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HOMOSSEXUALIDADE, GÊNERO E

CURA EM PERSPECTIVAS PASTORAIS


EVANGÉLICAS*

Marcelo Natividade

[...] eu vi lágrimas naquele rosto. Vi, sim, dade; outros até a própria vontade de viver.
rosto de mulher. Ou quem sabe era homem? Não Entendido em preconceito no trabalho, nas ruas,
dava pra dizer o certo. Mas chorava. Certeza, eu na família, na igreja. Entendido em AIDS.
só tive uma: era entendido. Entendido em sofri- Entendido em ouvir deboches na rua e caminhar
mento, em dor, em ser magoado, saber direitinho de cabeça baixa, tentando não ser notado. Ou
o que é humilhação, vexame, até pancada. arrogantemente, com a cabeça erguida, olhando
Entendido em perder... Alguns perderam a digni- desafiadoramente para as pessoas, disposto a
agredir antes de ser agredido... Entendido em
disfarces, mentiras. E muitas vezes quando olha
* Agradeço à Associação Nacional de Pós-Graduação no espelho, não se vê homem nem tão pouco
e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs), ao Centro mulher. E descobre que não é nada. Não é
Latino Americano em Sexualidade e Direitos homem nem mulher.
Humanos (IMS/Uerj) e à Capes por terem propi- JULIO SEVERO, ESCRITOR EVANGÉLICO
ciado, em diferentes momentos, suporte para rea-
lização de pesquisa da qual este trabalho faz parte.
Em agosto de 2004, um projeto em tramita-
ção na Assembléia Legislativa do Estado do Rio de
Janeiro chamou a atenção da opinião pública e des-
dobrou-se em delicada controvérsia sobre a possi-
Artigo recebido em março/2005 bilidade de mudança da orientação sexual dos
Aprovado em maio/2005 homossexuais.1 À época, desenvolvia uma pesquisa

RBCS Vol. 21 nº. 61 junho/2006


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sobre as concepções da homossexualidade entre ressalta os impactos da adesão religiosa sobre a


evangélicos na cidade do Rio de Janeiro. Ao construção do gênero e da sexualidade feminina
acompanhar a atuação de grupos religiosos como (Machado, 1996; Machado e Mariz, 1996). Embora
o Movimento pela Sexualidade Sadia (Moses), o alguns estudos tematizem determinados aspectos
Corpo de Psicólogos e Psiquiatras Cristãos (CPPC) da regulação da sexualidade pelas doutrinas evan-
e a Associação Brasileira de Apoio a Pessoas que gélicas, pouco tem sido escrito especificamente
Voluntariamente Desejam Deixar a Homossexuali- sobre a homossexualidade. Este artigo pretende
dade (ABRACEH),2 entrevistava homens perten- contribuir para esse debate, enfocando discursos
centes a comunidades pentecostais que já haviam sobre práticas homossexuais em perspectivas pas-
mantido relacionamentos homossexuais ao longo torais e doutrinárias evangélicas.
de suas vidas, buscando investigar os nexos entre Pesquisas recentes apontam para transforma-
a experiência religiosa e os processos de constru- ções no panorama religioso brasileiro em relação
ção de si.3 a temáticas pertinentes à esfera da sexualidade –
Na primeira etapa da pesquisa, o discurso como, por exemplo, a exigência de fidelidade
religioso que contemplava a noção de cura da para homens e mulheres, indicando uma minimi-
homossexualidade apareceu como perspectiva zação da assimetria entre os gêneros (Machado,
hegemônica,4 defendida por diferentes denomina- 1996; Fernandes et al, 1998). No contexto evangé-
ções, apesar das variadas ênfases cosmológicas e lico, em questões como aborto, homossexualidade
doutrinárias destas igrejas.5 Assegurando a possi- e escolha sexual parece haver certa impermeabili-
bilidade da “transformação” dos indivíduos em dade à mudança (Mafra, 1998). A despeito de uma
ex-homossexuais – enunciada na esfera pastoral ênfase no discurso de acolhida, permanece a idéia
como uma “esperança àqueles que sofrem” –, a de que tais práticas são pecaminosas. Assim, ainda
fala dos religiosos adentrava a arena política em que a Igreja Universal do Reino de Deus (Iurd) se
um projeto que previa a alocação de recursos destaque em um conjunto mais amplo de comuni-
estatais para iniciativas religiosas voltadas à recu- dades religiosas pela maior aceitação de homosse-
peração de homossexuais. Um deputado religioso xuais em seu quadro de fiéis (76% dos entrevista-
chegou a conceder parecer favorável ao projeto dos dessa igreja afirmou que jamais excluiria um
nos seguintes termos: homossexual do espaço congregacional), a defesa
desta atitude deve ser vista menos como aceitação
Homem e mulher foram criados e nasceram com da prática homossexual e mais como “motivo pri-
sexos opostos para se complementarem e se pro- meiro para um cuidado pastoral” (Fernandes et al.,
criarem. O homossexualismo apesar de aceito 1998, p. 117).
pela sociedade é uma distorção da natureza do Essa postura pastoral propicia uma prolifera-
ser humano normal. Assim, a oportunidade de se ção das falas que opera como uma verdadeira
apostar novamente na condição normal de pro- explosão discursiva (Foucault, 1997). O foco de
criação é louvável e por isso meu parecer é favo- interesse deste artigo é direcionado às perspectivas
rável (Deputado S. Malafaia-Relator). de gerenciamento das práticas sexuais a partir de
um determinado discurso sobre a homossexualida-
O tema repercutiu na grande imprensa e de. Trata-se de discutir, sobretudo, os nexos entre
contou com a reação de diversos setores da socie- as concepções de corpo, gênero e sexualidade pre-
dade civil: movimentos sociais, intelectuais, per- sentes no discurso religioso.
sonalidades públicas e ONGs manifestaram seu A proposta insere-se em uma abordagem
repúdio ao fundamentalismo e à homofobia dos antropológica que privilegia a construção social e
evangélicos. O debate demonstrou a necessidade cultural da sexualidade. Tem-se como pressupos-
premente de investigação das perspectivas reli- to básico o fato de a conduta sexual ser um domí-
giosas no que se refere à sexualidade no Brasil nio que depende da socialização e da atribuição
contemporâneo. de significados, regulada por parâmetros sociais
A produção antropológica voltada às esferas (Heilborn, 1999; Weeks, 1999). Considero a reli-
do entrelaçamento entre religião e sexualidade gião como uma dessas instâncias de controle,
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visto que constitui sistemas simbólicos capazes de pensável” para quem deseja obter cura da homos-
fornecer sentido à ação social, introduzindo dis- sexualidade em certos contextos religiosos.
posições e motivações, um certo modo de ver, Deixando o homossexualismo, por exemplo, de
apreender e entender o mundo (Geertz, 1989). Bob Davies e Lori Rentzel, é indicado no site do
Nesse sentido, compreender que valores são Moses como o livro mais importante sobre homos-
difundidos pelo discurso religioso contribui para sexualidade. Autores como a médica cristã Rebecca
o desvelar das lógicas culturais que informam a Brown e a pastora brasileira Neuza Itioka, foram-
experiência e orientam a ação social (Fry, 1982). me apresentadas por diversos informantes como
Na primeira parte, trato das formas de pro- “especialistas” em batalha espiritual, referências
blematização da homossexualidade em discursos importantes no meio evangélico no que se refere a
religiosos brasileiros. Na segunda, o foco é dirigi- técnicas de libertação. De um total de dez livros,
do às técnicas que compõem o discurso sobre seis são de autoria de pastores ou líderes religiosos
cura e libertação da homossexualidade, com vis- que ministram7 libertação e quatro de autores que
tas a compreender quais as perspectivas de regu- atuam em pastoral com homossexuais.8 Assim, a
lação da sexualidade neste contexto. presente literatura é tomada como documento, com
Antes de proceder à análise do discurso conteúdo programático utilizado em contextos
evangélico cabe uma contextualização do mate- rituais que envolvem práticas de libertação e cura.
rial etnográfico. Os textos que focalizo na primei- A relevância desta análise justifica-se também pela
ra parte contemplam a produção discursiva evan- grande procura desses livros.9 A participação como
gélica brasileira sobre o tema. Recolhidos a partir visitante no âmbito do Congresso Profético
de um mapeamento do universo editorial evan- Apostólico 2005, permitiu acesso a palestras sobre
gélico,6 consistem em livros e textos brasileiros restauração sexual e também observação etnográfi-
que abordam diretamente a homossexualidade: ca em ritos dedicados ao tema.10
cerca de dez títulos da autoria de pastores e líde-
res religiosos, em sua maior parte atuantes em tra-
balhos pastorais com homossexuais. Artigos reco- Do construtivismo moral ao
lhidos no âmbito da atuação do Movimento pela naturalismo do gênero
Sexualidade Sadia (Moses) completa o corpus do
material examinado na primeira parte. A opção Os artigos divulgados pelo site do Moses con-
por priorizar esses textos deve-se ao lugar dessa templam temas diferenciados como movimento
iniciativa religiosa no campo evangélico: o Moses homossexual, parceria civil entre homossexuais,
possui atuação “interdenominacional” e é atual- abuso sexual, pornografia, pedofilia, prostituição,
mente um importante articulador de trabalhos pas- gênero, aborto, teologia gay e movimento feminis-
torais direcionados a homossexuais. Criado em ta. O teor de sua abordagem confere uma forte
1997, no Rio de Janeiro, promove aconselhamen- ênfase à problematização do “estilo de vida homos-
to, palestras e “capacitação” para a evangelização sexual”. Assim, apesar de o Moses sinalizar para um
de homossexuais, além de divulgar em seu site objetivo mais amplo de “ajudar os que sofrem de
(www.moses.org.br) endereços e contatos de desvios sexuais de quaisquer espécies”, fica evi-
diversas instituições e iniciativas religiosas com dente a preocupação específica com a homosse-
objetivos similares. xualidade. Na abordagem de cada um dos temas,
Na segunda parte utilizo um material distin- apresenta-se um julgamento moral sobre as práti-
to, apesar de fazer referências à literatura antes cas homossexuais. As referências ao estilo de vida
discutida. Examino a produção discursiva sobre gay são inúmeras e constantes mesmo em textos
cura da homossexualidade (quatro títulos estran- que tratam de temas mais gerais, como, por exem-
geiros) e sobre libertação (dois títulos estrangei- plo, igualdade sexual. O entrecruzamento entre na-
ros e quatro nacionais), incluindo falas de líderes tureza e gênero indica o entranhamento da sexua-
religiosos proferidas em cultos pentecostais. A lidade em uma ordem moral abrangente, cuja
incorporação de publicações de autores estran- determinação é divina A epígrafe deste artigo é ilus-
geiros justifica-se por figurar como “leitura indis- trativa desse aspecto: “nem homem, nem mulher”,
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o pecado homossexual é desafiar uma ordem do Homossexualidade:


mundo instaurada por Deus. Nessa percepção, prá- comportamento aprendido?
ticas sexuais entre homens ou entre mulheres con-
trariam uma determinação divina com relação aos Um dos temas centrais desses textos refere-
gêneros e a sexualidade. A mensagem religiosa se à gênese da homossexualidade. Uma discussão
completa-se na afirmação de que o desejo homos- acalorada acerca da origem do comportamento
sexual é passível de mudança. homossexual apresenta-se a partir do confronto de
A proposta pastoral apresentada no contex- teorias advindas dos saberes da biomedicina – que
to da literatura evangélica11 possui conteúdo simi- sustentam uma visão genética determinista – com
lar: há uma forte preocupação em apontar a ver- aqueles que afirmam a “construção” da homosse-
dade bíblica sobre os fatos relacionados à xualidade. Grande parte dos autores examina e
homossexualidade. O livro O dia em que nasci de refuta teorias que consideram a existência de uma
novo (1993), do pastor João Carlos Xavier, apre- pré-disposição ou tendência inata à homossexuali-
senta o testemunho do próprio autor – ex-homos- dade, para em seguida afirmar o primado das
sexual e ex-travesti – com o objetivo de “com- influências ambientais, sociais e psicológicas na
provar o que Cristo faz na vida de alguém conformação das identidades homossexuais.
aparentemente irrecuperável”. Lísias Castilho, médico cristão, autor do livro
O conjunto dos artigos e livros conta com Homossexualidade, discute o tema no capítulo
certa homogeneidade tanto em sua estrutura como intitulado “Perspectiva biológica” e sustenta o
em seus conteúdos: apresentam discussões sobre posicionamento de que os saberes científicos “são
a origem da homossexualidade, seguidas pela transitórios”. Apesar de homens e mulheres serem
explanação da verdade da Bíblia, para comprovar diferentes “anatomicamente, hormonal e funcio-
a possibilidade de cura. Também apresentam uma nalmente desde a concepção”, as “diferenças entre
caracterização negativa da homossexualidade, homossexuais e heterossexuais do mesmo sexo
acentuando os aspectos de uma “vida pregressa” nunca foram claramente demonstradas, nem na
associada a um comportamento desordenado, imo- esfera mental, nem na física”. Para o autor, diver-
ral e que conduz ao sofrimento. Recorrentes sos estudos de base científica teriam falhado em
“exemplos” de cura contrastam o momento anterior seu esforço de demonstrar “a transmissão genética
e posterior à conversão do “ex-homossexual”, sinali- de tendências homossexuais” (Castilho, 1990).
zando para a necessidade de adequação ao modelo Assim, apresenta uma apropriação seletiva de algu-
normativo para os gêneros. Nestas narrativas, o pas- mas teorias psicologizantes e define “como” uma
sado está associado a uma espécie de inversão do pessoa se torna homossexual: “abuso sexual na
gênero, oposto ao presente “restaurado”, quando o infância”, “dificuldade na relação das crianças com
homossexual masculino, por exemplo, pode trans- seus pais” e “relacionamento deficiente com o
formar o “pecado do homossexualismo” na “bênção genitor do mesmo sexo” são alguns dos fatores
da heterossexualidade” por meio do casamento e da que propiciariam o aparecimento dessa deficiência
constituição de uma “família de Deus”.12 ou doença. Seu texto é ilustrativo: “Ousamos afir-
No material examinado, algumas afirmações mar, tal como tantas autoridades no campo da
sobre a homossexualidade são recorrentes: 1) Psicologia, que o homossexual é, antes de tudo,
trata-se de um comportamento aprendido; 2) de um doente e, como tal, passível de tratamento e
um problema espiritual; 3) é uma antinatureza. cura” (Idem, p. 65).
Tais conceitos sustentam um posicionamento mais O exame da retórica construída por este
geral dos evangélicos de que o homossexualismo autor sinaliza uma visão recorrente acerca da “ori-
não representa um atributo “natural” do sujeito. gem” da homossexualidade. Nessa literatura, o
Subjacente à concepção de que estas práticas comportamento homossexual é aprendido por
podem ser abandonadas pela restauração e cura, meio de experiências negativas. As idéias que
há a idéia de uma natureza heterossexual. Veja- Castilho defende caracterizam uma espécie de
mos como essa retórica se constrói pelo exame de tônica geral dos textos, com pequenas variações,
cada enunciado. em torno dos “fatores” que influem na “conforma-
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ção” de uma identidade homossexual. Com efeito, tor da Assembléia de Deus – casado com uma
os argumentos são contrários a uma visão essen- serva de Deus e pai de um filho – apresenta visão
cialista da homossexualidade. O homossexual é semelhante no livro O dia em que nasci de novo.
portador de sintomas de uma psique enferma. Seu homossexualismo teria se desenvolvido na
Homossexuais são dados à depressão e ao suicí- umbanda, quando legiões de demônios “atuaram
dio, são instáveis, inseguros e imaturos. Enfatiza- em sua vida” e “tomando seu corpo”, o desperta-
se uma representação patologizada das práticas ram para os desejos homossexuais. A narrativa de
homossexuais, articulada em torno das concep- Xavier é pontuada por considerações sobre o cará-
ções de vício, compulsão e transtornos mentais. ter maligno dos impulsos homossexuais. Considera-
Em outro plano discursivo, acentua-se que tais se que este pecado sexual é perpetrado por indi-
práticas são “hábitos profundamente arraigados” víduos que têm diabo no corpo ou que estão sob
que, contudo, constituem um estado passível de influência de pombas-gira e outros exus. Esses
alteração: “as pessoas não são homossexuais mas argumentos, de teor cosmológico, configuram uma
estão homossexuais” (Santolin, 2001, p. 28); “o percepção físico-moral da homossexualidade, na
problema, portanto, não é ser ou não homosse- qual o pecado abre brechas na corporalidade. O
xual, mas estar ou não estar homossexualizado” demônio instila sensações, movimentos, contrações
(Souza, 2004). A homossexualidade é vista, funda- involuntárias. Voltaremos a este ponto adiante, no
mentalmente, como resultante da socialização em momento cabe enfatizar que a luta contra a ho-
famílias desestruturadas, nas quais a ausência de mossexualidade enseja a participação ritual e pro-
firmes modelos de masculino e feminino produzi- cessos de purificação na resolução de um proble-
ria uma espécie de identificação com o gênero ma espiritual.
errado. É recorrente nesse contexto o uso da Esses dois livros ilustram a tônica das idéias
expressão transtorno ou crise de identidade de apresentadas no conjunto do material examinado.
gênero. Pais ausentes e mães dominadoras são Práticas homossexuais são apreendidas em expe-
personagens obrigatórios nos casos evocados riências negativas de abuso, trauma, violência e
como exemplos de homossexualidade masculina. rejeição (versão psicológica); ou dizem respeito a
uma complexa cadeia de significados cosmológicos
que recorre à teologia da batalha espiritual13 ao con-
Homossexualidade: problema espiritual? siderar a atuação de demônios sobre a esfera da
sexualidade dos indivíduos. Tive acesso a esse tipo
A noção de problema espiritual suscita uma discurso não apenas na literatura, mas vários infor-
caracterização da homossexualidade que se apro- mantes afirmaram que esta é uma concepção difun-
xima da idéia anterior, em defesa da possibilidade dida em suas igrejas.14 No ambiente religioso consi-
de “reversão”, já que ambas imputam à homosse- dera-se que “os demônios são sexualmente
xualidade certa externalidade ao indivíduo, isto é, transmissíveis”. Nesse sentido, o pecado do homos-
não a consideram algo inato. sexualismo deve ser evitado porque permite a
J. Cabral, no livro O amor às avessas: homos- infestação por seres malignos (Natividade, 2005,
sexualismo, trata dos aspectos espirituais que 2003a e b). Sob a ótica dessa perspectiva, os trans-
podem conduzir à homossexualidade. Sobretudo, a tornos sociais e psicológicos que colaboram para o
adesão a rituais e crenças não evangélicos “podem desenvolvimento do homossexualismo podem ser
ser inspiradoras do comportamento homossexual”, causados por influência espiritual. De qualquer
levando à promiscuidade e perversão: “os casos de modo, em ambos os casos, a homossexualidade é
possessão demoníaca podem estar associados dire- externa ao indivíduo: sentimentos ou desejos
tamente à atividade homossexual. Acredita-se, in- homossexuais não constituem atributos inatos ao
clusive, que existem demônios cuja atividade espe- sujeito mas se conformam a partir de uma conste-
cífica é provocar esse tipo de distorção nos seres lação de fatores “sociais” ou “espirituais”.
humanos, afastando-os dos ensinamentos de Deus” Ampliando o foco de visão para o universo
(Cabral, 1995, p. 22). João Carlos Xavier, com seu religioso, este discurso contrasta, sobretudo, com o
testemunho como ex-homossexual, atualmente pas- da Igreja Católica, que não nega a prática homos-
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sexual como sendo uma tendência. Os católicos Por onde se introduz a comida para dentro do
consideram a possibilidade de a homossexualida- corpo: é pelo nariz ou pela boca? Por onde se
de constituir uma expressão da natureza de alguns introduzem as imagens para dentro do corpo: é
indivíduos, apesar da afirmação – em um plano pela boca ou pelos olhos? Por onde se introduz
o perfume para dentro do corpo: é pelo ouvido
ideal – da necessidade de contenção pelo celibato
ou pelo nariz? Por onde se introduz o esperma
e cultivo do amor de Deus (Natividade e Oliveira,
para que se realize o ato de amor e se perpetue
2004). Com efeito, o estar homossexual evangéli- a espécie humana: é pela boca (sexo oral)? É
co adquire contornos mais precisos quando con- pelo ânus (sexo anal)? É pela vagina (sexo natu-
trastado com a posição relativamente mais tole- ral)? [...] O homossexualismo é o abandono do
rante dos católicos.15 modo natural por outro contrário à natureza
A adoção de um posicionamento construtivis- (Revista Ultimato, 1986).
ta por parte dos evangélicos deixa margem à pos-
sibilidade de gerenciamento dos corpos na produ- Essas passagens indicam a preocupação com
ção de uma sexualidade dentro dos limites um destino “natural” que restringiria os modos de
determinados pela doutrina. Afirmar que o impulso uso do corpo. O tema central é voltado à defini-
homossexual tem origem em fatores ambientais ou ção dos limites para o prazer humano. Define-se
espirituais é justamente o que permite o controle o lícito e o ilícito para o sexo a partir de uma
das condutas sexuais pela promessa de reversão da equação em que um comportamento normal e
homossexualidade. A concepção evangélica, assim, sadio é aquele que se orienta pelas determina-
conforma-se como um construtivismo moral, que ções de Deus, que estariam expressas no texto
em outro plano discursivo recorre a argumentos bíblico. As sexualidades não-heterossexuais são,
naturalistas em sua definição do gênero. portanto, contrárias à Palavra e, nesse sentido,
uma “anormalidade”, “aberração” e comporta-
mento que “irrita a Deus”. Um princípio estrutural
Homossexualidade: antinatureza? hierárquico apresenta-se, ressaltando que há “um
lugar para cada coisa”: o pênis, que produz esper-
O material examinado confere maior ênfase ma, não foi criado por Deus para o prazer indivi-
ao discurso que considera a homossexualidade dual (fora do casamento cristão), mas para a
uma prática que se opõe à natureza, o que aponta reprodução da espécie humana, para ser deposi-
duas maneiras distintas de formulação. A primeira tado em um vaso natural (a vagina), também cria-
discute o uso natural dos corpos; a segunda enfo- do por Deus. Transgredir essa ordem é abandonar
ca especialmente a esfera do gênero. Argumentos um modo natural de vida. As práticas homosse-
“naturalistas” são utilizados tanto na caracterização xuais, como afirma Castilho, “carecem de sentido
de um uso sadio e apropriado do corpo, como na biológico” e “contrariam a destinação anatômica”
proposta de manutenção dos papéis de gênero tra- dos órgãos genitais. A família é considerada a
dicionais e complementares. Pode-se afirmar que expressão máxima de Deus na Terra, e a repro-
certo essencialismo é re-introduzido no discurso dução com a finalidade de constituir a família de
evangélico ao caracterizar os modelos de homem Deus é o princípio defendido. Subjacente a idéia
e mulher conferidos por Deus. Proponho uma dis- de que a sexualidade deve se pautar nas regras
cussão a esse respeito partindo de uma passagem bíblicas está o suposto, mais ou menos velado, de
do livro supracitado, Homossexualidade, do médi- que o ‘bom’ sexo é somente aquele que ocorre no
co cristão Lisias Castilho, e de um fragmento da interior do casamento cristão.
matéria intitulada “Aberração”, veiculada no site do Desse modo, a associação entre reprodução e
Moses. Respectivamente: práticas sexuais é um recurso recorrente na defini-
ção do que é um modo natural e sadio de exercí-
O homossexualismo humano carece de sentido cio da sexualidade. Afinal, “a união civil de um
biológico, contraria a destinação anatômica dos homem e uma mulher leva normalmente aos be-
órgãos genitais e impede a procriação (Castilho, bês, ao passo que a união sexual entre dois indiví-
1990, p. 64). duos do mesmo sexo leva normalmente a doen-
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ças” (Severo, 2003, p. 3). Está esboçada aí a cons- Seguindo essa lógica, Júlio Severo analisa a
trução da imagem da homossexualidade como homossexualidade em diversos textos. Em As ilu-
uma prática que oferece perigo e ameaça à socie- sões do movimento gay e O movimento homosse-
dade pela transmissão de doenças. xual, o autor aponta as “graves conseqüências
A carga moral presente nos argumentos sociais do homossexualismo”. Para ele, os homos-
desenvolvidos em torno do enunciado da antina- sexuais são pedófilos, abusadores, tendem ao crime,
tureza postula que a homossexualidade é “impu- ao excesso sexual, são dados à promiscuidade e,
reza”, comportamento que contamina e contagia, sobretudo, espalham doenças. Vale lembrar de
de forma que tratar o homossexualismo – levar que se trata da homossexualidade masculina, pro-
conversão a esta população – é produzir saúde míscua, irresponsável, que ameaça a família e
social. É com este olhar que Júlio Severo, autor propaga doenças. Em suma, expressão de uma se-
do livro O movimento homossexual, examina os xualidade desordenada e excessiva, que tem como
contatos homossexuais: fim a morte. A homossexualidade feminina é cita-
da com menor freqüência. Claudionor Corrêa de
As típicas práticas sexuais dos homossexuais são Andrade, ministro do evangelho da Assembléia de
histórias de terror: eles trocam saliva, fezes, Deus, recorre a argumentos semelhantes no livro
sêmen e sangue com dezenas de homens por Há esperança para os homossexuais!. Ainda que
ano. Eles bebem urina, ingerem fezes e experi- este autor considere a homossexualidade feminina
mentam trauma retal regularmente. Muitas vezes, também um pecado, sua problematização focaliza
nesses encontros, os participantes se encontram sobretudo as relações masculinas. Com base em
bêbados, drogados ou em ambientes de orgia casos exemplares de dois homossexuais famosos
(1998, pp. 67-68).
(o ator norte-americano Rock Hudson e o escritor
inglês Oscar Wilde), Andrade reflete sobre o trá-
O uso do corpo nos contatos sexuais gico fim reservado a todo homossexual: Aids, soli-
homoeróticos é tratado como um desejo equivo- dão, morte e suicídio. Rock Hudson, morto vítima
cado do homem de fazer um uso imoral (e anti- da Aids em 1986, “homossexual assumido e habi-
natural) de si, que apresenta “graves conseqüên- tuado às mais desenfreadas orgias, tornou-se víti-
cias sociais”. Para Severo, as “práticas sexuais dos ma de sua própria depravação”. Já Oscar Wilde,
homens homossexuais, envolvendo copulação oral para o autor, é um exemplo da forma como o
após a sodomia retal assim como a contaminação pecado “acelera a degeneração do ser humano”;
dos dedos e das mãos durante os atos homosse- “sua patética história é a inexorável redução de
xuais, estão fazendo espalhar uma variedade de um homem a um zero humano”, é a prova de que
parasitas, bactérias e vírus pela sociedade” “tudo aquilo que o homem semear, isto ceifará”
(Idem, p. 69). A imagem mais recorrente da arti- (Andrade, 1987).
culação entre homossexualidade-impureza-con- Vale ressaltar que, ainda que os textos se
tágio diz respeito à propagação da Aids, embora refiram à homossexualidade de homens e mulhe-
esta não seja a única doença sexualmente trans- res em um plano ideal, há um descompasso na
missível que os homossexuais “vivem a espa- ênfase concedida a essas práticas.16 Severo afirma
lhar”. Assim, práticas homossexuais culminam que “é muito mais fácil os homens se tornarem
no castigo de Deus. homossexuais, e isso em grande número, antes de
A dicotomia natureza versus antinatureza é, as mulheres se tornarem lésbicas” (2004, p. 29). A
portanto, fortemente marcada – a partir dela se conversão é, sobretudo, voltada à recuperação de
estruturam outras oposições: salvação-inferno, pure- homossexuais masculinos de uma vida pregressa
za-impureza, vida-morte, casamento-solidão, prote- de excessos, reconduzindo o indivíduo aos valo-
ção-vulnerabilidade, felicidade-destruição, santifica- res da família, do casamento e da religião.
ção-pecado. A homossexualidade, como prática Ao enunciado da antinatureza deverá ser
antinatural, está sempre posicionada no pólo nega- apresentado a sua contrapartida. Se os homosse-
tivo, o que corrobora para a formação de uma ima- xuais praticam sexo de modo não natural, então
gem negativa em torno dela. é verdadeiro que homens e mulheres (homosse-
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xuais) nascem heterossexuais, por determinação com relação à homossexualidade. Da postura


de seu sexo biológico: “construtivista” ao naturalismo englobante das defi-
Quando você foi gerado o seu sexo também foi
nições de gênero, são apresentadas concepções
determinado. [...] Você nasceu com seu sexo defi- sobre a homossexualidade que permitem afirmar a
nido: possui órgãos sexuais definidos, normais e possibilidade de mudança de orientação sexual.
sadios. Os pêlos que cobrem seu corpo e o tom Meu intento nessa segunda parte do artigo é refle-
de sua voz. Também a estrutura física, o pélvis, tir sobre a noção de cura da homossexualidade
os testículos, os ombros largos e a musculatura. Analiso o fenômeno, à luz de referencial teórico,
Isso é uma confirmação que se impõe à sua situa- dialogando com autores contemporâneos no
ção [homossexual] (Feitosa, 1979, pp. 10-11). campo das ciências sociais. Em seguida, focalizo
as técnicas pastorais que propõem a cura pela via
A mensagem religiosa (naturalista) indica a da experiência religiosa e examino noções empre-
heterossexualidade como “norma natural” desafiada gadas como restauração sexual, cura das memó-
pelos homossexuais. A psicóloga cristã Rozangela rias e libertação.
Alves Justino revela sua perspectiva naturalista no O trabalho de Delma Pessanha Neves (1984),
texto Da homossexualidade à heterossexualidade.17 sobre comunidades da Assembléia de Deus, apon-
Para a autora, haveria uma inclinação natural para ta uma perspectiva analítica relevante. De acordo
a heterossexualidade passível de ser redescoberta com a autora, fenômenos de cura milagrosa, em
pelo recurso a terapias: um sentido genérico, reportam à necessidade de
ordenar, submeter o indivíduo divergente ou sem
Os clientes do GA [Grupo de Amigos]18 vêm com
fé às regras vigentes entre os crentes. O ideal de
uma “máscara” de homossexual, procuram o GA
cura enfatiza a necessidade de adequação do indi-
para que sejam ajudados a tirá-la e pedem para
confirmá-los como heterossexuais. No fundo
víduo às normas e às prescrições religiosas, visto
sabem que a sua inclinação é para a heterosse- que o adoecimento e os infortúnios, de uma forma
xualidade, mas por alguns motivos desempenha- geral, remetem ao apartamento de Deus e à sub-
ram o papel homossexual (1997, p. 30). missão aos prazeres carnais. Fenômenos de cura
espiritual podem ser mais bem entendidos se inse-
A homossexualidade é, assim, uma máscara, ridos no contexto de “atos ritualizados, que
sob a qual jaz uma natureza heterossexual que expressam a relação dos homens com o mundo
pode e deve ser revelada, uma inclinação condi- por eles sobrenaturalizado ou com os poderes que
zente com o sexo biológico. Se, em certo plano atribuem às divindades” (Neves, 1984, p. 5). Com
“Deus criou os homens com potencial para a efeito, a noção de cura milagrosa pressupõe clas-
homo ou para a heterossexualidade”, em outro, sificações relativas à doença e à saúde (felicidade
Deus “determinou a heterossexualidade”. Os argu- e infortúnio), inseridas em um quadro referencial
mentos naturalistas aqui expressos só fazem refor- cosmológico e doutrinário.
çar a hierarquia dos gêneros, posto que vincula Partindo dessa visão, o que seria passível de
fortemente o sexo biológico ao masculino e femi- cura estaria situado em um conjunto muito amplo
nino. Trata-se de um naturalismo que adquire fei- de fenômenos, que abarcam desde problemas
ções próprias, ou seja, um essencialismo moldado orgânicos até desavenças familiares, desemprego,
culturalmente pela religião, subsumido às concep- vícios de qualquer ordem, assim como os possíveis
ções cosmológicas e doutrinárias. A natureza de desvios na esfera da sexualidade (adultério, homos-
que se fala é “natureza divina”. sexualismo etc.). Nesse sentido, a cura de uma
doença, a obtenção de um trabalho e a organiza-
ção da vida familiar – tudo o que diz respeito à
A cura da homossexualidade ordem idealizada na perspectiva doutrinária – são
em discurso signos da condição de escolhido de Deus e prote-
gido pelo Espírito Santo (Neves, 1984). O pecado
Até o momento procurei caracterizar alguns é associado ao castigo, à degeneração humana, em
princípios gerais que norteiam as práticas pastorais oposição à onipotência de Deus, à graça, ao mere-
HOMOSSEXUALIDADE, GÊNERO E CURA EM PERSPECTIVAS PASTORAIS EVANGÉLICAS 123

cimento e ao poder mediador do Espírito Santo, homens e a disputar com Deus a habitação do
que “naturalmente” os convertidos conseguem corpo do crente. Em contraste, viver em Cristo e
obter. Configuram-se, assim, percepções de doen- tornar-se um templo do Espírito Santo resguarda
ça e saúde que articulam o físico e o moral. das investidas do enganador, capacitando o cren-
A análise da socióloga Cecília Mariz (1994) te a enfrentar as provações e as tentações no coti-
sobre a recuperação do alcoolismo entre os pente- diano. Para Mafra, cura e libertação são obtidas
costais de camadas populares no Rio de Janeiro pela busca agonística de purificação ritual que
traz novos elementos para reflexão. Para ela, o envolve “queima ou amarração” do maligno, mas
processo de conversão religiosa inclui certos nunca sua derrota total. Assim, na “libertação ritual
modos de interiorização, ou seja, é a partir da ade- neopentecostal, o demônio nunca é vencido de
são religiosa que o indivíduo se torna reflexivo e uma vez por todas, mas sofre derrotas provisórias,
pode obter a libertação de “problemas” como o uma após outra, no caso de batalhas bem sucedi-
alcoolismo. Mariz ressalta que é na tensão entre das” (Idem, p. 219). Trata-se de um sistema reli-
liberdade e determinação que se produz a pessoa gioso que objetiva, por meio de processos rituais
liberta no contexto de crenças evangélicas pente- de purificação, a transformação do indivíduo em
costalizadas:19 “o conceito de liberdade pentecostal um campo, uma superfície apta a ser habitada
assim se reporta a uma submissão a Deus, ou seja, pela divindade (o Espírito Santo). Mafra, como
a sua regra e a seu plano” (1994, p. 207). No sen- outros autores, aponta a existência de determina-
tido pentecostal, ser livre não significa seguir os das formas de construção da subjetividade e da
impulsos e desejos individuais, mas, ao contrário, pessoa nesse contexto religioso, no qual as noções
viver a Palavra, segundo a ética e as determinações de cura, libertação e regeneração pessoal estão
de Deus. Trata-se de uma visão de mundo que arti- necessariamente presentes no aprendizado da teo-
cula magia – posto que é encantada – e ética, carac- ria da pessoa dessa cosmologia.
terizando uma forma de construção da pessoa que A partir dessa discussão teórica, é possível
é, ao mesmo tempo, paradoxalmente individualista distinguir três categorias no discurso evangélico
e holista: valoriza a transformação individual e incen- que analisamos: cura, libertação e restauração
tiva a dependência de Deus e da comunidade reli- sexual. A primeira é alcançada em um processo,
giosa. Nesse sentido, cura, libertação e regeneração referido como cura das memórias, o que indica a
pessoal aparecem como categorias intimamente influência de um discurso psicologizante na práti-
vinculadas. ca religiosa. Já a libertação toma como ponto de
Clara Mafra (2002) também analisa a liberta- partida a noção de possessão e enseja uma práti-
ção evangélica, especialmente ao se deter sobre o ca ritual na qual fiel e pastor encenam perfor-
sistema ritual da Igreja Universal do Reino de mances de expulsão do mal. A categoria restau-
Deus, ressaltando o sentido performativo dessa ração sexual circunscreve um ideal a ser atingido:
forma religiosa que incentiva mudança do sentido a adequação a um modelo de gênero condizente
ontológico. A constante referência ao demônio e a com o ideal de homem e mulher de Deus. Parto
redescoberta de um mal personalizado reforçam o dessa classificação mais geral para a análise dos
dualismo entre o bem e o mal e enfocam as per- discursos sobre a cura da homossexualidade.
formances que se realizam no culto religioso: a
manifestação do demônio – e sua confissão acer-
ca do mal que causa aos fiéis – fornece aos parti- Restauração sexual: o retorno ao gênero natural
cipantes um roteiro e um sentido para o sofri-
mento. Contudo, é também no contexto ritual que Em primeiro lugar, cabe contextualizar o ideal
o crente aprende a derrotar o maligno. As orações em que se funda a concepção de restauração da
poderosas, a corrente humana e a atuação do pas- sexualidade. Os discursos pastorais que privile-
tor, que exerce sua autoridade na expulsão dos giam o uso dessa noção apresentam uma forte
demônios, tornam o culto uma espécie de aula de perspectiva normativa, ao conceber um único
enfrentamento do mal. Desemprego, angústias e modelo para o exercício da sexualidade: somente
aflições são obra daquele que vive a atazanar os são permitidas as práticas sexuais inseridas no
124 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 21 Nº. 61

casamento cristão. O que foge ao padrão é peca- perspectiva, na restauração da sexualidade ocorre
do e, portanto, desordem na sexualidade, compor- a recuperação dos atributos naturais de masculi-
tamento que precisa de restauração, do “reparo” nidade pela eleição de certos modelos como
divino. Um impulso sexual natural (heterosse- ideais a serem alcançados. O discurso pastoral
xual), que foi pervertido em sua origem por expe- busca a adequação do corpo e da sexualidade a
riências traumáticas e pela prática de certos peca- um modelo de gênero hierárquico:
dos, é passível de ser restaurado pela comunhão
com o Espírito Santo, em um processo que envol- [...] ungi sua testa com óleo, pedi que nosso
ve cura das memórias, busca de santificação, dis- Senhor entrasse, curasse e colocasse no curso nor-
ciplina e libertações. A extinção (ou mesmo a ate- mal os desejos e impulsos sexuais normais do
nuação) dos desejos homossexuais, assim como a José de dezessete anos. [...] Após esta oração, eu
o conduzi para, consciente e deliberadamente,
emergência de um impulso heterossexual natural,
mudar seus trejeitos, sugerindo que ele selecio-
é almejada como possibilidade de conformidade
nasse o homem mais masculino que pudesse ima-
ao destino concebido por Deus. ginar como seu modelo – alguém a quem ele
A retórica evangélica recorre a um naturalis- admirava como cristão, como líder, marido e pai –
mo com certas especificidades: privilegia uma e isso ele prometeu fazer (Payne, 2001, p. 80).
concepção de natureza divinamente concebida e
ordenada. Todo esforço pela cura (em seu senti- O ideal de gênero considera atributos natu-
do ideal) envolverá necessariamente um retorno ralmente masculinos a iniciativa, a confiança, a
às determinações de Deus, no que tange à sexua- agressividade e a virilidade, reforçando uma con-
lidade humana. A noção de restauração sexual cepção assimétrica dos papéis de gênero, o que
pressupõe também um ideal de gênero a ser per- pode ser ilustrado pela narrativa de João Carlos
seguido pela via da experiência religiosa. Xavier (1993). Mudar trejeitos, consertar a voz,
Alguns dos livros examinados conferem um alterar a maneira de vestir-se, modificar o lingua-
lugar privilegiado ao gênero em suas definições jar,20 abandonar tudo aquilo que fazia parte de sua
sobre a cura da homossexualidade. Leanne Payne, vida homossexual, foram atitudes que tomou para
autora de A cura do homossexual e Imagens parti- restaurar sua sexualidade:
das, apresenta casos de cura que envolvem a des-
coberta de uma masculinidade reprimida. Curar- Procurava me adaptar à maneira de vestir dos
se é liberar uma energia masculina represada, irmãos espirituais consagrados. Orei muito a Deus
desviada de seu curso e destino natural. Restaurar pedindo que tirasse de mim todos os trejeitos que
a sexualidade é receber cura na masculinidade e fazia com as mãos e expressões corporais efemi-
fazer emergir a energia natural do varão de Deus. nados. Pedi também ao Senhor que modificasse
minha voz, pois falava esquisito devido ao conví-
Para outros autores, o impulso homossexual ate-
vio com os homossexuais. [...] Em casa desfiz-me
nua-se com o tempo (ou mesmo se extingue),
de tudo o que me fazia lembrar o passado: foto-
dando lugar ao impulso heterossexual (Davies e grafias vestido de mulher, e objetos pessoais; qua-
Rentzel, 1997). dros e discos de Rock foram queimados; as bebi-
A homossexualidade tratada por Payne das alcoólicas não poucas, despejei todas no vaso
como crise de identidade pela identificação com sanitário cantando hinos com muita alegria
o gênero oposto implica um desenvolvimento (Xavier, 1993, pp. 132-133).
sexual imaturo, que pode ser curado por orações.
Sugere a “oração pela liberação do impulso hete-
rossexual normal”, com a invocação da presença Sua mudança para uma identidade de ex-
do Espírito Santo, para o despertar da energia homossexual foi precedida pelas orações, pelo
sexual dormente. O uso da metáfora compulsão Batismo do Espírito Santo, pela experiência de
canibalista define a origem de uma identidade adequação de sua vontade à de Deus e pelas liber-
homossexual, por um viés psicológico: desejos tações. Do ponto de vista das perspectivas pasto-
homossexuais indicam a necessidade de “buscar rais aqui apresentadas, esses são os passos funda-
no outro” o que não é reconhecido em si. Nessa mentais à “transformação”, que apresento a seguir.
HOMOSSEXUALIDADE, GÊNERO E CURA EM PERSPECTIVAS PASTORAIS EVANGÉLICAS 125

Cura das memórias Uma confissão bem feita, com auxílio do minis-
trador, pode possibilitar a saída de todo o lixo
A literatura religiosa concebe a cura das emocional guardado durante anos. É esse lixo
memórias como etapa fundamental na restaura- emocional que adoece a alma e o corpo, confor-
me eu já disse. Ele precisa ser expurgado. Mas,
ção da sexualidade, partindo do pressuposto de
além disso, a ferida exposta precisa ser sarada
que a homossexualidade, assim como outros des-
(Idem, p. 170).
vios sexuais, se encontra firmemente “arraigada”
na mente do indivíduo, sob a forma de emoções
A confissão é o principal método para a
doentes, traumas e vícios. Para atingir a cura das
cura, posto que sem ela não é possível se libertar.
memórias, é preciso buscar a raiz do problema,
Trata-se de uma técnica de direção espiritual, que
localizando as lembranças para situar quando e
tem por objetivo a revelação do pecado (Foucault,
onde se deu o desvio de um curso normal da
2002), na qual o indivíduo é incentivado a reviver
sexualidade. Do ponto de vista cosmológico, afir-
o passado, buscando exaustivamente seus erros.
ma-se que a prática de determinados pecados21
Ritos de confissão são produtores de “verdade”,
abre brechas no corpo do indivíduo, pelas quais
procedimentos que buscam a conformação do in-
os demônios atuam escravizando a mente e indu-
divíduo às normas da instituição (Lima, 1986).22 É
zindo a novos pecados, como a homossexualida-
importante ressaltar, contudo, o caráter criativo da
de. Em contrapartida, o discurso pastoral oferece
confissão pentecostal: o ato de proferir os peca-
a pacificação do indivíduo pelo Espírito Santo,
dos quebra maldições, interrompe a atuação ma-
como “saída” ao domínio de Satanás. O Espírito
ligna, expulsa demônios e permite a intervenção
Santo é divindade que consola, trata, cura e
do Espírito Santo na pacificação da mente e na
apaga as lembranças. Os conselhos pastorais são:
cura das emoções. A pacificação aparece estrutu-
“livrar-se de padrões mentais negativos”, “repro-
rada sob a forma do perdão recebido (por Deus)
gramar a mente”, “buscar renovação mental” e
e do perdão concedido a “outros”. Leanne Payne,
“substituir as informações erradas” (Emerich, 2004).
que ministra cura da homossexualidade, afirma:
A mensagem religiosa completa-se na seguinte
proposição: deve-se “saturar o pensamento das A necessidade principal, claro, é de cura da pró-
coisas de Deus”, com orações constantes, biblio- pria lembrança traumática. Nessa oração, a vítima
terapia (decoração de versículos bíblicos), partici- perdoa àquele que pecou monstruosamente con-
pação em atividades religiosas e cultivo do amor tra ela. Os efeitos deste pecado são lançados para
ao próximo. O discurso da cura das memórias longe, para que a pessoa não esteja mais presa,
enfatiza a necessidade de esvaziar o pensamento marcada ou ferida por eles. Então, conforme o
das imagens que não provêm de Deus, uma vez Espírito Santo conduziu, convidamos o Senhor a
que a mente é o lugar privilegiado para as inves- entrar na memória, purificando e curando
tidas de Satanás. O pastor Alcione Emerich defen- (2001,≠p. 83).
de “que o principal alvo do diabo é dominar a
mente do homem, pois, assim fazendo-o, o terá Para a autora, a libertação da mente e a cura
por completo debaixo de seu controle, coman- do homossexualismo são obtidas com a identifi-
dando sua mente, tem-se o controle do corpo, da cação da raiz do problema (o trauma original,
língua, das vontades, das formas de relacionar-se que instituiu o comportamento). A partir de
socialmente, em suma, de tudo” (Emerich, 2004, então, o perdão é concedido e dá-se a cura das
p. 139). O controle do pensamento é um instru- mágoas pelo Espírito Santo. O indivíduo, purifi-
mento na verdadeira guerra espiritual. cado de emoções que o contaminavam, poderá
Esse discurso apresenta um ideal de sujeito, desenvolver novos comportamentos em relação à
dotado de autonomia, autocontrole e vontade. O sexualidade.
indivíduo é convidado a arrepender-se, confessar A pastora Neuza Itioka (2005), ao ministrar a
seus pecados e renunciar ao erro. É no contexto cura dos pecados sexuais (que inclui a prática da
de libertações ou de ministrações de cura que o homossexualidade, assim como todo o sexo fora
fiel é conduzido ao auto-exame: do casamento cristão: “pornografia”, “masturba-
126 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 21 Nº. 61

ção”, “adultério”) também ressalta a relevância da nicas e conselhos. Vale lembrar que no universo
confissão dos pecados para a restauração sexual. pesquisado o termo libertação tem um sentido
Sua técnica conjuga auto-exame, confissão e bastante particular: libertar-se é recuperar o con-
renúncia do pecado. A obrigação da exaustividade trole de si, é ver-se livre dos constrangimentos
é expressa na ressalva de que o esquecimento de infringidos pelas potências do mal. Com efeito, há
pecados na confissão impede a cura. Assim, toda a semelhanças entre o discurso religioso e a litera-
biografia do sujeito deve passar pelo crivo da tura de auto-ajuda nesse sentido – “Livre de quais-
memória: o passado deve ser pesquisado, analisa- quer constrangimentos e de determinações exter-
do, examinado, perscrutado, confessado e renun- nas, o ‘indivíduo natural’ encontra-se imerso no
ciado. Os fatos e os eventos que compõem a vida reino do livre-arbítrio, da escolha, da vontade e
anterior da pessoa são constantemente ressignifica- da consciência” (Salém, 1992, p. 11) – mas a pro-
dos como pecado e erro. Mas não apenas o passa- posta pastoral difere pela especificidade de suas
do individual deve ser objeto de confissão, tam- técnicas, englobadas pela perspectiva religiosa.
bém as relações familiares e os pecados de pessoas Não se trata, portanto, da produção do indivíduo
da família (da mesma geração ou de outras) preci- autônomo moderno, mas de uma autonomia con-
sam ser revelados e submetidos ao perdão de quistada pela submissão a Deus, que é quem pro-
Deus. Temos aqui certa concepção de pecados tege, separa, aparta do mal (Mariz, 1994).
compartilhados, que enfatiza a necessidade de Contudo, o controle de si também pode ser obti-
libertação não apenas do indivíduo, mas também do pela transformação do sujeito em templo do
da família, a fim de que esta venha a se constituir Espírito Santo – ser cheio, pleno da divindade.
como família de Deus. A biografia do sujeito apa-
rece inserida dentro de um circuito do mal que,
Do corpo carne ao corpo templo
pela libertação, pode ser interrompido. Essa inter-
rupção exige o “quebrantamento” do indivíduo: é
A análise empreendida até aqui aponta para
a submissão a Deus que liberta. Itioka enfatiza a
a dimensão da corporalidade ao fazer uso das
importância de quebrantar-se, de humilhar-se
noções de corpo carne e corpo templo, idéias pre-
diante do Senhor para obter cura e libertação.23
sentes com maior ênfase na literatura sobre batalha
O discurso sobre a cura das memórias indi-
espiritual, mas também em livros (e contextos
ca procedimentos e métodos de produção do
rituais) que focalizam a cura da homossexualidade.
sujeito, com a finalidade de desenvolvimento de
A imagem do corpo carne indica a necessidade de
uma ética sexual, do cultivo de si pelo auto-
renascimento, que compõe todo processo de con-
exame e pelo exercício da disciplina. O que está
versão. O discurso pastoral, fundado em princípios
em foco é a busca do exercício da vontade:
cosmológicos, enfatiza a necessidade da morte do
“eu” (antigo), para o posterior despontar de uma
Por muito tempo o indivíduo desenvolveu um
nova criatura. As metáforas estar pleno, cheio do
padrão de submissão em que foi reduzida e nuli-
ficada sua mente e sua vontade. [...] A imagem de Espírito Santo, encher-se de Deus expressam um
Deus que consiste em desenvolver a vontade e a discurso cosmológico que concebe um “eu” sagra-
liberdade humana tem que ser redescoberta, como do, de corpo, mente e espírito curados e libertos.
um dom de Deus, e a pessoa deve perceber a O sujeito de vontade fraca, que cedia aos ditames
importância e a sublimidade da vontade humana da carne pela prática do pecado, pode se tornar o
aos olhos de Deus e aos olhos dos outros seres indivíduo que renuncia, resiste e é senhor de seus
humanos (Itioka, 1993, p. 225). impulsos, portador de uma ética construída pela
busca da restauração sexual. Em concordância com
Esse conjunto de valores assemelha-se àque- Foucault (2004), estamos diante de tecnologias de si
le investigado por Tânia Salém (1992) na literatu- que visam a instaurar o autocontrole, de forma
ra de auto-ajuda. Individualidade, vontade e similar ao ideal celibatário dos primórdios do cris-
posse de si constituem o núcleo de preocupações tianismo. A discussão em torno do desejo e do
a partir do qual são propostas determinadas téc- impulso homossexual apresenta o exercício da von-
HOMOSSEXUALIDADE, GÊNERO E CURA EM PERSPECTIVAS PASTORAIS EVANGÉLICAS 127

tade como problema axial: buscar a cura da homos- do cheio, indivíduo autônomo; quando vazio,
sexualidade; libertação ou restauração sexual signi- indivíduo sem vontade. Inicialmente, tem-se a
ficam exercer uma ética sexual baseada nos princí- concepção do corpo como carne corrompida pelo
pios da renúncia e da contenção, na reflexividade pecado, possuída por demônios, que, posterior-
diante dos desejos. mente, é transfigurada pelo preenchimento, tor-
De acordo com Carrara (2000), há duas verten- nando-se templo do Espírito Santo. O discurso
tes no pensamento cristão que constroem formula- sobre libertação e cura enfatiza a transmutação da
ções acerca do desejo sexual a partir de distintas con- carne em natureza divina, que devolve a auto-
cepções da pessoa. A primeira é caracterizada pela nomia e vontade ao sujeito. É nesse sentido que
ênfase na abstinência sexual e no ideal do celibato, ceder aos pendores da carne e do pecado é per-
buscando a santificação pela conversão, pelo batismo manecer cativo sob o domínio de Satanás. Em
e pelo fervor da fé. Trata-se de um ideal “autonomis- contrapartida, processos de limpeza ritual que
ta”, que valoriza o autocontrole e o domínio de si incidem sobre o corpo – transformando-o em
em relação aos impulsos da carne. Esta concepção templo da divindade - devolvem a vontade e
caracterizou o cristianismo em seus primórdios autonomia ao sujeito.
(Foucault, 2004; Duarte e Giumbelli, 1995; Brown,
1990), tendo sido apropriada e reinventada em sua
versão puritana com a emergência do protestantis- Considerações finais
mo e seu ideal ascético (Weber, 2001). Uma outra
formulação encontra-se em Santo Agostinho, quan- A análise mostrou como evangélicos profe-
do retoma o tema do pecado original. O pensa- rem um discurso que afirma a exterioridade da
mento agostiniano apresenta uma teologia que homossexualidade, rejeitando concepções deter-
tematiza negativamente a sexualidade, realçando a ministas e afirmando a possibilidade de reversão
carnalidade humana, fruto da queda e da prática por meio da conversão. As acusações morais sub-
do pecado original. Assim, cada fiel carrega a marca jacentes ao discurso sobre a cura revelam um
indelével do pecado, posto que os desejos da carne pânico moral insuflado pelo cultivo de uma ima-
possuem uma base incontrolável e demoníaca. gem negativa. Homossexuais são vistos como
No universo evangélico, pentecostalizado, “promíscuos”, “pedófilos” e sujeitos que “espa-
ambas as concepções coexistem: a idéia da pas- lham doenças”, portanto indivíduos perigosos à
sagem do corpo carne (anterior à conversão, à coletividade. Também foi possível perceber uma
cura e à libertação) ao corpo templo (cultivado apropriação de noções oriundas de outros sabe-
pelo exercício da ética doutrinária) indica a exis- res institucionalizados, a partir da veiculação de
tência de um ideal de transmutação da essência imagens da homossexualidade como “doença”,
da pessoa. É por meio desse pendor ao pecado “vício”, “perversão” ou “degeneração”. Carrara e
que são exercidas práticas antinaturais, abrindo Vianna (2004) chamam a atenção no sentido de
brechas ao maligno (Rebecca Brown, 2000; que essas imagens se tratam de representações
Itioka, 1993). Trata-se de um corpo transpassado da homossexualidade constituintes dos saberes
pelos poderes malignos, infestado por legiões de biomédicos do início do século passado. A pro-
demônios, contaminado, um corpo habitat, recep- blematização acerca da “gênese” da homossexua-
táculo dos diabos, portador de desejos equivoca- lidade – atrelada a práticas visando a uma rees-
dos em relação à verdade e à natureza divina truturação das condutas sexuais – revelou uma
A cura das memórias e a libertação fazem preocupação exaustiva com as sexualidades peri-
parte do processo de limpeza ritual e busca de féricas. Seja como for, a homossexualidade não
santificação. Adequar a vontade do fiel à vontade se localiza fundamentalmente no orgânico, mas
de Deus é o princípio que garante o preenchi- nas memórias e nas experiências vividas, o que
mento, a habitação pelo Espírito de Deus. Estar sugere a interpenetração entre psicologia e reli-
pleno é fundir-se à divindade ou tornar-se Ela. gião (Semán, 2000). A noção de cura e o ideal de
Deste modo, do discurso sobre cura e libertação restauração sexual buscam construir um sujeito
desponta um “eu” concebido na dualidade: quan- reflexivo e implantar uma ética sexual. O impul-
128 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 21 Nº. 61

so homossexual pode emergir sob a forma de entre modernidade e tradição em contextos reli-
tentações e provações, mas é preciso uma verda- giosos, em que princípios de mudança e perma-
deira guerra espiritual pelo controle e posse de nência se relacionam com cosmologia e doutrina.
si. O ideal da transformação do sujeito em um O paradoxo é profícuo para pensar como essas
templo do Espírito Santo busca reforçar essa tensões são atualizadas em contextos religiosos por
dimensão ética. Afinal, um templo é sagrado e meio da oposição entre exercício da sexualidade e
deve ser resguardado. vida religiosa. No discurso sobre cura e libertação,
As considerações aqui empreendidas não tecnologias que visam ao cultivo de si e à raciona-
procuram oferecer uma visão homogênea desse lização dos controles corporais convivem com a
campo religioso. O material examinado aponta manutenção da assimetria entre os gêneros.
para a perspectiva de atuação de determinados
grupos religiosos, principalmente daqueles liga-
dos a trabalhos pastorais que buscam o gerencia- BIBLIOGRAFIA
mento da sexualidade.
Na pesquisa mais ampla que venho realizan- ANDRADE, Claudionor Corrêa. (1987), Há espe-
do, ao coletar entrevistas com homossexuais evan- rança para os homossexuais! Rio de
gélicos, descobri que alguns indivíduos procuram Janeiro, Casa Publicadora das Assembléias
ajuda na igreja para questões da sexualidade, o de Deus.
que indica o recurso a iniciativas religiosas que ofe-
BERGNER, Mário. (2000), Amor restaurado: espe-
recerem cura. Sob a forma de libertações indivi-
rança e cura para o homossexual. São
duais (da qual podem participar pastor, psicólogo
Paulo, Sepal.
cristão e fiel) ou de aconselhamentos pastorais,
apresenta-se uma perspectiva religiosa que dialoga BROWN, Peter. (1990), Corpo e sociedade: o
com conceitos e práticas psicológicas. Tal articula- homem, a mulher e a renúncia sexual no
ção entre religião e psicologia deverá ser objeto de início do cristianismo. Tradução de Vera
reflexão em outros trabalhos. Limito-me no Ribeiro. Rio de Janeiro, Jorge Zahar.
momento a sugerir que, do discurso sobre a cura BROWN, Rebecca. (1998), Vaso para a honra.
da homossexualidade – que enfatiza a importância Tradução de César de Azevedo Gil. 3 ed.
da cura das memórias, procedimentos de procura Rio de Janeiro, Danprewan Editora e
interior e valorização do “eu” – emerge uma práti- Comunicações Evangélicas.
ca pastoral que articula elementos da tradição reli-
giosa e certos modos de subjetivação modernos. _________. (2000), Ele veio para libertar os cativos.
Alimenta-se, assim, o diálogo entre visões religio- 4 ed. Belo Horizonte, Editorial Dynamus.
sas do mundo e visões individualizadas (Semán, CABRAL, J. (1995), O amor às avessas: homossexua-
2000, p. 219). Cabe enfatizar a entrada, neste lismo. Rio de Janeiro, Gráfica Universal Ltda.
campo, de certos atores sociais, como psicólogos,
psicanalistas ou mesmo médicos cristãos, que con- CARRARA, Sérgio. (2000), “Utopias sexuais
jugam identidade religiosa e profissional e que modernas: uma experiência religiosa
causam impacto no âmbito religioso. Americana”. Etnográfica, 4 (2): 355-368.
Do ponto de vista da experiência dos sujei- CARRARA, Sérgio & VIANNA, Adriana R. B.
tos, a abordagem da questão é muito delicada e (2004), “As vítimas do desejo: os tribunais
envolve a análise das passagens e das mediações cariocas e a homossexualidade nos anos
sociais nas trajetórias biográficas, uma vez que a 1980”, in S. Carrara et al. (orgs.),
experiência religiosa é constituída por três dimen- Sexualidade e saberes: convenções e fron-
sões distintas: identidade ou pertencimento; ade- teiras, Rio de Janeiro, Garamond.
são, experiência ou crença; e, em um terceiro
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Szmrecsányi. São Paulo, Pioneira Thomson formou a partir dos anos de 1970. Sobre esse
Learning. aspecto, ver Dallas (1998). O autor evangélico
busca analisar – sob uma visão bíblica – as trans-
WEEKS, Jeffrey. (1999), “O corpo e a sexualidade”, formações que ocorrem na igreja a partir das con-
in G. L. Louro, O corpo educado: pedago- quistas políticas dos homossexuais e da constitui-
gias da sexualidade, Belo Horizonte, ção desta vertente protestante, cujo principal
Autêntica. expoente é a Metropolitan Community Church.
6 A pesquisa inicial dedicou-se à consulta dos catálo-
gos on line de 37 editoras evangélicas e também de
Notas livrarias especializadas (no Rio de Janeiro, cerca de
quinze endereços), além do acervo do Seminário
Teológico Betel (Tijuca, RJ). Mapeou-se uma ampla
1 Refiro-me ao Projeto de Lei 717/2003, de autoria
bibliografia sobre temáticas relativas à sexualidade,
do deputado religioso Édino Fonseca, apresentado
ao gênero, à juventude e à homossexualidade. Essa
à Assembléia Legislativa do Estado do Rio de
etapa exploratória envolveu ainda o monitoramento
Janeiro em 27 de agosto de 2003. Apesar de ter
dos conteúdos dos sites do Conselho de Psicólogos
recebido dois pareceres positivos durante o seu
e Psiquiatras Cristãos, do Movimento pela Sexua-
exame, foi rejeitado pela Alerj em 8/12/2004 por
lidade Sadia, da Igreja Universal do Reino de Deus
trinta votos contra seis favoráveis.
e outras iniciativas religiosas pertinentes.
2 Esses grupos congregam membros de diferentes
7 Termo nativo que designa momentos rituais cuja
denominações evangélicas, representando um posi-
função principal é expulsar demônios e propiciar
cionamento relativamente consensual sobre o peca-
cura espiritual.
do da homossexualidade e as formas de cuidado
pastoral que este comportamento enseja. Por isso, 8 Refiro-me aos norte-americanos Leanne Payne,
eles atuam em conjunto não apenas em aconselha- Mário Bergner, Bob Davies e Lori Rentzel.
mento, mas também na capacitação de religiosos 9 A cura do homossexual, da autoria de Leanne
para lidar com o “problema” em suas igrejas. Payne, foi publicado pela primeira vez em 1993,
3 A reflexão aqui empreendida está inserida em uma com segunda edição em 1994. Enfocando o tema
pesquisa mais ampla que desenvolvo, como dou- mais geral da libertação, Saindo do cativeiro, cujo
torando no Programa de Pós-Graduação em autor é o pastor pentecostal Alcione Emerich, está
Sociologia e Antropologia do Instituto de Filosofia em sua terceira edição após dois anos da primeira
e Ciências Sociais (Universidade Federal do Rio de publicação em 2002. Outro exemplo do consumo
Janeiro). Tal pesquisa trata dos discursos sobre a desses livros é o título Vaso para a honra, da escri-
homossexualidade e os processos de construção tora evangélica norte-americana Rebecca Brow,
de si entre evangélicos moradores da cidade do publicado inicialmente em 1998 e tendo já sua ter-
Rio de Janeiro. ceira edição no ano de 2001.

4 Iniciativas religiosas de comunidades da Assembléia 10 O encontro ocorreu entre 19 e 22 de janeiro de


de Deus, Igreja Metodista, Igreja Batista, Igreja 2005 e reuniu cerca de seis mil pessoas, contando
Presbiteriana, Igreja Sara Nossa Terra aparecem no com líderes religiosos e fiéis de diferentes igrejas
site do Moses, oferecendo aconselhamento e “ajuda” evangélicas. Foi dedicado ao tema da batalha espi-
a homossexuais. ritual. A observação etnográfica do evento permi-
tiu acesso a um material privilegiado, pois contou
5 Neste cenário, uma perspectiva minoritária posi- com a participação da ministra de libertação e
ciona-se com a emergência de denominações pro- escritora Neuza Itioka, que conduziu momentos
testantes, noticiadas pela mídia como igrejas que rituais dedicados à restauração sexual dos fiéis.
aceitam gays. No Rio de Janeiro, adotam esse dis- Um dos objetivos do rito consistia em libertar da
curso, a Igreja Presbiteriana Unida de Bethesda homossexualidade, assim como de outros pecados
(Copacabana) e a Igreja da Comunidade Metropo- sexuais como “masturbação”, “infidelidade”, “sexo
litana (Centro). É possível pensar nessa tendência antes do casamento”. A pastora argumentou a
recente como constituindo um movimento gay necessidade de expandir o trabalho de libertação
cristão embrionário, cujas influências estariam na na sexualidade para outras regiões. Comentou que
existência de uma vertente norte-americana que se realizava um trabalho itinerante, visitando igrejas
132 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 21 Nº. 61

em diversos estados e regiões do país, propiciando 18 Referência a um grupo de auto-ajuda destinado a


momentos rituais como aquele. Tal tarefa se fazia reordenar a conduta sexual de homossexuais, que
urgente, visto que a maior parte dos brasileiros contou com auxílio profissional de psicólogos
“tinha problema na área da sexualidade”. O Brasil evangélicos.
era uma nação “sexólatra”, que idolatrava o sexo e
19 As expressões cura, libertação e recuperação apa-
necessitava de “libertação” nesta área. Agradeço a recem com certa recorrência no universo religioso,
participação de Paulo Victor Leite Lopes, Ana Paula com sentidos correlatos. No presente artigo, contu-
B. Soeiro e Camila Sampaio, graduandos do Bacha- do, esboço apenas alguns aspectos específicos, na
relado em Ciências Sociais da Uerj, pela participação busca de uma compreensão do fenômeno da cura
neste evento e também pela ajuda na localização de da homossexualidade.
material bibliográfico e sistematização de banco de
dados. 20 O autor refere-se ao abandono do uso de gírias
comumente utilizadas no meio homossexual.
11 As obras datam de 1975 a 2003. Os autores são
pastores ou líderes religiosos atuantes em aconse- 21 Sobre o assunto, ver Rebecca Brow (1998) e Neuza
lhamento a homossexuais. As filiações religiosas Itioka (1993).
não estão explícitas nos textos. Contudo, há refe- 22 Foucault (2002), ao analisar as origens históricas da
rências a algumas denominações (Assembléia de confissão católica, considera que esta institui a
Deus, Sara Nossa Terra, Presbiteriana e outras). revelação obrigatória da sexualidade. A noção é
apropriada pelos evangélicos e recriada em con-
12 Ver testemunhos publicados no site do Moses
texto pentecostalizado. Nesse sentido, cura espiri-
(www.moses.org.br).
tual e libertação podem ser atingidas mediante
13 Teologia difundida entre os evangélicos que enfa- uma confissão dos pecados e de sua renúncia pro-
tiza a necessidade de “lutar contra o demônio, que ferida em ritos específicos.
estaria presente em qualquer mal que se faz, em
23 Quebrantamento é categoria nativa que alude à
qualquer mal que se sofre e, ainda, na prática de
necessidade de submeter a Deus emoções e dese-
religiões não cristãs” (Mariz, 1999, p. 34).
jos individuais do antigo eu (não convertido). As
14 Refiro-me a um conjunto de entrevistas coletado metáforas de prostrar-se, humilhar-se, quebrar-se
entre os anos de 2002 e 2005, com homossexuais são referidas a esse desejo de submissão a Deus.
masculinos, oriundos de denominações pentecos-
tais da Baixada Fluminense, periferia do Rio de
Janeiro.
15 O discurso católico concebe a homossexualidade
como comportamento que interrompe o circuito da
reciprocidade do amor divino, como práticas que
expressam um “amor auto-centrado”, que contraria
o princípio da reprodução (expressão máxima do
amor de Deus) e devem ser objeto de contenção.
16 Entre os autores estrangeiros há uma maior sime-
tria na problematização das práticas homossexuais
masculinas e femininas. Contudo, pretendo fazer
uma alusão à cura da homossexualidade com base
também na literatura estrangeira, restringindo o
tema à homossexualidade masculina.
17 Justino tem uma atuação convicta em métodos de
reversão da homossexualidade na articulação entre
psicologia e religião. Nesse sentido, aparece ligada
ao Corpo de Psicólogos e Psiquiatras Cristãos
(CPPC), advogando à sua categoria de profissionais
o direito de tratar de homossexuais em terapias de
cunho religioso.
RESUMOS / ABSTRACTS / RÉSUMÉS 223

HOMOSSEXUALIDADE, GÊNERO HOMOSEXUALITY, GENDER, HOMOSEXUALITÉ, GENRE ET


E CURA EM PERSPECTIVAS PAS- AND CURE IN EVANGELICAL GUÉRISON SELON LES PERSPEC-
TORAIS EVANGÉLICAS PASTORAL PERSPECTIVES TIVES DES PASTORALES
ÉVANGELIQUES

Marcelo Natividade Marcelo Natividade Marcelo Natividade

Palavras-chave: Pentecostalismo; Keywords: Pentecostalism; Mots-clés: Pentecôtisme;


Homossexualidade; Cura espiritual; Homosexuality; Spiritual cure; Homosexualité; Guérison
Gênero; Religião; Direitos huma- Gender; Religion; Human rights. spirituelle; Genre; Religion; Droits
nos. humains.

Este artigo focaliza as formas This article focuses on the Cet article analyse, à partir de
de regulação da sexualidade em ways of sexuality regulation in evan- textes normatifs, les moyens de con-
perspectivas pastorais evangélicas a gelical pastoral perspectives from trôle de la sexualité selon la pers-
partir da análise de textos normati- the analysis of normative texts. The pective des pastorales évangéliques.
vos. O autor discute ainda noção de author also discusses the notion of L’auteur aborde également la notion
cura da homossexualidade. O mate- cure of homosexuality. The ethno- de guérison de l’homosexualité. Le
rial etnográfico é composto por livros graphic material is composed both matériel ethnographique est compo-
e artigos brasileiros e estrangeiros, of books and Brazilian and foreign sé de livres et d’articles brésiliens et
selecionados a partir do mapeamen- articles selected from a mapping out étrangers, sélectionnés à partir d’une
to do universo editorial evangélico e of the evangelical editorial universe recherche à propos de l’univers édi-
do monitoramento do conteúdo de and of the monitoring of contents at torial évangélique et du suivi du
sites que oferecem aconselhamento e sites offering counseling and treat- contenu de sites qui offrent conseil
tratamento a homossexuais em uma ment to homosexuals from a reli- et traitement aux homosexuels sui-
perspectiva religiosa. Os dados fo- gious perspective. Data was collec- vant une perspective religieuse. Les
ram coletados entre 2003 e 2004. ted between 2003 and 2004. données ont été recueillies entre
2003 et 2004.

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