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do Autor
• 1932 — FANTOCHES, c o n t o s
• 1933 — CLARISSA, r o m a n c e
1935 - MÚSICA AO LONGE, r o m a n c e
- CAMINHOS CRUZADOS, r o m a n c e
- A VIDA DE JOANA D'ARC, literatura infanto-juvenil
1936 — AS AVENTURAS DO AVIÃO V E R M E L H O , literatura i n -
fantil
— OS TRÊS PORQUINHOS POBRES, literatura infantil
— ROSA MARIA NO CASTELO ENCANTADO, literatura i n -
fantil
— UM LUGAR AO SOL, r o m a n c e ;
1937 _ AS AVENTURAS DE TIBICUERA, literatura infantil
1938 — 0 URSO-COM-MÚSICA-NA-BARRIGA, literatura i n f a n -
til
- OLHAI OS LÍRIOS DO C A M P O , r o m a n c e
1939 — A VIDA DO ELEFANTE BASÍLIO, literatura infantil
— OUTRA VEZ OS TRÊS PORQUINHOS, literatura infantil
— VIAGEM À AURORA DO MUNDO, literatura i n f a n t o -
juvenil
— AVENTURAS NO MUNDO DA HIGIENE, literatura infan-
. til
1940 - SAGA, r o m a n c e
1941 _ GATO PRETO EM CAMPO DE NEVE, viagens
1942 _ AS MÃOS DE MEU FILHO, c o n t o s
1943 -*- O RESTO É SILÊNCIO, r o m a n c e D
1945 — BRAZILIAN LITERATURE, An o u t l i n e
1946 — A VOLTA DO GATO PRETO, viagens
1949 — 0 T E M P O E O VENTO, 1.ª Parte:
O Continente, 2 vols., romance
a
1951 — O T E M P O E O VENTO: 2 . Parte:
O Retrato, 2 vols., r o m a n c e
1954 — NOITE, novela
1956 — GENTE E BICHOS, literatura infantil
(antologia)
1957 — MÉXICO, viagens
1959 — 0 ATAQUE, c o n t o s
a
1961/62 — O TEMPO E O VENTO: 3 . Parte:
O Arquipélago, 3 vols., r o m a n c e
1965 — O SENHOR EMBAIXADOR, r o m a n c e
1966 — FICÇÃO COMPLETA, edição em papel-biblia
1967 — O PRISIONEIRO, r o m a n c e
1969 — ISRAEL EM ABRIL, viagens
1970 -- UM CERTO CAPITÃO RODRIGO (extrato de O Conti
nente, 1}
1971 -- ANA TERRA (extrato de O Continente, ? .
- INCIDENTE EM ANTARES, r o m a n c e
1972 — UM CERTO HENRIQUE BERTASO, biografia
1973 — SOLO DE CLARINETA, 1.° vol., m e m ó r i a s
1975 — A PONTE (extrato de O Ataque), edição de luxo, ilus-
trada
1976 — SOLO DE CLARINETA, 2.° vol., m e m ó r i a s (edição pós-
tuma)
I
A MENINA JOANA
— Pode entrar.
— Jacques entrou, tonto de alegria. Era uma menina.
Foi assim o nascimento de Joana. Deram-lhe três padrinhos
e os três se chamavam João. Deram-lhe cinco madrinhas e uma
delas se chamava também Joana.
E a filha de Jacques e Isabel D'Arc cresceu na aldeia com os
porcos e os burrinhos, com as árvores e os pardais.
Agora tem nove anos. Quem a vê pela primeira vez tem von-
tade de perguntar.
— Quem é aquele rapazinho vestido de mulher?
Sim, porque Joana tem uma cara de menino, apesar dos ca-
belos escuros e longos, com tranças, que lhe caem quase até os
joelhos. Seus olhos são dum azul diluído e remoto de céu de
primavera. O narizinho é reto e curto. O rosto, miúdo e oval.
A boca parece simplesmente um risco feito com lápis vermelho.
Joana é diferente dos demais meninos e meninas de Dom-
rémy. Quando está no meio deles, brincando, chama mais a
atenção do que os outros. Não é bonita mas tem qualquer coisa
qué atrai, que faz pensar. O seu ar tranqüilo e ao mesmo tempo
resoluto, impressiona. A coragem com que ela leva as suas ove-
lhas até a borda dos bosques das colinas, por onde às vezes
cerrem lobos, deixa toda a gente pasmada.
Joana não sabe 1er nem escrever. Mas percebe tudo, com-
preende tudo. Tem resposta para as mais complicadas pergun-
tas. Acha solução para todos os problemas. Sabe onde fica o
pasto mais maduro. Sabe como conduzir sem" extravios as vacas,
:Os porcos, as ovelhas. Em casa é muito hábil nos trabalhos de
agulha. Ajudi a mãe no serviço doméstico. E nunca deixa de
fazer o sinal-da-cruz quando o sino da capelinha toca o Angelus.
Aconteceu há poucos dias um fato muito curioso. O sacris-
tão se esqueceu de tocar a Ave-Maria. Joana esperou o som
do sino. Como não ouviu nada, foi à igreja saber o que tinha
acontecido. Com bons modos repreendeu o sacristão. E o Pe.
Minet, que tinha vindo para o mesmo fim, achou graça da me-
nina e perdoou o sacristão.
E assim vive Joana DArc.
M a s . . . que teriam visto os galos naquela fria noite de Reis
do ano de 1412?
Ill
MERLIN, O ENCANTADOR
O VIZINHO DOENTE
Zabillet pergunta:
— O burrinho era como aquele lá da tua casa?
— Era.
Vai anoitecendo. Joana não se arreda da cabeceira da cama.
E quando a noite desce, Pedrinho vem perguntar se a irmã não
volta para casa.
20 ERICO VERÍSSIMO
A ÁRVORE-DAS-FADAS
seus próprios olhos uma fada debaixo daquela grande faia que
fica à beira do bosque, perto da estrada real que vai para Neuf-
château. E chega até a garantir que era a própria Melusina.
Joana conhece a história de Melusina. Madrinha Jannet lha
contou num serão de inverno, enquanto os lobos lá fora uiva-
vam para a lua. Foi assim:
Existia, há muitos, muitos anos uma fada que casou com o
R e i da Albânia e teve uma filha a que deu o nome de Melusina.
Era uma criança muito bonita que recebeu da mãe um dom
terrível. Todos os sábados a parte inferior de seu corpo tomava
a forma de uma serpente. Melusina cresceu, ficou uma moça
linda como as estrelas. Um dia encontrou o Conde Raimundino
e se apaixonou por ele. O conde ficou também perdido de amor
pela fadazinha e pediu-a em casamento. "Só me caso contigo
— disse Melusina — se tu prometeres que nunca procurarás ver-
me aos sábados." Raimundino prometeu. Casaram. Foi um ca-
samento deslumbrante. Foram convidados todos os reis e todas
as fsdas do mundo. Nunca se viram presentes mais finos.
Os noivos viveram felizes muitos anos no Castelo de Lusi-
gnan, erguido pela magia de Melusina. Mas ura belo dia o Conde
de Forêt, irmão de Raimundino convenceu o irmão de que ele
devia qiíebrar a promessa. Tentado, Raimundino procurou Me-
lusina num sábado e descobriu o seu horrendo segredo. Melusina
se transformou imediatamente em serpente e fugiu por uma
janela do castelo, soltando berros de dor. E desde aquele dia,
sempre que a morte rondava o Castelo de Lusignan, Melusina
aparecia na torre, exalando os seus uivos doloridos.
Esta é a história da fada Melusina que Jannet Aubrit diz
que viu debaixo da Árvore-das-Fadas.
Todos os anos, no quarto domingo da Quaresma, os campo-
neses de Dcmrémy vão beber na Fonte-dos-Groselheiros e can-
tar e dançar ao redor da Árvore-das-Fadas.
Todas as meninas e todos os meninos da aldeia tomam parte
nas danças.
A Árvore-das-Fadas é uma faia muito alta e copada. Parece
de prata. Quando o sol bate nela, seus troncos, suas folhas e
seus frutos rebrilham. Sua sombra no chão é azulada e fresca.
Dizem que as fadas se reúnem para conversar debaixo dessa
faia antiga.
24 ERICO VERÍSSIMO
O BURRINHO TRISTE
A HISTÓRIA DE S. MARGARIDA
A H I S T Ó R I A DE S. C A T A R I N A
OS HOMENS SÃO M A U S
POBRE DOMRÉMY!
U M A H I S T Ó R I A SEM F A D A S
<
A V O Z LUMINOSA
AS VISÕES Q U E R I D A S
O VERÃO vai forte. O Mosa refulge nos dias claros, como a ar-
madura dum guerreiro. Os lagartos preguiçosos saem para os
descampados para tomar sol. Os sapos verdes coaxam nos char-
cos uma cantiga que dá sono. As nuvens muito brancas se amon-
toam no céu: parecem grandes montanhas de neve. O ar está
cheio de insetos de asas transparentes, as abelhas voam e^ zum-
bem e fulguram, como se fossem de ouro.
Joana se acha agora no seu jardim. Está agachada sobre um
canteiro quando de repente o clarão aparece. E a mesma voz
lhe diz:
— Joaninha, sê boa!
A menina se volta. Oh! Agora ela vê uma visão resplande-
cente. Esfrega os olhos. Pisca. Torna a esfregá-los. Depois os
abre bem e fica olhando. Quer dizer uma palavra mas a voz lhe
falta. Dentro do clarão está um lindo guerreiro, metido na sua
armadura polida. O belo cavaleiro tem uma grande espada na
mão direita e um escudo na esquerda. Uma coroa de ouro cir-
cunda o seu elmo, que lampeja. O rosto dele mal se enxerga
por causa da luz que o inunda. Mas Joana sente que é um lin-
do rosto de anjo. Sim, de anjo.. . Ela está conhecendo este so-
berbo capitão.. . Ela o conhece...
S. Miguel! Oh! o arcanjo S. Miguel!
Os olhos de Joana se turvam de lágrimas.
Sereno, o arcanjo lhe fala:
— S. Catarina e S. Margarida virão a ti, Joaninha. Segue os
conselhos que elas te derem, pois as santas te dirão o que tens
a fazer. -Deves acreditar em tudo o que disserem. Todas estas
coisas se fazem por ordem de Nosso Senhor.
S. Catarina e S. Margarida vão aparecer para ela? Oh! Joana
sente um desfalecimento.
60 ERICO VERÍSSIMO
O SONHO DE J A C Q U E S D ' A R C
A TARDE é doce. Por cima das colinas há uma grande lista ver-
melha pintada no céu. As sombras são arroxeadas. O vento é
manso.
Aqui vai Joana à rabiça do arado. Os cavalos estão suados do
trabalho do dia: seus corpos ofegantes reluzem ao último sol.
À beira do rio as raparigas cantam. Seus vestidos são colo-
ridos. Elas jogam flores para o ar e dançam. São moças e tem
namorados. O Mosa canta com elas. Os peixes dançam. As som-
bras escutam. Os vaga-lumes farfalham. Os vaga-lumes começam
a luze-luzir no campo enquanto as primeiras estrelas brincam
no céu de imitar os vaga-lumes. Os cavalos caminham. O arado
rasga a terra. Joana segue pensativa. A seu lado João Waterin,
seu companheiro de lida, trabalha e canta. Tem cabelos louros,
cara tostada, olhos azuis de criança. Conversa muito, gosta de
dançar com as raparigas da aldeia e diz sempre que um dia
há de ser senhor dum castelo grande e fortificado.
Agora aqui vai ele, cantando uma canção alegre. Suas roupas
estão esfarrapadas, mas João Waterin julga-se um rei. Quem o
vê assim caminhando contente, de cabeça erguida e passo firme,
dirá que ele é o dono de Domrémy!
Joana não vê nem ouve o companheiro. Seus olhos estão vol-
tados para o céu.
Cansada, ela pára e senta-se numa pedra, enxugando a testa
com o lenço. João pára também. Os cavalos resfolegam. Lá em
baixo à beira do rio as raparigas continuam a cantar.
Contra o céu claro Joana vê desenharem-se os seus vultos
queridos. S. Catarina e S. Margarida aparecem numa nuvem de
ouro. O seu perfume domina o perfume dos campos, que é
mais ativo nesta hora do escurecer. O azul de seus man-
tos é mais suave que o azul do céu da noitinha. A coroa de suas
68 HR1C0 VERÍSSIMO
A I N S P I R A Ç Ã O DE S. REMÍGIO
A O R D E M DO A R C A N J O
ADEUS, D O M R É M Y !
Mas Joana não escuta a voz do rio porque está ouvindo as vo-
zes santas que falam dentro dela.
Em Greux, a aldeia vizinha de Domrémy, ela passa por Men-
gette.
— Joana, aonde vais?
— Vou para Vaucouleurs! Adeus, Mengette! Eu te recomendo
a Deus!
O burrinho continua a trotar. Joana mergulha nos seus pen-
samentos. E só desperta nas proximidades de Burey.
Fica-se várias semanas na casa dos primos. E depois que o
bebê nasce, depois que passa o alvoroço dos primeiros dias, Joana
pede a Durand Lassois que a acompanhe de novo a Vaucouleurs.
O bom tio compõe uma cara fingida de zanga e diz:
— Não levo!
Joana torna a pedir. Durand Lassois quer manter a carranca
mas a felicidade que lhe traz a presença daquela criaturinha que
esperneia e berra no berço lhe inunda a alma. E ele não sabe
resistir aos pedidos de Joana. Sorri e vai atrelar o melhor cavalo
na carroça.
Seguem uma manhã para Vaucouleurs.
Durand vai todo encolhido de frio. Mas Joana não sente o
inverno. Não ouve o que o companheiro de jornada lhe diz. Não
vê a paisagem desolada. Só tem ouvidos para suas vozes inte-
riores. Só tem olhos para as suas visões queridas. Só tem alma
para sentir a desgraça da França.
XXIII
OUTRA V E Z EM VAUCOULEURS
Que estranha força faz Joana, a pobre aldeã, dizer estas pala-
vras decididas de sabedoria? Por que falou ela na filha do Rei
da Escócia? Por que, se mal compreendia as conversas que an-
davam espalhadas pela cidade a respeito da França e da Ingla-
terra, dos reis e dos seus capitães?
— Mas vais viajar assim com estas roupas?
João de Metz olha Joana de alto a baixo. Seria coisa de cha-
mar a atenção sair com esta menina metida num berrante ves-
tido vermelho.
— Eu me visto de homem! —decide Joana.
Despede-se de João de Metz e volta para casa.
Uma tarde Joana e Catarina estão fiando serenamente em si-
lêncio quando Roberto de Baudricourt e o Pe. João Fournier
entram na casa de Henri Leroyer. Pedem a Catarina que se re-
tire. Ela obedece.
O padre está com à sua estola. Recita as palavras latinas que
querem dizer: '
— Se és coisa ruim, afasta-te. Se és coisa boa, aproxima-te.
Em seguida o cura respinga com água-benta o rosto de Joana.
Ele sabe que se o diabo na verdade mora dentro dela, a menina
imediatamente se jogará ao chão, escabujando, em contorções
horrendas.
Mas Joana permanece serena. Roberto de Baudricourt a con-
templa, embasbacado. Foi ele que trouxe o padre. Desconfiou
que Joana estivesse possuída do demônio.
No entanto aqui se acha ela muito tranqüila, parada na frente
do cura. Seus olhos são doces, olhos de anjo e não de demônio.
Os dois homens se retiram em silêncio.
XXIV
"DEUS A P L A I N A R Á O C A M I N H O . . . "
A J O R N A D A
— Dizes que tivemos sorte? Eu te digo que foi Deus que nos
protegeu.
A jornada continua. O inverno também. Noites terríveis, com
vento gelado e cortante como uma espada de fio fino.
O grupo chega a Fierbois.
Joana apeia do cavalo. Neste lugar é que se ergue o Santuário
de S. Catarina. Aqui a santa querida de Joana recebe os pere-
grinos e faz os seus milagres. Muitos guerreiros valentes que,
tendo invocado a santa, ganharam vitórias contra os infiéis, vie-
ram depor suas armas neste santuário.
Joana olha para as paredes da capela e vê escudos, armaduras,
elmos e gládios. E os anjos lhe contam em surdina ao ouvido a
história milagrosa de cada arma.
Em Fierbois Joana assiste a três missas.
Antes de pôr-se de novo a caminho, chama um dos compa-
nheiros e dita-lhe uma carta para o Delfim. Manda dizer que,
para ir em seu auxílio, ela percorreu cento e cinqüenta léguas
a cavalo e que precisa vê-lo a todo o custo, pois tem boas no-
tícias a lhe dar.
João de Metz sela a carta e a manda a Chinon, por mãos de
um mensageiro.
Ao meio-dia o grupo torna a partir.
As nuvens que toldavam o céu desde a tarde anterior se dis-
sipam. O sol brilha alegremente sobre os campos cobertos de
neve. Os viajantes vêem nisso um bom presságio.
E aqui vai a cavalgata rumo da cidade do Delfim.
Bem na frente, Joana D'Arc segue em cima de seu cavalo, de '
cabeça erguida. Seu rosto resplandece ao sol. Não é a campone-
sinha desamparada que saía para visitar tio Henrique em Ser-
maize, montada na garupa dum burrinho triste.
Agora é a guerreira. É a Donzela das profecias. A virgem que
vai dar uma coroa ao rei e um rei à França.
XXVI
O S I N A L
O CONSELHO DOS Q U A T R O
— Acreditas em Deus?
— Mais do que tu!—responde Joana sem pestanejar.
Seguin não se dá por vencido. Pede sinais, sinais que mostrem
que ela realmente é uma enviada do Senhor.
A E S P A D A DAS CINCO C R U Z E S
A M E N S A G E M AOS INGLESES
TRAZEM a Joana a espada das cinco cruzes que agora está poli-
da e fulgura ao sol de Tours.
A notícia do milagre se espalha. A cidade se enche de entu-
siasmo. Joana é aclamada nas ruas. O povo de Tours lhe dá
duas bainhas para a arma sagrada. Uma de veludo para o uso
diário; a outra de pano de ouro para as grandes solenidades.
Mas Joana prefere guardar a espada numa bainha tosca de couro.
Trazem-lhe à hospedaria de João du Puy um padre, Irmão
Pasquerel:
— Joana, nós te trouxemos este bom padre. Hás de gostar
dele, quando o conheceres melhor.
A Donzela responde:
— O bom padre me deixa bem alegre. Já ouvi falar a seu
respeito e amanhã quero fazê-lo meu confessor.
No dia seguinte Irmão Pasquerel confessa Joana D'Arc e can-
ta a missa com a presença dela.
E desde este momento não a abandona mais.
Joana segue para Blois com sua comitiva.
No último encontro com o rei ela fez uma profecia:
— Hei de salvar Orléans e pôr os ingleses em fuga. Quando
eu estiver na cidade uma frecha me ferirá, mas não de morte.
E neste mesmo verão sereis coroado em Reims!
À mulher do Duque d'Alençon prometeu:
— Não se inquiete. Eu lhe trarei de volta o seu marido com
vida e com glória.
Agora aqui está a Donzela, cercada de seus companheiros.
João de Metz e Bertrand de Poulengy discutem animadamente
a rijeza de suas couraças. O primeiro ergue no ar o seu gládio,
para mostrar ao amigo um golpe eficaz de gume. A lâmina re-
lampagueia ao sol de Blois.
A VIDA DE JOANA D'ARC 119
Joana vê e sorri.
— Estás com medo, Raimundo? — pergunta ela ao rapaz tris-.
tonho que está a seu lado.
PARA ORLEANS!
DEUS É O S E N H O R DOS V E N T O S
A E N T R A D A EM O R L É A N S
SEXTA-EEIRA.
Joana passa o dia em Reilly. Quer partir para Orléans a todo
o transe. Os capitães a custo a detêm.
— Vamos esperar a noite, — aconselha o Bastardo.
A noite chega.
O exército retoma a marcha.
Sob um céu sem estrelas aqui vai a Donzela, com o estandarte
na mão. A seu lado cavalga o Bastardo. Os soldados marcham em
silêncio.
Aproximam-se de Orléans, na direção da Porta Borgonhesa,
que está livre.
Joana sente o corpo dolorido. A armadura é pesada e incô-
moda. Mas o seu coração, que bate de comoção ao se aproximar
da cidade sitiada, parece querer saltar-lhe do peito, romper o
ferro da couraça e voar como uma pomba para Orléans, levando
a seus habitantes a notícia de que o socorro se avizinha.
De repente o Bastardo avista um clarão confuso que sobe da
terra. Aproximando-se mais vê que ele é formado pela luz de
muitas tochas.
Um ruído indistinto, prolongado, semelhante ao uivo do ven-
to, chega aos ouvidos dos que marcham à frente do exército
salvador.
— O povo está saindo da cidade para nos encontrar!—grita
o escudeiro D'Aulon.
— É extraordinário!—comenta o Bastardo. — Essas criaturas
estavam mortas de desânimo. Parece que até os mortos voltaram
à vida.
Esporeia o cavalo. Um espião vem dizer ao comandante da
praça sitiada que nos arraiais dos ingleses anda o zunzum de
que uma Donzela que tem parte- com o diabo se aproxima de
A VIDA DE JOANA D ARC 131
A V I T Ó R I A
PARA REIMS!
CHÂLONS E REIMS C A P I T U L A M
A SAGRAÇÃO
SILÊNCIO
Não quer contrariar Joana D'Arc. Mas tem um fraco pelo primo
Filipe. Fazer as pazes com o Duque de Borgonha foi sempre o
seu sonho mais acariciado.
La Trémouille representa o pensamento da maioria da corte.
— A pastorinha pretensiosa precisa dum freio, majestade!
— diz ele, inclinando-se sobre o rei, enquanto suas bochechas
vermelhas e lustrosas tremem. — Se nos entregarmos de corpo e
alma à vaqueira, onde é que vamos parar?
A dúvida é um polvo que envolve o rei nos seus tentáculos.
O pobre Carlos VII mergulha mais fundo na poltrona estofada
de damasco. Sente-se pequenino, ao passo que vê crescer diante
de seus olhos o vulto do conselheiro.
— O que a França quer é a paz.
— Paz? — repete Carlos.
Agita-se na poltrona. Seu rosto resplandece.
Paz? Mas se ele não quis outra coisa em toda a sua vida!
— Precisamos chamar o Duque de Borgonha para o nosso
lado.. . —sussurra-lhe La Trémouille, piscando um olho.
— Sim, o primo Filipe. . .
— Sem ele Bedford ficará desnorteado.. .
La Trémouille sorri. O rei sorri, como se fosse a própria ima-
gem do conselheiro, refletida e deformada por um espelho con-
vexo.
— Vá falar com os embaixadores de Borgonha, La Trémouille.
Discuta com eles uma trégua. As condições? Sei lá! Ficam a
seu critério. Vá! Eu quero o primo Filipe do meu lado. Eu
quero o primo de Borgonha!
O conselheiro sai ao encontro da embaixada do Duque de
Borgonha. Recebe-a na sala do Conselho, de portas fechadas.
David de Brimeu, o chefe do grupo, propõe a trégua. Discutem.
O Duque de Borgonha está disposto a esquecer. A morte de
João Sem Medo? Não se fala mais nisso. As guerras? Águas pas-
sadas. Precisamos de paz. Faça-se uma trégua de quinze dias.
Mais tarde se discutirá a paz definitiva. Por exemplo, uma con-
ferência em Arras, no mês próximo, com a presença do próprio
Duque de Borgonha e dos representantes do Rei Carlos...
La Trémouille fala em condições. Sim, porque Carlos VII está
coroado, tem um exército poderoso, bons capitães e pode tomar
A VIDA DE JOANA D'ARC 173
SOMBRAS NO CAMINHO
A F U G A DE P E D R O C A U C H O N
Suspira.
— Assim quisesse Deus — continua ela — que a minha missão
estivesse cumprida e eu pudesse depor as armas e voltar para
minha casa, para junto de meus pais, para junto dos meus re-
banhos.
O Bastardo olha de soslaio para a companheira. Novamente
um pensamento rápido lhe cruza a mente: Sua missão está cum-
prida.
Chega a Carlos de Valois uma carta de Bedford.
A ESPADA QUEBRADA
O A T A Q U E DE PARIS
O I T O H O R A S da manhã.
O grande exército de Carlos de Valois se acha entre St. Denis
e Paris.
Uma luz oleosa e amarelenta inunda a paisagem. O ar é macio.
Sopra uma brisa mole. O céu está muito alto e é dum azul diluído.
Os grandes capitães cavalgam em fila única.
O Duque d'Alençon, os Marechais de Boussac e de Rais, o
Duque de Bourbon, o Conde de Vendôme, os Sires de Lavai, de
Gaucourt, dAlbret. Falam e gesticulam. Coruscan armaduras e
espadas. E uma estranha fileira de caras severas se movimenta
ao trote dos cavalos.
Longe de todos,-como se não pertencesse a esse exército, Joana
D'Arc cavalga solitária. Está sem elmo. O vento lhe revolve os
cabelos escuros.
E ela pensa.
V ã o a caminho de Paris, mas seu coração está triste. Os ge-
nerais se reúnem em conselho e não a consultam. Os favoritos
do rei conspiram contra ela. Onde está aquele entusiasmo de
soldados, capitães, aquele entusiasmo doido que venceu em Meung,
Beaugency, Jargeau, Patay?
Joana volta a cabeça. As forças se estendem pelo campo a
perder de vista. Sobem e descem colinas, desdobram-se pelos va-
les, somem-se nas florestas, parecem uma serpente cuja cabeça
são os capitães e cuja cauda se perde longe, além do horizonte.
Doze mil homens... E armas, e espadas, e bestas, e canhões e
bombardas... De que vale tudo isso se a fé morre e o entusiasmo
se apaga?
Joana olha para a sombra tênue que a acompanha. Na sombra —
ela e o cavalo se confundem num único corpo.
A marcha continua.
A VIDA DE JOANA D'ARC 191
Joana segue as forças que se retiram, A coxa lhe dói. Ela sente a
perna fria, fria, debaixo da armadura.
As estrelas cintilam contra o céu profundo.
O exército marcha. Ficaram para trás muitas carretas e muitas
escadas e muitos mantimentos.
É a derrota.
Joana chora baixinho. (Não faz mal. É noite. Ninguém v ê . . . )
Perto da Granja dos Maturins o exército faz uma pequena parada
para deitar fogo às bagagens que abandonam.
Precisam despojar-se de todo o peso, para facilitar a retirada.
Acendem-se grandes fogueiras. E no silêncio da noite Joana hor-
rorizada vê que, de mistura com os grandes fardos que os soldados
atiram para o fogo, vão também formas humanas. A Donzela com-
preende. Os franceses estão queimando os seus cadáveres.
As fogueiras crepitam. E, vendo o clarão enorme, Joana pensa
no inferno. Os soldados gritam e blasfemam. Em torno do fogo,
são como demônios.
A Donzela alça o olhar, buscando socorro no céu. Por cima
do tumulto, sob a paz das estrelas, S. Margarida e S. Catarina sor-
riem para ela.
Como por um milagre a paisagem horrível se apaga. E Joana
agora só escuta as Vozes que a animam. As Vozes que são frescas
e perfumadas como o vento da primavera.
A Donzela esquece suas feridas.
XLVI
DESPOJADA DA ARMADURA
GIEN!
GIEN!
Carlos de Valois respira fundo. Gien! O Loire batendo mole-
mente nos contrafortes do castelo... Os petiscos da cozinha
real. . . Vinhos, intrigas, anedotas, festas. . . Poltronas estofadas,
a companhia da rainha, o sorriso das castelãs, os presentes, a paz.. .
Principalmente a paz! Não precisar andar escarranchado no lom-
bo duro dum cavalo. Não correr perigo de vida. . . Não ter incô-
modos. .. A paz! Oh Deus, como sou feliz!
Carlos faz questão de revisitar todos os compartimentos do cas-
telo. Começa na adega onde o recebe um cheiro bom de vinho
velho. Até este bafio úmido de masmorra é agradável, familiar,
amigo. Aponta no alto duma pipa a cabeça dum ratão. Carlos
sorri para ele. Os ratões fazem parte da corte. Não se concebe
uma adega sem ratões. Tudo que existe em Gien é bom, logo
os ratões são bons.
Carlos sobe as escadas. Passeia por outros quartos. E é uma
alegria verdadeira sentar-se nestas cadeiras, olhar estes quadros,
mirar-se nestes espelhos.
E ainda não terminou a sua maravilhosa excursão e já o insí-
pido La Trémouille lhe vem dizer que precisamos tratar de ne,
gócios de Estado . Carlos VII faz um muxoxo de criança amuada.
Que negócios de Estado?
As bochechas do conselheiro tremem de surpresa. Que negó-
cios? O r a . . . Dinheiro para pagar as forças, novos empréstimos,
orçamentos, planos.
Na sala do Conselho, Carlos assume uma atitude mais compe-
netrada.
— Então? — pergunta cie.
— Não há dinheiro, — responde placidamente o conselheiro.
Discute-se. Opiniões. Debates. Chegam a uma conclusão: dis-
solver o exército.
A VIDA DE JOANA D'ARC 201
Os capitães voltam cada qual para a sua casa, para as suas
terras.
O Duque d'Alençon vai ao encontro da esposa, em Beâumont-
sur-Oise.
Joana despede-se com tristeza de seu "belo duque". Dói-lhe ver
partir o fiel companheiro d'armas.
Fala-se com insistência em que a rainha vem ao encontro do
rei.
A Donzela vai esperá-la em Selles-en-Berry, de onde segue
para Bourges.
Nesta última cidade se hospeda na casa de Margarida La To;i-
roulde.
Metida agora em roupas de mulher, Joana sempre que se vê
refletida num espelho não pode evitar pequeno sobressalto. Pa-
rece que o cristal está mentindo e que aquela moça de saia e touca
não é e l a . . .
O marido de Margarida La Touroulde é Régnier de Bouligny,
general das Finanças. Um homem importante em Bourges. Sua
casa vive cheia de doutores e conselheiros e comerciantes e fun-
cionários.
Joana e Margarida fazem boa amizade. A dona da casa não se
cansa de olhar para a hóspede. Entorta a cabeça, cruza os braços
e sorri, sem tirar os olhos do rosto da Donzela.
Então — se pergunta ela interiormente — esta rapariguinha de
ar tristonho e voz mansa é a guerreira, a que vestia armadura e
sabia manejar a lança e manter-se em cima dum cavalo a todo o
galope? É esta a Donzela que o Senhor enviou para libertar a
França?
O coração de Margarida se enche de contentamento e de or-
gulho. E sai a espalhar por toda Bourges—nas casas das ami-
gas, à saída da igreja — a grande notícia.
— Olhem — diz invariavelmente — sabem quem está morando
na minha casa? Imaginem s ó . . . Joana D'Arc, a Donzela de
Orléans.
As amigas fazem cara de incredulidade. E Margarida, de mãos
nos quadris, sacudindo a cabeça, confirma:
— Sim, senhoras! Joana D'Arc!
Os dias passam. Joana fia. Fia e ora. Quando o silêncio é
maior na varanda da casa do general das Finanças, a Donzela
202 ERICO VERÍSSIMO
O EXÉRCITO INVISÍVEL
DIVERTISSEMENTS...
— Outro?
— Paris.
Joana solta esta palavra num cicio.
— Paris — repete D'Aulon quase sem sentir.
Os dias passam.
Os recursos solicitados não chegam. Os soldados se inquietam.
Os capitães andam taciturnos. Joana sofre.
Novembro avança e o frio aumenta.
Chegam carretas de Auvergne e Clermont trazendo o auxílio
que D'Albret e Joana lhes pediram há alguns dias atrás. E de
mistura com pólvora, canhões e lanças, vem uma espada de pre-
sente para a Donzela.
A 24, mal-armado e mal pago, desalentado e frouxo, o exér-
cito de Carlos VII chega às proximidades de La Charité.
D'Albret e Joana escrevem uma carta a Bourges pedindo re-
cursos. O tempo rola e o dinheiro pedido não vem.
La Charité é cercada por um exército já desde o início derrotado.
Joana, em cima de seu cavalo, percorre as linhas de frente. A
sua voz fina soa inutilmente dentro do grande silêncio de desa-
lento em que submergem as tropas. E a Donzela parece um anjo
tentando reanimar uma legião de mortos.
A guarnição de La Charité é brava e tenaz.
O cerco se estabelece nas piores condições para os atacantes.
Dentro de pouco tempo Perrinet Gressart, comandante da praça
sitiada, faz uma sortida e levanta o cerco.
E aqui marcha de volta o exército vencido.
O inverno manda no vento a sua primeira mensagem.
E a- paisagem vai ficando gris como a alma dos homens.
Joana cavalga ao lado de D'Albret que lhe diz:
— A culpa não é nossa. Sem munição e sem mantimentos é
impossível fazer um cerco em regra. O que foi possível fazer,
se fez.
A Donzela sorri tristemente. Ela agora compreende. Quise-
ram desviá-la do caminho de Paris. Deixaram-na atacar La Charité
para lhe dar um entretimento. Um brinquedo...
E a primeira vez que avista o rei e o seu inseparável La Tré-
mouille, lhes diz sem prelúdio:
— Se queriam distrair a minha atenção não era preciso fazer
isso com o sacrifício de vidas. . .
212 ERICO VERÍSSIMO
D E NOVO a primavera.
Ao erguer-se uma manhã, Joana a encontra com surpresa na
andorinha pousada no ramo duma árvore toda cheia de brotos
verdes. O vento embala o perfume das flores. Grandes nuvens
bóiam no céu como caravelas.
E então a Donzela fica a recordar o longo inverno de inativi-
dade. Notícias de pequenas escaramuças. O vento uivando. Os
serões intermináveis. A neve. Noites agitadas. Sonhos incom-
preensíveis: uma cidade — parecia Paris — dançando diante dela,
dançando... Ela estendia a mão e a cidade fugia, fugia, punha-se
a correr. E Joana queria também correr mas tinha nos pés sa-
patos de ferro, correntes que a prendiam à terra. E o inverno con-
tinuava. .. Os pobres vinham bater-lhe à porta e tudo que tinha
ela lhes dava de coração alegre. Sempre que se via a sós, orava.
E era um consolo ver que suas santas não a abandonavam. Di-
ziam-lhe palavras amigas. E quando a Donzela lhes pedia instru-
ções, fazia-se a seu redor um silêncio de gelar o sangue.
Joana encontra-se em Sully com o rei. Esta é a terra de La
Trémouille.
Março. Aproxima-se a Páscoa e o fim da trégua com o Du-
que de Borgonha.
No castelo do gordo conselheiro, onde estão hospedados Carlos
VII e a Donzela, toda a gente sente o influxo da estação nova.
A luz jorra pelas grandes janelas de vidros coloridos. Os criados
tagarelam animadamente. O rei respira fundo e não se cansa de
elogiar os móveis, os tapetes e os quadros do castelo de La Tré-
mouille.
Combinam-se grandes partidas de caças ao javali. E os bos-
ques dos arredores de Sully se enchem do som agudo das trom-
betas, do tropel dos cavalos e dos gritos dos caçadores.
220 ERICO VERÍSSIMO
O M I L A G R E DE L A G N Y
QUEM ESCREVE É D E U S . . .
O ÚLTIMO COMBATE
PRISIONEIRA
VENDIDA
OS DOIS A C O R R E N T A D O S
INTERLÚDIO
E N T R A O ano de 1431.
Nas cidades borgonhesas, principalmente em Orléans, Tours,
Blois e Compiègne o povo não esquece a Donzela. Fazem-se gran-
des reuniões nas praças públicas em favor de Joana D'Arc. E
mandam-se mensageiros ao rei, pedindo-lhe que faça alguma
coisa em favor da moça que lhe pôs a coroa na cabeça.
Carlos VII permanece no seu eterno feriado, de castelo em cas-
telo, muito preocupado com os vinhos e com as caçadas, E o
caso da menina Joana a quem ele deve o reino lhe parece uma
coisa tão remota como as proezas do Rei Artur ou como os pós
de Merlin.
Os cortesãos tudo fazem para lhe apagar a mais leve sombra
de remorso. Enchem-lhe os ouvidos... S. Majestade não se deve
preocupar... Que queimem e esquartejem a Donzela! Que im-
porta a um Valois de sangue azul o que possa acontecer a uma
rapariga rude da Lorena?
Carlos VII procura esquecer... E bebe, e passeia, e vai caçar
javalis, e se refresca à sombra protetora do gordo La Trémouille.
Mas de noite, na quietude sombria de seu quarto, quando a
rainha já dorme e a lenha crepita na lareira, o rei pensa. As
palavras proféticas de Joana lhe soam aos ouvidos. Sim, ela veio
de Deus. Porque ela sabia, era senhora dum segredo que só Deus
podia conhecer.. .
E com os mínimos detalhes acodem à memória de Carlos de
Valois todas as cenas daquela noite em que Joana D'Arc, vestida
como um pajem, entrou resoluta no grande salão do Castelo de
Chinon. . . E foi direito a ele e o reconheceu, disfarçado como
estava, no meio de outros cortesãos... E o levou para um canto,
dizendo-lhe ao ouvido o espantoso segredo...
O rei se inquieta. O rei perde o sono. E conjetura. Faz planos.
Quando o dia raiar, mandará emissários a Bedford. . . Dará ordens
A VIDA DE JOANA D'ARC 255
O PRIMEIRO INTERROGATÓRIO
COMO U M POBRE A L V O C R I V A D O D E F R E C H A S . . .
>
A SAVELHA
Joana responde:
— Eu dizia simplesmente Avancem afoitamente contra os
ingleses! E ia na frente.
O PROCESSO
A ABJURAÇÃO
JOANA desperta. Mas o seu corpo está tão dolorido, a sua ca-
beça tão povoada de horrores, que ela tem a impressão de que
os pesadelos do sono da noite continuam na vigília da manhã.
João Beaupère entra na prisão. Joana reconhece nele o homem
que a interrogou muitas vezes nas sessões, perante os juízes.
Beaupère fala com brandura:
— Se és boa cristã, deves dizer que submetes todos os teus
feitos e ditos à nossa Santa Madre Igreja e especialmente aos
juízes eclesiásticos.
Joana sacode a cabeça mecanicamente, numa afirmativa incons-
ciente.
Entram os guardas para a levar. Joana se deixa ir ao abandono.
Um homem que está à porta da prisão, ao ver a Donzela pas-
sar, se aproxima dela e diz:
— Joana, acredita no que te digo. A salvação depende de ti.
Veste as roupas do teu sexo e faze o que se resolver. Do con-
trário estarás em perigo de morte. Se fazes o que te digo, só te
acontecerão boas coisas. Serás posta nas mãos da Igreja.
Joana mal se pode manter em pé. Os guardas a carregam nos
braços até a carreta que os espera à porta do castelo.
Os habitantes de Ruão se apinham nas ruas para ver passar
a Donzela na carreta dos condenados, cercada por uma escolta.
Gritos. Vaias.
Joana, deitada no fundo do veículo, só tem consciência dos
sacolejos das rodas sobre o calçamento desigual. Não consegue
coordenar idéias. Os pensamentos se confundem. Ela pensa em
morrer. Mas entreabre os olhos, vê o céu claro e se reanima um
pouco.
A carreta pára. Os guardas erguem a Donzela.
Joana olha.
282 ERICO VERÍSSIMO
Joana sofre. Dói-lhe ouvir dizer mal de seu rei. Sabe que Car-
los VII nada fez em seu favor. Sabe que os armagnacs a abando-
naram e esqueceram. Mas no seu coração não há lugar para
ódios.
Elas me abandonaram.
— Assinaste a cédula porque tiveste medo da fogueira. Medo,
medo, medo!
— Eu queria viver!
— Tu não pertences ao mundo, tu pertences a Deus!
— Minha França precisa de mim.
— Tua missão está cumprida.
Joana se ergue, febril. O rosto lhe arde. Os lábios estão secos
e gretados. Ela caminha na prisão dum lado para outro. E a voz
a persegue:
— Perderás o amor das tuas santas.
Joana esconde o rosto nas mãos.
— Se D'Alençon, d'Aulon e os outros teus velhos companheiros
d'armas te vissem fraquejar?
Joana estaca. Torna a olhar para as roupas de homem que
estão em cima do catre. '
A voz interior continua:
— Ainda é tempo. Veste esta roupa. Sê fiel à tua missão
até o fim. Pensas que Deus vai te abandonar?
Joana corre até a porta e pelas grades da abertura olha para
fora. Longe os guardas jogam, blasfemam e bebem.
A Donzela se volta e num instante tira as roupas de mulher e
mete-se nas roupas de pajem.
No dia seguinte a notícia se espalha pelo castelo, pela cidade,
pelos campos. Joana tomou a vestir hábito de homem!
Os doutores se escandalizam. Cauchon fica enfurecido. War-
wick sente renascer a esperança: "Eis o pretexto — pensa, sor-
ridente. O castelo fervilha de comentários.
Joana tornou a vestir hábito de homem!
— É uma relapsa! — sentenciam os assessores.
— Uma relapsa! — concorda Cauchon.
Reúnem-se os doutores. Confabulam. Descem à prisão. In-
terrogam a Donzela.
— Por que tornaste a vestir roupas masculinas?
Joana está tranqüila. Agora nada mais importa. Ela irá impá-
vida até o fim.
— Porque o hábito de homem me agrada mais.
Sorri. E o seu sorriso no rosto pálido e machucado é tão gro-
tesco e assustador que os doutores estremecem.
A VIDA DE JOANA D'ARC 291
Uma idéia lhe fere a mente. Joana corre para a porta e co-
meça a bater nela com os punhos.
Um guarda aparece.
— Traga-me um padre! Quero um confessor!
Dão-lhe um confessor.
Na prisão dois vultos negros conversam na sombra. De pé,
muito alto, o padre. E ajoelhado ao lado dele, o pajem de roupas
negras.
Um outro irmão vem administrar a Joana o sacramento da pe-
nitência. Trazem o corpo de Cristo. E no momento de engulir a
hóstia, Joana num segundo se lembra das mãos pálidas e trê-
mulas do cura de Domrémy, naqueles domingos de comunhão...
— Crês que este seja o corpo de Cristo? — pergunta a voz
profunda do padre.
— Sim — cicia Joana. — E só Ele me pode libertar.
As lágrimas escorrem pelo rosto branco da prisioneira.
O Pe. Pedro Maurício entra na prisão. E enquanto Joana faz
suas orações, ele se mantém silencioso a um canto.
— Padre — pergunta ela débilmente — onde estarei eu esta
noite?
— Não tens esperanças no Senhor? — pergunta Pedro Mau-
rício.
Joana se ergue, de mãos postas. Seu rosto resplandece. E ela
diz:
— Hoje estarei com Jesus no paraíso!
Maurício-baixa a cabeça e sai em silêncio da prisão, com a alma
em agonia.
LXV
A FOGUEIRA
Anoitece.
A praça do Mercado Velho está deserta. Três homens que
trazem nas mãos lanternas coloridas, vêm por ordem do Sr.
bailio recolher os restos da condenada. Depois da execução o
carrasco deitou-lhes óleo, enxofre e carvão, para reduzi-los a
cinzas.
O Sr. bailio é um homem previdente. Há muita gente su-
persticiosa na Cidade de Ruão. Bruxas. Encantadores, Mestres
em magia negra.
Alguém pode vir na quietude da noite buscar as cinzas de
Joana D ' A r c para fabricar feitiço. . .
A VIDA DE JOANA D'ARC 303