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DESAGREGAÇÃO DO SISTEMA
SOVIÉTICO E TRANSFORMAÇÃO DAS
FORMAS DE PROPRIEDADE
• João Bernardo * PALAVRAS-CHAVE: Classe dos gestores, formas de pro-
Escritor, autor de vários livros, sendo os mais recentes Crise priedade, economias soviéticas, privatização.
da Economia Soviética, Dialéctica da Prática e da Ideologia
e Economia dos Conflitos Sociais. * ABSTRACT: The author defines two systems of property
© 1993, Revista de Administração de Empresas / EAESP / FGV, São Paulo, Brasil. 101
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modo que os particulares, para beneficia- continuar a ser uma acionista influente".
rem-se com as alterações de cotação e O sistema gestorial prevalece hoje, ainda
protegerem-se da inflação. Em segundo que se mantenham quadros de proprie-
lugar, os administradores das institui- dade formalmente burgueses.
ções de poupança são eles próprios ges- Uma profunda remodelação operada
tores, que controlam os fundos ao seu nas esferas do poder levou a que na últi-
dispor sem ter a propriedade formal das ma década, nos países tradicionalmente
instituições. integrantes da área de influência norte-
Mesmo quando os gestores de uma americana, se desmantelasse em boa
empresa recebem sob forma de ações parte o sistema de economia pública ou
uma parte da remuneração não se con- estatizada.
vertem por isso em proprietários burgue- No decorrer do tempo, com o desen-
ses. O objetivo é o de permitir que apro- volvimento da concentração do capital,
veitem as flutuações da bolsa e, portanto, foram-se estreitando as relações entre as
o princípio orientador continua a ser o da maiores empresas, a tal ponto que pude-
mobilidade das ações, que não passam a ram prescindir da mediação governa-
constituir nenhum quadro estável e here- mental e tomar elas próprias a iniciativa
ditário de apropriação. O mesmo raciocí- na organização global da sociedade. Pu-
nio se aplica quando os gestores, por sua deram por isso também capturar para a
iniciativa, compram ações da empresa sua órbita aparelhos administrativos que
que administram. A vantagem, relativa a se haviam desenvolvido na esfera clássi-
adquirir ações de outras empresas, con- ca do Estado. O sistema político tradicio-
siste no fato de estarem especialmente nal foi assim atacado duplamente, cir-
bem informados acerca dos lugares onde cunscrito a partir do exterior e desagre-
exercem a atividade. Tem ainda sucedido gado pelo interior, começando as gran-
que, para enfrentar ameaças de controle des unidades econômicas a apresenta-
por um grupo rival, a administração ad- rem-se como os principais órgãos do po-
quira maciçamente ações da empresa que der. Na sua expansão as sociedades mul-
dirige. Procura assim unicamente impe- tinacionais coroaram este processo por-
dir um eventual despedimento ou subal- que, ultrapassando as fronteiras, abrem
ternização. Passado o perigo retoma-se o um campo de ação ao qual mal podem
quadro anterior de propriedade. Para responder governos restritamente nacio-
formar uma opinião sobre os resultados nais. E desta maneira o Estado centraliza-
de todos estes mecanismos basta recor- do, que tem nos ministérios e no parla-
dar que a percentagem das ações das 120 mento o vértice obrigatório, dá progressi-
maiores sociedades norte-americanas de- vamente lugar a uma organização pluri-
tida pelos seus chie! executives, que era de centrada, constituída pela rede que une
0,3% em 1938, desceu para 0,047% em as maiores unidades econômicas e admi-
1974e, em 1988,reduzia-se a 0,037%1. nistrativas e em que cada uma delas for-
Este sistema de propriedade tomou-se ma um dos múltiplos pólos principais.
de tal modo dominante nas principais Deste modo, entrou em franco declínio
empresas que mesmo proprietários bur- o quadro de propriedade assente no apa-
gueses passaram a comportar-se con- relho central de Estado, que presidira à
soante as normas que definem os gesto- formação das empresas públicas e às es-
res. O exemplo da Ford Motor Co. pare- tatizações. E desenvolveu-se a outra das
ce-me especialmente elucidativo. Quan- formas de propriedade típicas da classe
1. MICHAEL, C. Jensen; KEVIN, do Henry Ford 11se afastou da direção, dos gestores, resultante da dispersão das
J. MURPHV, Ceo Incentives -
It s Not How Much Vou Pay, But
embora 40% das ações com direito de vo- ações, perfeitamente adequada à multici-
How.Harvard Business Review, to fossem ainda controladas pela família, plicidade de centros que passou a carac-
nº 3, 1990, citado em The Eco- os seus três membros ativos na empresa terizar a vida política.
nomist, 13 de abr.1991, p.87. Na grande parte dos países da esfera
em nada se destacavam dos restantes
Acerca das implicações deste
artigo ver também Harvard Bu- gestores. Depois, ao aposentar-se, o vice- norte-americana, os governos têm vendi-
siness Review, 1 fev. 1992, p. presidente William Clay Ford, neto do do ou a totalidade de algumas empresas
24. fundador, pela primeira vez os escalões de que eram proprietários, ou participa-
2. THE ECONOM/ST, 3 out. de topo da administração deixaram de ções majoritárias nas empresas ou parti-
1987, p. 75, 4 mar. 1989, p. 71. ter elementos da família, apesar de ela cipações minoritárias. Nos dois primeiros
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por parte dos gestores políticos inseridos de poder. Este processo foi um dos res-
no aparelho central de Estado. Com as ponsáveis pelas sucessivas reformas de
privatizações reduz-se decisivamente o Khruchtchev e de Kossyguin, pelo lança-
âmbito de ação dos órgãos de poder tra- mento da perestroika e, afinal, pela com-
dicionais e aumenta a independência dos pleta derrocada do aparelho central. No
gestores econômicos, que encabeçam as Ocidente, a transição pôde operar-se gra-
grandes empresas. "0 melhor motivo para dualmente porque coexistiam duas for-
mas de propriedade gestorial; a decor-
rente da centralização governamental foi
progressivamente ultrapassada pela re-
Tem sido proposta a distribúiçiO sultante da dispersão das ações, adequa-
da ao sistema pluricentrado que se fun-
de ações de cada empresa aos damenta nas principais unidades econô-
micas. Mas na antiga esfera soviética a
seus trabalhadores, consoante classe dos gestores assegurava a sua pro-
priedade exclusivamente pelo controle
um sistema que C mantido sobre os órgãos centrais do Esta-
do, sem possuir oficialmente qualquer
como capitalismo. d icatos outra forma de propriedade adaptada às
tendências recentes. São essas novas for-
porque, na realidade, mas que estão hoje a ser criadas, com
enormes perturbações que explicam tan-
sio os dirigentes sindicais. to a demora nas medidas a adotar como
o fato de as empresas estatais continua-
a assumir o controle. rem a prevalecer.
Uma das principais dificuldades que
atrasam o desmembramento da econo-
privatizar - consoante Alain Juppé, um mia estatal deve-se à não existência de
político (francês) conservador neogaullis- um mercado de ações, sendo portanto
ta e ex-ministro do orçamento - é o de im- impossível estabelecer antecipadamente
pedir que o governo tenha o poder de nomear e uma cotação para a sua venda.
demitir os diretores das empresas estatais'>. Além disso, se em alguns países da an-
Nos países menos desenvolvidos da tiga esfera soviética, como a Polônia e a
esfera de influência norte-americana, on- Hungria, uma longa série de reformas ti-
de não existe um mercado particular de nha permitido a emergência de um setor
ações com dimensão suficiente, a privati- empresarial privado relativamente ativo,
zação tem-se realizado mediante a venda não se podia contar nos restantes com a
de empresas públicas, quer a capitalistas existência, pelo menos em termos legais,
estrangeiros, quer a sociedades multina- de capitalistas particulares ou de grupos
cionais, quer - quando existam - a gru- econômicos capazes de adquirirpartici-
pos econômicos com sede no país. Nestes pações significativas nas empresas que os
casos é o quadro de propriedade vigente governos pretendem vender.
na entidade compradora que preside di- O recurso ao capital estrangeiro não
retamente às empresas privatizadas. pode constituir a solução exclusiva, nem
O desmantelamento das economias de sequer a predominante, pois então o ca-
tipo marxista não revela nenhum declínio ráter nacional, que já não vigora na rea-
das formas gestoriais de propriedade, lidade econômica, desapareceria até co-
nem uma ressurreição da burguesia clás- mo mito político, tornando mais precá-
sica nas esferas superiores de decisão ria a posição dos governantes perante a
econômica. população.
Nos regimes soviéticos vinham de há Na China, empresas estatais começa-
muito a exercer-se as mesmas pressões ram desde finais de 1991 a emitir ações
que levaram, na área de predomínio dos reservadas a investidores estrangeiros,
4. Idem, ibidem, 8 abr. 1989, p. mas no início de 1992 previa-se que, no
Estados Unidos, à crise dos aparelhos po-
84.
5. Idem, ibidem, 25 jan. 1992, líticos centralizados perante as grandes decurso desse ano, apenas duas dezenas
p.80. empresas enquanto centros privilegiados de companhias seguissem o sistema 5. O
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algumas empresas importantes, anun- nar as ações que lhes cabiam nos Fundos.
ciou a intenção de manter para o Estado E em qualquer altura os particulares,
uma posição dominante em áreas econô- incluindo cidadãos de outros países, po-
micas estratégicas e lançou dúvidas sobre deriam livremente comprar ações por di-
a continuidade do sistema de senhas 18. nheiro. Discutia-se ainda qual havia de
Nessa ocasião um dos principais econo- ser o último destino dos Fundos".
mistas do partido governamental sugeriu O governo de Tadeusz Mazowiecki
a emissão de golden shares reservadas ao previra a privatização de metade do setor
Estado, que se asseguraria assim de um estatal até 1993, devendo estar completo
direito de decisão prioritário relativo aos o processo dois anos mais tarde. Porém,
restantes acionistas 19. O novo Estado co- cada um dos sucessivos governos, não só
meçou a vida independente com o pro- tem atrasado a entrada em vigor do pla-
grama de privatizações suspenso e os mi- no, como reduzido o seu âmbito, limitan-
nistros divididos quanto à forma de o do-o a empresas responsáveis por apenas
continuar 20. 7% do output industrial. Até que, afinal,
parece ter-se desistido da privatização
maciça, recorrendo-se a uma solução gra-
dual, que não passou ainda das etapas
iniciais 22.
Enquanto a República Federada da
Rússia formava parte da extinta União
Soviética, adotara-se legislação prevendo
para 1992a distribuição de senhas aos ci-
dadãos, que com elas poderiam adquirir
ações 23.
Mas o plano de privatizações anun-
ciado pelo governo russo em fevereiro
de 1992, e reelaborado numa versão am-
pliada cinco meses mais tarde, pretende
conjugar a distribuição de ações ao pes-
soal das empresas e a sua venda públi-
ca; e, neste último tipo de operações,
procura combinar as vendas por senhas
e as vendas a dinheiro. As empresas po-
dem optar por uma de duas formas de
Inicialmente o plano polaco previra privatização.
que no decurso de 1992 todos os cida- Mediante uma delas, que será empre-
dãos adultos recebessem senhas a serem gada em cerca de metade dos casos, os
depositadas em Fundos de Privatização. trabalhadores receberão gratuitamente,
Deveriam criar-se entre cinco e vinte ou 25% das ações da empresa onde exer-
Fundos, administrados na prática por cem a atividade, ou o equivalente a 20 sa- 18. Idem 28 novo1992, p. 47.
gestores estrangeiros, que usariam as se- lários mínimos mensais, consoante o que 19. RESPEKT transcrito em
nhas para adquirir ações em grandes em- resultar num valor inferior. No projeto Courrier International, 25 jun.
presas estatais. Os Fundos não se limita- adotado, essas ações não conferirão direi- 1992, p. 12.
riam depois a vender e comprar ações, to de voto nas assembléias de acionistas, 20. THE ECONOMIST, 16 jan.
mas também participariam ativamente apesar de o governo estar a sofrer pres- 1993, p. 31-32.
na gestão, podendo reestruturar as em- sões para transformá-las em ações com
21. Idem, ibidem, 11 maio
presas, organizar joint ventures com in- plenos direitos. Os trabalhadores se bene- 1992, p.65-66; 21 set. 1992. A
vestidores estrangeiros e expandir as so- ficiarão também de um desconto de 30% Survey of Business, p. 16-17;
ciedades ou declarar a sua falência. Além sobre o valor nominal de mais 10% das 21 mar. 1992, p. 6; 23 jan.
disso, ou os Fundos, ou um futuro Fundo 1993, p. 25.
ações, se conseguirem arrematá-las em
Nacional de Pensões, deveriam ainda ad- leilão, contra senhas ou dinheiro. Os 22. Idem, ibidem, 22 fev. 1992,
ministrar muitas das participações que o membros da administração da empresa p. 18; 16 maio 1992, p. 14; 13
Estado manteria nas empresas. Após um jun. 1992, p. 32.
terão, por seu lado, direito de opção rela-
certo período os detentores individuais tivo a 5% das ações, com capacidade de 23. Idem, ibidem, 6 jul. 1991, p.
de senhas seriam autorizados a transacio- voto. Outros 10% das ações serão leiloa- 70.
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dos entre o público em geral, admitindo- num montante equivalente ao valor no-
se o emprego de senhas. Finalmente, os minal das senhas que se possuíssem. O
restantes 50% serão vendidos num bloco objetivo destas restrições era o de impe-
único, cujo adquiridor beneficiará, por dir que os membros do antigo regime so-
conseguinte, do direito de controle. Essa viético, com maior fortuna acumulada, se
metade das ações tanto poderá ser com- convertessem em poderosos acíonístas ".
prada por um só investidor, como por Na Hungria, o Fórum Democrático de-
um dos múltiplos Fundos de Investimen- fendeu que se concedesse a comunidades
to que entretanto proliferaram, sob o con- locais, fundações de caráter social, hospi-
trole de bancos, e que conseguiram reu- tais, universidades e aos assalariados das
nir grande parte das senhas distribuídas empresas estatais o direito de adquirir
ao público. Menos de um mês depois de ações a preços mais baixos. Mas o gover-
o governo ter estabelecido a regulamen- no rejeitou a proposta, convicto de que a
tação legal dos Fundos, mais de 300 ti- privatização encontraria uma base sufi-
nham sido registrados. Como as senhas ciente entre os gestores dessas empresas,
são denominadas em rublos e podem ser os empresários privados já surgidos ao
vendidas por dinheiro, numa situação de abrigo das reformas anteriores e os capi-
agravamento das condições econômicas, talistas estrangeiros. Só os Democratas li-
boa parte da população sofre pressões vres, na oposição, continuaram a propor
para vender as senhas antes de poder a distribuição de ações pela população
participar em qualquer leilão de ações, até que, no final de 1992, com o declínio
tornando-se por conseguinte mais fácil dos investimentos externos, o governo
aos Fundos de Investimento, e mesmo a parece ter começado a interessar-se pela
especuladores individuais, reunir quanti- possibilidade de aplicar um sistema de
dades colossais de senhas. senhas 26.
Na outra metade dos casos, em que Soluções deste tipo agradam a alguns
pelo menos 2/3 do pessoal de uma em- dos novos ideólogos das classes domi-
presa votou a favor da aquisição da nantes. Estando já inteiramente desacre-
maior parte das ações, recorrer-se-á a ditado o mito soviético de que a proprie-
uma forma diferente de privatização. Os dade estatal pertenceria a todos, porque
trabalhadores e a administração pode- o Estado seria de todo o povo, dá-se cur-
rão, em conjunto, comprar 51 % das so a um novo mito, de que a propriedade
ações, por um preço equivalente a 1,7 ve- das empresas a todos caberá porque to-
zes o valor contábil da firma conforme o dos hão de ter ações. Ao cidadão político
estabelecido em janeiro de 1992, e sendo pretende substituir-se o cidadão acionis-
possível pagar em senhas metade desse ta, o que se adequa às transformações
montante. Das ações restantes, 10% serão operadas nos sistemas de poder, quando
vendidas publicamente contra senhas e o aparelho político tradicional declina pe-
39% por dinheiro. rante as grandes empresas.
Nos primeiros dias de abril de 1992 Mas, como o capitalismo ocidental de-
iniciaram-se leilões públicos referentes a monstrou, ações individuais ou em pe-
estabelecimentos municipais, de escassa quenos lotes não convertem os seus pos-
24. Idem, ibidem, 21 dez. 1992, importância econômica e exteriormente suidores em proprietários do capital. Pe-
p. 110; 4 jan. 1992, p. 22; 15 ao sistema de senhas. Mediante esse sis- lo contrário, asseguram que os adminis-
fev. 1992, p. 20, 71-72; 11 abro tradores das empresas exercendo sobre
1992, p. 86; 25 abro de 1992, p.
tema os projetos governamentais pre-
20; 20 jun. 1992, p. 15; 18 ju. vêem a privatização, até o final de 1993, os processos econômicos um controle que
1992, p. 64; 10 out. 1992, p. de mais de 6000médias e grandes empre- os acionistas não podem pôr em causa,
30; 7 novo 1992, p. 40; 28 novo sejam em conjunto os verdadeiros pro-
1992, p. 77-78; 5 dez. 1992. A
sas e 100.000pequenas empresas e esta-
Survey ot Russia, pp. 5, 28; 16 belecimentos comerciais: e, até o final de prietários do capital. A dispersão das
jan. 1993, p. 66-67. 1994,de mais 4000 grandes empresas>. ações garante aos gestores a continuida-
Ainda na área da extinta União, o go- de da sua hegemonia.
25. Idem, ibidem, 11 maio
1991, p, 66. verno da Lituânia tencionara dar a todos Enquanto os projetos se elaboram e
os cidadãos, em 1991,senhas para adqui- são emanados e voltam a ser propostos e
26. Idem, ibidem, 14 abril 1990, rir ações nas empresas estatais. As senhas se deparam com obstáculos imprevistos
p. 15; 11 maio 1991, p. 65-70;
21 set. 1991. A Survey Df Busi- não poderiam ser transacionadas e só se- são substituídos por novos projetos, vão
ness, p. 16; 19 dez. 1991, p. 28. ria possível comprar ações por dinheiro tomando corpo outras realidades.
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sa na África, onde a precipitação em pri- te"36, O que em nada nos deve surpreen-
vatizar tem permitido o reforço social e der, precipita-se hoje para a aquisição de
político daquelas mesmas forças que sus- grandes lotes de ações ou mesmo da tota-
tentaram os antigos regimes e que são, lidade de empresas.
agora, as únicas com capacidade para ad- Não só as privatizações rápidas, mas
quirir as empresas à venda 32.Nem parece também os atrasos sofridos no processo e
que essa situação preocupe os outros ele- os obstáculos com que se têm deparado as
mentos das classes dominantes. Leio num medidas governamentais, servem aos ges-
prestigiado órgão do capital transnacio- tores para restabelecer, na nova situação,
nal, especialmente interessado pelo que se as condições da sua hegemonia social.
passa a Leste: "... sem os estrangeiros e a tão Na Rússia, por exemplo, os mesmos
desprezada nomenk1atura será difícil encon- administradores de empresas, que antes
trar pessoas desejosas de investir dinheiro a sé- detinham o controle mediante a influên-
rio nas sete mil empresas estatais polacas" 33. cia que exerciam sobre o aparelho de Es-
Vai-se mais longe ainda na vespasiana tado central, controlam agora as unida-
indiferença aos odores do dinheiro, des econômicas com um grau de autono-
quando se entoam louvores à participa- mia tanto mais considerável quanto o go-
ção maciça que os capitais ilegais têm ti- verno da república se encontra em gran-
do no processo de privatizações. Escreve de medida paralisado. Tomaram-se, ex-
o mesmo respeitável semanário a propó- ceto no nome, proprietários das empresas
sito de uma das mais importantes repú- que administram 37.
blicas saídas da antiga União Soviética: Esta situação explica que o governo, no
"Não é perseguindo os semi-criminosos que grande plano de privatização anunciado
constituem a base da classe capitalista ucra- em fevereiro de 1992, tenha conferido às
niana que se pode favorecer as reformas. Pelo burocracias locais um papel decisivo no
contrário, e ainda que seja difícil para os polí- desenrolar das operações 38.É um indício
ticos aceitar o fato, deve manter-se um am- do poder de fato detido por essas cama-
biente empresarial aberto"», Nos últimos das da classe gestorial, de tal modo que na
decênios o regime soviético só pudera versão ampliada do programa divulgada
funcionar porque em paralelo com o sis- alguns meses mais tarde prevê-se que re-
tema legal, assente na planificação cen- presentantes das agências locais de priva-
tral, operava um sistema oculto, decor- tização tenham desde já assento na admi-
32. MBEMBE, Achile. Le Vérita- rente da autonomia cada vez maior assu- nistração das mais importantes empresas
ble Enjeu des Débats sur la Dé- mida pelas grandes empresas e por cen- a privatizar v.Ao mesmo tempo, dos 1500
mocratie. Afrique des Comp- tros de acumulação periféricos. De certo bancos comerciais surgidos na Rússia, 4/5
toirs, ou Afrique du Dévelope-
ment. Le Monde Dip/omatique, modo, a perestroika e a desagregação final foram fundados por empresas estatais,
jan. 1992, p. 24. do regime resultaram do fato de a econo- que deles são proprietárias. E uma situa-
mia oculta ter passado a dispor de uma ção idêntica verifica-se na Ucrânia 40.
33. THE EGaNaM/ST, 14 abr. Alguns destes casos são especialmente
1990, p, 17.
capacidade de iniciativa superior à do
centro oficial. Nestes termos, as avulta- interessantes porque se caracterizam pelo
34. Idem, ibidem, 23 jan. 1993, díssimas somas movidas ilegalmente35 recurso a uma fase transitória. Estando es-
p.25. gotadas as formas de propriedade media-
não resultam apenas do banditismo e cri-
35. Cito algumas estimativas da me organizado e do tráfico de divisas. O das pelo controle do aparelho político cen-
elevada dimensão atingida pela importante é considerar que se operou tral, e quando se afigura difícil e demora-
economia oculta em Grise da da a generalização da forma de proprieda-
Economia Soviética. Coimbra:
uma verdadeira fusão entre todos os ti-
Fora do Texto, 1990, p. 15. pos de capital que circulam nesse quadro de resultante da dispersão das ações, mui-
paralelo. O branqueamento de somas ilí- tos gestores, para manterem uma posição
36. THE EGaNaM/ST, 16 jan. citas, parece que reforçadas nos últimos privilegiada, podem ter de se tomar tem-
1993, p. 67.
tempos por outras provenientes de redes porariamente proprietários privados e in-
37. Idem, ibidem, 15 fev. 1992, criminais estrangeiras, mistura-se com dividuais do capital. E assumem então a
p.20. aqueles capitais extra-oficiais sem os forma aparente de burgueses para, na prá-
38. Idem, ibidem, p. 72. quais o funcionamento regular da pró- tica, continuarem como gestores.
pria economia legal teria sido impossível. Isto sucede apenas porque o quadro
39. Idem, ibidem, 18 jul. 1992, Esta "nova classe de investidores ativos, burguês de propriedade está hoje secun-
p.64.
capazes em alguns casos de gastar uma darizado e encontra-se inteiramente su-
40. Idem, ibidem, p. 78-79 quantidade de dinheiro surpreenden- bordinado ao quadro gestorial. O
Artigo recebido pela Redação da RAE em fevereiro/92, aprovado para publicação em fevereiro/93.
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