a pe-
drada tenha errado o alvo.
Nuvens agora projetam largas sombras sobre o cemitério de
Saint-Ouen e sobre as cabeças da multidão que se revolta e que
berra, porque a privaram dum espetáculo muito, muito diver-
tido . ..
LXIV

"HOJE ESTAREI COM JESUS NO P A R A Í S O "

JOANA como que desperta dum sono pesado e mau, povoado


de sonhos impossíveis.
De novo na prisão. O bafio úmido. A cama dura. Os guardas
agressivos. E a sombra. A doença. O desalento.
Traíram-na. Prometeram levá-la para uma das prisões da Igre-
ja, dar-lhe mulheres por companheiras. Tudo mentira. Tudo
ardil.
Joana olha para baixo, para a longa saia parda que a Duquesa
de Bedford gentilmente lhe mandou.
Sente um grande mal-estar. Contempla? as roupas de pajem
que se acham aos pés da cama e tem a impressão de que está fi-
tando um cadáver.
Sim, ali está a Donzela de Orléans. A guerreira. A enviada de
Deus. A que nunca conheceu o medo. A que nunca fraquejou.
Joana se ajoelha. Toma das roupas negras com mãos cariciosas
e leva-as aos lábios. De sua garganta escapa um soluço.
— Oh meu Deus! Eu fui fraca...
Começa a chorar baixinho. Lá fora os guardas discutem e jo-
gam e bebem.
Toda encolhida em cima da cama, Joana cerra os olhos e re-
corda. Uma por uma, com uma nitidez espantosa, vêm-lhe à
memória as cenas do cemitério de Saint-Ouen.
Dominando todas as imagens, maior ainda que o vulto da ca-
tedral, aparece-lhe a cara lívida; a voz de túmulo torna a soar a
seus ouvidos. É uma obsessão.
Uma voz interior a acusa:
— Foste fraca!
E Joana se defende:
— Eu estava quase morta...
— Traíste as tuas V o z e s . . .
A VIDA DE JOANA D'ARC 289
290 ERICO VERÍSSIMO

Elas me abandonaram.
— Assinaste a cédula porque tiveste medo da fogueira. Medo,
medo, medo!
— Eu queria viver!
— Tu não pertences ao mundo, tu pertences a Deus!
— Minha França precisa de mim.
— Tua missão está cumprida.
Joana se ergue, febril. O rosto lhe arde. Os lábios estão secos
e gretados. Ela caminha na prisão dum lado para outro. E a voz
a persegue:
— Perderás o amor das tuas santas.
Joana esconde o rosto nas mãos.
— Se D'Alençon, d'Aulon e os outros teus velhos companheiros
d'armas te vissem fraquejar?
Joana estaca. Torna a olhar para as roupas de homem que
estão em cima do catre. '
A voz interior continua:
— Ainda é tempo. Veste esta roupa. Sê fiel à tua missão
até o fim. Pensas que Deus vai te abandonar?
Joana corre até a porta e pelas grades da abertura olha para
fora. Longe os guardas jogam, blasfemam e bebem.
A Donzela se volta e num instante tira as roupas de mulher e
mete-se nas roupas de pajem.
No dia seguinte a notícia se espalha pelo castelo, pela cidade,
pelos campos. Joana tomou a vestir hábito de homem!
Os doutores se escandalizam. Cauchon fica enfurecido. War-
wick sente renascer a esperança: "Eis o pretexto — pensa, sor-
ridente. O castelo fervilha de comentários.
Joana tornou a vestir hábito de homem!
— É uma relapsa! — sentenciam os assessores.
— Uma relapsa! — concorda Cauchon.
Reúnem-se os doutores. Confabulam. Descem à prisão. In-
terrogam a Donzela.
— Por que tornaste a vestir roupas masculinas?
Joana está tranqüila. Agora nada mais importa. Ela irá impá-
vida até o fim.
— Porque o hábito de homem me agrada mais.
Sorri. E o seu sorriso no rosto pálido e machucado é tão gro-
tesco e assustador que os doutores estremecem.
A VIDA DE JOANA D'ARC 291

— Prometeste e juraste que não vestirias mais roupas de ho-


mem!
— Vós prometestes também que me levaríeis para uma prisão
de mulheres. No entanto voltei para esta masmorra horrível.
Como posso ficar vestida de mulher no meio de homens?
— Relapsa!
Joana está impassível. Com as poucas forças que lhe restam,
mantém-se firme de pé.
— Prometestes que me deixaríeis ouvir missa e tomar a co-
munhão. Tudo mentira. Com que direito me acusais agora?
O interrogatório dura mais alguns minutos.
Os doutores se retiram.
No dia seguinte o tribunal se reúne na capela do arcebispado.
Perjura. Relapsa. Herege. Feiticeira. Impudica.
Cada doutor condecora Joana D'Arc com um adjetivo.
Até que o mais grave deles, ao cabo de longa discussão se
ergue para dizer:
— Deve ser entregue ao braço secular!
Um abade de ar manso pronuncia estas palavras:
292 ERICO VERÍSSIMO

— Joana é relapsa. Apesar de tudo convém que a cédula que


lhe foi lida, seja lida ainda uma vez e explicada.. .
Os doutores se entreolham, consultando-se com os olhos. E
muitos são da mesma opinião do abade de ar manso.
O Bispo Cauchon ouve todas as opiniões.
— Ela será julgada como relapsa! — conclui.
A noite cai sobre Ruão.
Joana não consegue dormir. Puseram-na de novo a ferros. Os
guardas ébrios a maltratam. Lá fora o céu está baixo e pesado
de nuvens escuras. Uma tempestade se aproxima. Troveja.
No meio da noite Joana é despertada pelas suas Vozes, que
lhe dizem palavras de amor e de consolo.
A prisão se enche duma grande luz suave. Um perfume muito
doce apaga o bafio pestilencial. As figuras odiosas dos guardas
desaparecem.
Joana sorri para as santas.
E o novo dia que nasce a encontra ainda sorrindo.
A tempestade, o vento a levou para o mar. Joana pensa nos
navegadores e reza por eles.
Sol no céu de França.
Nas primeiras horas da manhã um grupo de homens entra na
prisão. Joana reconhece neles membros do tribunal. Ergue-se a
custo. Está cada vez mais fraca e doente.
Fica de pé, esperando.
Um dos homens lhe diz:
— Joana, hoje morrerás na fogueira.
E suas palavras pingam uma a uma no silêncio.
A Donzela sente o coração parar. Os joelhos lhe vergam. Ela
tomba. O primeiro instante é de desespero:
— Oh! Por que não me esquartejam, não me enforcam? pre-
firo mil vezes isso do que ser queimada, ficar transformada em
cinza.. . Ai de mim! Deus é testemunha das injustiças que te-
nho sofrido!
Entram mais três homens na prisão. Vêm da parte do bispo
fazer novo interrogatório.
De repente Joana é tomada duma coragem enorme. Porque
ela sente a presença de suas santas, ouve o murmúrio de suas
Vozes.
A VIDA DE JOANA D'ARC 293

— Achas que tuas vozes e aparições vêm de bons ou de maus


espíritos?—pergunta um dos doutores.
Joana sorri. Eles não vêem... Se vissem, saberiam que, ali
contra a parede limosa e úmida da prisão, S. Catarina e S. Mar-
garida estão pairando no meio duma nuvem luminosa. Ouviriam
também suas vozes suavíssimas dizendo palavras de amor. Mas
eles são cegos. Têm a alma dura. Vivem lendo pergaminhos
antigos como o próprio tempo. E estudando ciências profundas.
Seus olhos estão de tal maneira cansados que não sabem ver as
maravilhas do céu. Seus ouvidos estão de tal modo gastos que não
podem ouvir as palavras divinas. Pobres doutores que não sabem
nada! Que Deus tenha piedade deles!
Joana responde que suas Vozes e suas visões são do Céu, são
de Deus.
O Pe. Pedro Maurício contempla a Donzela. Tem-lhe gran-
de pena. Passou a noite toda a pensar no processo. E, vencendo
a lembrança das palavras de seus colegas, o rosto tranqüilo da
Donzela lhe apareceu na memória. E ele sentiu que a dúvida
tomava conta de seu espírito. Não dormiu. Orou. E agora aqui
fala com voz amiga à prisioneira:
— Dize, menina, as tuas Vozes são mesmo reais?
Joana se exalta. E conta que na véspera e no dia dos com-
bates, nos momentos de descanso, nas horas de dúvida — sempre
as visões e as Vozes lhe valeram, dando-lhe coragem e alegria.
O interrogatório continua.
E de novo se abre a porta da masmorra.
Cauchon entra. Joana aponta para ele um dedo acusador e
grita:
— Bispo, morro por tua causa!
Cauchon estaca. Franze a testa. E põe açúcar na voz para
dizer:
— Oh, Joana, tem paciência. Morres porque não cumpriste o
que nos prometeste.
Poucos minutos depois a Donzela de novo se encontra só na
prisão. Só? Não. A memória duma palavra fria e tremenda per-
manece com ela.
Morte.
Joana sente um calafrio. Lembra-se da sentença que há pouco
ouviu: "Hoje morrerás na fogueira".
294 ERICO VERÍSSIMO

Uma idéia lhe fere a mente. Joana corre para a porta e co-
meça a bater nela com os punhos.
Um guarda aparece.
— Traga-me um padre! Quero um confessor!
Dão-lhe um confessor.
Na prisão dois vultos negros conversam na sombra. De pé,
muito alto, o padre. E ajoelhado ao lado dele, o pajem de roupas
negras.
Um outro irmão vem administrar a Joana o sacramento da pe-
nitência. Trazem o corpo de Cristo. E no momento de engulir a
hóstia, Joana num segundo se lembra das mãos pálidas e trê-
mulas do cura de Domrémy, naqueles domingos de comunhão...
— Crês que este seja o corpo de Cristo? — pergunta a voz
profunda do padre.
— Sim — cicia Joana. — E só Ele me pode libertar.
As lágrimas escorrem pelo rosto branco da prisioneira.
O Pe. Pedro Maurício entra na prisão. E enquanto Joana faz
suas orações, ele se mantém silencioso a um canto.
— Padre — pergunta ela débilmente — onde estarei eu esta
noite?
— Não tens esperanças no Senhor? — pergunta Pedro Mau-
rício.
Joana se ergue, de mãos postas. Seu rosto resplandece. E ela
diz:
— Hoje estarei com Jesus no paraíso!
Maurício-baixa a cabeça e sai em silêncio da prisão, com a alma
em agonia.
LXV

A MARCHA PARA A MORTE

J O A N A está só. Treme como um passarinho molhado. O que


sente é estranho. Às vezes um frio de morte lhe percorre o corpo.
Outras vezes é uma onda de calor que lhe abrasa o rosto e lhe
desce até os pés.
Silêncio.
Joana recosta a cabeça na parede.
De repente tudo muda. . .
É uma manhã de verão clara de sol. Ela vai na garupa do bur-
rico para Sermaize. Leva um cesto com um pote de mel e bolos
para tio Henrique. Os bosques estão floridos. Os lagartos verdes
tomam sol na estrada. A sombra do burrico é suave sobre o chão.
E como está azul o céu da Lorena!
De repente diante dos olhos da menina Joana surge a Fonte-
dos-Groseiheiros. A água canta, brotando pura no meio das pe-
dras e da relva verde. Ela tem sede. O sol queima. A caminhada
foi longa.
A menina apeia. Caminha para a fonte. Deita-se de bruços,
estende os lábios para beber.
E a parede da prisão, fria contra o rosto que escalda,, chama
Joana à realidade.
Tudo escurece. E ela está deitada nas pedras úmidas. O corpo
abrasado de febre e sacudido de soluços.
De repente ouve um tropel, o tinir de lanças e espadas. Orléans
ao longe ergue para o céu as suas torres desamparadas. É preciso
salvar Orléans! O Bastardo diz que é impossível subir o rio con-
tra o vento. Mas Deus é o senhor dos ventos. Para a frente! A
armadura fulgura. O estandarte voa como uma águia branca.
E Joana se ergue e investe. E de novo a parede da prisão se
interpõe entre ela e a visão.
A Donzela tomba. A testa lhe sangra.
Ela fica estendida no chão.
296 ERICO VERÍSSIMO

Às nove horas vêm buscá-la. Vestem-lhe uma longa camisola


branca. Cortam-lhe os cabelos e põem-lhe na cabeça nua uma
carapuça de papel onde estão escritas estas palavras: Herética,
relapsa, apóstata, idólatra.
Joana caminha como num pesadelo. Que força misteriosa é
esta que a mantém de pé?
Na frente do castelo uma multidão se agita e algazarreia.
Quando a prisioneira aparece, faz-se imediatamente um silêncio
medroso.
Fazem-na subir para a carreta. Os quatro cavalos negros estão
inquietos.
Joana, pálida como um cadáver, está imóvel com os olhos fitos
num ponto indefinível. Todo o pavor agora desapareceu das
coisas. O que ficou é uma sensação de desalento. Desejo de
ternura. Nenhum ódio. Abandono. Esquecimento. Resignação.
— Oh Deus!—murmura ela — faze que tudo passe depressa
para que eu possa em breve estar contigo.
De repente um padre sai da multidão, sobe para a carreta, ajoe-
lha-se soluçando aos pés de Joana e lhe pede perdão. É mestre
Loiselleur, um dos membros do tribunal. O remorso lhe retorce
o rosto. Ele beija o vestido da Donzela. As lágrimas lhe escor-
rem pelas faces. A prisioneira baixa os olhos e sorri, perdoando.
Os soldados ingleses gesticulam e avançam agressivos para o
padre. Warwick aparece e vem em seu socorro.
Loiselleur desce da carreta e cego de dor sai a correr sem
rumo pela rua, perdendo-se no meio da multidão.
Acompanhada de três membros do tribunal e guardada por al-
gumas dezenas de soldados, a carreta põe-se em marcha.
Joana cerra os olhos e começa a orar. Seus lábios que mal
se descerram, suas mãos entrelaçadas à altura do peito, o seu
rosto descarnado estão mais brancos do que o sudário de con-
denada.
O cortejo segue pelas ruas estreitas. Joana relembra as caval-
gadas gloriosas. Orléans. Jargeau. Meung. Beaugency. Patay.
Reims!
Nas janelas aparecem e desaparecem rostos assustados. N?s
ruas os homens param e olham. Ninguém fala. Toda a gente na
véspera estava alvoroçada, esperando com ânsia a, hora do mar-
tírio. Mas que mal-estar é este que oprime todos os peitos? Que
VIDA DE JOANA D'ARC 297

estranho medo subterrâneo está agora escurecendo todas as al-


mas?

Como uma santa no andor, Joana D'Arc segue em cima da


carreta. As rodas matraqueiam sobre o calçamento irregular.
Ouve-se o tinido das lanças dos guardas batendo nas pedras.
O cortejo chega à praça do Mercado Velho. Faz alto.
Joana abre os olhos... A multidão que enche o quadrado num
formigamento desinquieto — lhe dá uma sensação de tontura. A
Donzela pensa no grande exército de Carlos VII, o exército que
libertou Orléans, o exército que a seguiu cegamente...
Escapa-se da turba um uivo profundo e prolongado que sobe
para o céu numa onda enorme e se perde desfeito nas nuvens.
LXVI

A FOGUEIRA

DOMINANDO todas as cabeças erguem-se na praça três cadafalsos.


No maior de todos estão sentadas as autoridades: o bailio de
Ruão, o Bispo Cauchon, representantes do Rei da Inglaterra e
muitos doutores.
Os soldados fazem Joana descer da carreta. Com a ponta das
lanças abrem um estreito corredor no meio da multidão e ao
longo dele conduzem a prisioneira até o cadafalso menor.
Joana passeia em torno o olhar cansado. O sol inunda a praça.
Parece uma festa. Em cima dos telhados, nos últimos galhos das
árvores mais altas, vêem-se homens e garotos encarapitados,
aguardando o espetáculo.
Contra o azul fulgurante do céu da manhã, se silhueta a Igreja
do Santo Salvador. Joana ergue os olhos para as torres. Bem na
extremidade da mais alta delas, agarrado à cruz, um vulto braceja.
E por um instante a Donzela chega a sentir-se inquieta pela se-
gurança daquela criatura — homem ou menino? — que arrisca
a vida de tal forma, só para ver a "herege" morrer queimada.
Sorri tristemente.
Cessa o uivo da multidão. Faz-se um silêncio muito fundo.
Uma voz grave fende o ar luminoso e ecoa estranhamente atrás
da igreja, como se um demônio trocista ali estivesse escondido
a repetir as palavras do orador.
Joana olha.. . Os juízes, funcionários e representantes têm os
rostos sombrios, os olhos baixos. Na frente deles ergue-se o
vulto escuro do orador, que levanta a mão para o céu numa
ameaça e solta violentamente as palavras como canhonaços, ci-
tando S. Paulo:
Et si quid patitur unum membrum, compatiuntur omnia
membra.
E por muito tempo fica a pregar. E de novo Joana ouve dos
lábios dele a palavra abominada: herege.
A VIDA DE JOANA D'ARC 299

Lá no alto da torre o observador arrojado ergue no ar o seu


gorro vermelho, num gesto de impaciência.
O pregador se cala.
O Bispo Pedro Cauchon põe-se de pé e lê a sentença.
Joana tem a impressão de que despertou dum sonho, dum
enorme sonho que começou naquele dia em que ela saiu de Dom-
rémy rumo a Vaucouleurs.
— Joana, aonde vais?—pergunta Mengette.
— Vou para Vaucouleurs! Adeus, Mengette! Eu te recomendo
a Deus!
O burrinho trota. Em Domrémy nada mudou. O Mosa corre
tranqüilo, cantando a sua canção de ninar. O sino da capelinha
toca as Matinas. As crianças pulam e gritam em torno da Árvore -
das-Fadas. Nossa Senhora de Bermont deve estar com os seus
lindos pés mergulhados em flores.. .
Mas a voz dura de Cauchon apaga a visão.
Joana abre os olhos para a realidade. O mar humano ondula
e uiva. Cauchon fala ainda. E a palavra morte sai de seus lábios.
Cauchon se cala.
Joana soluça, os seus olhos se enchem de lágrimas e ela
se sente bruscamente invadida por uma onda inexplicável de
ternura.
Ajoelha-se. Invoca os seus santos. Pronuncia o nome do Pai,
do Filho e do Espírito Santo
E com voz mansa pede humildemente desculpas aos juízes,
aos doutores, aos soldados, ao povo, por qualquer mal que lhes
possa ter feito.
Sua voz é doce. Seus gestos são mansos. E ela sorri tristemente,
por entre lágrimas.
Os homens que a julgaram começam a ficar inquietos. E a
sombra duma dúvida terrível lhes escurece as almas. Alguns
choram desviando os olhos da condenada.
Joana estende os braços e exclama:
— Ai Ruão! Eu temo que venhas a sofrer por causa da minha
morte!
O tempo passa. A multidão se inquieta. Começa a erguer-se
um clamor...
Ouve-se uma voz:
— Então, padre? Queres nos fazer jantar aqui?
300 ERICO VERÍSSIMO
O bailio de Ruão, obedecendo à tradição, ergue o braço e diz:
— Levem-na! Levem-na!
Arrastam Joana para a carreta, que a deixa ao pé do cadafalso
central, onde se ergue um poste, emergindo dum montão de
feixes.
Joana está enfraquecida. Mas ao chegar ao primeiro degrau
uma força misteriosa a reanima. Ela se empertiga. Uns poucos
degraus a separam do poste do suplício. Mas o que a Donzela
A VIDA DE JOANA D'ARC 301

vê diante de seus olhos é uma escada imensa, luminosa, que a


leva ao Paraíso. E tem a impressão de que o seu exército de an-
jos desce das nuvens e a ergue nos braços...
Os guardas se admiram da leveza com que Joana sobe agora
os degraus do cadafalso.
Amarram-na ao poste.
Ela quer morrer contemplando uma cruz. Alça o olhar para
a torre da igreja. Mas lá está o vulto inquieto a esconder a
cruz.
— Por amor de Deus — suplica a condenada — tragam-me
uma cruz!
Um soldado inglês faz uma cruz com dois pedaços de madeira
e a entrega à condenada. Joana a recebe com ambas as mãos,
leva-a aos lábios e a beija, pronunciando o nome do Salvador.
Depois a enfurna no seio, como quem guarda um tesouro.
Muitos dos juizes choram. O Conde de Warwick a custo re-
tém as lágrimas. O cardeal de Winchester morde os lábios e
cerra os olhos, penalizado. Os membros do tribunal descem apres-
sados do cadafalso e fogem. Alguns deles escondem os rostos
nas mãos. E todos levam a morte na alma.
A multidão uiva. Parece um monstro ferido.
O Pe. Pedro Maurício chora como uma criança.
— S. Miguel!—exclama Joana.—Ó S. Miguel! Valei-me!
Um soldado se aproxima com duas tochas acesas.
— Traga-me uma cruz da igreja! — suplica Joana ao Irmão
Isambart, que está ao seu lado.
O sacerdote se afasta correndo.
O soldado ateia fogo nos feixes de lenha que recobrem os
pés da condenada, bem como as flores das crianças de Domrémy
afagavam na primavera os pés de Nossa Senhora de Bermont.
Irmão Isambart volta com uma cruz, que ergue diante do
rosto da Donzela.
A chama da fogueira cresce, lambe os membros inferiores de
Joana, que se retorce e grita de dor. Com os olhos fitos na cruz,
vendo por trás dela os rostos serenos de S. Margarida e S. Cata-
rina que a animam com um sorriso — a condenada continua a
pronunciar o nome de Jesus. E quanto mais forte é a dor que
sente, mais agudo é o grito.
302 ERICO VERÍSSIMO

Reina pavor na multidão. Muitos querem afastar o rosto do


espetáculo horrendo e não podem. Ficam com os olhos vidrados,
fixos no vulto branco que se retorce nas chamas, a cabeça nua
e descarnada, os olhos saltados, o rosto iluminado pela luz ver-
melha das labaredas, pela luz sinistra que lembra o inferno, que
lembra a destruição.
J o ã o Alespée, chorando perdidamente, murmura trêmulo:
— Eu quisera que minha alma estivesse onde creio que está a
alma desta mulher.
N u m segundo Joana D ' A r c revê mentalmente toda a sua vida,
que passa numa doida cavalgada. O balanço do berço, enquanto o
Mosa marulhava a sua canção de ninar. A infância em Dom-
rémy. A viagem a Vaucouleurs. O encontro com o rei em Chi-
non. A tomada de Orléans. A marcha suore Reims. A semana
de vitórias. A última campanha. A prisão. O processo.. .
Tudo num r e l â m p a g o . . .
— Jesus.' — balbucia ela. As chamas sobem, lambem-lhe a cin-
tura, comem-lhe as carnes. — Jesus!
No alto da torre da Igreja do Santo Salvador, agarrado na
cruz, o observador arrojado o l h a . . . E chega a seus ouvidos, no
meio do silêncio que esmaga a praça, um grito estridente que faz
seu sangue gelar, um grito que é de dor, de desespero e ao mesmo
tempo de triunfo:
— Jesus!

Anoitece.
A praça do Mercado Velho está deserta. Três homens que
trazem nas mãos lanternas coloridas, vêm por ordem do Sr.
bailio recolher os restos da condenada. Depois da execução o
carrasco deitou-lhes óleo, enxofre e carvão, para reduzi-los a
cinzas.
O Sr. bailio é um homem previdente. Há muita gente su-
persticiosa na Cidade de Ruão. Bruxas. Encantadores, Mestres
em magia negra.
Alguém pode vir na quietude da noite buscar as cinzas de
Joana D ' A r c para fabricar feitiço. . .
A VIDA DE JOANA D'ARC 303

Os homens sobem em silêncio para o cadafalso. Inclinam-se


sobre o mente _ de cinzas. Um deles aproxima a lanterna de
fogo verde, cuja luz clareia fantasticamente as três caras ansiosas.
E eles se entreolham sem dizer palavra. O que agora vêem lhes
rouba a voz. . . No meio das cinzas acabam de descobrir intacto,
enorme, o coração da Donzela. O fogo não conseguiu consumi-lo.
Com imenso cuidado, trêmulos e comovidos, eles põem num
saco os despojos de Joana D'Arc. Descem as escadas do cada-
falso, caminham na direção do Sena e vão até o meio da ponte.
Param. E sempre calados abrem a boca do saco e, erguendo-o
por cima do parapeito da ponte, jogam para o rio as cinzas e o
coração da Donzela.
A água se agita e dança com ela o reflexo das primeiras es-
trelas.
Joana, doce Joana, agora que saíste fora do tempo, fora do
mundo, pertences a quem quer que tenha um pouco de fé ou
imaginação para te invocar. Sinto neste momento a tua presença
como tu sentiste durante os últimos anos de tua vida a presença
de S. Margarida e S. Catarina.
Que importa que os outros homens digam que sonho? Que
importa que muitos afirmem que sonhavas?
Minha suave Guerreira, as tuas cinzas se dissolveram nas águas
do Sena. E o teu grande coração decerto foi levado para o mar.
São recordações tristes...
Riamos um pouco. Lembras-te do Duque de Borgonha?
Tu bem o previste. Menos de cinco anos depois que teu
corpo foi queimado em Ruão, o truculento Filipe rompeu com
os ingleses. Foi por ocasião do Tratado de Arras. Felizmente não
estavas lá. Porque terias ouvido palavrões horrendos, gestos feios,
caras contorcidas, bocas que espumavam, raiva e aflição. O Du-
que de Borgonha aliou-se aos franceses. Oh! Devias ver o grande
clarão de alegria que inundou o rosto de Carlos VII quando lhe
deram a notícia.
No ano seguinte Bedford morreu. Tu sabes o que ê um exér-
cito sem chefe... Os ingleses perdiam terreno sempre e sempre.
As forças unidas de armagnacs e borgonheses empurravam os in-
vasores para o mar. (Eu acho que era o teu espírito que animava
os soldados de França.. .)
Um dia Carlos VII entrou com suas tropas em Paris e foi acla-
mado nas ruas. Não achas tudo isto muito engraçado?
Entretanto, ainda não era a vitória. Por muito tempo a tua
doce França sofreu. Miséria e peste. Mais sepulturas do que
berços.
Mas vieram dias felizes. Carlos VII, cercado de melhores
conselheiros, governou com mais sabedoria. De quando em quan-
do as suas noites eram visitadas pelo teu fantasma, Joana, pela
recordação de todas as traições que te fizeram. Uma pontinha de
remorso lhe doía então na consciência. Mas outras preocupações
absorviam o ilustre Valois e tu sabes que as vinhaças saborosas, a
caça ao javali e as intrigas da corte eram coisas que muito ocupa-
vam o espírito do teu pobre rei.
Os anos rolaram.
Um dia—curioso! — Carlos de Valois pensou em ti, no teu
julgamento iníquo, no teu sacrificio e na tua morte. E lembrou-
se— não rias — de reabilitar a tua memória, revisando o processo
que te condenou. Mandou fazer um inquérito preliminar. Houve
agitação. Estou quase afirmando que, mal havia dado os primeiros
passos, já o fraco rei tinha o espírito invadido pelo arrependi-
mento. A notícia chegou à Inglaterra. O Papa mandou à França
o seu delegado, o Cardeal D'Estouville, Os ingleses opuseram-se
ferozmente à marcha do inquérito e lançaram um protesto junto
à Santa Sé. Por algum tempo nada se fez. A iniciativa parecia
ter morrido no nascedouro.
Mais tarde torna-se a falar no caso. lua mamãe que morava
tranqüilamente em Orléans com João e Pedro, instada pelo go-
verno de França, requer a revisão do famoso processo. O Sumo
Pontífice, Calixto III, indica o bispo de Paris, o arcebispo de
Reims e o bispo de Coutances para, em harmonia com o Grande
Inquisidor, tratar da revisão. Reuniram-se os prelados e estudaram
os alfarrábios com gravidade. Chegaram à conclusão de que a
culpa recaía principalmente sobre Pierre Canchón. (Já àquele
tempo o antigo bispo de Beauvais havia morrido; seus restos
estavam enterrados na magnífica Capela da Virgem, em Lisieux,).
toda a gente, então, começou a falar de novo em ti com pai-
xão. Fizeram-se inquéritos em Orléans, Domémy, Paris e Ruão.
Pediram o testemunho de Dunois, de Alençon e de Aulon. De-
vias ter ouvido as belas coisas que eles disseram de ti. Estavam
comovidos. Decerto sentiam também tua presença no instante
em que prestavam os seus depoimentos.
Por fim o Grande Inquisidor João Brébal fez publicar um me-
morandum declarando a tua ortodoxia. Viçou anulada a sentença
de 1431: a Universidade de Paris tinha laborado em erro: eras
inocente de qualquer crime.
Mas nas águas do Sena não existiam mais vestígios de tuas
cinzas. E o mar não saberia dar conta daquele imenso coração
que os rios lhe levaram...
Sabes qual foi o destino de teu rei? Triste, muito triste. No
fim da vida entregou-se à dissipação. Brigou com o próprio filho.
E o Delfim, não o podendo mais suportar, -fugiu da corte. Car-
los Vil ficou desesperado. Mandou chamá-lo com insistência. O
herdeiro não voltou. Então o pobre rei passou a viver apavorado
pela idéia de qut podia ser envenenado pelo filho. Recusava-se a
tomar os alimentos que lhe levavam, tinha alucinações horríveis,
lira a demência, a herança que Carlos VI lhe transmitira junta-
mente com a coroa de França. Um dia a morte chegou no seu
cavalo negro e levou para os seus domínios a alma de Carlos VII.
Foi em Melun (lembras-te de Melun?) num claro dia de junho.
E o tempo continuou a passar, menina Joana. E houve mais
guerras, muitas guerras mais. E pestes. E reis débeis e reis for-
tes. E conselheiros bons e maus. Desapareceram pouco a pouco
todas as criaturas de teu tempo; ficaram os descendentes, perpe-
tuando a sua glória ou prolongando a sua miséria.
Fins do século XIX. O Papa Leão XIII passou ao Congresso
de Ritos o expediente de tua beatificação, cuja aprovação defini-
tiva foi decretada em princípios do século XX.
Seis anos depois uma tremenda guerra, a maior de todas, es-
talou na Europa. Como era diferente das guerras de teu tempo,
oh minha heroína! Os homens sempre se estraçalharam com fúria
igual desde o tempo dos cavernas. Mas em 1914 tinham máquinas
mais eficientes de matar. Era mais fácil morrer.
Os soldados de França encontravam-se de novo em campo.
Mas — estranho! — dessa vez tinham a seu lado os homens loi-
ros da Inglaterra.
No decorrer da luta o teu nome foi muitas vezes invocado.
Contam que um dia certo regimento francês que se achava per-
dido, preparava-se para a retirada. De repente os soldados ergue-
ram ao mesmo tempo os olhos para o céu e viram, enorme contra
as nuvens, a tua imagem. Estavas metida na tua armadura branca,
montada no teu cavalo, e tinhas na mão um espada refulgente
com que mostravas aos franceses o caminho da vitória. O regi-
mento inteiro ficou transfigurado, atacou e venceu.
Deve ter sido ilusão. Porque eu sei, Joana, que deixaste na
Terra os teus petrechos de guerra.
Depois que terminou a grande matança e o mundo começou a
convalescer, Benedito XV te incluiu no calendário dos santos. Foi
em 1919.
Santa Joana D'Arc!
Volto os olhos para o passado, viajo vertiginosamente por
cima de quinhentos anos e te vejo em Domrémy. Tens doze anos.
Levas o teu rebanho para pastar às bordas do Bois Chénu. Tarde
de sol. Lá do outro lado do rio rodopiam as pás dos moinhos
vermelhos de Greux. Uma grande paz adormece a tua aldeia. Tu
vais cantando, feliz e livre, e os pássaros voam por cima de tua
cabeça.
De repente me acho de novo dentro do meu século.
Que vejo? Rumores de guerra na Europa onde ainda há reis
sem- vontade, conselheiros astutos e homens solertes que tiram
gordos proveitos das guerras. Existem ainda capitães bravos como
D ' A l e n ç o n e soldados ingênuos que, como os do teu tempo, iam
à guerra sem saber para quê. Os tratados se rasgam com a mesma
facilidade com que o Duque de Borgonha quebrava as tréguas
e mandava embaixadas de paz aos armagnacs enquanto instigava
contra eles o povo de Paris.
Ninguém mais fala em Merlin. Só os poetas ou os contadores
de histórias de fadas. Porque depois vieram magos muito mais
prodigiosos do que o feiticeiro do Rei Artur. Inventaram um mi-
lhão de coisas surpreendentes que criam ou que matam, que de-
liciam ou aborrecem; mas um milhão de coisas, enfim, muito
mais maravilhosas do que os pobres pós mágicos de Merlin.
O gosto pelas profecias ainda perdura. Há escritores que escre-
vem com ar grave, e leitores que lêem com mais gravidade ainda,
o que vai acontecer ao mundo daqui a cem ou a mil anos.
Domrémy ainda existe. A casinha onde nasceste lá está, terri-
velmente restaurada, mostrando inscrições que te fariam rir. Mui-
tos turistas americanos a visitam todos os anos.
Sobre a tua aldeia agora passam roncando os aviões que per-
correm em poucos minutos as distâncias que os teus bravos cava-
os de guerra, Joana, levavam dias e dias para cobrir. Mas apegar
los aviões há ainda criaturas que acreditam em bruxarias e que
olham com temeroso respeito para os antigos bosques das fadas
e dos encantamentos.
O Mosa continua a correr mansamente e a cantar a sua canção
de ninar. Teria esquecido a menina Joana? Mistério. Ninguém
logra sondar a alma dos rios, por mais transparentes que eles
sejam...
Infelizmente, doce Joana, ainda não podes voltar ao mundo
apenas com o teu vestidinho vermelho de camponesa, com a roca
na mão e um sorriso no rosto. Terás de usar de novo tua rija ar--
madura forjada em Tours, a tua espada e o teu grito de guerra.
E nem assim estarás protegida, porque os homens de hoje, minha
iluminada, são senhores de artimanhas sobrenaturais.
Agora, minha santa, para que não fiques triste com as notícias
que te dei das coisas de meu século, asseguro-te que nas estradas
da Lorena ainda trotam amáveis descendentes do burrinho manso
e peludo que te levou a Sermaize naquele dia de sol...
Í N D I C E

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