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Cultura

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A arte força os limites


por Pedro Alexandre Sanches — publicado 27/12/2017 00h20, última modificação 20/12/2017 14h12

Com uma exposição e um livro denominados "Levantes", o Sesc cutuca a imobilidade política do Brasil de 2017
Eduardo Gil

Na exposição e no livro-catálogo Levantes, as mães e avós argentinas marcham para saber de seus filhos em 1982, na foto de Eduardo
Gil

O paradoxo está à solta. Diante da recusa sistemática da sociedade brasileira em se sublevar contra um estado de coisas mais grave a
cada dia, o aparato cultural do Sesc paulista locomove, via museu e livro-catálogo de luxo, um projeto denominado Levantes.

Enquanto aqui fora, nas ruas, o silêncio e a sujeição são por ora a norma, lá dentro, nas páginas do livro e no espaço expositivo da
unidade Pinheiros do Serviço Social do Comércio (até 28 de janeiro de 2018), o público é conclamado a se levantar, a se insurgir, a gritar
“basta!” e “merda!” É um paradoxo ou uma provocação?

“Democraticamente, temos manifestações as mais variadas, o que, para mim, é sinal de certa vitalidade positiva”, afirma o diretor
regional do Sesc Paulista, Danilo Santos de Miranda, que acaba de bancar também, no mesmo Sesc Pinheiros, a remontagem de O Rei
da Vela pelo Grupo Oficina de Zé Celso Martinez Corrêa, inclusive com críticas e provocações diretas contra o governo de Michel Temer.
“O único problema é quando descamba para a violência, para a incompreensão, para o excesso de radicalização nas redes sociais, que
é sem pé nem cabeça”, completa.

Leia mais:
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O teatro como lugar de resistência

Levantes é um projeto do historiador da arte e filósofo francês Georges Didi-Huberman, para a instituição francesa de arte
contemporânea Jeu de Paume. Iniciou-se em outubro de 2016, em Paris, e percorre desde então um roteiro que passa pelo Museu d’Art
de Catalunya, em Barcelona, pelo Museo de la Universidad Nacional de Tres de Febrero, em Buenos Aires, pelo Sesc Pinheiros, pelo
Museo Universitario Arte Contemporáneo, na Cidade do México, e pela galeria da Université du Québec à Montréal, em Montreal, no
Canadá.

O Brasil ocupa lugar excêntrico em comparação a França, Espanha, Argentina, México e Canadá, na condição de nação cujo mais
recente levante (se assim podemos classificar o ciclo de rebeliões do pato amarelo) conduziu a um ataque em regra contra o voto
popular, a Constituição e a democracia.

“Às vezes, é verdade, há levantes contra regimes democráticos”, constata a filósofa estadunidense Judith Butler, mulher-levante que
teoriza no livro insurrecional ao lado dos colegas filósofos Didi-Huberman, Jacques Rancière, Marie-José Mondzain (franceses) e Antonio
Negri (italiano) e da historiadora e professora de cinema Nicole Brenez (francesa).

Embora a exposição abarque obras de nacionalidades diversas, no livro, pensadores espanhóis, canadenses, mexicanos, argentinos e
brasileiros não são convidados a palpitar sobre os levantes em suas colônias natais. 

O Brasil, em particular, passa vergonha ao recepcionar ao método fascista a


recente visita de Judith Butler, inclusive com episódio de confronto no Sesc
Pompeia. “No seminário da USP a que cedemos espaço, um senhorzinho
disse ‘não entra aí, que você vai pegar Aids’, uma pessoa de padrão classe
média”, espanta-se Danilo. 

Quanto aos Levantes, o diretor do Sesc afirma que o curador pretendeu


privilegiar o aspecto positivo, pró-democrático, das sublevações. Ainda aí o
Brasil se revela deslocado do eixo, como demonstra a voga de levantes
antidemocráticos contra museus, exposições, peças teatrais, palestras,
nudez artística e a preservação de espaços tombados como o Teatro
Oficina. 

“Não é possível considerar qualquer levante democrático”, escreveu Judith,


sem se referir à nossa tragédia particular. “Se um grupo de pessoas se vê
Beaubien Street (1971), de Ken Hamblin, ‘sujeito’ à democracia, à igualdade, aos direitos das mulheres, ao casamento
estadunidense filho de imigrantes de Barbados
homossexual ou ao conceito de ‘gênero’, o que pensar do levante desse
grupo? Quem são eles? Eles são ‘o povo’?” As perguntas da filósofa
permanecem em aberto.

Os textos e as imagens de artistas como Victor Hugo, Francisco de Goya, Federico García Lorca, Rosa Luxemburgo, André Breton, Man
Ray, Hélio Oiticica, Cildo Meireles (as notas de cruzeiro carimbadas com “Quem Matou Herzog?” e de dólar com “Yankees Go Home!”),
Chieh-Jen Chen, Tina Modotti, Ernesto Molina e dezenas de outros compõem, em conjunto, uma imagem romantizada dos levantes.
Pinturas e fotografias pulsam na “distância que separa qualquer exposição daquilo que é o seu tema”, segundo os dizeres do filósofo-
curador.

A tragicomédia brasileira particular faz de Levantes um motivador extra de incômodo e reflexão. “O que fazer quando reina a
obscuridade? Pode-se simplesmente esperar, dobrar-se, aceitar. Dizermos a nós mesmos que vai passar. Tentarmos nos acostumar”,
escreve Georges Didi-Huberman, em argumentos involuntariamente cabíveis ao caso brasileiro. “Isso se chama pulsão de morte.”
Insurreição taiwanesa em cena do filme The Route (2016), de Chien-Jen Chen

Mais insubmissos estão hoje os protofascistas, desenvoltos nas redes e nas ruas, enquanto do lado de cá nos dobramos (ainda nos
dizeres de Didi-Huberman) “na inércia mortífera da submissão, seja ela melancólica, cínica ou niilista”.

Para Judith Butler, “o levante é a consequência de uma sensação de que o limite foi ultrapassado”. Se os brasileiros estão prostrados
diante da “reforma trabalhista”, do neoescravagismo e da pilhagem do pré-sal etc., é porque o limite ainda não foi ultrapassado? Ou
porque cerramos fileiras com o exército restaurador da ordem antiga, mesmo os que nos dizem ser contrários a ele e a ela?

“Levantes acontecem tarde demais, no esforço de instaurar uma nova situação, já passado o momento em que a sujeição devia ter
chegado ao fim”, a filósofa procura a pista. “Um levante pode esconder outro”, despista e confunde Jacques Rancière. No Brasil real,
quem dá pistas de que limites foram ultrapassados é a atriz global Susana Vieira, habitué das rebeliões do pato amarelo e uma das
primeiras figuras a admitirem algum arrependimento, ainda que pelo artifício de negar o levante reacionário.

“Nós nunca levantamos nenhum cartaz ‘fora Dilma’, impeachment, então eu não estou nessa praia, não me sinto culpada de nada”,
afirmou em entrevista há poucos dias a “rainha do destino”, que todos nós sabemos onde estava no verão passado.

No asfalto em frente ao Teatro Oficina, no domingo 26, Zé Celso e sua trupe orientam um carnaval de rebelião, sob o mote da não
destruição do espaço pelo empresário Silvio Santos, pela especulação imobiliária, pelo poder público demolidor de edifícios concretos e
simbólicos.

O levante é morno, quase desanimado, fechado nos limites da bolha classe média/plateia de teatro/parede de museu. O momento do
levante contra o(s) golpe(s) não parece ter chegado para a maioria de nós. 

“Nas telas dos cinemas, como nas paredes dos museus, não há emoções. São só imagens. E imagens não fazem levantes”, ataca
Rancière. “Se os filmes fossem incapazes de suscitar qualquer mudança, por que tantos deles seriam censurados em tantos países?”,
contra-ataca Nicole Brenez em texto sobre o cinema de sublevação, numa indagação em tudo contemporânea às tentativas censoras
no Brasil sob golpe.
Susana Vieira e um elenco de globais se levantam contra Dilma Rousseff e a favor de Sergio Moro, no Brasil de 2016 (Luciano
Belfourd/Framephoto/Estadão Conteúdo)

Como o Levantes pode existir neste país? Ainda somos democracia, ou já viramos Estado de exceção? “Estamos numa mistura das duas
coisas”, diz Danilo. “Valores democráticos estão em vigor, imprensa livre, o direito de todos se manifestarem de maneira até excessiva…
Por outro lado, há a presença de um grupo dominante na administração pública pouco vinculado aos interesses populares.”

Instituições avalistas do frágil regime em vigência bancam, em seus espaços culturais, exposições em algum grau contestadoras. É
contradição ou a própria mecânica do jogo? “É típico da democracia”, opina o diretor do Sesc. “Mesmo que o sistema bancário prefira
acompanhar decisões que podem parecer ou ter algum tipo de conotação conservadora, as instituições culturais o fazem com a
liberdade necessária. No dia em que a cultura e as artes forem utilizadas para defender ou atacar algum tipo de interesse dessa ordem,
aí estamos no pior dos mundos.” Mas nós estamos ou não no pior dos mundos? “Espero que não”, responde o diretor resistente, que,
entre poucos, dá guarida aos Levantes e ao Rei da Vela.

Judith Butler trata os levantes como coleção de fracassos, rumo a um possível sucesso, a uma sonhada revolução. Antonio Negri
romantiza os “movimentos altermundialistas” e as “primaveras da indignação”, enquanto todos, aqui no Brasil, sabemos que junho de
2013 caiu num inverno.
Blindado dentro do museu, Didi-Huberman romantiza, conclama o proletariado, lembra que a impotência é mãe do levante: “As Mães e
Avós da Praça de Maio, em Buenos Aires, jamais almejaram o poder. Elas só queriam notícias de seus filhos. Nem por isso deixaram de
instigar o levante de uma sociedade inteira e a consciência política de todo mundo ao redor”.

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