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N e l s o n Ro d ri gu e s

HAMLET NOS
BATE A CARTEIRA
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“Não me compreendam tão depressa”, pedia Gide, pelo amor


de Deus. Morreu, o velho Demônio, com mais de setenta anos,
quase oitenta. (Nos últimos tempos, sem um fio de cabelo, era só
testa. Não me lembro de sua cara. Só vejo a testa obsessiva,
lustrosa, quase dizia fluorescente.)
Eis o que importa lembrar: — durante anos e anos, Gide foi
incompreendido em todos os idiomas. E essa resistência mundial
era o seu orgulho perverso. Depois, tudo mudou. Consagraram o
estilista. Até o seu homossexualismo passou a ser promocional. E,
por fim, sofreu a humilhação crudelíssima do Prêmio Nobel. Era
agora o Ex-Diabo e, pior, tão glória oficial como Victor Hugo.
Mas, até o fim, Gide preservou a nostalgia das velhas
incompreensões.
Hoje, repassando a sua experiência humana e estilística,
aprendemos o seguinte: — sua morte literária ocorreu quando o
mundo passou a compreender seus escritos e até sua pederastia.
Passo de Gide para o teatro brasileiro. (Desculpem a minha
insistência na meditação dramática: mas sou, como disse o Cláudio
Mello e Souza, uma “flor de obsessão”.) Segundo leio nos jornais,
explodiu uma experiência teatral “nova” no Brasil. Uma furiosa
aventura sem precedentes. Algo jamais concebido.
Se bem entendi, a novidade está na “agressão”. Cada
espetáculo tem de ser um soco na cara do espectador. Cessam as
fronteiras convencionais entre platéia e palco. Nem se pense que o
personagem agride apenas por gestos e falas. Seria quadrado
demais. Ao que me informam, chegam a agredir fisicamente, o
espectador.
Vejamos um exemplo. Está na platéia uma santa senhora,
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mãe de oito filhos. Veio da Tijuca, com o marido, viver o feérico,


inefável sábado. E, de repente, um dos personagens de Roda viva
sai do palco para a vida real. O homem senta-se no colo da mãe de
família, ou puxa-lhe as bochechas, ou dá-lhe uma palmada. Há um
fígado na peça (fígado de boi, fígado de açougue). É possível que
esguichem sangue bovino no olho da gorda dona-de-casa.
E das duas uma: — ou o marido não faz nada, ou mete o
braço. Na hipótese do revide corporal, melhor. É a sopa no mel. O
que os teóricos do novo teatro pretendem é justamente isso: — o
tumulto, o alarido, o pé na cara, o grito, o horror. Só não se admite o
público apático, a comer pipocas.
Sim, para o teatro em causa, tudo é permitido. Ainda ontem
me dizia o Eduardo Chermont de Brito: — “Qualquer dia entro num
teatro e, no meio do quinto ato, um personagem me bate a carteira”.
E vamos e venhamos: — não me parece de todo inviável
semelhante hipótese. Cabe então a pergunta:
— “E daí?”. A platéia leva um soco na cara. Batem-lhe a
carteira. Mas repito: — “E daí”. Por que e para que agressão
tamanha? Não sei, ninguém sabe, nem Deus.
Comecei com Gide e volto a ele. Eis o que importa observar:
— o novo teatro já não corre qualquer risco de incompreensão.
Imagino a amarga perplexidade do leitor. Realmente, custa crer que
a novidade não cause o impacto da novidade; que a surpresa passe
sem surpresa, e que o público aceite o nunca visto com a mais
cordial naturalidade.
Qualquer novidade em teatro tem de exigir do espectador
uma lenta, progressiva acomodação visual e auditiva. O sujeito está
vendo e ouvindo o que nunca viu e ouviu, o que desafia toda a sua
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experiência e todo o seu raciocínio. Portanto, uma incompreensão


inicial é obrigatória. E, de mais a mais, por que a obra de arte há de
ser de uma transparência burríssima? Até um soneto parnasiano
preserva um mínimo de mistério, de solidão. E as novas tentativas
teatrais não insinuam nenhum mistério, não sugerem nenhuma
dúvida. Falar em Artaud, aqui, seria monstruoso. Que distância
infinita, milenar, separa Roda viva de Artaud. Mas o que eu dizia é
que nem Roda viva nem Rei da vela conseguiram a homenagem de
uma incompreensão.
Cabe então a pergunta: — e por que se frustrou toda uma
ingênua e otimista intenção de choque, de escândalo, de soco na
cara? Aqui entra um tipo realmente fascinante do nosso tempo: — o
“compreensivo”. Em capítulo recente, contei um episódio familiar
realmente patético. Certo filho vira-se para o pai e diz-lhe: —
“Papai, cala a boca ou te parto a cara!”. O pai foi magistral.
Reagindo como um “compreensivo”, deu ao filho um Ford Galaxie.
Os “compreensivos” são cada vez em maior número. Nós os
encontramos por toda parte. Estão nas salas, nos escritórios, nas
alcovas, nos tribunais, nas igrejas. O dr. Alceu é um
“compreensivo”; o padre Ávila, outro. É justamente essa
compreensão urgente e fulminante que desesperava Gide.
O “compreensivo” vai ao teatro, recebe um esguicho de
sangue e não se espanta. E aqui chegamos à palavra certa.
Reparem como o brasileiro se espanta cada vez menos. Somos,
hoje, um povo de pouquíssimos espantos.
Li ontem uma senhora “compreensiva”. Redigiu uma crônica
que era o seu deslumbramento impresso. Eu, se fosse o Chico, ou
fosse o Zé Celso, estaria frustrado e humilhado com uma
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compreensão assim ultrajante.


Ah, uma senhora “compreensiva” é capaz de tudo. Se lhe
servirem, num banquete, uma ratazana ensopada, não pensem que
fará a concessão de uma surpresa. Jamais. Nada a espanta. Tem
sempre, e nas emergências mais cruéis, uma aristocrática
naturalidade, uma melíflua negligência. Suprimiu dos seus hábitos o
ponto de exclamação. É ratazana? Pois que seja ratazana, e com
abóbora.
Mas há pior, amigos, há pior. Outrora, só uma seletíssima
elite tinha esse cinismo superior e inteligentíssimo. Tal elite
compreendia o mistério de tudo e o resto não. O homem comum era
o que ainda se espantava. Se me perguntarem onde estão os
“compreensivos”, eu diria que os há em todas as classes. Há o
cínico grã-fino e o cínico favelado. Há também, na classe média,
essa incapacidade para o horror. Sim, há quanto tempo nós não
nos horrorizamos?
E insisto na pornografia. Eu me lembro da geração anterior.
Havia uma cerimônia entre o brasileiro e o palavrão, havia como
que uma solenidade recíproca. O palavrão tinha a sua hora certa e
dramática. Vejo hoje meninas, senhoras, de boca suja, e nas
melhores famílias. Diria, se me permitem, que o palavrão se
instalou entre os usos mais amenos e familiares da cidade.
Mas nem tudo é vão no novo teatro. Quem o diz é o José
Celso.
Segundo o jovem diretor, nem só os “compreensivos”
enchem a sua platéia. Há uma meia dúzia que, chocadíssima,
“muda de lugar”. Ótimo, ótimo. E, realmente, isso jamais aconteceu
com Sófocles, Shakespeare ou, mais recentemente, Ibsen. A platéia
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de tais autores nunca trocou de cadeira. Não há dúvida. Aí está


uma deslumbrante conseqüência ética, sociológica, ideológica ou
que outro nome tenha. O Chermont de Brito tem razão.
Chegará um dia em que ninguém irá ver Shakespeare, com
medo que o Hamlet lhe bata a carteira.

[O GLOBO, 2/2/1968]

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