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Impulso_37.

book Page 101 Thursday, January 6, 2005 11:21 AM

A Vivência Religiosa como


Objeto da História das
Religiões: uma leitura de EDUARDO GUSMÃO
Michel de Certeau DE QUADROS
Universidade de Brasília
(UnB/DF)
THE RELIGIOUS LIVING AS AN OBJECT mirandaquadros@hotmail.com
FOR THE HISTORY OF RELIGIONS:
A READING OF MICHEL DE CERTEAU
Resumo Após a crise dos paradigmas que atingiu as ciências humanas, quais os cami-
nhos possíveis para a história das religiões? Este artigo propõe o retorno a alguns prin-
cípios da fenomenologia religiosa, particularmente a centralidade da noção de vivência
desta abordagem. E o faz, partindo da obra do pensador francês Michel de Certeau.

Palavras-chave RELIGIÃO – FENOMENOLOGIA – HISTÓRIA – MICHEL DE CER-


TEAU.

Abstract After the crisis of the paradigms that reached the social sciences, what are
the possible paths for the history of religions? This article proposes the return to
some principles of religious phenomenology, particularly the importance of the
notion of living in this approach. The article is supported by French thinker Michel
de Certeau’s work.

Keywords RELIGION – PHENOMENOLOGY – HISTORY – MICHEL DE CERTEAU.

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Amamos sempre no que temos


O que não temos quando amamos.
FERNANDO PESSOA

H
á cerca de dez anos, diante de um auditório lo-
tado, Pierre Sanchis lançou uma questão provo-
cativa: “O campo religioso será ainda hoje o
campo das religiões?”.1 O congresso era sobre
história, mas sua reflexão voltava-se particular-
mente para as mudanças mais recentes. Com o
estilo que lhe é peculiar, acompanhado de dados
coletados em suas pesquisas de campo, ele foi demonstrando como a ló-
gica combinatória, de mestiçagens que se diferenciam do sincretismo, es-
tava presente nos atores religiosos contemporâneos. O paradigma emer-
gente apontava as “articulações das diferenças” nos diversos níveis da
configuração social. “Qualquer monolitismo parece destinado a desapa-
recer no fluxo que caracteriza a modernidade”, profetizava.2
Os representantes das instituições religiosas presentes naquele
evento pareciam descobrir um outro modo de pensar dos seus filiados,
obviamente bem disfarçado, enquanto o palestrante desfilava seus casos
exemplares. Resumindo a lição desses casos, pode-se dizer que aqueles
“fiéis” não eram tão fiéis assim. No interior das tradicionais instituições
havia uma “pluralidade”, uma articulação entre eu e outros não excluden-
te. Daí essa “religiosidade difusa” experenciada ser, no mínimo, tão im-
portante quanto o objeto clássico da história das religiões.3
A questão que fica no ar é: será que já não era assim? As afirmativas
sobre a ultramodernidade não seriam válidas para períodos anteriores?
Ora, se partirmos dessas considerações recentes para o estudo dos regis-
tros do passado, de maneira relativamente fácil encontra-se a lógica com-
binatória presente. A miopia surge das teorias com as quais acostumou-se
a pensar na academia. Acrescente-se a isso o compromisso institucional de
tantos pesquisadores que tratam ou trataram o fenômeno religioso.4
Tal miopia não é um “defeito” específico dos estudos religiosos ou
das ciências humanas. Ela perpassa todo o instrumental reflexivo deno-
minado ciência. A tese é do epistemólogo Bruno Latour. Num livro ins-
tigante, ele demonstra que mecanismos de purificação são constituintes
do pensamento científico. Com o termo purificação, Latour refere-se a
todo o processo de “tornar invisível, impensável, irrepresentável o tra-

1 Essa preleção foi proferida na II Conferência Geral da CEHILA, na PUC-SP, 25-28/jul./95. Cf. SAN-
CHIS, 1995.
2 Ibid., p. 83.
3 Ibid., p. 118-120.
4 A assertiva não exclui aqueles que entraram em conflito com os aparelhos institucionais. Rubem Alves
demonstrou como esse problema marcou muitas pesquisas pioneiras sobre o campo religioso brasileiro,
inclusive a dele próprio. Cf. ALVES, 1984, p. 109-143.

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balho de mediação que constrói os híbridos”.5 te formação dada pela Companhia de Jesus quan-
A ciência foi construída separando, isolando seus to o apreço pelos estudos aproximaram Michel
“objetos”, como exemplifica a invenção dos labo- de Certeau dos cursos universitários. Optou, en-
ratórios. As mediações necessárias à vida huma- tão, pelo doutoramento em Ciências da Religião,
na, as “misturas” que os agentes sociais com- na Universidade de Paris V, sob orientação do
põem em seu dia-a-dia, ficaram excluídas das teo- historiador e filólogo Jean Orcibal. A tese, defen-
rias formuladas. dida em 1960, abordava o companheiro francês
O desafio lançado, portanto, particular- de S. Inácio de Loyola, Pierre Fabvre.
mente aos historiadores, está no resgate das inú- Na Universidade de Paris, Certeau pôde
meras mestiçagens e hibridizações produzidas no cursar os seminários de Roland Mousnier, erudi-
cotidiano. Propomos ser a noção de vivência, de to historiador especializado na Idade Moderna, e
experiência vivida, um instrumento hábil para de Alphonse Dupront. Esse último tem grande
romper com os raciocínios “purificadores” e sim- importância, pois era um dos poucos historiado-
plificadores. Este texto visa a demonstrar como res buscando construir uma nova abordagem da
tal concepção, tão relevante à fenomenologia, história religiosa. Ela passava pelo diálogo com a
pode ser recolocada nos estudos religiosos. Fare- psicologia, particularmente a junguiana, e a antro-
mos isso, partindo das idéias metodológicas lan- pologia. Na sua concepção, uma boa compreen-
çadas por um pensador que nunca respeitou são das manifestações religiosas deve deixar o en-
fronteiras: Michel de Certeau. foque apenas objetivo para buscar a subjetivida-
A MÍSTICA DO HUMANO de. A crença religiosa é, afinal, um comportamen-
Os textos de Michel de Certeau geralmente to de busca, uma motivação para atingir o poder
são considerados difíceis. Ele tenta escrever ex- sagrado. O estudo da religiosidade deveria revelar
plorando os limites das ciências humanas. Como a longa duração mítica, a profundidade anímica
possuía grande erudição em psicologia, antropo- das experiências, os movimentos humanos pelo
logia, lingüística, sociologia, história e teologia, desejo da imortalidade, enfim, “sua vontade ani-
ao passo que a maioria dos acadêmicos se especia- mal e espiritual de conquistar o ser”.6
liza numa dessas áreas, torna-se fácil compreen- Ainda na Universidade de Paris, Michel de
der a origem desse (pre)conceito. É interessante, Certeau interessou-se pela psicanálise. Logo
portanto, abordar primeiramente sua trajetória passou a freqüentar os seminários de Jacques
intelectual, antes de tratar suas idéias sobre uma Lacan. A amizade foi duradoura. Peter Burke
história religiosa renovada. chega a afirmar que o jesuíta freqüentou todos
Jean Michel Emmanuel de la Barge de Cer- os seminários de Lacan durante 16 anos! Quan-
teau nasceu em 17 de maio de 1925, na cidade de do, em 1964, Lacan rompeu com outros psica-
Chambery, região francesa da Savoia. Sua família nalistas e organizou a Escola Freudiana de Paris,
possuía propriedades rurais e o lugar onde cres- Certeau achava-se entre os fundadores. Apesar
ceu era marcado por forte religiosidade católica. desses contatos com grandes pensadores, a pro-
Muito dado às leituras desde cedo, ele cursou le- dução de Certeau circulava mais nos meios re-
tras clássicas, ao mesmo tempo em que sentia vo- ligiosos. Mas um evento marcante para a inte-
cação para a vida religiosa. Com o apoio do bispo lectualidade francesa o projetou para além dos
local, foi estudar filosofia e teologia. muros eclesiásticos. Esse evento foi a revolta es-
A certeza de ingressar na carreira eclesiás- tudantil de 1968.
tica acabou confirmando-se. No término de sua É difícil perceber do Brasil o impacto dos
formação seminarística, influenciado por Henri movimentos estudantis na França. A grande re-
de Lubac, ele resolveu ser jesuíta. Tanto a exigen- volta de maio de 68 parou a Sorbonne, construiu

5 LATOUR, 1994, p. 40. 6 DUPRONT, 1976, p. 104.

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barricadas e enfrentou a polícia na luta por um obra coletiva História: novos problemas.10 Isso já
mundo livre. Mas o movimento não ficou restri- aponta o crescente prestígio do autor.
to ao político, ele teve conseqüências culturais Nos anos 70, Michel de Certeau editou di-
profundas. Entre as reivindicações dos estudan- versos livros e artigos, de forma geral abordando
tes, articulava-se uma crítica radical ao sistema as relações entre a prática, os saberes e a escrita.
educacional e à ineficácia das instituições sociais. Tais estudos foram coroados com a redação da
A crise estava exposta. obra A Invenção do Cotidiano, publicada em
A maioria dos pensadores franceses não 1980,11 originalmente referencial teórico de uma
pesquisa de campo encomendada pelo governo.
apoiou o movimento. Entretanto, Certeau sim-
Nesse livro – que, juntamente com A Escrita da
patizou profundamente com aquela inconforma-
História, constitui aquilo com maior impacto nas
ção dos estudantes. Nas suas palavras de ordem –
ciências humanas escrito por Certeau –, ele rompe
“A imaginação do poder”, “O patrão está dentro com as explicações de traços estruturalistas e mar-
de você”, “Tomo meu desejo por realidade” –, pi- xistas predominantes na época, questionando
chadas pelos muros ou impressas em panfletos, todo determinismo. O faz, explorando o papel ati-
ele percebeu elementos propositivos para um vo e (re)criativo das operações de apropriação ela-
novo paradigma. Estava em xeque a dicotomia boradas pelos sujeitos. Se resumíssemos essa obra
entre a teoria e a prática, bem como a concepção numa idéia básica, ela seria o seguinte paradoxo:
despolitizada dos saberes.7 todo consumidor é sempre também um produtor.
No mesmo ano de 1968, Certeau publicou Michel de Certeau continuou escrevendo
uma análise da revolta estudantil intitulada até falecer, em 9 de janeiro de 1986. Seria possível
A Conquista da Palavra. Por uma nova cultura. 8 encontrar um problema básico perpassando suas
Tal interpretação colocou o jesuíta no meio dos reflexões? Assumindo o risco da simplificação,
debates, passando ele, desde então, a participar de propomos que suas pesquisas giravam sempre em
vários encontros, dar palestras a um público di- torno da alteridade. O outro que nos escapa,
versificado, conceder entrevistas; em suma, esse como Deus, impossível de ser compreendido ple-
namente, é o princípio básico dos escritos cer-
livro foi sua carta de entrada para o exigente cír-
teaunianos. Existiria um ethos do saber científico
culo dos intelectuais franceses.
que se cruza com o respeito nutrido pela teologia
Mas sua aceitação não foi tão rápida. Espe- com relação ao sagrado. Não sem razão o tema
cialmente na universidade. Mesmo depois da pu- do estudo inacabado de Certeau versava sobre a
blicação do livro A Escrita da História, em 1975, mística.12 Os escritos místicos são o esforço de
historiadores renomados, como Fernand Braudel falar da experiência com o que é indizível.
ou Emmanuel Le Roy Ladurie, permaneceram A EXPERIÊNCIA E SEUS LIMITES
ignorando as contribuições de Certeau.9 Por ou- Voltemos ao tempo em que Michel de Cer-
tro lado, o grupo que buscava construir uma “his- teau era um desconhecido. Ainda estudante da
tória nova” convidou-o para redigir o texto teó- pós-graduação, escrevera um artigo sobre a expe-
rico sobre conhecimento histórico, incluído na riência religiosa. O texto foi publicado em 1956,
na cidade de Lyon, num boletim de pouca impor-
7 No artigo “A estrutura social do saber”, por exemplo, de 1968, Cer- tância denominado Pax. Após sua morte, a revista
teau aproxima sua voz à dos estudantes: “Os eruditos mudam o
mundo: é esse o postulado dos eruditos. É também aquilo que eles Recherches de Science Religieuse (Pesquisas de
somente podem repetir, sob mil formas diversas. Cultura de mestres, Ciências Religiosas), da qual Certeau fazia parte
de professores e de letrados: ela cala ‘o resto’ porque se quer e se diz a
origem do tudo. Uma interpretação teórica está, portanto, ligada ao
poder de um grupo e à estrutura da sociedade onde ela conquistou esse 10 CERTEAU, 1979.
lugar” (CERTEAU, 1995, p. 168). 11 Idem, 1996.
8 Idem, 1968. 12 Quando Certeau morreu, somente o primeiro tomo de A Fábula
9 Cf. MAIGRET, 2000, p. 515. Mística, dos dois planejados, havia sido publicado. Idem, 1993.

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do conselho editorial, homenageou-o, reimpri- a vivência do sentido em situações-limite e a busca


mindo esse seu primeiro texto publicado.13 Ape- de poder como as características fundamentais da
sar de o texto ser pouquíssimo conhecido, pois o experiência com o “numinoso”. A tradução france-
investigador jesuíta pessoalmente nunca o reedi- sa desse livro havia sido lançada em 1955.18
tou, não o consideramos de menor importância. Some-se ainda as apropriações francesas da
Pelo contrário, nele há assertivas importantes so- fenomenologia. Desde a época pós-Primeira
bre o estudo das vivências religiosas e elementos Guerra Mundial, os traços idealistas do pensamen-
desenvolvidos nas obras posteriores de Certeau. to de Husserl eram muito criticados na França.
Logo no início da reflexão, seu autor define a Buscando renovar o método fenomenológico,
experiência religiosa como um conhecimento viven- existiam as tentativas de Merleau-Ponty, colocan-
ciado.14 Esse termo, vivência, é uma daquelas pala- do o corpo no centro do processo de significação,
vras que caracterizam toda uma época, importante e os estudos hermenêuticos de Paul Ricouer.19
tanto na França quanto no Brasil dos anos 50.15 Apesar de inspirar-se no personalismo e na
O uso conferido pelo jesuíta demonstra a influên- fenomenologia, Michel de Certeau possui uma
cia de O Personalismo, de Emmanuel Mounier, fi- divergência básica com essas correntes. Não con-
lósofo católico que tentou construir uma alterna- sidera a relação entre experiência e linguagem
tiva ao existencialismo ateu sartreano. Para Mou- como algo imediato. Para ele, existem muitas
nier, as verdades fundamentais da pessoa eram mediações entre a vivência e sua expressão. Seus
sempre as vivenciadas, não apenas de forma subje- estudos sobre psicanálise e lingüística levam-no a
tiva, como enfatizava a filosofia existencial, mas desconfiar do acesso direto à experiência, restan-
ocorrendo numa relação entre dois sujeitos.16
do após sua fugacidade somente a fala sobre ela.
Essa ênfase no relacional e na importância Os escritores místicos não colocam Deus acima
do que é vivenciado encontra-se também na fe-
de qualquer linguagem humana? A experiência
nomenologia. Edmund Husserl lançara o progra-
religiosa seria também inacessível em si mesma.
ma fenomenológico, em suas palestras de 1907.
Porém, se assim é, por que tal experiência geraria
Na busca de reconstruir um método científico
um sentimento de certeza nos fiéis?
que atingisse as certezas, ele fundamentou filoso-
ficamente o papel da intuição e das vivências sub- Essa questão foi abordada em três tópicos,
jetivas na construção do conhecimento.17 que formam o corpo do artigo de Certeau. O pri-
Muitos estudiosos da religião, insatisfeitos meiro é a experiência religiosa e o tempo, o se-
com as explicações “reducionistas” dos cientistas gundo, sua relação com a linguagem, e o terceiro
sociais, tomaram tal método como o mais propício trata as associações entre experiência e sociedade.
ao estudo das manifestações religiosas. A obra Fe- Uma duração estendida
nomenologia da Religião, de Gerard Van der Leew, A experiência religiosa costuma ser defini-
é um dos maiores exemplos dessa corrente. Propõe da como uma abstração do tempo para atingir a
como base dos estudos religiosos a compreensão eternidade. Mircea Eliade chama essa vivência do
dos fenômenos, tal qual se mostram aos sujeitos, e eterno na história de tempo mítico. Ele é distinto
do tempo histórico, pois é reversível, não crono-
13 Idem, 1988. A erudita biografia de François Dosse coloca como pri-
lógico, reatualizado por meio dos rituais.20 Tal ex-
meiro texto publicado por Certeau um comentário sobre o caminho
de Emaus, na revista Christus, dos jesuítas (DOSSE, 2002, p.79). Esse
artigo foi editado em 1957, portanto, posteriormente ao trabalho a que 18 VAN DER LEEW, 1955. A primeira edição, em alemão, é de 1933.
nos referimos. Na edição francesa, além de modificar o título, Van der Leew fez mui-
14 CERTEAU, 1988, p. 187. tos acréscimos. O resumo dos princípios metodológicos encontra-se
15 Sobre o Brasil, ver SOUZA, 1985, p. 123. no último capítulo.
16 MOUNIER, 1964. 19 Fenomenologia da Percepção, de Maurice Merleau-Ponty, foi publi-
17 Ele afirma: “A toda vivência psíquica corresponde, pois, por via da cado em 1945 (cf. trad. bras., 1999). Já História e Verdade, de Paul
redução fenomenológica, um fenômeno puro, que exibe a sua essência Ricoeur (1968), retoma alguns textos da década de 40 e 50 sobre her-
imanente” (HUSSERL, 2000, p. 71). Lembramos também que a ques- menêutica, fenomenologia e personalismo.
tão do sentido tem lugar importante no método fenomenológico. 20 ELIADE, 1992, p. 29ss.

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periência com o “transcendente” também trans- tras temporalidades do mundo social. Isso leva ao
cende as categorias utilizadas cotidianamente, tema da religião e da memória. Em seu clássico es-
participando da ordem do indizível. Michel de tudo sobre a memória, Maurice Halbwacs, soció-
Certeau considera paradoxal, mas afirma que essa logo muito influenciado por Durkheim, defende
experiência inexprimível confere aos atores reli- que o grupo religioso opera moldando e manten-
giosos o “privilégio da autenticidade”.21 do a memória de seus membros. O grupo esta-
Logo no início de sua abordagem, portanto, belece tradições normativas que consagram even-
o intelectual jesuíta estabelece um limite ao saber: tos, espaços, doutrinas, estilos litúrgicos, gerando
a reserva de sentido inatingível pelo pesquisador. tais elementos forte sentimento de estabilidade e
Tal princípio também é encontrado na escola continuidade.24
fenomenológica dos estudos religiosos. A religião Michel de Certeau parte dessas idéias, res-
não pode ser explicada plenamente, devendo ha- saltando, todavia, muito mais que Halbwacs, o
ver um enfoque compreensivo e “religionista” trabalho dos indivíduos para adentrar a tradição.
para conhecer suas manifestações. O contrário Isso confere dinâmica bem maior aos grupos,
dessa perspectiva seriam as explicações naturalís- apontando as tensões de todo arranjo coletivo.
ticas, marcadas pela consideração do fenômeno Afinal, é a pessoa que adere, transporta-se a es-
religioso sempre como um “sintoma”, um reflexo paços e tempos longínquos, buscando reviver as
de alguma outra coisa. A explicação do religioso experiências do fundador de sua crença, por
nessa abordagem estaria sempre fora da religião, exemplo. A memória individual deve combinar-
como Certeau criticará mais tarde.22 se com a compartilhada para dar perenidade ao
Mas se as vivências religiosas são inexprimí- grupo e, dessa forma, coletivamente trazer o
veis, isso não impossibilitaria a sua análise? Não é passado das tradições para ser revivido no mo-
esse o significado de tal princípio metodológico. mento presente.
Ele remete ao cuidado com que se devem tomar Tradução e tradição
as narrativas dos fiéis e o respeito a eles. Pode-se A aproximação simpática dos relatos com-
exemplificar com os relatos de conversão. Aque- pleta-se com o distanciamento necessário em
les que a narram costumam dividir suas vidas em toda pesquisa científica. A linguagem não é um
um antes e um depois dessa experiência. Ela pode espelho fiel; pelo contrário, é traidora e enganosa.
ter durado apenas alguns minutos, mas é colocada Edifica-se sobre aquilo que já não existe, sobre
como padrão para ressignificar anos ou décadas ausências. Se as narrativas devem ser observadas
inteiras. Michel de Certeau convida o pesquisador com atenção, é preciso ter claro que a experiência
a, inicialmente, considerar relatos desse tipo como deixa de existir para que surja o discurso.
verdadeiros, sem buscar uma “explicação” extra-
Por outro lado, é pela linguagem que as vi-
discursiva. Nessas narrativas, percebe-se a vivên-
vências religiosas podem ser conservadas e trans-
cia religiosa como uma duração “habitando” os
mitidas. Esse instrumento imperfeito transforma
fiéis.23 É uma fonte renovadora de significados,
a experiência efêmera em algo pretensamente
devendo ser sempre realimentada pelas insti-
perfeito e eterno.25 As narrativas que falam do di-
tuições, de modo a nunca “secar”.
vino são o veículo à disposição dos/as pesquisa-
A argumentação anterior acaba relacionan- dores/as para investigar os aspectos da ação reli-
do o tempo mítico vivido nas religiões com as ou- giosa. O trabalho da linguagem reconstrói a ex-
21
periência, interpreta-a, traz à memória e ajusta-a
CERTEAU, 1988, p. 189.
22 Idem, 1982, p. 143. O debate sobre esses dois modos de estudar a aos padrões comunicativos. É dessa forma “adul-
religiosidade permanece vivo, como se vê no texto de GRIFFIN terada” que temos acesso a ela.26
(2000). A palavra religionista (tradução do termo inglês religionist)
remete ao esforço de encontrar motivações na própria religião para os
comportamentos religiosos. 24 HALBWACS, 1990, p. 156-159. A edição francesa é de 1950.
23 CERTEAU, 1988, p. 190. 25 CERTEAU, 1988, p. 194.

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Isso não leva ao ceticismo. Ao ressaltar as A VIVÊNCIA, UMA DIMENSÃO ATIVA


“traições” da linguagem para traduzir a experiên- A instituição já faz parte do mundo social,
cia religiosa, Certeau pretende que se considere a tema do terceiro tópico do texto que estamos
“fraqueza” dos discursos diante do real, reflexo analisando. Ela viabiliza mediações entre o nível
da condição humana.27 Atualmente na produção pessoal e as outras forças que compõem a socie-
historiográfica, alguns consideram a linguagem dade. Essa dimensão ativa das crenças – sua inte-
um mundo auto-suficiente que divide inexoravel- ração com as configurações sociopolítico-religio-
mente o sujeito do conhecimento de seu obje- sas – é também um ponto importante para o co-
to.28 Já outros recaem no realismo ingênuo, no nhecimento das vivências com o poder divino.
antigo ideal da consciência-espelho postulada Michel de Certeau trata mais particular-
pelo positivismo, tentando garantir a realidade de mente a forma de relacionar-se com os outros. A
suas afirmações.29 participação num grupo religioso implica certos
O pensador jesuíta evitou os dois extremos. deveres e obrigações. Isso por causa da relação
Ele afirma que “a linguagem não é um intruso na entre o respeito à divindade e o respeito pelas
experiência” e até a experiência com “o indizível criaturas que a representam.33 Tal atitude vai des-
está naquilo que é dito (...) [pois] o revela em to- de os tabus aos simples valores éticos.
das as palavras que não são ele”.30 Ampliando essa Uma observação interessante feita por ele é
perspectiva epistemológica, podemos afirmar que que as revelações divinas direcionam-se a grupos.
o discurso transmite de algum modo o seu refe- Os grandes místicos podem até viver um período
rente, a realidade, apesar de não termos como co- de suas vidas isolados, mas, quando reconhecidos
nhecer o real em si mesmo.31 Michel de Certeau como tal, são transformados em mensageiros,
pensa por meio do círculo hermenêutico. intermediários do divino perante a coletividade.34
Mas quais expressões poderiam transmitir a Parece existir uma propensão da crença religiosa
vivência religiosa? Os agentes não criam os próprios à sua disseminação. Esse impulso simboliza o
termos, eles adotam um corpo de saberes doutri- processo de incorporação dos diferentes na alte-
nários preestabelecido. A própria vivência costuma ridade única da dimensão sagrada.
ser interpretada e legitimada pelas “autoridades” da A ALTERIDADE NA HISTÓRIA
O texto aqui comentado foi escrito perto
comunidade, sejam líderes sejam textos sagrados.
do período em que Michel de Certeau completa-
Cada novo fiel deve aprender a manipular os ter-
va seus votos na Companhia de Jesus. Na verda-
mos considerados corretos, reproduzir um modo
de, ele é muito mais marcado pelo cristianismo
de agir, ajustar suas experiências pessoais ao con-
do que deixamos transparecer em nossa análise.
junto de crenças conservadas coletivamente.
O fizemos para retomar o rico veio da fenome-
Nesse processo, é bom lembrar, o caráter nologia religiosa, conforme a perspectiva crítica
criativo dos sujeitos não fica anulado. Nos inters- apresentada.35
tícios que sempre sobram dos ajustes com o gru- Há ainda – pois o artigo é dos anos 50 – tó-
po, há espaços para a reformulação das práticas, picos que, nos dias de hoje, são comuns e que
das tradições e das “verdades” da teologia (enten- Certeau não trata, por exemplo, a relação da reli-
dida aqui no seu sentido literal de fala sobre deus). gião com a política ou com o poder institucional,
A vivência religiosa ultrapassa a instituição.32 tema tão presente nos textos das décadas seguin-
26
tes. O artigo produzido pelo doutorando possui
Ibid., p. 196.
27 Ibid., p.195.
28 Cf. WHITE, 1995. 32 CERTEAU, 1988, p. 198.
29 Cf. GINZBURG, 2002. 33 Ibid., p. 202.
30 CERTEAU, 1988, p. 196. 34 Ibid., p. 205.
31 Posteriormente, sob influência de Lacan, Certeau utiliza a palavra real 35 Esse retorno aos princípios fenomenológicos é uma tendência geral
para aquilo que resiste à simbolização e realidade para o que pode ser das ciências humanas, na década de 90, por conta das problematizações
apreendido e incorporado aos discursos. Cf. AHEARNE, 1995, p. 23. sobre os sentidos vividos e a experiência subjetiva. Cf. DOSSE, 1995.

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uma leitura da vivência religiosa mais “interna”, tativa de delimitar a religião. Óbvio que a teoria
ressaltando a relação pessoal com o sagrado. inicial levará a pesquisa a certa direção, porém,
Uma coisa ainda não foi esclarecida. Fala- como diz com ironia Certeau, esses conceitos
mos de religião, de religiosidade, não oferecendo, preliminares servem somente para um test drive.40
contudo, uma idéia do que seja. O artigo “A ex- Se o lugar do religioso na história – social e
periência religiosa” realmente não se preocupa pessoal – deve ser investigado, qual o lugar da his-
com isso. Para sabê-lo, teremos de visitar textos tória perante o religioso? Essa questão indica que
posteriores. O tema possui importância especial, a produção de um conhecimento histórico crítico
pois Certeau não o abordará numa via de mão inclui a auto-análise. É interessante que, mesmo
única. A mística religiosa também marca suas sendo comum a referência à crítica na historio-
concepções quanto ao trabalho dos historiadores. grafia, continua raro encontrarem-se trabalhos
Nas ciências da religião há duas formas ge- que a façam. Até porque o método científico cos-
rais de enfrentar a questão.36 A primeira são as de-
tuma se achar universal, podendo tratar qualquer
finições com enfoque essencialista, que tentam
tema com igual competência e/ou pertinência.
descrever a esfera religiosa com elementos como o
símbolo, o mito, a crença, a ideologia etc. Exemplo Contrariando essa visão onipresente e onis-
disso é um dos últimos conceitos dados com tais ciente, Michel de Certeau considera o conheci-
características, o de Clifford Geertz. Ele define re- mento científico uma prática limitada a certos lu-
ligião como um sistema de símbolos em atuação gares. Sua visão crítica advém de observar as con-
para estabelecer poderosas, penetrantes e dura- dições de enunciação antes de atentar para os
douras disposições e motivações nos homens, por enunciados. A história já predeterminaria seus te-
meio da formulação de conceitos de uma ordem mas, bem antes de ir buscar as fontes. Certeau
de existência geral e vestindo essas concepções não problematiza, por exemplo, a interpretação
com tal aura de fatualidade que disposições e mo- dos “fatos”, mas o que nos possibilita “fabricar”
tivações parecem singularmente realistas.37 apenas alguns deles e interpretá-los de certa ma-
O segundo grande grupo de estudiosos tra- neira. A análise certeauniana das “operações his-
balha com uma definição mais funcional. O que toriográficas” busca, antes de tudo, escutar os “si-
seria o “sentido último” da vida nesse grupo? O lêncios” do que é dito/escrito.41
que os leva para fora do tempo e do espaço “pro- CONCLUSÃO
fanos”? Nessa forma de abordagem, pode-se con- Para finalizar, voltemos ao artigo sobre a
siderar o regime socialista soviético como uma re- experiência religiosa. Nele, o jovem Michel de
ligião e Mircea Eliade chega a falar do cinema.38 Certeau escrevia: “o indizível está naquilo que é
Michel de Certeau aproxima-se da última dito”.42 Há um paralelo em suas concepções en-
tendência. Mas, em certo sentido, a supera quan- tre o estudo do religioso e o do passado. Assim
do ressalta a importância de os/as investigadores/ como o “sagrado” transcende sua testemunha, o
as não buscarem uma definição de religião. Eles/as real transcende a capacidade dos relatos históri-
devem enfocar aquilo que os sujeitos pesquisados cos. Uma alteridade não controlada aflora nos in-
consideram ser religioso, o que é bastante variá- terstícios de ambos os discursos. É sobre os indí-
vel.39 A ênfase no próprio agente religioso livra- cios desse Outro que o historiador das vivências
nos da “sinuca de bico” de ficar sempre retoman- religiosas mantém seu desejo de saber.
do listas de conceitos, categorias, autores, na ten-
40 Ibid., p. 88.
36 Para uma análise do conceito de religião em pesquisas mais recentes, 41 Estamos resumindo algumas idéias do texto “A operação historio-
cf. McCUTCHEON, 1995. gráfica”, de Michel de Certeau. Ele encontra-se em versão mais curta
37 GEERTZ, 1989, p. 104-105. na obra organizada por Le Goff & Nora (CERTEAU, 1979, p. 17-49)
38 ELIADE, 1995, p. 167. ou em A Escrita da História (CERTEAU, 1982, p. 65-119), em versão
39 Isso é válido tanto para um momento da vida pessoal quanto para mais desenvolvida.
um período histórico. CERTEAU, 1982, p. 146. 42 Idem, 1988.

108 Impulso, Piracicaba, 15(37): 101-109, 2004


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Dados do autor
Mestre em Ciências da Religião pela Umesp,
Doutorando em História, na UnB.

Recebimento artigo: 28/mar./03


Consultoria: 3/abr./03 a 18/ago./03
Aprovado: 28/maio/04

Impulso, Piracicaba, 15(37): 101-109, 2004 109

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