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Daniel Henriques Lourenço

VOEGELIN E O DIREITO

Trabalho de conclusão de curso


apresentado à Faculdade de Direito da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro,
como requisito parcial para obtenção do
título de Bacharel em Direito.

Orientador: Professor Doutor Mauricio Jorge Pereira da Mota

RIO DE JANEIRO

2009
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Daniel Henriques Lourenço

Voegelin e o Direito

Banca Examinadora do trabalho de conclusão de curso

Data de aprovação: ____/ ____/ _____

______________________________________________
Professor Doutor Mauricio Jorge Pereira da Mota (UERJ)
Orientador

________________________________________
Professor Mestre Daniel Nunes Pêcego (UERJ)
Examinador

________________________________________
Professor Fabiano Soares Gomes (UERJ)
Examinador
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RESUMO

No presente trabalho, pretendeu-se apresentar a teoria do direito do filósofo Eric


Voegelin. Analisou-se sobretudo sua obra “A Natureza do Direito”, ainda não
traduzida para o português. A abordagem usada foi a de resumir esta obra, bem
como tecer comentários sobre pontos que mereciam ulterior explanação. Além
disso, pretendeu-se, o quanto possível, comparar com o direito brasileiro
conclusões extraídas da análise da ordem jurídico-social de países europeus e
sobretudo dos Estados Unidos da América. Como adendo, comparou-se as
teorias jurídicas de Voegelin e Kelsen, que travaram debates em torno do tema.
Palavras-chave: Filosofia do Direito – Voegelin – Platão – Aristóteles – Kelsen.

ABSTRACT

In the present essay, it was intended to introduce the law theory of philosopher
Eric Voegelin. The work chiefly analyzed was his “The Nature of the Law”, not yet
translated into Portuguese. The approach used was that of condensing the work,
as well as commentate points that deserved ulterior explanations. Besides, it was
intended, as much as it was possible, to compare conclusions withdrew from the
analysis of the social-juridical orders of European countries and mostly of the
United States of the America. In addendum, the law theories of both Voegelin
and Kelsen, who had debates over the subject, were compared. Keywords:
Philosophy of Law – Voegelin – Plato – Aristotle – Kelsen.
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Índice
I Introdução ............................................................................................. 6
I.1 Essência do direito.......................................................................... 6
II Substância e existência.......................................................................... 9
III O Problema Zenônico ...................................................................... 11
IV A Hierarquia de Leis Válidas, O Processo Legislativo e A Ordem da
Sociedade como um Todo.......................................................................... 15
V O Direito como a Substância da Ordem. O Processo Legislatório como
Instrumento para Assegurar a Substância................................................... 18
VI Construções Teoréticas da Relação. ................................................. 21
VII Estrutura, Continuidade e Identidade do Complexo da Ordem......... 25
VIII A Luta de Aristóteles com o Problema da Identidade....................... 28
IX As Questões Tangentes do Direito Constitucuional.......................... 30
X A Regra e a Duração da Ordem........................................................... 33
XI O Dever no Sentido Ontológico. ...................................................... 36
XII A Regra enquanto Norma. ............................................................... 37
XIII O Caráter Público da Norma Legal. ................................................. 39
XIV Os Dois Tipos de Projetos................................................................ 41
XV Os Processos Legislatórios Empírico e Filosófico............................ 43
XVI A Sociedade como uma Entidade Auto-Organizadora. .................... 46
XVII A Representação da Sociedade. .................................................... 48
XVIII O Cálculo do Erro......................................................................... 49
XIX O Uso da Força. ............................................................................... 51
XX Os Componentes de Validade. ......................................................... 54
XXI A Ordem Jurídica e a Sociedade Histórica Concreta. ....................... 56
XXII Conclusão..................................................................................... 59
XXIII Adendo: Voegelin e Kelsen .......................................................... 60
XXIV Referências Bibliográficas............................................................ 66
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“Apesar de enfronhado na legislação, não tinha uma idéia das suas


origens e dos seus fins, não a ligava à vida total da sociedade.”

Lima Barreto, Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá.


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I Introdução

Este trabalho de conclusão do curso de Direito pretende esmiuçar a teoria do


direito de um dos mais capazes filósofos políticos do século XX, o alemão radicado nos
Estados Unidos da América Eric Voegelin. Para tanto, além de resumir o livro que ele
dedicou ao direito durante sua estadia na Universidade de Louisiana, onde, por ocasião
do lançamento de “The Nature of the Law”, lecionava ciência do direito, compararemos
como um adendo sua teoria sobre o direito com a de Hans Kelsen, com quem manteve
debates profícuos.
Voegelin inicia a análise da natureza do direito a partir do senso comum que a
palavra traz, bem como a partir da linguagem utilizada diariamente pelos advogados e
outros profissionais do direito e também da linguagem do homem comum a respeito do
direito.
Voegelin, entretanto, compartilha seu espanto sobre o fato de que tanto
Aristóteles quanto Platão, os dois filósofos gregos a quem ele muito considera, não
tinham uma filosofia do direito.1 Pergunta-se ele se o direito não teria um status
ontológico, e sendo assim, indaga das esperanças históricas de sistemas jurídicos que
fundamentavam-se na idéia de um direito com conteúdo ontológico.

I.1 Essência do direito

Voegelin nota que embora nos refiramos ao direito no singular, existe uma
pluralidade de ordenamentos jurídicos, o norte-americano, o brasileiro, o francês, etc. O
conteúdo dos diferentes ordenamentos jurídicos não é igual. Quando o advogado se refere
ao “direito”, provavelmente ele tem em mente a ordem legal concreta na qual está

1
À objeção possível de que Aristóteles desenvolveu toda uma teoria sobre a virtude da justiça no livro V da
Ética a Nicômaco, diremos que o empreendimento de Aristóteles foi exatamente isso: uma teoria sobre a
virtude da justiça, e não uma teoria sobre o direito propriamente. Já adiantando o tema do trabalho, a
filosofia do direito que Voegelin procura deve considerar o ordenamento jurídico positivo, bem como a
história do direito, o processo de lege ferenda, e ainda, talvez como ponto mais importante, a ordem
simbólica que embasa toda a construção político-jurídica da sociedade.
Não obstante, os trabalhos de Platão e Aristóteles tiveram excelente contribuição para a filosofia
do direito. Neste sentido, conferir o capítulo VI do trabalho.
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interessado profissionalmente e não o “direito” que enxergamos na pluralidade dos


ordenamentos jurídicos, o qual o advogado chamaria de metafísico.
A observação do modo com que a palavra direito é empregada será o ponto inicial
de análise do problema de que o direito de uma determinada sociedade traz consigo a
aspiração a uma “lei maior”.
No direito do advogado profissional toda lei é “essencial” enquanto possui
relação com o caso disputado. O critério para distinção entre normas essencias e não
essenciais é a qualidade “validade.” Portanto, ao menos num primeiro olhar, o “direito”
deve ser abordado sob a luz da categoria validade ao invés da categoria essência. Não
obstante, toda análise é uma busca pela essência, de modo que a análise terá atingido seu
objetivo tão logo a experiência pré-analítica do fenômeno legal seja dissolvida em
conceitos que se refiram a um essência. Se a análise começa pelo problema da validade, a
observação inicial está incorreta, não a análise.
O direito enquanto um agregado de leis válidas não é algo que tenha uma
natureza. Natureza é um conceito aristotélico – referente ao pensador grego clássico
Aristóteles – que significa um princípio intrínseco de movimento, aquilo que, em outras
palavras, faz com que a coisa seja o que ela é. Seria um disparate supor que nossa
experiência pré-analítica do direito seja uma ilusão, ainda que crer que essa experiência
seja algo com um caráter ontológico seja uma ilusão. Com certeza o direito é alguma
coisa, ainda que fique provado ser apenas um fragmento de uma entidade mais complexa.
As dificuldades apresentadas portanto não apelam para o fracasso de nossa análise, mas,
ao contrário, são um incentivo desde que bem compreendidas.
Ao ponto que chegamos, a tentativa de encontrar a natureza do direito
comparando os diversos ordenamentos jurídicos existentes, com a esperança de encontrar
a essência num grupo que se repete, deve ser abandonada como um nonsense. Ainda que
tal grupo existisse, não teria valor cognitivo, pois a validade de cada norma legal na
ordem concreta é de algum modo da “essência da lei.” Ou seja, não é analisando o todo
“ordenamento jurídico” que encontraremos a essência de lei, mas por via de cada lei em
particular considerada como parte desse todo, e portanto dotada de validade, é que
deveremos encontrar a essência do direito. Cabe aqui fazer a ressalva de que a essência
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do direito não deverá ser compreendida como a essência biológica, posto que o direito
tem uma estrutura ontológica distinta, sendo antes um ser abstrato do que um ser real.
9

II Substância e existência

Não vamos atrás de uma definição nesse momento, pois definições chegam ao fim
da análise, não no começo. O que nos interessa agora é a linguagem do dia-a-dia, que não
sofreu ainda dos refinamentos analíticos, a linguagem em que os termos ainda têm
sentido. Apenas através da linguagem cotidiana dos advogados podemos encontrar um
guia para a solução de nossos problemas.
Na linguagem cotidiana, dizemos que uma lei aprovada conforme o procedimento
previsto na Constituição é válida. Antes de terem sido aprovadas, não eram válidas; se
estão em conflito com estatutos anteriores, estes serão inválidos; se uma norma posterior
entrar em conflito com a lei presente, esta se tornará inválida. Lex posterior derogat
priori.
A ordem legal, consistindo nestas leis válidas, parece ter uma dimensão temporal;
parece ser uma entidade, no cômputo geral, que existe no tempo. O elemento de validade
que se provou um obstáculo no início de nossa análise para desvelar a essência do direito
talvez possa ser determinante em esclarecer seu modo de existência.
Devemos partir da presunção de que as ordens jurídicas realmente existem. Existe
uma ida e vinda de leis válidas, ou seja, as leis ganham e perdem validade continuamente.
As ordens jurídicas mudam, porém não mudam todas suas partes de uma só vez;
permanece, entre uma e outra mudança, um corpo imutável de leis razoavelmente grande
de maneira que a identidade da ordem é preservada. A ordem jurídica do momento não dá
lugar à outra, mas “muda.” O exemplo de Voegelin para demonstrar a permanência de
uma coisa face às mudanças por que passa é a de uma pedra que é erodida pelo vento e
pela chuva mas que reconhecemos como a mesma pedra se as mudanças forem devagar o
bastante. No entanto, diz ele, se a pedra for atingida por um impacto súbito, de modo que
seja quebrada em várias partes, tenderemos a nos referir a cada uma das partes como
pedras em separado, ainda que nos lembremos de sua conexão com a pedra anterior. O
caso do direito, diz Voegelin, é similar.
Não podemos, entretanto, distinguir entre leis essenciais e não-essencias, posto
que, se uma lei pertence ao ordenamento jurídico, e portanto tem validade, ela é, como já
dissemos, “essencial.” Cabe, entretanto, fazer a pergunta: O que acontece com o
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ordenamento jurídico quando uma das leis que o compõe é invalidado por uma lei
posterior? Ele continua sendo o mesmo ordenamento de antes? A resposta é inevitável: se
identificamos o ordenamento jurídico como o conjunto de de normas válidas, então todo
e qualquer ordenamento que difira no que tange às partes que o compõe deve ser
considerado um indivíduo distinto da espécie “ordenamento jurídico.” A todo momento
que o Congresso aprova uma lei, o resultado será um novo ordenamento jurídico.
Nenhum advogado aceitará esse veredicto como definitivo. Ele insistirá em que o
direito pode mudar com a inserção de uma nova lei, porém o ordenamento jurídico é
preservado mesmo pela entrada e saída de várias leis. Em face dessa insistência,
entretanto, o filósofo também terá que ser insistente. O veredicto, de fato, é definitivo,
porque é analiticamente necessário.
O ordenamento jurídico que consiste numa sucessão de conjuntos de leis válidas
deverá conter um fator que ainda não descobrimos.
Esse fator ausente é óbvio: uma série de conjuntos é uma mesma ordem jurídica
se os elementos da série são criados sucessivamente por um procedimento constante – no
caso estudado por Voegelin, o procedimento previsto na Constituição dos Estados Unidos
da América, e no nosso, o procedimento previsto na Constituição Brasileira de 1988.
Assim e neste sentido, o ordenamento jurídico é composto por leis válidas e não válidas;
possui um estrutura temporal clara do presente onde está a validade, com uma dimensão
passada de leis que foram válidas e uma dimensão futura de leis que podem ser válidas,
sobretudo as que estão em processo de lege ferenda.
Resta claro, portanto, que a presunção inicial de que o direito é um conjunto de
leis válidas é muito estreito à luz das presentes reflexões. Uma filosofia do direito,
assevera Voegelin, se pretende tornar claros os significados contidos no conhecimento
pré-analítico do direito, não deve se restringir a uma teoria do direito positivo, isto é, ao
direito válido em qualquer momento presente do ordenamento jurídico. O conhecimento
pré-analítico e a linguagem dos advogados abrange áreas para além do divisor de águas
do direito positivo, áreas a que poderíamos nos referir como a história do direito e o
processo de lege ferenda.
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III O Problema Zenônico

O problema a que Voegelin faz menção no título, como ele próprio diz, é bastante
complexo. Procuraremos explicá-lo da maneira mais clara possível. Antes, porém,
Voegelin lembra, é necessário analisar outras questões próximas. Elas revelarão que o
procedimento constante trazido pela Constituição, entendido como a conexão entre os
conjuntos de normas, não soluciona o problema do ordenamento jurídico como uma
entidade identificável e existente no tempo.
As metáforas que traduzem o direito como um curso de leis inválidas reduzindo a
validade a uma qualidade transitória não são radicais o bastante para dar a dimensão do
direito como ordem jurídica válida. Pois a ordem jurídica não consiste apenas das normas
genéricas estatuídas em leis; ela consiste também, e sobretudo, de decisões judiciais.
Cabe aqui fazer uma consideração sobre a afirmação de Voegelin. Na época em que foi
escrita a obra, esta última afirmativa não seria admitida sem reservas pelos brasileiros, já
que os tribunais brasileiros não consideravam a jurisprudência como uma fonte muito
importante do direito e procuravam apenas, bem ‘kelseanamente’ – se nos é permitido
usar o termo – subsumir o caso concreto ao tipo legal estabelecido na norma jurídica que
o descrevia como hipótese, sendo a atuação do juiz uma aplicação cega da lei ao caso que
lhe fora apresentado; o juiz de então estava mais próximo de ser a ‘bouche de la loi’,
como queria o iluminista Montesquieu, do que o juiz ativista – com todos os problemas
que tal atitude encerra – propugnado por teorias pós-positivistas e, sob certo aspecto,
naturalistas.
Voegelin lembra que já que a decisão do tribunal é o momento em que o direito se
torna válido para o caso concreto e que existe uma aura de incerteza em toda lide séria,
devemos admitir que nunca conhecemos realmente qual é o grupo de normas válidas
enquanto o tribunal não tiver proferido sua decisão no caso concreto. Uma vez que o
tribunal haja chegado à sua decisão no caso concreto, tendo portanto o grupo de normas
válidas se tornado perfeito com a decisão, este grupo pertence já ao passado. Se a
validade é da “essência do direito,” e se cada grupo de normas da série chamada
ordenamento jurídico pertence ou ao passado em que não é mais válida ou ao futuro em
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que ainda não se tornou válida no caso concreto decidido, então o direito parece ter
desaparecido do reino dos existentes.
O resultado é paradóxico como o paradoxo de Zenão. Será bom recordar este
paradoxo para que consigamos deixar o novo impasse. É impossível para o corredor
alcançar o objetivo porque ele tem que passar por uma infinidade de pontos. A ilustração
famosa do paradoxo é a corrida entre Aquiles e a tartaruga. Atrás da tartaruga, Aquiles
jamis conseguiria alcançá-la, pois primeiro ele deve alcançar o ponto em que a tartaruga
iniciou; quando houver alcançado esse ponto, então ele precisará alcançar o ponto em que
a tartaruga está agora; e daí em diante ad infinitum.
Este é um resultado infeliz, pois a análise filosófica tem o objetivo de tornar
explícito aquilo que encontramos no saber cotidiano. Aristóteles soluciona o paradoxo de
Zenão nos seguintes termos.
O segundo (paradoxo)2 é chamado “Aquiles”, e afirma que um corredor mais lento
nunca será alcançado pelo corredor mais veloz, porque o que está atrás tem que primeiro
alcançar o ponto no qual o que está na frente começou, de maneira que o mais lento
sempre ficaria na frente (...). Vimos que o argumento leva à conclusão de que o corredor
mais lento não é alcançado, (...) a conclusão de que é impossível alcançar um limite é
resultado de se dividir a distância de certa maneira. No entanto, o último argumento
inclui, em seu relato, a característica adicional de que nem aquilo que é a coisa mais
veloz do mundo pode sobrepujar a coisa mais lenta do mundo. A solução, portanto, deve
ser a mesma em ambos os casos. É falsa a afirmação de que quem está na frente não pode
ser alcançado. Ele não é alcançado enquanto continua na frente, mas ele é alcançado se
Zenão admitir que o objeto movente pode percorrer uma distância finita. (Aristóteles,
Physique, VI, 9)
Segundo Aristóteles, Zenão erra porque não considera a hipótese de que há
infinitos instantes em uma duração finita. Escreve Aristóteles ainda:
Assim, mesmo sendo impossível num tempo finito entrar em contato com coisas que são
infinitas em quantidade, é possível fazer isso com coisas que são infinitamente divisíveis,
já que o tempo também é infinito dessa maneira. Portanto, a conclusão é que leva
tempo infinito, e não finito, para cobrir uma distância infinita, e leva um número infinito

2
Parênteses em negrito acrescentado por mim.
13

de agoras, e não um número finito, para se entrar em contato com um número infinito de
coisas (Aristóteles, obra citada, VI, 2).
Aristóteles quer explicar que até Aquiles chegar ao ponto onde a tartaruga se
encontra, à sua frente, não é necessário que a tartaruga já tenha andado alguma distância,
porque o tempo, embora possa ser concebido como infinitamente divisível, o “agora”,
que consiste justamente na divisão do tempo, não o é, já que ele é o término comum do
passado e do futuro, e se for dividido deixará de ser “agora”, parte dele será passado e
parte será futuro.3 Pode ser que a tartaruga não tenha se movido e Aquiles já esteja no
mesmo ponto que ela. A tartaruga pode, no máximo, percorrer uma distância finita.4
Entretanto a solução dada por Aristóteles não serve para o estudo da ordem
jurídica pois esta não possui a dimensão temporal. Voegelin continua a exposição
confessando que presumira que a ordem jurídica fosse um conjunto de normas válidas e
então expandiu o significado para o de uma série desses conjuntos ligados pelo
procedimento constitucional. Dado que essas presunções levaram a um resultado
paradoxo, mister é concluir, de acordo com ele, que ou a ordem jurídica não é de modo
algum um conjunto de normas válidas ou as palavras “normas” e “validade” contêm
significados que escaparam.
Nenhuma teoria do direito pode ser construída sem esbarrar no paradoxo de
Zenão se essa teoria for baseada na presunção de que a ordem jurídica é um conjunto de

3
Ver explicação sobre o conceito de “agora” nos Comentários de Tomás de Aquino à Física de Aristóteles.
Conferir Livro VI, II, 3.
4
Se a explicação de Aristóteles ainda parecer complicada, a matemática pode ajudar na solução do
paradoxo.

Os infinitos intervalos de tempo descritos no paradoxo formam uma progressão geométrica e sua soma
converge para um valor finito. A soma dos infinitos elementos de uma P. G. infinita não é infinita.

Aquiles, para alcançar a tartaruga, deverá correr a distância S = 100 + 10 + 1 + 1/10 + 1/100 + ...

Observe que S é a soma dos termos de uma PG infinita decrescente: a1 = 100, a razão q = 1/10.

Daí, vem que a soma é S = a1(qn - 1) / (q - 1) , mas, com n tendendo a infinito. Dizemos, então, que o limite
da soma S, quando n tende a infinito, é S = a1 / (1 - q), pois como q = 1/10 e n tende a infinito, vem que q n
tende a zero.

Assim, S = a1 / (1 - q) = 100 / (1 - 1/10) = 100 / (9 / 10) = 1000 / 9 = 111,1111 ...

Essa é a distância que Aquiles terá que percorrer para alcançar a tartaruga.
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normas válidas e nada mais. A dificuldade nasce do fato de que o significado das normas
legais não possui dimensão temporal. Os significados podem se referir a objetos, eventos
ou ações no tempo, mas eles mesmos não existem no tempo. A validade de uma regra,
seu caráter normativo, é parte de seu significado, mas não confere status ontológico à
regra. Uma construção teórica que se baseia no caráter normativo das regras está preso ao
caráter “estático” de seu significado e não pode abrir caminho pela continuidade da
existência do tempo, que é justamente a saída encontrada por Aristóteles, como
explicamos.
Até agora, portanto, o resultado é negativo. Voegelin, entretanto, faz a defesa de
sua análise afirmando que a pletora de teorias legais e variedade de posições a que
assistimos é causada pela falta de disposição de submeter a análise as verdades parciais
que são encontradas em grande número na experiência pré-analítica do direito.
À luz dessas reflexões, Voegelin explica ser necessário eliminar uma linha de
construção teórica. Pergunta ele se a existência da ordem jurídica no tempo, que não se
encontra no grupo ou na série de grupos de regras, não poderia ser derivada do
procedimento constitucional? Reconhecedo que a idéia é sugestiva, Voegelin a afasta por
mostrar que o procedimento constante fornecido pela Constituição deve de igual modo
ser descrito em termos de leis válidas. Uma constituição no sentido material significa um
grupo de regras referentes à organização, jurisdição e procedimento dos órgãos supremos
de governo dentro da sociedade. De novo nos vemos frente a frente com um grupo de
regras. E no que concerne à existência da ordem jurídica no tempo, nada se ganha com a
adição do grupo de regras constitucionais aos grupos de normas criminais ou cíveis. O
fato de de que um reino de significados não tem dimensão temporal não é abolido pelo
conteúdo específico de um grupo de regras. A validade atemporal da regra não adquire
existência temporal apenas porque o conteúdo da regra diz respeito a um procedimento
que deve obedecer a um determinado prazo. Sendo assim, a dimensão temporal da ordem
jurídica não pode ser dada movendo-se para cima ou para baixo na escada hierárquica dos
sub-grupos de normas ligados por regras de procedimento. Voegelin conclui o raciocínio
dizendo que nenhuma expansão da teoria jurídica para abarcar uma hierarquia de regras
ligadas pelo procedimento pode evitar o paradoxo de Zenão.
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IV A Hierarquia de Leis Válidas, O Processo Legislativo e A Ordem da


Sociedade como um Todo.

Os fenômenos que se mostraram insuficientes como base para uma construção


teorética devem ser suplementados agora com fenômenos contextuais que apareceram
mais de uma vez à margem da análise mas foram então descartados no interesse da sua
condução mais metódica.
Já notamos que quando um advogado fala do “direito,” ele não se refere
necessariamente ao direito individualizado dentro da pluralidade de ordenamentos
jurídicos, mas ao invés ao direito concreto pelo qual se interessa profissionalmente. O
direito é para o advogado o direito de seu país, em todos os níveis hierárquicos. Neste
sentido, falamos de um direito inglês, britânico, brasileiro ou francês como a ordem legal
de alguns países. O país específico emerge como o caso de uma sociedade que “tem” uma
ordem legal e o direito emerge como algo inerente àquele país. Também começamos a
usar uma linguagem que indicava a existência de uma organização com o propósito de
“fazer” as leis, as quais, uma vez tendo sido feitas, tornam-se partes de um conjunto de
regras legais.
Parece que podemos avançar em nossa análise afastando-nos da noção de regras
entendidas como um reino limitado de significado dentro da sociedade, mediante as quais
os homens, sob o título de órgãos do governo, fazem o direito, presumidamente com um
propósito. Não iremos abandonar como irrelevante o problema da validade das normas.
Ao contrário, afirma Voegelin, o problema da validade das normas retornará com força
redobrada nessa nova etapa da análise.
A decisão de uma Corte não é apenas uma lei válida, mas reproduz com
conseqüências sociais o que o direito significa no caso concreto. As regras gerais no nível
de normas materiais proporcionam os tipos com que juízes e oficiais administrativos
deverão adequar os casos individuais que lhes chegam reclamando decisões. A intrincada
hierarquia de subgrupos no ordenamento jurídico tem o propósito de particularizar “o
direito” às relações concretas de seres humanos.
Devemos tomar cuidado, entretanto, ao usar a palavra “propósito.” No presente,
não estamos preocupados com os propósitos específicos das normas, mas com a maneria
16

com que as normas são dispostas no contexto social, com a maneira com que elas
participam da existência ainda que não tenham existência autônoma. Essa maneira de
existência é muito mais complexa do que a linguagem de meios-fins pode sugerir. Ainda
assim, o termo propósito é indispensável, como veremos, para salientar a relação aguda
entre o “direito” e a sociedade que o possui.
O modelo intricado em que as normas se mesclam com a realidade social tornar-
se-á aparente através de uma breve consideração sobre a hierarquia de regras e séries de
regras.
Nem toda declaração de regras gerais constitui um estatuto com um conteúdo
legal válido. Um estatuto resulta apenas quando homens específicos em tipos específicos
de ação, isto é, quando membros de uma legislatura que foi constituída e que age de
acordo com a forma dada pela Constituição, concorda com certas regras. O mesmo
argumento é válido para decisões individuais das cortes e agências administrativas.
Alguns atos dos seres humanos produzem regras válidas se são reconhecidos como atos
legislatórios à luz de outras regras, e estas por sua vez são regras válidas enquanto
formuladas através de atos reconhecidos como legislatórios por outras regras, e assim em
diante.
A noção de hierarquia de regras válidas, portanto, deve ser expandida para um
processo legislatório em que regras e atos legislatórios se alternam. Este processo, por
fim, desagua na vasta realidade da sociedade que “possui” o direito feito durante o
processo. Até mesmo a realidade vasta que pensamos ser extra-legal participa de algum
modo do direito. Embora não nos refiramos aos empresários como legisladores, seus
contratos terão força de lei uma vez atendidas as formas admitidas pela legislação
própria. As relações entre seres humanos dentro de uma sociedade têm em muitos casos
uma estrutura legal portanto.
A linguagem do dia-a-dia indica essa relação íntima entre o direito e a sociedade.
O cidadão que descumpre as normas penais é considerado um fora-da-lei, ao passo que o
homem que se abstém de descumprir as proibições legais é considerado um homem
cumpridor da lei. Falamos ainda do homem que cumpre a letra da lei, mas viola o seu
espírito; que se safa de ser apanhado porque conhece as brechas da lei, que contrata
17

advogados para burlar a lei de modo a se livrar de condenação mesmo tendo cometido o
crime. A existência do homem em sociedade está entranhada com o “direito.”
18

V O Direito como a Substância da Ordem. O Processo Legislatório como


Instrumento para Assegurar a Substância.

O fenômeno acima discutido abre todo um campo de pesquisa. Apenas um


problema, entretanto, será discutido agora: o uso equívoco da “lei” no sentido de regras
válidas feitas por órgãos do governo e “a lei” que pervade a existência do homem em
sociedade. Preservado nesse pequeno equívoco da nossa linguagem cotidiana está um
profundo discernimento, raramente encontrado na teoria jurídica contemporânea, de que
“a lei,” ou “o direito,” são a substância da ordem em todas os campos do ser. A bem da
verdade, as antigas civilizações costumavam ter em sua línguas um termo que significava
a substância ordenadora permeando a hierarquia do ser, desde Deus, passando pelo
mundo e a sociedade, até cada ser humano em particular. Esses termos são o egípcio
maat, o chinês tao, o grego nomos e o latim lex ou ius. O egípcio maat, por exemplo,
significa a ordem dos deuses que, em virtude de seu maat, criam a ordem do cosmos.
Dentro dessa ordem cósmica, o termo aplica-se especificamente à ordem do reino do
Egito, cuja ordem é criada por virtude do divino maat que vive no Faraó. Do Faraó esse
maat desce pelo corpo social, mediado pela administração real e hierarquia de oficiais,
até chegar ao juiz que decide o caso individual. Dado que a mediação do maat reclama
um entendimento e articulação inteligente prévios, o termo adquire o significado de
“verdade” sobre a ordem; e dado que o conhecimento dessa verdade não é um monopólio
da administração, o direito pode ser julgado pelo conhecimento comum sobre a verdade
da odem e os súditos podem protestar veementemente contra desvios do maat e criticar a
conduta dos oficiais.
O termo egípcio iluminará nosso problema, pois o compacto simbolismo do maat
mostra que por trás dos equívocos de nossa linguagem cotidiana repousa a experiência de
uma substância que penetra a ordem do ser, da qual a ordem social é uma parte. Voegelin
traça um paralelo entre as experiências do maat egípcio e do sentimento de justiça do
homem moderno, às vezes expresso na palavra lei, às vezes não, para mostrar como a
experiência de uma ordem ontológica inata permeia a ordem social e a molda. O direito,
diz ele, é parte inerente e essencial da sociedade, apesar de que a maneira dessa
19

participação possa ser complicada pelo fato de que requer, para ser garantida, a ação
humana organizada, o tipo de ação que chamamos de processo legislatório.
O termo grego, nomos, a seu turno, não significa meramente a lei no sentido
jurídico. Vejamos o que escreveu o tradutor Edson Bini da obra As leis, de Platão, em sua
nota preambular:
O título com o qual traduzimos NOMOI (As Leis) não faz jus ao rico e lato
conceito grego, mas isto é inerente às limitações lingüísticas. A transferência de idéias de
um quadro de signos para outro (tradução) é uma arte espinhosa, embora fascinante(...)
Assim em NOMOI H NOMOΘEΣIAI Platão abarca não apenas o domínio
estritamente jurídico, como também as áreas correlatas da política, da ética, e mesmo da
psicologia, da gnoseologia, da ontologia, além daquelas das matemáticas, da astronomia,
da religião e da mitologia. (PLATÃO, 1999, p. XXXV)
Ou seja, o termo nomos, tal como o maat egípcio e os outros supra-citados,
referia-se a uma realidade ontológica entendida por qualquer membro da sociedade como
critério para julgar a sociedade existente do momento.
Voegelin, em seguida, faz uma crítica da teoria jurídica que enxerga o direito
como sendo um conjunto de normas hipotéticas que ordenam aos tribunais responder com
certas ações – julgamento, sentença e execução – as ações que se subsumirem à parte
hipotética da lei. A ordem jurídica, afirma ele, dentro dessa construção, não proibiria o
assassinato ou o roubo, mas apenas atribuirira determinadas conseqüências a esses tipos
de ação, deixando ao arbítrio do indivíduo evitar ou praticar essas ações. Se assim fosse,
continua Voegelin, não faria sentido chamarmos de bandido ou fora-da-lei ao homem que
comete essa ação, ele teria apenas feito sua escolha dentro da gama de possibilidades
abertas pelo enunciado legal. Tampouco faria sentido chamar o crime de ação ilegal. Na
nossa vivência cotidiana do direito, portanto, o motivo por que certas conseqüências, no
caso as punições, deveriam ser atribuídas a certos tipos de ações, no caso os crimes, não
seria uma questão de filosofia do direito, porém pertenceria ao reino dos propósitos
“morais,” extravasando o direito. O significado do homem cumpridor da lei também
evaporaria, pois nada que esse indivíduo faça poderá ser classificado como relevante
legalmente em termos de ações que se subsumem a tipos previstos na série de regras
válidas.
20

Contra essa construção encontra-se o mesmo argumento usado contra o impasse


do paradoxo de Zenão: A proposta da análise não é fazer nonsense de nosso
conhecimento pré-analítico sobre o direito, mas ao invés tornar explícito seu sentido.
Sendo assim, devemos preferir a presunção de que o processo legislatório faz sentido
como um instrumento para garantir a substância da ordem que participa de maneira
essencial na sociedade. Esta presunção, se faz especialmente necessária porque raramente
o enunciado legal se reveste da linguagem normativa “Está proibido(...)” ou “É
permitido(...).” A lei escrita normalmente descreve fatos ou comportamentos que se
tornam relevantes através de outros fatos e comportamentos, estabelecidos pelos órgãos
de governo, que os sucedem. O fato de esse conjunto de tipos legais ser construído com o
objetivo de garantir a ordem nas relações sociais não é tornado explícito nos textos legais,
muito embora a tão propalada intenção do legislador possa ser explicitada nos
“preâmbulos” da lei. Na maioria das codificações modernas, entretanto, a intenção é
pressuposta e a técnica do legislador concentra-se em construir tipos que realizarão sua
intenção com o máximo de probabilidade. É possível, em princípio, construir uma ordem
jurídica inteira através de definições e proposições sem usar vocabulário normativo.
Resumindo essas considerações podemos dizer que o processo legislatório
participa da natureza do direito tanto quanto serve ao propósito de garantir a substância
da ordem na sociedade; e a ordem dentro da sociedade é a área onde devemos procurar
pela natureza do direito.
21

VI Construções Teoréticas da Relação.

As relações recém indicadas motivaram uma série de construções na filosofia do


direito. As principais foram:
Em Platão e Aristóteles a ênfase recai sobre a substância da ordem na sociedade,
especificamente na ordem da pólis helênica. A pesquisa sobre a verdadeira ordem na
pólis é a principal tarefa do filósofo. As regras específicas são formuladas tenda em vista
a articulação da verdadeira ordem na sociedade, a qual devem assegurar.
Na gênese do estado nacional moderno, por sua vez, o processo legislatório entra
para o centro dos interesses. Na luta entre as autoridades do Império e da Igreja, da lei
Romana e dos estados, os governos dos cada vez mais fortes estados nacionais asseveram
a supremacia do estado para fazer a lei. O príncipe, como representante do estado, torna-
se o legislador soberano. Toda a legislação válida emana dele, seja diretamente ou através
de agentes para quem delegou autoridade legislatória.
Permanece, entretanto, o reconhecimento de que os legisladors soberanos
precisam assegurar a substância de uma ordem que não é feita por si. Este é o tipo de
construção feito por Bodin no século dezesseis. O direito é reconhecido dentro de seus
dois aspectos hierárquicos de regras válidas e de autoridades legislativas. A hierarquia de
regras válidas tem no seu estrato superior a lei natural e divina.
No século dezessete, entretanto, a ligação entre o processo legislatório do
soberano com uma substância da ordem autônoma fica enfraquecida pela construção de
Hobbes. Ele reduz a substância da ordem ao postulado da paz dentro da comunidade.
Esse é o mesmo julgamento de Michel Villey, teórico muito querido pelos defensores do
direito natural, sobre a obra de Hobbes:
De même que Dieu crée lê monde, continûment à chaque seconde, ainsi l’existence de
Léviathan est-elle une création continue de volontés individuelles. Sans doute le pacte
est-il presente comme conclu une fois pour toutes, et depuis ce moment lie-t-il son auteur,
parce qu’il y aurait absurdité à se contredire soi-même, et que la cause du contrat
demeure, la paix garantie par le prince(...). (Villey, 2003, p. 584)5

5
Tradução nossa: Do mesmo modo que Deus cria o mundo continuamente a cada segundo, também a
existência do Leviatã é ela uma criação contínua de vontades individuais. Sem dúvida o pacto está presente
22

Hobbes disse que o homem vivia num estado de natureza em que a lei natural
eram o egoísmo e o interesse próprio. Ele acreditava que o homem deveria render seu
direito de liberdade em prol de uma ordem de governo forte, sob comando do rei, que
seria capaz de zelar pela segurança do homem, segurança essa que no estado de natureza
não existia.6 Em outros trabalhos, Voegelin, não obstante desprezando o valor filosófico
da obra hobbesiana, considerou seu autor um psicólogo monumental, que analisou como
poucos o medo humano da morte.7
Se a ordem assim alcançada, continua Voegelin, manifestará uma substância
Judaico-Cristã, que em Bodin ainda foi considerada, já não é importante. Nessa altura do
livro Voegelin dá uma pista de onde quer chegar com sua concepção de ordem
substancial. De passagem ele se refere à substância Judaico-Cristã da ordem. É através da
referência a essa substância que o homem comum identifica se um ato é legal ou não,
mesmo quando desconhece o direito. Um colega do curso de graduação uma vez afirmou
que no direito muitas vezes é possível prescindir da legislação positiva para saber a
solução de um conflito jurídico, valendo para tanto o bom senso. Muitas concepções
arraigadas da nossa civilização, como a igualdade dos homens, por exemplo, derivam
diretamente dos ensinamentos de Jesus Cristo, que em várias oportunidades mandou não
fazer distinção entre homens. Desses ensinamentos resultou, tardia embora, a noção de
que nenhum homem pode ser senhor da vida de outro homem. O cientista político norte-
americano Dinesh D’Souza postula que “os únicos movimentos que se opuseram à
escravidão foram mobilizados no Ocidente, e foram em sua maioria absoluta liderados e
constituídos por cristãos” (D’Souza, Quem acabou com a escravidão?).

de uma vez por todas, e desde esse momento liga-se a seu autor, porque seria um absurdo que ele se
contradissesse a si mesmo, e porque a causa do contrato, qual seja a paz garantida pelo príncipe,
permanece.
6
O filósofo e moralista britânico Anthony A. C. Shaftesbury ironiza a construção de Thomas Hobbes: “It is
ridiculous to say, there is any obligation on man to act sociably or honestly, in a formed government, and
not in that which is commonly called the state of nature. For, to speak in the fashionable language of our
modern philosophy, “society being founded on a compact, the surrender made of every man’s private
unlimited right, into the hands of the majority, or such as the majority should appoint, was of free choice,
and by a promise.” Now, the promise itself was made in the state of nature; and that which could make a
promise obligatory in the state of nature, must make all other acts of humanity as much our real duty, and
natural part. Thus faith, justice, honesty, and virtue, must have been as early as the state of nature, or they
could never been at all.” (Shaftesbury, 2005, p. 92)
7
Conferir Voegelin, The Oxford Political Philosophers, em Published Essays 1953-1965, ps. 35-36.
23

A partir do progresso do secularismo e da desintegração da filosofia nos séculos


dezenove e vinte, o processo legislatório alcança autonomia completa, isto é, os teóricos
retiram da teoria do direito a questão da ordem substantiva. Outrossim, os teóricos
demonstram uma tendência para dividir o processo legislatório em dois componentes, as
regras válidas e os atos de sua criação, tornando cada um dos componentes em separado a
base de sua construção teórica. Resulta disso um desenvolvimento paralelo de ciências do
direito normativa e sociológica.
O caso representativo de ciência normativa é a “Teoria Pura do Direito” de
Kelsen. Nesta teoria, o processo legislatório adquire, de acordo com Voegelin, o
monopólio do título “direito.” A hierarquia de Kelsen culmina numa norma básica
hipotética que ordena que os membros da sociedade se comportem em conformidade com
as normas que derivam em última instância da constituição.
Portanto, o direito e o estado, no entendimento de Kelsen, são dois aspectos de
uma mesma realidade normativa. Dado que a norma hipotética básica ocupa o lugar da lei
natural e divina de que nos falava Bodin no topo da hierarquia, os problemas da ordem
substantiva são eliminados. Qualquer poder que se estabeleça na sociedade é o poder
legislatório, e de acordo com a norma hipotética, quaisquer regras que se façam serão
leis. Os problemas clássicos de ordem verdadeira e falsa, justa ou injusta, não pertencem
à ciência do direito ou à ciência alguma. Pois a única ciência da sociedade que Kelsen
admite além da normativa é uma “sociologia,” definida como uma ciência preoucupada
com ações humanas e suas relações causais.
No caso de se usar os atos legislativos como base de uma construção teórica, é
difícil escolher um único sistema representativo. Deparamos-nos com uma série de
tentativas de fazer uma “sociologia” do direito. Um rico vocabulário de objetivos
legislativos e funções legais significam o apanhado de relações entre seres humanos e a
ordem da sociedade – paz doméstica, bem estar, previdência social; liberdade e
propriedade; interesses de grupos ou classes; proteção dos mais fracos; ajuste, defesa
social, prevenção e reabilitação; comportamentos legais ou ilegais, anti-sociais, etc.
O que essas teorias têm em comum é que jamais passam do nível pré-analítico,
sua pesquisa não pretende chegar ao critério filosófico da ordem verdadeira. No seu
conjunto, manifestam o mesmo estado de fragmentação filosófica que é evidente na
24

ciência do direito normativa. Para Voegelin, a tarefa de encontrar a ordem substancial


jamais será realizada se a pesquisa se deter em aspectos parciais do direito como o
comportamento do juiz, a pressão de determinados grupos, ideologia de movimentos
políticos, necessidade de reformas judiciárias, etc.
25

VII Estrutura, Continuidade e Identidade do Complexo da Ordem.

Enquanto um grupo de regras válidas, o direito deve ser situado no contexto social
do processo em que é criado; e o processo legislatório a sua vez deve ser situado no
contexto da sociedade que garante sua ordem substancial através desse processo.
No momento, é preciso distinguir entre o “direito” no sentido de regras legais e do
processo legislatório; e o “direito” no sentido da ordem substancial da sociedade. Quando
definirmos o termo “legal,” não será uma definição de essência, pois já estabelecemos
que a ordem legal enquanto um conjunto de regras não tem status ontológico, e,
conseqüentemente, não tem essência ou existência.
Na estrutura dessa entidade podemos discernir duas tensões essenciais: primeiro,
a tensão entre a ordem substancial da sociedade e o processo legislatório tendo em vista
que o processo organizado de fazer o direito é aparentemente o meio inevitável de manter
a ordem substancial em existência; e depois, a tensão entre a ordem substancial da
sociedade conforme ela existe empiricamente e a ordem substancial verdadeira da qual a
ordem empírica, platonicamente, apenas se aproxima.
No presente devemos lidar apenas com a primeira dessas tensões, ou seja, com a
orientação da ordem legal como um meio de realizar a substância da ordem substancial
na sociedade. Devemos, em primeiro lugar, tratar do peso desta relação em referência ao
lado social do complexo da ordem. Tendo descoberto na sociedade aquilo que dá o peso
da existência no tempo à ordem legal, devemos perguntar mais uma vez: O que queremos
dizer por “direito” quando falamos sobre o direito americano, italiano ou brasileiro, ou
sobre a história do direito civil ou administrativo francês? Com certeza não nos referimos
apenas ao conjunto de regras válidas ou à série destes conjuntos, mas deixamos entrar em
nossa linguagem um componente de significado que provem do lado social.
O efeito do peso peculiar do lado social tornar-se-á aparente e inteligível se
refletirmos sobre certas questões laterais do direito constitucional.
Se a ordem legal é compreendida como um grupo de regras válidas ou como uma
série desses grupos, todas as partes componentes da ordem derivam sua validade, pela
mediação das regras procedimentais, da contituição em sentido material. A ordem
jurídica é constituída como uma unidade de significado pelas regras relacionadas ao
26

procedimento de sua criação. A aparente clareza da construção é prejudicada pela questão


já levantada sobre o status de regras que foram válidas sob a constituição, mas não o são
mais, e sobre aquelas que não são válidas agora mas serão no futuro, como expressado no
magistério de Caio Mário da Silva Pereira, o civilista brasileiro, não o general romano:
Encerrada a fase de elaboração da lei, depois de votada, promulgada e publicada, merece
cuidado o problema de sua vigência. Perfeita e completa, torna-se um comando, que se
dirige à vontade geral, ordenando ou proibindo, ou suprindo a vontade dos indivíduos. À
semelhança da vida humana, também as leis têm sua própria vida, que é a sua vigência ou
a faculdade impositiva: nascem, existem, morrem. Estes três momentos implicam a
determinação do início da sua vigência, a continuidade da sua vigência e a cessação da
sua vigência. (PEREIRA, Instituições de Direito Civil, vol. 1, cap. V)
Para Voegelin, esta questão deve ser deixada em suspenso por enquanto. Ele
prefere examinar agora o fenômeno das chamadas “mudanças” na própria constituição.
Atingiu-se o topo da hierarquia das regras nos procedimentos constitucionais. Não há
uma constituição acima da constituição que ligaria uma série de grupos constitucionais
numa única ordem jurídica da mesma maneira que os sub-grupos estatutários são ligados
pela constituição. Chegamos ao ponto em que o problema da validade não pode mais ser
resolvido de modo intrassistemático pelo regresso a um grupo de regras procdimentais de
mais alta hierarquia. Estamos diante do fenômeno de que a validade do direito tem sua
origem em fontes extralegais.
A esta altura, mais de uma linha de análise se oferece. Em primeiro lugar, o
problema pode ser eliminado através de uma construção do tipo intentado por Kelsen
com sua norma básica hipotética. A norma hipotética confere validade à própria
constituição e fecha o “sistema” legal. Esta construção deve ser rejeitada como um
nonsense analítico. Não analisa coisa alguma, ela interrompe a pesquisa sobre a natureza
do direito. Em ciência, diz Voegelin, estamos interessados no estudo da realidade, não na
construção de um “sistema” que evita seu estudo.
Uma segunda linha se abre com a diferenciação feita por Bodin de hierarquia de
normas para o processo legislatório entre o direito divino e natural. Aqui de fato
chegamos a novas áreas de realidade, ou seja, a novas áreas de autoridade de onde o
direito deriva sua validade. Novamente Voegelin deixa para depois a exploração dessa
linha de raciocínio, pois, segundo ele, para além das autoridades cujos símbolos “direito
27

divino e natural” se referem, existe uma outra fonte de autoridade, a autoridade do poder
organizado socialmente. Bodin toma em consideração esta autoridade em sua filosofia do
direito quando diz que o príncipe deriva seu poder legislatório soberano tanto da espada
quanto de Deus. A estrutura de poder da sociedade é a realidade que se torna articulada
legalmente nas regras materiais da constituição, e por isso merecem nossa atenção
premente.
As regras de uma constituição procuram criar uma ordem estável para a sociedade
colocando o poder supremo ordenador em órgãos do governo que representam o poder
atual de articulação da sociedade. Se os constituintes houverem diagnosticado
corretamente esse poder; se, além disso, eles forem bons artífices e souberem articular
legalmente o poder; e se, por fim, a estrutura de poder que criou a constituição é estável,
então a constituição durará. Se a estrutura de poder não for estável, deixando de lado os
outros dois pontos, a constituição não poderá durar. Acontecimentos mais ou menos
violentos seguir-se-ão e as regras constitucionais terão que ser adaptadas à estrutura de
poder em mudança, pela própria prática, interpretação, emendas formais ou, em último
caso, por sua substituição completa.
Esses fenômenos de adaptação dão impulso a questões ligadas à identidade da
ordem jurídica. Se um país emerge de uma revolução com uma nova constituição, criada
por procedimentos que não eram dados pela constituição anterior, uma ordem jurídica
chegou a seu fim e uma nova foi instaurada. Se diante desse fenômeno adotamos a
construção do direito como um grupo de regras válidas que derivam da constituição,
chegaremos à conclusão de que com a nova ordem jurídica um novo “estado” foi criado.
Algumas construções que foram nesse sentido chegaram à conclusão lógica de que a
validade de um estatuto que sobreviveu imutável à revolução não deriva da constituição
antiga mas da nova.
28

VIII A Luta de Aristóteles com o Problema da Identidade.

Aristóteles se preocupou bastante com esse tipo de problemas. Ele aplicou à polis
as categorias de forma e substância, admitindo a constituição, a politeia, como a forma.
Mas qual seria a substância da sociedade, se a constituição era sua forma? Seriam os
cidadãos? Se sim, quem seria o cidadão? Toda mundo que tivesse residência permanente
na cidade seria contado como cidadão? Mas então escravos seriam cidadãos e a teoria
entraria em conflito com a linguagem pré-analítica do cotidiano.
Para Aristóteles a questão principal é: Pretendemos nos referir a uma pólis como a
mesma pólis conquanto o povo e sua residência permanecem o mesmo, a despeito do fato
de que os membros de uma pólis são um fluxo de de gerações, um fluxo de seres
humanos chegando à existência e morrendo, e portanto nunca são o mesmo de um dia
para o outro?
Aristóteles se distancia da questão social da ordem e dirige seu argumento em
direção ao mesmo impasse Zenônico para o qual dirigimos ao tratar da ordem jurídica
válida. A sociedade é uma entidade composta de seres humanos. A pólis não pode ser
identificada com os seus membros, os quais mudam dia a dia em virtude das mortes e
nascimentos; ela deve ser definida em termos, não de seres humanos, porém de cidadãos
como a substância da sua forma; e a forma será sua constituição. Se a constituição for a
mesma, a pólis será a mesma, não importando aumento ou diminuição de sua substância
de cidadãos. Voegelin considera que Aristóteles deixa a análise incompleta, pois não
contempla com o devido rigor a possibilidade de a constituição mudar (a pólis é a mesma
quando isso acontece?) bem como não examina a fundo a questão do status do cidadão
sob um regime oligárquico ou tirânico, em que ele não participa do processo de governo.
Voegelin atribui o resultado insatisfatório da análise de Aristóteles à transferência
não submetida à crítica das categorias de forma e substância a campos do ser para as
quais elas não foram criadas.
Essa transferênca leva a dificuldades não apenas na política de Aristóteles mas
também na sua psicologia, quando ele tenta construir uma forma noética da alma, diz
Voegelin. Isso conduzirá a dificuldades infinitas na antropologia e psicologia escolástico-
medievais, onde a alma é usada na especulação como sendo a “forma” do homem. O
29

princípio da individuação humana, tratado de modo incompleto por Tomás de Aquino,


que considerava a individualidade do homem advinda apenas da matéria, havendo apenas
uma forma humana aplicável a todos os homens, será melhor apreciado pela outra grande
figura escolástica, João Duns Scot, o doutor sutil, que afirma que a única maneira de
existir é ser individual. No dicionário Ferrater Mora, explica-se:
que é uma individuação da forma, mas não pela forma(...) A individuação scotista
permite a determinação completa do singular sem recorrer à existência; é antes a
condição exigida necessariamente para toda existência possível, já que somente são
capazes de existir os sujeitos completamente determinados por sua diferença individual:
em suma, os indivíduos. (MORA, Heceidade, 2000, p. 1290)
No caso presente e de acordo com Voegelin, a transferência impede que
Aristóteles de ligar sua teoria da “forma” da pólis (Política III) com sua teoria sobre a
natureza da pólis. Ele não analisa a contento o problema do processo legislatório que
culmina na constituição e ele jamais esclarece a conexão desse problema com a ordem da
pólis que existe continuamente no tempo e que deve ser assegurada pelo processo
legislatório, seja ele democrático ou oligárquico. Essas observações devem servir de
aviso. Lidamos com um problema que aturdiu até um Aristóteles. Devemos tomar a
maior precaução em olhar cada passo de nossa análise.
30

IX As Questões Tangentes do Direito Constitucuional.

A continuidade da ordem jurídica obviamente está carregada de problemas.


Devemos, de acordo com Voegelin, voltar mais uma vez aos fenômenos pré-analíticos
para evitar construções errôneas. Podemos conseguir ajuda entendendo as relações entre a
ordem jurídica e a realidade social a partir de situações fenomênicas em que revoluções
na estrutura de poder ocorrem sem uma quebra na continuidade legal. No século
dezenove e começos do vinte, a transição da monarquia absolutista para uma monarquia
representativa e constitucional foi mais de uma vez realizada por iniciativa do próprio rei
absolutista de impor a constituição, incluindo o Brasil de Dom Pedro I. Questão a ser
discutida é se a ordem jurídica resultante deriva sua validade da nova constituição ou do
ato unilateral do rei que impõe a constituição. Os dois lados em oposição concordariam
que a validade da ordem jurídica, que culmina na constituição, deve algo à autoridade do
poder político na sociedade. É compreensível, portanto, que os líderes do movimento
constitucional no século dezenove tivessem pouca simpatia pelo método da imposição,
pois criava uma situação confusa a respeito da fonte da autoridade.
Outros fenômenos elucidativos são dados pelas estranhezas que cercam as
políticas da assembléia constituinte na revolução nazista. Admitido que a “legalidade”
teve um grande apelo na psicologia de massas do século vinte, a liderança nazista teve o
cuidado de adaptar as regras constitucionais à nova estrutura de poder através de emendas
previstas na Constituição de Weimar. (O mesmo método fora usado antes, por um tempo
pelo menos, pelo governo fascista da Itália.) O resultado foram monografias de
advogados constitucionalistas alemães, alguns alegando que a Constituição de Weimar
ainda estava em vigor, outros alegando que a mudança revolucionária na estrutura de
poder criara uma nova constituição. Nesse momento, tornou-se um assunto ainda mais
premente se a identidade da ordem jurídica deveria ser construída em termos de validade
intra-sistemática e procedimental ou em termos da autoridade que emanava da estrutura
de poder da sociedade.
Por fim, um importante fenômeno é dado pela história da Constituição dos
estados Unidos da América. O procedimento pelo qual a Constituição de 1789 foi criada
não foi proporcionado pelos Artigos da Confederação daquele país. Cumpre esclarecer o
31

que foram os Artigos da Confederação. Joseph Story, professor de direito em Harvard,


em obra clássica sobre o ensino da ciência jurídica em seu país, explica a respeito dos
Artigos da Confederação:
On the 11th of June, 1776, the same day, on which the committee for preparing the
declaration of independence was appointed, congress resolved, that "a committee be
appointed to prepare and digest the form of a confederation to be entered into between
these colonies; " and on the next day a committee was accordingly appointed, consisting
of a member from each colony.2 Nearly a year before this period, (viz. on the 21st of
July, 1775,) Dr. Franklin had submitted to congress a sketch of articles of confederation,
which does not, however, appear to have been acted on. These articles contemplated a
union, until a reconciliation with Great Britain, and on failure thereof, the confederation
to be perpetual. (STORY, Commentaries on the Constitution of the United States,
Book II, Origin of the Confederation, § 222)
Explica melhor Philip Jenkins:
While the state governments were familiar entities with well-defined responsibilities,
there was less assurance about the national government, which was established under the
Articles of Confederation agreed by Congress in 1777 and ratified in 1781. Indeed, the
confederation was closer to an international alliance than a real federal system as each
state was designated as a sovereign entity. Each also commanded a single vote in the
legislature, to the disgust of the larger and more populous states which found themselves
thwarted by the whims of smaller neighbors. While signatory states agreed to do certain
things, such as pay taxes to the national confederation, there were no real
enforcement mechanisms to make them do this. While there was a nominal president of
the Congress, the office had little in common with the powerful executive of later
decades. (JENKINS, A History of the United States, p. 53)
Em termos de validade procedimental, prossegue Voegelin, a Convenção da
Fildadélfia foi uma assembléia revolucionária e a continuidade da ordem jurídica foi
quebrada. Entretanto, enquanto o termo revolução é usado ordinariamente em conexão
com os eventos de 1776 e após, é muito pouco usado em conexão com os eventos de
1789 – apesar do fato de que a continuidade constitucional foi quebrada e que nem todos
os meios para se alcançar a ratificação da nova Constituição nos vários estados se deram
sob os auspícios da cordialidade e da razão. A peculiaridade tornar-se-á inteligível se
todo o período, desde o começo do movimento de independência até a criação da
32

constituição de 1789, é considerado um processo social em que a nação em


desenvolvimento, abrindo caminho por entre as dificuldades das relações coloniais e
estatais e as dificuldades da guerra, ganhou sua fisionomia de poder e, depois dos
experimentos insatisfatórios com o Congresso Continental e os Artigos da Confederação,
fundou por fim a Constituição que foi válida e expressiva da estrutura de poder oficial da
nova nação.
A variedade de exemplos terá esclarecido ao menos uma questão a respeito da
natureza do direito. A ordem jurídica no sentido de um conjunto de regras válidas
não é um objeto independente de pesquisa. É parte de um fenômeno maior que
inclui os esforços dos seres humanos de estabelecer ordem numa sociedade concreta.
Este fenômeno maior, outrossim, não é um composto de parte separáveis facilmente, tais
como as regras válidas e o processo social. A estrutura de poder efetiva, com sua
autoridade, dá a validade das regras mesmas. Controvérsias podem nascer, portanto,
sobre se a validade de um dado conjunto de regras deve ser construído sob o aspecto da
legalidade ou da autoridade política.
A relação peculiar entre os dois componentes torna-se mais clara no caso de
conflito. Em circunstâncias ordinárias, os procedimentos emendatórios previstos na
constituição serão suficientes para absorver as mudanças menores na estrutura de poder
efetiva e para fornecer a continuidade de validade que expressa, no tocante à ordem
jurídica, a existência contínua da sociedade que tem essa ordem. Quando as mudanças na
estrutura de poder, todavia, atingem níveis revolucionários, uma quebra na continuidade
da validade pode parecer desejável como a expressão adequada para a quebra na
continuação da estrutura de poder. No entanto, quebras na continuidade da estrutura de
poder são fenômenos comuns dentro da continuidade da sociedade.
33

X A Regra e a Duração da Ordem.

A saída para a aporia representada pelo paradoxo zenônico do qual já falamos está
no reconhecimento de que a ordem jurídica, enquanto não tem status ontológico per si, é
parte do processo pelo qual uma sociedade torna-se existente e preserva-se numa
existência ordenada. Nesta entidade maior, a sociedade, e enquanto dela faz parte, é que o
direito existe. No entanto, há questões no tocante à maneira com que o ordenamento
jurídico se insere na sociedade, que precisam ser respondidas. E a mais importante delas
é: Como é possível, ontologicamente falando, que regras tenham uma função na
existência da sociedade e em seu processo de ordenação?
De acordo com Voegelin, as regras só podem ter uma função na sociedade se elas
são reconhecíveis, se são situações e eventos típicos, se as situação e eventos se repetem,
e se eles se repetem com tal freqüência em conexão que a própria conexão adquire o
caráter de um tipo reconhecível e que pode ser expresso em “regras.” Na terminologia
voegeliana, a situação é uma espécie de condição para que o evento ocorra, de modo que
quando a situação está presente o evento invariavelmente decorre.
A ordem de uma sociedade tem uma estrutura discernível de elementos típicos, de
situações e elementos típicos, e de conexões típicas entre eles. Se a sociedade fosse um
fluxo amorfo, sem uma estrutura de elementos constantes e recorrentes, as regras não
teriam uso porque não teriam campo de aplicação. É porque existe ordem na sociedade
que as regras são necessárias, elas ajudam que a ordem subsista. Se, por exemplo, os
indivíduos A e B se dirigissem ao juiz para que esse resolvesse um conflito entre eles,
porém se a coisa em disputa não tivesse duração, a decisão do magistrado cairia no vazio,
poderia no máximo ensejar uma compensação. Pior, se a organização da vida de A e B
mudasse completamente do dia para a noite, a questão de saber quem tem direito sobre a
coisa em disputa não teria mais o menor interesse e perderia o sentido. É porque existe
uma duração relativa das vidas de A e B, da organização de suas vidas e das coisas que
disputam, que a disputa jurídica lhes interessa e o direito tem um papel a cumprir.
Não se pode dividir a ordem jurídica em regras essencias e não essenciais,
consideradas as regras genéricas como essenciais e as regras que individualizam ou
regulam a regra genérica como não essencial. Não faz sentido essa divisão, pois as
34

decisões individuais nos casos concretos são tão essenciais quanto quaisquer regras
genéricas, porque a duração da ordem social concretiza-se e depende da ordem na vida de
seus membros singulares.
“A estrutura duradoura da ordem é a estrutura da existência humana em
sociedade”8 (VOEGELIN, 1991, p. 41). Os principais componentes dessa estrutura são a
organização do homem em família e dentro de sua casa, sua existência utilitária através
do trabalho em geral, e sua existência espiritual e intelectual na sociedade política.
Analisando ainda a Política de Aristóteles, Voegelin confirma que a ordem de
uma pólis não se dá tal qual a ordem num ser orgânico. A sociedade, essa é uma lição
importante para qualquer estudante iniciante em filosofia, não é um organismo vital. O
conceito de forma que Aristóteles utiliza para designar a constituição da sociedade só
pode ser entendido de forma analógica, rigoroso e denotativo o conceito de forma serve
apenas para designar as espécies animais e vegetais.
As forças que desenham a estrutura de poder de uma sociedade podem mudar,
porém a sociedade continuará sendo a mesma. Essa é mais uma diferença entre um
organismo vivo e uma sociedade. Naquele, quando essa transformação acontece, a coisa
também se transforma. O exemplo mais claro é o da lagarta que se transforma em
borboleta. Uma vez borboleta, ela não é mais lagarta. A sociedade, ao revés, se substituir
a sua constituição ou a sua estrutura de poder duradoura, pode continuar sendo a mesma
sociedade. “A organização do processo legislatório (...) e a configuração das forças
sociais que operam o processo num dado tempo não são idênticas com a natureza da
ordem na sociedade”9 (VOEGELIN, 2001, ps. 41-42). Cabe então a pergunta: Se a
sociedade e sua ordem não são idênticas a uma determinada constelação de poder e seu
processo legislatório, até onde devemos cavar na ordem da sociedade para encontrar a
unidade última da qual as constelações de poder do momento são apenas subdivisões?
Voegelin não enfrentará todo o problema no livro “The Nature of the Law,” alegando que
os detalhes fogem ao escopo da proposta do livro. Na sua coleção “Order and History,”
com cinco volumes, ele enfrentará o problema da ordem na sociedade e na história.

8
Tradução nossa.
9
Tradução nossa.
35

Aristóteles enxergou que a sociedade não se resume às constelações de poder que


ora a dominam. Questão tratada tanto por Platão quanto por Aristóteles foi a do ciclo das
formas de poder que se sucedem nas pólis gregas. Toynbee alargou o objeto de estudo
considerando todo um conjunto civilizacional como a unidade da ordem. Não obstante,
resta o problema da ordem em toda a humanidade, problema esse que se torna agudo em
certos momentos quando civilizações entram em choque, ou em que um Império – o
Romano é o exemplo perfeito – tem de adequar dentro de sua unidade de poder várias
unidades de ordem social.
36

XI O Dever no Sentido Ontológico.

As regras podem ser usadas para a ordenação da sociedade porque a ordem da


existência humana na sociedade tem o caráter da duração. Estabelecido esse ponto, a
pergunta a ser feita é: Como as regras são usadas para o propósito da ordem social? No
capítulo anterior procuramos analisar não a regra jurídica, mas aquela que verificamos
pela constância dos eventos e acontecimentos. As regras legais, entretanto, foram feitas
para serem “normas.”
As sociedades dependem para sua gênese, sua existência harmônica duradoura e
sobrevivência, das ações dos seres humanos que a compõem. Afirma Voegelin que a
natureza do homem e a liberdade de sua ação para o bem e para o mal são fatores
essenciais na estrutura da sociedade. “A ordem de sua existência não é nem um
mecanismo nem um organismo, mas depende da vontade do homem de especificá-la e
mantê-la” (VOEGELIN, 2001, p. 43). Além disso, continua o filósofo, a ordem da
sociedade não pode ser uma cópia ou um modelo abstrato que aplicamos à realidade. Ela
deve ser descoberta. Existe na construção da ordem a tensão que envolve o pensado e o
que se conseguiu atingir. A última fonte desta tensão é um conjunto de experiências que
Voegelin diz que o trabalho sobre a natureza do direito poderá apenas prefigurar.
O homem tem a experiência de participar de uma ordem de seres que incluem não
apenas ele mesmo, mas também Deus, o mundo e a sociedade. Civilizações antigas
articularam essa experiência em símbolos, como os já indicados maat egípcio, o tao
chinês, ou o nomos grego. O homem também experimenta a ansiedade de perder sua
participação nessa ordem do ser. Por fim, ele experimenta essa possível perda, bem como
a harmonia com a ordem do ser, como se dependesse de sua ação. Ou seja, depende de
sua liberdade e responsabilidade construir uma ordem do ser da qual ele consiga
participar harmonicamente. Quando Voegelin se refere à “tensão” na ordem social, ele
tem em mente essa classe de experiências, que são bem traduzidas na linguagem corrente
como o “fardo” que o homem deve carregar. Jesus Cristo diria: “Tome cada dia a sua
cruz e siga-me” (2006, Lc 9: 23, p. 1359). A fim de ligar essas tensões com o problema
da “normatividade” das regras legais, devemos chamá-las de o Dever, no sentido
ontológico.
37

XII A Regra enquanto Norma.

O Dever, portanto, é a tensão, na experiência, entre a ordem do ser e a conduta do


homem. Na órbita desta tensão, regras relacionadas à ordem social são mais do que
observações empíricas a respeito da constância de ações ou eventos. Dado que o
problema da ordem existe em virtude da tensão entre a conduta empírica e a verdadeira
ordem, as regras legais, sejam elas de caráter geral ou específico -- para um caso concreto
--, têm o caráter de projetos de ordem. Tenha ela ou não o enunciado “Você deve” ou
“Você não deve,” a norma tem esse significado quando cria os tipos aos quais a conduta
humana deve se adequar. “A famosa “normatividade” da regra deriva, portanto, da tensão
ontológica real na ordem social.” (VOEGELIN, 2001, p. 44)
São três os componentes dessa normatividade: Em primeiro lugar, a norma
pretende dar uma resposta ao que “precisa” ser feito. Quando descreve um tipo de ação,
ela diz o que deve ser feito, ou, no caso das normas penais, o que não deve ser feito. Sob
esse aspecto, a regra é uma proposição referente ao Dever no sentido ontológico.
Mas a regra não tem apenas o objetivo de demonstrar o Dever da ordem. Ela tem,
em segunda lugar, o objetivo de ser efetivamente cumprida pelos membros da sociedade.
Para Voegelin, portanto, a norma contém um apelo àqueles a quem é endereçada para que
realizem esse Dever em suas vidas. Espera-se que os destinatários da norma realizem
concretamente em suas vidas a ordem da sociedade conforme delineada pela regra.
Não obstante, a informação sobre a verdade da ordem e o apelo para que os
membros da sociedade pratiquem essa ordem não exaurem o problema da normatividade.
A norma inclui, como um terceiro elemento, a presunção de ser conhecida. Como diz o
adágio romano antigo, nemo jus ignorare censetur. No direito brasileiro, esse
componente da norma é reconhecido no art. 3º da Lei de Introdução do Código Civil.
Voegelin enxerga três componentes da norma, o que rapidamente traz à
lembrança a teoria tridimensional do direito, de Miguel Reale. Não há razão, entretanto,
para avançar em demasia a trilha de comparação entre os autores. Para Reale, o direito
“não é puro facto, nem pura norma, mas é o fato social na forma que lhe dá uma norma
38

racionalmente promulgada por uma autoridade competente, segundo uma ordem de


valores.”10 Antes, ele afirma:
a) Facto, valor e norma estão sempre presentes e correlacionados em qualquer
expressão da vida jurídica, seja ela estudada pelo filósofo ou o sociólogo do direito,
ou pelo jurista como tal, ao passo que, na tridimensionalidade genérica ou abstrata,
caberia ao filósofo apenas o estudo do valor, ao sociólogo o do facto e ao jurista o
da norma (tridimensionalidade como requisito essencial ao direito).
b) A correlação entre aqueles três elementos é de natureza funcional e dialéctica,
dada a <<implicação-polaridade>> existente entre facto e valor, de cuja tensão
resulta o momento normativo, como solução superadora e integrante nos limites
circunstanciais de lugar e de tempo (concreção histórica do processo jurídico,
numa dialética de complementaridade). (REALE, 2003, p. 70)
Nesta passagem Reale quer distinguir sua teoria daquelas que viam no fenômeno
jurídico os mesmos três elementos discriminados por ele acima mas de maneira a separá-
los e até a opô-los, não vislumbrando a unidade essencial do fenômeno jurídico, onde os
elementos interagem dialeticamente.
As teorias de Voegelin e Reale assemelham-se no que o último chama de valor e
de norma. Voegelin acredita que o mandamento legal carrega um ditado de valor sobre o
que se deve ou o que não se deve fazer. Para Reale, a norma é o resultado da tensão entre
fato e valor, ou que Voegelin chamaria de tensão entre o Dever no sentido ontológico e a
sociedade empiricamente existente. O elemento fato na obra de Reale, todavia, está mais
relacionado a um fato jurídico concreto, enquanto a obra de Voegelin debruça-se sobre a
organização social empírica como um todo. Não há uma oposição entre as duas teorias, o
que acontece é que eles não estão analisando exatamente o mesmo objeto. Parece-nos que
a teoria de Reale, preciosa o quanto é, revela antes a visão do operador do direito diante
de uma questão jurídica concreta, ao passo que no esforço de Voegelin enxerga-se o
pesquisador aristotelicamente desinteressado querendo descobrir o quid est do direito.

10
REALE, Miguel, Fundamentos do Direito, São Paulo, 1940, pp. 301-302, apud, REALE, Miguel, Lisboa,
2003, p. 71.
39

XIII O Caráter Público da Norma Legal.

Uma série de problemas aparece por causa da presunção de publicidade que a


norma traz, tanto na prática da ordem quanto em teoria legal. Uma proposição que verse
sobre uma verdade da ordem deve ser formulada por alguém, e o seu apelo, para ser
aceito, deve ser dirigido a um destinatário. O significado normativo de uma regra envolve
pelo menos duas pessoas face a face num ato de comunicação, ainda que uma das pessoas
seja um eu reflexivo que formula a regra a ser aplicado pelo eu ativo.
A regra legal é criada num procedimento complicado que obscurece as
contribuições pessoais para a sua composição. Podemos crer que um grupo fez um
“lobby” para que seus interesses pessoais fossem contemplados, tornando a ordem
lucrativa para si e desvantajosa para o resto da sociedade, de maneira que a regra seria
deveras falsa. Pode-se supor ainda se, em vista da regra ter uma série de defeitos técnicos,
e isso se vê muito num Brasil em que os legisladores não têm mais o apreço que tinham
pela redação clara, foi feito um esforço sincero de formular uma verdade a respeito da
ordem social. Pode-se ter a mais vaga noção de quem concebeu a regra – e ainda assim
ela é considerada válida caso determinados procedimentos tenham sido seguidos para a
sua elaboração. Otto Von Bismarck costumava dizer que se os homens soubessem como
as linguiças e as leis são feitas, não comeriam as primeiras, nem obedeceriam a essas.
Voegelin diz que tudo parece um jogo de faz-de conta. Deveras, há um elemento de jogo
na situação. Platão sabia disso quando, nas Leis, falou de um “jogo sério.”
Esse jogo é levado a sério em toda sociedade. As regras legais são consideradas
normas de ordem. O processo legislatório é parte ontológica da maneira com que a
sociedade tem sua existência ordenada. A presunção de que as normas são conhecidas é
mais do que uma teoria de ficção; toda sociedade elaborou meios para tornar efetiva a
comunicação sobre suas normas.
Uma lei só é válida se tornada pública. Alguns países têm gazetas especiais para a
publicação dos estatutos, e sua constituição pode estabelecer que a lei só entrará em vigor
passado um determinado período de tempo. No Brasil, o Diário Oficial é responsável por
informar sobre novas leis. O momento da entrada em vigor de uma lei depende do que
dispõe a própria no seu texto.
40

Não obstante o aparato montado, o cidadão comum não ficará muito convencido,
pois ele jamais em sua vida olhará essas publicações. Ele dirá que, apesar do esforço,
apenas os advogados sabem sobre a lei – e sua observação poderá se traduzir numa
reclamação sobre favorecimento, a qual, para Voegelin, é injusta. A função mesma do
advogado, segundo ele, é preencher o vácuo que existe entre a máquina de publicação e o
conhecimento do membro ordinário da sociedade.
Conhecer o direito requer uma dedicação profissional que absorve todo o homem.
O cidadão cujo tempo e energia são absorvidos num trabalho de sua especialização não
pode ser ao mesmo tempo um “expert” jurídico. Quando o homem comum se depara com
uma questão legal, ele precisa do assessoramento de um advogado.
A profissão jurídica tem, portanto, uma função pública de manter a ordem da
sociedade enquanto mediadora da ordem jurídica e do conhecimento do cidadão ordinário
a seu respeito. À luz dessas observaçõs, a presunção de que o cidadão conhece o direito
não parecerá tão fantástica.
41

XIV Os Dois Tipos de Projetos.

Se, em primeiro lugar, enxergamos a ordem jurídica dentro do processo


legislatório, depois foi necessário posicioná-la dentro do contexto mais amplo da
sociedade a cujos membros a norma é dirigida, e assim as normas adquiriram o caráter de
projetos para a ordem concreta da sociedade, em cujo coração descobrimos o Dever na
acepção ontológica, a tensão na sociedade que reclama esforços refinados para criar e
manter a ordem.
Agora, devemos tomar ciência de que o processo legislatório é apenas um dentre
os esforços dirigidos a projetar e concretizar a ordem da sociedade. Toda a sociedade está
atenta a projetos de ordem em variados graus de articulação e racionalidade, desde
reformas de boa-vontade até o ressentimento violento, desde a pressão efetiva até a raiva
impotente.
Duas classes de fenômenos são de interesse para o estudo jurídico: Os projetos
destinados a ser realizados empiricamente numa sociedade concreta e os projetos que se
destinam a servir de modelos de uma ordem justa, mas com pouca expectativa de serem
cumpridos concretamente.
O renomado constitucionalista carioca Luiz Roberto Barroso delineou três tipos
de normas constantes da Constituição e aproveitamos sua classificação para demonstrar a
semelhança com a teoria de Voegelin. Diz ele:
Com fundamento na idéia de Constituição(...), tem-se que as normas constitucionais
enquadram-se na seguinte tipologia:
A. Normas constitucionais que têm por objeto organizar o exercício do poder político:
NORMAS CONSTITUCIONAIS DE ORGANIZAÇÃO;
B. Normas constitucionais que têm por objeto fixar os direitos fundamentais dos
indivíduos: NORMAS CONSTITUCIONAIS DEFINIDORAS DE DIREITO;
C. Normas constitucionais que têm por objeto traçar os fins públicos a serem alcançados
pelo Estado: NORMAS CONSTITUCIONAIS PROGRAMÁTICAS. (BARROSO,
2006, p. 90)
Os dois primeiros tipos de normas visualizados por Barroso pertenceriam à
primeira classe de fenômenos que Voegelin admitiu. Tanto as normas de organização do
42

Estado quanto as normas que fixam os direitos são projetos que visam a ser efetivados
empiricamente na sociedade, ao passo que as normas programáticas, as quais “têm por
objeto estabelecer determinados princípios ou fixar programas de ação para o Poder
Público”11 (BARROSO, 2006, p. 114), se enquadram no conjunto voegeliano de projetos
que se destinam a servir de modelos de uma ordem justa, mas que não tem o condão de
ser aplicados ou exigidos de imediato.

11
As normas programáticas “contemplam certos interesses, de caráter prospectivo, firmando determinadas
proposições diretivas, desde logo observáveis, e algumas projeções de comportamentos, a serem efetivados
progressivamente, dentro do quadro de possibilidades do Estado e da sociedade.” (BARROSO, 2006, p.
114)
43

XV Os Processos Legislatórios Empírico e Filosófico.

No momento, não preocupam mais os resultados do trabalho platônico-


aristotélico, mas sua intenção. Os filósofos desenvolveram teorias da ordem que não
esperavam fossem aplicadas como regras válidas na sociedade em que viviam.12 Uma vez
escrita a obra, o trabalho está feito. Se houver condições históricas para que a projeção da
ordem se realize empiricamente, tanto melhor, porém nem Platão nem Aristóteles
acreditavam que suas teorias da ordem verdadeira pudessem ser aplicadas. É interessante
lembrar a Voegelin que Platão, já tendo passado pelos ardores da juventude, e contando
por volta dos trinta e cinco anos, envolveu-se em episódio interpretado por alguns
estudiosos como uma tentativa de golpe na pólis de Siracusa, e por isso foi vendido como
escravo. O renomado historiador de filosofia Frederick Copleston conta a história:
Plato was invited to the court of Dionysius I, Tyrant of Syracuse, where he became a
friend of Dion, the Tyrant’s brother-in-law. The story goes that Plato’s outspokenness
excited the anger of Dionysiusm who gave him into the charge of Pollis, a
Lacedaemonian envoy, to sell as a slave. Pollis sold Plato at Aegina (at that time at war
with Athens), and Plato was even in danger of losing his life; but eventually a man of
Cyrene, a certain Anniceris, ransomed him and sent him to Athens. (COPLESTON,
1993, p.129)
Platão conseguiu se livrar da escravidão e, de volta à Atenas, fundou a Academia
para educar a elite ateniense e também a estrangeira. O homem que se sentia
poderosamente atraído pela vida política desde jovem13 nunca mais se envolveu com ela,
a não ser para ensiná-la.
Para Voegelin, o filósofo é o legislador da verdadeira ordem, e rivaliza com o
legislador da sociedade empírica cuja ordem carrega uma verdade apenas relativa. O
problema do direito não se exaure com a mera existência de uma sociedade sob uma
ordem qualquer, mas só se completa com a análise dessa mesma sociedade e sua ordem

12
A esse respeito, conferir Platão, República, livro V, 450b-d e 472c-473c.
13
Na Carta VII, o filósofo afima explicitamente: “Desde jovem (...) passei por uma experiência comum a
muitos e me decidi firmemente a uma coisa: apenas em condição de dispor da minha vontade, logo dedicar-
me à vida política.” Apud Reale, Giovanni, 2007, p. 236.
44

histórica pelos parâmetros e critérios fornecidos pela ordem verdadeira desenvolvida pelo
filósofo.
Os dois processos legislativos, o empírico e o filosófico, estão relacionados um
com o outro. Um rápido olhar sobre as Leis de Platão mostra que as leis não têm um
papel significativo em comparação com os preâmbulos, ou seja, com a exposição
pormenorizada dos motivos que deram origem àquela lei. Caio Mário da Silva Pereira
recorda esse aspecto ressaltado por Platão no capítulo Interpertação da Lei, da sua obra
Instituições de Direito Civil:
Pesquisa-se a razão da norma, e verifica-se o que se pretendeu obter com a sua
votação.(...)A lei tem em vista um objetivo e se justifica por uma razão; a lei foi votada
em determinado momento e não em outro; a lei traduz as idéias políticas, filosóficas e
econômicas dominantes no meio social de que se destina a regular as atividades. O
intérprete não pode desprezar todos esses fatores, ao precisar o que a lei deve conter
efetivamente. Tem de indagar qual a sua ratio(...). (PEREIRA, Instituições de Direito
Civil, vol. 1, ps. 128-129)
Intérpretes modernos, continua Voegelin, reclamam que Platão não desenhou um
projeto de ordem acabado, porém fragmentário, faltando detalhar-lhe os preceitos legais,
ao que o próprio Platão responde que qualquer um que haja entendido a essência da
ordem é capaz de elaborar bons projetos de lei.
Não obstante ser o modelo da ordem secundário em relação à análise da essência,
ele não é supérfluo. A análise do filósofo nasce da resistência da ordem substantiva que
encontra dentro de si frente à desordem ambiente. O projeto do filósofo e a ordem
empírica não estão em franca oposição; estão em verdade ligados por projetos transitórios
que tratam de forma mais ou menos precisa a realidade do Dever. Por isso, Platão, não
apenas desenvolveu seu projeto de pólis em que os filósofos são reis, mas também
concebeu, nas Leis, uma pólis reserva, em que os governantes, embora não sejam eles
próprios filósofos, estão muito bem treinados em filosofia de modo a conseguir fazer leis
que passam por um crivo filosófico. Giovanni Reale, importantíssimo estudioso da
filosofia clássica, auxilia à compreensão da política platônica no livro dedicado a ele:
O que poderia dizer-nos ainda em matéria política o nosso filósofo depois da grandiosa
construção do Estado Ideal?
45

A resposta é simples se tivermos presente, de modo particular, as finalidades da


Academia. E Escola que Platão fundou tinha por alvo educar, essencialmente, homens
políticos, homens formados de um modo novo para um novo Estado. A atuação histórica
do ideal desenhado na República era impossível, e o próprio Platão declarou-o
explicitamente realizável somente na dimensão espiritual (na nossa alma). De outra parte,
os tempos não estavam ainda maduros para que fosse aprofundada a intuição das duas
Cidades (terrena e celeste) e do homem como cidadão de duas Cidades. Era necessário
que o filósofo oferecesse, além do modelo do estado ideal, pontos de referência mais
realistas, indicações historicamente mais realizáveis e que a problemática política fosse
reproposta em outra ótica. Justamente para responder a essas exigências, Platão
amadureceu o desenho do “segundo Estado”, ou seja, do Estado que vem depois do
Estado ideal: um Estado que, à diferença do primeiro, leva em conta não somente o como
o homem deve ser, mas o como ele é efetivamente: um Estado, em suma, que possa mais
facilmente encarnar-se na história. (REALE, 2007, p. 275)
Platão chegou mesmo a conceber uma terceira ou quarta possibilidades de pólis
bem governada, para o caso de a segunda ser um fardo muito pesado para o homem pôr
em prática.14
A preocupação principal, entretanto, não são os detalhes da obra de Platão, porém
seu princípio: A ordem empírica da sociedade se realiza em degraus de realidade
conforme se articula a tensão do Dever no sentido ontológico. A normatividade da lei é
uma participação substancial da verdadeira ordem. Não é por que uma lei foi aprovada
segundo os trâmites legislatórios especificados que ela será lei sem qualquer
questionamento. Se o seu grau de substancialidade, ou seja, o seu grau de participação no
Dever no sentido ontológico, cair a um nível muito baixo, pode haver uma insatisfação ao
ponto de assumir contornos revolucionários.

14
O rei Luís IX, da França, que não era filósofo, mas foi santo, tendo sido canonizado em 1298 com o
nome de São Luís da França, pode ser considerado um exemplo de monarca semelhante ao que Platão tinha
em mente ao conceber o modelo hipotético da República. Entretanto, como bem o sabia Platão, a
possibilidade de um governante filósofo acontecer é remotíssima, e por isso ele enxergava suas construções
teóricas como projetos de ordem que ficariam além da ordem social concreta e a ela julgariam.
46

XVI A Sociedade como uma Entidade Auto-Organizadora.

As regras têm a pretensão de exprimir uma verdade sobre a ordem, elas se


referem em última instância ao Dever em sentido ontológico, isto é, à tensão entre a
ordem do ser e a parte dessa mesma ordem que precisa ser estabelecida na sociedade pela
ação humana. A mera definição do Dever por Voegelin já implica numa conclusão: A
ordem da sociedade sempre ficará aquém da ordem do ser, a qual só pode ser perfeita na
vida do homem individual, e mesmo essa ocorre em casos raríssimos. Essa ordem do ser
perfeita na vida de um poucos indivíduos dedicados, quando se transplanta para a ordem
social, será imperfeita porque a sociedade não é um organismo, mas um conjunto de seres
humanos, a maioria deles imperfeitos.
No coração da normatividade, encontram-se duas pessoas que criam regras para o
homem: Em primeiro, Deus, e depois, o homem reflexivo. Além desse núcleo ontológico,
outras pessoas podem dirigir-lhe normas: O padre, amigos, pais, senhores, filósofos e
oficiais do governo. Entretanto, Voegelin insiste em afirmar, essas pessoas não criam
regras com autoridade normativa. Existe um ius divinum et naturale, mas definitivamente
não existe um ius sociale et historiale autônomo.
A criação e aprovação de regras sociais, gênero do qual as normas são espécies,
são um processo da sociedade mesma. Voegelin reclama, entretanto, que
é muito difícil extrair as implicações dessa simples observação porque a análise está
obstruída pela linguagem cotidiana que se preocupa mais com as tensões no campo
social do que com a unidade do campo que é fissurado pela tensão.15 (VOEGELIN,
1991, p. 56)
Acostumamos a falar nas dicotomias de governante e governado, legislador e
legislado, comandante e soldado, pai e filho, mas esquecemos da entidade da sociedade
em que as respectivas relações de comando e obediência ocorrem. A existência humana é
ontologicamente social, porque o nascimento e a criação dentro de uma família são
ontologicamente a maneira do homem de existir, e não produto de escolha. A alternativa
à existência dentro de uma sociedade, sem contar o suicídio, não é a existência solitária
mas a existência em outra sociedade concreta. Sendo assim, uma sociedade tem sua razão
15
Tradução nossa.
47

de ser apenas enquanto permite a seus membros ordenarem suas vidas na verdade. A
sociedade existe desde que desenvolva um processo auto-ordenatório, sendo o processo
auto-ordenatório é seu modo de existir. Alguém pode dizer que a sociedade cria as regras
sociais para si própria. Pode-se considerar essa afirmação como um nonsense, porque a
regra é algo que uma pessoa cria para outra pessoa. Mas, ajunta Voegelin, é precisamente
esse nonsense que pode melhorar a nossa consciência da dificuldade da análise da ordem
jurídica, isto é, do caráter impessoal da regra legal.
A norma não tem nem um legislador pessoal nem um destinatário pessoal. Esta
dificuldade não pode ser superada erigindo a sociedade, o estado ou o soberano num
legislador pessoal fictício. Não se pode tampouco aceitar a definição da regra legal como
uma regra genérica que carrega consigo a diferença específica da sanção pela força do
governo. A classificação do fenômeno não tem utilidade quando um problema ontológico
requer análise.
48

XVII A Representação da Sociedade.

O problema que se coloca, então, é: Como pode uma sociedade, que não é uma
pessoa, criar regras? A resposta a essa pergunta é clara no nível fenomênico. Uma ou
mais pessoas, dentro de certas condições, emitirão sentenças que serão consideradas
regras válidas para a conduta dos membros da sociedade. Nem toda sentença, é óbvio,
será considerada uma regra. Voegelin dá o exemplo de alguém que quer fazer suas
convicções morais estúpidas serem adotadas por outrem e recebe a resposta de que deve
se importar com sua própria vida. O pretensos legisladores, diz ele, são comuns em toda
sociedade e podemos distinguí-los do verdadeiro legislador, a quem damos o status de
representante da sociedade. A organização para a ação, tanto externa quanto interna,
através de um representante, é a maneira pela qual a sociedade existe. O processo
legislatório, assevera nosso autor, desde a constituinte até as decisões administrativas e
judiciais, é a auto-organização da sociedade, por meio dos seus representantes, para a sua
existência ordenada.
As normas, de fato, são feitas por seres humanos. Nós as obedecemos não em
respeito à condição de ser humano do seu criador, mas em referência à autoridade de
representante da sociedade desse criador. Já que o legislador age como um representante,
não como uma pessoa, é possível criar órgãos coletivos com o objetivo de legislar, cujos
atos têm nitidamente um caráter representativo e impessoal.
49

XVIII O Cálculo do Erro.

Esta representação não é mero jogo de cena, tratando-se em verdade de uma arte
necessária para a existência ordenada do homem na sociedade. Seu objetivo é a
realização da ordem, e esta não é o prazer de alguém, mas a organização substantiva da
vida humana em concordância com a ordem do ser conforme experimentada no Dever em
seu sentido ontológico.
Dado que o representante, esteja ele em posição alta ou baixa no nível hierárquico
do processo legislatório, é um ser humano e, como tal, falível, ele pode usar mal sua
função de representante e se afastar da verdade da ordem. Esses fenômenos de mau uso
do poder de governar são conhecidos por qualquer pessoa em qualquer época, sendo
assim, esse problema não foi rejeitado por Aristóteles e Platão. Ambos distinguiram entre
as formas boas e más de governo, conforme o governate de plantão estivesse perseguindo
o bem comum ou o bem privado. As três formas boas de governo para eles são a
monarquia, a aristocracia e a constituição, enquanto as degenerescências dessas são a
tirania, a oligarquia e a democracia. O primeiro par é o governo de um homem apenas, o
segundo o governo de uma casta, e o terceiro o governo de muitos cidadãos. Voegelin
não está preocupado com o conteúdo a ser atribuído ao bem comum, mas com o
fenômeno de sua formação, submetido ao objetivo de estabelecer uma ponte entre o
processo legislatório e a substância ontológica da ordem.
A tensão entre a substância da ordem e o possível mau uso do processo
legislatório , além disso, não é apenas um objeto de contemplação para o filósofo mas o
motivo para experimentos que visem à salvaguarda institucional contra o mau uso. A
separação de poderes, o “Bill of Rights”, o Judiciário independente, o sufrágio universal e
a eleição de representantes para um período curto de mandato são exemplos de esquemas
que buscam diminuir o mau uso do poder nos Estados Unidos da América. O Brasil, a sua
vez, desde 1988, a partir da promulgação da chamada Constituição cidadã, conta com
esses mesmos dispositivos que Voegelin cita. Porém, recorda ele, mesmo os melhores
artifícios não estão completamente isentos de falhas, pois o balanço das instituições é ele
próprio forjado por seres humanos, como tais, falhos. Voegelin observa que mesmo o
arranjo das eleições livres e universais se provaram decepcionantes em determinados
50

casos, pis governos totalitários como o de Hitler conseguiram alçar-se ao poder pelo voto
das urnas.
Conclui Voegelin que a tensão entre a ordem verdadeira e a empírica jamis pode
ser abolida, embora a discrepância entre as duas possa ser diminuída através de uma série
de artifícios a um mínimo que não acarretará na revolta popular. Mesmo um
representante que não seja tão bom assim é preferível a um levante violento cujas
conseq6uências não se podem medir. Em toda sociedade, o processo legislatório repousa
sobre o entendimento de que uma considerável margem de erro em referência à verdade
da ordem deve ser permitida. Embora haja limites para as proporções que o erro possa
assumir, é preferível viver numa sociedade com graves e constantes injustiças nos casos
singulares a estar sob o caos e a desordem. O cálculo do erro é mais um componente no
caráter impessoal da lei.
51

XIX O Uso da Força.

Por fim, Voegelin pretende analisar o elemento ligado à validade da norma legal
que muitos teóricos inclinam-se a chamar de sua diferença específica, qual seja, a sanção
pela força.
O uso da força para a imposição da ordem jurídica é necessária por uma série de
razões, a primeira das quais é o recém discutido cálculo do erro. Tendo em vista que há
uma discrepância entre a ordem verdaeira e a empírica, o uso da força é necessário para
eliminar a desobediência dos cidadãos que contendem que o conteúdo da regra está em
desacordo com o Dever no sentido ontológico. O exemplo mais claro fornecido por
Voegelin é o do chamado contribuinte que recusa-se a pagar os tributos até que os gastos
do governo estejam em níveis condizentes com a razão à luz da ordem verdadeira. O
debate sob a justiça da lei acerca de tributos considerados injustos deve se ater à crítica
ou à ação política, sob pena de a existência da sociedade ficar ameaçada. Ressaltamos,
caso Voegelin não tenha incluído no conceito de ação política a petição jurisdicional,
que a justiça de um tributo pode também ser discutida judicialmente. O cidadão pode
inclusive deixar de pagar um tributo sabendo-o manifestamente ilegal, porém deverá
provar sua tese em face dos tribunais. Se não o fizer, deverá pagar o tributo acrescido de
eventuais juros de mora. Henry David Thoreau, autor americano, foi preso por recusar-se
a pagar o “poll-tax” e justificou-se dizendo que não hesitava em pagar um tributo para a
construção de uma rodovia, por exemplo, mas discordava do tributo sem destinação
específica, como o caso do “poll-tax”, o qual ele não saberia se seria utilizado para um
fim justo ou não.16 É em face dessa atitude que Voegelin se insurge para justificar o uso
da força. Diz ele: “Se a existência da sociedade deve ser preservada, não se pode permitir
que o debate se degenere em mera decisão individual e resistência” (VOEGELIN, 1991,
p. 62).
16
Diz Thoreau no seu trabalho Resistance to Civil Government: “I have never declined paying the highway
tax, because I am as desirous of being a good neighbor as I am of being a bad subject; and, as for
supporting schools, I am doing my part to educate my fellow countrymen now. It is for no particular item in
the tax-bill that I refuse to pay it. I simply wish to refuse allegiance to the State, to withdraw and stand
aloof from it effectually. I do not care to trace the course of my dollar, if I could, till it buys a man, or a
musket to shoot one with, — the dollar is innocent, — but I am concerned to trace the effects of my
allegiance. In fact, I quietly declare war with the State, after my fashion, though I will still make use and
get what advantages of her I can, as is usual in such cases.” (Thoreau, 1849, ¶36)
52

Em segundo lugar, a força é necessária porque a questão da verdade em relação à


ordem raramente permite uma resposta segura. A estrutura de uma sociedade é
infinitamente complexa e a melhor ação política a respeito de um problema específico, à
luz do bem comum, será matéria de debate com prós e contras muitas vezes sem pesar
para um lado; de modo que quando a decisão for tomada, ela freqüentemente conterá um
elemento de arbritariedade. O debate não pode se estender eternamente se a sociedade
quiser sobreviver, e uma vez que a decisão for tomada pelo representante a desobediência
fundada na discussão do mérito da medida não pode ser permitida.
A terceira e última razão pela qual a sanção pela força é necessária tem em
Aristóteles primazia teórica. Toda a organização social voltada à criação e aplicação de
leis seria supérflua, diz ele, se o homem agisse em concordância com a ordem verdadeira
sem a compulsão ou sua ameaça. Se o homem se eximisse de cometer açõs más por
piedade ou vergonha, ou se seus colegas o admoestassem a seguir a conduta correta, o
direito seria desnecessário.
Mas essa, assinala Voegelin, não é a natureza do homem. Sua natureza é de
ordenar sua conduta pela razão e pela consciência. Mas é da natureza do homem também
não agir assim, como uma pessoa. Para início de análise, o homem não vem ao mundo
como uma pessoa formada, mas como uma criança. Sua personalidade é uma estrutura n
alma que cresce devagar e raramente atinje a maturidade antes dos trinta. Aristóteles
chama o homem plenamente amadurecido de spoudaios — entretanto quando ele fala da
possibilidade de efetivar uma ordem verdadeira na pólis helênica, diz, hiperbolicamente
ou não, que em nenhuma cidade grega seria possível achar cem homens maduros que
formassem uma elite governante. Além das crianças, existe em toda a sociedade os
“escravos pela natureza,” ou seja, homens que por uma razão ou outra jamais se tornam
maduros e sempre necessitarão da pressão social, admoestações enérgicas e até a ameaça
do uso da força para mantê-los no bom caminho. Cabe aqui, na trilha de Voegelin,
desfazer um erro cometido em larga escala entre os leitores de Aristóteles. O filósofo não
dá a entender que é a favor da escravidão na Política. Ele diferencia a escravidão pela
natureza e pela lei, sendo essa a do vencido na guerra, e aquela a do homem moralmente
inferior, que não tem as virtudes do livre. Referindo-se às pessoas que só admitem a
escravidão por natureza, diz: “É evidente que precisam admitir que existem homens que
53

são servos em qualquer parte, enquanto outros não são escravos em parte alguma”
(Aristóteles, 2002, p. 20). Dirá ainda: “Existem escravos e homens livres pela própria
ação da natureza” (Aristóteles, 2002, p. 21). Esses “escravos por natureza” ainda podem
ser úteis à sociedade em virtude de suas habilidades especiais, mas não são homens em
quem a ordem verdadeira se manifestará e poderá através deles se refletir na ordem da
sociedade.
Essas forças da alma que prejudicam o alcance pelo homem da verdadeira ordem
são tão humanas, essencialmente humanas, quanto o desejo de realização da ordem. Todo
homem precisa carregar o fardo de suas paixões demasiadamente humanas. Em suma: a
natureza humana não é de todo pessoal. Contém, isto sim, um campo poderoso de
paixões e concupiscências que não apenas não são humanas como também prejudicam a
formação e ação do centro pessoal na alma. Platão, professor de Aristóteles, também trata
bastante do tema quando fala das forças na alma, no seu diálogo Fedro, comparando o
homem, numa alegoria de resto já famosa, a um carroceiro que precisa educar um de seus
cavalos, o rebelde, para que a natureza dócil do outro possa se sobressair. Assim, o uso da
força não é necessário para impor uma ordem verdadeira na pessoa humana, ela é
necessária para impor uma ordem que tangencia os traços da personalidade humana sobre
a natureza impessoal do homem. Em particular, o uso da força é necessário para quebrar
a impessoalidade no homem quando ela tende a convulsionar a ordem da existência
social humana.
O uso da força na imposição da ordem jurídica traz à lume a natureza impessoal
da norma legal: a impessoalidade da ordem jurídica tem sua fonte ontológica na
impessoalidade da natureza humana.
54

XX Os Componentes de Validade.

A ordem jurídica não tem um status ontolóligo de per si. Enquanto é objeto de
estudo sem relação com seu contexto, a validade de suas regras é apenas o significado de
suas proposições. A construção aplicada a esse corpo de significados leva ao impasse do
paradoxo zenônico. Com a introdução de fenômenos conexos, entretanto, a validade das
regras adquire uma realidade.
As regras legais, para início de análise, são proposições que tratam da ordem da
existência humana em sociedade. O verdadeiro conteúdo de uma norma, todavia, nem
sempre usa a fórmula normativa. O legislador dá por pressuposto o fenômeno contextual,
qual seja, a interpretação pelos membros da sociedade a fim de dar à lei significado
completo. O texto da lei poderia facilmente ser completado com os dizeres “Você deve”
ou “Você nâo deve”. A estrutura de sentido aponta para além do texto em direção à
realidade social em que a ordem jurídica adquire sua validade particular. A conduta dos
membros da sociedade preenche o conteúdo da norma legal. Entretanto, a ordem jurídica
não se refere à conduta humana com o objetivo de fazer valer uma proposição verdadeira
sobre a conduta dos seres humanos. A norma legal não é uma proposição científica, nem
o ser humano objeto de experimento por cientistas, muito embora seja possível com
alguma margem de erro prever a conduta dos membros de uma sociedade com base no
conhecimento de suas leis.
A intenção da lei, portanto, não é cognitiva, a lei ambiciona uma verdade, qual
seja, a verdade sobre a ordem da sociedade. Melhor do que a fórmula “Você deve” ou
“Você não deve” é a fórmula “É verdade que você deveria fazer isso ou aquilo” para
expressar com mais exatidão a linguagem normativa. A verdade da proposição específica
pode ser submetida a uma análise crítica, porém qualquer norma legal, tanto quanto uma
proposição sobre acontecimentos no mundo sensível, pretende expressar uma verdade,
não obstante seja mais difícil aferir a verdade daquela do que a desta. O Dever é uma
realidade na experiência jurídica. Se o objetivo da existência humana é realizar a sua
natureza ao máximo possível dentro dos poderes humanos, então um determinado curso
de ações será preferível a outro. O caráter normativo de uma ação contemplada pela regra
não se refere à forma da regra, mas à ação em mira. Se o caráter normativo de fato se
55

adequa ao tipo de ação é outra análise crítica a ser feita. Qualquer outra construção
abandonaria a tensão ontológica do Dever e deixaria a questão da ordem à mercê da força
apenas. A validade da regra legal, portanto, contém o componente de normatividade no
sentido ontológico.
Mas a regra contém mais do que essa normatividade ontológica. O ius positivum
não é o ius divinum et naturale. Na validade da norma legal entra ainda o componente da
existência impessoal do homem. O fator impessoal permeia o processo legislatório desde
a criação de um representante até a imposição de decisões individuais em casos
concretos. Esta autoridade de poder não é uma fonte adicional de normatividade17, pois
não há existência humana independente da ordem da sociedade. A ordem da existência
humana é de modo indivisível a ordem da existência humana na sociedade. É necessário
que haja, seja o que for a natureza humana, uma organização social com o poder de fazer
e aplicar a lei, porque a sociedade é ontologicamente a maneira humana de existir. O
poder do representante e sua função legiferante não é uma fonte independente de
normatividade, é uma fonte em separado da validade da regra legal, além da razão e da
revelação.

17
Compreende-se portanto por que o Senhor foi contra a nomeação de um rei para o povo de Israel. A
nação de Israel, que pediu ao profeta Samuel um rei, foi atendida mesmo contra a vontade do próprio
Senhor. Dirigindo-se a Samuel, o Senhor disse: “Não é a ti que eles rejeitam, mas a mim, pois já não
querem que eu reine sobre eles.(...) Atende-os, agora(...)” (Bíblia, 2006, I Samuel, 8, 7-9, p. 312). Ou seja,
se Israel achava que teria uma fonte melhor de normatividade ontológica por adicionar uma instância de
poder, enganou-se redondamente, como a própria história dos reis mostrará, os quais eram tão falhos
quanto qualquer juiz, que formavam a classe de governantes antes da instauração da monarquia.
56

XXI A Ordem Jurídica e a Sociedade Histórica Concreta.

Os resultados finais de nossa análise apontam que a ordem jurídica e sua validade
têm raízes na natureza do homem e sua existência em sociedade, porém não obstante isso
a ordem jurídica não pode ser deduzida da natureza humana. Entre a existência humana
em sociedade e os esforços do representante de ordená-la através do processo legiferante,
existe a sociedade historicamente concreta, a qual pode ser pequena, grande, nômade,
baseada em agricultura, industrial, comercial. Pode ser uma comunidade tribal, uma
cidade-estado, um estado-nação, um império. E pode além disso referir-se a um mito
cosmológico, ou já haver diferenciado o conteúdo mitológico-racional da revelação.
As questões sobre a ordem jurídica, portanto, estão longe de uma solução pacífica
com a garantia de que os elementos pessoais e impessoais da natureza humana compõem
sua validade. Existe a questão proeminente da ordem ótima dentro das condições
históricas dadas e também a questão sobre a técnica legal para atinjir os melhores
resultados.
Já que o direito tem sua função na ordenação concreta de uma sociedade, não
existe uma história do direito no sentido estrito. A história do direito só existe enquanto
subordinada a das sociedades.
Para uma pesquisa sobre a natureza do direito, o acontecimento mais importante
da história da ordem social é a diferenciação das fontes normativas de autoridade, a razão
da revelação, nas experiências compactas e simbólicas do mito. Sob este aspecto, três
tipos de direito podem ser distinguidos: o direito no contexto de uma sociedade que é
ordenada por um mito cosmológico, o direito em sociedades que experimentaram uma
revelação (Israel, por exemplo1819) ou a filosofia (os gregos antigos20 e a Roma clássica);

18
O primeiro livro da Bíblia, Gênesis, contém a narrativa mito-poética da criação do mundo. Ao longo
desse livro, distinguem-se também a história de homens que seguiam os passos do Senhor: “Noé obedeceu
e fez tudo o que o Senhor lhe tinha ordenado” (Gn, 6, 22) ou “Abraão partiu como o Senhor lhe havia dito”
(Gn, 12, 4). Já a partir do segundo livro, o Êxodo, o Senhor não mais ordena aos homens de modo pessoal
apenas, porém lança as bases da ordem da sociedade judaica, sobretudo pela revelação dos Dez
Mandamentos. De uma relação pessoal com homens determinados, devotos e confiantes no império do
Senhor, a relação se estende a todo o povo israelita.
“Deus disse a Moisés: “Eu sou o Senhor. Apareci a Abraão, a Isaac e a Jacó como Deus todo-
poderoso, mas não me dei a conhecer a eles pelo meu nome de Javé. Eu me comprometi com eles
a lhes dar a terra de Canaã, a terra onde levaram uma vida errante e habitaram como estrangeiros.
Ouvi o clamor dos israelitas oprimidos pelos egípcios, e lembrei-me da aliança. Por isso, dize aos
57

israelitas: eu sou o Senhor; vou libertar-vos do jugo dos egípcios e livrar-vos de sua servidão.(...)
Tomar-vos-ei para meu povo e serei o vosso Deus(...).” (Ex, 6, 2-7)
No contexto da escravidão junto aos egípcios, o Senhor reaviva a aliança que fizera com os
homens devotos do livro anterior e a estende para todo o povo. O “povo escolhido” carregará uma série de
responsabilidades. A relação que era pessoal agora passa a ter ao mesmo tempo um conteúdo impessoal,
pois nem todos os membros do povo de Israel confiam plenamente no Senhor: “Toda a assembléia dos
israelitas pôs-se a murmurar contra Moisés e Aarão no deserto. Disseram-lhes: “Oxalá tivéssemos sido
mortos pela mão do Senhor no Egito, quando nos assentávamos diante das panelas de carne e tínhamos pão
em abundância.”” (Ex, 16, 2-3) Por isso a instituição de normas de conduta é necessária e, portanto,
adotada. São os Dez Mandamentos (Gn, 20) e outras leis (Gn, 21-23). Além das normas impessoais de
conduta, haverá sempre o profeta, intermediário entre o Senhor e o povo de Israel, o qual carrega a
mensagem do Senhor para o povo e o incita a continuar nos passos do Senhor, ou, caso o povo tenha se
desviado deles, a retomá-los.
Voegelin tem um livro para falar sobre a revelação ao povo de Israel, trata-se do primeiro dos
cinco volumes de sua obra magna, Ordem e História.
19
A especulação racional a respeito da inspiração profética foi feita por filósofos judeus como Filo de
Alexandria, que viveu no mesmo período que Jesus de Nazaré, e Maimônides, durante a Idade Média.
Neste sentido, veja-se a obra deste segundo, Guia dos Perplexos, parte 2, capítulos 32 a 48.
20
No caso dos gregos antigos, os atenienses em particular, a referência a uma ordem verdadeira, para além
da ordem empírica, foi dada também pelo teatro. As apresentações teatrais em Atenas eram subvencionadas
pelo estado e por cidadãos ricos, espécies de mecenas avant la lettre, chamados coregos. O próprio estado
bancava produções artísticas, as quais, muitas vezes, estabeleciam verdades que se sobressaíam à ordem
vigente na pólis grega. A peça Antígona é um exemplo.
Na trilogia tebana de Sófocles, na peça Antígona, a personagem de mesmo nome é filha do rei
amaldiçoado Édipo, que por engano assassinara seu próprio pai e casara com a mãe. Antígona é
filha dessa união, bem como seu irmão Polinices. Depois que Édipo descobre a tragédia que recaía
sobre si, Polinices vai embora da cidade de Tebas e encontra refúgio na cidade inimiga de Argos.
Na guerra entre as duas cidades, Polinices morre, bem como seu irmão Eteocles, o qual
permancera em Tebas. Contrariando um decreto do rei Creon, que mandara que o corpo de Polinices
fosse deixado insepulto para os cães e pássaros comerem, Antígona enterra seu irmão,
honrando-o com as devidas preces aos deuses. Furioso, o rei Creon exige que Antígona seja punida.

Antígona fala em sua defesa, respondendo a Creon:

Creon -- E mesmo assim você ousou quebrar essas mesmas leis?

Antígona -- Sim. Zeus não anunciou essas leis para mim. E a Justiça que vive nos deuses
abaixo não enviou tais leis para os homens. Não considerei qualquer coisa que você tenha
proclamado forte o bastante para deixar que um mortal sobreponha-se aos deuses e suas leis não
escritas e imutáveis. Elas não são justas para hoje ou ontem, mas existem sempre, e ninguém sabe
onde apareceram pela primeira vez. Então não me permiti que um medo de alguma vontade humana
levasse a minha punição entre os deuses. Sei muito bem que vou morrer- como não iria? -não faz
diferença o que você decreta. E se eu tenho que morrer antes do meu tempo, bom, eu conto isso
como um ganho. Quando alguém deve viver do jeito que eu vivo, cercada por tantas coisas más,
como pode ela não achar um benefício na morte? De modo que para mim encontrar esse destino
não me trará qualquer medo. Mas se eu permitisse que o próprio filho morto de minha mãe
permanecesse ali, um corpo insepulto, então eu me sentiria desgraçada. O que acontece aqui não
me atinge de modo algum. Se você crê que o que estou fazendo agora é estúpido, talvez eu esteja
sendo acusada com insensatez por alguém que é um insensato.
(LOURENÇO, Daniel. Noção de justiça em Ésquilo e Sófocles. Disponível em:
<http://www.daniellourenco.com/2008/03/noo-de-justia-em-squilo-e-sfocles.html>. Acesso em
07/07/2009).
58

e o direito no contexto do império romano e da civilização ocidental, em que a razão e a


revelação estão presentes como fontes autorizadas de ordem.21
Embora as autoridades da revelação e da filosofia sejam negligenciadas na ciência
do direito hoje, a relação das três autoridades – o poder político é a terceira – é de capital
importância para a realização da ordem verdadeira na sociedade. Essa questão assumiu
relevância especial nos dois séculos passados em virtude do surgimento de movimentos
gnóstico-revolucionários que pretendem ordenar a sociedade fundindo a autoridade
normativa na autoridade de poder.22 Esta fusão das autoridades teria que ser adicionada
como um quarto tipo de direito, haja vista que a fusão deliberada não é o mesmo que o
plano compacto inicial. A distinção dos grandes tipos de ordem na história, no contexto
dos quais funcionou o processo legislatório, deve ser o último resultado da pesquisa sobre
a natureza do direito.

21
Interessante observar que, na civilização islâmica, praticamente todo o conjunto do direito está dado ou
no seu livro sagrado, o Corão, ou na Sunna, os atos e ditos de seu profeta Maomé. A filosofia não pretende
ser fonte autorizada para a organização da vida civil naquela civilização, salvo como fonte subsidiária à
exegese (Ijtihâd) do Corão, a qual constitui o principal trabalho do jurista.
22
Não só os movimentos gnóstico-revolucionários fizeram essa fusão. Quando o rei Henrique VIII, da
Inglaterra, unilateralmente renegou a autoridade papal e criou a sua própria Igreja, ele estava fazendo
exatamente o mesmo, ou seja, acumulou na figura do monarca a autoridade do poder bem como a
autoridade normativa da revelação, como chefe da organização voltada a explicar o conteúdo da revelação
cristã para os ingleses. A diferença é que ele não se arrogou também a autoridade de filósofo.
59

XXII Conclusão

Vimos ao longo desse trabalho a contribuição de Voegelin para a teoria do direito.


Resumimos seu livro “The Nature of Law”, e construímos digressões e comentários, bem
como comparamos sua teoria com de outros autores, para melhor explicá-la e aproximá-
la da doutrina brasileira.
Vimos que o direito não pode ser compreendido como um conjunto de normas
jurídicas, pois essa compreensão cairia dentro do paradoxo zenônico, onde o cachorro
corre atrás do próprio rabo.
O direito deve ser entendido dentro do esforço da sociedade de contruir a sua
ordem. Só assim a norma jurídica é entendida com a força do mandamento ontológico
que inegavelmente tem.
Por fim, abrimos a possibilidade de refletir sobre duas fontes da ordem social – e
portanto do direito – que estão esquecidas, quais sejam a revelada e a filosófica.
Esperamos que o leitor possa sair dessas páginas, não apenas compreendendo a
teoria voegeliana sobre o direito, mas também com o desejo aguçado de conhecer mais da
obra desse grande filósofo.
60

XXIII Adendo: Voegelin e Kelsen

Voegelin, um dos maiores filósofos políticos do século XX e Kelsen, o pensador


jurídico mais influente do século, travaram uma discussão sobre a teoria jurídica.
Infelizmente, não temos acesso à resposta de Kelsen à obra mais conhecida de Voegelin,
“A Nova Ciência da Política”, onde Voegelin faz críticas ao positivismo. Kelsen escreveu
“Uma Nova Ciência da Política? Réplica a Eric Voegelin”.23
A referida obra de Voegelin não trata especialmente sobre o direito, apenas
incidentalmente, referindo-se a ele como parte que é, tal qual vimos ao longo desse
trabalho, do esforço humano de ordenar a sociedade. Entretanto, seria importante
explorar o debate entre os dois autores nesse nível filosófico. A tarefa ficará para um
próximo trabalho.
Não obstante, Voegelin também publicou um artigo em revista científica em que
critica a Teoria Pura do Direito de Kelsen. A partir de agora, analisaremos esse artigo.24
Voegelin elogia o trabalho de Kelsen como um grande sistema de doutrina sobre
o Estado, e já em 1927 previa que seria um trabalho de referência por bastante tempo. Ele
identifica a tendência de delimitar o campo de estudo jurídico da massa de problemas
concernentes ao Estado desde os anos 1860, pela obra, por exemplo, de Jellinek.
O direito, segundo Kelsen, pertence ao reino da essência, não da existência.
Entretanto ele desiste de tentar definir o direito, pois, enquanto essência, conforme a
lógica néo-kantiana de Simmel, ele é uma “categoria original”, impossível de definir,
como o Pensamento ou o Ser. Mas pode ser descrito. O reino da essência é um reino de
postulados, não de existência no tempo e espaço. “Os postulados podem pedir que atos
sejam realizados no tempo e espaço, porém o postulado mesmo tem sua entidade em
outro reino” (VOEGELIN, 1927, p. 270). O postulado existe como tal independente se
alguém o pratica ou escuta-o, etc. Seu nascimento, todavia, se dá através de situações
históricas concretas. Ou seja, o postulado, não sendo ele próprio pertinente ao mundo da
existência, dele tira sua entidade, o que nos parece bastante esquisito, pois como pode

23
Livro publicado na Argentina por Katz Editores, sob o título ¿Una nueva ciencia de la política?
24
Kelsen’s Pure Theory of Law: Voegelin, 1927.
61

algo superior como a essência ser ontologicamente posterior à existência, que lhe é
inferior?
Continuemos com a exposição de Voegelin. Contrário à nossa indagação, Kelsen
diz que embora o postulado seja concebido no reino da existência, seu sentido ideal é
preservado com pureza incausada no reino das essências. O direito positivo é um sistema
de postulados no reino das essências. Seus elementos são as normas legais, e o objetivo
principal do jurista é analisá-los. Esses elementos, entretanto, não são as regras que
encontramos nos textos legais, eles se resumem numa “regra legal pura e simples”, que
possui duas partes, a primeira concerne à conduta humana, enquanto a segunda à conduta
coerciva do agente estatal. A regra completa é uma hipótese em que o agente estatal
exerce a conduta coerciva sobre a conduta descrita na primeira parte caso ela ocorra.
Os fatos que dão ensejo à conduta estatal podem ser chamados de ilegais ou
injustos apenas sob a ótica da máquina estatal, mas não se referem a um dever. Eles são
entendidos apenas como condições para a ação estatal. No capítulo XII deste trabalho, A
Regra enquanto Norma, já tendo criticado essa teoria, dissemos que o significado da
norma legal é o de um dever.
As vantagens analíticas da concepção kelseniana são evidentes. Toda a linguagem
de interesses, obrigações, liberdades, poderes, imunidades, reduz-se à fórmula prescrita
pelo texto legal do momento, o qual pode e deve mudar pelo desenvolvimento da
sociedade. O código de ética do momento informará o texto legal, mas a norma deve ser
contemplada apenas como uma hipótese, não como um mandamento no sentido
ontológico.
Estranhamente, Kelsen nega a existência da causalidade jurídica -- a categoria
causalidade, segundo ele, não tem significado para o direito -- entre a conduta do cidadão
e a conseqüente ação estatal. Ele cria uma categoria chamada imputação para suprir a
falta da existência real daquela.
Ele também considera a ordem estatal como a fonte suprema da ordem jurídica. A
categoria soberania postula que não há ordem jurídica superior a do próprio Estado,
porém essa categoria afasta a influência do direito internacional, o que importa em
dificuldades, pois o direito internacional muitas vezes é um fator de pressão, por
exemplo, para que o novo governo de um país reconheça dívidas oriundas de um governo
62

passado, compelindo a nova ordem a assumir obrigações da ordem anterior, trazendo


assim unidade à ordem jurídica.
A categoria da substância, por sua vez, indica a unidade da ordem jurídica interna,
todas as normas se submetem a uma norma superior de referência, que Kelsen chamou de
norma fundamental.
Kelsen teve a oportunidade de praticar sua teoria. A constituição austríaca da
época foi redigida por ele, e Voegelin a elogia como um documento técnico primoroso.
Voegelin chama a atenção para a ausência de normas que hoje chamamos de
programáticas, sem exigibilidade direta, ou de preâmbulos.
Voegelin termina o artigo dizendo aquilo que todos sabemos, isto é, que Kelsen
atribuiu importância enorme ao direito positivo. O conteúdo da norma não é uma ordem
sagrada e eterna, mas o fruto da pressões sociais e da disputa de poder político. Entende-
se por que Kelsen desprezava a teoria da autolimitação, segundo a qual o monarca
absoluto tinha seus poderes limitados pelas forças controladoras do parlamento. Se,
entretanto, essas forças controladoras passassem da medida, o monarca tinha legitimidade
para dissolver o parlamento. Na democracia de Kelsen, esse problema não existe. Não se
trata de limitar politicamente um poder ilimitado, todas as competências estão
delimitadas.
Nesse artigo, Voegelin demonstra uma admiração por Kelsen diferente da crítica
direta que lhe fará nos anos pós segunda guerra mundial, à qual, como dissemos, Kelsen
procurou responder. Não possuímos a obra em que Kelsen se dispõe a criticar
detalhadamente a “Nova Ciência da Política”, porém tivemos acesso à sua obra “A
Democracia”, onde também comenta o trabalho de Voegelin.
Kelsen pretende demonstrar o acerto da sua teoria sobre a democracia, que
enxerga o regime como “a participação no governo, ou seja, na criação e aplicação de
normas gerais e individuais da ordem social que constitui a comunidade(...)” (KELSEN,
2000, p. 142). Às críticas sobre o caráter meramente instrumental de seu sistema político,
o qual não seria capaz de assegurar políticas específicas, como a liberdade de imprensa,
Kelsen responde que:
“Essa inferência do caráter processual da democracia não é muito correta. Se definirmos
a democracia como um sistema político através do qual a ordem social é criada e aplicada
63

pelos que estão sujeitos à ordem, de tal modo que a liberdade política, no sentido de
autodeterminação, esteja assegurada, então a democracia, necessariamente, em todas as
circunstâncias e em toda parte estará as serviço desse ideal de liberdade política.”
(KELSEN, 2000, p. 144)
Entretanto, é o próprio Kelsen quem diz que “nenhuma resposta justifica a
rejeição do conceito de democracia enquanto governo do povo e sua substituição por
outro conceito, sobretudo pelo conceito de um governo para o povo” (KELSEN, 2000, p.
142). Ora, se a democracia estará em toda a parte ao serviço do ideal de liberdade
política, então ela deve também ser um governo para o povo. Kelsen acredita que
“o argumento do “formalismo”, freqüentemente usado com o objetivo de
desacreditar uma certa corrente de pensamento e, sobretudo, um esquema político,
é sobretudo um expediente cuja finalidade é ocultar um interesse antagônico que
constitui o verdadeiro motivo da oposição. Portanto, não há melhor maneira de impedir
o avanço da democracia, de preparar o caminho para a autocracia e dissuadir o povo do
seu desejo de participação no governo do que depreciar a definição de democracia
enquanto processo através do argumento de que a mesma é “formalista”.” (KELSEN,
2000, p. 145)
É óbvio que Kelsen está preocupado com a utilização terminológica que se pode
conferir à expressão “governo para o povo”, “uma fórmula vazia, suscetível de ser usada
para justificar ideologicamente qualquer tipo de governo” (KELSEN, 2000, pp. 147 e
148). Não obstante, o dever do filósofo é procurar entender o fenômeno político não
apenas pela sua plasmação jurídico-legal, porque “a autoridade do poder representativo
precede existencialmente a regulação desse poder pelo direito positivo”2526 (VOEGELIN,

25
Tradução nossa.
2626
Goffredo da Silva Telles Jr., na sua Carta aos Brasileiros, lida na “Academia do Direito de São Paulo”
durante o governo de Ernesto Geisel, penúltimo presidente do regime militar, diz:
O senso grave da ordem é o dos que abraçam os projetos resultantes do entrechoque livre das opiniões,
das lutas fecundas entre idéias e tendências, nas quais nenhuma autoridade se sobrepõe às Leis e ao
Direito.
(...)
Sustentamos que o Poder Legítimo é o que se funda naquele senso grave da ordem, naqueles projetos
de organização social, nascidos do embate das convicções e que passam a preponderar na
coletividade e a ser aceitos pela consciência comum do Povo, como os melhores. (TELLES
JÚNIOR, 1977)
Diz ainda:
Reconhecemos que o Chefe do Governo é o mais alto funcionário nos quadros administrativos da
Nação. Mas negamos que ele seja o mais alto Poder de um País. Acima dele, reina o Poder de uma
Idéia: reina o Poder das convicções que inspiram as
64

1987, p. 48). Ao insistir de modo demasiado em focar a atenção no aspecto técnico-


procedimental do direito, Kelsen, queira ou não – ele não queria –, abre terreno para um
“governo do povo” que não seja um “governo para o povo”, ou, na formulação
voegeliana, e para evitar a “fórmula vazia”,
“o tipo elementar de representação não exaure o problema da representação. Através do
conflito de opiniões pode-se discernir o consenso de que o procedimento de
representação só é significativo quando determinados requerimentos relacionados à sua
substância são realizados e que o estabelecimento do procedimento não confere
automaticamente a substância desejada” (VOEGELIN, 1987, p. 35).27
Voegelin enxerga mais um fundamento da ordem social, que é a substância, o
qual passa longe das considerações de Kelsen, que se atém a uma discussão lingüística do
significado de democracia. A teoria política de Kelsen faz lembrar a anedota da cobra que
começa a comer o próprio rabo e termina por deixar de existir.28 As sentenças normativas
legais, tais como as palavras, necessariamente devem se remeter ao mundo exterior, sob
pena de formarem um sistema auto-contraditório. Se a democracia não tiver um
fundamento substancial-real expresso por um símbolo que se tenta representar
politicamente, ela nada significa.
O purista do direito reclama em Voegelin a análise de um objeto metajurídico,
porém não teria ele próprio colaborado na ascensão de movimentos revolucionários, os
quais invariavelmente desvirtuam o significado do “serviço desse ideal de liberdade
política”29 (KELSEN, 2000, p. 144), ao reprimir a expressão genúina do simbolismo

linhas mestras da Política nacional. Reina o senso grave da Ordem, que se acha definido na
Constituição. (TELLES JÚNIOR, 1977)
“O Poder de uma Idéia” ressaltado por Gofredo Telles Jr. remete-nos a um autor citado por
Voegelin, Maurice Hauriou. “A lição da análise de Hauriou pode ser concentrada na seguinte tese: Para ser
representativo, não é o bastante a um governo ser representativo no sentido constitucional (...); ele também
deve ser representativo no sentido existencial de efetivar a idéia da instituição.” (VOEGELIN, 1987, p. 49)
Segundo Voegelin, Hauriou acentua o papel da idéia, a qual deverá ser criada pelo governante e
formar o núcleo da instituição política. A instituição estará estabelecida uma vez que o próprio governante
houver se submetido a ela e os membros houverem consentido-lha pelo costume. Conferir Voegelin, 1987,
p. 48.
27
Idem.
28
O texto literário sobre a anedota chama-se Progressive Tenses, de Brian Kelly.
29
Seria bom dar a liberdade àqueles que quando puderem exterminá-la-ão? A proibição da existência de
grupos nazistas – a qual deveria se estender para os partidos comunistas, pelo princípio da igualdade –
demonstra que a ordem das sociedades, e portanto o seu direito, não se escora apenas em regras técnico-
procedimentais. No Brasil, julgamento do Tribunal Superior Eleitoral em 1947 cancelou o registro do
Partido Comunista Brasileiro. As palavras finais do voto vencedor do desembargador Cândido Lobo foram:
65

político, o qual, então, irrompe neuroticamente contra uma ordem social concreta que
desconsidera sua origem humana e referencial a um Dever Ontológico?

Entretanto, aproveito a oportunidade, para nos últimos momentos dêste meu voto em processo de
vultosa repercussão nacional e internacional, dizer e confessar a todos aqueles que atualmente têm
uma parcela de responsabilidade nos destinos do Brasil, que se a Democracia, aquela que é
estabelecida como norma pela Costituição Brasileira, (...) se esta Democracia tiver um dia que
desaparecer diante de uma nova organização social, torna-se absolutamente necessário que
aproveitemos todas as nossas forças, que cerremos fileiras, patrioticamente, como um só todo,
contribuindo sem vacilação para obter sempre e cada vez mais a grandeza do Brasil por intermédio
do sublime preço da eterna vigilância que é a Liberdade, afim de podermos preparar o bem estar
das gerações futuras que virão receber tão digna prestação de contas e tão dignificante e valorosa
herança. "Legis auxilium frustra invocat qui commitit in legem". (Ata do julgamento
disponível em:
<http://www.tse.gov.br/internet/jurisprudencia/julgados_historicos/1940/arquivos/res1841.pdf>.
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Outros saites eletrônicos consultados:

Voegelin View (www.voegelinview.com)


Tudo Bem quando Termina Bem (www.daniellourenco.com)

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