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VOEGELIN E O DIREITO
RIO DE JANEIRO
2009
2
Voegelin e o Direito
______________________________________________
Professor Doutor Mauricio Jorge Pereira da Mota (UERJ)
Orientador
________________________________________
Professor Mestre Daniel Nunes Pêcego (UERJ)
Examinador
________________________________________
Professor Fabiano Soares Gomes (UERJ)
Examinador
3
RESUMO
ABSTRACT
In the present essay, it was intended to introduce the law theory of philosopher
Eric Voegelin. The work chiefly analyzed was his “The Nature of the Law”, not yet
translated into Portuguese. The approach used was that of condensing the work,
as well as commentate points that deserved ulterior explanations. Besides, it was
intended, as much as it was possible, to compare conclusions withdrew from the
analysis of the social-juridical orders of European countries and mostly of the
United States of the America. In addendum, the law theories of both Voegelin
and Kelsen, who had debates over the subject, were compared. Keywords:
Philosophy of Law – Voegelin – Plato – Aristotle – Kelsen.
4
Índice
I Introdução ............................................................................................. 6
I.1 Essência do direito.......................................................................... 6
II Substância e existência.......................................................................... 9
III O Problema Zenônico ...................................................................... 11
IV A Hierarquia de Leis Válidas, O Processo Legislativo e A Ordem da
Sociedade como um Todo.......................................................................... 15
V O Direito como a Substância da Ordem. O Processo Legislatório como
Instrumento para Assegurar a Substância................................................... 18
VI Construções Teoréticas da Relação. ................................................. 21
VII Estrutura, Continuidade e Identidade do Complexo da Ordem......... 25
VIII A Luta de Aristóteles com o Problema da Identidade....................... 28
IX As Questões Tangentes do Direito Constitucuional.......................... 30
X A Regra e a Duração da Ordem........................................................... 33
XI O Dever no Sentido Ontológico. ...................................................... 36
XII A Regra enquanto Norma. ............................................................... 37
XIII O Caráter Público da Norma Legal. ................................................. 39
XIV Os Dois Tipos de Projetos................................................................ 41
XV Os Processos Legislatórios Empírico e Filosófico............................ 43
XVI A Sociedade como uma Entidade Auto-Organizadora. .................... 46
XVII A Representação da Sociedade. .................................................... 48
XVIII O Cálculo do Erro......................................................................... 49
XIX O Uso da Força. ............................................................................... 51
XX Os Componentes de Validade. ......................................................... 54
XXI A Ordem Jurídica e a Sociedade Histórica Concreta. ....................... 56
XXII Conclusão..................................................................................... 59
XXIII Adendo: Voegelin e Kelsen .......................................................... 60
XXIV Referências Bibliográficas............................................................ 66
5
I Introdução
Voegelin nota que embora nos refiramos ao direito no singular, existe uma
pluralidade de ordenamentos jurídicos, o norte-americano, o brasileiro, o francês, etc. O
conteúdo dos diferentes ordenamentos jurídicos não é igual. Quando o advogado se refere
ao “direito”, provavelmente ele tem em mente a ordem legal concreta na qual está
1
À objeção possível de que Aristóteles desenvolveu toda uma teoria sobre a virtude da justiça no livro V da
Ética a Nicômaco, diremos que o empreendimento de Aristóteles foi exatamente isso: uma teoria sobre a
virtude da justiça, e não uma teoria sobre o direito propriamente. Já adiantando o tema do trabalho, a
filosofia do direito que Voegelin procura deve considerar o ordenamento jurídico positivo, bem como a
história do direito, o processo de lege ferenda, e ainda, talvez como ponto mais importante, a ordem
simbólica que embasa toda a construção político-jurídica da sociedade.
Não obstante, os trabalhos de Platão e Aristóteles tiveram excelente contribuição para a filosofia
do direito. Neste sentido, conferir o capítulo VI do trabalho.
7
do direito não deverá ser compreendida como a essência biológica, posto que o direito
tem uma estrutura ontológica distinta, sendo antes um ser abstrato do que um ser real.
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II Substância e existência
Não vamos atrás de uma definição nesse momento, pois definições chegam ao fim
da análise, não no começo. O que nos interessa agora é a linguagem do dia-a-dia, que não
sofreu ainda dos refinamentos analíticos, a linguagem em que os termos ainda têm
sentido. Apenas através da linguagem cotidiana dos advogados podemos encontrar um
guia para a solução de nossos problemas.
Na linguagem cotidiana, dizemos que uma lei aprovada conforme o procedimento
previsto na Constituição é válida. Antes de terem sido aprovadas, não eram válidas; se
estão em conflito com estatutos anteriores, estes serão inválidos; se uma norma posterior
entrar em conflito com a lei presente, esta se tornará inválida. Lex posterior derogat
priori.
A ordem legal, consistindo nestas leis válidas, parece ter uma dimensão temporal;
parece ser uma entidade, no cômputo geral, que existe no tempo. O elemento de validade
que se provou um obstáculo no início de nossa análise para desvelar a essência do direito
talvez possa ser determinante em esclarecer seu modo de existência.
Devemos partir da presunção de que as ordens jurídicas realmente existem. Existe
uma ida e vinda de leis válidas, ou seja, as leis ganham e perdem validade continuamente.
As ordens jurídicas mudam, porém não mudam todas suas partes de uma só vez;
permanece, entre uma e outra mudança, um corpo imutável de leis razoavelmente grande
de maneira que a identidade da ordem é preservada. A ordem jurídica do momento não dá
lugar à outra, mas “muda.” O exemplo de Voegelin para demonstrar a permanência de
uma coisa face às mudanças por que passa é a de uma pedra que é erodida pelo vento e
pela chuva mas que reconhecemos como a mesma pedra se as mudanças forem devagar o
bastante. No entanto, diz ele, se a pedra for atingida por um impacto súbito, de modo que
seja quebrada em várias partes, tenderemos a nos referir a cada uma das partes como
pedras em separado, ainda que nos lembremos de sua conexão com a pedra anterior. O
caso do direito, diz Voegelin, é similar.
Não podemos, entretanto, distinguir entre leis essenciais e não-essencias, posto
que, se uma lei pertence ao ordenamento jurídico, e portanto tem validade, ela é, como já
dissemos, “essencial.” Cabe, entretanto, fazer a pergunta: O que acontece com o
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ordenamento jurídico quando uma das leis que o compõe é invalidado por uma lei
posterior? Ele continua sendo o mesmo ordenamento de antes? A resposta é inevitável: se
identificamos o ordenamento jurídico como o conjunto de de normas válidas, então todo
e qualquer ordenamento que difira no que tange às partes que o compõe deve ser
considerado um indivíduo distinto da espécie “ordenamento jurídico.” A todo momento
que o Congresso aprova uma lei, o resultado será um novo ordenamento jurídico.
Nenhum advogado aceitará esse veredicto como definitivo. Ele insistirá em que o
direito pode mudar com a inserção de uma nova lei, porém o ordenamento jurídico é
preservado mesmo pela entrada e saída de várias leis. Em face dessa insistência,
entretanto, o filósofo também terá que ser insistente. O veredicto, de fato, é definitivo,
porque é analiticamente necessário.
O ordenamento jurídico que consiste numa sucessão de conjuntos de leis válidas
deverá conter um fator que ainda não descobrimos.
Esse fator ausente é óbvio: uma série de conjuntos é uma mesma ordem jurídica
se os elementos da série são criados sucessivamente por um procedimento constante – no
caso estudado por Voegelin, o procedimento previsto na Constituição dos Estados Unidos
da América, e no nosso, o procedimento previsto na Constituição Brasileira de 1988.
Assim e neste sentido, o ordenamento jurídico é composto por leis válidas e não válidas;
possui um estrutura temporal clara do presente onde está a validade, com uma dimensão
passada de leis que foram válidas e uma dimensão futura de leis que podem ser válidas,
sobretudo as que estão em processo de lege ferenda.
Resta claro, portanto, que a presunção inicial de que o direito é um conjunto de
leis válidas é muito estreito à luz das presentes reflexões. Uma filosofia do direito,
assevera Voegelin, se pretende tornar claros os significados contidos no conhecimento
pré-analítico do direito, não deve se restringir a uma teoria do direito positivo, isto é, ao
direito válido em qualquer momento presente do ordenamento jurídico. O conhecimento
pré-analítico e a linguagem dos advogados abrange áreas para além do divisor de águas
do direito positivo, áreas a que poderíamos nos referir como a história do direito e o
processo de lege ferenda.
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O problema a que Voegelin faz menção no título, como ele próprio diz, é bastante
complexo. Procuraremos explicá-lo da maneira mais clara possível. Antes, porém,
Voegelin lembra, é necessário analisar outras questões próximas. Elas revelarão que o
procedimento constante trazido pela Constituição, entendido como a conexão entre os
conjuntos de normas, não soluciona o problema do ordenamento jurídico como uma
entidade identificável e existente no tempo.
As metáforas que traduzem o direito como um curso de leis inválidas reduzindo a
validade a uma qualidade transitória não são radicais o bastante para dar a dimensão do
direito como ordem jurídica válida. Pois a ordem jurídica não consiste apenas das normas
genéricas estatuídas em leis; ela consiste também, e sobretudo, de decisões judiciais.
Cabe aqui fazer uma consideração sobre a afirmação de Voegelin. Na época em que foi
escrita a obra, esta última afirmativa não seria admitida sem reservas pelos brasileiros, já
que os tribunais brasileiros não consideravam a jurisprudência como uma fonte muito
importante do direito e procuravam apenas, bem ‘kelseanamente’ – se nos é permitido
usar o termo – subsumir o caso concreto ao tipo legal estabelecido na norma jurídica que
o descrevia como hipótese, sendo a atuação do juiz uma aplicação cega da lei ao caso que
lhe fora apresentado; o juiz de então estava mais próximo de ser a ‘bouche de la loi’,
como queria o iluminista Montesquieu, do que o juiz ativista – com todos os problemas
que tal atitude encerra – propugnado por teorias pós-positivistas e, sob certo aspecto,
naturalistas.
Voegelin lembra que já que a decisão do tribunal é o momento em que o direito se
torna válido para o caso concreto e que existe uma aura de incerteza em toda lide séria,
devemos admitir que nunca conhecemos realmente qual é o grupo de normas válidas
enquanto o tribunal não tiver proferido sua decisão no caso concreto. Uma vez que o
tribunal haja chegado à sua decisão no caso concreto, tendo portanto o grupo de normas
válidas se tornado perfeito com a decisão, este grupo pertence já ao passado. Se a
validade é da “essência do direito,” e se cada grupo de normas da série chamada
ordenamento jurídico pertence ou ao passado em que não é mais válida ou ao futuro em
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que ainda não se tornou válida no caso concreto decidido, então o direito parece ter
desaparecido do reino dos existentes.
O resultado é paradóxico como o paradoxo de Zenão. Será bom recordar este
paradoxo para que consigamos deixar o novo impasse. É impossível para o corredor
alcançar o objetivo porque ele tem que passar por uma infinidade de pontos. A ilustração
famosa do paradoxo é a corrida entre Aquiles e a tartaruga. Atrás da tartaruga, Aquiles
jamis conseguiria alcançá-la, pois primeiro ele deve alcançar o ponto em que a tartaruga
iniciou; quando houver alcançado esse ponto, então ele precisará alcançar o ponto em que
a tartaruga está agora; e daí em diante ad infinitum.
Este é um resultado infeliz, pois a análise filosófica tem o objetivo de tornar
explícito aquilo que encontramos no saber cotidiano. Aristóteles soluciona o paradoxo de
Zenão nos seguintes termos.
O segundo (paradoxo)2 é chamado “Aquiles”, e afirma que um corredor mais lento
nunca será alcançado pelo corredor mais veloz, porque o que está atrás tem que primeiro
alcançar o ponto no qual o que está na frente começou, de maneira que o mais lento
sempre ficaria na frente (...). Vimos que o argumento leva à conclusão de que o corredor
mais lento não é alcançado, (...) a conclusão de que é impossível alcançar um limite é
resultado de se dividir a distância de certa maneira. No entanto, o último argumento
inclui, em seu relato, a característica adicional de que nem aquilo que é a coisa mais
veloz do mundo pode sobrepujar a coisa mais lenta do mundo. A solução, portanto, deve
ser a mesma em ambos os casos. É falsa a afirmação de que quem está na frente não pode
ser alcançado. Ele não é alcançado enquanto continua na frente, mas ele é alcançado se
Zenão admitir que o objeto movente pode percorrer uma distância finita. (Aristóteles,
Physique, VI, 9)
Segundo Aristóteles, Zenão erra porque não considera a hipótese de que há
infinitos instantes em uma duração finita. Escreve Aristóteles ainda:
Assim, mesmo sendo impossível num tempo finito entrar em contato com coisas que são
infinitas em quantidade, é possível fazer isso com coisas que são infinitamente divisíveis,
já que o tempo também é infinito dessa maneira. Portanto, a conclusão é que leva
tempo infinito, e não finito, para cobrir uma distância infinita, e leva um número infinito
2
Parênteses em negrito acrescentado por mim.
13
de agoras, e não um número finito, para se entrar em contato com um número infinito de
coisas (Aristóteles, obra citada, VI, 2).
Aristóteles quer explicar que até Aquiles chegar ao ponto onde a tartaruga se
encontra, à sua frente, não é necessário que a tartaruga já tenha andado alguma distância,
porque o tempo, embora possa ser concebido como infinitamente divisível, o “agora”,
que consiste justamente na divisão do tempo, não o é, já que ele é o término comum do
passado e do futuro, e se for dividido deixará de ser “agora”, parte dele será passado e
parte será futuro.3 Pode ser que a tartaruga não tenha se movido e Aquiles já esteja no
mesmo ponto que ela. A tartaruga pode, no máximo, percorrer uma distância finita.4
Entretanto a solução dada por Aristóteles não serve para o estudo da ordem
jurídica pois esta não possui a dimensão temporal. Voegelin continua a exposição
confessando que presumira que a ordem jurídica fosse um conjunto de normas válidas e
então expandiu o significado para o de uma série desses conjuntos ligados pelo
procedimento constitucional. Dado que essas presunções levaram a um resultado
paradoxo, mister é concluir, de acordo com ele, que ou a ordem jurídica não é de modo
algum um conjunto de normas válidas ou as palavras “normas” e “validade” contêm
significados que escaparam.
Nenhuma teoria do direito pode ser construída sem esbarrar no paradoxo de
Zenão se essa teoria for baseada na presunção de que a ordem jurídica é um conjunto de
3
Ver explicação sobre o conceito de “agora” nos Comentários de Tomás de Aquino à Física de Aristóteles.
Conferir Livro VI, II, 3.
4
Se a explicação de Aristóteles ainda parecer complicada, a matemática pode ajudar na solução do
paradoxo.
Os infinitos intervalos de tempo descritos no paradoxo formam uma progressão geométrica e sua soma
converge para um valor finito. A soma dos infinitos elementos de uma P. G. infinita não é infinita.
Aquiles, para alcançar a tartaruga, deverá correr a distância S = 100 + 10 + 1 + 1/10 + 1/100 + ...
Observe que S é a soma dos termos de uma PG infinita decrescente: a1 = 100, a razão q = 1/10.
Daí, vem que a soma é S = a1(qn - 1) / (q - 1) , mas, com n tendendo a infinito. Dizemos, então, que o limite
da soma S, quando n tende a infinito, é S = a1 / (1 - q), pois como q = 1/10 e n tende a infinito, vem que q n
tende a zero.
Essa é a distância que Aquiles terá que percorrer para alcançar a tartaruga.
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normas válidas e nada mais. A dificuldade nasce do fato de que o significado das normas
legais não possui dimensão temporal. Os significados podem se referir a objetos, eventos
ou ações no tempo, mas eles mesmos não existem no tempo. A validade de uma regra,
seu caráter normativo, é parte de seu significado, mas não confere status ontológico à
regra. Uma construção teórica que se baseia no caráter normativo das regras está preso ao
caráter “estático” de seu significado e não pode abrir caminho pela continuidade da
existência do tempo, que é justamente a saída encontrada por Aristóteles, como
explicamos.
Até agora, portanto, o resultado é negativo. Voegelin, entretanto, faz a defesa de
sua análise afirmando que a pletora de teorias legais e variedade de posições a que
assistimos é causada pela falta de disposição de submeter a análise as verdades parciais
que são encontradas em grande número na experiência pré-analítica do direito.
À luz dessas reflexões, Voegelin explica ser necessário eliminar uma linha de
construção teórica. Pergunta ele se a existência da ordem jurídica no tempo, que não se
encontra no grupo ou na série de grupos de regras, não poderia ser derivada do
procedimento constitucional? Reconhecedo que a idéia é sugestiva, Voegelin a afasta por
mostrar que o procedimento constante fornecido pela Constituição deve de igual modo
ser descrito em termos de leis válidas. Uma constituição no sentido material significa um
grupo de regras referentes à organização, jurisdição e procedimento dos órgãos supremos
de governo dentro da sociedade. De novo nos vemos frente a frente com um grupo de
regras. E no que concerne à existência da ordem jurídica no tempo, nada se ganha com a
adição do grupo de regras constitucionais aos grupos de normas criminais ou cíveis. O
fato de de que um reino de significados não tem dimensão temporal não é abolido pelo
conteúdo específico de um grupo de regras. A validade atemporal da regra não adquire
existência temporal apenas porque o conteúdo da regra diz respeito a um procedimento
que deve obedecer a um determinado prazo. Sendo assim, a dimensão temporal da ordem
jurídica não pode ser dada movendo-se para cima ou para baixo na escada hierárquica dos
sub-grupos de normas ligados por regras de procedimento. Voegelin conclui o raciocínio
dizendo que nenhuma expansão da teoria jurídica para abarcar uma hierarquia de regras
ligadas pelo procedimento pode evitar o paradoxo de Zenão.
15
com que as normas são dispostas no contexto social, com a maneira com que elas
participam da existência ainda que não tenham existência autônoma. Essa maneira de
existência é muito mais complexa do que a linguagem de meios-fins pode sugerir. Ainda
assim, o termo propósito é indispensável, como veremos, para salientar a relação aguda
entre o “direito” e a sociedade que o possui.
O modelo intricado em que as normas se mesclam com a realidade social tornar-
se-á aparente através de uma breve consideração sobre a hierarquia de regras e séries de
regras.
Nem toda declaração de regras gerais constitui um estatuto com um conteúdo
legal válido. Um estatuto resulta apenas quando homens específicos em tipos específicos
de ação, isto é, quando membros de uma legislatura que foi constituída e que age de
acordo com a forma dada pela Constituição, concorda com certas regras. O mesmo
argumento é válido para decisões individuais das cortes e agências administrativas.
Alguns atos dos seres humanos produzem regras válidas se são reconhecidos como atos
legislatórios à luz de outras regras, e estas por sua vez são regras válidas enquanto
formuladas através de atos reconhecidos como legislatórios por outras regras, e assim em
diante.
A noção de hierarquia de regras válidas, portanto, deve ser expandida para um
processo legislatório em que regras e atos legislatórios se alternam. Este processo, por
fim, desagua na vasta realidade da sociedade que “possui” o direito feito durante o
processo. Até mesmo a realidade vasta que pensamos ser extra-legal participa de algum
modo do direito. Embora não nos refiramos aos empresários como legisladores, seus
contratos terão força de lei uma vez atendidas as formas admitidas pela legislação
própria. As relações entre seres humanos dentro de uma sociedade têm em muitos casos
uma estrutura legal portanto.
A linguagem do dia-a-dia indica essa relação íntima entre o direito e a sociedade.
O cidadão que descumpre as normas penais é considerado um fora-da-lei, ao passo que o
homem que se abstém de descumprir as proibições legais é considerado um homem
cumpridor da lei. Falamos ainda do homem que cumpre a letra da lei, mas viola o seu
espírito; que se safa de ser apanhado porque conhece as brechas da lei, que contrata
17
advogados para burlar a lei de modo a se livrar de condenação mesmo tendo cometido o
crime. A existência do homem em sociedade está entranhada com o “direito.”
18
participação possa ser complicada pelo fato de que requer, para ser garantida, a ação
humana organizada, o tipo de ação que chamamos de processo legislatório.
O termo grego, nomos, a seu turno, não significa meramente a lei no sentido
jurídico. Vejamos o que escreveu o tradutor Edson Bini da obra As leis, de Platão, em sua
nota preambular:
O título com o qual traduzimos NOMOI (As Leis) não faz jus ao rico e lato
conceito grego, mas isto é inerente às limitações lingüísticas. A transferência de idéias de
um quadro de signos para outro (tradução) é uma arte espinhosa, embora fascinante(...)
Assim em NOMOI H NOMOΘEΣIAI Platão abarca não apenas o domínio
estritamente jurídico, como também as áreas correlatas da política, da ética, e mesmo da
psicologia, da gnoseologia, da ontologia, além daquelas das matemáticas, da astronomia,
da religião e da mitologia. (PLATÃO, 1999, p. XXXV)
Ou seja, o termo nomos, tal como o maat egípcio e os outros supra-citados,
referia-se a uma realidade ontológica entendida por qualquer membro da sociedade como
critério para julgar a sociedade existente do momento.
Voegelin, em seguida, faz uma crítica da teoria jurídica que enxerga o direito
como sendo um conjunto de normas hipotéticas que ordenam aos tribunais responder com
certas ações – julgamento, sentença e execução – as ações que se subsumirem à parte
hipotética da lei. A ordem jurídica, afirma ele, dentro dessa construção, não proibiria o
assassinato ou o roubo, mas apenas atribuirira determinadas conseqüências a esses tipos
de ação, deixando ao arbítrio do indivíduo evitar ou praticar essas ações. Se assim fosse,
continua Voegelin, não faria sentido chamarmos de bandido ou fora-da-lei ao homem que
comete essa ação, ele teria apenas feito sua escolha dentro da gama de possibilidades
abertas pelo enunciado legal. Tampouco faria sentido chamar o crime de ação ilegal. Na
nossa vivência cotidiana do direito, portanto, o motivo por que certas conseqüências, no
caso as punições, deveriam ser atribuídas a certos tipos de ações, no caso os crimes, não
seria uma questão de filosofia do direito, porém pertenceria ao reino dos propósitos
“morais,” extravasando o direito. O significado do homem cumpridor da lei também
evaporaria, pois nada que esse indivíduo faça poderá ser classificado como relevante
legalmente em termos de ações que se subsumem a tipos previstos na série de regras
válidas.
20
5
Tradução nossa: Do mesmo modo que Deus cria o mundo continuamente a cada segundo, também a
existência do Leviatã é ela uma criação contínua de vontades individuais. Sem dúvida o pacto está presente
22
Hobbes disse que o homem vivia num estado de natureza em que a lei natural
eram o egoísmo e o interesse próprio. Ele acreditava que o homem deveria render seu
direito de liberdade em prol de uma ordem de governo forte, sob comando do rei, que
seria capaz de zelar pela segurança do homem, segurança essa que no estado de natureza
não existia.6 Em outros trabalhos, Voegelin, não obstante desprezando o valor filosófico
da obra hobbesiana, considerou seu autor um psicólogo monumental, que analisou como
poucos o medo humano da morte.7
Se a ordem assim alcançada, continua Voegelin, manifestará uma substância
Judaico-Cristã, que em Bodin ainda foi considerada, já não é importante. Nessa altura do
livro Voegelin dá uma pista de onde quer chegar com sua concepção de ordem
substancial. De passagem ele se refere à substância Judaico-Cristã da ordem. É através da
referência a essa substância que o homem comum identifica se um ato é legal ou não,
mesmo quando desconhece o direito. Um colega do curso de graduação uma vez afirmou
que no direito muitas vezes é possível prescindir da legislação positiva para saber a
solução de um conflito jurídico, valendo para tanto o bom senso. Muitas concepções
arraigadas da nossa civilização, como a igualdade dos homens, por exemplo, derivam
diretamente dos ensinamentos de Jesus Cristo, que em várias oportunidades mandou não
fazer distinção entre homens. Desses ensinamentos resultou, tardia embora, a noção de
que nenhum homem pode ser senhor da vida de outro homem. O cientista político norte-
americano Dinesh D’Souza postula que “os únicos movimentos que se opuseram à
escravidão foram mobilizados no Ocidente, e foram em sua maioria absoluta liderados e
constituídos por cristãos” (D’Souza, Quem acabou com a escravidão?).
de uma vez por todas, e desde esse momento liga-se a seu autor, porque seria um absurdo que ele se
contradissesse a si mesmo, e porque a causa do contrato, qual seja a paz garantida pelo príncipe,
permanece.
6
O filósofo e moralista britânico Anthony A. C. Shaftesbury ironiza a construção de Thomas Hobbes: “It is
ridiculous to say, there is any obligation on man to act sociably or honestly, in a formed government, and
not in that which is commonly called the state of nature. For, to speak in the fashionable language of our
modern philosophy, “society being founded on a compact, the surrender made of every man’s private
unlimited right, into the hands of the majority, or such as the majority should appoint, was of free choice,
and by a promise.” Now, the promise itself was made in the state of nature; and that which could make a
promise obligatory in the state of nature, must make all other acts of humanity as much our real duty, and
natural part. Thus faith, justice, honesty, and virtue, must have been as early as the state of nature, or they
could never been at all.” (Shaftesbury, 2005, p. 92)
7
Conferir Voegelin, The Oxford Political Philosophers, em Published Essays 1953-1965, ps. 35-36.
23
Enquanto um grupo de regras válidas, o direito deve ser situado no contexto social
do processo em que é criado; e o processo legislatório a sua vez deve ser situado no
contexto da sociedade que garante sua ordem substancial através desse processo.
No momento, é preciso distinguir entre o “direito” no sentido de regras legais e do
processo legislatório; e o “direito” no sentido da ordem substancial da sociedade. Quando
definirmos o termo “legal,” não será uma definição de essência, pois já estabelecemos
que a ordem legal enquanto um conjunto de regras não tem status ontológico, e,
conseqüentemente, não tem essência ou existência.
Na estrutura dessa entidade podemos discernir duas tensões essenciais: primeiro,
a tensão entre a ordem substancial da sociedade e o processo legislatório tendo em vista
que o processo organizado de fazer o direito é aparentemente o meio inevitável de manter
a ordem substancial em existência; e depois, a tensão entre a ordem substancial da
sociedade conforme ela existe empiricamente e a ordem substancial verdadeira da qual a
ordem empírica, platonicamente, apenas se aproxima.
No presente devemos lidar apenas com a primeira dessas tensões, ou seja, com a
orientação da ordem legal como um meio de realizar a substância da ordem substancial
na sociedade. Devemos, em primeiro lugar, tratar do peso desta relação em referência ao
lado social do complexo da ordem. Tendo descoberto na sociedade aquilo que dá o peso
da existência no tempo à ordem legal, devemos perguntar mais uma vez: O que queremos
dizer por “direito” quando falamos sobre o direito americano, italiano ou brasileiro, ou
sobre a história do direito civil ou administrativo francês? Com certeza não nos referimos
apenas ao conjunto de regras válidas ou à série destes conjuntos, mas deixamos entrar em
nossa linguagem um componente de significado que provem do lado social.
O efeito do peso peculiar do lado social tornar-se-á aparente e inteligível se
refletirmos sobre certas questões laterais do direito constitucional.
Se a ordem legal é compreendida como um grupo de regras válidas ou como uma
série desses grupos, todas as partes componentes da ordem derivam sua validade, pela
mediação das regras procedimentais, da contituição em sentido material. A ordem
jurídica é constituída como uma unidade de significado pelas regras relacionadas ao
26
divino e natural” se referem, existe uma outra fonte de autoridade, a autoridade do poder
organizado socialmente. Bodin toma em consideração esta autoridade em sua filosofia do
direito quando diz que o príncipe deriva seu poder legislatório soberano tanto da espada
quanto de Deus. A estrutura de poder da sociedade é a realidade que se torna articulada
legalmente nas regras materiais da constituição, e por isso merecem nossa atenção
premente.
As regras de uma constituição procuram criar uma ordem estável para a sociedade
colocando o poder supremo ordenador em órgãos do governo que representam o poder
atual de articulação da sociedade. Se os constituintes houverem diagnosticado
corretamente esse poder; se, além disso, eles forem bons artífices e souberem articular
legalmente o poder; e se, por fim, a estrutura de poder que criou a constituição é estável,
então a constituição durará. Se a estrutura de poder não for estável, deixando de lado os
outros dois pontos, a constituição não poderá durar. Acontecimentos mais ou menos
violentos seguir-se-ão e as regras constitucionais terão que ser adaptadas à estrutura de
poder em mudança, pela própria prática, interpretação, emendas formais ou, em último
caso, por sua substituição completa.
Esses fenômenos de adaptação dão impulso a questões ligadas à identidade da
ordem jurídica. Se um país emerge de uma revolução com uma nova constituição, criada
por procedimentos que não eram dados pela constituição anterior, uma ordem jurídica
chegou a seu fim e uma nova foi instaurada. Se diante desse fenômeno adotamos a
construção do direito como um grupo de regras válidas que derivam da constituição,
chegaremos à conclusão de que com a nova ordem jurídica um novo “estado” foi criado.
Algumas construções que foram nesse sentido chegaram à conclusão lógica de que a
validade de um estatuto que sobreviveu imutável à revolução não deriva da constituição
antiga mas da nova.
28
Aristóteles se preocupou bastante com esse tipo de problemas. Ele aplicou à polis
as categorias de forma e substância, admitindo a constituição, a politeia, como a forma.
Mas qual seria a substância da sociedade, se a constituição era sua forma? Seriam os
cidadãos? Se sim, quem seria o cidadão? Toda mundo que tivesse residência permanente
na cidade seria contado como cidadão? Mas então escravos seriam cidadãos e a teoria
entraria em conflito com a linguagem pré-analítica do cotidiano.
Para Aristóteles a questão principal é: Pretendemos nos referir a uma pólis como a
mesma pólis conquanto o povo e sua residência permanecem o mesmo, a despeito do fato
de que os membros de uma pólis são um fluxo de de gerações, um fluxo de seres
humanos chegando à existência e morrendo, e portanto nunca são o mesmo de um dia
para o outro?
Aristóteles se distancia da questão social da ordem e dirige seu argumento em
direção ao mesmo impasse Zenônico para o qual dirigimos ao tratar da ordem jurídica
válida. A sociedade é uma entidade composta de seres humanos. A pólis não pode ser
identificada com os seus membros, os quais mudam dia a dia em virtude das mortes e
nascimentos; ela deve ser definida em termos, não de seres humanos, porém de cidadãos
como a substância da sua forma; e a forma será sua constituição. Se a constituição for a
mesma, a pólis será a mesma, não importando aumento ou diminuição de sua substância
de cidadãos. Voegelin considera que Aristóteles deixa a análise incompleta, pois não
contempla com o devido rigor a possibilidade de a constituição mudar (a pólis é a mesma
quando isso acontece?) bem como não examina a fundo a questão do status do cidadão
sob um regime oligárquico ou tirânico, em que ele não participa do processo de governo.
Voegelin atribui o resultado insatisfatório da análise de Aristóteles à transferência
não submetida à crítica das categorias de forma e substância a campos do ser para as
quais elas não foram criadas.
Essa transferênca leva a dificuldades não apenas na política de Aristóteles mas
também na sua psicologia, quando ele tenta construir uma forma noética da alma, diz
Voegelin. Isso conduzirá a dificuldades infinitas na antropologia e psicologia escolástico-
medievais, onde a alma é usada na especulação como sendo a “forma” do homem. O
29
A saída para a aporia representada pelo paradoxo zenônico do qual já falamos está
no reconhecimento de que a ordem jurídica, enquanto não tem status ontológico per si, é
parte do processo pelo qual uma sociedade torna-se existente e preserva-se numa
existência ordenada. Nesta entidade maior, a sociedade, e enquanto dela faz parte, é que o
direito existe. No entanto, há questões no tocante à maneira com que o ordenamento
jurídico se insere na sociedade, que precisam ser respondidas. E a mais importante delas
é: Como é possível, ontologicamente falando, que regras tenham uma função na
existência da sociedade e em seu processo de ordenação?
De acordo com Voegelin, as regras só podem ter uma função na sociedade se elas
são reconhecíveis, se são situações e eventos típicos, se as situação e eventos se repetem,
e se eles se repetem com tal freqüência em conexão que a própria conexão adquire o
caráter de um tipo reconhecível e que pode ser expresso em “regras.” Na terminologia
voegeliana, a situação é uma espécie de condição para que o evento ocorra, de modo que
quando a situação está presente o evento invariavelmente decorre.
A ordem de uma sociedade tem uma estrutura discernível de elementos típicos, de
situações e elementos típicos, e de conexões típicas entre eles. Se a sociedade fosse um
fluxo amorfo, sem uma estrutura de elementos constantes e recorrentes, as regras não
teriam uso porque não teriam campo de aplicação. É porque existe ordem na sociedade
que as regras são necessárias, elas ajudam que a ordem subsista. Se, por exemplo, os
indivíduos A e B se dirigissem ao juiz para que esse resolvesse um conflito entre eles,
porém se a coisa em disputa não tivesse duração, a decisão do magistrado cairia no vazio,
poderia no máximo ensejar uma compensação. Pior, se a organização da vida de A e B
mudasse completamente do dia para a noite, a questão de saber quem tem direito sobre a
coisa em disputa não teria mais o menor interesse e perderia o sentido. É porque existe
uma duração relativa das vidas de A e B, da organização de suas vidas e das coisas que
disputam, que a disputa jurídica lhes interessa e o direito tem um papel a cumprir.
Não se pode dividir a ordem jurídica em regras essencias e não essenciais,
consideradas as regras genéricas como essenciais e as regras que individualizam ou
regulam a regra genérica como não essencial. Não faz sentido essa divisão, pois as
34
decisões individuais nos casos concretos são tão essenciais quanto quaisquer regras
genéricas, porque a duração da ordem social concretiza-se e depende da ordem na vida de
seus membros singulares.
“A estrutura duradoura da ordem é a estrutura da existência humana em
sociedade”8 (VOEGELIN, 1991, p. 41). Os principais componentes dessa estrutura são a
organização do homem em família e dentro de sua casa, sua existência utilitária através
do trabalho em geral, e sua existência espiritual e intelectual na sociedade política.
Analisando ainda a Política de Aristóteles, Voegelin confirma que a ordem de
uma pólis não se dá tal qual a ordem num ser orgânico. A sociedade, essa é uma lição
importante para qualquer estudante iniciante em filosofia, não é um organismo vital. O
conceito de forma que Aristóteles utiliza para designar a constituição da sociedade só
pode ser entendido de forma analógica, rigoroso e denotativo o conceito de forma serve
apenas para designar as espécies animais e vegetais.
As forças que desenham a estrutura de poder de uma sociedade podem mudar,
porém a sociedade continuará sendo a mesma. Essa é mais uma diferença entre um
organismo vivo e uma sociedade. Naquele, quando essa transformação acontece, a coisa
também se transforma. O exemplo mais claro é o da lagarta que se transforma em
borboleta. Uma vez borboleta, ela não é mais lagarta. A sociedade, ao revés, se substituir
a sua constituição ou a sua estrutura de poder duradoura, pode continuar sendo a mesma
sociedade. “A organização do processo legislatório (...) e a configuração das forças
sociais que operam o processo num dado tempo não são idênticas com a natureza da
ordem na sociedade”9 (VOEGELIN, 2001, ps. 41-42). Cabe então a pergunta: Se a
sociedade e sua ordem não são idênticas a uma determinada constelação de poder e seu
processo legislatório, até onde devemos cavar na ordem da sociedade para encontrar a
unidade última da qual as constelações de poder do momento são apenas subdivisões?
Voegelin não enfrentará todo o problema no livro “The Nature of the Law,” alegando que
os detalhes fogem ao escopo da proposta do livro. Na sua coleção “Order and History,”
com cinco volumes, ele enfrentará o problema da ordem na sociedade e na história.
8
Tradução nossa.
9
Tradução nossa.
35
10
REALE, Miguel, Fundamentos do Direito, São Paulo, 1940, pp. 301-302, apud, REALE, Miguel, Lisboa,
2003, p. 71.
39
Não obstante o aparato montado, o cidadão comum não ficará muito convencido,
pois ele jamais em sua vida olhará essas publicações. Ele dirá que, apesar do esforço,
apenas os advogados sabem sobre a lei – e sua observação poderá se traduzir numa
reclamação sobre favorecimento, a qual, para Voegelin, é injusta. A função mesma do
advogado, segundo ele, é preencher o vácuo que existe entre a máquina de publicação e o
conhecimento do membro ordinário da sociedade.
Conhecer o direito requer uma dedicação profissional que absorve todo o homem.
O cidadão cujo tempo e energia são absorvidos num trabalho de sua especialização não
pode ser ao mesmo tempo um “expert” jurídico. Quando o homem comum se depara com
uma questão legal, ele precisa do assessoramento de um advogado.
A profissão jurídica tem, portanto, uma função pública de manter a ordem da
sociedade enquanto mediadora da ordem jurídica e do conhecimento do cidadão ordinário
a seu respeito. À luz dessas observaçõs, a presunção de que o cidadão conhece o direito
não parecerá tão fantástica.
41
Estado quanto as normas que fixam os direitos são projetos que visam a ser efetivados
empiricamente na sociedade, ao passo que as normas programáticas, as quais “têm por
objeto estabelecer determinados princípios ou fixar programas de ação para o Poder
Público”11 (BARROSO, 2006, p. 114), se enquadram no conjunto voegeliano de projetos
que se destinam a servir de modelos de uma ordem justa, mas que não tem o condão de
ser aplicados ou exigidos de imediato.
11
As normas programáticas “contemplam certos interesses, de caráter prospectivo, firmando determinadas
proposições diretivas, desde logo observáveis, e algumas projeções de comportamentos, a serem efetivados
progressivamente, dentro do quadro de possibilidades do Estado e da sociedade.” (BARROSO, 2006, p.
114)
43
12
A esse respeito, conferir Platão, República, livro V, 450b-d e 472c-473c.
13
Na Carta VII, o filósofo afima explicitamente: “Desde jovem (...) passei por uma experiência comum a
muitos e me decidi firmemente a uma coisa: apenas em condição de dispor da minha vontade, logo dedicar-
me à vida política.” Apud Reale, Giovanni, 2007, p. 236.
44
histórica pelos parâmetros e critérios fornecidos pela ordem verdadeira desenvolvida pelo
filósofo.
Os dois processos legislativos, o empírico e o filosófico, estão relacionados um
com o outro. Um rápido olhar sobre as Leis de Platão mostra que as leis não têm um
papel significativo em comparação com os preâmbulos, ou seja, com a exposição
pormenorizada dos motivos que deram origem àquela lei. Caio Mário da Silva Pereira
recorda esse aspecto ressaltado por Platão no capítulo Interpertação da Lei, da sua obra
Instituições de Direito Civil:
Pesquisa-se a razão da norma, e verifica-se o que se pretendeu obter com a sua
votação.(...)A lei tem em vista um objetivo e se justifica por uma razão; a lei foi votada
em determinado momento e não em outro; a lei traduz as idéias políticas, filosóficas e
econômicas dominantes no meio social de que se destina a regular as atividades. O
intérprete não pode desprezar todos esses fatores, ao precisar o que a lei deve conter
efetivamente. Tem de indagar qual a sua ratio(...). (PEREIRA, Instituições de Direito
Civil, vol. 1, ps. 128-129)
Intérpretes modernos, continua Voegelin, reclamam que Platão não desenhou um
projeto de ordem acabado, porém fragmentário, faltando detalhar-lhe os preceitos legais,
ao que o próprio Platão responde que qualquer um que haja entendido a essência da
ordem é capaz de elaborar bons projetos de lei.
Não obstante ser o modelo da ordem secundário em relação à análise da essência,
ele não é supérfluo. A análise do filósofo nasce da resistência da ordem substantiva que
encontra dentro de si frente à desordem ambiente. O projeto do filósofo e a ordem
empírica não estão em franca oposição; estão em verdade ligados por projetos transitórios
que tratam de forma mais ou menos precisa a realidade do Dever. Por isso, Platão, não
apenas desenvolveu seu projeto de pólis em que os filósofos são reis, mas também
concebeu, nas Leis, uma pólis reserva, em que os governantes, embora não sejam eles
próprios filósofos, estão muito bem treinados em filosofia de modo a conseguir fazer leis
que passam por um crivo filosófico. Giovanni Reale, importantíssimo estudioso da
filosofia clássica, auxilia à compreensão da política platônica no livro dedicado a ele:
O que poderia dizer-nos ainda em matéria política o nosso filósofo depois da grandiosa
construção do Estado Ideal?
45
14
O rei Luís IX, da França, que não era filósofo, mas foi santo, tendo sido canonizado em 1298 com o
nome de São Luís da França, pode ser considerado um exemplo de monarca semelhante ao que Platão tinha
em mente ao conceber o modelo hipotético da República. Entretanto, como bem o sabia Platão, a
possibilidade de um governante filósofo acontecer é remotíssima, e por isso ele enxergava suas construções
teóricas como projetos de ordem que ficariam além da ordem social concreta e a ela julgariam.
46
de ser apenas enquanto permite a seus membros ordenarem suas vidas na verdade. A
sociedade existe desde que desenvolva um processo auto-ordenatório, sendo o processo
auto-ordenatório é seu modo de existir. Alguém pode dizer que a sociedade cria as regras
sociais para si própria. Pode-se considerar essa afirmação como um nonsense, porque a
regra é algo que uma pessoa cria para outra pessoa. Mas, ajunta Voegelin, é precisamente
esse nonsense que pode melhorar a nossa consciência da dificuldade da análise da ordem
jurídica, isto é, do caráter impessoal da regra legal.
A norma não tem nem um legislador pessoal nem um destinatário pessoal. Esta
dificuldade não pode ser superada erigindo a sociedade, o estado ou o soberano num
legislador pessoal fictício. Não se pode tampouco aceitar a definição da regra legal como
uma regra genérica que carrega consigo a diferença específica da sanção pela força do
governo. A classificação do fenômeno não tem utilidade quando um problema ontológico
requer análise.
48
O problema que se coloca, então, é: Como pode uma sociedade, que não é uma
pessoa, criar regras? A resposta a essa pergunta é clara no nível fenomênico. Uma ou
mais pessoas, dentro de certas condições, emitirão sentenças que serão consideradas
regras válidas para a conduta dos membros da sociedade. Nem toda sentença, é óbvio,
será considerada uma regra. Voegelin dá o exemplo de alguém que quer fazer suas
convicções morais estúpidas serem adotadas por outrem e recebe a resposta de que deve
se importar com sua própria vida. O pretensos legisladores, diz ele, são comuns em toda
sociedade e podemos distinguí-los do verdadeiro legislador, a quem damos o status de
representante da sociedade. A organização para a ação, tanto externa quanto interna,
através de um representante, é a maneira pela qual a sociedade existe. O processo
legislatório, assevera nosso autor, desde a constituinte até as decisões administrativas e
judiciais, é a auto-organização da sociedade, por meio dos seus representantes, para a sua
existência ordenada.
As normas, de fato, são feitas por seres humanos. Nós as obedecemos não em
respeito à condição de ser humano do seu criador, mas em referência à autoridade de
representante da sociedade desse criador. Já que o legislador age como um representante,
não como uma pessoa, é possível criar órgãos coletivos com o objetivo de legislar, cujos
atos têm nitidamente um caráter representativo e impessoal.
49
Esta representação não é mero jogo de cena, tratando-se em verdade de uma arte
necessária para a existência ordenada do homem na sociedade. Seu objetivo é a
realização da ordem, e esta não é o prazer de alguém, mas a organização substantiva da
vida humana em concordância com a ordem do ser conforme experimentada no Dever em
seu sentido ontológico.
Dado que o representante, esteja ele em posição alta ou baixa no nível hierárquico
do processo legislatório, é um ser humano e, como tal, falível, ele pode usar mal sua
função de representante e se afastar da verdade da ordem. Esses fenômenos de mau uso
do poder de governar são conhecidos por qualquer pessoa em qualquer época, sendo
assim, esse problema não foi rejeitado por Aristóteles e Platão. Ambos distinguiram entre
as formas boas e más de governo, conforme o governate de plantão estivesse perseguindo
o bem comum ou o bem privado. As três formas boas de governo para eles são a
monarquia, a aristocracia e a constituição, enquanto as degenerescências dessas são a
tirania, a oligarquia e a democracia. O primeiro par é o governo de um homem apenas, o
segundo o governo de uma casta, e o terceiro o governo de muitos cidadãos. Voegelin
não está preocupado com o conteúdo a ser atribuído ao bem comum, mas com o
fenômeno de sua formação, submetido ao objetivo de estabelecer uma ponte entre o
processo legislatório e a substância ontológica da ordem.
A tensão entre a substância da ordem e o possível mau uso do processo
legislatório , além disso, não é apenas um objeto de contemplação para o filósofo mas o
motivo para experimentos que visem à salvaguarda institucional contra o mau uso. A
separação de poderes, o “Bill of Rights”, o Judiciário independente, o sufrágio universal e
a eleição de representantes para um período curto de mandato são exemplos de esquemas
que buscam diminuir o mau uso do poder nos Estados Unidos da América. O Brasil, a sua
vez, desde 1988, a partir da promulgação da chamada Constituição cidadã, conta com
esses mesmos dispositivos que Voegelin cita. Porém, recorda ele, mesmo os melhores
artifícios não estão completamente isentos de falhas, pois o balanço das instituições é ele
próprio forjado por seres humanos, como tais, falhos. Voegelin observa que mesmo o
arranjo das eleições livres e universais se provaram decepcionantes em determinados
50
casos, pis governos totalitários como o de Hitler conseguiram alçar-se ao poder pelo voto
das urnas.
Conclui Voegelin que a tensão entre a ordem verdadeira e a empírica jamis pode
ser abolida, embora a discrepância entre as duas possa ser diminuída através de uma série
de artifícios a um mínimo que não acarretará na revolta popular. Mesmo um
representante que não seja tão bom assim é preferível a um levante violento cujas
conseq6uências não se podem medir. Em toda sociedade, o processo legislatório repousa
sobre o entendimento de que uma considerável margem de erro em referência à verdade
da ordem deve ser permitida. Embora haja limites para as proporções que o erro possa
assumir, é preferível viver numa sociedade com graves e constantes injustiças nos casos
singulares a estar sob o caos e a desordem. O cálculo do erro é mais um componente no
caráter impessoal da lei.
51
Por fim, Voegelin pretende analisar o elemento ligado à validade da norma legal
que muitos teóricos inclinam-se a chamar de sua diferença específica, qual seja, a sanção
pela força.
O uso da força para a imposição da ordem jurídica é necessária por uma série de
razões, a primeira das quais é o recém discutido cálculo do erro. Tendo em vista que há
uma discrepância entre a ordem verdaeira e a empírica, o uso da força é necessário para
eliminar a desobediência dos cidadãos que contendem que o conteúdo da regra está em
desacordo com o Dever no sentido ontológico. O exemplo mais claro fornecido por
Voegelin é o do chamado contribuinte que recusa-se a pagar os tributos até que os gastos
do governo estejam em níveis condizentes com a razão à luz da ordem verdadeira. O
debate sob a justiça da lei acerca de tributos considerados injustos deve se ater à crítica
ou à ação política, sob pena de a existência da sociedade ficar ameaçada. Ressaltamos,
caso Voegelin não tenha incluído no conceito de ação política a petição jurisdicional,
que a justiça de um tributo pode também ser discutida judicialmente. O cidadão pode
inclusive deixar de pagar um tributo sabendo-o manifestamente ilegal, porém deverá
provar sua tese em face dos tribunais. Se não o fizer, deverá pagar o tributo acrescido de
eventuais juros de mora. Henry David Thoreau, autor americano, foi preso por recusar-se
a pagar o “poll-tax” e justificou-se dizendo que não hesitava em pagar um tributo para a
construção de uma rodovia, por exemplo, mas discordava do tributo sem destinação
específica, como o caso do “poll-tax”, o qual ele não saberia se seria utilizado para um
fim justo ou não.16 É em face dessa atitude que Voegelin se insurge para justificar o uso
da força. Diz ele: “Se a existência da sociedade deve ser preservada, não se pode permitir
que o debate se degenere em mera decisão individual e resistência” (VOEGELIN, 1991,
p. 62).
16
Diz Thoreau no seu trabalho Resistance to Civil Government: “I have never declined paying the highway
tax, because I am as desirous of being a good neighbor as I am of being a bad subject; and, as for
supporting schools, I am doing my part to educate my fellow countrymen now. It is for no particular item in
the tax-bill that I refuse to pay it. I simply wish to refuse allegiance to the State, to withdraw and stand
aloof from it effectually. I do not care to trace the course of my dollar, if I could, till it buys a man, or a
musket to shoot one with, — the dollar is innocent, — but I am concerned to trace the effects of my
allegiance. In fact, I quietly declare war with the State, after my fashion, though I will still make use and
get what advantages of her I can, as is usual in such cases.” (Thoreau, 1849, ¶36)
52
são servos em qualquer parte, enquanto outros não são escravos em parte alguma”
(Aristóteles, 2002, p. 20). Dirá ainda: “Existem escravos e homens livres pela própria
ação da natureza” (Aristóteles, 2002, p. 21). Esses “escravos por natureza” ainda podem
ser úteis à sociedade em virtude de suas habilidades especiais, mas não são homens em
quem a ordem verdadeira se manifestará e poderá através deles se refletir na ordem da
sociedade.
Essas forças da alma que prejudicam o alcance pelo homem da verdadeira ordem
são tão humanas, essencialmente humanas, quanto o desejo de realização da ordem. Todo
homem precisa carregar o fardo de suas paixões demasiadamente humanas. Em suma: a
natureza humana não é de todo pessoal. Contém, isto sim, um campo poderoso de
paixões e concupiscências que não apenas não são humanas como também prejudicam a
formação e ação do centro pessoal na alma. Platão, professor de Aristóteles, também trata
bastante do tema quando fala das forças na alma, no seu diálogo Fedro, comparando o
homem, numa alegoria de resto já famosa, a um carroceiro que precisa educar um de seus
cavalos, o rebelde, para que a natureza dócil do outro possa se sobressair. Assim, o uso da
força não é necessário para impor uma ordem verdadeira na pessoa humana, ela é
necessária para impor uma ordem que tangencia os traços da personalidade humana sobre
a natureza impessoal do homem. Em particular, o uso da força é necessário para quebrar
a impessoalidade no homem quando ela tende a convulsionar a ordem da existência
social humana.
O uso da força na imposição da ordem jurídica traz à lume a natureza impessoal
da norma legal: a impessoalidade da ordem jurídica tem sua fonte ontológica na
impessoalidade da natureza humana.
54
XX Os Componentes de Validade.
A ordem jurídica não tem um status ontolóligo de per si. Enquanto é objeto de
estudo sem relação com seu contexto, a validade de suas regras é apenas o significado de
suas proposições. A construção aplicada a esse corpo de significados leva ao impasse do
paradoxo zenônico. Com a introdução de fenômenos conexos, entretanto, a validade das
regras adquire uma realidade.
As regras legais, para início de análise, são proposições que tratam da ordem da
existência humana em sociedade. O verdadeiro conteúdo de uma norma, todavia, nem
sempre usa a fórmula normativa. O legislador dá por pressuposto o fenômeno contextual,
qual seja, a interpretação pelos membros da sociedade a fim de dar à lei significado
completo. O texto da lei poderia facilmente ser completado com os dizeres “Você deve”
ou “Você nâo deve”. A estrutura de sentido aponta para além do texto em direção à
realidade social em que a ordem jurídica adquire sua validade particular. A conduta dos
membros da sociedade preenche o conteúdo da norma legal. Entretanto, a ordem jurídica
não se refere à conduta humana com o objetivo de fazer valer uma proposição verdadeira
sobre a conduta dos seres humanos. A norma legal não é uma proposição científica, nem
o ser humano objeto de experimento por cientistas, muito embora seja possível com
alguma margem de erro prever a conduta dos membros de uma sociedade com base no
conhecimento de suas leis.
A intenção da lei, portanto, não é cognitiva, a lei ambiciona uma verdade, qual
seja, a verdade sobre a ordem da sociedade. Melhor do que a fórmula “Você deve” ou
“Você não deve” é a fórmula “É verdade que você deveria fazer isso ou aquilo” para
expressar com mais exatidão a linguagem normativa. A verdade da proposição específica
pode ser submetida a uma análise crítica, porém qualquer norma legal, tanto quanto uma
proposição sobre acontecimentos no mundo sensível, pretende expressar uma verdade,
não obstante seja mais difícil aferir a verdade daquela do que a desta. O Dever é uma
realidade na experiência jurídica. Se o objetivo da existência humana é realizar a sua
natureza ao máximo possível dentro dos poderes humanos, então um determinado curso
de ações será preferível a outro. O caráter normativo de uma ação contemplada pela regra
não se refere à forma da regra, mas à ação em mira. Se o caráter normativo de fato se
55
adequa ao tipo de ação é outra análise crítica a ser feita. Qualquer outra construção
abandonaria a tensão ontológica do Dever e deixaria a questão da ordem à mercê da força
apenas. A validade da regra legal, portanto, contém o componente de normatividade no
sentido ontológico.
Mas a regra contém mais do que essa normatividade ontológica. O ius positivum
não é o ius divinum et naturale. Na validade da norma legal entra ainda o componente da
existência impessoal do homem. O fator impessoal permeia o processo legislatório desde
a criação de um representante até a imposição de decisões individuais em casos
concretos. Esta autoridade de poder não é uma fonte adicional de normatividade17, pois
não há existência humana independente da ordem da sociedade. A ordem da existência
humana é de modo indivisível a ordem da existência humana na sociedade. É necessário
que haja, seja o que for a natureza humana, uma organização social com o poder de fazer
e aplicar a lei, porque a sociedade é ontologicamente a maneira humana de existir. O
poder do representante e sua função legiferante não é uma fonte independente de
normatividade, é uma fonte em separado da validade da regra legal, além da razão e da
revelação.
17
Compreende-se portanto por que o Senhor foi contra a nomeação de um rei para o povo de Israel. A
nação de Israel, que pediu ao profeta Samuel um rei, foi atendida mesmo contra a vontade do próprio
Senhor. Dirigindo-se a Samuel, o Senhor disse: “Não é a ti que eles rejeitam, mas a mim, pois já não
querem que eu reine sobre eles.(...) Atende-os, agora(...)” (Bíblia, 2006, I Samuel, 8, 7-9, p. 312). Ou seja,
se Israel achava que teria uma fonte melhor de normatividade ontológica por adicionar uma instância de
poder, enganou-se redondamente, como a própria história dos reis mostrará, os quais eram tão falhos
quanto qualquer juiz, que formavam a classe de governantes antes da instauração da monarquia.
56
Os resultados finais de nossa análise apontam que a ordem jurídica e sua validade
têm raízes na natureza do homem e sua existência em sociedade, porém não obstante isso
a ordem jurídica não pode ser deduzida da natureza humana. Entre a existência humana
em sociedade e os esforços do representante de ordená-la através do processo legiferante,
existe a sociedade historicamente concreta, a qual pode ser pequena, grande, nômade,
baseada em agricultura, industrial, comercial. Pode ser uma comunidade tribal, uma
cidade-estado, um estado-nação, um império. E pode além disso referir-se a um mito
cosmológico, ou já haver diferenciado o conteúdo mitológico-racional da revelação.
As questões sobre a ordem jurídica, portanto, estão longe de uma solução pacífica
com a garantia de que os elementos pessoais e impessoais da natureza humana compõem
sua validade. Existe a questão proeminente da ordem ótima dentro das condições
históricas dadas e também a questão sobre a técnica legal para atinjir os melhores
resultados.
Já que o direito tem sua função na ordenação concreta de uma sociedade, não
existe uma história do direito no sentido estrito. A história do direito só existe enquanto
subordinada a das sociedades.
Para uma pesquisa sobre a natureza do direito, o acontecimento mais importante
da história da ordem social é a diferenciação das fontes normativas de autoridade, a razão
da revelação, nas experiências compactas e simbólicas do mito. Sob este aspecto, três
tipos de direito podem ser distinguidos: o direito no contexto de uma sociedade que é
ordenada por um mito cosmológico, o direito em sociedades que experimentaram uma
revelação (Israel, por exemplo1819) ou a filosofia (os gregos antigos20 e a Roma clássica);
18
O primeiro livro da Bíblia, Gênesis, contém a narrativa mito-poética da criação do mundo. Ao longo
desse livro, distinguem-se também a história de homens que seguiam os passos do Senhor: “Noé obedeceu
e fez tudo o que o Senhor lhe tinha ordenado” (Gn, 6, 22) ou “Abraão partiu como o Senhor lhe havia dito”
(Gn, 12, 4). Já a partir do segundo livro, o Êxodo, o Senhor não mais ordena aos homens de modo pessoal
apenas, porém lança as bases da ordem da sociedade judaica, sobretudo pela revelação dos Dez
Mandamentos. De uma relação pessoal com homens determinados, devotos e confiantes no império do
Senhor, a relação se estende a todo o povo israelita.
“Deus disse a Moisés: “Eu sou o Senhor. Apareci a Abraão, a Isaac e a Jacó como Deus todo-
poderoso, mas não me dei a conhecer a eles pelo meu nome de Javé. Eu me comprometi com eles
a lhes dar a terra de Canaã, a terra onde levaram uma vida errante e habitaram como estrangeiros.
Ouvi o clamor dos israelitas oprimidos pelos egípcios, e lembrei-me da aliança. Por isso, dize aos
57
israelitas: eu sou o Senhor; vou libertar-vos do jugo dos egípcios e livrar-vos de sua servidão.(...)
Tomar-vos-ei para meu povo e serei o vosso Deus(...).” (Ex, 6, 2-7)
No contexto da escravidão junto aos egípcios, o Senhor reaviva a aliança que fizera com os
homens devotos do livro anterior e a estende para todo o povo. O “povo escolhido” carregará uma série de
responsabilidades. A relação que era pessoal agora passa a ter ao mesmo tempo um conteúdo impessoal,
pois nem todos os membros do povo de Israel confiam plenamente no Senhor: “Toda a assembléia dos
israelitas pôs-se a murmurar contra Moisés e Aarão no deserto. Disseram-lhes: “Oxalá tivéssemos sido
mortos pela mão do Senhor no Egito, quando nos assentávamos diante das panelas de carne e tínhamos pão
em abundância.”” (Ex, 16, 2-3) Por isso a instituição de normas de conduta é necessária e, portanto,
adotada. São os Dez Mandamentos (Gn, 20) e outras leis (Gn, 21-23). Além das normas impessoais de
conduta, haverá sempre o profeta, intermediário entre o Senhor e o povo de Israel, o qual carrega a
mensagem do Senhor para o povo e o incita a continuar nos passos do Senhor, ou, caso o povo tenha se
desviado deles, a retomá-los.
Voegelin tem um livro para falar sobre a revelação ao povo de Israel, trata-se do primeiro dos
cinco volumes de sua obra magna, Ordem e História.
19
A especulação racional a respeito da inspiração profética foi feita por filósofos judeus como Filo de
Alexandria, que viveu no mesmo período que Jesus de Nazaré, e Maimônides, durante a Idade Média.
Neste sentido, veja-se a obra deste segundo, Guia dos Perplexos, parte 2, capítulos 32 a 48.
20
No caso dos gregos antigos, os atenienses em particular, a referência a uma ordem verdadeira, para além
da ordem empírica, foi dada também pelo teatro. As apresentações teatrais em Atenas eram subvencionadas
pelo estado e por cidadãos ricos, espécies de mecenas avant la lettre, chamados coregos. O próprio estado
bancava produções artísticas, as quais, muitas vezes, estabeleciam verdades que se sobressaíam à ordem
vigente na pólis grega. A peça Antígona é um exemplo.
Na trilogia tebana de Sófocles, na peça Antígona, a personagem de mesmo nome é filha do rei
amaldiçoado Édipo, que por engano assassinara seu próprio pai e casara com a mãe. Antígona é
filha dessa união, bem como seu irmão Polinices. Depois que Édipo descobre a tragédia que recaía
sobre si, Polinices vai embora da cidade de Tebas e encontra refúgio na cidade inimiga de Argos.
Na guerra entre as duas cidades, Polinices morre, bem como seu irmão Eteocles, o qual
permancera em Tebas. Contrariando um decreto do rei Creon, que mandara que o corpo de Polinices
fosse deixado insepulto para os cães e pássaros comerem, Antígona enterra seu irmão,
honrando-o com as devidas preces aos deuses. Furioso, o rei Creon exige que Antígona seja punida.
Antígona -- Sim. Zeus não anunciou essas leis para mim. E a Justiça que vive nos deuses
abaixo não enviou tais leis para os homens. Não considerei qualquer coisa que você tenha
proclamado forte o bastante para deixar que um mortal sobreponha-se aos deuses e suas leis não
escritas e imutáveis. Elas não são justas para hoje ou ontem, mas existem sempre, e ninguém sabe
onde apareceram pela primeira vez. Então não me permiti que um medo de alguma vontade humana
levasse a minha punição entre os deuses. Sei muito bem que vou morrer- como não iria? -não faz
diferença o que você decreta. E se eu tenho que morrer antes do meu tempo, bom, eu conto isso
como um ganho. Quando alguém deve viver do jeito que eu vivo, cercada por tantas coisas más,
como pode ela não achar um benefício na morte? De modo que para mim encontrar esse destino
não me trará qualquer medo. Mas se eu permitisse que o próprio filho morto de minha mãe
permanecesse ali, um corpo insepulto, então eu me sentiria desgraçada. O que acontece aqui não
me atinge de modo algum. Se você crê que o que estou fazendo agora é estúpido, talvez eu esteja
sendo acusada com insensatez por alguém que é um insensato.
(LOURENÇO, Daniel. Noção de justiça em Ésquilo e Sófocles. Disponível em:
<http://www.daniellourenco.com/2008/03/noo-de-justia-em-squilo-e-sfocles.html>. Acesso em
07/07/2009).
58
21
Interessante observar que, na civilização islâmica, praticamente todo o conjunto do direito está dado ou
no seu livro sagrado, o Corão, ou na Sunna, os atos e ditos de seu profeta Maomé. A filosofia não pretende
ser fonte autorizada para a organização da vida civil naquela civilização, salvo como fonte subsidiária à
exegese (Ijtihâd) do Corão, a qual constitui o principal trabalho do jurista.
22
Não só os movimentos gnóstico-revolucionários fizeram essa fusão. Quando o rei Henrique VIII, da
Inglaterra, unilateralmente renegou a autoridade papal e criou a sua própria Igreja, ele estava fazendo
exatamente o mesmo, ou seja, acumulou na figura do monarca a autoridade do poder bem como a
autoridade normativa da revelação, como chefe da organização voltada a explicar o conteúdo da revelação
cristã para os ingleses. A diferença é que ele não se arrogou também a autoridade de filósofo.
59
XXII Conclusão
23
Livro publicado na Argentina por Katz Editores, sob o título ¿Una nueva ciencia de la política?
24
Kelsen’s Pure Theory of Law: Voegelin, 1927.
61
algo superior como a essência ser ontologicamente posterior à existência, que lhe é
inferior?
Continuemos com a exposição de Voegelin. Contrário à nossa indagação, Kelsen
diz que embora o postulado seja concebido no reino da existência, seu sentido ideal é
preservado com pureza incausada no reino das essências. O direito positivo é um sistema
de postulados no reino das essências. Seus elementos são as normas legais, e o objetivo
principal do jurista é analisá-los. Esses elementos, entretanto, não são as regras que
encontramos nos textos legais, eles se resumem numa “regra legal pura e simples”, que
possui duas partes, a primeira concerne à conduta humana, enquanto a segunda à conduta
coerciva do agente estatal. A regra completa é uma hipótese em que o agente estatal
exerce a conduta coerciva sobre a conduta descrita na primeira parte caso ela ocorra.
Os fatos que dão ensejo à conduta estatal podem ser chamados de ilegais ou
injustos apenas sob a ótica da máquina estatal, mas não se referem a um dever. Eles são
entendidos apenas como condições para a ação estatal. No capítulo XII deste trabalho, A
Regra enquanto Norma, já tendo criticado essa teoria, dissemos que o significado da
norma legal é o de um dever.
As vantagens analíticas da concepção kelseniana são evidentes. Toda a linguagem
de interesses, obrigações, liberdades, poderes, imunidades, reduz-se à fórmula prescrita
pelo texto legal do momento, o qual pode e deve mudar pelo desenvolvimento da
sociedade. O código de ética do momento informará o texto legal, mas a norma deve ser
contemplada apenas como uma hipótese, não como um mandamento no sentido
ontológico.
Estranhamente, Kelsen nega a existência da causalidade jurídica -- a categoria
causalidade, segundo ele, não tem significado para o direito -- entre a conduta do cidadão
e a conseqüente ação estatal. Ele cria uma categoria chamada imputação para suprir a
falta da existência real daquela.
Ele também considera a ordem estatal como a fonte suprema da ordem jurídica. A
categoria soberania postula que não há ordem jurídica superior a do próprio Estado,
porém essa categoria afasta a influência do direito internacional, o que importa em
dificuldades, pois o direito internacional muitas vezes é um fator de pressão, por
exemplo, para que o novo governo de um país reconheça dívidas oriundas de um governo
62
pelos que estão sujeitos à ordem, de tal modo que a liberdade política, no sentido de
autodeterminação, esteja assegurada, então a democracia, necessariamente, em todas as
circunstâncias e em toda parte estará as serviço desse ideal de liberdade política.”
(KELSEN, 2000, p. 144)
Entretanto, é o próprio Kelsen quem diz que “nenhuma resposta justifica a
rejeição do conceito de democracia enquanto governo do povo e sua substituição por
outro conceito, sobretudo pelo conceito de um governo para o povo” (KELSEN, 2000, p.
142). Ora, se a democracia estará em toda a parte ao serviço do ideal de liberdade
política, então ela deve também ser um governo para o povo. Kelsen acredita que
“o argumento do “formalismo”, freqüentemente usado com o objetivo de
desacreditar uma certa corrente de pensamento e, sobretudo, um esquema político,
é sobretudo um expediente cuja finalidade é ocultar um interesse antagônico que
constitui o verdadeiro motivo da oposição. Portanto, não há melhor maneira de impedir
o avanço da democracia, de preparar o caminho para a autocracia e dissuadir o povo do
seu desejo de participação no governo do que depreciar a definição de democracia
enquanto processo através do argumento de que a mesma é “formalista”.” (KELSEN,
2000, p. 145)
É óbvio que Kelsen está preocupado com a utilização terminológica que se pode
conferir à expressão “governo para o povo”, “uma fórmula vazia, suscetível de ser usada
para justificar ideologicamente qualquer tipo de governo” (KELSEN, 2000, pp. 147 e
148). Não obstante, o dever do filósofo é procurar entender o fenômeno político não
apenas pela sua plasmação jurídico-legal, porque “a autoridade do poder representativo
precede existencialmente a regulação desse poder pelo direito positivo”2526 (VOEGELIN,
25
Tradução nossa.
2626
Goffredo da Silva Telles Jr., na sua Carta aos Brasileiros, lida na “Academia do Direito de São Paulo”
durante o governo de Ernesto Geisel, penúltimo presidente do regime militar, diz:
O senso grave da ordem é o dos que abraçam os projetos resultantes do entrechoque livre das opiniões,
das lutas fecundas entre idéias e tendências, nas quais nenhuma autoridade se sobrepõe às Leis e ao
Direito.
(...)
Sustentamos que o Poder Legítimo é o que se funda naquele senso grave da ordem, naqueles projetos
de organização social, nascidos do embate das convicções e que passam a preponderar na
coletividade e a ser aceitos pela consciência comum do Povo, como os melhores. (TELLES
JÚNIOR, 1977)
Diz ainda:
Reconhecemos que o Chefe do Governo é o mais alto funcionário nos quadros administrativos da
Nação. Mas negamos que ele seja o mais alto Poder de um País. Acima dele, reina o Poder de uma
Idéia: reina o Poder das convicções que inspiram as
64
linhas mestras da Política nacional. Reina o senso grave da Ordem, que se acha definido na
Constituição. (TELLES JÚNIOR, 1977)
“O Poder de uma Idéia” ressaltado por Gofredo Telles Jr. remete-nos a um autor citado por
Voegelin, Maurice Hauriou. “A lição da análise de Hauriou pode ser concentrada na seguinte tese: Para ser
representativo, não é o bastante a um governo ser representativo no sentido constitucional (...); ele também
deve ser representativo no sentido existencial de efetivar a idéia da instituição.” (VOEGELIN, 1987, p. 49)
Segundo Voegelin, Hauriou acentua o papel da idéia, a qual deverá ser criada pelo governante e
formar o núcleo da instituição política. A instituição estará estabelecida uma vez que o próprio governante
houver se submetido a ela e os membros houverem consentido-lha pelo costume. Conferir Voegelin, 1987,
p. 48.
27
Idem.
28
O texto literário sobre a anedota chama-se Progressive Tenses, de Brian Kelly.
29
Seria bom dar a liberdade àqueles que quando puderem exterminá-la-ão? A proibição da existência de
grupos nazistas – a qual deveria se estender para os partidos comunistas, pelo princípio da igualdade –
demonstra que a ordem das sociedades, e portanto o seu direito, não se escora apenas em regras técnico-
procedimentais. No Brasil, julgamento do Tribunal Superior Eleitoral em 1947 cancelou o registro do
Partido Comunista Brasileiro. As palavras finais do voto vencedor do desembargador Cândido Lobo foram:
65
político, o qual, então, irrompe neuroticamente contra uma ordem social concreta que
desconsidera sua origem humana e referencial a um Dever Ontológico?
Entretanto, aproveito a oportunidade, para nos últimos momentos dêste meu voto em processo de
vultosa repercussão nacional e internacional, dizer e confessar a todos aqueles que atualmente têm
uma parcela de responsabilidade nos destinos do Brasil, que se a Democracia, aquela que é
estabelecida como norma pela Costituição Brasileira, (...) se esta Democracia tiver um dia que
desaparecer diante de uma nova organização social, torna-se absolutamente necessário que
aproveitemos todas as nossas forças, que cerremos fileiras, patrioticamente, como um só todo,
contribuindo sem vacilação para obter sempre e cada vez mais a grandeza do Brasil por intermédio
do sublime preço da eterna vigilância que é a Liberdade, afim de podermos preparar o bem estar
das gerações futuras que virão receber tão digna prestação de contas e tão dignificante e valorosa
herança. "Legis auxilium frustra invocat qui commitit in legem". (Ata do julgamento
disponível em:
<http://www.tse.gov.br/internet/jurisprudencia/julgados_historicos/1940/arquivos/res1841.pdf>.
Acesso em 02/07/09)
66