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COLABORA ÃO INTERNACIONAL

DESAGREGAÇÃO DO SISTEMA
SOVIÉTICO E TRANSFORMAÇÃO DAS
FORMAS DE PROPRIEDADE
• João Bernardo * PALAVRAS-CHAVE: Classe dos gestores, formas de pro-
Escritor, autor de vários livros, sendo os mais recentes Crise priedade, economias soviéticas, privatização.
da Economia Soviética, Dialéctica da Prática e da Ideologia
e Economia dos Conflitos Sociais. * ABSTRACT: The author defines two systems of property

* RESUMO: Depois de definir duas formas de propriedades


distinctive of the managerial class, and relates their deve-
lopment to the transformation of the political apparatus. He
características da classe dos gestores, o autor relaciona a sua describes several recent privatization processes in Eastern
evolução com as transformações operadas no aparelho de Europe, concluding that the changes in the systems of pro-
Estado. Descreve vários processos recentes de privatização perty allow the managerial class to keep in power.
na Europa do Leste, concluindo que essas transformações
nas formas de propriedade permitem à classe dos gestores * KEY WORDS: Managerial class, systems of property, So-
manter-se no poder. viet economies, privatization.

100 Revista de Administração de Empresas São Paulo, 33(2):100-110 Mar./Abr.1993


DESAGREGAÇÃO DO SISTEMA SOVIÉTICO E TRANSFORMAÇÃO ...

No capitalismo têm até agora existido isoladamente ou em pequenos lotes, des-


duas classes sociais dominantes: os gesto- de o início se destinam a ser transaciona-
res, que autores como Bresser Pereira e das e têm, portanto, um elevado grau de
Prestes Motta denominam tecnoburocra- liquidez. Acabam por equivaler a uma
cia, e a burguesia. Estas classes distin- forma de depósitos a prazo.
guem-se, entre outros aspectos, quanto às E a reduzida percentagem de acionis-
formas gerais de propriedade. Os bur- tas com direito a participar nas Assem-
gueses são proprietários privados dos bléias Gerais avalia a atuação das admi-
meios de produção; os gestores apro- nistrações mediante critérios exclusiva-
priam-se deles coletivamente, tanto no
âmbito de um país, como de uma empre-
sa ou grupo econômico. A diferença não
é de pouca importância, sobretudo para
as relações entre cada uma dessas classes
e a classe trabalhadora. Até há não muito
tempo os grandes movimentos de contes-
tação tenderam a reduzir a ordem econô-
mica e social à propriedade privada dos
meios de produção, condenando os tra-
balhadores ao insucesso quando uma
modificação das formas de propriedade
reforçava, sob a égide dos gestores, o
mesmo capitalismo que só havia sido
posto em causa na sua vertente burguesa.
Estas operações de recuperação das lutas
sociais conseguem hoje um novo fôlego,
mediante a transformação interna do
próprio sistema gestorial de propriedade.
Quanto às formas de propriedade da
classe dos gestores, tenho usado um mo- mente a curto prazo, interessando-se ape-
delo em que, nos países que seguiam o nas por obter os maiores dividendos ime-
regime soviético, os meios de produção diatos. Com esta perspectiva seria impos-
pertenciam totalmente ou em grande sível dirigir uma grande empresa.
parte ao Estado; e era o controle exercido Fragmentada a antiga propriedade
coletivamente pelos gestores sobre o apa- burguesa numa multiplicidade de parce-
relho de Estado que lhes garantia a pro- las ínfimas que não conferem aos deten-
priedade desses meios de produção. tores nenhum poder de decisão, este pas-
Nos países tradicionalmente incluídos sou a caber inteiramente aos gestores das
na esfera de influência norte-americana empresas. O capital não é uma sorna de
verifica-se aquela mesma modalidade, à bens materiais ou títulos financeiros; é a
medida que existem empresas públicas e supremacia que se exerce em dadas rela-
estatizadas, mas a sua importância é se- ções sociais e econômicas. O capital é a
cundária. O sistema mais significativo de capacidade de enquadrar os trabalhado-
apropriação coletiva resultou aqui da res no processo de produção de mais-va-
fragmentação das formas burguesas de lia, de orientar o seu decurso e de se
propriedade. O desenvolvimento das so- apropriar dos seus resultados. O controle
ciedades por ações teve como efeito, na que um conjunto de gestores exerce so-
esmagadora maioria dos casos, a disper- bre uma grande empresa ou grupo eco-
são dessas ações, de maneira que cada nômico, perante a inoperância dos acio-
um dos acionistas não dispõe de nenhu- nistas garante-lhe a propriedade coletiva
ma possibilidade de influenciar a orienta- do capital.
ção da empresa. Daí a grande mobilidade O mesmo sucede quando são as insti-
das ações. Em vez de constituírem um tuições de poupanças, incluindo os fun-
quadro familiar estável perpetuado pela dos de pensões com base sindical, a de-
herança, corno sucede com a propriedade ter grandes lotes de ações. Em primeiro
privada burguesa, as ações, adquiridas lugar, utilizam-se exatamente do mesmo

© 1993, Revista de Administração de Empresas / EAESP / FGV, São Paulo, Brasil. 101
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modo que os particulares, para beneficia- continuar a ser uma acionista influente".
rem-se com as alterações de cotação e O sistema gestorial prevalece hoje, ainda
protegerem-se da inflação. Em segundo que se mantenham quadros de proprie-
lugar, os administradores das institui- dade formalmente burgueses.
ções de poupança são eles próprios ges- Uma profunda remodelação operada
tores, que controlam os fundos ao seu nas esferas do poder levou a que na últi-
dispor sem ter a propriedade formal das ma década, nos países tradicionalmente
instituições. integrantes da área de influência norte-
Mesmo quando os gestores de uma americana, se desmantelasse em boa
empresa recebem sob forma de ações parte o sistema de economia pública ou
uma parte da remuneração não se con- estatizada.
vertem por isso em proprietários burgue- No decorrer do tempo, com o desen-
ses. O objetivo é o de permitir que apro- volvimento da concentração do capital,
veitem as flutuações da bolsa e, portanto, foram-se estreitando as relações entre as
o princípio orientador continua a ser o da maiores empresas, a tal ponto que pude-
mobilidade das ações, que não passam a ram prescindir da mediação governa-
constituir nenhum quadro estável e here- mental e tomar elas próprias a iniciativa
ditário de apropriação. O mesmo raciocí- na organização global da sociedade. Pu-
nio se aplica quando os gestores, por sua deram por isso também capturar para a
iniciativa, compram ações da empresa sua órbita aparelhos administrativos que
que administram. A vantagem, relativa a se haviam desenvolvido na esfera clássi-
adquirir ações de outras empresas, con- ca do Estado. O sistema político tradicio-
siste no fato de estarem especialmente nal foi assim atacado duplamente, cir-
bem informados acerca dos lugares onde cunscrito a partir do exterior e desagre-
exercem a atividade. Tem ainda sucedido gado pelo interior, começando as gran-
que, para enfrentar ameaças de controle des unidades econômicas a apresenta-
por um grupo rival, a administração ad- rem-se como os principais órgãos do po-
quira maciçamente ações da empresa que der. Na sua expansão as sociedades mul-
dirige. Procura assim unicamente impe- tinacionais coroaram este processo por-
dir um eventual despedimento ou subal- que, ultrapassando as fronteiras, abrem
ternização. Passado o perigo retoma-se o um campo de ação ao qual mal podem
quadro anterior de propriedade. Para responder governos restritamente nacio-
formar uma opinião sobre os resultados nais. E desta maneira o Estado centraliza-
de todos estes mecanismos basta recor- do, que tem nos ministérios e no parla-
dar que a percentagem das ações das 120 mento o vértice obrigatório, dá progressi-
maiores sociedades norte-americanas de- vamente lugar a uma organização pluri-
tida pelos seus chie! executives, que era de centrada, constituída pela rede que une
0,3% em 1938, desceu para 0,047% em as maiores unidades econômicas e admi-
1974e, em 1988,reduzia-se a 0,037%1. nistrativas e em que cada uma delas for-
Este sistema de propriedade tomou-se ma um dos múltiplos pólos principais.
de tal modo dominante nas principais Deste modo, entrou em franco declínio
empresas que mesmo proprietários bur- o quadro de propriedade assente no apa-
gueses passaram a comportar-se con- relho central de Estado, que presidira à
soante as normas que definem os gesto- formação das empresas públicas e às es-
res. O exemplo da Ford Motor Co. pare- tatizações. E desenvolveu-se a outra das
ce-me especialmente elucidativo. Quan- formas de propriedade típicas da classe
1. MICHAEL, C. Jensen; KEVIN, do Henry Ford 11se afastou da direção, dos gestores, resultante da dispersão das
J. MURPHV, Ceo Incentives -
It s Not How Much Vou Pay, But
embora 40% das ações com direito de vo- ações, perfeitamente adequada à multici-
How.Harvard Business Review, to fossem ainda controladas pela família, plicidade de centros que passou a carac-
nº 3, 1990, citado em The Eco- os seus três membros ativos na empresa terizar a vida política.
nomist, 13 de abr.1991, p.87. Na grande parte dos países da esfera
em nada se destacavam dos restantes
Acerca das implicações deste
artigo ver também Harvard Bu- gestores. Depois, ao aposentar-se, o vice- norte-americana, os governos têm vendi-
siness Review, 1 fev. 1992, p. presidente William Clay Ford, neto do do ou a totalidade de algumas empresas
24. fundador, pela primeira vez os escalões de que eram proprietários, ou participa-
2. THE ECONOM/ST, 3 out. de topo da administração deixaram de ções majoritárias nas empresas ou parti-
1987, p. 75, 4 mar. 1989, p. 71. ter elementos da família, apesar de ela cipações minoritárias. Nos dois primeiros

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Porém, em vez de tomar como critério


de avaliação a percentagem de ações de-
tida por particulares, o governo Thatcher
preferiu dar relevo ao número de pro-
prietários de ações; ocultava-se assim um
aspecto importante dos mecanismos de
controle da economia, para se mostrar
apenas o grau de dispersão desses títulos
simbólicos. Em 1986,o governo anunciou
que o número de acionistas subira para 6
milhões, o equivalente a 14% da popula-
ção adulta. A euforia foi prematura e de-
veu-se a erros básicos no método de in-
quérito seguido. Até a privatização da
British Telecom, em 1984, só entre 4% e
5% da população adulta possuía ações:
com essa privatização o número subiu
para 8% e seria de 9% em março de 1986,
casos, os gestores inseridos no sistema embora outros inquéritos anunciassem
centralizado de apropriação transitaram que, no final da primeira metade desse
para o outro sistema. Este processo pode ano, a proporção era de 8,3% ou 8,5%
seguir formas diversas. mas em fevereiro de 1987os acionistas já
Uma das formas adotadas em países eram 8,5 milhões, correspondentes a 20%
economicamente desenvolvidos da área da população adulta, e 9 milhões no ter-
norte-americana é a venda em bloco de ceiro trimestre desse ano. A situação no
empresas estatais, ou de participações Reino Unido começava assim a aproxi-
nas empresas, a grandes grupos do setor mar-se dos Estados Unidos, onde 27%
privado. dos adultos em 1987 eram proprietários
Outra forma, corrente também nesses de ações.
países mais desenvolvidos, consiste na Mas, apesar desse acréscimo dos acio-
dispersão das ações das empresas esta- nistas particulares, o valor das ações pos-
tais entre um elevado número de peque- suídas por instituições aumentou mais
nos compradores. Como os novos acio- depressa do que o valor das detidas indi-
nistas individuais, estão impossibilitados vidualmente, o que se explica pelo fato
de exercer qualquer intervenção na de os particulares, ao adquirir ações, pro-
orientação das empresas, elas continuam curarem apenas um refúgio para as suas
a ser controladas pelos seus gestores. O poupanças, sem quaisquer ilusões quanto
Reino Unido constitui talvez o melhor a uma participação significativa no capi-
exemplo, embora a deliberada confusão talismo. As variações etárias são, aliás,
com que tantas vezes são apresentados sugestivas do objetivo pretendido no Rei-
os fatos obrigue a esmiuçar um pouco a no Unido com a compra de ações. Na fai-
análise. xa dos 25 aos 34 anos, correspondente
Em 1963,59% das ações das socieda- aos elementos mais ativos e em hipotéti-
des britânicas com cotação oficial estava ca ascensão social, só 6% adquirira ações,
nas mãos de particulares, reduzindo-se a o que revela uma proporção inferior à
37,5%em 1975e, em 1984,a 23%.O resto média; na faixa entre os 55 e 64 anos, com
pertencia sobretudo a instituições de a aproximação da aposentadoria, o nú-
poupanças, como companhias de seguros mero subira a 13%,manifestando o dese-
e fundos de pensões, além de empresas jo de obter uma garantia econômica para
estrangeiras. Os particulares preferiam a velhice; acima dos 65 anos a percenta-
canalizar as suas economias para aquelas 3. Para a análise da situação no
gem diminuia, suprindo-se então parcial- Reino Unido ver The Economist,
instituições, de maneira que o número to- mente com a venda de ações a insuficiên- 23 jul. 1983, p. 76; 22 fev.
tal de acionistas individuais diminuiu no cia das pensões 3. 1986, p. 55-58; 26 abr. 1986, p.
67; 3 mai. 1986, p. 97-98; 10
período considerado. Eram 2,5 milhões Quaisquer que sejam as formas de pri- mai. 1986, p. 85; 14 jun. 1986,
em 1966, 2,1 em 1973 e 2,0 em 1980, nú- vatização adotadas, o que muda? Antes p. 75; 12 set. 1987, p. 83-84, 3
mero que se mantinha em 1983. os gestores econômicos sofriam pressões out. 1987, p. 20.

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por parte dos gestores políticos inseridos de poder. Este processo foi um dos res-
no aparelho central de Estado. Com as ponsáveis pelas sucessivas reformas de
privatizações reduz-se decisivamente o Khruchtchev e de Kossyguin, pelo lança-
âmbito de ação dos órgãos de poder tra- mento da perestroika e, afinal, pela com-
dicionais e aumenta a independência dos pleta derrocada do aparelho central. No
gestores econômicos, que encabeçam as Ocidente, a transição pôde operar-se gra-
grandes empresas. "0 melhor motivo para dualmente porque coexistiam duas for-
mas de propriedade gestorial; a decor-
rente da centralização governamental foi
progressivamente ultrapassada pela re-
Tem sido proposta a distribúiçiO sultante da dispersão das ações, adequa-
da ao sistema pluricentrado que se fun-
de ações de cada empresa aos damenta nas principais unidades econô-
micas. Mas na antiga esfera soviética a
seus trabalhadores, consoante classe dos gestores assegurava a sua pro-
priedade exclusivamente pelo controle
um sistema que C mantido sobre os órgãos centrais do Esta-
do, sem possuir oficialmente qualquer
como capitalismo. d icatos outra forma de propriedade adaptada às
tendências recentes. São essas novas for-
porque, na realidade, mas que estão hoje a ser criadas, com
enormes perturbações que explicam tan-
sio os dirigentes sindicais. to a demora nas medidas a adotar como
o fato de as empresas estatais continua-
a assumir o controle. rem a prevalecer.
Uma das principais dificuldades que
atrasam o desmembramento da econo-
privatizar - consoante Alain Juppé, um mia estatal deve-se à não existência de
político (francês) conservador neogaullis- um mercado de ações, sendo portanto
ta e ex-ministro do orçamento - é o de im- impossível estabelecer antecipadamente
pedir que o governo tenha o poder de nomear e uma cotação para a sua venda.
demitir os diretores das empresas estatais'>. Além disso, se em alguns países da an-
Nos países menos desenvolvidos da tiga esfera soviética, como a Polônia e a
esfera de influência norte-americana, on- Hungria, uma longa série de reformas ti-
de não existe um mercado particular de nha permitido a emergência de um setor
ações com dimensão suficiente, a privati- empresarial privado relativamente ativo,
zação tem-se realizado mediante a venda não se podia contar nos restantes com a
de empresas públicas, quer a capitalistas existência, pelo menos em termos legais,
estrangeiros, quer a sociedades multina- de capitalistas particulares ou de grupos
cionais, quer - quando existam - a gru- econômicos capazes de adquirirpartici-
pos econômicos com sede no país. Nestes pações significativas nas empresas que os
casos é o quadro de propriedade vigente governos pretendem vender.
na entidade compradora que preside di- O recurso ao capital estrangeiro não
retamente às empresas privatizadas. pode constituir a solução exclusiva, nem
O desmantelamento das economias de sequer a predominante, pois então o ca-
tipo marxista não revela nenhum declínio ráter nacional, que já não vigora na rea-
das formas gestoriais de propriedade, lidade econômica, desapareceria até co-
nem uma ressurreição da burguesia clás- mo mito político, tornando mais precá-
sica nas esferas superiores de decisão ria a posição dos governantes perante a
econômica. população.
Nos regimes soviéticos vinham de há Na China, empresas estatais começa-
muito a exercer-se as mesmas pressões ram desde finais de 1991 a emitir ações
que levaram, na área de predomínio dos reservadas a investidores estrangeiros,
4. Idem, ibidem, 8 abr. 1989, p. mas no início de 1992 previa-se que, no
Estados Unidos, à crise dos aparelhos po-
84.
5. Idem, ibidem, 25 jan. 1992, líticos centralizados perante as grandes decurso desse ano, apenas duas dezenas
p.80. empresas enquanto centros privilegiados de companhias seguissem o sistema 5. O

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interesse dessa operação é meramente se- sições negociais da burocracia sindical,


cundário, mais importante sob o ponto precisamente no momento em que se
de vista da atração de capitais externos procura impor nesses países uma rigoro-
do que da transformação das formas de sa contenção dos custos laborais e uma
propriedade. queda drástica do nível de vida.
O único caso em que pôde proceder-se Assim, tomou corpo outra proposta,
a uma completa desnacionalização foi na que prevê a distribuição de ações pela
antiga República Democrática Alemã, população em geral. Na verdade existe já
porque o país deixou de existir. Esva- - pelo menos - um precedente cana-
ziou-se da força de trabalho e, portanto, dense, de há cerca de uma década e meia.
do capital! As privatizações tomam aí Em três anos de exercício um governo
fundamentalmente a forma de uma aqui- socialista na British Columbia, a terceira
sição por grupos econômicos centrados maior província do Canadá, nacionaliza-
na Alemanha Ocidental, a preços aliás ra várias empresas muito importantes no
incrivelmente baixos e incluindo múlti- setor de recursos naturais. Em 1975, foi
plos subsídios, tanto explícitos como ca- eleito primeiro-ministro da província
muflados. De julho de 1990 até ao final William R. Bennet, opositor da proprie-
de julho de 1991,período em que se ven- dade estatal, que pôs em prática um pla-
deram as firmas industriais mais promis- no de privatização mediante o qual se
soras, só para menos de 4% vieram os ofereceram a cada um dos 2,4 milhões de
compradores de fora das atuais frontei- residentes canadenses da província cinco
ras; e também esmagadora maioria das ações da companhia holding governamen-
pequenas empresas de serviços foi ven- tal, a British Columbia Resources Inves-
dida a alemães", Relativo ao total das tment Corp., correspondendo estes cerca
privatizações realizadas desde o início de 12 milhões de ações a 80% do total 12.
do processo até ao final de novembro de No final de 1988 e princípios do ano
1991, só 2,1% disseram respeito a com- seguinte um grupo de três economistas
pradores estrangeiros". chineses propôs a emissão de senhas que
Para ultrapassar a ausência de merca- seriam dadas às autarquias locais, às uni-
dos nacionais de ações, alguns economis- versidades e eventualmente a trabalha-
tas e políticos têm proposto a distribui- dores individuais. As senhas usar-se-iam
ção de ações de cada empresa aos seus na aquisição de companhias estatais, ser- 6. Idem, ibidem, 14 set. 1991,
p.22.
trabalhadores, consoante um sistema que vindo para comprar ações em oferta pú-
classifiquei como capitalismo dos sindi- blica. Começaria deste modo a constituir- 7. Idem, ibidem, 21 mar. 1992,
catos porque, na realidade, são os diri- p.77.
se um mercado de ações 13. Este tipo de
gentes sindicais a assumir o controle". É sugestões criou raízes e na província de 8. BERNARDO, João. Capital,
essa a reivindicação de alguns setores da Guangdong, onde as reformas econômi- Sindicatos, Gestores. São Pau-
burocracia sindical russa, apoiados por cas têm sido levadas mais longe, falou-se lo: Vértice, 1987, p. 11-16.
uma facção importante do parlamento e, na possível reunião das empresas estatais 9. THE ECONOMIST, 15 fev.
a partir de dezembro de 1992,do próprio em companhias holding cujas ações se- 1992, p. 72; 29 ago. 1992, p.
governo'': mas, na data em que escrevo, riam vendidas ou dadas, numa primeira 20; 23jan. 1993,p.36.
só haviam conseguido parcialmente os fase aos assalariados das empresas e, 10. Idem, ibidem, 24 out. 1992,
seus objetivos, como daqui a pouco vere- posteriormente, à população em geral>, p.36.
mos. E, em outubro de 1992, por ocasião Em agosto de 1992,no entanto, as autori-
11. Idem, ibidem, 20 jun. 1992,
de uma vaga de greves, a primeira-minis- dades experimentaram outro sistema, p.74.
tra polaca propôs um conjunto de medi- vendendo ao público senhas, até um má-
das destinadas a conciliar os sindicatos, ximo de dez unidades por comprador, 12. FORTUNE, 26 fev. 1979, p.
entre as quais se incluía a promessa de 18-20 e The Economist, 22 fev.
entre as quais se sorteará posteriormente 1986, p. 58.
reservar para os trabalhadores 10% das aquelas que darão direito a participar no
ações das empresas a privatizar 10. Mais leilão de ações de um certo número de 13. THE ECONOMIST, 14 jan.
significativo é o fato de, em meados de 1989, p. 62; idem 11 fev. 1989,
empresas, ainda a determinar. Estava p.19.
1992, acima de 3000 empresas chinesas previsto que seria premiado apenas 1/10
terem repartido ações entre o pessoal 11. das senhas emitidas, ou talvez mesmo só 14. Idem, ibidem, 30 novo1991,
Porém, esta opção defronta-se freqüen- p.61.
1/5, mas apesar disso a concorrência de
temente com a hostilidade de grande par- interessados foi tão grande que resulta- 15. Idem, ibidem, 15 ago. 1992,
te dos empresários, pois reforçaria as po- ram vários feridos 15. p.46.

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o sistema de senhas encontrou um Surgiram várias centenas de Fundos de


amplo eco na antiga União Soviética, on- Investimento, a maior parte privados,
de foi muito debatido, e, na Europa de mas alguns detidos por bancos estatais,
Leste, pelo menos na antiga Tchecoslová- oferecendo-se para pagar dentro de al-
quia, na Polônia e na Hungria. gum tempo pelas senhas que lhes sejam
No que até há pouco foi a Tchecoslo- confiadas um preço bastante superior ao
váquia, o governo elaborara inicialmente seu valor nominal, mas evidentemente
um sistema mediante o qual as empresas inferior ao da cotação que se presume
a privatizar que não conseguissem en- que as ações venham nesse prazo a atin-
contrar um comprador nem um parceiro gir. A expansão desses Fundos foi tão rá-
estrangeiro deveriam vender, a troco de pida que o governo promulgou em abril
senhas, a totalidade das suas ações. de 1992 uma lei proibindo-os de deter
Posteriormente, os administradores de mais de 20% das ações em cada compa-
empresa e a burocracia ministerial e par- nhia. No mês seguinte, pouco antes da
tidária que os apóia conseguiram intro- data oficialmente marcada para o início
duzir uma importante modificação no da oferta pública de ações, os Fundos de
projeto, fazendo com que só uma parte Investimento representavam 2/3 das se-
de cada empresa fosse posta em venda nhas emitidas e em meados do ano, com
pública. Nas mais de 1200firmas que de- o processo já em curso, a proporção subi-
veriam ser incluídas nas operações de ra para 3/4.
privatização entre maio de 1992e o outo- Esse processo de privatização colocou
no do mesmo ano, apenas uma participa- face a face os gestores das empresas e os
ção média de 50% seria oferecida ao pú- gestores dos Fundos de Investimento, fi-
blico. Deste modo os gestores em exercí- cando o público de antemão afastado de
cio prepararam-se para entrar no novo qualquer participação decisiva. Por isso,
sistema com uma posição consideravel- antes ainda do começo das operações de
mente reforçada. venda, os administradores das empresas
E um desenvolvimento de outro tipo já tinham encetado informalmente con-
veio consolidar ainda a situação da classe versações com os administradores dos
gestorial. Pelo método de privatização Fundos, que vieram depois a dominar in-
adotado na Tchecoslováquia as ações fo- teiramente os leilões de ações. Trata-se de
ram cedidas em troca de senhas. O Esta- uma reorganização interna da classe ges-
do vendeu essas senhas por uma soma torial, que de modo nenhum põe em cau-
equivalente ao salário semanal médio e sa a sua hegemonia 16.
elas foram utilizadas para adquirir ações Em meados de 1992, o governo tche-
em leilão público. Conforme o interesse coslovaco tinha leiloado ações em quase
manifestado pelos compradores relativo 1500 empresas e previa-se então que ou-
a cada empresa, assim se fixou o preço tras 1200 começariam a ser privatizadas
das ações em termos de senhas. Espera- no início de 1993. As eleições de junho
va-se ainda a promulgação de outra lei, deram a vitória na parte tcheca aos de-
que fixasse as condições em que as ações, fensores deste sistema de privatização:
depois de terem sido adquiridas median- entre os Eslovacos, apesar de se contarem
te senhas, pudessem ser transacionadas. 2.5 milhões de pessoas suficientemente
Apesar disso, as previsões iniciais quanto interessadas para terem adquirido se-
ao número de interessados depressa se nhas, triunfaram as forças políticas parti-
revelaram ultrapassadas, pois no início dárias de um ritmo de reformas muito
de 1992foi tão grande a procura que tive- mais lento, caminhando-se a partir dessa
ram de se emitir senhas temporárias. Em altura para o fracionamento do país em
16. Idem, ibidem, 11 maio
1991, p. 65; 21 set. 1991. A maio desse ano, 3/4 dos cidadãos adul- duas entidades, que assumiram a inde-
Survey of Business in Eastern tos haviam adquirido senhas. Assim, an- pendência no início de 1993. As compli-
Europe, p. 17; 25 jan. 1992, p. tes ainda de se ter começado a efetuar a cações institucionais e jurídicas desse
59; 16 maio 1992, p.91-92, 17
set. 1992, p. 73-74. privatização já se fizeram sentir todos os processo, se não interromperam as priva-
efeitos da fragmentação e dispersão dos tizações, foram, no entanto, suficientes
17. Idem, ibidem, 16 maio títulos de propriedade, antecipando-se para retardá-las". Na Eslováquia, duran-
1992, p. 91; 13 jun. 1992, p.
31-32,59; 12 set. 1992, p.73- quanto às senhas a mesma situação que te a fase de transição anterior à indepen-
74. inevitavelmente ocorreu quanto às ações. dência, o governo freou a privatização de

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algumas empresas importantes, anun- nar as ações que lhes cabiam nos Fundos.
ciou a intenção de manter para o Estado E em qualquer altura os particulares,
uma posição dominante em áreas econô- incluindo cidadãos de outros países, po-
micas estratégicas e lançou dúvidas sobre deriam livremente comprar ações por di-
a continuidade do sistema de senhas 18. nheiro. Discutia-se ainda qual havia de
Nessa ocasião um dos principais econo- ser o último destino dos Fundos".
mistas do partido governamental sugeriu O governo de Tadeusz Mazowiecki
a emissão de golden shares reservadas ao previra a privatização de metade do setor
Estado, que se asseguraria assim de um estatal até 1993, devendo estar completo
direito de decisão prioritário relativo aos o processo dois anos mais tarde. Porém,
restantes acionistas 19. O novo Estado co- cada um dos sucessivos governos, não só
meçou a vida independente com o pro- tem atrasado a entrada em vigor do pla-
grama de privatizações suspenso e os mi- no, como reduzido o seu âmbito, limitan-
nistros divididos quanto à forma de o do-o a empresas responsáveis por apenas
continuar 20. 7% do output industrial. Até que, afinal,
parece ter-se desistido da privatização
maciça, recorrendo-se a uma solução gra-
dual, que não passou ainda das etapas
iniciais 22.
Enquanto a República Federada da
Rússia formava parte da extinta União
Soviética, adotara-se legislação prevendo
para 1992a distribuição de senhas aos ci-
dadãos, que com elas poderiam adquirir
ações 23.
Mas o plano de privatizações anun-
ciado pelo governo russo em fevereiro
de 1992, e reelaborado numa versão am-
pliada cinco meses mais tarde, pretende
conjugar a distribuição de ações ao pes-
soal das empresas e a sua venda públi-
ca; e, neste último tipo de operações,
procura combinar as vendas por senhas
e as vendas a dinheiro. As empresas po-
dem optar por uma de duas formas de
Inicialmente o plano polaco previra privatização.
que no decurso de 1992 todos os cida- Mediante uma delas, que será empre-
dãos adultos recebessem senhas a serem gada em cerca de metade dos casos, os
depositadas em Fundos de Privatização. trabalhadores receberão gratuitamente,
Deveriam criar-se entre cinco e vinte ou 25% das ações da empresa onde exer-
Fundos, administrados na prática por cem a atividade, ou o equivalente a 20 sa- 18. Idem 28 novo1992, p. 47.
gestores estrangeiros, que usariam as se- lários mínimos mensais, consoante o que 19. RESPEKT transcrito em
nhas para adquirir ações em grandes em- resultar num valor inferior. No projeto Courrier International, 25 jun.
presas estatais. Os Fundos não se limita- adotado, essas ações não conferirão direi- 1992, p. 12.
riam depois a vender e comprar ações, to de voto nas assembléias de acionistas, 20. THE ECONOMIST, 16 jan.
mas também participariam ativamente apesar de o governo estar a sofrer pres- 1993, p. 31-32.
na gestão, podendo reestruturar as em- sões para transformá-las em ações com
21. Idem, ibidem, 11 maio
presas, organizar joint ventures com in- plenos direitos. Os trabalhadores se bene- 1992, p.65-66; 21 set. 1992. A
vestidores estrangeiros e expandir as so- ficiarão também de um desconto de 30% Survey of Business, p. 16-17;
ciedades ou declarar a sua falência. Além sobre o valor nominal de mais 10% das 21 mar. 1992, p. 6; 23 jan.
disso, ou os Fundos, ou um futuro Fundo 1993, p. 25.
ações, se conseguirem arrematá-las em
Nacional de Pensões, deveriam ainda ad- leilão, contra senhas ou dinheiro. Os 22. Idem, ibidem, 22 fev. 1992,
ministrar muitas das participações que o membros da administração da empresa p. 18; 16 maio 1992, p. 14; 13
Estado manteria nas empresas. Após um jun. 1992, p. 32.
terão, por seu lado, direito de opção rela-
certo período os detentores individuais tivo a 5% das ações, com capacidade de 23. Idem, ibidem, 6 jul. 1991, p.
de senhas seriam autorizados a transacio- voto. Outros 10% das ações serão leiloa- 70.

107
jJ~tJCOLABORAÇAo INTERNACIONAL
dos entre o público em geral, admitindo- num montante equivalente ao valor no-
se o emprego de senhas. Finalmente, os minal das senhas que se possuíssem. O
restantes 50% serão vendidos num bloco objetivo destas restrições era o de impe-
único, cujo adquiridor beneficiará, por dir que os membros do antigo regime so-
conseguinte, do direito de controle. Essa viético, com maior fortuna acumulada, se
metade das ações tanto poderá ser com- convertessem em poderosos acíonístas ".
prada por um só investidor, como por Na Hungria, o Fórum Democrático de-
um dos múltiplos Fundos de Investimen- fendeu que se concedesse a comunidades
to que entretanto proliferaram, sob o con- locais, fundações de caráter social, hospi-
trole de bancos, e que conseguiram reu- tais, universidades e aos assalariados das
nir grande parte das senhas distribuídas empresas estatais o direito de adquirir
ao público. Menos de um mês depois de ações a preços mais baixos. Mas o gover-
o governo ter estabelecido a regulamen- no rejeitou a proposta, convicto de que a
tação legal dos Fundos, mais de 300 ti- privatização encontraria uma base sufi-
nham sido registrados. Como as senhas ciente entre os gestores dessas empresas,
são denominadas em rublos e podem ser os empresários privados já surgidos ao
vendidas por dinheiro, numa situação de abrigo das reformas anteriores e os capi-
agravamento das condições econômicas, talistas estrangeiros. Só os Democratas li-
boa parte da população sofre pressões vres, na oposição, continuaram a propor
para vender as senhas antes de poder a distribuição de ações pela população
participar em qualquer leilão de ações, até que, no final de 1992, com o declínio
tornando-se por conseguinte mais fácil dos investimentos externos, o governo
aos Fundos de Investimento, e mesmo a parece ter começado a interessar-se pela
especuladores individuais, reunir quanti- possibilidade de aplicar um sistema de
dades colossais de senhas. senhas 26.
Na outra metade dos casos, em que Soluções deste tipo agradam a alguns
pelo menos 2/3 do pessoal de uma em- dos novos ideólogos das classes domi-
presa votou a favor da aquisição da nantes. Estando já inteiramente desacre-
maior parte das ações, recorrer-se-á a ditado o mito soviético de que a proprie-
uma forma diferente de privatização. Os dade estatal pertenceria a todos, porque
trabalhadores e a administração pode- o Estado seria de todo o povo, dá-se cur-
rão, em conjunto, comprar 51 % das so a um novo mito, de que a propriedade
ações, por um preço equivalente a 1,7 ve- das empresas a todos caberá porque to-
zes o valor contábil da firma conforme o dos hão de ter ações. Ao cidadão político
estabelecido em janeiro de 1992, e sendo pretende substituir-se o cidadão acionis-
possível pagar em senhas metade desse ta, o que se adequa às transformações
montante. Das ações restantes, 10% serão operadas nos sistemas de poder, quando
vendidas publicamente contra senhas e o aparelho político tradicional declina pe-
39% por dinheiro. rante as grandes empresas.
Nos primeiros dias de abril de 1992 Mas, como o capitalismo ocidental de-
iniciaram-se leilões públicos referentes a monstrou, ações individuais ou em pe-
estabelecimentos municipais, de escassa quenos lotes não convertem os seus pos-
24. Idem, ibidem, 21 dez. 1992, importância econômica e exteriormente suidores em proprietários do capital. Pe-
p. 110; 4 jan. 1992, p. 22; 15 ao sistema de senhas. Mediante esse sis- lo contrário, asseguram que os adminis-
fev. 1992, p. 20, 71-72; 11 abro tradores das empresas exercendo sobre
1992, p. 86; 25 abro de 1992, p.
tema os projetos governamentais pre-
20; 20 jun. 1992, p. 15; 18 ju. vêem a privatização, até o final de 1993, os processos econômicos um controle que
1992, p. 64; 10 out. 1992, p. de mais de 6000médias e grandes empre- os acionistas não podem pôr em causa,
30; 7 novo 1992, p. 40; 28 novo sejam em conjunto os verdadeiros pro-
1992, p. 77-78; 5 dez. 1992. A
sas e 100.000pequenas empresas e esta-
Survey ot Russia, pp. 5, 28; 16 belecimentos comerciais: e, até o final de prietários do capital. A dispersão das
jan. 1993, p. 66-67. 1994,de mais 4000 grandes empresas>. ações garante aos gestores a continuida-
Ainda na área da extinta União, o go- de da sua hegemonia.
25. Idem, ibidem, 11 maio
1991, p, 66. verno da Lituânia tencionara dar a todos Enquanto os projetos se elaboram e
os cidadãos, em 1991,senhas para adqui- são emanados e voltam a ser propostos e
26. Idem, ibidem, 14 abril 1990, rir ações nas empresas estatais. As senhas se deparam com obstáculos imprevistos
p. 15; 11 maio 1991, p. 65-70;
21 set. 1991. A Survey Df Busi- não poderiam ser transacionadas e só se- são substituídos por novos projetos, vão
ness, p. 16; 19 dez. 1991, p. 28. ria possível comprar ações por dinheiro tomando corpo outras realidades.

108
DESAGREGAÇÃO 00 SISTEMA SOVIÉTICO E TRANSFORMAÇÃO ...

Na Polônia, em 1989, durante os últi-


mos estertores do regime marxista, os ad- Muitos gestores, para·
ministradores de várias empresas estatais
começaram eles próprios a adquiri-las, manterem uma posição
no quadro das privatizações. A operação
podia ser simples, através da compra em privilegiada, podem ter de se
condições muito favoráveis. Ou podia ser
mais complexa, como sucedia quando, tornar temporariamente
numa primeira fase, se criavam socieda-
des privadas, com instalações e capital proprietários dose
mínimos, nas quais administradores deti-
nham ações de empresas estatais: numa individuais 'do capital.
segunda fase, essas empresas estatais re-
cusavam encomendas, que passavam pa- E assumem então a forma
ra as referidas sociedades privadas: para
isso as empresas privadas alugavam às aparente de burgueses para,
estatais instalações, material e força de
trabalho em condições favoráveis. Os lu- , continuarem
cros eram partilhados com aqueles que,
enquanto gestores das empresas estatais, como gestores. ,
as pilhavam em benefício das sociedades
de que eram acionistas".
Afinal, perante a inoperância econômi- listas particulares nacionais ou estrangei-
ca do governo central, esse quadro tem ros, puderam adquirir nessas empresas
continuado até hoje a presidir na prática participações muito consideráveis, ou até
às privatizações. Os gestores de um gran- majoritárias. O processo foi o seguinte:
de número de empresas do Estado, ou as 20% das ações deviam, por lei, ser entre-
integram em joint ventures com a aprova- gues a um fundo estatal e os capitalistas
ção das autoridades locais, mais facil- particulares deviam avançar com um mí-
mente manobráveis: ou têm simplesmen- nimo de outros 20%: se adiantassem
te adquirido as empresas; ou apressam a mais, porém, conquistavam evidente-
sua falência e precipitam-na mesmo por mente o controle e tinham então a liber-
métodos fraudulentos, sendo depois as dade de vender o restante aos seus alia-
instalações e a maquinaria compradas ao dos na administração da empresa, em
desbarato por sociedades particulares; ou termos especialmente favoráveis ".
vão paulatinamente vendendo a empre- Outra forma de privatização consistiu
sas particulares o patrimônio das empre- na divisão de empresas estatais em múl-
sas estatais que tão bem administram. tiplas subsidiárias, constituídas como so-
Até o final de 1992 mais de 1500 compa- ciedades que venderam ações reciproca-
nhias, num total de 8000, haviam sido mente e a terceiros, deixando à empresa
privatizadas por estas formas, ou esta- originária um mínimo dejinstalações,
vam a sê-lo, consolidando-se assim a fu- além das dívidas 30.
são entre os capitalistas até agora decor- De uma maneira ou outra, este tipo de
rentes do aparelho central do Estado e os situações parece ser geral em todos os
capitalistas particulares 28. E a privatiza- países da antiga esfera soviética 31. 27. Idem, ibidem, 26 age. 1989,
ção de empresas mediante processos de Mesmo aqueles gestores mais direta- p. 20; 14 abr. 1990, p. 17.
falência tem para os novos proprietários mente comprometidos com os regimes
a vantagem suplementar de poderem re- 28. Idem, ibidem, 19 dez. 1992,
marxistas mantiveram, após a derrocada p. 28; 23jan. 1993,p. 75.
duzir drasticamente a força de trabalho e final, amplas possibilidades de atuação. E
não estarem obrigados pelos compromis- tanto mais se reforçarão quanto mais ra- 29. Idem, ibidem, 26 age. 1989,
sos tomados para com a anterior pessoal. p. 20-21; 14 abr. 1990, p. 15-
pidamente forem levadas a cabo as priva- 16.
Do mesmo modo na Hungria, também tizações pois, em boa parte dos casos, são
em 1989, promulgou-se uma lei que per- eles os únicos com disponibilidades fi- 30. Idem, ibidem, 14 abr. 1990,
mitiu aos principais gestores das maiores nanceiras e contatos econômicos suficien- p.16.
empresas desencadear operações de pri- tes para de imediato poderem participar 31. Idem, ibidem, 18 abr. 1992,
vatização em que, coligados com capita- ativamente no processo. O mesmo se pas- p.24.

109
jJ~lJCOLABORAÇÃO INTERNACIONAL

sa na África, onde a precipitação em pri- te"36, O que em nada nos deve surpreen-
vatizar tem permitido o reforço social e der, precipita-se hoje para a aquisição de
político daquelas mesmas forças que sus- grandes lotes de ações ou mesmo da tota-
tentaram os antigos regimes e que são, lidade de empresas.
agora, as únicas com capacidade para ad- Não só as privatizações rápidas, mas
quirir as empresas à venda 32.Nem parece também os atrasos sofridos no processo e
que essa situação preocupe os outros ele- os obstáculos com que se têm deparado as
mentos das classes dominantes. Leio num medidas governamentais, servem aos ges-
prestigiado órgão do capital transnacio- tores para restabelecer, na nova situação,
nal, especialmente interessado pelo que se as condições da sua hegemonia social.
passa a Leste: "... sem os estrangeiros e a tão Na Rússia, por exemplo, os mesmos
desprezada nomenk1atura será difícil encon- administradores de empresas, que antes
trar pessoas desejosas de investir dinheiro a sé- detinham o controle mediante a influên-
rio nas sete mil empresas estatais polacas" 33. cia que exerciam sobre o aparelho de Es-
Vai-se mais longe ainda na vespasiana tado central, controlam agora as unida-
indiferença aos odores do dinheiro, des econômicas com um grau de autono-
quando se entoam louvores à participa- mia tanto mais considerável quanto o go-
ção maciça que os capitais ilegais têm ti- verno da república se encontra em gran-
do no processo de privatizações. Escreve de medida paralisado. Tomaram-se, ex-
o mesmo respeitável semanário a propó- ceto no nome, proprietários das empresas
sito de uma das mais importantes repú- que administram 37.
blicas saídas da antiga União Soviética: Esta situação explica que o governo, no
"Não é perseguindo os semi-criminosos que grande plano de privatização anunciado
constituem a base da classe capitalista ucra- em fevereiro de 1992, tenha conferido às
niana que se pode favorecer as reformas. Pelo burocracias locais um papel decisivo no
contrário, e ainda que seja difícil para os polí- desenrolar das operações 38.É um indício
ticos aceitar o fato, deve manter-se um am- do poder de fato detido por essas cama-
biente empresarial aberto"», Nos últimos das da classe gestorial, de tal modo que na
decênios o regime soviético só pudera versão ampliada do programa divulgada
funcionar porque em paralelo com o sis- alguns meses mais tarde prevê-se que re-
tema legal, assente na planificação cen- presentantes das agências locais de priva-
tral, operava um sistema oculto, decor- tização tenham desde já assento na admi-
32. MBEMBE, Achile. Le Vérita- rente da autonomia cada vez maior assu- nistração das mais importantes empresas
ble Enjeu des Débats sur la Dé- mida pelas grandes empresas e por cen- a privatizar v.Ao mesmo tempo, dos 1500
mocratie. Afrique des Comp- tros de acumulação periféricos. De certo bancos comerciais surgidos na Rússia, 4/5
toirs, ou Afrique du Dévelope-
ment. Le Monde Dip/omatique, modo, a perestroika e a desagregação final foram fundados por empresas estatais,
jan. 1992, p. 24. do regime resultaram do fato de a econo- que deles são proprietárias. E uma situa-
mia oculta ter passado a dispor de uma ção idêntica verifica-se na Ucrânia 40.
33. THE EGaNaM/ST, 14 abr. Alguns destes casos são especialmente
1990, p, 17.
capacidade de iniciativa superior à do
centro oficial. Nestes termos, as avulta- interessantes porque se caracterizam pelo
34. Idem, ibidem, 23 jan. 1993, díssimas somas movidas ilegalmente35 recurso a uma fase transitória. Estando es-
p.25. gotadas as formas de propriedade media-
não resultam apenas do banditismo e cri-
35. Cito algumas estimativas da me organizado e do tráfico de divisas. O das pelo controle do aparelho político cen-
elevada dimensão atingida pela importante é considerar que se operou tral, e quando se afigura difícil e demora-
economia oculta em Grise da da a generalização da forma de proprieda-
Economia Soviética. Coimbra:
uma verdadeira fusão entre todos os ti-
Fora do Texto, 1990, p. 15. pos de capital que circulam nesse quadro de resultante da dispersão das ações, mui-
paralelo. O branqueamento de somas ilí- tos gestores, para manterem uma posição
36. THE EGaNaM/ST, 16 jan. citas, parece que reforçadas nos últimos privilegiada, podem ter de se tomar tem-
1993, p. 67.
tempos por outras provenientes de redes porariamente proprietários privados e in-
37. Idem, ibidem, 15 fev. 1992, criminais estrangeiras, mistura-se com dividuais do capital. E assumem então a
p.20. aqueles capitais extra-oficiais sem os forma aparente de burgueses para, na prá-
38. Idem, ibidem, p. 72. quais o funcionamento regular da pró- tica, continuarem como gestores.
pria economia legal teria sido impossível. Isto sucede apenas porque o quadro
39. Idem, ibidem, 18 jul. 1992, Esta "nova classe de investidores ativos, burguês de propriedade está hoje secun-
p.64.
capazes em alguns casos de gastar uma darizado e encontra-se inteiramente su-
40. Idem, ibidem, p. 78-79 quantidade de dinheiro surpreenden- bordinado ao quadro gestorial. O

Artigo recebido pela Redação da RAE em fevereiro/92, aprovado para publicação em fevereiro/93.
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